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Educação Física ·
Anatomia
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DOI 104025jphyseducv31i13166 J Phys Educ v 31 e3166 2020 Artigo Original ANABOLIZANTES NA GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO FÍSICA UM DILEMA ÉTICOSANITÁRIO ENTRE ESTUDANTES QUE PRATICAM FISICULTURISMO ANABOLICS STEROIDS IN A PHYSICAL EDUCATION UNDERGRADUATE PROGRAM AN ETHICALSANITARY DILEMMA AMONG BODYBUILDER STUDENTS Eduardo Pinto Machado1 e Alex Branco Fraga1 1Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto AlegreRS Brasil RESUMO Este artigo trata do dilema enfrentado por estudantesfisiculturistas de Educação Física que se dedicam a aprender por conta própria sobre o uso de anabolizantes para fins não terapêuticos em um curso de graduação vinculado à área da saúde A noção de dilema éticosanitário é desenvolvida a partir da articulação entre os conceitos de expertise de Nikolas Rose e o de risco em saúde de Deborah Lupton Entrevistas episódicas com seis alunos da graduação dos cursos de licenciatura e bacharelado em Educação Física de uma universidade brasileira foi a opção metodológica adotada Como resultado identificamos dois perfis de estudantes praticantes de fisiculturismo um composto pelos que ingressaram no curso com o objetivo de aprender a usar anabolizantes e outro que julgava já saber sobre e tinha por objetivo buscar uma certificação profissional universitária Concluímos que o dilema éticosanitário observado em ambos os perfis deveria ser tratado em aula nos cursos de graduação em Educação Física pois o silêncio curricular sobre o processo de hipertrofia muscular pela via medicamentosa associado à atmosfera de clandestinidade pode favorecer a circulação de mais desinformação e ainda mais riscos ao público alvo deste estudo Palavras chave Anabolizantes Expertise Educação Física Fisiculturismo ABSTRACT This article deals with the dilemma faced by physical education studentbodybuilders who are dedicated to learning on their own about the uses of anabolic steroids for nontherapeutic purposes The concept of the ethicalsanitary dilemma is developed from the articulation between Nikolas Roses concept of expertise and Deborah Luptons concept of risk Episodic interviews with six undergraduate students of Physical Education from a Brazilian university were applied in this study as the principal method As a result we identified two profiles of studentbodybuilders one composed of those who joined the program in order to learn how to use anabolic steroids and another one composed of those who presumed to know about the uses and whose purpose was to earn an undergraduate diploma We conclude that the ethicalsanitary dilemma observed in both profiles should be addressed in the Physical Education undergraduate courses since the curricular silence on the process of muscular hypertrophy via steroid anabolics associated with the clandestine atmosphere may add more misinformation and even more risks to the target audience of this study Keywords Anabolic steroids Expertise Physical Education Bodybuilding Introdução A utilização não terapêutica de drogas anabolizantes está documentada na literatura médica como prejudicial à saúde e como infração penal ante a Lei das Drogas1 Na mídia circulam reportagens sobre prisões de agenciadores de anabolizantes sob acusação de tráfico de drogas23 assim como notícias que implicitamente associam a morte de fisiculturistas ao uso de tais substâncias Nessa linha o Conselho Regional de Educação Física do Estado do Rio Grande do Sul CREFRS motivado pela promulgação da Lei nº 125422006 do mesmo Estado que obriga estabeleceimentos físicodesportivos a exibirem placa advertindo sobre as consequências do uso de anabolizantes4 lançou campanha impactante contra tal uso Em um dos cartazes promocionais uma seringa se confunde com um cano de revólver associando posse ilegal com risco de morte dentro de uma lógica calcada na pedagogia do terror57 Apesar de os alertas aparecerem em diferentes recantos cresce o uso destes medicamentos em meio à população brasileira inclusive entre os que têm grau de instrução Machado e Fraga J Phys Educ v 31 e3166 2020 Página 2 de 11 mais elevado89 A maioria são jovens praticantes de musculação muitos deles não apenas usam tais drogas com o propósito de obter ganho muscular mas também desenvolvem conhecimentos cada vez mais sofisticados e de várias ordens sobre os diferentes efeitos dos anabolizantes no corpo humano visando o melhor uso desses recursos81011 Diante deste cenário e dada a relação direta com o campo de atuação do profissional de Educação Física consideramos ser importante investigar o nível de conhecimento dos estudantes de graduação desta área sobre um assunto tão controverso De modo mais específico buscamos compreender as estratégias de aprendizagem sobre anabolizantes para fins de aprimoramento corporal implementadas por estudantesfisiculturistas durante o curso de Educação Física em uma universidade brasileira Como conceitos mobilizadores utilizamos as teorizações de Nikolas Rose denominadas políticas da própria vida12 em especial a noção de expertise pois o manejo destes medicamentos requer um conjunto sofisticado de conhecimentos Também nos baseamos no conceito de risco em saúde913 mais especificamente na correlação com o uso de anabolizantes para desenvolver de forma articulada a noção de dilema étnicosanitário já que a utilização destas substâncias com fins nãomédicos é vista muitas vezes como um atentado à saúde pública14 Expertise e dilema éticosanitário na busca de aprimoramento do próprio corpo Rose12 usa o termo políticas da própria vida para agrupar as formulações que tomam a dimensão somática como o centro das ações biopolíticas contemporâneas elemento que diferencia esta abordagem da clássica biopolítica foucaultiana O autor12 desenvolve cinco temas que dimensionam esta repaginação do conceito de biopolítica molecularização enhancement subjetificação expertise e bioeconomia Um traço constitutivo desta biopolítica contemporânea que atravessa estes cinco temas seria a administração da própria saúde e do próprio corpo para a automodelação1265 Diante da biologia contemporânea o corpo é considerado um circuito aberto sobre o qual podem ser aplicadas tecnologias de otimização e aprimoramento O processo de aprimoramento corporal consiste na utilização de tecnologias que objetivam a melhora do desempenho do corpo12 Àqueles que detêm um conhecimento mais sofisticado sobre as variáveis envolvidas no processo de enhancement corporal Nikolas Rose denomina experts peritos da vida em si mesma Para Rose1217 os seres humanos experimentam a si mesmos de novas maneiras como criaturas biológicas como si mesmos biológicos sua existência vital tornase foco de governo alvo de novas formas de autoridade e de expertise Tal expertise pode se dar por exemplo no controle das variáveis envolvidas nesta capacidade autônoma de modificação do envelope corporal15 caso mais específico dos bodybuilding coaches ou bodybuilding gurus O nível de controle e expertise sobre si mesmo se torna uma marca bioidentitária e consequentemente formadora de biossociabilidades Esta identidade somática baseada em preceitos corporais denominada como bioidentidade por Ortega1617 e biossociabilidade por Rabinow18 leva em consideração o ser humano como dotado de um corpo genético morfológico e social Entretanto a teorização de Rabinow18 versa principalmente acerca da biossociabilidade em um nível genético alélico e cromossômico Apesar de Rabinow12 ter acertado em sua previsão as formulações posteriores que dialogam com as teses deste autor principalmente as de Ortega1617 identificaram elementos biossociabilizantes sob diversas formas grupos de apoio redes temáticas na web e diversos outros esforços de socialização que tem nas variáveis biológicas um ponto de confluência Anabolizantes na graduação em Educação Física J Phys Educ v 31 e3166 2020 Página 3 de 11 De um modo geral praticantes de fisiculturismo especialmente os que buscam se tornar experts na administração em si de hormônios exógenos precisam lidar com os efeitos do dilema éticosanitário no processo de construção desta marca bioidentitária bem específica Tal dilema está associado à noção de risco em saúde1319 cuja principal premissa é a de que o sujeito uma vez bem informado é responsável pelas suas próprias decisões mas em contrapartida deve arcar com os custos de uma escolha catalogada cientificamente como equivocada978 Moraes Castiel e Ribeiro11 trataram de mapear os riscos relacionados ao manejo de esteroides anabolizantes em artigo de revisão Para os autores11 duas são as tendências preponderantes na literatura médica anabólica uma relativamente permissiva pois considera legítimo o uso de anabolizantes em certos casos como homens idosos em tratamento contra os efeitos da andropausa outra acentuadamente proibicionista já que considera o uso nãoterapêutico danoso ao organismo em qualquer hipótese inclusive com reflexos negativos no comportamento social Iriart e Andrade20 apontam que o fato de os fisiculturistas terem consciência dos riscos da utilização de anabolizantes não resulta diretamente em redução desse uso Entre os membros desse grupo a retórica da estética muscular quimicamente hipertrofiada se sobrepõe à crônica do risco à saúde Os autores afirmam que muitos acabam se aventurando neste universo com a ilusão de que com alguma prevenção nunca terão problema No caso específico de praticantes de fisiculturismo que ingressam em um curso superior de Educação Física esse dilema éticosanitário é exponencialmente