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Sociedade Brasileira e Cidadania Hugo Martarello de Conti Patricia Villen Meirelles Alves 2019 por Editora e Distribuidora Educacional SA Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio eletrônico ou mecânico incluindo fotocópia gravação ou qualquer outro tipo de sistema de armazenamento e transmissão de informação sem prévia autorização por escrito da Editora e Distribuidora Educacional SA Presidente Rodrigo Galindo VicePresidente Acadêmico de Graduação e de Educação Básica Mário Ghio Júnior Conselho Acadêmico Ana Lucia Jankovic Barduchi Danielly Nunes Andrade Noé Grasiele Aparecida Lourenço Isabel Cristina Chagas Barbin Thatiane Cristina dos Santos de Carvalho Ribeiro Revisão Técnica Emiliano César de Almeida Rafael Pavani da Silva Editorial Elmir Carvalho da Silva Coordenador Renata Jéssica Galdino Coordenadora 2019 Editora e Distribuidora Educacional SA Avenida Paris 675 Parque Residencial João Piza CEP 86041100 Londrina PR email editoraeducacionalkrotoncombr Homepage httpwwwkrotoncombr Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Conti Hugo Martarello de C762s Sociedade brasileira e cidadania Hugo Martarello de Conti Patricia Villen Meirelles Alves Londrina Editora e Distribuidora Educacional SA 2019 256 p ISBN 9788552214458 1 Ciências humanas 2 Direitos Humanos 3 Sociedade brasileira I Conti Hugo Martarello de II Alves Patricia Villen Meirelles III Título CDD 301 Thamiris Mantovani CRB89491 Sumário Unidade 1 Ética e política 7 Seção 11 Por que pensar sobre a ética 9 Seção 12 Por que discutir política 23 Seção 13 É possível ser ético no mundo contemporâneo 39 Unidade 2 Cidadania e direitos humanos 59 Seção 21 O que faz um cidadão 61 Seção 22 Direitos humanos por que e para quem78 Seção 23 Democracia e cidadania quem tem o poder 96 Unidade 3 Dilemas éticos da sociedade brasileira 115 Seção 31 A corrupção tem solução 117 Seção 32 Por que a miséria persiste em nosso país 141 Seção 33 Como combater nosso racismo 161 Unidade 4 Pluralidade e diversidade no século XXI 187 Seção 41 Toda democracia é plural 189 Seção 42 O que é ideologia de gênero 208 Seção 43 Vivemos uma onda de fanatismo 228 Palavras do autor C aro aluno existindo uma grande quantidade de disciplinas específicas de seu curso de graduação a elaboração de uma matéria destinada a analisar diferentes aspectos da realidade brasileira e da cidadania pode parecer um pouco estranha não é mesmo A uma primeira vista esse estranhamento é compreensível se nos baseamos em alguns dos padrões modernos de ensino de trabalho e por que não do modo como levamos nossas vidas caracterizados pela especia lização dos estudos e das profissões em áreas cada vez mais particulares Sob esse ponto de vista pode mesmo ser difícil identificar a utilidade de estudarmos temas tão amplos da realidade nacional Entretanto como veremos alguns aspectos mais gerais de nosso país não estão totalmente desligados do desenvolvimento universitário e profissional dos indivíduos mas sim fornecem instrumentos e reflexões extremamente impor tantes para essa evolução Isso ocorre porque não se pode separar completamente o desempenho profissional de um indivíduo e até mesmo sua existência enquanto ser humano das relações sociais em que ele está inserido conforme defende o expresidente dos Estados Unidos Barack Obama Se você foi bemsucedido não chegou lá por conta própria Se você triunfou alguém no caminho deulhe alguma ajuda Houve um grande professor em algum ponto de sua vida Alguém ajudou a criar esse inacreditável sistema americano que permite que você prospere Alguém investiu em estradas e pontes A internet não nasceu espontaneamente A pesquisa financiada pelo governo criou a internet de modo que todas as empresas pudessem lucrar com ela Quando alcançamos sucesso triun famos por nossa iniciativa individual mas também porque fizemos coisas juntos apud MAGNOLI 2013 De forma semelhante também no Brasil aquilo que fazemos em nossas vidas pessoal e profissional costuma receber estímulos ou encontrar dificul dades que são produzidos pela coletividade em que vivemos As leis que regem nossa sociedade os serviços públicos de que dispomos e os padrões de convivência de nosso povo são exemplos de concepções coletivas que inter ferem diretamente em nossos triunfos e frustrações pessoais Assim tornase importante para nossa formação refletir sobre dilemas e impasses perce bidos no Brasil contemporâneo nas mais diversas áreas de nossa vivência cotidiana como as esferas ambiental étnicocultural ou política Nesse contexto a primeira unidade de nosso material dá início ao nosso estudo com uma reflexão sobre o valor da ética e da política na atualidade e sobre a maneira que esses temas se relacionam ao nosso cotidiano Em seguida a segunda unidade trabalha os conceitos de cidadania e direitos humanos estudando a construção histórica dessas ideias e em que medida esses entendimentos se veem aplicados na atual democracia brasileira A partir dos conhecimentos adquiridos na primeira metade do curso analisa remos na terceira unidade importantes dilemas éticos da sociedade brasi leira mantendo o enfoque sobre origens consequências e possíveis soluções para os desafios da corrupção da miséria e do racismo presentes em solo nacional Por fim na quarta unidade investigaremos algumas das questões mais relevantes do século XXI centradas na pluralidade e diversidade que existem nas sociedades contemporâneas relacionandoas com as formas de tolerância e intolerância e com o próprio conceito de democracia Assim caro aluno o destino que nos espera ao final desta caminhada não é uma opinião específica ou perspectiva a ser obrigatoriamente aceita mas o esforço no sentido de expandir os conceitos processos e dados a respeito do ambiente que nos cerca permitindo o questionamento da realidade contem porânea e das maneiras pelas quais nos inserimos nela Unidade 1 Ética e política Convite ao estudo Prezado aluno aqui iniciamos nossa jornada em direção à complexa rede de relações valores e estruturas que compõem a realidade brasileira Em sua opinião nossa sociedade tem como orientação principal de seu funciona mento os princípios ou o poder Agimos coletivamente em função de uma busca para estabelecermos aquilo que consideramos correto ou nossa reali dade pode ser melhor compreendida a partir das relações de força que são estabelecidas em nosso país Repare que essa busca pela ação correta pode incluir processos amplos de nossa vida em coletividade há algum problema em empresas privadas finan ciarem campanhas políticas Seria correto manter benefícios para funcio nários públicos que já recebem salários altíssimos mas também envolve decisões de nossa vida privada se uma regra nos parece injusta devemos obedecêla Considerar uma ação correta ou incorreta é algo que se faz sozinho ou devese levar em conta aspectos sociais A mesma abrangência deve ser considerada na análise das relações de poder já que elas se manifestam em escalas elevadas até onde deve ir a inter venção do Estado brasileiro em nossa sociedade A maioria deve sempre se impor e em nosso cotidiano individual o serviço público que utilizo é um favor que me foi oferecido ou é um direito que me é assegurado Meu ato individual pode ter impacto na sociedade Portanto se pretendemos analisar toda uma diversidade de fatores da vida coletiva de nosso país é provável que essas duas orientações princí pios e poder apareçam em nossa análise Por isso é interessante recor rermos a dois domínios do conhecimento voltados a esses assuntos a ética e a política Embora esses temas sejam tratados frequentemente em nosso dia a dia o estudo mais aprofundado desses campos do conhecimento conforme faremos nesta primeira unidade será um importante suporte para compre endermos o ambiente que nos cerca e até mesmo nosso próprio cotidiano Para tanto utilizaremos algumas referências tradicionais do pensa mento e da filosofia política ocidentais que servirão de instrumento para que possamos refletir sobre dilemas e impasses éticos e políticos constatados no Brasil contemporâneo nas mais diversas áreas como meio ambiente ou diversidade étnicocultural da população brasileira Assim a partir de uma compreensão humanista do que consiste a vida em sociedade poderemos então identificar alguns requisitos para uma participação cidadã na comuni dade que nos abriga A análise desses dois temas clássicos das ciências humanas ética e política tem especial importância na atualidade já que os amplos campos de estudo dessas disciplinas podem contrastar com a precisão e a especialização de novas áreas do conhecimento humano Assim a ética ainda teria aplicação prática nos dias de hoje A ciência pode substituir as reflexões éticas E as ponderações políticas seriam abstratas demais para afetar nosso cotidiano As respostas a essas indagações e a outras que certamente surgirão serão trabalhadas à medida que analisarmos os fundamentos da filosofia ética e suas relações com os dilemas que despontam em nosso cotidiano bem como os diferentes tipos de organização política e seus vínculos com nosso desenvolvimento enquanto sociedade Seção 11 Por que pensar sobre a ética 9 Por que pensar sobre a ética Diálogo aberto Em pleno século XXI você provavelmente já notou que o desenvolvi mento tecnológico tem criado novas ferramentas técnicas capazes de atribuir às máquinas funções antes exclusivas da ação humana Se é verdade que o processo de substituição da atividade de homens e mulheres pela operação de equipamentos artificiais pode ser percebido ao longo de toda a história não seria um exagero considerar que atualmente esse processo se vê intensi ficado e atinge patamares antes inimagináveis avanços nas áreas de robótica automação e conectividade por exemplo ampliam a possibilidade de utili zação da tecnologia para a realização das mais diversas tarefas exigidas nas sociedades contemporâneas Assim a tecnologia poderia resolver todos os problemas do convívio em sociedade definindo quais seriam as condutas e os procedimentos corretos a serem tomados diante de uma situação concreta As máquinas realizam as tarefas com maior precisão maior velocidade e menor margem de erro do que os homens Desse modo a maior produ tividade e eficiência decorrentes do uso da tecnologia constituiriam motivo suficiente para defender o uso de máquinas indiscriminadamente em todos os setores da atividade humana A performance elevada é critério suficiente para solucionar problemas de nossa realidade cotidiana Ou existem outros princípios da ação humana que diferenciam nosso funcionamento da progra mação típica da tecnologia Pense por exemplo nos veículos com piloto automático essas máquinas saberiam escolher a reação adequada diante de uma provável batida fazendo um julgamento se o menor prejuízo seria danificar o veículo ou arriscar a vida de passageiros e pedestres Ou essa ponderação é essencialmente humana Aplicativos de agendamento de consultas médicas consideram a gravi dade da doença para marcar os atendimentos Ou o critério é apenas a ordem de marcação Seria possível programar um aplicativo com todas as possibilidades de doenças para a definição da ordem de consulta A vigilância tecnológica exercida nas ruas em nome da segurança pública saberia diferenciar o excesso de velocidade irresponsável daquele necessário a uma prestação de socorro emergencial Ou o que justifica a primeira conduta estar errada e a segunda estar certa é a compreensão humana dos fatos Seção 11 10 U1 Ética e política Notase prezado aluno que a vida em coletividade exige certas definições do que devemos ou não devemos fazer solicitando de nossa racionalidade um esforço para identificar em que consiste agir corretamente Bemvindo ao estudo da ética campo fundamental para definirmos qual a essência da humanidade que queremos compor Não pode faltar Sabemos que no Brasil o direito à moradia constitui uma das prerroga tivas que o Estado e a sociedade devem defender existindo inclusive norma constitucional que afirma que São direitos sociais a educação a saúde a alimentação o trabalho a moradia o transporte BRASIL 1988 grifo nosso Sabemos também que a propriedade privada recebe semelhante proteção constitucional conforme se observa no trecho Todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza garantindose aos brasi leiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida à liberdade à igualdade à segurança e à propriedade BRASIL 1988 grifo nosso Imagine agora que uma família muito rica seja proprietária de vários imóveis distribuídos pelo país muitos dos quais permanecem sem qualquer utilização por anos seguidos Outra família em condição de pobreza extrema não tem recursos para pagar por uma habitação e decide ocupar um desses imóveis abandonados Repare que há um choque entre o direito de propriedade da família rica e o direito à moradia da família pobre Qual seria então a conduta correta a ser tomada diante desse impasse O ideal seria remover a família pobre sob a alegação de que a família rica não tem culpa da pobreza alheia e não deve ter sua propriedade atingida Ou inversamente o certo seria proteger a moradia do grupo em necessidade uma vez que a família rica abandonou o imóvel em questão Note que ainda que existam normas jurídicas específicas para tratar do caso concreto as duas posições são justificáveis a partir de uma perspectiva moral isto é nos dois posicionamentos existem certos juízos de valores que determinam qual a conduta correta qual o comportamento a ser observado o dever ser para que se atinja a solução justa sob um posto de vista moral Se é verdade que os juízos morais podem concordar com uma norma jurídica ou mesmo com duas normas que em um caso concreto são confli tantes como acabamos de ver é importante notar que esses valores são resultado de uma consciência moral a qual reflete valores e sentimentos Seção 11 Por que pensar sobre a ética 11 pessoais Assim na formação da moral mais importante do que a existência de uma lei estão as convicções individuais que podem ou não coincidir com a norma jurídica Nesse sentido a moral de uma pessoa pode até mesmo contrariar uma norma social Veja como a opinião do entrevistado a seguir questiona a moralidade de uma série de regras brasileiras Não almoço à custa do dinheiro do contribuinte me disse certa vez o juiz sueco Göran Lambertz em tom quase indignado na Suprema Corte da Suécia A pergunta que inflamou a reação do magistrado era se assim como ocorre no Brasil os juízes da instância máxima do Poder Judiciário sueco têm direito a carro oficial com motorista e benefícios extrasalariais como auxíliosaúde auxíliomoradia gratificação natalina verbas de representação auxíliofuneral auxílio préescolar para cada filho abonos de permanência e auxílioalimentação Não consigo entender por que um ser humano gostaria de ter tais privilégios Só vivemos uma vez e portanto penso que a vida deve ser vivida com bons padrões éticos Não posso compre ender um ser humano que tenta obter privilégios com o dinheiro público acrescentou Lambertz Luxo pago com o dinheiro do contribuinte é imoral e antiético completou o juiz sueco WALLIN 2018 sp grifo nosso Nesse ponto o juiz sueco salienta que a ética deve orientar a condução de nossas vidas justificando com esse conceito sua repro vação da utilização de recursos públicos para o pagamento de benefí cios a magistrados O termo ética decorre da palavra grega ethos cujo significado em nosso idioma se relaciona às ideias de modo de ser ou bom costume revelando que ao menos desde a Grécia Antiga o homem se preocupa em analisar de que modo as condutas dos indivíduos podem contri buir para uma convivência satisfatória Assim a ética se consolida como o campo do conhecimento focado na determinação racional de quais seriam as finalidades boas e más a serem buscadas pelos seres humanos investigando a essência das condutas consideradas certas ou erradas os fundamentos dos princípios e valores que fundamentam os juízos obrigações e deveres que condicionam e qualificam o compor tamento humano 12 U1 Ética e política Pesquise mais A concepção aristotélica sobre a ética encontra sua mais significa tiva elaboração na obra Ética a Nicômaco de Aristóteles Nesse livro supostamente dedicado ao filho ou ao pai do filósofo ambos nomeados Nicômaco o filósofo grego investiga os fundamentos do caráter e o exercício das virtudes humanas motivo pelo qual a obra se tornou um clássico da reflexão ética ARISTÓTELES Ética a Nicômaco São Paulo Edipro 2014 Tratase nesse contexto de uma disciplina fortemente norma tiva isto é que prescreve ações e julgamentos a serem valorizados na condução de nossas vidas em vez de apenas retratar a realidade obser vada Adicionalmente ao valorizar a razão enquanto método de se perceber o caráter correto ou incorreto de uma ação a ética fortalece a responsabilização individual por uma conduta já que o homem tem mecanismos racionais para identificar a justiça ou injustiça de seus atos Entretanto nunca é demais lembrar a ética não é um saber encerrado cujas determinações já se encontram totalmente reveladas mas sim o que estabelecerá fundamentos amplos para a apreciação da conduta adequada a uma situação específica Assimile Há ética na organização de um formigueiro Um animal pode ser conside rado mau sob o ponto de vista ético Assista à discussão entre o filósofo Mario Sérgio Cortella e o jornalista Clóvis de Barros Filho disponível no endereço eletrônico a seguir e assegurese de que compreendeu os conceitos até aqui trabalhados A ÉTICA não é uma tabela pronta Produção TV Cultura Sl Café Filosófico CPFL 2017 3min40s A resposta à pergunta qual a conduta correta para o aprimoramento de nossa convivência coletiva acaba por abranger diferentes componentes da vida social a organização política as ciências e a moral por exemplo exercem influência sobre as formas de se pensar a ética A respeito dessa última variável mencionada a moral alguns esclarecimentos se fazem neces sários e serão apresentados a seguir Como podemos constatar na entrevista com o juiz sueco a classificação de que algum comportamento seria moral ou imoral produz efeitos semelhantes aos da afirmação de que uma conduta seria ética ou antié tica Isso acontece porque esses dois termos são cotidianamente utilizados Seção 11 Por que pensar sobre a ética 13 como se fossem conceitos equivalentes e mesmo em obras clássicas de nosso campo de estudo a qualificação moral é utilizada na apreciação do compor tamento ético Há que se reconhecer entretanto a existência de importantes diferenças entre esses conceitos conforme estudaremos a seguir Etimologicamente a palavra moral deriva do termo latim moralis cujo significado se aproxima de relativo aos costumes Tratase de um conjunto de normas que regulamenta a conduta dos indivíduos em sociedade em conformidade com as tradições referências educacionais e culturais e práticas rotineiras Embora tanto a ética quanto a moral busquem a orientação do que é certo e errado no agir humano a ética pressupõe que essa qualificação é resultado de uma elaboração baseada na coletividade que ultrapassa os indivíduos considerados isoladamente não há portanto uma ética individual A moral por sua vez fundamenta sua apreciação na razão e consciência pessoais ainda que conside rando as repercussões e influências sociais desse ato Assim a moral pode apresentar uma maior diversidade uma vez que reflete condutas práticas e desejos que variam para cada indivíduo tempo e local da ação Já a ética se ocupa da sistematização da moralidade objeto de seu estudo apresentando portanto princípios e regras relativamente mais amplos e duradouros Essas diferenças possibilitam inclusive a divergência entre enquadra mentos éticos e morais haja vista que uma convenção moralmente aceita em uma sociedade específica pode não satisfazer uma reflexão ética por não se adequar a princípios gerais do que seria bom justo ou correto Nesse mesmo sentido é comum que grupos distintos de indivíduos ainda que compondo uma mesma coletividade seja ela um país uma cidade ou até mesmo uma classe de alunos universitários tenham comportamentos orientados por padrões diferentes daquilo que consideram moralmente aceitável uma vez que os costumes tabus e vontades incorporados por cada um deles diferem entre si Quando tratamos da ética entretanto isso não acontece já que as concepções morais serão interpretadas para que se identi fique padrões éticos aplicáveis a todos A problematização de aspectos da vida social que por vezes são equivocada mente equiparados à ética não acontece apenas com a moral já que frequente mente a religião é aplicada em situações que exigiriam uma análise ética De imediato podemos identificar a origem de tais confusões no fato de que tanto a ética quanto a religião exercem a função de prescrever regras de conduta e postura apropriadas aos indivíduos Adicionalmente obser vase nas esferas ética e religiosa a existência de conceitos opostos utilizados 14 U1 Ética e política como referência à ação humana bem e mal certo e errado por exemplo são parâmetros utilizados nos dois domínios aqui apreciados Apesar de tais aproximações a ética e a religião apresentam divergências que justificam sua distinção em campos do saber autônomos Primeiramente como vimos o pensar ético é eminentemente racional determinado por processos lógicos inteligíveis enquanto a compreensão religiosa em seus mais diversos credos apresenta forte componente dogmático valendose de liturgias mandamentos e sacralizações que transcendem os limites e temas puramente racionais Ainda a fundamentação ética com base nessa racio nalidade compartilhada por todos os seres humanos busca regramentos aplicáveis a toda a coletividade em um processo que difere da pluralidade religiosa que podemos constatar na sociedade Exemplificando Ética e religião Leia o trecho a seguir e repare como o argumento de Dalai Lama líder religioso do budismo tibetano aproximase do que estudamos nesta seção É por isso que digo que no século XXI precisamos de uma nova ética que vá mais além de todas as religiões Refirome a uma ética secular que seja útil e prática para mais de mil milhões de ateus e um número cada vez maior de agnósticos A nossa espiritualidade humana básica é mais fundamental do que a religião Estou convencido de que as pessoas podem viver sem religião mas não podem viver sem valores internos sem ética A diferença entre a ética e a religião é semelhante à diferença entre a água e o chá A ética e os valores internos baseados num contexto religioso são mais como chá O chá que bebemos consiste em grande parte em água mas também contém outros ingredientes tais como folhas de chá especiarias talvez um pouco de açúcar e pelo menos no Tibete até mesmo uma pitada de sal e isso tornao mais saboroso e nutritivo e é algo que queremos tomar todos os dias Mas indepen dentemente de como o chá é preparado O seu ingrediente principal é sempre a água Podemos viver sem chá mas não sem água De igual modo nascemos sem religião mas não sem a necessidade básica de compaixão e também não sem água Independente mente de pertencermos ou não a uma religião todos nós temos uma ética elementar e humana em nós Devemos cuidar e valorizar este fundamento ético comum É a ética e não a religião que está enraizada na natureza humana ALT LAMA 2017 sp grifo nosso Seção 11 Por que pensar sobre a ética 15 Nada impede obviamente que haja componentes éticos inseridos nos preceitos de uma religião Entretanto é de se esperar que outros manda mentos religiosos sejam diferentes dos procedimentos racionais defendidos pela ética Em sentido inverso constatamos que a ética não se vincula aos preceitos desse ou daquele credo religioso sendo plenamente viável que um indivíduo ou uma sociedade desprovida de confissões religiosas se utilize dos campos do saber ético uma vez que os dilemas que emergem em nossos cotidianos não são exclusivos de uma religiosidade específica Exemplificando Ética e religião II Agora leia o excerto redigido pelo papa Francisco e perceba como a argumentação desenvolvida pelo chefe da Igreja Católica se vincula a alguns pontos elencados nesta seção adicionalmente repare como há uma convergência lógica com a redação de Dalai Lama trazida no segmento Exemplificando anterior Como crentes sentimonos próximo também de todos aqueles que não se reconhecendo parte de qualquer tradição religiosa buscam sinceramente a verdade a bondade e a beleza que para nós têm a sua máxima expressão e a sua fonte em Deus Sentimolos como preciosos aliados no compromisso pela defesa da dignidade humana na construção duma convivência pacífica entre os povos e na guarda da criação Um espaço peculiar é o dos chamados novos Areópagos como o Átrio dos Gentios onde crentes e nãocrentes podem dialogar sobre os temas fundamen tais da ética da arte e da ciência e sobre a busca da trans cendência Também este é um caminho de paz para o nosso mundo ferido FRANCISCO 2013 sp grifo nosso Quando nos deparamos com uma situação em que nenhuma possibili dade de ação está livre de efeitos morais negativos não existindo propria mente uma solução óbvia e inquestionável a ser tomada ou quando a resposta preconizada pela lei pela tradição ou por qualquer outra fonte de orientação de nosso comportamento parece se chocar com alguma convicção racional relevante para nosso juízo encontramonos diante de um dilema moral 16 U1 Ética e política Os dilemas morais evidenciam a complexidade no exercício de nossa liberdade de escolha já que a existência de consequências negativas decorrentes de nossas decisões ou a apreciação dos valores a serem preferidos em um caso concreto demandam o estabelecimento de certos critérios racionais que podem não ser tão evidentes como veremos nos exemplos a seguir Imagine caro aluno um médico legista que tenha acesso aos corpos de vítimas de acidentes fatais preocupado com a baixa disponibilidade de órgãos para doação o médico resolve por conta própria e sem qualquer autorização formal extrair dos finados os órgãos que permanecem funcionais destinan doos à doação A atitude do médico pode ser considerada correta Se você acredita que sim provavelmente fundamentou sua decisão no fato de que tal conduta apresenta efeitos positivos na medida em que novas vidas poderão ser salvas a partir da doação Essa justificativa se aproxima do raciocínio consequencialista que busca nos resultados finais de um ato sua validação Esse critério de análise é representativo da filosofia utilitarista que defende a maximização da utilidade ou da capacidade de produzir bemestar e felici dade coletivos algo que pode ser inclusive matematicamente quantificado pelo número de pessoas intensidade ou duração envolvidos no benefício em questão conforme argumentava Jeremy Bentham 17481832 e John Stuart Mill 18061873 Se em sentido oposto você rejeita a conduta do médico deve ser porque considera o ato de retirar os órgãos sem qualquer autorização prévia do falecido ou de seus familiares como sendo uma atitude por si só incor reta Tratase nesse caso de uma abordagem deontológica que catego riza a ação humana a partir de percepções principiológicas dos deveres e direitos existentes relativizando suas consequências à luz do que defendia Immanuel Kant 17241804 Considerese agora de férias em um país estrangeiro você repara que nesse Estado é comum que crianças comecem a trabalhar desde idades muito precoces Ao classificar tal fato como algo incorreto você provavelmente acredita que existem padrões mínimos de respeito à infância que devem ser observados no Brasil no país onde você se encontra e em qualquer outro lugar do mundo sob uma perspectiva universalista Se no entanto você admite que existem particularidades culturais desse povo que justifiquem tal situação é o enfoque relativista que se sobrepõe em seu raciocínio Seção 11 Por que pensar sobre a ética 17 Repare que os impasses citados não pretendem analisar todos os tipos de dilemas morais presentes em nossas vidas tampouco esgotar as correntes e perspectivas filosóficas desenvolvidas para abordar tais problemas mas pelo contrário ressaltar a pluralidade de situações em que não há respostas absolutas ou preconcebidas algo que eleva a importância do estudo da ética em nosso desenvolvimento individual e coletivo Em certo sentido a emergência dessas questões é algo incontornável da vida humana e a desatenção em relação aos dilemas apresentados tende a ser ainda mais problemática do que as dúvidas por eles suscitadas na medida em que sugere uma condução automatizada dos afazeres cotidianos cujo efeito prático é a negação da própria liberdade Reflita O cidadão obediente II Era assim que as coisas eram era esta a nova lei do território baseada na ordem do Führer o que quer que ele Eichmann tenha feito fez até onde podia ver como um cidadão obediente às leis Ele fez seu dever conforme disse à polícia e à corte várias e várias vezes ele não apenas obedeceu ordens ele também obedeceu a lei ARENDT 2006 p 135 tradução nossa O trecho citado foi retirado do livro Eichmann em Jerusalém de Hannah Arendt Nessa obra a filósofa relata o julgamento de Adolf Eichmann um tenentecoronel das forças nazistas alemãs que teve papel fundamental na organização dos campos de extermínio do Holocausto Ao longo livro Eichmann nega que tenha agido com crueldade no processo que levou ao assassinato de milhões de judeus nas décadas de 1930 e 1940 Conforme se depreende do excerto o tenentecoronel justificou sua conduta pela simples obediência a mandamentos superiores como ordens de seus chefes e as leis vigentes naquele período algo que segundo ele retiraria qualquer culpa de suas ações Com base nos temas discutidos nesta seção você diria que a obediência é sempre uma virtude De um ponto de vista ético como você analisa o argumento de Eichmann Passados mais de dois mil anos do advento da ética enquanto campo fundamental do conhecimento humano continuamos a deparar com situa ções nas quais o exercício de nossa liberdade de escolha encontrase cheio de dúvidas e angústias diante da inexistência de valores ou critérios incon testáveis para o agir humano Se é verdade que os avanços tecnológicos 18 U1 Ética e política nos auxiliam a encontrar algumas respostas para problemas cotidianos que atingem a humanidade formulando maiores certezas em temas antes duvidosos temos de reconhecer que as potencialidades oferecidas pelo desenvolvimento científico contemporâneo abrem novos campos de discussão envolvendo a ética Inovações nas áreas de biotecnologia tecnologia da informação e automação por exemplo ao mesmo tempo em que aumentam os horizontes da ação humana levantam questionamentos éticos essenciais devemos clonar seres humanos As empresas de telecomunicação deveriam assumir compromissos no combate à propagação de notícias falsas Podemos criar robôs militares com capacidade letal Assim a ampliação das atividades que conseguimos fazer eleva proporcionalmente os questionamentos sobre o que efetivamente devemos fazer Assimile Ética e técnica Técnica e ética completamse necessariamente para impul sionar os povos e as civilizações a se unirem A tecnologia divorciada da ética conduz à inevitável fratura da humanidade A ética ignorante do saber tecnológico é ineficiente e vazia O grande projeto de humanização do mundo exige que a ciência e a técnica sejam finalmente reconhecidas como patrimônio da humanidade insuscetíveis portanto de qualquer tipo de apropriação privada ou estatal COMPARATO 2016 p 439 Neste mesmo sentido a ampliação das capacitações humanas contrasta com a persistência de desafios para os quais a humanidade já dispõe de soluções tecnológicas revelando que a continuidade de certos problemas individuais eou coletivos não se deve a questões técnicas mas sim às escolhas que fazemos enquanto sociedade organizada o que revela um vínculo primordial entre a ética e a política Esse zelo pela convivência coletiva defendido pela filosofia ética enriquece toda a rede de relações nas quais nossa existência se desenvolve bem como reconhece os aspectos valorativos essenciais de nossa condição humana Nesse sentido é preciso o ensinamento do professor Fábio Konder Comparato de que Seção 11 Por que pensar sobre a ética 19 o ser humano só realiza integralmente as suas poten cialidades isto é somente se aproxima do modelo superior de pessoa quando vive numa sociedade cuja organização política não se separa das exigências éticas e regula de modo harmonioso todas as dimensões da vida social COMPARATO 2016 p 587 Perceba a função emancipadora do saber ético garantindo que a inexistência de modelos predeterminados do que deve constituir o agir humano não seja consi derado uma limitação às nossas vidas mas pelo contrário que essa condição permita o exercício integral de nossas liberdades estimulando a reflexão constante sobre o mundo que nos cerca e sobre os caminhos para uma existência plena e em harmonia com os fundamentos de nossa humanidade Sem medo de errar A liberdade é um dos valores fundamentais e marcantes da existência humana Diferentemente de outros animais cuja ação é orientada majorita riamente pelo instinto o ser humano encontra na utilização de sua raciona lidade ao exercer seu livre arbítrio a capacidade de fazer escolhas diante de uma situação concreta Essa liberdade de julgamento e conduta é essencial na medida em que as situações com que deparamos ao longo da vida são inúmeras e imprevisíveis tornando inviável a elaboração ainda que mental de uma sistematização rígida das atitudes a serem tomadas Uma vez que os seres humanos vivem em comunidades tentamos assegurar que todas essas avaliações e condutas individuais criem entre si uma relação humanizada estabelecendo um entendimento coletivo direcio nado ao aprimoramento da vida em grupo tratase do desenvolvimento de nosso saber ético Se bem verdade que nossas liberdades possibilitam que nos manifestemos de acordo com nossas individualidades existem referências compartilhadas daquilo que devemos assumir como sendo condutas e finalidades éticas de modo distinto de padrões morais e religiosos aceitos por cada indivíduo Assim percebemos que o raciocínio ético é uma atividade eminentemente humana Como consequência a ética não está sujeita a processos de codifi cação e programação como aqueles observados na construção de máquinas algo que limita o uso da tecnologia em contextos nos quais podemos deparar com dilemas morais 20 U1 Ética e política É óbvio que a evolução da tecnologia nos fornece incontáveis benefícios para a organização e funcionamento de nossas sociedades entretanto devemos manter sempre em mente que essas inovações auxiliam mas não substituem o raciocínio humano e as avaliações éticas que são necessárias ao nosso cotidiano A definição de que a vida humana importa mais do que bens materiais de que a gravidade de uma doença é motivo legítimo para que se adiante um paciente na fila de atendimentos médicos ou de que a função de salvar vidas poderia justificar o excesso de velocidade de um automóvel são ponderações éticas que só os humanos são capazes de realizar As máquinas até podem ser programadas de acordo com algumas considerações éticas estabelecidas por seres humanos todavia as diferentes justificativas que um mesmo ato pode ter o excesso de velocidade mencionado por exemplo e a impossibilidade de se prever de antemão todas as situações cotidianas que envolveriam um juízo ético apresentam limites para a visão tecnicista de que a tecnologia fornece solução para todos os problemas humanos Esse posicionamento seguramente reflete uma postura humanista que em pleno exercício de nossas liberdades rejeitaria uma condução automati zada mecanicista e por que não antiética de nossas vidas Faça valer a pena 1 Leia o trecho a seguir Os juízos éticos de valor são também normativos isto é enunciam normas que determinam o dever ser de nossos senti mentos nossos atos nossos comportamentos São juízos que enunciam obrigações e avaliam intenções e ações segundo o critério do correto e do incorreto CHAUÍ 2010 p 431 Com base nos estudos desenvolvidos nesta seção e na argumentação da professora Marilena Chauí assinale a alternativa correta a O termo juízos éticos poderia ser substituído por juízos morais sem alteração no sentido da frase já que ética e moral são conceitos sinônimos b Como as religiões também determinam o dever ser dos indivíduos podemos afirmar que ética e religião funcionam exatamente sob os mesmo fundamentos e racionalidades c Se os juízos éticos de valor são normativos podemos concluir que eles sempre estão de acordo com as normas jurídicas Seção 11 Por que pensar sobre a ética 21 d A função normativa da ética auxilia a busca por uma melhor convivência nas sociedades e Atualmente a ética já esgotou sua função normativa uma vez que já estabeleceu o dever ser para todas as situações possíveis e imagináveis 2 Leia o fragmento a seguir os princípios éticos são normas objetivas sempre correla cionadas a virtudes subjetivas São normas teleológicas que apontam para um objetivo final do comportamento humano ao qual devem se adequar os meios ou instrumentos utilizados São normas de conteúdo axiológico cujo sentido é sempre dado pelos grandes valores éticos COMPARATO 2016 p 524 Assinale a alternativa que interpreta corretamente o conteúdo presente no textobase a Os princípios éticos são objetivos porque atualmente todos eles já se encontram codificados b A correlação entre princípios éticos e virtudes subjetivas se origina do entendi mento de que a ética constitui objeto de estudo da moral c Ao apontar para um objetivo final do comportamento a ética apresenta uma natureza normativa d Por conter conteúdo axiológico as normas éticas variam de acordo com os valores pessoais de cada indivíduo Assim cada indivíduo tem uma ética pessoal e Como exemplo dos grandes valores éticos podemos citar os mais elevados mandamentos religiosos 3 Leia o trecho de uma reportagem apresentado a seguir Presidente do TJSP considera ético recebimento de auxíliomo radia Assunto tem causado polêmica após divulgação de que magis trados com imóveis próprios fazem uso do benefício Thais Skodowski do R7 05022018 13h53 Atualizado em 05022018 15h41 O novo Presidente do TJSP Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou nesta segundafeira 5 que não vê problemas em juízes com imóvel próprio na cidade onde atuam receberem auxílio moradia Eu acho que é ético porque a Lei Orgânica da Magistratura Nacional prevê o recebimento do benefício O auxíliomoradia 22 U1 Ética e política é um salário indireto porque é previsto como tal na Lei Orgânica da Magistratura Nacional O auxíliomoradia a membros do Judiciário tem causado polêmica após reportagens recentes mostrarem que juízes com imóveis próprios receberam o benefício A maior parte da categoria defende o pagamento dessa verba como forma de composição do salário defasado a última correção foi em 2015 SKODOWSKI 2018 Com base nos estudos realizados nesta seção e na leitura da reportagem apresentada assinale a alternativa correta a Uma vez que há previsão normativa da concessão de auxíliomoradia aos juízes esse tema deixa de se situar no campo da ética e passa a integrar exclusivamente o domínio jurídico b O recebimento de auxíliomoradia por parte dos juízes é algo político e como sabemos a política não tem nenhuma relação com a ética c O argumento de que o auxíliomoradia não seria devido aos juízes com imóveis próprios se aproxima do raciocínio consequencialista que despreza os efeitos concretos de uma ação para avaliar a validade da conduta d O argumento de que o auxíliomoradia não seria devido aos juízes com imóveis próprios se aproxima do raciocínio deontológico que relativiza os efeitos de um ato em benefício de um dever de agir baseado em princípios amplos e Diante de tal polêmica o ideal de um ponto de vista ético seria condicionar o recebimento ou não do auxíliomoradia à ética pessoal de cada juiz Seção 12 Por que discutir política 23 Por que discutir política Diálogo aberto Caro aluno por mais avesso ao tema que você eventualmente seja certa mente já se encontrou envolvido em uma discussão sobre política Seja como forma de manter a interação com algum desconhecido em uma leve e despretensiosa conversa no elevador ou como afirmação de suas maiores convicções numa acalorada discussão sobre o que julga mais importante nesta vida a política é tópico recorrente em nosso dia a dia Basta nos lembrarmos dos impasses que surgem em nossas redes sociais ou em nossas reuniões de família para percebermos que mesmo entre pessoas que não dedicam suas vidas a estudar a política este tema está presente em nossos cotidianos Nesse sentido não seria difícil recordar ao menos uma discussão política que você presenciou ou da qual participou nas últimas eleições não é mesmo Se a frequência com que tratamos deste tema é alta a profundidade das argumentações envolvidas nos debates rotineiros nem sempre apresenta a mesma estatura seja em função da natureza complexa dos conceitos envol vidos ou da repulsa que não raras vezes é atribuída a este assunto De todo modo o desafio que se impõe diante desta situação exige de nós um estudo mais cuidadoso sobre as características da política em benefício de nossas conversas corriqueiras e como constataremos de uma infinidade de aspectos da vida cotidiana que se relaciona à matéria Assim um bom começo para nossa reflexão seria questionarmos se a administração pública atividade essencial da política funcionaria de modo parecido com a administração privada Administrar um Estado é uma empreitada semelhante a cuidar por exemplo de uma casa ou de uma empresa Ou existem motivações e objetivos especiais da política que tornam essa área algo diferente daquilo que fazemos em nossa vida particular Se mesmo em uma empresa a gestão dos negócios é algo diferente da política da organização seria possível tratar a qualidade das políticas públicas como sendo uma questão apenas de gestão Se queremos um país democrático basta que as coisas funcionem como previsto ou é preciso pensar em valores que devem orientar este funcionamento Ao final desta seção prezado aluno não apenas nossas frequentes conversas sobre política poderão se desenvolver do modo mais embasado mas nossas próprias percepções acerca do caráter abrangente Seção 12 24 U1 Ética e política e transformador da política em nossa realidade conferirão ao tema ares mais prazerosos e emancipadores Não pode faltar Prezado aluno você já parou para pensar sobre o porquê de vivermos em sociedade Se temos interesses afinidades e temperamentos diferentes por qual motivo decidimos passar nossas vidas sob o convívio com outras indivi dualidades tão distintas daquilo que nos constitui Com certeza muitas pessoas encontrarão sua resposta na inércia ou na ausência de alternativas viáveis se já nascemos em um ambiente coletivo tornase extremamente penoso romper com este padrão Mas o questionamento persiste o que então ocorre para que tenhamos esta origem já comunitária A percepção de que em praticamente todo o globo o ser humano se organiza em agrupa mentos sejam eles aldeias tribos ou cidades em prática que atravessa séculos e mais séculos da história humana nos sugere que possa existir algum fator intrínseco à condição humana que nos torna efetivamente seres voltados à vida em grupo Esta indagação caro aluno nos remete uma vez mais à Grécia Antiga Segundo Aristóteles 384322 aC nosso já conhecido filósofo esta recorrência humana de nos organizarmos em agrupamentos não é apenas uma coincidência ou uma casualidade mas revela a natureza social que subsiste em cada um dos indivíduos que habita este planeta De acordo com o filósofo os seres humanos apresentam limitações individuais algo compre ensível em razão de nossa condição imperfeita motivo pelo qual buscamos outros indivíduos para a satisfação de nossas necessidades em um processo de composição coletiva Em linha com esta fundamentação baseada na natureza Aristóteles afirma que a aproximação dos seres humanos se origina na busca pela reprodução em uma dinâmica também observada em outros animais Entretanto embora os demais seres também sejam dotados de voz da capacidade de emitir sons que meramente exprimem sensações de agrado ou desagrado a capacidade de formar palavras possibilitando o desenvolvimento de uma linguagem mais elaborada é particular da espécie humana permitindonos acordar e retratar o que constitui o bem e o mal o útil e o nocivo o justo e o injusto atividades basilares da vida coletiva Se as palavras são tão relevantes estudemos aquelas proferidas pelo próprio sábio grego Este comércio da palavra é o laço de toda sociedade doméstica e civil ARISTÓTELES 2006 p 5 Assim para o filósofo o ímpeto natural de perpetuação da espécie que aproxima machos e fêmeas encontraria exclusivamente nas faculdades Seção 12 Por que discutir política 25 humanas o prosseguimento deste arranjo coletivo por meio da consolidação de famílias em seguida aldeias e subsequentemente cidades O homem seria portanto um animal político isto é orientado por sua própria natureza para o desenvolvimento social e cívico em coletividades organizadas nesta condição a estruturação de sociedades não visaria apenas à sobrevivência da espécie humana mas também à promoção do bemestar compreendido igualmente como desígnio natural da essência humana Neste contexto a realização plena das faculdades humanas estaria situada justamente nesta entidade coletivamente formada necessária para o adequado florescimento da natureza política que nos distingue em contraste a eventual negativa do aspecto cívico do homem produziria segundo a perspectiva aristotélica seres detestáveis predispostos à exploração imoral dos outros e à guerra contínua Vinculando a felicidade humana ao pleno exercício desta natureza cívica Aristóteles conecta a satisfação individual ao engajamento nestes processos coletivos de busca de um bem comum diferenciando assim os habitantes dos cidadãos na medida em que estes últimos não apenas residem em sociedade organizada como os primeiros mas também atuam em prol desta concepção coletiva da existência humana A valorização e a consequente necessidade de responsabilização pelo convívio coletivo ficam explícitas nos ensinamentos do filósofo O Estado ou sociedade política é até mesmo o primeiro objeto a que se propôs a natureza O todo existe necessariamente antes da parte As sociedades domésticas e os indivíduos não são senão as partes integrantes da Cidade todas subordinadas ao corpo inteiro todas distintas por seus poderes e suas funções e todas inúteis quando desarticuladas semelhantes às mãos e aos pés que uma vez separados do corpo só conservam o nome e a aparência sem a realidade como uma mão de pedra O mesmo ocorre com os membros da Cidade nenhum pode bastarse a si mesmo Aquele que não precisa dos outros homens ou não pode resolverse a ficar com eles ou é um deus ou um bruto Assim a inclinação natural leva os homens a este gênero de sociedade ARISTÓTELES 2006 p 5 Se tomando por base a acepção aristotélica anteriormente mencionada possuímos em nossa própria natureza o impulso para a atividade política seria produtivo que nos aprofundássemos um pouco mais neste conceito para melhor compreendermos nossa relação com a realidade social que nos circunda não é mesmo 26 U1 Ética e política O termo política seguramente se insere no rol de vocábulos utilizados cotidianamente que no entanto não apresenta uma conceituação evidente ou que apresenta apenas um único sentido Nos referimos à política quando queremos identificar a atividade de governar exercida nos poderes públicos ela fez carreira na política quando classificamos as diretrizes e os princí pios de uma organização a política da companhia quando reunimos um conjunto de medidas afeitas a um setor a política ambiental do governo e mesmo quando queremos adjetivar algo como desviante das normas e procedimentos técnicos aplicáveis a um caso concreto a escolha do diretor foi política Cabenos portanto delimitar esta pluralidade de significados aplicáveis ao termo ressaltando os sentidos e conceitos que a palavra política introduz no âmbito de nosso presente estudo A raiz da palavra política encontrase no idioma grego em ta politika que exprime os afazeres típicos da condução da vida coletiva da polis a cidadeEstado da antiguidade grega os quais compreendem a produção legislativa a busca pela justiça a construção da infraestrutura local entre outros Esses empreendimentos e os empregos dos termos mencionados dão ensejo às conceituações de política a que aqui visamos conforme definidas nas palavras da filósofa Marilena Chauí 1 o significado de governo entendido como direção e adminis tração do poder público sob a forma do Estado O senso comum social tende a identificar governo e Estado mas governo e Estado são diferentes pois o primeiro diz respeito a programas e projetos que uma parte da sociedade propõe para o todo que a compõe enquanto o segundo é formado por um conjunto de instituições permanentes que permitem a ação dos governos 2 o significado de atividade realizada por especialistas os administradores e profissionais os políticos pertencentes a um certo tipo de organização sociopolítica os partidos que disputam o direito de governar ocupando cargos e postos no Estado Neste segundo sentido a política aparece como algo distante da sociedade uma vez que é atividade de especialistas e profissionais que se ocupam exclusivamente com o Estado e o poder A política é feita por eles e não por nós ainda que eles se apresentem como representantes nossos 3 o significado derivado do segundo sentido de conduta duvidosa não muito confiável um tanto secreta cheia de interesses particulares dissimulados e frequentemente contrá rios aos interesses gerais da sociedade e obtidos por meios Seção 12 Por que discutir política 27 ilícitos ou ilegítimos Este terceiro significado é o mais corrente para o senso comum social e resulta numa visão pejorativa da política Esta aparece como um poder distante de nós passase no governo ou no Estado exercido por pessoas diferentes de nós os administradores e profissionais da política através de práticas secretas que beneficiam quem as exerce e prejudicam o restante da sociedade CHAUI 2000 p 476 grifo nosso Repare caro aluno que as definições levantadas pela professora revelam aparentes contrariedades entre si uma vez que ora classificam a dinâmica política como sendo de interesse amplo da coletividade e assim de valor elevado ora situam a política em uma redoma especializada distante da vida ordinária do homem médio e eventualmente contrário a suas aspirações Longe de constituir um descuido ou uma fragilidade conceitual esta classificação tem por objetivo evidenciar o que a filósofa classifica de paradoxo da política obrigandonos a questionar certas percepções corriqueiras sobre o tema e redefinir o lugar da política em nossa vida cotidiana As potenciais contrariedades existentes neste paradoxo seriam reduzidas se compreendermos a política em sintonia com a ideia aristo télica de animal político reforçando que o desenvolvimento integral das faculdades individuais exige o reconhecimento dos vínculos sociais existentes em uma coletividade desse modo esta frequente percepção de que a política é algo estranho ou mesmo contrário ao desenvolvimento pessoal de cada ser humano não teria o acolhimento que infelizmente ainda recebe em nossa sociedade De acordo com a professora Chaui é fundamental ressaltar o potencial que a política nos fornece para o ajuste de visões conflitantes e opiniões diversas sem que seja necessário recor rermos a confrontos abertos por meio do uso da força assim traduzindo o modo pelo qual os humanos regulam e ordenam seus interesses confli tantes seus direitos e obrigações enquanto seres sociais Como explicar então que a política seja percebida