mais complexo pois já não são apenas praticantes e sim futuros profissionais da área da sáude É justamente na formação inicial que eles aprendem os fundamentos para o desenvolvimento da musculação e também os princípios éticos que pautam a conduta profissional nessa área relativa a procedimentos nãoterapêuticos É nesta fronteira entre expertise e éticasanitária que sofisticadas estratégias de aprendizagem são construídas por estudantesfisiculturistas de um curso de Educação Física Decisões Metodológicas Para contemplar o objetivo proposto realizamos entrevistas episódicas com seis estudantes vinculados a cursos de graduação em Educação Física durante um ano O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul sob o número 943912 A pesquisa foi realizada entre os anos de 2013 e 2015 A coleta do material empírico entrevistas ocorreu entre o final de 2014 e o início de 2015 na cidade de Porto Alegre Rio Grande do Sul As entrevistas episódicas consistem no convite ao entrevistado à narração de episódios de sua vida que propiciem narrativas afetivamente implicadas para os sujeitos recrutados21 O roteiro básico para as entrevistas21 continha perguntas que levavam os estudantes a narrarem experiências pontuais sobre o aprendizado do uso de anabolizantes ocorridas durante o curso de graduação As questões versavam sobre o processo de reconhecimento do fisiculturista pelos seus pares os significados dos anabolizantes para aquele grupo as estratégias de aprendizagem sobre a uso de anabolizantes dentro e fora da universidade o controle dos riscos na utilização de tais medicamentos o dilema éticosanitário de um estudante fisiculturista futuro profissional do campo da saúde O critério de inclusão dos entrevistados levou em consideração não apenas o fato de serem estudantes de Educação Física e terem experiência com a prática da musculação mas também terem um corpo nitidamente potencializado pela prática da musculação Machado e Fraga J Phys Educ v 31 e3166 2020 Página 4 de 11 Este último item tem uma carga subjetiva elevada pois não é nada fácil demarcar a fronteira entre um corpo potencializado pela prática da musculação e outros corpos que se submetem a programas de exercícios físicos Contudo como um dos pesquisadores é um fisiculturista portanto alguém com domínio dos códigos corporais dos adeptos de tal prática não foi difícil para ele distinguirabordar os portadores de tais atributos físicos no local onde o estudo foi realizado Cabe destacar que por experiência é possível perceber as diferenças entre um mero praticante de musculação e um fisiculturista o primeiro frequenta a academia motivado geralmente pelos benefícios à saúde e questões pontuais de ordem estética o segundo é adepto do esporte fisiculturismo submetendose dioturnamente a uma rotina rígida que envolve alimentação regrada longas sessões de treinamento e muitas vezes utilização de recursos ergogênicos como esteroides anabolizantes Para quem se envolve com a prática do fisiculturismo portanto não é tão complicado identificar esse grupo nos corredores e salas de um curso de Educação Física pois como diz Sabino22 todos aqueles que buscam um corpo hipermusculoso tomam a exposição muscular como uma regra que transcende o espaço da academia ou nas palavras de JeanJacques Courtine2382 o bodybuilder não anda ele conduz seu corpo exibindoo como um objeto imponente Os nomes dos participantes adotados neste artigo são fictícios e foram escolhidos por eles mesmos instantes antes da entrevista À época todos já haviam obtido mais de 50 por cento dos créditos necessários para a conclusão do curso de graduação em Educação Física ou seja já haviam passado por disciplinas como Fisiologia Humana e Fisiologia do Exercício aquelas que em tese tratam dos conhecimentos básicos sobre os efeitos da manipulação corporal no organismo A primeira entrevista foi realizada com Rogério fisiculturista amador A entrevista durou cerca de 35 minutos e ocorreu em uma sala de aula durante o intervalo das atividades acadêmicas O segundo entrevistado foi Acetrem o mais jovem do grupo que se autointitulou um aprendiz na utilização de anabolizantes e recém havia iniciando a preparação para sua primeira competição de fisiculturismo A entrevista durou cerca de 40 minutos e também ocorreu em uma sala de aula A terceira entrevista foi com JKiss competidora de fisiculturismo feminino amador de nível estadual Após diversos agendamentos a entrevista ocorreu em uma sala de aula e durou 55 minutos A entrevistada falou na maior parte do tempo sobre os sacrifícios corporais e as rotinas de dietas précompetição A quarta entrevista foi com João Cezar competidor de fisiculturismo profissional de nível nacional Após diversos agendamentos a entrevista ocorreu em uma academia de musculação na qual o participante ocupa a função de coach A entrevista durou 32 minutos pois o ambiente escolhido por ele não era dos mais propícios à entrevista Este entrevistado trouxe um tópico muito interessante para a pesquisa a diferença entre marombeiro e fisiculturista No momento em que estávamos prestes a realizar a quinta entrevista deparamonos com um ponto fora da curva que julgamos importante aproveitar um árbitro de fisiculturismo com registro junto à federação Esse quinto entrevistado que escolheu o pseudômino Johnhy não era uma pessoa vistosamente musculosa mas foi incluído por ter um domínio dos códigos da competição e pela perspectiva diferenciada sobre a utilização de anabolizantes A sexta entrevista foi realizada com Big Randy competidor de fisiculturismo amador de nível estadual O entrevistado se mostrou um grande expert sobre a utilização de hormônios em um ambiente bastante propício para a entrevista laboratório onde o entrevistado atuava como pesquisador iniciante Nas falas deste entrevistado percebemos que as respostas começaram a se repetir por isso decidimos encerrar as entrevistas A apresentação de experiências vividas pelos participantes é característica fundamental das entrevistas episódicas possibilitou ao entrevistador também praticante de Anabolizantes na graduação em Educação Física J Phys Educ v 31 e3166 2020 Página 5 de 11 fisiculturismo colocarse ao lado do entrevistado e verse em cada um deles fato que deixava o participante mais confortável algo que se coaduna com a proposta de Flick21 para este tipo de entrevista realizar convites implícitos à narração de episódios ou situações as quais o participante gostaria de compartilhar21117 O conjunto de achados da pesquisa orginal foi classificado em duas grandes categorias a primeira abarca as estratégias de aprendizado sobre o uso de anabolizantes desenvolvidas pelos alunos dentro do curso de graduação em Educação Física e a segunda se refere ao aprendizado desenvolvido fora do curso Nesta configuração dois perfis de estudantes se destacaram um composto pelos que ingressaram no curso com o objetivo de aprender sobre a utilização de anabolizantes e outro pelos que só buscavam uma certificação profissional pois já sabiam como utilizar Estudantes fisiculturistas e o aprendizado sobre os anabolizantes na graduação em Educação Física Acetrem estudante que à época da realização da entrevista estava no quinto semestre da graduação deixou claro que o tema dos anabolizantes não havia sido tratado nas disciplinas biodinâmicas do curso de Educação Física afirmando que não foi ensinado ainda em alguma cadeira específica sobre o uso e os efeitos fisiológicos e sociais dos anabolizantes Acrescentou inclusive que suspeitava que provavelmente não seria abordado mais adiante não porque os docentes não dominassem o tema mas pelo receio de serem mal interpretados ou por preconceito com o estilo de vida bombado Para ele se vier a ser abordado o tema dos anabolizantes com certeza não vai ser tão a fundo como seria lá fora Big Randy que se autodenominava fisiculturista amador assim como Acetrem deu um depoimento sobre os seus primeiros passos no aprendizado sobre a utilização dos anabolizantes queria entender melhor as drogas tinha bastante literatura depois de ter essa parte mais aprofundada eu queria saber sobre doses e aí que entra o problema na literatura científica tu não tem estudo com doseefeito então fica bem difícil eu acho que mesmo que tu saiba buscar uma ferramenta científica na hora da dose tu vai perder tu não vai ter um referencial teórico adequado daí tu pensa que que o pessoal toma quanto se toma e aí que entram os problemas na minha opinião Big Randy Nesta fala é possível perceber o quão sofisticado é o processo de aprendizagem sobre a administração exógena de hormônios anabolizantes com fins de aprimoramento corporal Para um aprendiz transitar dos níveis mais básicos aos mais avançados de expertise há necessidade de estar conectado direta ou indiretamente ao universo acadêmicocientífico Contudo as pesquisas que utilizam os anabolizantes com fins de aprimoramento corporal não são desenvolvidas devido sobretudo ao caráter ilícito do uso destes medicamentos para fins nãoterapêuticos Dada a relevância dos conhecimentos científicos e o fato de a universidade ser o lugar por excelência da produção e circulação de pesquisas muitos dos entrevistados afirmaram que a expectativa era encontrar na graduação em Educação Física um ambiente propício para a aquisição de saberes desta natureza Mas se levarmos em consideração que não há pesquisas sobre a administração exógena de hormônios anabolizantes para fins não terapêuticos por questões de ordem ética já era de se supor que dificilmente haveria uma disciplina para tratar deste tema no curso Machado e Fraga J Phys Educ v 31 e3166 2020 Página 6 de 11 Ao ser questionado