como distante maléfica e violenta CHAUI 2000 p 478 Adicionalmente na condição de campo de deliberação para a busca do bem comum não haveria fundamento relevante para compreender a política como fardo a ser encarado por cada indivíduo Se é verdade que o desgaste gerado pelos desvios do interesse público tornase cotidianamente presente em nossas percepções sob a forma de notícias de corrupção carência de serviços públicos ou disputas partidá rias improdutivas o combate a tais deturpações se encontra justamente no reforço da consciência política e não em sua recusa 28 U1 Ética e política Pesquise mais Apolitismo O desinteresse do cidadão em participar das discussões relacionadas à vida coletiva é algo que diz respeito unicamente ao indivíduo ou apresenta consequências amplas A abstenção da participação política é uma prerrogativa da democracia ou uma ameaça à democracia Essas questões são trabalhadas de modo enriquecedor pelo filósofo francês Francis Wolff na entrevista Desinteresse por política ameaça a democracia 2012 concedida ao Senado Notícias O aumento do interesse nos assuntos comunitários e do sentimento de pertencimento a um grupo social amplo eleva o zelo e a responsabilidade sobre a condução da política permitindonos perceber que os diversos domínios de nosso cotidiano estão sujeitos a considerações políticas seja em função da existência de leis e regulamentos aplicáveis a um tema ou da atuação direta do Estado De modo semelhante nosso trabalho nosso lazer nossos costumes e hábitos consolidam práticas sociais que conferem ao funcionamento coletivo certas especificidades que acabam por influenciar na organização política Exemplificando A política espelhando o costume Tradicionalmente os cidadãos tendem a orientar suas atitudes diárias em conformidade com o que estipula a lei seja por convicção de que a norma determina uma conduta desejável pelo sentimento de pertenci mento a uma sociedade ou apenas pelo receio de eventuais sanções que o descumprimento de uma regra pode gerar os indivíduos mostramse em linhas gerais dispostos a aceitar o que manda a norma Esta relação todavia existe também no sentido oposto já que não são raras as vezes em que são justamente os hábitos de conduta popular os fundamentos para a edição de uma lei Leia a reportagem a seguir e veja como este processo pode ser importante para nossa vida em sociedade Rio de Janeiro é primeira capital brasileira a proibir canudos plásticos A decisão vai ao encontro de um crescente movimento global de combate ao lixo plástico um dos principais vilões da poluição marinha Por Vanessa Barbosa São Paulo O Rio de Janeiro é a primeira capital brasileira a banir o uso de canudos plásticos em quiosques bares e restaurantes O prefeito da cidade Marcelo Crivella sancionou o projeto de lei Seção 12 Por que discutir política 29 que proíbe a distribuição de canudinhos plásticos em estabeleci mentos alimentícios A medida foi publicada no Diário Oficial da cidade do Rio nesta quintafeira 5 O projeto havia sido aprovado na Câmara Municipal no mês passado Ainda falta determinar o prazo para a entrada em vigor da medida De autoria do vereador Jairinho MDB o projeto estipula multa de até R 3 mil aos estabelecimentos que descumprirem a lei valor que pode ser multiplicado em caso de reincidência Ao invés do plástico o projeto determina o uso de canudos feitos de materiais biodegradáveis Segundo seu artigo primeiro a lei sancionada obriga os restau rantes lanchonetes bares e similares barracas de praia e vendedores ambulantes do Município do Rio de Janeiro a usar e fornecer a seus clientes apenas canudos de papel biodegradável eou reciclável indivi dualmente e hermeticamente embalados com material semelhante Centenas de milhares de cariocas apoiaram a causa por meio de uma petição online criada pela ONG Meu Rio apoiadora do projeto No mês passado o governador do Estado do Rio Luiz Fernando Pezão também sancionou uma lei que proíbe estabelecimentos comer ciais como supermercados de distribuir sacolas feitas com plásticos derivados de petróleo e que entrará em vigor em 18 meses Antes do Rio o município de Cotia em São Paulo foi a primeira cidade brasileira a proibir a venda e distribuição de canudos plásticos A lei sancionada no mês de junho obriga restaurantes lanchonetes bares e vendedores ambulantes a usarem e fornecerem a seus clientes somente canudos de papel biodegradável e ou reciclável As decisões vão ao encontro de um crescente movimento global de combate ao lixo plástico um dos principais vilões da poluição marinha Segundo a ONU ao menos 50 países têm propostas nessa seara BARBOSA 2018 s p grifo nosso Justamente por se tratar de uma atividade potencialmente ampla cujas intersecções abrangem todas as áreas de nossa vida rotineira o exercício efetivo da administração pública pode apresentar significativa diferença no alcance da intervenção estatal definindo variados sistemas políticos perce bidos ao longo da história O exercício de pensar sobre quais devem ser as funções do Estado pode ser beneficiado pela percepção oposta imaginando como seriam as relações humanas sem esta organização política em uma conjuntura na qual cada homem atua isoladamente o denominado Estado de Natureza Para o filósofo inglês Thomas Hobbes 15881679 esta situação resultaria em um 30 U1 Ética e política conflito permanente uma vez que cada indivíduo temendo por sua vida desenvolveria métodos para se proteger estimulando que os demais também ampliem seu poderio a inexistência de garantias de proteção tornaria o medo uma constante da existência humana já que os indivíduos constituiriam ameaças uns aos outros conforme ilustra a famosa ideia de que o homem é o lobo do homem Nesta situação seria razoável que os homens acordassem em abrir mão de parte de suas liberdades individuais para coletivamente estabelecer uma autoridade superior capaz de assegurar a paz tratase da formação do Estado soberano ao qual os súditos cederiam seu poder A metáfora estabelecida por Hobbes para o produto deste pacto social é a do Leviatã gigantesco monstro bíblico o que reflete a concepção de poder absoluto que o Estado assumiria nesta sua prerrogativa de manutenção da ordem Assim neste sistema político seria legítimo que o ente soberano concentrasse o poder de intervir sem responsabilizações em quaisquer dos domínios da vida coletiva ou de seus súditos conforme efetivamente se observou nos modelos de monarquia absolutista contemporâneos deste pensador inglês Segundo Hobbes esta concentração de poder se legitimaria pelo seguinte argumento Visto que o fim dessa instituição é a paz e a defesa de todos e visto que quem tem direito a um fim tem direito aos meios constitui direito de qualquer homem ou assembleia que detenha a soberania o de ser juiz tanto dos meios para a paz e a defesa como de tudo o que possa perturbar ou dificultar estas últimas E o de fazer tudo o que considere necessário ser feito tanto antecipadamente para a preservação da paz e da segurança mediante a prevenção da discórdia no interior e da hostilidade vinda do exterior quanto também depois de perdidas a paz e a segurança para a recuperação de ambas HOBBES 1983 p 109 Assimile Leviatã Repare em algumas das descrições atribuídas ao monstro Leviatã extra ídas do Capítulo 41 do Livro de Jó do Antigo Testamento da Bíblia cristã a fim de compreender a magnitude do poder do Estado hobbesiano 14 Quem abriria as portas do seu rosto Pois em redor dos seus dentes está o terror 15 As suas fortes escamas são excelentíssimas cada uma fechada como com selo apertado Seção 12 Por que discutir política 31 19 Da sua boca saem tochas faíscas de fogo arrebentam dela 20 Das suas narinas procede fumaça como de uma panela fervente ou de juncos ardentes 21 O seu hálito faria inflamar os carvões e da sua boca sai chama 22 No seu pescoço reside a força perante ele até a tristeza salta de prazer 23 Os músculos da sua carne estão pegados entre si cada um está firme nele e nenhum se move 24 O seu coração é firme como uma pedra e firme como parte da mó de baixo 25 Levantandose ele tremem os valentes em razão dos seus abalos se purificam 26 Se alguém lhe tocar com a espada essa não poderá penetrar nem lança dardo ou arpão 33 Na terra não há coisa que se lhe possa comparar pois foi feito para estar sem pavor 34 Todo o alto vê é rei sobre todos os filhos de animais altivos BÍBLIA SAGRADA 2015 p 869870 No século XVIII entretanto a forte conexão entre o poder do monarca absolutista com as prerrogativas do Estado passa a ser questionada sobre tudo à medida que o crescimento econômico da burguesia europeia se avoluma demandando a equivalente ampliação de direitos civis e políticos desta importante camada social O poder concentrado do soberano neste contexto passa a ser compreendido como uma afronta à liberdade indivi dual e o estabelecimento de limites à intervenção do Estado nas vidas privada e coletiva passa a ser defendido com mais vigor Em linhas gerais este liberalismo político reduz as funções do Estado de modo a classificálo como Estado mínimo ou Estado de polícia concen trando a atuação pública na proteção das garantias individuais como o direito à propriedade privada na manutenção da ordem social e na defesa frente a ameaças externas A aplicação prática desta nova mentalidade se desenvolve por meio da imposição de constituições às quais os monarcas deveriam se subordinar nas chamadas monarquias constitucionais da emergência de estruturas republicanas a exemplo dos Estados Unidos da América e sob a influência de John Locke 16321704 da lógica de separação dos poderes nas quais a existência de entes distintos passa a constituir importante instru mento de contenção do poder do soberano 32 U1 Ética e política Reflita No Brasil o Princípio da Separação de Poderes encontrase inscrito na Constituição Federal de 1988 conforme estipula o Artigo 2º São Poderes da União independentes e harmônicos entre si o Legislativo o Executivo e o Judiciário BRASIL 1988 Esta disposição constitucional é fundamental para que os poderes constituídos tenham a liberdade para realizar suas tarefas de modo autônomo independentes e também para que exerçam a função de supervisionar as atividades uns dos outros com o objetivo de evitar que quaisquer deles cometam irregularidades em um denominado sistema de freios e contrapesos harmônicos Você saberia identificar casos da realidade política brasileira em que um poder teve a prerrogativa de influenciar na ação de outro seja para validála ou para contestála Esta perspectiva preponderantemente individualista do Estado liberal foi fundamental para a valorização da liberdade humana e para o fortalecimento do progresso econômico e científico estimulado por exemplo pela livre iniciativa todavia a existência de oportunidades e condições distintas para o progresso individual e para o exercício destas liberdades pessoais em um ambiente de contração dos vínculos solidários e coletivos da sociedade deu margem à ampliação de injustiças sociais fazendo com que grande parcela das populações nacionais se visse excluída dos benefícios do progresso A reação a este processo excludente manifestase já no fim do século XIX e começo do XX pela retomada de concepções políticas favoráveis à maior atuação Estatal focada neste momento na solução de graves problemas sociais como a fome e o desemprego Nas experiências socialistas obser vadas sobretudo na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e em países do leste europeu o Estado assumiria a tarefa de reverter privilégios concen trados por certas classes sociais defendendo a expansão do controle estatal sobre os meios de produção e a subsequente redistribuição das riquezas de modo mais igualitário e teria como contrapartida a supressão de ideias de livre iniciativa e outras liberdades da concepção liberal O modelo de Estado de bemestar social por sua vez defenderia a intervenção estatal não como detentora dos meios de produção mas preponderantemente reconhecendo as funções de regulação e estímulo que a atividade estatal pode exercer na dinâmica econômica e na prestação de serviços públicos conciliando interesses privados e públicos a exemplo do que se observou na presidência de Franklin Delano Roosevelt 18821945 nos Estados Unidos nos anos de 1930 e 1940 Seção 12 Por que discutir política 33 Reflita O véu da ignorância Resumidamente a maior ingerência do Estado nos setores da vida cotidiana por meio por exemplo da prestação de serviços públicos gratuitos ou a preços módicos eleva os custos do governo que frequentemente passam a ser compensados por maiores impostos cobrados da coletividade Imagine caro aluno que você seja muito mais rico do que na situação financeira em que agora se encontra e portanto capaz de pagar por todos os serviços que utiliza você seria favorável ao aumento da tribu tação para compensar estes gastos governamentais que você sequer utiliza Agora em sentido inverso imaginese muito pobre dependendo quase que integralmente destes serviços públicos a sua opinião anterior sobre a justiça na concessão destes serviços seria mantida ou esta nova situação alteraria seu posicionamento Não seria interessante considerarmos a justiça destas prestações gover namentais de modo independente de onde atualmente nos encon tramos Esse é o propósito do filósofo John Rawls em sua teoria do véu da ignorância explicada no vídeo O que é um bom começo 2015 da Universidade de Harvard 15 O QUE é um bom começo Sl Harvard University 15 nov 2015 Postado pelo canal Fundação Ivete Vargas 1 vídeo 25min42s Já nas últimas três décadas do século XX entretanto a compreensão da importância das intervenções estatais nos sistemas políticos volta a oscilar em direção aos preceitos do liberalismo Os avanços tecnológicos o desen volvimento de mercados financeiros e o fracasso de experiências de orien tação socialista podem ser citados como fatores que conferem à atuação do Estado a classificação de obstáculo à lucratividade e ao aspecto global e dinâmico do capitalismo contemporâneo Sob tal perspectiva neoliberal a atuação de agentes privados seria mais eficiente do que intervenções estatais nos setores da economia justificando o estabelecimento de microestados cuja função seria apenas garantir o funcionamento do livre mercado no qual as interações privadas acontecem Pesquise mais Os exemplos de que a defesa ou a rejeição da intervenção estatal em setores da vida social são influenciadas por ideologias ou movimentos políticos contemporâneos são fatos na história Mas os países poderiam sugerir práticas diferentes daquelas que usaram com o objetivo de 34 U1 Ética e política esconder o caminho que percorreram até se tornarem ricos Seria possível que um país por exemplo investisse diretamente em setores da economia intercedesse nas relações de trabalho e depois de atingir um patamar elevado de desenvolvimento recomendasse que os demais países fizessem justamente o contrário do que fez Essa é a tese do economista HaJoon Chang no livro CHANG HaJoon Chutando a escada a estratégia do desenvolvimento em perspectiva histórica São Paulo Editora Unesp 2003 Recomendamos em especial a leitura do trecho entre as páginas 11 e 28 Note caro aluno que essas variações nos fundamentos e nas consequ ências da atuação estatal apresentam fortes vínculos com a capacidade de exercício dos direitos e das garantias individuais e coletivas exercendo portanto influência na afirmação do caráter democrático de uma sociedade Todavia a classificação de um ambiente democrático não é exclusiva de um ou outro nível de intervenção estatal mas exige uma composição de procedi mentos que ora se baseia na abstenção do Estado de determinados atos ora requer uma prestação de serviço público a depender do preceito democrá tico protegido A democracia ou o governo do povo em grego antigo pressupõe um regime político no qual a condução dos afazeres da sociedade é definida pelos cidadãos agindo diretamente neste processo de tomada de decisões ou por meio de representantes eleitos para tal finalidade assim o estabelecimento de processos eleitorais regulares de mecanismos de participação popular de partidos políticos e da observância da vontade majoritária são certamente requisitos fundamentais para uma democracia Entretanto a democracia não consiste apenas nestas participações e representações mas de acordo com conceituações contemporâneas engloba também aspectos substantivos das condições de vida experimentadas pelos cidadãos incluindo variáveis como o bemestar humano a preservação do sentimento de segurança a proteção de minorias e a capacidade de resolução de conflitos de uma sociedade Desse modo a criação de direitos e a viabilização de meios efetivos para o exercício destas prerrogativas também são elementos indispensáveis a uma democracia exigindo que em certas situações o Estado tenha uma conduta negativa abstendose de interferir na vida cotidiana dos cidadãos em benefício por exemplo de seu direito à propriedade à liberdade de culto e de expressão em outros casos é justamente pela intervenção do Estado que os princípios democráticos são respeitados ao propiciar condições mínimas de saúde e educação ao promover a inclusão de grupos marginalizados entre outros De modo semelhante a negação extrema da democracia a ditadura pode ser fortalecida pela execução arbitrária de atos do poder público como Seção 12 Por que discutir política 35 o cerceamento de direitos políticos dos cidadãos ou da inércia do Estado em assegurar condições básicas da dignidade humana permitindo por exemplo o extermínio de grupos sociais minoritários Diante das múltiplas potencialidades que o estudo da política nos fornece abordando nossa essência enquanto seres humanos nossos hábitos e afazeres cotidianos e orientando o desfrute efetivo dos direitos elementares de um Estado democrático parecenos que a discussão política constitui recurso de valor inestimável para a compreensão de nossa realidade e de nossa própria existência em sociedade Sem medo de errar Munidos dos conhecimentos que adquirimos nesta seção seria interes sante retornarmos às questões que deram início ao nosso estudo afinal política é sinônimo de administração ou gestão A política é apenas mais um dos ambientes em que devemos estabelecer regras de organização e convivência ou suas particularidades a colocam em um patamar diferenciado de importância Se conforme nos orientou Aristóteles existem elementos característicos de nossa natureza humana que diferentemente de outros seres vivos nos fazem insistir na vida em coletividade seria razoável encontrarmos na esfera política um valor maior do que em outros núcleos de nossa existência cotidiana não é mesmo Se somos animais políticos e não animais domésticos ou animais corporativos é porque é justamente na condução das atividades típicas da existência em sociedade que o homem encontra lugar para dar vazão a suas mais elevadas potencialidades Assim a política deve considerar valores e formas práticas de implementar estes valores em nossa realidade que são específicas de sua área de atuação exigindo do Estado um funcionamento diferente de outras organizações sociais menos abrangentes como domicílios e empresas privadas Muito embora a atuação do Estado tenha sido interpretada de diferentes maneiras ao longo da história em sintonia com diferentes movimentos e ideologias sociais vigentes é preciso reconhecer que estes diversos sistemas políticos já observados conferem ao Estado uma posição particular na organização das dinâmicas sociais Mesmo quando se pretende reduzir a intervenção estatal ao mínimo possível estas atividades que ainda assim permanecem sob domínio do Estado garantir direitos por exemplo traduzem a essência da vida política que não encontra contrapartidas nas formas de organização privada 36 U1 Ética e política Neste mesmo sentido os processos coletivos de definição da maior ou menor atuação estatal são também essencialmente políticos assim ainda quando se pretende defender a valorização do âmbito privado da vida dos indivíduos este posicionamento só terá relevância social se obtiver força política algo que demonstra a amplitude e a importância deste campo Por tratar de valores sociais definindo quais são os princípios mais importantes de uma coletividade e como aplicálos a atividade política não se restringe apenas à gestão técnica da administração pública Se bem verdade que o estabelecimento de um conjunto de mecanismos e proce dimentos práticos pode ser fundamental para a condução dos serviços públicos a formação de convicções mais amplas que servem de orientação a uma sociedade a democracia ou a dignidade da pessoa humana por exemplo asseguram que a política seja algo mais do que a simples opera cionalização da vida em grupo mas sim uma forma da sociedade expressar seus ideais mais fundamentais Desse modo prezado aluno mais do que uma necessidade prática das discussões familiares às decisões eleitorais o estudo da política é algo que nos qualifica enquanto seres humanos e define a essência da sociedade que queremos formar Faça valer a pena 1 Leia o trecho a seguir O Estado com um mínimo de interferência na vida social trouxe de início alguns inegáveis benefícios houve progresso econômico acentuado criandose condições para a revolução industrial o foi valorizado desper tandose a consciência para a liberdade humana Mas em sentido contrário impedindo o Estado de proteger os menos afortunados foi a causa de uma crescente DALLARI 1982 p 244 Os termos que preenchem corretamente as lacunas 1 2 e 3 são respectivamente a liberal indivíduo injustiça social b socialista coletivo injustiça social c hobbesiano indivíduo violência d do bemestar social coletivo violência e neoliberal intervencionismo liberdade econômica Seção 12 Por que discutir política 37 A célebre afirmação de Aristóteles de que o homem é pela sua própria natureza um ser político significa como tivemos ocasião de salientar que o indivíduo somente encontra condi ções apropriadas para atingir um nível de desenvolvimento integral de sua personalidade quando convive com outros seres humanos numa comunidade organizada regida por normas gerais de comportamento COMPARATO 2016 p 588 Assinale a alternativa correta sobre o pensamento aristotélico estudado nesta seção e mencionado no textobase a Dizer que o homem é um animal político é o mesmo que dizer que o homem estabelece vínculos políticos entre si e também com outras espécies de animais b A capacidade humana de formar vínculos sociais é algo que segundo Aristóteles tem impactos não apenas na organização das comunidades mas também interfere na própria realização pessoal buscada por cada indivíduo c A política para Aristóteles serve apenas para garantir a sobrevivência dos homens e nada mais d Na concepção aristotélica os homens considerados individualmente são muito mais importantes do que a coletividade e Apesar de considerar o homem um animal político Aristóteles não vê problemas no homem que nega sua natureza cívica optando por exemplo por um completo isolamento 3 Leia o excerto a seguir Dizemos que uma sociedade e não um simples regime de governo é democrática quando além de eleições partidos políticos divisão dos três poderes da república respeito à vontade da maioria e das minorias institui algo mais profundo que é condição do próprio regime político ou seja quando institui direitos CHAUI 2000 p 559 A partir da concepção de democracia apresentada por Marilena Chaui analise as afirma tivas a seguir bem como a relação sugerida entre elas e assinale a alternativa correta I A promoção de políticas afirmativas por meio da criação de cotas fortalece a percepção contemporânea de democracia no Brasil PORQUE 2 Leia o trecho a seguir 38 U1 Ética e política II As cotas servem de estímulo para que alguns setores da sociedade brasileira tenham condições reais de exercer direitos previstos em lei a exemplo da educação a As afirmativas I e II são verdadeiras mas não mantêm relação lógica entre si b As afirmativas I e II são verdadeiras e a afirmativa I é uma justificativa da afirma tiva II c As afirmativas I e II são verdadeiras e a afirmativa II é uma justificativa da afirma tiva I d A afirmativa I é verdadeira e a afirmativa II é falsa e A afirmativa II é verdadeira e a afirmativa I é falsa Seção 13 É possível ser ético no mundo contemporâneo 39 É possível ser ético no mundo contemporâneo Diálogo aberto Prezado aluno não é preciso ser muito atento à realidade brasileira para perceber que o sucesso profissional a plena satisfação pessoal a segurança financeira e a capacidade de vivenciar em total liberdade tudo aquilo que valorizamos constituem objetivos difíceis de serem alcançados não é mesmo Vivemos em um mundo repleto de obstáculos e hostilidades para que sigamos os caminhos que estabelecemos em nosso desenvolvimento pessoal Sendo assim diante de uma infinidade de dificuldades que a vida contem porânea nos impõe e que não foram criadas por nós mesmos mas pela forma como a sociedade decidiu se organizar seria razoável que fossemos cobrados por ter um comportamento que valorizasse a manutenção e a articulação dos vínculos sociais Ou o mundo contemporâneo exige que cuidemos exclusivamente de nossas próprias vidas exercendo o que melhor nos cabe fazer para nós mesmos sem que sejamos responsabilizados por problemas e situações que fogem da nossa alçada particular Se a competição para obter uma vaga na faculdade e depois um emprego satisfatório é intensa devo pensar no que é bom para a sociedade ou apenas assegurar meu crescimento pessoal Se não determino diretamente os rumos da sociedade por que deveria assumir a responsabilidade de alertar para os erros que eventualmente a coletividade produzir Se os padrões de felici dade individual apresentam efeitos colaterais nocivos cabe ao indivíduo questionar esses padrões Em síntese é possível manter nos dias de hoje condutas voltadas ao desen volvimento da sociedade ou a realidade contemporânea exige que o indivíduo abandone perspectivas coletivas em benefício de seus ganhos individuais As respostas a essas perguntas exigirão a análise de alguns elementos de nosso regime econômico investigando preceitos do sistema capitalista bem como demandarão reflexões sobre o que podemos entender por liberdade e responsabilidade nos tempos atuais Ainda será interessante investigar como os padrões de consumo vigentes se relacionam com o ambiente em que vivemos e como esse mesmo ambiente se depara com novas possibilidades de intervenção humana em seu funcionamento Seção 13 40 U1 Ética e política Não pode faltar Prezado aluno alguns temas relacionados à vida e à organização coletiva tendem a levantar acaloradas polêmicas em nossas discussões de rotina e mesmo nos mais elevados níveis de debates acadêmicos e políticos o sistema capitalista seguramente está incluído nessa lista Sobretudo em momentos de crise econômica ou política costumamos ouvir que certos problemas são resultados de um regime capitalista desumano ou ao contrário que são as tentativas de limitar o funcionamento capitalista as causas dos problemas brasileiros De qualquer forma qualquer análise séria sobre o Brasil tende a incluir o país na relação de países capitalistas Quando falamos de capitalismo temos que reconhecer que esse sistema econômico político e social se apresentou de diferentes formas desde suas primeiras manifestações ainda de modo incompleto na Europa Ocidental do século XVIII até se tornar o regime predominante no mundo atual e aplicado em nosso país Existem entretanto algumas características básicas do capitalismo que são fundamentais para a definição desse sistema conforme veremos a seguir Inicialmente constatamos que um regime capitalista apresenta o mercado como forma de produção e distribuição de bens e serviços e que compra dores e vendedores interagem nesse regime para satisfazer suas necessidades Adicionalmente a existência da propriedade privada é elemento essencial do capitalismo existindo uma série de direitos para assegurar que alguém detenha o domínio exclusivo sobre alguma coisa Além disso o capitalismo exige que uma parte da população venda a sua força de trabalho nesse mercado para obter seu sustento Por fim podemos identificar como quarto elemento do capitalismo o comportamento individualista dos agentes econômicos compradores e vendedores algo que merece atenção especial em nosso estudo uma vez que como vimos ética e política nossos objetos de estudo são conceitos coletivos por natureza Assimile Individualismo liberal Nas ciências humanas é particularmente importante reconhecer que os conceitos não surgem ou perdem a validade instantaneamente mas se inserem em processos coletivos de fortalecimento de ideias e concep ções relacionadas a dinâmicas sociais vigentes em um tempo e espaço Assim o individualismo de que tratamos aqui deve ser compreendido no contexto mais amplo do século XVIII de questionamento do modelo político do Absolutismo regime caracterizado majoritariamente pela extrema concentração de poder nas mãos de um monarca Essa organi Seção 13 É possível ser ético no mundo contemporâneo 41 zação política reduzia a liberdade de ação dos indivíduos uma vez que homens e mulheres estavam sujeitos às determinações reais que não raras vezes se mostravam abusivas se comparadas às prerrogativas que temos na atualidade A reação a esse cerceamento à liberdade individual se apresentou nessa situação por meio do Liberalismo movimento que pregava o respeito e o fortalecimento de direitos e garantias individuais contra essa alegada opressão absolutista Essa é a raiz do individualismo que caracteriza o Estado e a economia liberais em um processo legítimo e compreensível de afirmação das potencialidades pessoais O aspecto individualista do capitalismo foi ressaltado em suas origens por Adam Smith 17231790 um dos autores clássicos do pensamento econômico Smith argumentou que a prosperidade econômica é funda mental para a busca da felicidade humana e deve portanto constituir o objetivo principal das sociedades e dos homens que as governam Esse nível de produção mais elevado a que se refere o autor não seria resultante da benevolência ou solidariedade dos indivíduos mas ao contrário da busca de cada um por sua própria felicidade Existindo diferentes tarefas necessárias à vida coletiva Smith defende que cada indivíduo se especialize naquilo que lhe seja mais vantajoso que lhe traga mais resultados individuais já que esse comportamento egoísta de cada pessoa faz com que os indivíduos troquem entre si o que produzem e não consomem levando à maior prosperidade econômica e à maior satis fação da sociedade inteira Esse equilíbrio de egoísmos de Adam Smith pode ser ilustrado por sua famosa afirmação de que não é da benevolência do açougueiro do cervejeiro ou do padeiro que esperamos obter o nosso jantar mas da atenção que eles dispensam ao seu próprio interesse Nós apelamos não ao seu sentimento humanitário mas ao seu egoísmo e nunca lhes falamos de nossas necessidades mas dos seus próprios proveitos SMITH 1996 p 74 apud COMPARATO 2016 p 289 Reflita Competição versus coordenação A competição entre os agentes garante ao vencedor sempre o melhor resultado possível Ou a coordenação entre os indivíduos pode levar a soluções mais proveitosas a todos eles 42 U1 Ética e política O matemático norteamericano John Nash 19282015 investigou essas questões para aprofundar o conhecimento sobre a Teoria dos Jogos ramo da matemática que analisa escolhas e resultados estratégicos na interação entre agentes distintos Assista ao filme Uma mente brilhante cinebiografia de Nash e veja como essa lógica é aplicável tanto em complexas discussões políticas quanto em um contexto informal como a paquera em um bar Reflita sobre a utilidade dos argumentos explicitados no filme em relação a temas importantes de nossa atualidade UMA MENTE brilhante Direção Ron Howard Produção Brian Grazer Ron Howard Intérpretes Russel Crowe Ed Harris Jennifer Connelly Roteiro Akiva Goldsman Sl Universal Pictures DreamWorks 2001 135min son color 35 mm Já no século XX consolidada a Revolução Industrial e fortalecido o modo de produção baseado na divisão do trabalho esse vínculo entre o sistema capitalista e o comportamento individualista recebe grande ênfase também no pensamento do economista e filósofo britânico Friedrich August von Hayek 18991992 Segundo Hayek a inexistência de barreiras aos empre endimentos individuais tornase condição fundamental para a satisfação dos gostos inclinações e desejos dos homens algo que só pode ser obtido por meio da competição O ambiente social teria a função em linhas gerais de apenas estabelecer alguns limites para que os indivíduos possam buscar seus próprios valores e preferências sem que existisse segundo o autor princí pios amplos compartilhados pela coletividade Assim defende Hayek São esses reconhecimentos do indivíduo como juiz supremo dos seus próprios objetivos e a crença de que suas ideias deveriam governarlhe tanto quanto possível a conduta que formam a essência da atitude individualista HAYEK 1977 p 56 fazendo com que a consciência individual seja a única orien tação da atividade humana Pesquise mais A ética e o espírito Uma das referências clássicas sobre a relação entre o sistema capitalista e o comportamento individualista se encontra na obra A ética protes tante e o espírito do capitalismo de Max Weber 18641920 Nesse livro o intelectual alemão identifica na religião protestante estímulos à doutrinação e à salvação individuais que seriam importantes para que os preceitos do capitalismo se desenvolvessem WEBER M A ética protestante e o espírito do capitalismo São Paulo Companhia das Letras 2004 Seção 13 É possível ser ético no mundo contemporâneo 43 Em termos práticos portanto o individualismo sintetizado por esses dois autores representativos da economia capitalista nos sugere que devemos nos preocupar apenas com nossos próprios interesses pessoais uma vez que não existiriam referências externas para guiar nosso comportamento cotidiano e que os arranjos sociais mais satisfatórios nada mais seriam do que a soma dessas buscas pessoais Essa perspectiva popularmente resumida na frase cada um cuida da sua vida reduziria a importância e a aplicabilidade de orientações coletivas para a compreensão e a melhoria de nossa sociedade a exemplo da ética e da política Entretanto a análise mais aprofundada desses argumentos e da própria realidade em que vivemos levanta limites para a classificação do individualismo como fator exclusivo da ação e da organi zação humanas conforme veremos a seguir De imediato podemos perceber que a competição individualista tende a apresentar profundos efeitos sociais negativos Se é verdade que a disputa entre pessoas ou companhias pode levar à constante inovação e à consoli dação de métodos e práticas mais eficientes não podemos deixar de focar também naqueles que não obtêm êxito no processo de competição Nesse contexto tornase pertinente a ponderação feita pelo economista Paul Singer 19321918 A apologia da competição chama a atenção apenas para os vencedores a sina dos perdedores fica na penumbra O que acontece com os empresários e empregados das empresas que quebram E com os pretendentes que não conseguem emprego Ou com os vestibulandos que não entram na universidade Em tese devem continuar tentando competir para ver se se saem melhor da próxima vez Mas na economia capitalista os ganha dores acumulam vantagens e os perdedores acumulam desvan tagens nas competições futuras Empresários falidos não têm mais capital próprio e os bancos lhes negam crédito exatamente porque já fracassaram uma vez Pretendentes a emprego que ficaram muito tempo desempregados têm menos chance de serem aceitos assim como os que são mais idosos Os repro vados em vestibular precisariam se preparar melhor mas como já gastaram seu dinheiro fazendo cursinho a probabilidade de que o consigam é cada vez menor Tudo isso explica por que o capitalismo produz desigualdade crescente verdadeira polarização entre ganhadores e perde dores Vantagens e desvantagens são legadas de pais para filhos e para netos Os descendentes dos que acumularam capital ou prestígio profissional artístico etc entram na competição econômica com nítida vantagem em relação aos descendentes 44 U1 Ética e política dos que se arruinaram empobreceram e foram socialmente excluídos O que acaba produzindo sociedades profundamente desiguais SINGER 2002 p 89 A valorização exagerada do individualismo e a consequente negação dos vínculos coletivos do ser humano despreza o surgimento de problemas generalizados que dificultam o funcionamento da sociedade e assim afetam todos os indivíduos ainda que em diferentes graus O desemprego a desigualdade social e a violência por exemplo são problemas sociais que podem estar vinculados aos efeitos nocivos de uma competição individu alista extrema exigindo novas formas de se pensar nossa realidade que incluam considerações de cunho coletivo Pesquise mais Estagnamos Depois de 15 anos de contínua redução a desigualdade de renda no Brasil medida em 2017 parou de cair Se a população brasileira fosse de 100 habitantes o cidadão mais rico teria uma renda 363 vezes maior do que os 50 mais pobres A diferença entre a renda de negros e brancos foi ainda mais acentuada Explore o relatório País estagnado um retrato das desigualdades brasi leiras produzido pela Oxfam Brasil e repare na gravidade de alguns dos problemas sociais existentes em nossa realidade contemporânea Figura 11 Desigualdade de renda Brasil Renda de negros e brancos e variação das proporções entre renda de negros e brancos na média geral dentro dos 50 mais pobres e dos 10 mais ricos 20162017 Renda em R Média geral 50 mais pobres 10 mais ricos Negros Brancos Negros x Brancos 57 53 72 68 11720 13754 6186 49 5723 45 938 965 658 675 2924 2729 1550 1545 2016 2017 2016 2017 2016 2017 Fonte Oxfam Brasil 2018 p 21 Seção 13 É possível ser ético no mundo contemporâneo 45 Adicionalmente passando agora o enfoque para a conduta humana é necessário reconhecer que existem fatores que condicionam o compor tamento individual que não são propriamente vinculados ao individua lismo ao autointeresse Primeiramente podemos constatar que por vezes a conduta que praticamos não visa a obter ganhos pessoais mas somos conduzidos por sentimento de solidariedade ou simpatia que justificam por exemplo doações e trabalhos voluntários Semelhantemente podemos condicionar nossa conduta por comprometimento a causas maiores sejam elas abstratas o que é considerado justo por exemplo ou concretas como a preservação de um rio específico cuja observância pode eventu almente até limitar nossos benefícios pessoais Também o estabelecimento de padrões de comportamentos sociais específicos pode incluir variáveis distintas do autointeresse na ação humana assim fazemos ou deixamos de fazer algo não pelos resultados materiais que essa atividade produzirá mas pelos efeitos de inclusão ou pertencimento sociais que a conduta origina Ainda que se possa argumentar que todas as motivações mencio nadas teriam o autointeresse como resultado final do processo mediante a satisfação individual pela conduta solidária comprometida ou inclu siva temos que reconhecer que as motivações diferem em sua essência dos ganhos econômicos e do egoísmo anteriormente mencionados Essa é a percepção do economista indiano Amartya Sen 1933 autor de importante crítica ao individualismo enquanto característica incontor nável de nosso sistema econômico De acordo com Sen a valorização daquilo que é útil racional produ tivo ou eficiente critérios importantes do regime econômico que vigora no Brasil e em grande parte do mundo não deve se desconectar daquilo que é ético Tratar a produção e a distribuição da riqueza apenas por ponderações matemáticas do que seria mais eficiente ou lucrativo ou limitar o comporta mento humano ao egoísmo individualista cada um cuidando da sua vida seria um grave mas frequente erro na compreensão do funcionamento da economia uma vez que a ética constitui qualidade fundamental para o sistema econômico reconhecida até mesmo pelos clássicos da teoria de livre mercado a exemplo do próprio Adam Smith Nesse sentido Sen identifica o estudo da ética já nos primórdios da elaboração teórica do capitalismo ao afirmar que 46 U1 Ética e política A interpretação errônea da postura complexa de Smith com respeito à motivação e aos mercados e o descaso por sua análise ética dos sentimentos e do comportamento refletem bem quanto a economia se distanciou da ética com o desenvolvi mento da economia moderna Smith de fato deixou contribui ções pioneiras ao analisar a natureza das trocas mutuamente vantajosas e o valor da divisão do trabalho e como essas contri buições são perfeitamente condizentes com o comportamento humano sem bonomia e sem ética as referências a essas partes da obra de Smith têm sido profusas e exuberantes Outras partes dos escritos de Smith sobre economia e sociedade que contêm observações sobre a miséria a necessidade de simpatia e o papel das considerações éticas no comportamento humano particu larmente o uso de normas de conduta foram relegadas a um relativo esquecimento à medida que essas próprias considera ções caíram em desuso na economia SEN 1999 p 4344 Assim percebemos que o estudo da ética não só é plenamente compatível com os padrões contemporâneos de organização política econômica e social características do regime capitalista mas também nos fornece um impor tante instrumento para aprimorar problemas sociais decorrentes desse sistema e para compreender as motivações do comportamento humano nessa realidade Uma das consequências imediatas da afirmação da ética como valor indispensável no mundo contemporâneo é a necessidade de então pensarmos como o indivíduo se insere nessa rede de relações sociais que forma nossa coletividade Em outras palavras já que o ditado popular cada um cuida da sua vida como vimos não se aplica de modo absoluto em nossa realidade contemporânea como devemos cuidar dessa relação entre o indivíduo e a sociedade Nesse estudo os ensinamentos da filósofa Hannah Arendt 19061975 mostramse extremamente enriquecedores na medida em que esse vínculo entre o ser humano e a coletividade que a cerca impõe características especí ficas ao desfrute de sua liberdade e ao exercício de sua responsabilidade Segundo Arendt em meio a esse contexto de afirmação do sistema capitalista que se prolonga dos séculos XVIII ao XX o conceito de liber dade passa a refletir valores e perspectivas liberais concentrandose em aspectos da vida privada dos seres humanos Tais objetivos privados podem ser compreendidos nas discussões do presente estudo como aquelas ativi dades voltadas à satisfação de objetivos e necessidades estritamente pessoais Seção 13 É possível ser ético no mundo contemporâneo 47 diferentes portanto de outras práticas focadas na atuação da vida pública a qual leva em conta por definição considerações que vão além dos interesses de um único indivíduo Desse modo o exercício da liberdade sob a perspectiva privada estaria vinculado à busca constante pelo acúmulo de riquezas ou ao consumo desenfreado bem como no usufruto do livre arbítrio e de direitos civis específicos da esfera particular em linha com o individualismo já mencio nado O homem passaria a reduzir sua vida a um ciclo de trabalho árduo que o permita exercer essas práticas individualistas apresentando um compor tamento automatizado e superficial no qual a exploração e a insatisfação pessoal se tornariam constantes Crítica a essa perspectiva Arendt apresenta uma compreensão da liber dade inteiramente oposta a esse modelo vinculando o conceito ao pleno exercício de práticas públicas Como os homens nascem livres para estabe lecer diversas relações entre si organizando sua vida coletiva existe uma ligação inseparável entre a liberdade e a política e o campo onde a liber dade passa a ser desenvolvida deixa de ser a esfera particular tornandose o espaço público Nas palavras da autora ação e política entre todas as capacidades e potencialidades da vida humana são as únicas coisas que não poderíamos sequer conceber sem ao menos admitir a existência da liber dade ARENDT 2005 p 191 A classificação da liberdade enquanto ação política ressalta a potência que existe nesse valor uma vez que estimula a ação conjunta que decidirá sobre coisas de interesse comum estabelecendo constantemente novas formas de construir a realidade Esses fortes vínculos estabelecidos por Hannah Arendt entre o indivíduo e a sociedade em sua compreensão da liberdade também são percebidos quando focamos outra aptidão humana a responsabilidade Assim como rejeita o isolamento individual do cada um cuida da sua vida a percepção arendtiana sobre a responsabilidade nega também a ideia frequente em nossa sociedade de que não dispomos de condições para avaliar a justiça ou injus tiça da conduta alheia ou em termos rotineiros o quem sou eu para julgar o que ele fez Se os seres humanos nascem com a capacidade de fazer reflexões existiria um comprometimento de cada indivíduo ainda que ele não seja volunta riamente assumido de estabelecer juízos e pensar a respeito dos aconteci mentos A capacidade racional e portanto a responsabilidade não seria exclusividade de filósofos ou governantes já que todos temos o potencial para pensar estabelecer juízos e lembrar dos acontecimentos passados criando uma espécie de padrão comum daquilo que aceitamos enquanto sociedade percebido por todos os indivíduos 48 U1 Ética e política Esse processo é particularmente importante na medida em que os hábitos costumes e tradições sociais se alteram com o passar do tempo exigindo justamente de nosso juízo e de nosso pensamento a responsabili dade de evitar que essas mudanças caminhem em direção à prática do mal Desse modo a realização do mal não exige necessariamente uma intenção cruel ou o objetivo proposital de praticar injustiças mas a simples negação individual de utilizar seu senso de responsabilidade pessoal de negar esse exercício de pensar sobre a correção dos acontecimentos é capaz de permitir que barbaridades aconteçam em um processo que Arendt chamou de banalidade do mal Reflita Não me importo Leia o poema Intertexto de Bertold Brecht 18981956 e reflita de que forma esse conteúdo se relaciona com as ideias de responsabilidade e banalidade do mal formuladas por Hannah Arendt INTERTEXTO Primeiro levaram os negros Mas não me importei com isso Eu não era negro Em seguida levaram alguns operários Mas não me importei com isso Eu também não era operário Depois prenderam os miseráveis Mas não me importei com isso Porque eu não sou miserável Depois agarraram uns desempregados Mas como tenho meu emprego Também não me importei Agora estão me levando Mas já é tarde Como eu não me importei com ninguém Ninguém se importa comigo BRECHT sd sp Seção 13 É possível ser ético no mundo contemporâneo 49 A renúncia ao processo individual de pensar ou a tentativa de se tornar irresponsável por um juízo crítico Quem sou eu para julgar Se fazem assim é porque deve estar certo acaba por negar a própria condição de pessoa dos seres humanos Arendt em linha com essa afirmação da autonomia no exercício do pensar critica a ideia de responsabilidade coletiva É porque todo mundo faz desse jeito já que a responsabilização coletiva impede que cada um assuma sua responsabilidade individual Os efeitos práticos do conceito de responsabilidade de Hannah Arendt são importantíssimos para reforçar a importância do estudo da ética no mundo contemporâneo visto que uma vez mais nesta seção negam o isolamento do indivíduo em relação ao grupo social do qual ele faz parte reforçando a necessidade de analisarmos as maneiras pelas quais nos inserimos na reali dade brasileira e de reconhecermos o compromisso de cada um dos indiví duos perante problemas atuais de nosso país Nesse cenário um dos desafios mais significativos e atuais percebidos pelo Brasil e profundamente relacionado ao sistema econômico vigente e às ideias de individualismo e responsabilidade trabalhadas nesta seção consiste na manutenção de uma ordem ambiental equilibrada em nosso território sobretudo em função dos padrões de consumo vigentes na socie dade contemporânea Avanços técnicos nos processos produtivos bem como inovações na organização e funcionamento de empresas podem ser identificados como fatores de ampliação da capacidade produtiva das companhias contemporâ neas ampliando a oferta de bens e serviços em nossa sociedade Do lado dos consumidores a multiplicação de necessidades materiais sejam elas reais ou imaginadas para a satisfação de uma infinidade de tarefas rotineiras bem como o significado que coletiva e individualmente damos para a aquisição de novos produtos tendem a estimular a demanda por bens e serviços em uma economia O resultado do encontro dessas duas tendências pode ser definido como o fortalecimento do consumismo Enquanto o conceito de consumo expressa majoritariamente a aquisição de um bem ou de um serviço para satisfazer uma necessidade a ideia de consumismo por sua vez revela a intensificação desse processo atingindo níveis elevados de compra que nem sempre apresentam uma utilidade real ou relevante Assim o consumismo pode ser ilustrado pela aquisição frequente de produtos desnecessários pela obtenção de bens ou serviços que simbolizam um status elevado na sociedade em que vivemos artigos de luxo por exemplo ou pela compulsão a comprar como forma de compensar algum sentimento desagradável Do lado da oferta o consumismo pode ser estimulado pelo reforço que a publicidade fornece ao prazer ou prestígio de uma compra pela criação constante de 50 U1 Ética e política novas necessidades materiais ou mesmo do sentimento de necessidade e pela produção proposital de bens com prazo reduzido de utilização que quebrarão ou se tornarão ultrapassados brevemente exigindo novas compras a chamada obsolescência programada Seja como for o comportamento consumista apresenta profundos impactos no meio ambiente em que vivemos seja porque os recursos naturais são utilizados na produção desses bens e serviços na condição de insumos do processo produtivo seja porque seu consumo produzirá resíduos ou descartes prejudiciais ao ambiente Os impactos ambien tais podem sem considerados externalidades negativas da dinâmica econômica isto é efeitos não propositais de uma atividade econômica que acabam afetando nesse caso negativamente pessoas que sequer participaram dessa atividade Assim quando uma fábrica polui o ar de uma cidade inteira ou quando nossos carros produzem fumaça que contribuem para essa poluição perce bemos uma vez mais que nosso comportamento individual não se desen volve de modo separado da vida coletiva reforçando a necessidade de mantermos padrões éticos também no que se refere aos níveis de consumo que desejamos enquanto indivíduos e sociedade A aplicação dessa ética no campo ambiental pode sugerir por exemplo a consolidação da reciclagem enquanto prática habitual no Brasil o compartilhamento de bens e serviços que reduz os custos ambientais dar carona dividir eletrodomésticos de uso esporádico entre vizinho ou familiares o estabelecimento de clubes de trocas de produtos usados ou mesmo a simples manutenção ou conserto de bens evitando novas compras Nesse mesmo sentido ética e meio ambiente apresentam importante ponto de convergência em um dos campos mais representativos da evolução tecnológica da contemporaneidade a bioética O avanço nas pesquisas científicas envolvendo campos da biologia e da medicina apresenta inegáveis benefícios para a humanidade na medida em que nos permite solucionar questões que há tempos impunham obstáculos ao desenvolvimento humano por exemplo a criação de vacinas e novos tratamentos auxilia o combate a doenças graves a melhoria no cultivo de vegetais ou na duração dos alimentos