sobre os motivos pelos quais a potencialização corporal via anabolizantes não é abordada de modo mais direto na graduação Acetrem respondeu o seguinte Porque é proibido Eu fui na palestra do Fernando Sardinha Ele é educador físico e ele não pode falar muito sobre isso Ele não pode dar um protocolo de utilização Então se vir a ser ensinado aqui vai ser ensinado o geralzão Eles não vão ensinar tu a tomar eles vão ensinar o que o hormônio faz no corpo Acetrem Neste relato Acetrem demonstra plena consciência do quão difícil é tratar deste tema em disciplinas da graduação em Educação Física especialmente no que se refere à dosagem e administração Johnhy participante que é árbitro de competições de fisiculturismo segue a mesma linha de raciocínio a gente vê muito pouco inclusive na faculdade sobre isso Parece que é um tabu um dilema falar sobre esteroides Às vezes quando o tema é abordado em aula a professora já tenta cortar Já diz que é ruim e pronto Não quer entrar em mais detalhes Eu acho que seria muito interessante a gente começar a debater isso mais a fundo na faculdade Johnhy Johnhy consegue verbalizar de forma bastante direta o que os demais entrevistados apenas sugeriram o tema dos anabolizantes é um conteúdo tabu para os docentes sobre o qual paira uma aura de proibição e clandestinidade que interdita até mesmo o debate em aula Pelo que se pode depreender das falas dos entrevistados parece que a abordagem formal sobre os anabolizantes na faculdade é evitada a fim de não ser vista como incitação ao consumo de uma substância ilícita um delito cometido por associação indevida com aquilo que foi ensinado em aula Entretanto um dos assuntos correlatos ao tema dos anabolizantes considerados mais palatáveis é o efeito dos hormônios no corpo humano Na ótica dos participantes tais temas chegam a ser abordados em disciplinas da graduação vinculadas à perspectiva biodinâmica mas de forma reservada Big Randy relata o seguinte em seu depoimento eu lembro de ser citado em duas ocasiões o uso de esteroides anabolizantes na disciplina de fisiologia do exercício rapidamente numa aula de endocrinologia se falou sobre isso o uso de testosterona sintética e os efeitos colaterais em homem e mulher Só Big Randy O funcionamento da regulação hormonal no corpo humano por ser um conteúdo mais palatável acaba sendo tratado em algumas das disciplinas da graduação em Educação Física Mas quando há qualquer relação com a temática da utilização de medicamentos anabolizantes para fins não terapêuticos logo a interdição é novamente levantada tal como relata João Cezar na seguinte passagem em nenhum momento nós tivemos cadeiras específicas ou mais dirigidas esclarecendo mas nós tivemos muitas algumas cadeiras como fisiologia e esporte de rendimento falando contra mas isso não é uma maneira legal de apresentar a questão né iniciando com o preconceito a primeira maneira é informar como funciona como não funciona se é bom se é ruim e não já diretamente chegar com preconceito né João Cezar Anabolizantes na graduação em Educação Física J Phys Educ v 31 e3166 2020 Página 7 de 11 Nesta fala é possível perceber que há docentes que procuram se distanciar ao máximo de qualquer conotação de incentivo ao uso às vezes até mesmo exacerbando de forma extrema os perigos advindos do uso destes medicamentos tão presentes no cotidiano da musculação e dos esportes de alto rendimento De certo modo esta pedagogia do terror567 anabólico empregada em algumas disciplinas com viés biodinâmico se ancora no fato de que a Educação Física é um curso vinculado à área da saúde Vejamos então como este dilema éticosanitário é narrado pelos entrevistados fazer musculação todos sabem que faz bem melhora qualidade de vida faz bem para as articulações não o anabolizante o anabolizante não é para ser tomado por todo o mundo que pratica musculação Johnhy Ao afirmar que o anabolizante não é para ser tomado por todo o mundo que pratica musculação Johnhy abre uma brecha para pensar que pode haver concessões e ele especifica quais na seguinte passagem todo o atleta ele faz o uso de algum ergogênico de algum esteroide anabolizante Todos os atletas principalmente no fisiculturismo Alguns mais outros menos agora o que eu acho disso Eu é que quando se fala em atleta se fala em alto rendimento e aí tu não vê o lado da saúde se tu for olhar o alto rendimento a saúde fica de lado e ele faz de tudo para alcançar aquele objetivo dele Johnhy Neste caso o anabolizante como ferramenta de potencialização do próprio corpo pode vir a ser tolerado nos casos de aprimoramento biológico12 para fins competitivos Potencialização que resulta naquele milésimo mais rápido quando se cruza a linha de chegada naquele chute mais potente naquela rebatida mais distante e inclusive naquele corpo que se recupera mais rápido das disputas e das lesões Essa proposição de Johnhy por mais absurda que possa parecer não é uma novidade O entrevistado João Cezar relatou que é frequentemente convidado a palestrar em aulas de cursos de graduação em Nutrição e Educação Física locais onde a temática sobre o uso de anabolizantes com fins nãoterapêuticos é tacitamente proibida Quando questionado acerca destes convites e levando em consideração que o fisiculturismo é um esporte que sofre preconceito pela utilização de anabolizantes João Cezar justificou da seguinte forma o motivo que o levava a aceitar tais convites acredito que por ser um atleta responsável Por estar tanto tempo nesse meio isso já é um fator determinante para mostrar que o alto rendimento também pode ser saúde e por esse motivo por ter uma aparência saudável e responsável as pessoas me convidam muito para palestras workshops então esse é um fator que eu sempre digo é a longevidade O atleta não é aquela pessoa que compete uma vez só mas sim a vida inteira João Cezar Ao compararmos o modo como Johnhy e João Cezar falam sobre o tema identificamos uma importante divergência enquanto o primeiro indica que não é possível associar saúde com esportes de alto rendimento o segundo afirma que agindo de modo responsável é possível sim estabelecer tal associação Ou seja quando convém possivelmente com vistas a ganhar espaço e reconhecimento dentro do campo acadêmico podemos associar o esporte de alto rendimento à saúde no caso mais específico à Machado e Fraga J Phys Educ v 31 e3166 2020 Página 8 de 11 longevidade mas de um modo geral as rotinas as quais os atletas se submetem reafirmam a lógica do esporte como uma profissão insalubre Além disso outro elemento ainda mais polêmico que está implícito na fala de João Cezar é que dependendo do modo de usar os anabolizantes com fins não terapêuticos pode não trazer riscos à saúde Evidentemente não há garantias de que a utilização segura de anabolizantes no esporte faz de alguém um atleta responsável ou que não haja risco assim como a presença de um fisiculturista profissional como palestrante convidado em uma disciplina de um curso de graduação da área da saúde também não garante que a temática dos anabolizantes será tratada de forma aberta por aquela comunidade acadêmica O participante Big Randy narrou uma situação em que assistiu à palestra de um fisiculturista na graduação em Educação Física e destacou o seguinte e uma ocasião na disciplina de Musculação o professor levou um fisiculturista profissional que não falou NADA sobre a utilização de esteroides e alguém perguntou pra ele e ele se recusou a responder infelizmente isso leva a pessoa a buscar informações hoje principalmente pela internet ou com outros usuários Esta fala do Big Randy remete para uma dimensão do aprendizado sobre o anabolizante que coincide com uma fala do Acetrem é lá fora da graduação em Educação Física que se adquire o conhecimento mais avançado sobre o tema É possível perceber no relato dos diferentes participantes que dentro das disciplinas da graduação em Educação Física os anabolizantes são tratados como saberes clandestinos Quando o assunto surge só o lado ruim é apresentado fazendo com que a discussão acerca do potencial de aprimoramento do próprio corpo por meio dos medicamentos anabolizantes seja negligenciada abrindo espaço para a busca de conhecimentos em ambientes não tão controlados como as redes sociais na internet É interessante analisar que conforme Moraes Castiel e Ribeiro11 há um discurso médico contraditório sobre a utilização de anabolizantes em pesquisas cuja a finalidade é a produção de evidências clínicas De acordo com estes autores11 a busca por uma equação científica que pondere os riscos e os benefícios da utilização destes recursos androgênicos é uma forma de definir as fronteiras entre as condutas clinicamente justificáveis daquelas moralmente condenáveis E na medida em que há muitas zonas de sombra sobre esta fronteira o tema passa a ser encarado como nebuloso deixando de ser tratado como conteúdo nos cursos de formação inicial A partir da fala dos participantes e também levando em consideração o teor de clandestinidade que paira sobre o tema foi possível identificar duas categorias de estudantes que têm em comum o interesse sobre a discussão relacionada aos medicamentos anabolizantes A primeira categoria é composta por aqueles que ingressaram na graduação em Educação Física pensando que este seria o lugar propício para aprender a tomar bomba Este perfil de ingressante com o passar do tempo dentro do curso acaba se decepcionado com o que aprende ou com o que não aprende sobre um tema que o motivou a escolher a graduação em Educação Física Tal decepção pôde ser percebida nas falas de Acetrem Big Randy e Rogério que tiveram que buscar fora da graduação o aprendizado que