constitui um aliado no combate à fome e a compreensão da genética humana pode ajudar a prevenir frequentes problemas de saúde Entretanto o domínio de tecnologias antes inéditas amplia o potencial de intervenção do homem sobre a natureza possibilitando a realização de novas atividades cujos resultados ainda são incertos tanto do ponto de vista biológico quanto em uma perspectiva dos efeitos sobre a convivência e organização de nossas sociedades Seção 13 É possível ser ético no mundo contemporâneo 51 Exemplificando Fábrica de humanos Em 2018 veio à tona a notícia de que um cientista chinês teria alterado o DNA de alguns bebês em um processo sem precedentes na história médica de nosso planeta As polêmicas que surgiram na comunidade científica e em diversos setores de nossa sociedade evidenciam a sensi bilidade do tema provocando importantes ponderações de ordem ética conforme se constata na reportagem a seguir SCHMIDT Fabian Opinião não à edição genética de humanos Deutsche Welle 27 nov 2018 Nesse sentido é fundamental questionarmos se a modificação genética de plantas utilizadas em nossa alimentação terá impactos sobre o ecossis tema e sobre nossa saúde inexistindo até o momento uma reposta defini tiva para essa pergunta seria correto continuarmos utilizando tais técnicas Até que ponto devemos manter artificialmente a vida de um ser humano adiando a morte que certamente já teria ocorrido em condições naturais Se o aumento da expectativa de vida do homem causar pressões sobre o meio ambiente seria justo continuarmos desenvolvendo tecnologias para retardar a morte humana Seria correto clonarmos seres humanos A alteração genética de embriões determinando características físicas do bebê que vai nascer poderia aumentar o racismo em nossa sociedade Se sabemos que uma doença é incurável seria justo reduzir o sofrimento do paciente anteci pando sua morte Desse modo para além do que dispomos de tecnologia para fazer devemos manter a discussão sobre o que seria efetivamente correto fazer Assim a bioética pode ser compreendida como o campo de estudos que se utiliza de conceitos da filosofia sociologia psicologia antropologia entre outros para estabelecer juízos éticos a respeito da utilização de novas tecno logias nas áreas das ciências da vida Pesquise mais Bioética modo de usar Não são poucas as atividades nas quais a atuação profissional deve ser guiada por um código de ética Nesse contexto o surgimento de temas específicos das ciências naturais relacionados a questões essen ciais da existência humana motivou a elaboração internacional de um documento que associa a bioética às garantias fundamentais de nossas sociedades Tratase da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos 52 U1 Ética e política É importante notar que essa evolução tecnológica contemporânea não torna obsoleto o estudo da ética em nossas sociedades mas em sentido contrário cria novos questionamentos resultantes de novas práticas científicas para os quais a avaliação ética se torna indispensável Assim a título de conclusão desta seção notamos que não apenas é possível manter um comportamento ético em tempos contemporâneos como essa conduta se torna extremamente necessária para ajustarmos compreen sões tradicionais de nossa sociedade como o individualismo capitalista assegurarmos a evolução harmônica de nossa espécie respeitando nosso ambiente e nossas perspectivas científicas e solidificarmos uma inserção libertadora e responsável dos indivíduos em nossa comunidade Sem medo de errar Caro aluno se analisamos com cuidado as perguntas que deram início ao estudo desta seção constatamos que os problemas observados têm em comum o estabelecimento de uma relação de oposição de contraste entre a busca de ganhos individuais e as necessidades coletivas de uma sociedade Nesse sentido pareceria inviável que no mundo contemporâneo assumís semos individualmente um comportamento baseado na valorização dos laços sociais e no aprimoramento da vida coletiva temas essenciais à conduta ética A necessidade de progredirmos individualmente que a realidade nos UNESCO Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos Tradução de Ana Tapajós Mauro Machado do Prado Revisão de Volnei Garrafa Cátedra Unesco de Bioética da UnB Brasília DF UnB 2005 Essa ampla aplicação da bioética pode ser estudada também no livro O que é bioética no qual as autoras Débora Diniz e Dirce Guilhem elaboram de modo introdutório e didático a evolução histórica algumas teorias reflexões e utilizações do conceito de bioética DINIZ Débora GUILHEM Dirce O que é bioética São Paulo Brasiliense 2002 Nesse mesmo sentido a Revista Brasileira de Bioética nos fornece artigos relevantes e mais aprofundados sobre o tema em suas diversas manifestações UNESCO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA Revista Brasileira de Bioética Brasília DF v 14 2018 Seção 13 É possível ser ético no mundo contemporâneo 53 impõe deixaria em segundo plano nessa situação de contraste entre a pessoa e o grupo os preceitos de uma vida ética Entretanto como vimos a afirmação da esfera individual não exige neces sariamente a negação da vida coletiva e viceversa mas existem vínculos de complementaridade que possibilitam que esses dois campos se afirmem mutuamente Sob a lógica econômica do capitalismo percebemos que o individua lismo não é fator único de motivação individual por vezes é justamente a consideração de aspectos coletivos que orienta a conduta individual Ainda identificamos que o autointeresse não produz sempre o bemestar coletivo sendo necessário mais uma vez o reconhecimento de juízos éticos para que indivíduo e sociedade progridam de modo simultâneo Quando assumimos as compreensões de Hannah Arendt para os valores da liberdade e da responsabilidade também evitamos a relação de oposição entre a esfera privada e a vida pública A liberdade individual está fortemente ligada à ação pública assim como a responsabilidade individual garante o compromisso com a defesa da ética na esfera coletiva Mais uma vez indivíduo e sociedade se ligam potencializando o progresso de ambos em um mesmo tempo No contexto da preservação ambiental exemplo clássico de desafio coletivo é justamente a superação do consumismo individualista em benefício de uma ética que associa o consumo pessoal à preservação coletiva o caminho para uma relação harmônica entre as duas ordens Tal perspectiva é mantida no campo da bioética na medida em que as novas tecnologias longe de se afastarem do saber ético buscam nesse campo de estudo os parâmetros para adaptarem as inovações científicas aos valores que regem a sociedade Assim percebemos que a sustentação de uma perspectiva humanista das atividades cotidianas baseadas na ética não só demonstra que é possível ser ético no mundo contemporâneo mas que é necessário manter a ética enquanto diretriz de nossas vidas individual e coletiva 54 U1 Ética e política Com base nos estudos sobre meio ambiente e consumo assinale a alternativa correta a Consumo e consumismo são termos sinônimos b Na sociedade contemporânea o ato de comprar produtos é sempre baseado em uma necessidade real c A prática do consumo não se relaciona com a preservação do meio ambiente uma vez que esses dois campos são completamente autônomos d O consumo mais consciente representado no textobase pelos quatro erres pode ser compreendido como a afirmação da ética na relação entre consumo e meio ambiente Faça valer a pena 1 Leia o texto a seguir O consumismo e seus impactos ambientais Nossa sociedade é baseada no consumo a todo o momento somos bombardeados com propagandas de celulares câmeras roupas e vários outros bens de consumo Aprendemos desde cedo que possuir é de alguma forma ter poder O consumismo é o ato de comprar algo que você de fato não precisa somente para mostrar status ou por influência de comerciais Essa lógica consumista traz sérios problemas para o meio ambiente porque quanto mais se consome mais se produz e essa produção é feita a partir dos recursos naturais Os recursos naturais não são renováveis o petróleo é um exemplo de um recurso natural muito utilizado e que cada vez mais está se esvaindo Guerras já foram travadas por causa do petróleo Outro grande problema do consumismo é o lixo eletrônico O lixo eletrônico é o nome que se dá para o descarte de qualquer produto eletroeletrônico A cada ano consumimos mais produtos eletrônicos e o descarte incorreto desses produtos traz problemas para o meio ambiente O lixo eletrônico é composto por muitos elementos tóxicos prejudiciais ao solo Uma solução para diminuir os problemas seria o consumo consciente Existe uma dica pra um consumo mais consciente conhecida como os quatro erres 4Rs Eles são repensar reduzir reutilizar e reciclar Repensar seus atos de consumo reduzir o consumo reutilizar os materiais que parecem não ter mais utilidade e reciclar o lixo O CONSUMISMO sd sp Seção 13 É possível ser ético no mundo contemporâneo 55 O apoio que os crentes e defensores do comportamento autointeressado buscaram em Adam Smith é na verdade difícil de encontrar quando se faz uma leitura mais ampla e menos tendenciosa da obra smithiana De fato é precisamente o estreitamento na economia moderna da ampla visão smithiana dos seres humanos que pode ser apontado como uma das princi pais deficiências da teoria econômica contemporânea Esse empobrecimento relacionase de perto com o distanciamento entre economia e ética SEN 1999 p 44 Com base nos pensamentos de Adam Smith e Amartya Sen trabalhados nesta seção e ilustrados no textobase assinale a alternativa correta a Sen afirma que é difícil encontrar justificativas para o comportamento autointeres sado na obra de Adam Smith porque como sabemos Smith sequer tocou no tema do autointeresse dos indivíduos b Na opinião de Sen é um erro reduzir a contribuição de Smith apenas ao tema do autointeresse dos indivíduos já que Smith também teria feito considerações éticas sobre o comportamento humano c Tanto Sen quanto Smith afirmam que ética e economia não se misturam d Tanto Sen quanto Smith afirmam que o comportamento autointeressado é algo absoluto inexistindo outras motivações para a conduta humana e Segundo Sen o afastamento da economia moderna das questões éticas é algo positivo 3 Leia o trecho a seguir e Os padrões contemporâneos de consumo impedem que tenhamos um comporta mento ético nessa área 2 Leia o fragmento a seguir O que significa bioética A bioética surge para solucionar e resolver muitas vezes os conflitos existentes das interações humanas no âmbito das ciências da saúde ou ciências da vida em tudo aquilo que envolve questões morais e dos sistemas de valores que chamamos de ética O termo bioética é constantemente usado nas práticas que envolvem assuntos relacionados com a medicina Com o cresci mento de pesquisas envolvendo assuntos como mapeamento de DNA deoxyribonucleic acid em português ácido desoxirribonu cleico e códigos genéticos novas áreas precisaram ser inseridas neste contexto 56 U1 Ética e política Acerca do textobase e do conteúdo trabalhado nesta seção assinale a alternativa correta a O desenvolvimento tecnológico torna desnecessário o estudo da ética na contem poraneidade b O desenvolvimento tecnológico torna impraticável o comportamento ético na contemporaneidade c A evolução do conhecimento científico pode elevar o número de questionamento éticos d As dúvidas levantadas no campo da bioética pertencem exclusivamente às áreas da biologia ou da medicina e O suicídio por tratar da retirada da própria vida é um exemplo sempre relacio nado ao campo da bioética Portanto a bioética acaba por envolver uma série de outras áreas como a biologia a psicologia sociologia filosofia teologia direito antropologia e ecologia todas anali sando a bioética conforme seus valores e conhecimentos A bioética tem a função de assegurar o bem estar das pessoas garantindo e evitando possíveis danos que possam ocorrer aos seus interesses O dever da bioética é proporcionar ao profis sional e aos que são atendidos por ele o direito ao respeito e a vontade respeitado suas crenças e os valores de cada indivíduo O QUE SIGNIFICA sd sp ALT F LAMA D O apelo do Dalai Lama ao mundo ética é mais importante que religião Salzburg Benevento Publishing 2017 ARENDT H Responsabilidade e julgamento São Paulo Companhia das Letras 2004 ARENDT H Entre o passado e o futuro São Paulo Perspectiva 2005 ARENDT H 1963 Eichmann in Jerusalem a report on the banality of evil New York Penguin Books 2006 ARISTÓTELES Os pensadores Aristóteles São Paulo Abril 1978 ARISTÓTELES A política São Paulo Martins Fontes 2006 ARISTÓTELES Ética a Nicômaco São Paulo Edipro 2014 BARBOSA V Rio de Janeiro é primeira capital brasileira a proibir canudos plásticos Revista Exame 5 jul 2018 Disponível em httpsexameabrilcombrbrasilriodejaneiroeprimeiras cidadebrasileiraaproibircanudosplasticos Acesso em 27 nov 2018 BAUDRILLARD J La société de consommation SaintAmand Folio 2008 BÍBLIA Português Bíblia Sagrada contendo o velho e o novo testamento Salt Lake City A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias 2015 BRASIL Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 Diário Oficial da União Poder Legislativo Brasília DF Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03Constituicao Constituicaohtm Acesso em 10 jan 2019 BRECHT B Intertexto sd Disponível em httpswww2unicentrobrpetletras20170329 intertextobertoldbrecht18981956doingwpcron154688108657359099388122558593 75 Acesso em 17 jan 2019 CHAUI M Convite à filosofia 13 ed São Paulo Ática 2000 CHAUÍ M Convite à filosofia 14 ed São Paulo Ática 2010 COMPARATO F K Ética direito moral e religião no mundo moderno São Paulo Companhia das Letras 2016 DALLARI D A Elementos de teoria geral do Estado São Paulo Saraiva 1982 FRANCISCO Papa A alegria do evangelho São Paulo Loyola 2013 HAYEK F A O caminho da servidão São Paulo Globo 1977 HOBBES T Leviatã ou matéria forma e poder de um estado eclesiástico e civil São Paulo Abril Cultural 1983 HUNT E K História do pensamento econômico Rio de Janeiro Elsevier 1981 MAGNOLI D Essa coisa de sociedade não existe O Globo Sl 11 abr 2013 Disponível em httpsogloboglobocomopiniaoessacoisadesociedadenaoexiste8080595 Acesso em 21 dez 2018 O CONSUMISMO e seus impactos ambientais Portal Educação sd Disponível em https wwwportaleducacaocombrconteudoartigosbiologiaoconsumismoeseusimpactosam bientais48472 Acesso em 17 jan 2019 Referências O QUE SIGNIFICA Portal Educação sd Disponível em httpswwwportaleducacao combrconteudoartigosmedicinaoquesignificabioetica50873 Acesso 17 jan 2019 PLATÃO Os pensadores Platão São Paulo Nova Cultural 1999 SEN A Sobre ética e economia São Paulo Companhia das Letras 1999 SEN A A ideia de justiça São Paulo Companhia das Letras 2011 SINGER P Introdução à economia solidária São Paulo Fundação Perseu Abramo 2002 SKODOWSKI T Presidente do TJSP considera ético recebimento de auxíliomoradia R7 Notícias Sl 5 fev 2018 Disponível em httpsnoticiasr7combrasilpresidentedotjsp consideraeticorecebimentodeauxiliomoradia05022018 Acesso em 17 dez 2018 TILLY C Democracia Petrópolis Vozes 2013 WALLIN C A modesta vida dos juízes do Supremo da Suécia sem auxíliomoradia nem carro com motorista BBC NEWS 2 dez 2018 Disponível em httpsnoticiasuolcombrultimas noticiasbbc20181202amodestavidadosjuizesdosupremodasueciasemauxiliomo radianemcarrocommotoristahtm Acesso em 14 dez 2018 WEBER M A ética protestante e o espírito do capitalismo São Paulo Companhia das Letras 2004 WEFFORT F C Org Os clássicos da política São Paulo Ática 2006 v 1 Unidade 2 Cidadania e direitos humanos Convite ao estudo Caro aluno seja bemvindo A partir de agora começaremos o percurso didático da Unidade 2 Cidadania e direitos humanos Convidamos você a entender como toda vez que uma dessas dimensões da vida em sociedade é afetada necessariamente a outra encontra também mais obstáculos para a sua plena realização O desafio maior é entender de que forma hoje as socie dades estão ou não considerando seriamente a reflexão sobre as questões implicadas nessas noções e quais são as consequências disso O tema das migrações será mobilizado por nos possibilitar discutir questões importantes sobre a cidadania e os direitos humanos A socióloga Saskia Sassen no seu livro Expulsões 2016 mostra como a mobilidade forçada de pessoas é hoje um problema que atinge muitos países do mundo sobretudo os do Sul Global países da periferia do capitalismo ou subdesen volvidos A autora discute o que chama de lógicas de expulsão algumas antigas outras novas que estão ativas na contemporaneidade provocando o deslocamento forçado de massas de pessoas O quadro dessas expulsões é complexo e abrange desde a questão do aumento das desigualdades e do desemprego no mundo a crise e o endividamento das economias dos países até o aumento da violência e de conflitos a destruição da natureza a expansão das fronteiras agrícolas a desertificação de regiões e o alagamento de outras Fato é que há uma quantidade cada vez maior de países que parece estar sofrendo com essas lógicas de expulsões sistêmicas Essa perspectiva ajuda a compreender por que o Brasil ocupa hoje tanto um lugar de país de emigração como de imigração Por um lado temos problemas muito vivos no contexto atual como os altos índices de desem prego o aumento das desigualdades e da violência o racismo a xenofobia e a intolerância às diferenças o avanço das fronteiras agrícolas ou seja fatores que podem provocar o deslocamento de população dentro do espaço interno nacional e para fora do país Por outro lado o Brasil recebe muitos imigrantes e refugiados de países como Haiti Venezuela Colômbia Síria Angola entre outros o que é uma consequência e sintoma da atuação dessas lógicas de expulsão em outras regiões do mundo De fato no atual contexto globalizado a situação de pessoas deslocadas interna e internacionalmente é emblemática para pensarmos as fronteiras os desafios e as novas potencialidades da cidadania e dos direitos humanos Há muitas dimensões desses deslocamentos que podem ser objeto de investi gação A questão central que nos acompanhará ao longo desta unidade é de como os deslocamentos forçados refletem tendências de funcionamento da cidadania e dos direitos humanos no Brasil e no mundo Com o intuito de fornecer elementos fundamentais para os temas desta unidade a primeira seção procura expor o significado da cidadania pensada a partir de três dimensões local nacional e global Na segunda seção trataremos dos direitos humanos apresentando como essa instituição apareceu na história moderna tornandose um padrão de referência universal para se pensar a vida em sociedade No entanto discuti remos seus limites e as fronteiras cada vez maiores na sociedade atual para a aplicação desse direito tendo em vista a predominância de outras lógicas como o poder a segurança o nacionalismo a riqueza que se colocam acima do ser humano Por fim a última seção será dedicada a pensarmos a democracia as desigualdades e as diferenças Esse exercício nos dará instrumentos para a compreensão das barreiras à cidadania que são muitas vezes invisíveis mas importantíssimas para pensarmos as possibilidades de atuação política sobretudo por grupos sociais marginalizados Esperamos enfim que esse percurso formativo possa encorajálo a despertar o cidadão que há em você buscando o conhecimento histórico científico sobre os eixos desta unidade Seção 21 O que faz um cidadão 61 O que faz um cidadão Diálogo aberto Prezado aluno esta seção dedicase ao tratamento de uma questão de fundamental importância para a vida em sociedade a cidadania Como você responderia à pergunta sobre qual é o estado da cidadania no seu país e no mundo hoje Será que caminhamos para uma verdadeira evolução da forma e do conteúdo da cidadania Para estabelecermos um termômetro relativo ao sentirse e ao agir como cidadão bastaria iniciarmos com algumas perguntas essenciais a forma como você ouve falar dos problemas e projetos de seu bairro cidade país mundo encorajamno a buscar uma participação ativa e tomar as melhores decisões para atender aos interesses da comunidade Ou ao contrário afastamno e desestimulamno do esforço por entender e participar dessas decisões que afetam a sua vida e a de todos que estão ao seu redor Por que será que essa esfera de atuação política consciente dos reais problemas de uma sociedade parece ficar cada vez mais distante e vazia de sentido Será que as dinâmicas do alto poder têm hoje interesse que você se sinta como um cidadão da sua cidade do seu país e simultaneamente do mundo De que forma esses problemas atingem sociedades que desrespeitam os direitos humanos Esta seção lhe fornecerá instrumentos para entender como a noção de cidadão variou muito ao longo do tempo veremos que a história do exercício da cidadania tem sido marcada por tensões progressos e regressos Também veremos como o contexto globalizado dos dias atuais que tem suas economias suas sociedades e suas culturas interligadas globalmente coloca uma dimensão mais complexa para pensarmos o exercício da cidadania A nova realidade do número cada vez maior de pessoas deslocadas coloca desafios para pensarmos a cidadania sobretudo para desvincularmos o seu sentido da esfera restrita ao nacional Nesse cenário como avaliar a evolução da cidadania diante do cemitério de corpos de refugiados que se transformou o Mar Mediterrâneo cenário emblemático dos barcos lotados de homens mulheres crianças e até bebês buscando desesperadamente uma esperança de vida Das manifestações de racismo e xenofobia enfim da negação e da exclusão da cidadania para as milhões de pessoas deslocadas interna e internacionalmente Diante da medida tomada pelo governo de Donald Trump nos Estados Unidos EUA para separar mais de mil crianças filhas de imigrantes indocumentados dos Seção 21 62 U2 Cidadania e direitos humanos seus pais Ao mesmo tempo na América do Sul incluindo o Brasil milhões de venezuelanos estão também cruzando fronteiras em busca de uma nova vida Essas pessoas se deparam com demonstrações de solidariedade mas também com violência e desrespeito Tratase de um problema complexo atual e diretamente ligado à questão da cidadania que requer reflexão e debates Diante dos diversos fluxos migratórios do exterior para o Brasil causados em grande medida por guerras conflitos políticos e miséria como poderíamos receber e acolher os povos imigrantes e refugiados garantindo sua integridade física e moral seus valores e culturas sem projetar no estran geiro o inimigo o alvo e a causa dos problemas existentes no nosso país A fama do Brasil de país acolhedor para os estrangeiros tem se confirmado diante do cenário crítico que estamos tratando Não pode faltar Vamos nos dedicar aqui a pensar sobre a noção de cidadania Essa noção é antiga e relacionase a um campo de discussão muito amplo sendo objeto de estudo de diferentes áreas do conhecimento Tratase de um tema bastante vivo no presente que gera um enorme interesse curiosidade e até mesmo fervorosas polêmicas justamente pela sua importância para a compreensão de diferentes aspectos da vida em comunidade A cidadania na verdade exerce um fascínio para todos que se defrontam com o seu sentido político colocandonos a essencial e difícil questão o que significa ser parte intrín seca e indissociável de uma coletividade Propomos um percurso didático que lhe permitirá entender especial mente o sentido político da noção de cidadania diante da emergência dos estadosnação na Europa moderna assim como a leitura que se produziu do importante modelo de cidadania que existiu na Antiguidade na Grécia Assimile Como você já deve ter visto ao longo de seus estudos normalmente a discussão sobre cidadania e política costuma remeter quase sempre à Grécia Antiga Isso não acontece simplesmente porque o passado grego foi mais importante Foi o olhar dos europeus modernos em especial mais de um milênio após Aristóteles que elegeu os gregos como ponto de origem de sua civilização Em outros termos foi com a Europa do Renascimento das Grandes Navegações e do Iluminismo que o passado grego e romano se tornou clássico e nesse sentido mais importante do que o passado de outros povos Há um certo processo de escolha Seção 21 O que faz um cidadão 63 do passado a invenção de uma origem que também criou uma divisão entre Ocidente e Oriente em um passado distante Assim a Europa moderna passou a se ver como continuidade de uma antiga Grécia narrada como berço da racionalidade e da civilização Essa construção da identidade ocidental separada dos outros TODOROV1993 produz efeitos até hoje na forma como a história é narrada assim como nas relações de poder entre povos culturas e nações SAID 1993 Um dos historiadores mais renomados que estuda a civilização grega Moyses Finley em seu livro Democracia antiga e moderna 1988 fornece elementos contextualizados historicamente para entendermos a origem do cidadão O especialista nos transporta em primeiro lugar para o espaço privilegiado do exercício da cidadania a polis grega ou seja a cidade grega Tornouse por isso bastante conhecida a expressão cidadão é aquele que participa do governo da cidade Em especial Atenas foi o lugar onde a política foi repensada e redefinida na prática Nesse contexto a forma e o conteúdo da cidadania se colocaram como inseparáveis da noção de democracia direta na qual aboliuse a hierarquia no exercício do poder para dar espaço à igualdade dos cidadãos no plano político o que permitia a real participação popular nas decisões sobre a vida na polis Em Atenas nasce o primeiro significado de democracia o governo do povo E o povo longe de ser entendido como uma massa tomada por paixões ou ao contrário excessivamente apática e inábil era considerado um corpo de cidadãos capaz de compreender os problemas da realidade da polis e de tomar as melhores decisões para atender aos interesses da comuni dade Por esse motivo o povo tinha o direito de ter voz nas assembleias ou seja o direito de opinar sobre o funcionamento da polis no presente e sobre qualquer projeto para o seu futuro Veja portanto que não se valorizava um conhecimento técnico sobre a vida na cidade Afastavase uma definição elitista de poder para afirmar o sentido ativo de compreensão do funciona mento da polis e de seus problemas ou seja os próprios moradores daquela polis seriam as pessoas mais indicadas para tomar decisões O cidadão é pensado portanto como um ser indissociável da cidade o que acompanha o direito de opinar sobre o seu destino Quando o cidadão ateniense participava das assembleias não distinguia os seus interesses pessoais dos interesses da polis A possibilidade da iniciativa popular torna a política algo natural da polis e mostra com clareza a função saudável do debate político em que tomam conteúdo o exercício da liberdade individual de expressão e a ação no espaço público No exercício da cidadania se manifestam elementos de maior relevância como a soberania popular e a justiça que emana do povo 64 U2 Cidadania e direitos humanos Assimile A filosofia antiga e a democracia Na Filosofia Antiga a cidadania formal referente à condição legal do cidadão não é colocada em primeiro plano A cidadania é situada no campo da política invocando a participação ativa e em condição de igualdade de todos os cidadãos na vida democrá tica Essa impostação é retomada pela Filosofia Contempo rânea ao estabelecer a relação da cidadania com as teorias da democracia lembrandonos que aqueles que vivem sob uma ditadura são definidos súditos não cidadãos ENCICLOPEDIA DI FILOSOFIA 2008 p 173 Não podemos deixar de fazer uma crítica à exclusão que se fazia nesse mesmo contexto das mulheres dos escravos dos estrangeiros e de outros grupos sociais do exercício desse direito O que importa perceber pelo momento é que o sentido de uma cidadania ativa se colocava como o principal elemento da vida coletiva na polis Esse sentido fez a civilização ateniense ser considerada já naquela época um modelo por iluminar questões tão essenciais da vida em sociedade que continuam a ser estudadas depois de séculos até nos dias atuais Vale destacar no entanto que o modelo ateniense não se tornou hegemônico na Antiguidade Muitas mudanças na organização política das sociedades mediter râneas e europeias ocorreram após esse contexto ateniense Durante a Idade Média a Europa Ocidental foi marcada por uma organização política baseada nas relações feudais e monarquias que limitavam bastante essa concepção de cidadão Além disso a Igreja Católica detinha grande poder de organização política nas sociedades da cristandade europeia e o cristianismo também serviu de base filosó fica para que na modernidade fosse afirmado um sentido de cidadania completamente diferente daquele ateniense muito mais centrado como veremos adiante no indivíduo Na Idade Moderna com a emergência dos estadosnação organi zação do poder político que abrange uma população mais numerosa e um território maior recuperase em alguma medida a noção de cidadania grecoromana mas procurando estendêla a um corpo mais volumoso de pessoas de forma que o sentido da participação ativa na vida pública acaba sendo colocado em segundo plano A Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão ambas de 1789 são marcos importantes dessa redefinição Seção 21 O que faz um cidadão 65 Exemplificando José Damião Trindade 1998 coloca em evidência os artigos basilares da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão 1789 Note que o povo diferente do sentido que assumia na democracia em Atenas demos povo cracia poder não é considerado soberano ou seja quem exerce o poder Os homens nascem e são livres e iguais em direitos art 1 e a finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescindíveis do homem art 2 Quais são esses direitos São quatro a liberdade a propriedade a segurança e a resistência à opressão art 2 A soberania foi atribuída no artigo 3 à Nação fórmula unificadora e não ao povo expressão rejeitada pelo que podia conter de reconheci mento das diferenças sociais A liberdade art 4 poder fazer tudo aquilo que não prejudique a outrem só pode ser limitada pela lei que deve proibir as ações prejudiciais à sociedade art 5 A lei deve ser a mesma para todos art 5 TRINDADE 1998 p 58 Nesse novo contexto ser cidadão invoca um regime republicano que retira os privilégios de participação política até então restritos à aristocracia à monarquia absolutista e ao clero para afirmar seu sentido universal colocando todos os nacionais de um Estado em posição de igualdade quanto a direitos e a deveres Ainda que o sentido primeiro da participação na vida política não seja colocado em primeiro plano o cidadão moderno tem inegavelmente o direito de participar do governo de sua vida de sua cidade e de seu Estado Lembremos que esse cidadão moderno como na Grécia emerge como um sujeito que também tem deveres civis Jean Jacques Rousseau 1717 1778 foi um pensador de enorme importância para entendermos essa ligação do sentido moderno de cidadania com a coletividade Para Rousseau a cidadania não é um presente mas um dever de participação política na defesa do interesse geral que é universal a todos os cidadãos acima dos interesses particulares e individuais Só assim uma República poderia garantir o bemestar de seus cidadãos ou seja não fecharia os olhos para a justiça social e para a construção de uma sociedade menos desigual Infelizmente essa dimensão coletiva da cidadania do dever cívico para com a coletividade se tornará uma voz dissonante em termos de valores e de modelo de atuação política na modernidade O princípio do interesse geral não ditará os rumos da organização do poder político na modernidade O antropólogo francês Louis Dumont 66 U2 Cidadania e direitos humanos em seu livro O individualismo uma perspectiva antropológica da ideologia moderna 1985 coloca em evidência como o indivíduo ao contrário do que dizia Rousseau se afirmará como um sujeito de direitos e deveres que não será mais visto como na Grécia como uma parte intrínseca e indissociável da coletividade ou seja a noção de indivíduo que existe independentemente da comunidade ganha força nesse período Além disso na modernidade continua existindo a problemática interdição da participação na vida política de mulheres e de grupos sociais de baixa renda além de grupos étnicos no caso das colônias europeias sobretudo os indígenas e os negros e também dos estrangeiros não nacionais A comparação do significado da cidadania na Grécia e na modernidade ilumina na verdade o que diversos críticos têm apontado como o principal limite do desenvolvimento da cidadania No estadonação caminhase muito mais em direção a um modelo de organização política da sociedade que valoriza a extensão do direito de voto a um número maior de pessoas O que está em jogo é a representatividade desse número extenso de cidadãos por partidos não a esfera da ação política e da participação consciente Esses elementos problemáticos além de outros que podem ser discutidos mostram como não é possível afirmar que a passagem do tempo significa necessariamente uma evolução da forma e do conteúdo da cidadania bem como de seu exercício No século XX por exemplo há tensões que apontam para diferentes direções a fim de pensarmos a cidadania Por um lado houve lutas impor tantes empreendidas por grupos sociais mulheres operários negros indígenas para a conquista do direito ao voto que resultaram em progressos importantíssimos como o reconhecimento do voto feminino na maioria dos países o fim do voto censitário vinculado a um patamar de renda o reconhecimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos o fim do regime de apartheid na África do Sul e em outros territórios ainda submetidos ao regime de colonização que excluíam os nativos do direito à cidadania o reconhecimento da diversidade e do direito à cidadania dos povos indígenas nas Américas do Sul e do Norte Por outro lado talvez o século XX seja o exemplo mais explícito de grandes retrocessos para pensarmos a cidadania Os regimes totalitários como o fascismo na Itália o nazismo na Alemanha e o stalinismo na URSS tinham como característica principal a negação dos direitos políticos da população em favor de um regime autoritário com poderes ilimitados para tomar todas as decisões do governo de um Estado O direito de participação política era considerado uma ameaça a ser combatida com a força das armas Na América Latina o século XX também foi marcado por ditaduras que se baseavam nesse mesmo princípio e se disseminaram como modelo de exercício do poder político em quase todo o continente Seção 21 O que faz um cidadão 67 Se consideramos o contexto brasileiro percebemos que a participação no poder político foi historicamente restrita a poucas pessoas Na América portuguesa sob a lógica do absolutismo monárquico a maioria da população composta de negros considerados escravos indígenas e outros grupos subalternos era excluída do direito de participação política formal no Estado Colonial Com a independência e o período imperial a renda funcio nava como critério central de exclusão do exercício de cidadania Mesmo quando o regime republicano foi instaurado 1889 o pertencimento ao sexo masculino o nível de escolaridade e as relações de trabalho seguiam excluindo a maior parte da população Por esse motivo há uma discussão bastante importante sobre o caráter oligárquico restrito a um pequeno grupo de pessoas do funcionamento da República no Brasil Ainda que o direito formal de voto tenha se alargado para toda população por meio de reivin dicação desses grupos outros mecanismos de coerção da livre escolha de representantes foram historicamente praticados como o voto de cabresto No que se refere à substância da cidadania direitos políticos básicos acesso à rendatrabalho dignos educação e saúde de qualidade moradia entre outros a referida condição de estrangeiridade da maioria da população brasileira continua sendo um problema até hoje A ruptura radical em relação ao poder de exercício da cidadania ocorreu durante o regime ditatorial 19641984 que representa uma página da história do Brasil a qual expressa o total desrespeito aos sentidos da cidadania discutidos até agora sejam aqueles da Antiguidade sejam aqueles das democracias liberais da modernidade Pesquise mais Para saber mais sobre o debate a respeito das violações dos direitos humanos no período anterior ao da Constituição de 1988 BRASIL 1988 o site do projeto Brasil Nunca Mais é uma valiosa fonte é a mais ampla pesquisa realizada pela sociedade civil sobre a tortura política no país O projeto foi uma iniciativa do Conselho Mundial de Igrejas e da Arquidiocese de São Paulo os quais trabalharam sigilosamente durante cinco anos sobre 850 mil páginas de processos do Superior Tribunal Militar BRASIL 2016 Foi ao findar o último regime de exceção que se produziu a Constituição Federal de 1988 BRASIL 1988 o mais importante marco histórico de reafir mação da cidadania e de reinstituição de um regime democrático que possi bilita a participação política dos cidadãos A soberania popular foi reafirmada 68 U2 Cidadania e direitos humanos em seus artigos que tratam das questões mais essenciais da organização da sociedade brasileira e estão acima de qualquer outra legislação do país pois contêm os princípios de um Estado baseado em direitos que podem ser reivindicados por qualquer cidadão do país Esse pacto federativo emerge em um momento histórico no qual o sentido de participação da cidadania repre sentava uma das principais bandeiras de luta da sociedade brasileira e de seus diferentes movimentos sociais Nesse momento os cidadãos brasileiros e não nacionais residentes no país denunciavam com toda força os prejuízos causados à sociedade por um regime que nega ou limita a possibilidade de a população agir politicamente Simultaneamente afirmavase um projeto de sociedade que além de garantir o direito civil de representatividade nas decisões políticas também referendava uma cidadania social na qual os direitos básicos como a saúde a educação o trabalho digno a moradia o meio ambiente ampliam o significado da noção de cidadania O acesso universal a esses direitos básicos para garantir a cidadania está previsto na nossa Constituição como um dever do Estado e da sociedade brasileira Sem dúvida a Constituição de 1988 é a maior expressão de um pacto de civilização que devolveu ao Brasil a possibilidade de caminhar em direção ao respeito da cidadania O que não significa que todos os seus artigos sejam perfeitamente aplicados na realidade da sociedade brasileira De fato são inúmeros os impasses substanciais da cidadania existentes na realidade do funcionamento da sociedade brasileira com suas antigas e novas faces das desigualdades que acompanham a exclusão da cidadania Basta pensarmos por exemplo no retrato das grandes metrópoles como São Paulo Rio de Janeiro Belo Horizonte Fortaleza ou qualquer outra grande cidade do país onde uma parcela significativa da população é excluída desses direitos Você já reparou como as calçadas das nossas cidades estão cada vez mais povoadas por pessoas que vivem em situação de rua Esse cenário nos provoca a pensar os limites da cidadania determinados sobretudo pelos imperativos econômicos que modelam o funcionamento das sociedades e fazem da renda um requisito de acesso à cidadania Mas vamos dar um passo nessa reflexão Essa constatação não exclui a importância de entendermos que a Constituição é um instrumento para que a cidadania também possa ser efetiva a essas pessoas Por um lado os direitos sociais nela contemplados colocam como um dever do Estado democratizar o acesso aos direitos funda mentais ou seja criar instituições que possibilitem a oportunidade de um trabalho digno educação saúde moradia dentre outros direitos Por outro lado a Constituição resguarda o regime democrático e situa essas pessoas a despeito de viverem em situação de rua como sujeitos de direito que portanto podem reivindicálo Qual seria então a melhor forma de ter os direitos da Constituição respeitados Será que a abolição dessa Constituição seria o melhor caminho A resposta a essa pergunta é muito simples não Seção 21 O que faz um cidadão 69 se conquista direitos abolindo direitos O exercício da participação ativa da reivindicação desses direitos e da luta para que sejam efetivados é o único caminho para que a cidadania no Brasil deixe de ser apenas um direito formal e tornese realidade Depois de percorrer diferentes contextos e épocas históricas que nos ajudam a refletir sobre a complexidade implicada na discussão do tema da cidadania não poderíamos deixar de tratar de uma dimensão que se torna cada vez mais evidente no contexto globalizado do século XXI a cidadania transnacional Até aqui conseguimos refletir sobre a dimensão local expressa no sentirse membro de um corpo político no espaço das cidades e do estadonação Agora daremos um passo à frente na compreensão do sentido da cidadania para além da dimensão local Há diferentes perspectivas para explorar esse aspecto da cidadania Se considerarmos por exemplo a associação da ideia cidadania com o sentido universal da condição humana entendemos que já no século XVIII havia movimentos culturais como o Iluminismo que defendiam a dimensão cosmopolita da cidadania ou seja para além da fronteira nacional Isso é bastante curioso pois naquela época o grau de integração econômica política e cultural entre os estadosnação era incomparável com o dos dias atuais No entanto a conscientização da esfera internacional como um espaço necessário para a efetivação dos direitos de cidadania para além do espaço nacional já era coloca pelos pensadores iluministas A necessidade dessa conscientização do transnacional é ainda mais urgente na atualidade Com a integração das economias das finanças das culturas e com o aumento no volume dos deslocamentos populacionais em escala global muitos autores têm mostrado como o espaço do nacional fica ainda mais recortado por um mosaico de nacionalidades culturas religiões e etnias É por isso uma contradição que essas pessoas sejam excluídas do exercício de seu direito de cidadania e de participação política Do ponto de vista das pessoas que se deslocam internacionalmente o direito de cidadania não pode se restringir às fronteiras nacionais Da mesma forma que determinadas instituições exercem uma dimensão global do exercício do poder político como a Organização das Nações Unidas ONU o Banco Mundial o Fundo Monetário Internacional FMI com decisões que impactam o destino de muitas nações o aumento da existência de imigrantes e refugiados coloca em questão por que a cidadania deve permanecer restrita à nacionalidade Saskia Sassen especialista em globalização e processos transnacionais conhecida pelo conceito de cidade global oferece uma rica reflexão sobre essa questão A autora se pergunta se o aumento de imigrantes e refugiados nos Estados é sinal de que as fronteiras nacionais tendem a desaparecer e se as formas de duplatripla cidadania denotam uma tendência para se pensar esse tema 70 U2 Cidadania e direitos humanos Nesse ponto adentramos no último tópico desta seção que diz respeito à relação entre consciência ambiental e a cidadania Pensar essa relação é ideal para retomarmos diversos significados da cidadania até aqui tratados As décadas de 1970 e 1980 são marcos da emergência de um debate ambiental que questiona o modelo de desenvolvimento que se espalhou pelo mundo ZHOURI LASCHEFSKI 2010 Além das crises econômicas esse período acompanha também recorrentes crises ambientais O desastre de Chernobyl 1986 passa a ser o símbolo do despertar da consciência de uma cidadania verde que não está descolado do sentido da cidadania transnacional Começase a refletir com mais força sobre os impactos para a população local mas também para a vida humana no mundo todo de ações que prejudicam a natureza como a mudança do curso de um rio a poluição das águas a expansão das fronteiras agrícolas e a utilização dos agrotóxicos e transgênicos além da destruição das florestas Assimile A cidade de São Paulo é um laboratório vivo para entendermos o sentido da cidadania transnacional Em um passado relativamente recente essa cidade era sobretudo formada por imigrantes europeus Hoje São Paulo é considerada uma cidade global por ser destino de moradia para bolivianos haitianos senegaleses sírios moçambicanos dentre um leque muito diversificado de nacionalidades do mundo inteiro Ali você pode ter contato com muitas iniciativas e organizações dos imigrantes e refugiados que mesmo não tendo direito de voto no Brasil reivindicam seus direitos e espaços para expressar suas culturas e identidades Importa percebermos que essa reflexão nos traz a dimensão transnacional da cidadania como uma esfera de discussão de enorme importância Já que vivemos em um mundo globalizado a cidadania não pode mais ser anali sada puramente a partir do nacional Utilizar esse nacionalismo metodoló gico significa negar a cidadania a milhões de pessoas que residem em outros países ou que são obrigadas a deixar seus países de origem Lembremos que do ponto de vista cosmopolita essa visão redutiva da cidadania necessa riamente nega a condição humana dessas pessoas Sobretudo é necessário perceber que o exercício da cidadania em particular com o desenvolvimento das tecnologias de comunicação e informação assume hoje uma dimensão global Esse alcance espacial traz consigo inúmeras potencialidades para pensarmos o significado da ação cidadã Seção 21 O que faz um cidadão 71 Reflita Você acharia estranho que nos primeiros artigos da nossa Constituição estivesse previsto o direito da natureza Talvez você esteja pensando que a natureza não pode ser considerada um sujeito de direito No entanto no Equador esse direito está previsto na Constituição ACOSTA 2016 e transformouse em uma ferramenta de exercício da cidadania ambiental Você acredita que esse exemplo poderia nos ajudar a repensar nossa cidadania no Brasil O exercício da cidadania ambiental chama atenção portanto à finitude dos recursos ambientais e à ameaça para a humanidade do uso predatório dos bens naturais Acosta 2016 Da mesma forma somos chamados para a reflexão de que um desastre ambiental não pode mais ser considerado como local ou nacional mas sim global já que seus efeitos ameaçam a vida na terra Essa cidadania transnacional coloca portanto a articulação entre o local e o global como necessária para a conscientização desses impactos ecológicos e simultaneamente para a busca de ações políticas para enfrentálos O rompimento da barragem de Santarém no município de Mariana MG causado pelo não cumprimento de procedimentos de segurança pela Usina Samarco é emblemático para pensarmos essa questão São incalculá veis os impactos desse crime que foi considerado o maior dano ambiental da história do Brasil devido à enxurrada de lama tóxica jogada em vários rios principalmente o Rio Doce que desemboca no mar a destruição de uma cidade inteira São Bento a contaminação de muitas pessoas das comuni dades locais o prejuízo econômico e os danos à vida humana em geral Um dos desafios dos movimentos dos atingidos pelas barragens é justamente fortalecer a articulação de suas lutas com os movimentos ambientalistas internacionais para reivindicar a reparação de danos para população local que até hoje permanece ignorada e para evitar novas catástrofes Dificilmente um movimento ambientalista despreza a necessidade da ação global para a defesa do meio ambiente Vemos que há uma ampliação do conceito de cidadania que nos permite não apenas reconhecer a natureza como um sujeito de direito como também discutir questões variadas relativas por exemplo à dimensão social e às relações étnicoraciais impli cadas na questão ambiental à legitimidade de atuação dos movimentos ambientalistas à noção de justiça ecológica local e global Perceba que a dimensão política da cidadania está inserida também na discussão sobre o meio ambiente Um olhar ambientalista nos permite examinar os problemas que as mudanças ambientais colocam para o processo político moderno em particular para o exercício da cidadania 72 U2 Cidadania e direitos humanos Sem medo de errar Diante do cenário mundial que buscamos analisar ao longo da seção e do histórico da cidadania e dos direitos humanos que percorremos como responder às questões colocadas inicialmente Quais caminhos as políticas internacionais devem tomar diante das grandes crises de refugiados O Brasil país considerado hospitaleiro e com uma população cordial e pacífica tem sido capaz de receber e acolher os povos imigrantes e refugiados garan tindo sua dignidade Aprofundemos a problematização com alguns dados segundo a Agência da ONU para Refugiados ACNUR 2018 a cada minuto 20 pessoas são forçadas a se deslocar Em 2018 essa agência estimou a existência de 685 milhões de pessoas nessa condição no mundo das quais cerca de 40 milhões são deslocados internos 254 milhões são refugiados mais da metade com menos de 18 anos de idade e 3 milhões são solicitantes de refúgio Os desas tres ecológicos ganham importância para explicar esses deslocamentos no presente e no futuro Até 2050 estimase que 250 milhões de pessoas serão deslocadas devido a causas ambientais é como se mais do que a população inteira do Brasil fosse deslocada Além dos refugiados é também De fato a cidadania ambiental ilumina um sentido universal essencial mente coletivo para além da nacionalidade e clama pela urgência da ação e participação ativa cidadã em defesa do meio ambiente de forma articulada em âmbito local nacional e global Notamos portanto que a passagem do súdito ao cidadão se torna ainda mais complexa ao entendermos as dimen sões da cidadania Os desafios do pleno exercício da cidadania são certa mente muitos mas não há dúvida de que a potencialidade dessa articulação é a única forma de enfrentarmos as barreiras à cidadania que se colocam cada vez mais em nossos dias Pesquise mais A obra organizada por Jaime e Carla Pinsky História da cidadania 2010 disponível em sua biblioteca virtual fornece um importante panorama da cidadania desde a Antiguidade O capítulo Cidadania ambiental natureza e sociedade como espaço de cidadania p 545562 de Maurício Waldman apresenta bases mais concretas para se refletir sobre uma nova concepção de cidadania hoje em debate que considera mais enfaticamente as relações entre as socie dades e o meio ambiente PINSKY J PINSKY C História da cidadania São Paulo Contexto 2010 Seção 21 O que faz um cidadão 73 importante levar em conta o quadro dos demais imigrantes pessoas que moram fora do país de origem estimado pela Organização Internacional para Migrações OIM em 244 milhões em 2015 As sociedades contempo râneas estão passando por uma grande transformação populacional devido a esses deslocamentos Justamente por esse motivo as migrações internacio nais se transformaram em uma questão central para entendermos diversos aspectos do funcionamento das sociedades como o mercado de trabalho a educação a cultura a identidade e particularmente a cidadania Você deve ter acompanhado as notícias sobre o caso de crianças filhas de imigrantes indocumentados que foram separadas de seus pais por uma medida do governo de Donald Trump feita para desencorajar essas pessoas de irem para os Estados Unidos Também vemos frequentemente em jornais as fotos de barcos no mar Mediterrâneo entre a África e a Europa lotados de homens mulheres crianças e até bebês que fogem dos fatores de expulsão em seus países na busca por uma nova esperança de vida porém ao chegarem nos países europeus encontram muitas barreiras para poderem desembarcar Essas notícias evidenciam como as fronteiras dos Estados mais ricos do mundo tendem a ser predominantemente fechadas para esses imigrantes e refugiados apesar de muitos desses países serem signatários de Tratados Internacionais que protegem a condição de imigrante refugiado Como explica o