inicialmente achavam que seria obtido no curso de Educação Física Isso ocorre porque a temática não é debatida abertamente há uma espécie de estranhamento docente mesmo quando alguma questão sobre a utilização de medicamentos anabolizantes como ferramentas de aprimoramento corporal é posta em pauta Anabolizantes na graduação em Educação Física J Phys Educ v 31 e3166 2020 Página 9 de 11 A segunda categoria é composta pelos sujeitos que aprenderam a utilizar o anabolizante lá fora mas vem para dentro da Educação Física a fim de buscar uma legitimidade de atuação um salvo conduto ante os órgãos fiscalizadores como por exemplo o CREFRS Um exemplo disso é o entrevistado João Cezar que antes de ingressar na Educação Física já era fisiculturista profissional bem como a entrevistada J Kiss que optou em primeiramente se formar em Licenciatura em Educação Física para depois ingressar no Bacharelado a fim de ter sua atuação nas academias de musculação autorizada pelo CREFRS Para os alunos que entram na graduação em Educação Física pensando em aprender a tomar bomba um sentimento de decepção toma conta quando percebem que os anabolizantes são um conteúdo praticamente clandestino Tal decepção pode ser percebida nas falas de Acetrem Big Randy e Rogério que tiveram que buscar fora da graduação o aprendizado que inicialmente achavam que obteriam nas disciplinas do curso Já para aqueles que ingressaram no curso sabendo como usar e que tinham por objetivo ter o canudo como uma espécie de salvo conduto ante os órgãos fiscalizadores tinham consciência de que era preciso pagar um pedágio Um exemplo disso é o entrevistado João Cezar e a entrevistada J Kiss que antes de ingressarem na Educação Física já eram fisiculturistas profissionais Ambos informaram ter buscado a formação em Educação Física principalmente o bacharelado para evitar problemas que já haviam enfrentado com o CREFRS em relação à atuação nas academias de musculação Se a utilização não terapêutica dos anabolizantes mesmo sendo fato que se consuma diariamente nas academias de musculação e também exposto na Internet2324 e em outros meios de comunicação não é abordada na graduação em Educação Física em suas diferentes dimensões passa a existir uma lacuna no processo de aprendizagem sobre tal temática Talvez por este motivo que este espaço é cada vez mais ocupado por conselheiros contemporâneos12 Considerações Finais O aprendizado sobre os anabolizantes ainda é um tabu nas disciplinas da graduação em Educação Física Há farta evidência na literatura sobre os danos à saúde provenientes do uso não terapêutico de hormônios anabolizantes mas quase nada sobre a magnitude desse uso Muita informação balizada sobre os riscos à saúde e ao bemviver coletivo mas poucas sobre os efeitos positivosnegativos no processo de modelagem corporal11 Para estudantesfisiculturistas tanto os que ingressaram para aprender sobre anabolizantes quanto os que apenas queriam um diploma este cenário é ainda mais complexo pois eles precisam lidar com demandas aparentemente irreconciliáveis não ser conivente com qualquer tipo de risco à saúde inerente a todo o profissional deste campo e ao mesmo tempo lidar com a demanda por administração não terapêutica de recursos de potencialização muscular É nesta fronteira entre o aprender a tomar bomba e o agir éticosanitário que um dilema se constitui é de onde emergem estratégias de aprendizagem posicionadas à margem da literatura científica e algumas vezes fora do ordenamento legal Na medida em que a formação inicial em Educação Física não trata dos prós e contras acerca do uso de anabolizantes para fins de aprimoramento corporal os estudantes fisiculturistas não encontram no currículo respaldo teóricoprático para se tornarem experts no processo de hipertrofia muscular pela via medicamentosa Esse rechaço ao tema leva alguns alunos a buscarem informações no lado de fora da graduação em lugares onde a experiência científica não é tão controlada Em algumas situações o estudantefisiculturista toma seu Machado e Fraga J Phys Educ v 31 e3166 2020 Página 10 de 11 próprio corpo como material empírico e gabarito final de experimentos aos quais se submete voluntariamente em busca de mais saber Apesar de o número de participantes que originou o artigo ser reduzido o que reconhecemos como um limite da pesquisa é possível afirmar que o silêncio curricular sobre o uso de anabolizantes para fins de aprimoramento corporal não gera maior conscientização sobre o tampouco a diminuição do uso destas substâncias entre estudantes fisiculturistas Esse silêncio dentro dos cursos associado à atmosfera de clandestinidade pode favorecer a circulação de mais desinformação e ainda mais riscos Explicitar o dilema éticosanitário enfrentado pelos estudantesfisiculturistas de um curso de Educação Física de uma universidade no Brasil é uma forma de trazer à tona no âmbito acadêmico uma faceta do fenômeno da utilização nãoterapêutica de substâncias para potencialização muscular uma temática que julgamos importante de ser tratada com os devidos cuidados no processo de formação profissional dos cursos do campo da saúde Referências 1 Ministério da Casa Civil da República Federativa do Brasil Internet Lei nº 11343 de 23 de Agosto de 2006 Lei das Drogas Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas Sobre Drogas acesso em 20 mar 2018 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato200420062006leil11343htm 2 Ministério da Casa Civil da República Federativa do Brasil Internet Lei no 6437 de 20 de Agosto de 1977 Configura infrações à legislação sanitária federal estabelece as sanções respectivas e dá outras providências acesso em 20 mar 2018 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03LEISL6437htm 3 Ministério da Casa Civil da República Federativa do Brasil Internet Lei nº 9965 de 27 de abril de 2000 Restringe a venda de Esteroides Anabolizantes e da outras providências acesso em 22 mar 2018 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03leisl9965htmtextLEI20No2099652C20DEArt 4 Conselho Regional de Educação Física do Estado do Rio Grande do Sul Lei nº12542 de 29 de Junho de 2006 Dispõe sobre a obrigatoriedade de academias de ginástica clubes desportivos e estabelecimentos similares exibirem placa advertindo sobre as consequências do uso de anabolizantes acesso em 22 de mar de 2018 Disponível em httpscrefrsorgbrlegislacaopdflei12542pdf 5 Bucher R A ética da prevenção Psic Teor e Pesq 200723117123 Doi 101590S0102 37722007000500021 6 CarliniCotrim B Rosemberg F Drogas Prevenção no cotidiano escolar Cad Pesq 1990744046 7 Büchele F Coelho EB Lindner SR A promoção da saúde enquanto estratégia de prevenção ao uso das drogas Cien Saude Colet 2009141267273 Doi 101590s141381232009000100033 8 Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas Internet I levantamento nacional sobre o uso de álcool tabaco e outras drogas entre universitários das 27 capitais brasileiras acesso em 20 mar 2018 Disponível em httpscetadobservaufbabrespublicacoesilevantamentonacionalsobreusodealcool tabacoeoutrasdrogasentreuniversitarios 9 Fraga AB Exercício da informação Governo dos corpos no mercado da vida ativa Campinas Autores Associados 2006 10 Iriart JAB Chaves JC Orleans RG Culto ao corpo e uso de anabolizantes entre praticantes de musculação Cad Saúde Pública 200925773782 11 Moraes DR Castiel LD Ribeiro APPGA Não para jovens bombados sim para velhos empinados o discurso sobre anabolizantes e saúde em artigos da área biomédica Cad Saúde Pública 20153161131 1140 12 Rose N A Política da Própria Vida biomedicina poder e subjetividade no século XXI São Paulo Paulus 2013 13 Lupton D Risk London Routledge 1999 14 Handelsman DJ Testosterone Use misuse and abuse Med J Aust 2006185436439 15 Villaça N Góes F Em nome do corpo Rio de Janeiro Rocco 1998 16 Ortega FJG Práticas de ascese corporal e constituição de bioidentidades Cad Saúde Colet 200311159 77 17 Ortega FJG Da ascese à bioascese Ou do corpo submetido à submissão ao Corpo In Rago M Orlandi LBL VeigaNeto A editores Imagens de Foucault e Deleuze Ressonâncias nietzchianas 2 ed Rio de Janeiro Dpa 2005 Anabolizantes na graduação em Educação Física J Phys Educ v 31 e3166 2020 Página 11 de 11 18 Rabinow P Artificialidade e iluminismo Da sociobiologia a biossociabilidade In Biehl JG editor Antropologia da razão Ensaios de Paul Rabinow Rio de Janeiro Relume Dumara 1999 p 135157 19 Castiel LD A medida do possível Saúde risco e tecnobiociências Rio de Janeiro Fiocruz 1999 20 Iriart JAB Andrade TM Musculação uso de esteróides anabolizantes e percepção de risco entre jovens fisiculturistas de um bairro popular de Salvador Bahia Brasil Cad Saúde Pública 200218513791387 21 Flick U Entrevista Episódica In Bauer MW Gaskell G editores Pesquisa qualitativa com texto imagem e som Um manual prático 11 ed Petrópolis Vozes 2013 p 114136 22 Sabino C Anabolizantes drogas de Apolo In Goldenberg M editora Nu e vestido Dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca 2 ed Rio de Janeiro Record 2007 p 139188 23 Courtine JJ Os stakhanovistas do narcisismo Bodybuilding e puritanismo ostentatório na cultura americana do corpo In SantAnna DB editora Políticas do Corpo São Paulo Estação Liberdade 1995 p81114 24 Trabal P E se os esportistas que se dopam quisessem fazer direito Movimento 20131941143 Doi 10224561982891841901 ORCID dos autores Eduardo Pinto Machado httpsorcidorg0000000211378442 Alex Branco Fraga httpsorcidorg0000000268811446 Recebido em 260319 Revisado em 240220 Aceito em 200320 Endereço para correspondência Eduardo Pinto Machado Rua Felizardo 750 Bairro Jardim Botânico Porto Alegre Rio Grande do Sul CEP 90690200 Email eduardomachadoufrgsbr