sociólogo italiano Pietro Basso os Estados tendem a adotar um posicionamento restritivo quando não criminalizante dado o suposto crime de atravessar fronteiras em relação a esse grupo social Por esse motivo no atual cenário mundial de deslocamentos em massa o imigrante defrontase com inúmeras barreiras à cidadania e pressões Segundo Basso 2010 as políticas dos Estados são pautadas essencial mente na ideia da convivência forçada e do choque de civilizações que alimentam um quadro geral de agudização do racismo xenofobia discri minação violência policial e exposição à exploração na vida cotidiana e no trabalho desse grupo social No atual contexto de crise e de ascensão de partidos nacionalistas essa ideia é constantemente mobilizada fazendo com que a tendência das políticas imigratórias seja a de restringir e selecionar a circulação de pessoas No entanto isso não significa que essas fronteiras realmente podem se fechar para o trabalho imigrante no atual grau de internacio nalização das economias e das sociedades Por exemplo a economia dos Estados Unidos pararia se todos os imigrantes tivessem de deixar aquele país Além disso esses imigrantes são sujeitos humanos estão ali contri buindo com o seu trabalho com suas culturas e línguas para o funciona mento e a construção daquela sociedade 74 U2 Cidadania e direitos humanos Embora o Brasil ainda tenha uma porcentagem muito baixa de estran geiros estimada entre 1 e 15 da população não está separado desse contexto internacional As notícias sobre a presença desses imigrantes e refugiados no país têm se tornado cada vez mais comuns Tivemos dois casos dos haitianos e dos venezuelanos que deram mais visibilidade a essa questão nos últimos anos A pergunta que questiona se Estado brasileiro tende a se abrir ou a se fechar para o reconhecimento da cidadania desses imigrantes e refugiados não pode ser respondida sem primeiramente levarmos em consi deração o contexto internacional Se analisamos o contexto nacional entendemos que apesar de o Brasil ter uma sociedade formada por imigrantes africanos europeus asiáticos etc e ter se apoiado secularmente no trabalho dessas pessoas hoje coloca muitas barreiras para o reconhecimento da cidadania dos novos imigrantes e refugiados Essas barreiras são de ordem formal relativas à concessão de visto e ao reconhecimento de refúgio e da cidadania brasileira O processo para conseguir a documentação é excessivamente burocratizado e caro para os imigrantes Muitas vezes isso acaba provocando a indocumentação de muitos deles o que na prática significa a exclusão da cidadania ou seja o não reconhecimento desses imigrantes como sujeito de direitos Para a concessão da cidadania brasileira esse processo é ainda mais burocratizado e de difícil acesso Se refletimos sobre o aspecto substancial dessa cidadania podemos entender que esses imigrantes e refugiados vivem os fatores de expulsão na própria sociedade de origem por isso são obrigados a migrar e ao chegarem no Brasil se defrontam novamente com muitas barreiras da cidadania como o acesso a um trabalho digno à moradia à educação de qualidade que se colocam também para os brasileiros Além dos problemas formais com a lei os imigrantes e refugiados precisam lidar com uma sociedade nem sempre amistosa Como sabemos uma parte da população brasileira pode enxergar os imigrantes como seus rivais na busca pelos direitos de um cidadão Mas a questão central é entendermos que a negação da cidadania para esses sujeitos não é o meio eficaz para se conseguir a efetivação desses direitos para os brasileiros Essa ideia tem sido instrumen talizada pelos Estados sobretudo pelos que são governados por partidos nacio nalistas Todavia de forma alguma essa exclusão implica que os direitos dos nacionais estejam sendo de fato protegidos e respeitados A lógica de exclusão dos estrangeiros como vimos aqui acompanha a história da cidadania No entanto essa lógica tende a se tornar mais agressiva nos momentos de crise e de ascensão de políticas mais autoritárias Além de a reconhecermos temos de lembrar que a cidadania hoje no mundo globalizado é uma cidadania transnacional que não se limita ao território Seção 21 O que faz um cidadão 75 do estadonação Essa perspectiva significa proteger também os brasileiros e seus direitos mas antes reconhecer a dignidade e as garantias legais de todo ser humano 1 Leia o trecho a seguir Faça valer a pena Em meados da segunda metade do século 20 o mundo enfrentou uma mensagem de advertência a Natureza tem limites No informe do Clube de Roma ou Relatório Meadows publicado em 1972 também conhecido como Os limites do crescimento o planeta foi confrontado com essa realidade indiscutível O problema daquele relatório encomendado pelo Massachussetts Institute of Technology é que previu a chegada de uma série de situações críticas provocadas pelo crescimento econômico A questão é clara a Natureza não é infinita tem limites e esses limites estão a ponto de ser superados se é que já não estão sendo Assim o Relatório Meadows que desatou diversas leituras e suposições embora não tenha transcendido na prática plantou uma dupla constatação não podemos seguir pelo mesmo caminho necessitamos de análises e respostas globais ACOSTA 2016 p 114115 O texto coloca em discussão a ideia de crescimento econômico confrontada com a questão ambiental Indique qual das opções a seguir está em consonância com a mensagem do autor a O crescimento econômico deve ser considerado uma prioridade absoluta pelas sociedades b O problema ambiental estará resolvido se cada sociedade se ocupar dele da forma que achar melhor c A questão ambiental coloca em discussão o crescimento econômico e exige uma resposta política articulada entre os países do globo d O desenvolvimento garante por si só a proteção ao meio ambiente e A natureza tem recursos ilimitados e tem uma função meramente provedora de recursos para o desenvolvimento econômico 76 U2 Cidadania e direitos humanos Segundo o texto a perspectiva das migrações ilumina qual aspecto sobre a cidadania a As legislações vigentes contemplam os anseios de representação dos imigrantes b A cidadania pensada a partir do princípio do nacional é inclusiva c A cidadania reflete uma inclusão formal dos imigrantes d A cidadania formal exclui os imigrantes e A cidadania formal respeita os direitos das minorias internas ao estadonação 2 Leia o excerto a seguir Transformações mais significativas somente se mostram possí veis diante do reconhecimento da subjetividade e da agência do migrante revelada nas ações praticadas pelos migrantes diuturnamente A cidadania formal baseada no nacionalismo não responde satisfatoriamente as demandas atuais revelando assim os limites de um instituto calcado no parâmetro nacional excludente À exclusão formal a que estão submetidos os migrantes somamse as exclusões internas relativas às minorias de maneira que migrantes indígenas e negros entre outros grupos vulneráveis experimentam uma dupla exclusãomarginalização As demandas de proteção dos direitos humanos dos migrantes buscam conjugar pleitos de igualdade material e igualdade formal colocando em xeque não apenas os modos de efetivação mas também o próprio conceito de cidadania e seus contornos SGARBOSSA IENSUE 2016 p 70 3 Leia o fragmento a seguir No âmbito da sociedade global os princípios de liberdade igualdade e propriedade organizados no contrato em geral operamse em termos econômicos Nasceram e recriamse continuamente em âmbito local regional nacional e transna cional o jogo das relações de trocas mercantis São princípios pouco vigentes em termos propriamente políticos e menos ainda em termos culturais A soberania do cidadão apenas começa a ser pensada codificada se estivermos pensando na sociedade mundial Nessa altura da história a cidadania vigente efetiva é a da mercadoria As trocas o intercâmbio de merca dorias compreendendo as moedas nacionais realizamse sob o signo de uma moeda global IANNI 2008 p 110 Seção 21 O que faz um cidadão 77 O texto traz em discussão o alto grau de integração no âmbito econômico das socie dades em escala global Qual resposta corresponde à ideia do autor sobre a globalização a A livre circulação de capitais no globo acompanha o reconhecimento da cidadania para um número maior de pessoas b A livre circulação de mercadorias contribui para que a cidadania seja melhor respeitada nos países que não têm indústrias c O aumento do número de empresas transnacionais acompanha a criação de insti tuições para representação dos direitos dos expatriados d A utilização do dólar como moeda única é benéfica para todas as sociedades e O atual grau de integração da sociedade responde a necessidades econômicas mas deixa a desejar no aspecto político da cidadania 78 U2 Cidadania e direitos humanos Direitos humanos por que e para quem Diálogo aberto Seja bemvindo à Seção 22 que vai tratar de um importante dilema da sociedade moderna a afirmação por um lado dos direitos humanos e por outro lado das lógicas de punição que também se expressam nos crimes contra a humanidade Como veremos um dos fenômenos bastante ativos na contemporaneidade envolvendo os dois lados desse dilema direitos humanos e lógicas de punição diz respeito aos deslocamentos forçados de população De fato as diferentes formas de desrespeito aos direitos humanos que se traduzem na impossibilidade de vida no próprio local ou país de origem provocam esses deslocamentos Todavia a tendência dos Estados tem sido tratar essas pessoas como potenciais criminosos valendose de uma lógica criminalizante e punitivista para governar esses fluxos de pessoas com variadas técnicas de vigilância e controle nas fronteiras e dentro dos próprios países As declarações do presidente dos Estados Unidos Donald Trump e de governantes como Viktor Orban Hungria e Matteo Savini Itália exemplificam construção de um discurso que associa automaticamente essa população ao crime estabelecendo um clima de insegurança e medo que tem efeitos práticos concretos de desrespeito aos direitos humanos dessas populações também nos países para os quais elas emigram ou tentam emigrar No Brasil como veremos grupos internos como a população negra e periférica são as maiores vítimas dessa lógica punitivista No entanto o país não está separado do contexto internacional de aumento das migrações e tende a receber cada vez mais deslocados forçados e refugiados de outros países Sobretudo é importante lembrarmos que o Brasil também já foi durante a ditadura produtor de refugiados Esta seção nos ajudará a entender os fatores de desrespeito aos direitos humanos nesse período obscuro da nossa história e da de outros países da América Latina Naquele momento os brasileiros foram reconhecidos como refugiados portanto tiveram seus direitos humanos respeitados em diversos países como Estados Unidos Inglaterra França Itália Espanha Portugal e outros Hoje segundo dados do Comitê Nacional Para Refugiados CONARE 2018 nós recebemos solicitantes de refúgio de mais de 80 países em particular haitianos senegaleses venezuelanos sírios e angolanos Você avalia que o Seção 22 Seção 22 Direitos humanos por que e para quem 79 Brasil caminha para o reconhecimento do direito de refúgio e também dos direitos humanos dessas pessoas ou ao contrário acredita que o país tende a assumir políticas que associam ideologicamente a imigração ao crime o que se chama hoje de crimigrar MORAES 2016 Iniciaremos com o tratamento dos direitos humanos na Modernidade e seu desenvolvimento no berço do Iluminismo Além de indicarmos a legis lação de referência desses direitos ofereceremos elementos para a compre ensão de como o Iluminismo foi fundamental para a afirmação de princí piosbase de enorme importância e validade para os tempos atuais Em seguida abordaremos os crimes contra a humanidade e seus casos emblemá ticos para entendermos questões vivas até hoje que colocam desafios para as sociedades até mesmo a brasileira Por fim a partir dos ensinamentos do filósofo Michel Foucault e de autores que o atualizaram trataremos das lógicas punitivistas na sociedade moderna sua relação com o saberpoder e sua plena aplicação na contemporaneidade Não pode faltar Nesta seção vamos começar trabalhando com a noção moderna de direitos humanos Deixaremos de discutir como esse direito era concebido nos séculos precedentes a partir da perspectiva religiosa e filosófica para nos concentrarmos em um período de enorme riqueza da sociedade ocidental denominado Iluminismo Tratase de um movimento cultural que nasce na Europa do século XVIII no bojo do processo de transição da socie dade feudal à capitalista O Iluminismo representa um marco histórico de mudanças significativas na forma de conceber o mundo com reflexos nas mais diversas áreas do pensamento filosofia literatura artes física matemá tica direito Esse período é chamado de século das luzes por defender como valor central o conhecimento a razão e o progresso da ciência e da cultura A imagem da luz era colocada como o antídoto ao que se considerava um atraso e sobretudo um entrave ao desenvolvimento dos sujeitos e das socie dades a ignorância a superstição o fanatismo religioso a intolerância e os abusos da Igreja e do Estado A razão passa a ser entendida como necessária portanto para iluminar uma nova visão de mundo fundada em valores como tolerância religiosa liberdade de pensamento liberdade política liberdade religiosa direito de resistência à tirania separação do Estado e da religião laicidade educação universal Muitos desses valores que foram afirmados por diversos pensadores exerceram um papel importante para efetivar mudanças no plano jurídico político e econômicosocial daquela época e permanecem sendo fundamentais para pensarmos as sociedades até hoje 80 U2 Cidadania e direitos humanos Pesquise mais Figura 21 A liberdade ou a morte 1795 de Jean Baptiste Regnault Fonte httpscommonswikimediaorgwikiFileJeanBaptisteRegnaultLaLibertC3A9 oulaMortJPG Acesso em 14 jan 2019 Contemple a pintura de Jean Baptiste Regnault 17541829 A liberdade ou a morte 1795 Repare como a alegoria sugerida pelo pintor francês retrata muito bem o espírito da época do Iluminismo Sem dúvida o questionamento que essa imagem provoca é ainda bastante atual Acreditar na razão e na sua capacidade libertadora também acompa nhava um ideal de sociedade que tinha que se aperfeiçoar progredir caminhando em direção às luzes propiciadas pelo conhecimento cientí fico baseado na observação e na demonstração empírica e não em dogmas Essa questão será depois muito discutida e também criticada sobretudo por teorias por exemplo Adorno e Horkheimer 1986 Foucault 1994 que polemizam em relação ao fato de que a raciona lidade moderna a técnica e a ciência impliquem automaticamente na emancipação humana A noção de direitos humanos na modernidade é gerada nesse rico berço cultural do Iluminismo e não deixa de refletir uma forma de crítica à sociedade com um papel também transformador que naquela época foi encabeçado pela nascente classe burguesa O libera lismo guiava os princípios econômicos e o jusnaturalismo origem do Seção 22 Direitos humanos por que e para quem 81 latim ius naturale direito natural o Direito com base na doutrina que considera todos os indivíduos portadores de direitos inatos naturais É importante perceber que a doutrina jusnaturalista que tem diferentes vertentes teóricas mesmo na Antiguidade e na Idade Média é reafir mada e desenvolvida no período iluminista a partir de uma base racional não religiosa A igualdade e a liberdade formais são norteadoras dessa concepção jusnaturalista moderna Há quatro ensinamentos iluministas que são fundamentais para a reflexão sobre os direitos humanos quais sejam 1 a autonomia do indivíduo que é considerado como um ser capaz de tomar decisões autonomamente de ter liberdade para pensar questionar criticar daí vem o reconhecimento do direito natural que o considera sujeito de direitos 2 o humanismo o ser humano é colocado no centro para pensarmos a finalidade dos nossos atos e qualquer outro aspecto da vida social considerando portanto a vida humana também um direito inviolável 3 o universalismo o pertencimento ao gênero humano é considerado mais importante do que o pertencimento a um grupo em particular ou seja a ideia de que todos os seres humanos são portadores de direito 4 o respeito à diversidade pensar universalmente em defesa da humanidade significa reconhecer as diferenças sejam elas religiosas de pensamento ou políticas Se lermos os textos de filósofos iluministas como Jean Jacques Rousseau 17121778 e Immanuel Kant 17241804 e em seguida os artigos da Carta de Direitos Americana Bill of Rights 17891791 e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão 1789 compreendemos que esses marcos jurídicos fundadores dos direitos humanos na modernidade estão profundamente enraizados nos ideais iluministas É exatamente por esse motivo que esses textos e essas legislações não envelheceram E mais do que nunca é nossa tarefa hoje recuperálos para poder retomar ideais que podem ter um papel transformador em particular para combater os obscurantismos presentes na contemporaneidade A evolução dos direitos humanos até os séculos XX e XXI não deixou de se espelhar nesses ideais A Declaração Universal dos Direitos do Homem Organização das Nações Unidas 1948 outro marco jurídico importante dos direitos humanos é o maior exemplo de como esses ideais não envelhe ceram e continuaram sendo de enorme importância para poder dar uma nova direção para uma sociedade que naquela época estava saindo de duas grandes guerras mundiais Essas guerras são exemplos muito fortes de catástrofes humanas Por esse motivo nesse momento as sociedades europeias se colocaram a difícil mas necessária tarefa de lidar com os crimes contra a humanidade que não poderiam se repetir como aqueles perpetrados pelo nazismo 82 U2 Cidadania e direitos humanos Exemplificando A Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Assembleia Geral das Nações Unidas ONU 1948 após um preâmbulo muito importante por explicitar os princípios norteadores dos direitos humanos determina em seus primeiros artigos Artigo I Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade Artigo II 1 Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração sem distinção de qualquer espécie seja de raça cor sexo língua religião opinião política ou de outra natureza origem nacional ou social riqueza nascimento ou qualquer outra condição 2 Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa quer se trate de um território independente sob tutela sem governo próprio quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania Artigo III Todo ser humano tem direito à vida à liberdade e à segurança pessoal Artigo IV Ninguém será mantido em escravidão ou servidão a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas Artigo V Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel desumano ou degradante Artigo VI Todo ser humano tem o direito de ser em todos os lugares reconhecido como pessoa perante a lei Artigo VII Todos são iguais perante a lei e têm direito sem qualquer distinção a igual proteção da lei Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação ONU 1948 p 46 Seção 22 Direitos humanos por que e para quem 83 Foi justamente nesse imediato PósGuerra em 1945 que houve a opera cionalização da punição do crime contra a humanidade a partir de princí pios do direito internacional O Tribunal de Nuremberg foi uma iniciativa que transformou os ideais de defesa dos direitos humanos em uma prática judicial com o importante papel de também produzir memória para evitar que momentos tenebrosos da história que viraram as costas para os direitos humanos se repitam Os principais representantes do regime nazista foram julgados nesse Tribunal pelos crimes de guerra sobretudo pelo extermínio de mais de seis milhões de judeus além de opositores ao regime homosse xuais ciganos dentre outros grupos sociais Colocavase nessa ocasião o dever de reconhecer e punir as atrocidades que causam grande sofrimento e atingem a integridade física eou mental de indivíduos ou grupos sociais Pesquise mais Hanashiro 2001 oferece um histórico e um panorama completo do desenvolvimento do sistema de proteção aos direitos humanos nas Américas que encontrou sua condensação na Carta da Organização dos Estados Americanos OEA na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem ambas de 1951 e na Convenção Americana de Direitos 1978 Em 1969 esses direitos passaram a ser operacionali zados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e mais tarde em 1979 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos HANASHIRO O S M P O sistema interamericano de proteção aos direitos humanos São Paulo Editora da Universidade de São Paulo Fapesp 2001 p 3525 Nessa ocasião foi afirmado um princípio de justiça global que colocava a primazia do direito internacional em relação ao nacional como instrumento de defesa dos direitos humanos para coibir práticas que são consideradas intoleráveis porque atentam à humanidade Na atualidade a Corte Penal Internacional sd é o principal órgão responsável por punir crimes contra a humanidade e por denunciar práticas hediondas É variado o quadro de violação de direitos humanos de indivíduos ou grupos sociais por motivo político econômico religioso racial compreendendo assassinato escra vidão deportação tortura prisão abusiva abuso sexual perseguição em massa desaparecimento de pessoas apartheid genocídio crime de guerra prostituição forçada esterilização forçada dentre outros 84 U2 Cidadania e direitos humanos Exemplificando Os casos de genocídio são os exemplos mais gritantes de crime contra a humanidade Em geral esse crime é associado ao extermínio dos judeus durante o nazismo No entanto é importante lembrarmos que esse fenômeno é muito mais amplo Sobretudo muito antes da barbárie do nazismo ocorrida no contexto europeu a prática do extermínio em massa já tinha precedentes com a atuação dos sistemas coloniais na América Latina África e Ásia BRUNETEAU 2006 Com relação à América Latina o autor David Stannard 1993 chamou de holocausto americano a dizimação da população indígena na América do Sul e do Norte pelas armas dos colonizadores europeus e também pelas doenças biológicas que traziam Muitos outros autores utilizamse das estimativas populacionais do período anterior à colonização 1500 comparandoas com as primeiras décadas desse mesmo século para iluminar o rápido e brutal decréscimo da população indígena do conti nente que nada mais é do que um verdadeiro genocídio O historiador Enzo Traverzo em seu livro La violenza nazista uma genea logia 2002 mostrou que a conquista do espaço vital baseado no critério racial ocupação de novos territórios para a raça pura alemã já tinha sido amplamente utilizada pelos sistemas coloniais modernos nas colônias e é um dos fatores que explica a genealogia do nazismo ou seja os processos que estão em sua origem histórica no que se refere às práticas genocidas e violentas Essa forma violenta de tratar grupos sociais específicos da nossa população antes os selvagens e hoje os mais pobres e os negros não pertence apenas ao passado Por exemplo hoje a mídia tem um papel muito importante em difundir a ideia de que bandido tem que morrer Em nenhum momento se esclarece no entanto quem é esse bandido qual é a sua história de vida de qual sistema de violência do Estado e da sociedade ele também foi vítima que tratamento ele recebe na prisão Da mesma forma em nenhum momento se discute como sociedades que já foram marcadas pela violência e caminham para resolver de forma humanizada o problema da criminalidade atacam suas causas ou seja como lidam com as desigualdades sociais o acesso ao trabalho digno à moradia e à educação o respeito aos direitos humanos enfim o direito à vida Lamentavelmente nossa memória latinoamericana é atravessada por crimes contra a humanidade Como não poderíamos citar o tráfico de escravos e a escravidão que foram perpetuados por séculos no Brasil para sustentar nossa economia agrárioexportadora O historiador Clóvis Moura 2014 mostra muito bem as barbáries perpetuadas contra os negros que eram justificadas pela ideia de que esses não eram homens não pertenciam Seção 22 Direitos humanos por que e para quem 85 à humanidade portanto não podiam nem mesmo ser tratados como súditos apenas como animais Segundo Abdias Nascimento 1978 o genocídio contra os negros é permanente e ocorre de forma velada no Brasil As estatísticas sobre os jovens negros que são assassinados e encarcerados no Brasil comprovam que esse autor continua tendo toda a razão A segunda metade do século XX é igualmente repleta de crimes contra a humanidade no nosso continente Os regimes ditatoriais que se disseminaram em vários países como Argentina Chile Uruguai e Brasil são exemplos de crimes contra a humanidade pela prática da tortura de dissidentes políticos assassinatos estupros de mulheres prisões em massa desaparecimento de corpos perseguições Essas práticas no Brasil produziram muitos mortos desaparecidos porém não receberam um julgamento que ateste e reconheça essas atroci dades até hoje Sabemos que nesse período o Brasil também expulsou muitas pessoas que resistiam e lutavam contra essas práticas em defesa dos direitos humanos e da democracia sobretudo da liberdade de expressão valor que como já mencionado havia sido reconhecido muitos séculos atrás São décadas nas quais o Brasil produziu muitos refugiados jovens estudantes professores intelectuais artistas escritores músicos A liberdade a imaginação a criação a crítica a participação cidadã na política não eram tolerados pelo regime Uma crítica que é muito pertinente ao nosso país referese à incapaci dade ou à falta de vontade política de trabalhar com essa longa história de desrespeito aos direitos humanos Essa crítica não vale apenas para o nosso passado remoto da sociedade colonial que não foi devidamente