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DOI 104025jphyseducv31i13166 J Phys Educ v 31 e3166 2020 Artigo Original ANABOLIZANTES NA GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO FÍSICA UM DILEMA ÉTICOSANITÁRIO ENTRE ESTUDANTES QUE PRATICAM FISICULTURISMO ANABOLICS STEROIDS IN A PHYSICAL EDUCATION UNDERGRADUATE PROGRAM AN ETHICALSANITARY DILEMMA AMONG BODYBUILDER STUDENTS Eduardo Pinto Machado1 e Alex Branco Fraga1 1Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto AlegreRS Brasil RESUMO Este artigo trata do dilema enfrentado por estudantesfisiculturistas de Educação Física que se dedicam a aprender por conta própria sobre o uso de anabolizantes para fins não terapêuticos em um curso de graduação vinculado à área da saúde A noção de dilema éticosanitário é desenvolvida a partir da articulação entre os conceitos de expertise de Nikolas Rose e o de risco em saúde de Deborah Lupton Entrevistas episódicas com seis alunos da graduação dos cursos de licenciatura e bacharelado em Educação Física de uma universidade brasileira foi a opção metodológica adotada Como resultado identificamos dois perfis de estudantes praticantes de fisiculturismo um composto pelos que ingressaram no curso com o objetivo de aprender a usar anabolizantes e outro que julgava já saber sobre e tinha por objetivo buscar uma certificação profissional universitária Concluímos que o dilema éticosanitário observado em ambos os perfis deveria ser tratado em aula nos cursos de graduação em Educação Física pois o silêncio curricular sobre o processo de hipertrofia muscular pela via medicamentosa associado à atmosfera de clandestinidade pode favorecer a circulação de mais desinformação e ainda mais riscos ao público alvo deste estudo Palavras chave Anabolizantes Expertise Educação Física Fisiculturismo ABSTRACT This article deals with the dilemma faced by physical education studentbodybuilders who are dedicated to learning on their own about the uses of anabolic steroids for nontherapeutic purposes The concept of the ethicalsanitary dilemma is developed from the articulation between Nikolas Roses concept of expertise and Deborah Luptons concept of risk Episodic interviews with six undergraduate students of Physical Education from a Brazilian university were applied in this study as the principal method As a result we identified two profiles of studentbodybuilders one composed of those who joined the program in order to learn how to use anabolic steroids and another one composed of those who presumed to know about the uses and whose purpose was to earn an undergraduate diploma We conclude that the ethicalsanitary dilemma observed in both profiles should be addressed in the Physical Education undergraduate courses since the curricular silence on the process of muscular hypertrophy via steroid anabolics associated with the clandestine atmosphere may add more misinformation and even more risks to the target audience of this study Keywords Anabolic steroids Expertise Physical Education Bodybuilding Introdução A utilização não terapêutica de drogas anabolizantes está documentada na literatura médica como prejudicial à saúde e como infração penal ante a Lei das Drogas1 Na mídia circulam reportagens sobre prisões de agenciadores de anabolizantes sob acusação de tráfico de drogas23 assim como notícias que implicitamente associam a morte de fisiculturistas ao uso de tais substâncias Nessa linha o Conselho Regional de Educação Física do Estado do Rio Grande do Sul CREFRS motivado pela promulgação da Lei nº 125422006 do mesmo Estado que obriga estabeleceimentos físicodesportivos a exibirem placa advertindo sobre as consequências do uso de anabolizantes4 lançou campanha impactante contra tal uso Em um dos cartazes promocionais uma seringa se confunde com um cano de revólver associando posse ilegal com risco de morte dentro de uma lógica calcada na pedagogia do terror57 Apesar de os alertas aparecerem em diferentes recantos cresce o uso destes medicamentos em meio à população brasileira inclusive entre os que têm grau de instrução Machado e Fraga J Phys Educ v 31 e3166 2020 Página 2 de 11 mais elevado89 A maioria são jovens praticantes de musculação muitos deles não apenas usam tais drogas com o propósito de obter ganho muscular mas também desenvolvem conhecimentos cada vez mais sofisticados e de várias ordens sobre os diferentes efeitos dos anabolizantes no corpo humano visando o melhor uso desses recursos81011 Diante deste cenário e dada a relação direta com o campo de atuação do profissional de Educação Física consideramos ser importante investigar o nível de conhecimento dos estudantes de graduação desta área sobre um assunto tão controverso De modo mais específico buscamos compreender as estratégias de aprendizagem sobre anabolizantes para fins de aprimoramento corporal implementadas por estudantesfisiculturistas durante o curso de Educação Física em uma universidade brasileira Como conceitos mobilizadores utilizamos as teorizações de Nikolas Rose denominadas políticas da própria vida12 em especial a noção de expertise pois o manejo destes medicamentos requer um conjunto sofisticado de conhecimentos Também nos baseamos no conceito de risco em saúde913 mais especificamente na correlação com o uso de anabolizantes para desenvolver de forma articulada a noção de dilema étnicosanitário já que a utilização destas substâncias com fins nãomédicos é vista muitas vezes como um atentado à saúde pública14 Expertise e dilema éticosanitário na busca de aprimoramento do próprio corpo Rose12 usa o termo políticas da própria vida para agrupar as formulações que tomam a dimensão somática como o centro das ações biopolíticas contemporâneas elemento que diferencia esta abordagem da clássica biopolítica foucaultiana O autor12 desenvolve cinco temas que dimensionam esta repaginação do conceito de biopolítica molecularização enhancement subjetificação expertise e bioeconomia Um traço constitutivo desta biopolítica contemporânea que atravessa estes cinco temas seria a administração da própria saúde e do próprio corpo para a automodelação1265 Diante da biologia contemporânea o corpo é considerado um circuito aberto sobre o qual podem ser aplicadas tecnologias de otimização e aprimoramento O processo de aprimoramento corporal consiste na utilização de tecnologias que objetivam a melhora do desempenho do corpo12 Àqueles que detêm um conhecimento mais sofisticado sobre as variáveis envolvidas no processo de enhancement corporal Nikolas Rose denomina experts peritos da vida em si mesma Para Rose1217 os seres humanos experimentam a si mesmos de novas maneiras como criaturas biológicas como si mesmos biológicos sua existência vital tornase foco de governo alvo de novas formas de autoridade e de expertise Tal expertise pode se dar por exemplo no controle das variáveis envolvidas nesta capacidade autônoma de modificação do envelope corporal15 caso mais específico dos bodybuilding coaches ou bodybuilding gurus O nível de controle e expertise sobre si mesmo se torna uma marca bioidentitária e consequentemente formadora de biossociabilidades Esta identidade somática baseada em preceitos corporais denominada como bioidentidade por Ortega1617 e biossociabilidade por Rabinow18 leva em consideração o ser humano como dotado de um corpo genético morfológico e social Entretanto a teorização de Rabinow18 versa principalmente acerca da biossociabilidade em um nível genético alélico e cromossômico Apesar de Rabinow12 ter acertado em sua previsão as formulações posteriores que dialogam com as teses deste autor principalmente as de Ortega1617 identificaram elementos biossociabilizantes sob diversas formas grupos de apoio redes temáticas na web e diversos outros esforços de socialização que tem nas variáveis biológicas um ponto de confluência Anabolizantes na graduação em Educação Física J Phys Educ v 31 e3166 2020 Página 3 de 11 De um modo geral praticantes de fisiculturismo especialmente os que buscam se tornar experts na administração em si de hormônios exógenos precisam lidar com os efeitos do dilema éticosanitário no processo de construção desta marca bioidentitária bem específica Tal dilema está associado à noção de risco em saúde1319 cuja principal premissa é a de que o sujeito uma vez bem informado é responsável pelas suas próprias decisões mas em contrapartida deve arcar com os custos de uma escolha catalogada cientificamente como equivocada978 Moraes Castiel e Ribeiro11 trataram de mapear os riscos relacionados ao manejo de esteroides anabolizantes em artigo de revisão Para os autores11 duas são as tendências preponderantes na literatura médica anabólica uma relativamente permissiva pois considera legítimo o uso de anabolizantes em certos casos como homens idosos em tratamento contra os efeitos da andropausa outra acentuadamente proibicionista já que considera o uso nãoterapêutico danoso ao organismo em qualquer hipótese inclusive com reflexos negativos no comportamento social Iriart e Andrade20 apontam que o fato de os fisiculturistas terem consciência dos riscos da utilização de anabolizantes não resulta diretamente em redução desse uso Entre os membros desse grupo a retórica da estética muscular quimicamente hipertrofiada se sobrepõe à crônica do risco à saúde Os autores afirmam que muitos acabam se aventurando neste universo com a ilusão de que com alguma prevenção nunca terão problema No caso específico de praticantes de fisiculturismo que ingressam em um curso superior de Educação Física esse dilema éticosanitário é exponencialmente mais complexo pois já não são apenas praticantes e sim futuros profissionais da área da sáude É justamente na formação inicial que eles aprendem os fundamentos para o desenvolvimento da musculação e também os princípios éticos que pautam a conduta profissional nessa área relativa a procedimentos nãoterapêuticos É nesta fronteira entre expertise e éticasanitária que sofisticadas estratégias de aprendizagem são construídas por estudantesfisiculturistas de um curso de Educação Física Decisões Metodológicas Para contemplar o objetivo proposto realizamos entrevistas episódicas com seis estudantes vinculados a cursos de graduação em Educação Física durante um ano O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul sob o número 943912 A pesquisa foi realizada entre os anos de 2013 e 2015 A coleta do material empírico entrevistas ocorreu entre o final de 2014 e o início de 2015 na cidade de Porto Alegre Rio Grande do Sul As entrevistas episódicas consistem no convite ao entrevistado à narração de episódios de sua vida que propiciem narrativas afetivamente implicadas para os sujeitos recrutados21 O roteiro básico para as entrevistas21 continha perguntas que levavam os estudantes a narrarem experiências pontuais sobre o aprendizado do uso de anabolizantes ocorridas durante o curso de graduação As questões versavam sobre o processo de reconhecimento do fisiculturista pelos seus pares os significados dos anabolizantes para aquele grupo as estratégias de aprendizagem sobre a uso de anabolizantes dentro e fora da universidade o controle dos riscos na utilização de tais medicamentos o dilema éticosanitário de um estudante fisiculturista futuro profissional do campo da saúde O critério de inclusão dos entrevistados levou em consideração não apenas o fato de serem estudantes de Educação Física e terem experiência com a prática da musculação mas também terem um corpo nitidamente potencializado pela prática da musculação Machado e Fraga J Phys Educ v 31 e3166 2020 Página 4 de 11 Este último item tem uma carga subjetiva elevada pois não é nada fácil demarcar a fronteira entre um corpo potencializado pela prática da musculação e outros corpos que se submetem a programas de exercícios físicos Contudo como um dos pesquisadores é um fisiculturista portanto alguém com domínio dos códigos corporais dos adeptos de tal prática não foi difícil para ele distinguirabordar os portadores de tais atributos físicos no local onde o estudo foi realizado Cabe destacar que por experiência é possível perceber as diferenças entre um mero praticante de musculação e um fisiculturista o primeiro frequenta a academia motivado geralmente pelos benefícios à saúde e questões pontuais de ordem estética o segundo é adepto do esporte fisiculturismo submetendose dioturnamente a uma rotina rígida que envolve alimentação regrada longas sessões de treinamento e muitas vezes utilização de recursos ergogênicos como esteroides anabolizantes Para quem se envolve com a prática do fisiculturismo portanto não é tão complicado identificar esse grupo nos corredores e salas de um curso de Educação Física pois como diz Sabino22 todos aqueles que buscam um corpo hipermusculoso tomam a exposição muscular como uma regra que transcende o espaço da academia ou nas palavras de JeanJacques Courtine2382 o bodybuilder não anda ele conduz seu corpo exibindoo como um objeto imponente Os nomes dos participantes adotados neste artigo são fictícios e foram escolhidos por eles mesmos instantes antes da entrevista À época todos já haviam obtido mais de 50 por cento dos créditos necessários para a conclusão do curso de graduação em Educação Física ou seja já haviam passado por disciplinas como Fisiologia Humana e Fisiologia do Exercício aquelas que em tese tratam dos conhecimentos básicos sobre os efeitos da manipulação corporal no organismo A primeira entrevista foi realizada com Rogério fisiculturista amador A entrevista durou cerca de 35 minutos e ocorreu em uma sala de aula durante o intervalo das atividades acadêmicas O segundo entrevistado foi Acetrem o mais jovem do grupo que se autointitulou um aprendiz na utilização de anabolizantes e recém havia iniciando a preparação para sua primeira competição de fisiculturismo A entrevista durou cerca de 40 minutos e também ocorreu em uma sala de aula A terceira entrevista foi com JKiss competidora de fisiculturismo feminino amador de nível estadual Após diversos agendamentos a entrevista ocorreu em uma sala de aula e durou 55 minutos A entrevistada falou na maior parte do tempo sobre os sacrifícios corporais e as rotinas de dietas précompetição A quarta entrevista foi com João Cezar competidor de fisiculturismo profissional de nível nacional Após diversos agendamentos a entrevista ocorreu em uma academia de musculação na qual o participante ocupa a função de coach A entrevista durou 32 minutos pois o ambiente escolhido por ele não era dos mais propícios à entrevista Este entrevistado trouxe um tópico muito interessante para a pesquisa a diferença entre marombeiro e fisiculturista No momento em que estávamos prestes a realizar a quinta entrevista deparamonos com um ponto fora da curva que julgamos importante aproveitar um árbitro de fisiculturismo com registro junto à federação Esse quinto entrevistado que escolheu o pseudômino Johnhy não era uma pessoa vistosamente musculosa mas foi incluído por ter um domínio dos códigos da competição e pela perspectiva diferenciada sobre a utilização de anabolizantes A sexta entrevista foi realizada com Big Randy competidor de fisiculturismo amador de nível estadual O entrevistado se mostrou um grande expert sobre a utilização de hormônios em um ambiente bastante propício para a entrevista laboratório onde o entrevistado atuava como pesquisador iniciante Nas falas deste entrevistado percebemos que as respostas começaram a se repetir por isso decidimos encerrar as entrevistas A apresentação de experiências vividas pelos participantes é característica fundamental das entrevistas episódicas possibilitou ao entrevistador também praticante de Anabolizantes na graduação em Educação Física J Phys Educ v 31 e3166 2020 Página 5 de 11 fisiculturismo colocarse ao lado do entrevistado e verse em cada um deles fato que deixava o participante mais confortável algo que se coaduna com a proposta de Flick21 para este tipo de entrevista realizar convites implícitos à narração de episódios ou situações as quais o participante gostaria de compartilhar21117 O conjunto de achados da pesquisa orginal foi classificado em duas grandes categorias a primeira abarca as estratégias de aprendizado sobre o uso de anabolizantes desenvolvidas pelos alunos dentro do curso de graduação em Educação Física e a segunda se refere ao aprendizado desenvolvido fora do curso Nesta configuração dois perfis de estudantes se destacaram um composto pelos que ingressaram no curso com o objetivo de aprender sobre a utilização de anabolizantes e outro pelos que só buscavam uma certificação profissional pois já sabiam como utilizar Estudantes fisiculturistas e o aprendizado sobre os anabolizantes na graduação em Educação Física Acetrem estudante que à época da realização da entrevista estava no quinto semestre da graduação deixou claro que o tema dos anabolizantes não havia sido tratado nas disciplinas biodinâmicas do curso de Educação Física afirmando que não foi ensinado ainda em alguma cadeira específica sobre o uso e os efeitos fisiológicos e sociais dos anabolizantes Acrescentou inclusive que suspeitava que provavelmente não seria abordado mais adiante não porque os docentes não dominassem o tema mas pelo receio de serem mal interpretados ou por preconceito com o estilo de vida bombado Para ele se vier a ser abordado o tema dos anabolizantes com certeza não vai ser tão a fundo como seria lá fora Big Randy que se autodenominava fisiculturista amador assim como Acetrem deu um depoimento sobre os seus primeiros passos no aprendizado sobre a utilização dos anabolizantes queria entender melhor as drogas tinha bastante literatura depois de ter essa parte mais aprofundada eu queria saber sobre doses e aí que entra o problema na literatura científica tu não tem estudo com doseefeito então fica bem difícil eu acho que mesmo que tu saiba buscar uma ferramenta científica na hora da dose tu vai perder tu não vai ter um referencial teórico adequado daí tu pensa que que o pessoal toma quanto se toma e aí que entram os problemas na minha opinião Big Randy Nesta fala é possível perceber o quão sofisticado é o processo de aprendizagem sobre a administração exógena de hormônios anabolizantes com fins de aprimoramento corporal Para um aprendiz transitar dos níveis mais básicos aos mais avançados de expertise há necessidade de estar conectado direta ou indiretamente ao universo acadêmicocientífico Contudo as pesquisas que utilizam os anabolizantes com fins de aprimoramento corporal não são desenvolvidas devido sobretudo ao caráter ilícito do uso destes medicamentos para fins nãoterapêuticos Dada a relevância dos conhecimentos científicos e o fato de a universidade ser o lugar por excelência da produção e circulação de pesquisas muitos dos entrevistados afirmaram que a expectativa era encontrar na graduação em Educação Física um ambiente propício para a aquisição de saberes desta natureza Mas se levarmos em consideração que não há pesquisas sobre a administração exógena de hormônios anabolizantes para fins não terapêuticos por questões de ordem ética já era de se supor que dificilmente haveria uma disciplina para tratar deste tema no curso Machado e Fraga J Phys Educ v 31 e3166 2020 Página 6 de 11 Ao ser questionado sobre os motivos pelos quais a potencialização corporal via anabolizantes não é abordada de modo mais direto na graduação Acetrem respondeu o seguinte Porque é proibido Eu fui na palestra do Fernando Sardinha Ele é educador físico e ele não pode falar muito sobre isso Ele não pode dar um protocolo de utilização Então se vir a ser ensinado aqui vai ser ensinado o geralzão Eles não vão ensinar tu a tomar eles vão ensinar o que o hormônio faz no corpo Acetrem Neste relato Acetrem demonstra plena consciência do quão difícil é tratar deste tema em disciplinas da graduação em Educação Física especialmente no que se refere à dosagem e administração Johnhy participante que é árbitro de competições de fisiculturismo segue a mesma linha de raciocínio a gente vê muito pouco inclusive na faculdade sobre isso Parece que é um tabu um dilema falar sobre esteroides Às vezes quando o tema é abordado em aula a professora já tenta cortar Já diz que é ruim e pronto Não quer entrar em mais detalhes Eu acho que seria muito interessante a gente começar a debater isso mais a fundo na faculdade Johnhy Johnhy consegue verbalizar de forma bastante direta o que os demais entrevistados apenas sugeriram o tema dos anabolizantes é um conteúdo tabu para os docentes sobre o qual paira uma aura de proibição e clandestinidade que interdita até mesmo o debate em aula Pelo que se pode depreender das falas dos entrevistados parece que a abordagem formal sobre os anabolizantes na faculdade é evitada a fim de não ser vista como incitação ao consumo de uma substância ilícita um delito cometido por associação indevida com aquilo que foi ensinado em aula Entretanto um dos assuntos correlatos ao tema dos anabolizantes considerados mais palatáveis é o efeito dos hormônios no corpo humano Na ótica dos participantes tais temas chegam a ser abordados em disciplinas da graduação vinculadas à perspectiva biodinâmica mas de forma reservada Big Randy relata o seguinte em seu depoimento eu lembro de ser citado em duas ocasiões o uso de esteroides anabolizantes na disciplina de fisiologia do exercício rapidamente numa aula de endocrinologia se falou sobre isso o uso de testosterona sintética e os efeitos colaterais em homem e mulher Só Big Randy O funcionamento da regulação hormonal no corpo humano por ser um conteúdo mais palatável acaba sendo tratado em algumas das disciplinas da graduação em Educação Física Mas quando há qualquer relação com a temática da utilização de medicamentos anabolizantes para fins não terapêuticos logo a interdição é novamente levantada tal como relata João Cezar na seguinte passagem em nenhum momento nós tivemos cadeiras específicas ou mais dirigidas esclarecendo mas nós tivemos muitas algumas cadeiras como fisiologia e esporte de rendimento falando contra mas isso não é uma maneira legal de apresentar a questão né iniciando com o preconceito a primeira maneira é informar como funciona como não funciona se é bom se é ruim e não já diretamente chegar com preconceito né João Cezar Anabolizantes na graduação em Educação Física J Phys Educ v 31 e3166 2020 Página 7 de 11 Nesta fala é possível perceber que há docentes que procuram se distanciar ao máximo de qualquer conotação de incentivo ao uso às vezes até mesmo exacerbando de forma extrema os perigos advindos do uso destes medicamentos tão presentes no cotidiano da musculação e dos esportes de alto rendimento De certo modo esta pedagogia do terror567 anabólico empregada em algumas disciplinas com viés biodinâmico se ancora no fato de que a Educação Física é um curso vinculado à área da saúde Vejamos então como este dilema éticosanitário é narrado pelos entrevistados fazer musculação todos sabem que faz bem melhora qualidade de vida faz bem para as articulações não o anabolizante o anabolizante não é para ser tomado por todo o mundo que pratica musculação Johnhy Ao afirmar que o anabolizante não é para ser tomado por todo o mundo que pratica musculação Johnhy abre uma brecha para pensar que pode haver concessões e ele especifica quais na seguinte passagem todo o atleta ele faz o uso de algum ergogênico de algum esteroide anabolizante Todos os atletas principalmente no fisiculturismo Alguns mais outros menos agora o que eu acho disso Eu é que quando se fala em atleta se fala em alto rendimento e aí tu não vê o lado da saúde se tu for olhar o alto rendimento a saúde fica de lado e ele faz de tudo para alcançar aquele objetivo dele Johnhy Neste caso o anabolizante como ferramenta de potencialização do próprio corpo pode vir a ser tolerado nos casos de aprimoramento biológico12 para fins competitivos Potencialização que resulta naquele milésimo mais rápido quando se cruza a linha de chegada naquele chute mais potente naquela rebatida mais distante e inclusive naquele corpo que se recupera mais rápido das disputas e das lesões Essa proposição de Johnhy por mais absurda que possa parecer não é uma novidade O entrevistado João Cezar relatou que é frequentemente convidado a palestrar em aulas de cursos de graduação em Nutrição e Educação Física locais onde a temática sobre o uso de anabolizantes com fins nãoterapêuticos é tacitamente proibida Quando questionado acerca destes convites e levando em consideração que o fisiculturismo é um esporte que sofre preconceito pela utilização de anabolizantes João Cezar justificou da seguinte forma o motivo que o levava a aceitar tais convites acredito que por ser um atleta responsável Por estar tanto tempo nesse meio isso já é um fator determinante para mostrar que o alto rendimento também pode ser saúde e por esse motivo por ter uma aparência saudável e responsável as pessoas me convidam muito para palestras workshops então esse é um fator que eu sempre digo é a longevidade O atleta não é aquela pessoa que compete uma vez só mas sim a vida inteira João Cezar Ao compararmos o modo como Johnhy e João Cezar falam sobre o tema identificamos uma importante divergência enquanto o primeiro indica que não é possível associar saúde com esportes de alto rendimento o segundo afirma que agindo de modo responsável é possível sim estabelecer tal associação Ou seja quando convém possivelmente com vistas a ganhar espaço e reconhecimento dentro do campo acadêmico podemos associar o esporte de alto rendimento à saúde no caso mais específico à Machado e Fraga J Phys Educ v 31 e3166 2020 Página 8 de 11 longevidade mas de um modo geral as rotinas as quais os atletas se submetem reafirmam a lógica do esporte como uma profissão insalubre Além disso outro elemento ainda mais polêmico que está implícito na fala de João Cezar é que dependendo do modo de usar os anabolizantes com fins não terapêuticos pode não trazer riscos à saúde Evidentemente não há garantias de que a utilização segura de anabolizantes no esporte faz de alguém um atleta responsável ou que não haja risco assim como a presença de um fisiculturista profissional como palestrante convidado em uma disciplina de um curso de graduação da área da saúde também não garante que a temática dos anabolizantes será tratada de forma aberta por aquela comunidade acadêmica O participante Big Randy narrou uma situação em que assistiu à palestra de um fisiculturista na graduação em Educação Física e destacou o seguinte e uma ocasião na disciplina de Musculação o professor levou um fisiculturista profissional que não falou NADA sobre a utilização de esteroides e alguém perguntou pra ele e ele se recusou a responder infelizmente isso leva a pessoa a buscar informações hoje principalmente pela internet ou com outros usuários Esta fala do Big Randy remete para uma dimensão do aprendizado sobre o anabolizante que coincide com uma fala do Acetrem é lá fora da graduação em Educação Física que se adquire o conhecimento mais avançado sobre o tema É possível perceber no relato dos diferentes participantes que dentro das disciplinas da graduação em Educação Física os anabolizantes são tratados como saberes clandestinos Quando o assunto surge só o lado ruim é apresentado fazendo com que a discussão acerca do potencial de aprimoramento do próprio corpo por meio dos medicamentos anabolizantes seja negligenciada abrindo espaço para a busca de conhecimentos em ambientes não tão controlados como as redes sociais na internet É interessante analisar que conforme Moraes Castiel e Ribeiro11 há um discurso médico contraditório sobre a utilização de anabolizantes em pesquisas cuja a finalidade é a produção de evidências clínicas De acordo com estes autores11 a busca por uma equação científica que pondere os riscos e os benefícios da utilização destes recursos androgênicos é uma forma de definir as fronteiras entre as condutas clinicamente justificáveis daquelas moralmente condenáveis E na medida em que há muitas zonas de sombra sobre esta fronteira o tema passa a ser encarado como nebuloso deixando de ser tratado como conteúdo nos cursos de formação inicial A partir da fala dos participantes e também levando em consideração o teor de clandestinidade que paira sobre o tema foi possível identificar duas categorias de estudantes que têm em comum o interesse sobre a discussão relacionada aos medicamentos anabolizantes A primeira categoria é composta por aqueles que ingressaram na graduação em Educação Física pensando que este seria o lugar propício para aprender a tomar bomba Este perfil de ingressante com o passar do tempo dentro do curso acaba se decepcionado com o que aprende ou com o que não aprende sobre um tema que o motivou a escolher a graduação em Educação Física Tal decepção pôde ser percebida nas falas de Acetrem Big Randy e Rogério que tiveram que buscar fora da graduação o aprendizado que inicialmente achavam que seria obtido no curso de Educação Física Isso ocorre porque a temática não é debatida abertamente há uma espécie de estranhamento docente mesmo quando alguma questão sobre a utilização de medicamentos anabolizantes como ferramentas de aprimoramento corporal é posta em pauta Anabolizantes na graduação em Educação Física J Phys Educ v 31 e3166 2020 Página 9 de 11 A segunda categoria é composta pelos sujeitos que aprenderam a utilizar o anabolizante lá fora mas vem para dentro da Educação Física a fim de buscar uma legitimidade de atuação um salvo conduto ante os órgãos fiscalizadores como por exemplo o CREFRS Um exemplo disso é o entrevistado João Cezar que antes de ingressar na Educação Física já era fisiculturista profissional bem como a entrevistada J Kiss que optou em primeiramente se formar em Licenciatura em Educação Física para depois ingressar no Bacharelado a fim de ter sua atuação nas academias de musculação autorizada pelo CREFRS Para os alunos que entram na graduação em Educação Física pensando em aprender a tomar bomba um sentimento de decepção toma conta quando percebem que os anabolizantes são um conteúdo praticamente clandestino Tal decepção pode ser percebida nas falas de Acetrem Big Randy e Rogério que tiveram que buscar fora da graduação o aprendizado que inicialmente achavam que obteriam nas disciplinas do curso Já para aqueles que ingressaram no curso sabendo como usar e que tinham por objetivo ter o canudo como uma espécie de salvo conduto ante os órgãos fiscalizadores tinham consciência de que era preciso pagar um pedágio Um exemplo disso é o entrevistado João Cezar e a entrevistada J Kiss que antes de ingressarem na Educação Física já eram fisiculturistas profissionais Ambos informaram ter buscado a formação em Educação Física principalmente o bacharelado para evitar problemas que já haviam enfrentado com o CREFRS em relação à atuação nas academias de musculação Se a utilização não terapêutica dos anabolizantes mesmo sendo fato que se consuma diariamente nas academias de musculação e também exposto na Internet2324 e em outros meios de comunicação não é abordada na graduação em Educação Física em suas diferentes dimensões passa a existir uma lacuna no processo de aprendizagem sobre tal temática Talvez por este motivo que este espaço é cada vez mais ocupado por conselheiros contemporâneos12 Considerações Finais O aprendizado sobre os anabolizantes ainda é um tabu nas disciplinas da graduação em Educação Física Há farta evidência na literatura sobre os danos à saúde provenientes do uso não terapêutico de hormônios anabolizantes mas quase nada sobre a magnitude desse uso Muita informação balizada sobre os riscos à saúde e ao bemviver coletivo mas poucas sobre os efeitos positivosnegativos no processo de modelagem corporal11 Para estudantesfisiculturistas tanto os que ingressaram para aprender sobre anabolizantes quanto os que apenas queriam um diploma este cenário é ainda mais complexo pois eles precisam lidar com demandas aparentemente irreconciliáveis não ser conivente com qualquer tipo de risco à saúde inerente a todo o profissional deste campo e ao mesmo tempo lidar com a demanda por administração não terapêutica de recursos de potencialização muscular É nesta fronteira entre o aprender a tomar bomba e o agir éticosanitário que um dilema se constitui é de onde emergem estratégias de aprendizagem posicionadas à margem da literatura científica e algumas vezes fora do ordenamento legal Na medida em que a formação inicial em Educação Física não trata dos prós e contras acerca do uso de anabolizantes para fins de aprimoramento corporal os estudantes fisiculturistas não encontram no currículo respaldo teóricoprático para se tornarem experts no processo de hipertrofia muscular pela via medicamentosa Esse rechaço ao tema leva alguns alunos a buscarem informações no lado de fora da graduação em lugares onde a experiência científica não é tão controlada Em algumas situações o estudantefisiculturista toma seu Machado e Fraga J Phys Educ v 31 e3166 2020 Página 10 de 11 próprio corpo como material empírico e gabarito final de experimentos aos quais se submete voluntariamente em busca de mais saber Apesar de o número de participantes que originou o artigo ser reduzido o que reconhecemos como um limite da pesquisa é possível afirmar que o silêncio curricular sobre o uso de anabolizantes para fins de aprimoramento corporal não gera maior conscientização sobre o tampouco a diminuição do uso destas substâncias entre estudantes fisiculturistas Esse silêncio dentro dos cursos associado à atmosfera de clandestinidade pode favorecer a circulação de mais desinformação e ainda mais riscos Explicitar o dilema éticosanitário enfrentado pelos estudantesfisiculturistas de um curso de Educação Física de uma universidade no Brasil é uma forma de trazer à tona no âmbito acadêmico uma faceta do fenômeno da utilização nãoterapêutica de substâncias para potencialização muscular uma temática que julgamos importante de ser tratada com os devidos cuidados no processo de formação profissional dos cursos do campo da saúde Referências 1 Ministério da Casa Civil da República Federativa do Brasil Internet Lei nº 11343 de 23 de Agosto de 2006 Lei das Drogas Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas Sobre Drogas acesso em 20 mar 2018 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato200420062006leil11343htm 2 Ministério da Casa Civil da República Federativa do Brasil Internet Lei no 6437 de 20 de Agosto de 1977 Configura infrações à legislação sanitária federal estabelece as sanções respectivas e dá outras providências acesso em 20 mar 2018 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03LEISL6437htm 3 Ministério da Casa Civil da República Federativa do Brasil Internet Lei nº 9965 de 27 de abril de 2000 Restringe a venda de Esteroides Anabolizantes e da outras providências acesso em 22 mar 2018 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03leisl9965htmtextLEI20No2099652C20DEArt 4 Conselho Regional de Educação Física do Estado do Rio Grande do Sul Lei nº12542 de 29 de Junho de 2006 Dispõe sobre a obrigatoriedade de academias de ginástica clubes desportivos e estabelecimentos similares exibirem placa advertindo sobre as consequências do uso de anabolizantes acesso em 22 de mar de 2018 Disponível em httpscrefrsorgbrlegislacaopdflei12542pdf 5 Bucher R A ética da prevenção Psic Teor e Pesq 200723117123 Doi 101590S0102 37722007000500021 6 CarliniCotrim B Rosemberg F Drogas Prevenção no cotidiano escolar Cad Pesq 1990744046 7 Büchele F Coelho EB Lindner SR A promoção da saúde enquanto estratégia de prevenção ao uso das drogas Cien Saude Colet 2009141267273 Doi 101590s141381232009000100033 8 Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas Internet I levantamento nacional sobre o uso de álcool tabaco e outras drogas entre universitários das 27 capitais brasileiras acesso em 20 mar 2018 Disponível em httpscetadobservaufbabrespublicacoesilevantamentonacionalsobreusodealcool tabacoeoutrasdrogasentreuniversitarios 9 Fraga AB Exercício da informação Governo dos corpos no mercado da vida ativa Campinas Autores Associados 2006 10 Iriart JAB Chaves JC Orleans RG Culto ao corpo e uso de anabolizantes entre praticantes de musculação Cad Saúde Pública 200925773782 11 Moraes DR Castiel LD Ribeiro APPGA Não para jovens bombados sim para velhos empinados o discurso sobre anabolizantes e saúde em artigos da área biomédica Cad Saúde Pública 20153161131 1140 12 Rose N A Política da Própria Vida biomedicina poder e subjetividade no século XXI São Paulo Paulus 2013 13 Lupton D Risk London Routledge 1999 14 Handelsman DJ Testosterone Use misuse and abuse Med J Aust 2006185436439 15 Villaça N Góes F Em nome do corpo Rio de Janeiro Rocco 1998 16 Ortega FJG Práticas de ascese corporal e constituição de bioidentidades Cad Saúde Colet 200311159 77 17 Ortega FJG Da ascese à bioascese Ou do corpo submetido à submissão ao Corpo In Rago M Orlandi LBL VeigaNeto A editores Imagens de Foucault e Deleuze Ressonâncias nietzchianas 2 ed Rio de Janeiro Dpa 2005 Anabolizantes na graduação em Educação Física J Phys Educ v 31 e3166 2020 Página 11 de 11 18 Rabinow P Artificialidade e iluminismo Da sociobiologia a biossociabilidade In Biehl JG editor Antropologia da razão Ensaios de Paul Rabinow Rio de Janeiro Relume Dumara 1999 p 135157 19 Castiel LD A medida do possível Saúde risco e tecnobiociências Rio de Janeiro Fiocruz 1999 20 Iriart JAB Andrade TM Musculação uso de esteróides anabolizantes e percepção de risco entre jovens fisiculturistas de um bairro popular de Salvador Bahia Brasil Cad Saúde Pública 200218513791387 21 Flick U Entrevista Episódica In Bauer MW Gaskell G editores Pesquisa qualitativa com texto imagem e som Um manual prático 11 ed Petrópolis Vozes 2013 p 114136 22 Sabino C Anabolizantes drogas de Apolo In Goldenberg M editora Nu e vestido Dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca 2 ed Rio de Janeiro Record 2007 p 139188 23 Courtine JJ Os stakhanovistas do narcisismo Bodybuilding e puritanismo ostentatório na cultura americana do corpo In SantAnna DB editora Políticas do Corpo São Paulo Estação Liberdade 1995 p81114 24 Trabal P E se os esportistas que se dopam quisessem fazer direito Movimento 20131941143 Doi 10224561982891841901 ORCID dos autores Eduardo Pinto Machado httpsorcidorg0000000211378442 Alex Branco Fraga httpsorcidorg0000000268811446 Recebido em 260319 Revisado em 240220 Aceito em 200320 Endereço para correspondência Eduardo Pinto Machado Rua Felizardo 750 Bairro Jardim Botânico Porto Alegre Rio Grande do Sul CEP 90690200 Email eduardomachadoufrgsbr