discutido e ensinado criticamente para a população mas também vale para o nosso passado recente do regime ditatorial A iniciativa da Comissão Nacional da Verdade que foi referendada pela Lei nº 12528 BRASIL 2011 merece destaque como uma exceção a essa regra A Comissão foi recentemente implementada para agir nessa lacuna e representa uma conquista de pesquisadores professores movimentos sociais e das pessoas sobretudo de vítimas eou familiaresconhecidos de mortos perseguidos torturados na ditadura comprometidos com a produção da memória por meio do exame e do esclarecimento das graves violações aos direitos humanos cometidas no período da ditadura 19641988 Um relatório final foi produzido por essa Comissão no qual é possível analisar os limites e os desafios dessa iniciativa sobretudo o de comunicar os seus resultados para a população em geral e poder efetivar políticas públicas para a conscientização dessa memória PEREIRA 2016 86 U2 Cidadania e direitos humanos Ao contrário países como Uruguai Chile e Argentina trabalharam de forma muito mais eficiente com essa memória sobre a ditadura para explicar para a sua população o que significam os crimes contra a humanidade cometidos durante esses regimes Nesse último país por exemplo há uma iniciativa que se sobressai nesse sentido Você já ouviu falar das Mães da Praça de Maio São várias mulheres que tiveram seus filhos desaparecidos durante a ditadura argentina e que marcham semanalmente em frente à Casa Rosada sede do governo federal Argentino em Buenos Aires com os lenços brancos em suas cabeças por representarem simbolicamente as fraldas de seus bebês para protestar contra a ditadura e reivindicar a memória dessa atrocidade que matou seus filhos e muitos outros jovens para que isso não se repita mais Reflita Ao marcharem as madres falam bem alto o nome de seus filhos assassi nados pelo regime e as pessoas respondem presente Tratase de uma ação cidadã dessas mães que hoje já são idosas entretanto não se cansam de marchar na luta pela justiça e pela memória de seus filhos desapare cidos Você já é pai ou mãe de um filho ou deseja ser no futuro Você pode entender a dor dessas madres e a importância da sua ação cidadã Figura 22 Mães da Praça de Maio Fonte httpsmediaminutounocomadjuntos150imagenes0229890022989998jpg Acesso em 14 jan 2019 Seção 22 Direitos humanos por que e para quem 87 Reflita No Brasil tem sido comum o questionamento de que a ditadura militar caracteriza um período em que se cometeu crimes hediondos contra a humanidade como a tortura assassinatos desaparecimentos perse guições estupros de mulheres opositoras ao regime O relatório da Comissão da Verdade mostra de forma muito bem sistematizada como esses crimes foram reais BRASIL Comissão Nacional da Verdade Relatório Brasília CNV 2014 recurso eletrônico No Chile a ditadura comanda pelo general Pinochet foi a mais mortí fera da América do Sul Na capital Santiago há um Museu dos Direitos Humanos onde é possível encontrar uma sistematização muito didática acessível a toda a população sobre as práticas do terror durante esse período com as memórias de suas vítimas Lá podemos encontrar milhares de fotos cartas a parentes desenhos de crianças que nos ensinam muito sobre o sofrimento humano e o sacrifício de vidas acionado sem escrú pulos naquele período Esses períodos mais obscuros e mortíferos da humanidade explicitam na verdade a sistemática aplicação de uma lógica punitiva em um contexto ditatorial No entanto se pararmos para refletir percebemos que essas lógicas também podem estar presentes no funcionamento das sociedades em um Estado democrático e até mesmo na nossa cotidianidade perpassada por instituições como a escola os hospitais e as prisões Seria necessário um tratamento mais aprofundado para entendermos por que a população adere irrefletidamente ao punitivismo entendido como uma lógica de punição ou seja a ideia de que a punição o castigo a pena é a única e mais eficaz solução Sem considerar o papel da mídia de construir essa visão única para olhar para o problema da violência silenciando outras violências em nível macro como a do sistema econômico ou da ação do próprio Estado é impossível entender essa questão Michel Foucault 19261984 nos ajudar a refletir sobre esse dilema antigo e atual ao explicar que o punitivismo é também uma forma de governar do poder que passa pela incorporação da lógica de punição pelos sujeitos O autor é uma referência para reconhecermos o caráter brutal da repressão e do controle no funcionamento das sociedades modernas que paralelamente à afirmação dos direitos humanos colocaram no centro de sua organização a vontade de punir as técnicas de punição e vigilância permanentes legitimadas por saberes que evoluíram para um tipo específico de práticas disciplinares amplamente disse minadas e mais do que tudo internalizadas pelos próprios sujeitos 88 U2 Cidadania e direitos humanos O modelo arquitetônico de prisão de Jeremy Benthan do Panopticon pan significa tudo e optikós visão é utilizado por Foucault para explicar a especificidade do que chama poder disciplinar uma vez que retrata concretamente a operacionalização da lógica punitiva internalizada pelos próprios indivíduos e pensada cientificamente Segundo Foucault O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa compo sição O princípio é conhecido na periferia uma construção em anel no centro uma torre essa é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel a construção periférica é dividida em celas cada uma atravessando toda a espessura da construção elas têm duas janelas uma para o interior correspondendo às janelas da torre outra que dá para o exterior permite que a luz atravesse a cela de lado a lado Basta então colocar um vigia na torre central e em cada cela trancar um louco um doente um condenado um operário ou um escolar Pelo efeito da contraluz podese perceber da torre recortandose exatamente sobre a clari dade as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia Tantas jaulas tantos pequenos teatros em que cada ator está sozinho perfeitamente individualizado e constantemente visível FOUCAULT 1997 p 166 O segredo da técnica de vigilância contínua é que o condenado não sabe se de fato está sendo observado já que existe apenas um vigia no centro da prisão para controlar todos os detentos Todavia o simples fato de suposta mente estar sob vigilância faz com que o detento internalize essa norma e obedeça às regras de bom comportamento No contato com essa disciplina reproduzida por instituições como as prisões escolas hospitais nascem os corpos dóceis obedientes e também produtivos uma sujeição real nasce mecanicamente de uma relação fictícia De modo que não é necessário recorrer à força para obrigar o condenado ao bom comportamento o louco à calma o operário ao trabalho o escolar à aplicação o doente à observância de receitas FOUCAULT 1997 p 167 Seção 22 Direitos humanos por que e para quem 89 Assimile A arquitetura do poder disciplinar pode ser entendida pela imagem a seguir do Panopticon analisado por Michel Foucault Figura 23 Panóptico de Bentham Fonte httpwwwrevistaespacioscoma16v37n322401png Acesso em 13 dez 2018 A relação podersaber expressa em discursos científicos e no senso comum sobre a punição também tem um papel fundamental para a construção da verdade sobre o crime e para a legitimação de sua punição pelas práticas disciplinares que incluem a vigilância contínua O filósofo nos explica que esse saber construído é também uma forma de controle político e social que se transforma em práticas generalizadas atingindo determinados grupos sociais em particular os classificados como anormais loucos detentos homossexuais prostitutas dentre outros Como exemplo podemos citar o discurso científico da psiquiatria para classificar os normais e os loucos estabelecendo práticas específicas não apenas para separar esses últimos da sociedade mas também para punilos quando infringiam as regras de conduta nas instituições psiquiátricas Lembremos que os hospi tais psiquiátricos até pouco tempo atrás utilizavamse de práticas como a cadeira de choque o açoite as alas de isolamento total entre outras Essas práticas eram consideradas pelo discurso psiquiátrico como a única forma de curar as pessoas com problema psíquico A questão é que essas pessoas ao contrário de serem curadas de forma humanizada e integrada com os familiares e a sociedade viviam e morriam nesses hospitais Como estavam isoladas a sociedade simplesmente não via ou não queria enxergar o que ocorria dentro dessas instituições e como o discurso científico da psiquiatria não correspondia aos fins de de fato curar esses pacientes O campo do saber está portanto intrinsecamente ligado ao exercício do poder por se basear em discursos científicos para legitimar as suas práticas Lembremos que essa relação podersaber também expressa relações de desequilíbrios entre os sexos Baseado nos ensinamentos de Foucault o estudo 90 U2 Cidadania e direitos humanos de Da Silva 1985 mostra como o saber da legislação penal que regulamenta a sexualidade da mulher a doutrina penal que garante a aplicação dessas normas e a jurisprudência presente em toda a dogmática penal conseguem adaptar definições de normalidade da conduta da mulher estabelecidas pelas estruturas de poder dominantes ao corpo da mulher Com base nessas defini ções de normalidade da conduta da mulher construídas pelo poder patriarcal que considera a mulher inferior e submissa ao homem muitas sentenças proferidas pelos tribunais penais absolvem os homens que cometeram crimes de violência e abuso sexual contra as mulheres Segundo a autora o Direito Penal reproduz as relações assimétricas entre os sexos na sociedade brasileira também com base em elementos teóricos ou recursos teóricos que reforçam no nível do conhecimento e da racionalidade as técnicas de dominação da mulher É sob este prisma que se analisaram o discurso do poder judiciário a partir da lei para provar que pelo poder de normalização instalouse no direito penal um conjunto de práticas em forma de técnicas de controle físicocorporal da sexualidade feminina DA SILVA 1985 p 111 De Carvalho 2010 explica que desde as últimas décadas o Brasil pode ser considerado para todos os efeitos um país que segue a mesma tendência punitivista presente no cenário internacional em detrimento do direito à vida O encarceramento em massa é prova disso O autor discute como em um contexto de crise incerteza insegurança a cultura do medo do ódio da tolerância zero enfim as lógicas punitivistas fazem parte do imaginário das pessoas e sobretudo da forma de governar dos Estados A mídia é um vetor de enorme importância dessa racionalidade Não há uma reflexão que evite o despertar de um sentimento de insegurança de impunidade que acompanha portanto a ideia da punição da vingança e da privação de liberdade Exemplificando Repare quantas vezes você escuta nos jornais e nos programas televi sivos notícias sobre crimes e sobre a ação da polícia Compare com o tempo dedicado a discutir projetos para construir uma sociedade com trabalho digno para todos com acesso universal à educação de quali dade à cultura à moradia ou mesmo para revitalizar os espaços públicos das cidades para que as pessoas andem nas ruas e frequentem praças parques evitando assim a propagação da violência Seção 22 Direitos humanos por que e para quem 91 O maior problema sobre essa questão como ressaltam diversos estudiosos é que o clamor punitivista caminha ao lado da violação de garantias e direitos sobretudo dos direitos humanos do direito à vida e do abuso de poder O que se está produzindo no fundo são sociedades mais violentas Autores como Loïc Wacquant mostram como os países que mais possuem encarcerados no mundo como os EUA não são aqueles que têm menores índices de criminalidade Conforme explica o autor o aprisionamento em massa reflete o funcionamento da tolerância zero contra os grupos mais vulneráveis da sociedade os de baixa renda os negros os imigrantes daí a sua famosa expressão prisões da miséria e criminalização da pobreza Assimile 1 Nós sabemos que a principal vítima das lógicas punitivistas no Brasil é a população negra MOURA RIBEIRO 2014 e no contexto internacional são os imigrantes e refugiados Figura 24 Raça cor ou etnia das pessoas privadas de liberdade e da população total Fonte BRASIL 2017 p 32 2 O estudo de Fernanda Garcia 2016 traz um panorama completo teórico e empírico sobre o funcionamento dos inúmeros centros de detenção de imigrantes na Europa em particular na Itália Segundo a autora as práticas de vigilância e controle e a violência a que são submetidos os imigrantes e refugiados permitem comparar essas prisões com os campos de concentração no regime nazista Sem medo de errar A situaçãoproblema coloca em discussão a questão dos refugiados A proposta é analisar essa questão a partir do contexto brasileiro O Brasil já foi e ainda é um país receptor de refugiados No passado recebeu europeus que fugiam das duas grandes guerras e nas últimas décadas refugiados de diferentes nacionalidades sobretudo sírios venezuelanos haitianos angolanos palestinos O refugiado é protegido por tratados internacionais Branca Negra Amarela Indígina Outras 92 U2 Cidadania e direitos humanos como a Convenção de Genebra 1951 a Declaração de Cartagena 1984 e os princípios dos direitos humanos e no Brasil pela Lei Nacional de Refúgio nº 9474 BRASIL 1997 e pela Constituição Federal BRASIL 1988 Esses deslocamentos forçados espelham o desrespeito aos direitos humanos e situações de desastre ambiental nos países de origem dessas populações além de casos mais típicos de refúgio provocados por perse guição política racial religiosa violência guerra e outros casos de ameaça à vida Hoje também se discute a necessidade de ampliação desse estatuto para abranger uma concepção mais ampla de desrespeito aos direitos humanos e situações de desastre ambiental Grande parte desses deslocamentos contemporâneos é provocada por conflitos e guerras No entanto a atuação de governos que desrespeitam as liberdades políticas mais elementares como o direito de resistência à opressão princípios que foram afirmados há muito tempo no Iluminismo coloca um alarme para as nossas sociedades e suas conquistas democráticas que carregam anos de lutas e muitos sacrifícios até de mortes torturas perse guições prisões para combater governos tiranos e genocidas no passado remoto e no mais próximo como demonstra o caso dos regimes totalitários na Europa e das ditaduras no Brasil e no restante da América Latina Para entendermos essa questão de forma mais aprofundada é válido retornar ao período em que o Brasil foi um país produtor de refugiados 19641984 Muitos estudos acadêmicos comprovam que o Brasil expulsou inúmeras pessoas que resistiam e lutavam contra o governo militar em defesa dos direitos humanos e da democracia sobretudo da liberdade de expressão valor que como já mencionado foi reconhecido há muitos séculos atrás Esses refugiados eram sobretudo jovens estudantes professores intelectuais artistas escritores músicos A liberdade a imaginação a criação a crítica e a participação cidadã na política quando vistos pelo regime como ameaças não eram tolerados Apesar de o Brasil não oferecer como outros países o fizeram instru mentos para que a população entenda mais concretamente essa fotografia do horror na nossa história e a necessidade de não deixarmos que ela se repita há muitos relatos filmes livros músicas que podem nos ensinar essa questão Embora não possamos defender que as luzes da razão podem resolver todos os problemas da humanidade sobretudo da emancipação humana é válido retomar os princípios que motivaram o Iluminismo Esses valores são fundamentais como parâmetros para pensarmos a vida coletiva e conti nuam válidos e atuais para evitarmos que nossas sociedades caminhem em direção ao obscurantismo da razão A negação desses valores e a interdição Seção 22 Direitos humanos por que e para quem 93 antidemocrática da participação cidadã são sinais de um retrocesso que remonta a séculos atrás O acolhimento no Brasil dos novos refugiados passa pelo reconheci mento da sua condição humana e também da necessidade de proteção dos valores democráticos na nossa sociedade para que nosso país não se transforme novamente em um país produtor de refugiados em massa Ou seja a defesa de um refugiado de ser acolhido em nosso país está totalmente conectada com a defesa de que os próprios brasileiros tenham seus direitos respeitados não precisando fugir para outros países tornandose eles próprios refugiados A nossa Constituição Federal BRASIL 1988 é guardiã desses valores bem como os tratados internacionais mencionados na seção Há portanto uma legitimidade jurídica para o pleito de proteção para todos os cidadãos brasileiros e não nacionais que tenham ameaçada a sua liberdade de expressão de fé religiosa de posicionamento político de escolha de identi dade sexual dentre outros casos 1 Leia o trecho a seguir Faça valer a pena Qual das alternativas a seguir se comunica com a orientação cultural que serviu de base para o desenvolvimento do Iluminismo a Como a opinião da maioria da população ou seja o senso comum acredita que a terra é o centro do Universo a disciplina da Física não pode trabalhar com uma hipótese contrária O século XVIII tinha todas as razões para ver na razão a potência finalmente capaz de entender a natureza e a sociedade explicar a própria religião libertar o homem de seus terrores seculares desvendar todos os mistérios Reformar tudo Os filósofos do Iluminismo fizeram uma audaciosa construção intelectual nesse norte Hobbes Locke Voltaire Montesquieu Diderot Condorcet Rousseau só para mencionar algumas das grandes mentes que malgrado tantas diferenças e divergências entre si descontruíram metodicamente as estruturas da visão social de mundo do feudalismo A razão humana sua ilimitada capaci dade de desvendar de iluminar os fenômenos daí Iluminismo poderia moldar o mundo em bases novas tudo poderia ser revisto e reformado por seu filtro TRINDADE 1998 p 43 94 U2 Cidadania e direitos humanos b O Darwinismo e a teoria evolucionista não são conhecimentos válidos pois vão contra doutrinas religiosas c A forma de se combater os medos as inseguranças a fome as guerras que assolam a sociedade é ter uma crença d O homem enxerga melhor a realidade que o circunda e se liberta quando busca o conhecimento científico e Os escritos sagrados contêm tudo o que o homem precisa saber A crença nesses escritos é o único caminho do conhecimento 2 Leia o fragmento a seguir O enunciado ilustra atos cometidos contra mulheres no Brasil que não foram enqua drados como crime pelos tribunais penais na década de 1970 e início dos anos 1980 O que a ótica dos tratados internacionais ilumina sobre esse mesmo caso a Não há previsão desse crime pelos tratados internacionais já que o poder masculino é irrestrito e legítimo em nível global e em todas as suas formas de manifestação b Sob a ótica dos tratados internacionais as falas não enquadram nenhum tipo de crime pois essas mulheres estavam trabalhando na rua com roupas indecorosas e provocaram os homens que passavam no local c Nos tratados internacionais o crime descrito se enquadra como um crime contra os direitos humanos d Segundo os tratados internacionais a lei do país onde esse ato foi praticado tem prioridade para aplicar o princípio de que as mulheres são objeto do homem e Segundo os tratados internacionais esse crime só deve ser punido caso seja comprovado que essas mulheres tinham uma conduta moral e familiar adequadas 3 Leia o texto a seguir Me apontou um revólver e mandou eu tirar a roupa Jamais pensei que ele fosse me currar Gritou para eu parar de chorar e tirou minha roupa devagar com a maior cara de sacana Estes são alguns dos depoimentos registrados nos autos dos processos judiciais dos crimes contra os costumes arquivados nos foros e tribunais brasileiros DA SILVA 1985 p 74 No dia 16 de dezembro de 2013 um vídeo feito através de um telefone celular por um imigrante detido no Centro de Primeiros Socorros e Acolhimento CPSA na ilha italiana de Lampe dusa revelou imagens impactantes que evocam atos trágicos ocorridos na Europa na história recente As imagens obtidas pelo jovem sírio registram o tratamento antisarna ao qual são Seção 22 Direitos humanos por que e para quem 95 Quando a autora se refere a afirmações consideradas como exageradas inadequadas infundadas ou equivocadas está discutindo a A forma como a mídia apresenta o aumento da imigração na Itália como se fosse uma invasão pelo seu alto volume b A multiplicação das prisões na Europa que embora tenham sido construídas nos últimos anos para deter os imigrantes são instituições ainda marginais c O caráter de exceção das medidas punitivas aplicadas contra os imigrantes que são muito mais violentas comparadas às aplicadas em prisões para os nacionais e sem amparo nos direitos humanos d As acusações de que o nazismo foi um regime mortífero que cometeu o crime de genocídio contra os judeus e outros grupos sociais além de crimes de guerra e O risco de morte dos imigrantes na travessia do Mar Mediterrâneo para a Itália que se mostra segura apesar do aumento dos índices de mortes nos últimos anos submetidos os estrangeiros ali confinados tratados como animais expostos ao frio intenso nus e seminus estes indiví duos no pátio externo do centro foram pulverizados com jatos de desinfecção enquanto um agente de segurança organizava e orientava a operação com a brutalidade de um kapo RIVERA 2013 p01 uma prática cuja ocorrência e semanal A forma do tratamento assim como a estética do centro que funciona simultaneamente como centro de acolhimento e centro de detenção e do processo de desinfecção foram evidenciadas a partir da veiculação ao nível mundial do referido vídeo forçando o posicionamento de diversos líderes políticos italianos e europeus sobre a função e os objetivos destes espaços Tais figuras políticas que ate entao apoiavam e fomentavam a edificacao e multipli cacao destes centros manifestaramse publica e criticamente com relacao a estes espacos ao mesmo tempo em que parte da midia passou a utilizar a palavra alema lager para caracteriza los em referencia aos campos de concentracao e exterminio da Alemanha nazista e aos processos de desumanizacao aos quais os prisioneiros foram submetidos Enquanto diversos ativistas movimentos sociais organizacoes internacionais intelectuais e expoentes politicos ja alertavam para o carater violento concen tracionario dos centros italianos ha pelo menos duas decadas tanto os sucessivos governos quanto a midia em geral caracteri zavam tais afirmacoes como exageradas inadequadas infundadas ou equivocadas GARCIA 2016 p 2021 96 U2 Cidadania e direitos humanos Democracia e cidadania quem tem o poder Diálogo aberto Caro aluno seja bemvindo à Seção 23 Aqui discutiremos os direitos fundamentais em sua relação com a democracia a cidadania e o reconheci mento das diferenças Você já parou para pensar em quais são os grupos sociais do Brasil que mais sofrem com as barreiras no acesso à cidadania e quais são essas barreiras visíveis mas também muitas vezes invisíveis por eles enfren tadas para a atuação política ou seja para a representação e a reinvindi cação de seus direitos Para refletirmos sobre essas questões no contexto nacional tenta remos entender alguns problemas do funcionamento das sociedades atualmente em particular o aumento das desigualdades e sua relação intrínseca com a culpabilização e a exclusão dos grupos sociais margi nalizados denominados pelas ciências sociais de diferença No mundo inteiro mas no Brasil em particular essa lógica tem crescido apesar de também existirem contratendências guiadas pela defesa dos direitos fundamentais e dos direitos humanos e por políticas de inclusão e de reconhecimento das diferenças O continente europeu é hoje um dos principais destinos de imigrantes e refugiados expulsos de seus países Sabemos que ali os efeitos da crise mundial eclodida em 20072008 acirram conflitos já existentes e criam novos De fato os imigrantes e refugiados passam a ocupar o lugar da diferença nessas sociedades e muitas vezes são identificados como o bode expiatório de todos os problemas existentes desemprego crimina lidade terrorismo dificuldade de acesso a serviços públicos dentre outros Essa tendência está estreitamente relacionada com a reprodução e o reforço de desigualdades das quais esses grupos são as principais vítimas como o acesso a um emprego mais valorizado e protegido à educação e a serviços de educação e saúde No Brasil a análise das diferenças deve abranger as raízes históricas que colocaram os negros indígenas e outras populações marginalizadas na posição da diferença e de mais atingidos pelas desigualdades Como sabemos essa questão social se reproduziu nos períodos históricos posteriores Por que será que as mulheres pertencentes a esses grupos sociais são as mais atingidas pelos fatores de discriminação de desigualdade e de exclusão Seção 23 Seção 23 Democracia e cidadania quem tem o poder 97 da participação política Na sua opinião como seria o Brasil hoje sem a luta por reconhecimento no passado e no presente empreendida por esses grupos sociais As desigualdades sociais estariam mais equilibradas sem a reivindicação desses grupos No que se refere à democracia você acha que a luta por reconhecimento interfere positiva ou negativamente na forma de funcionamento do nosso regime democrático Nesta seção tentaremos entender de que modo essas diferenças ainda atuam na contemporaneidade seja na forma de lógicas de exclusão e de incidência das desigualdades seja na forma de luta por reconhecimento como força contrária à atuação dessas lógicas Por fim é importante não nos esquecermos de que a questão da desigualdade e da diferença e sua relação com a democracia está sendo transformada também pela presença no Brasil e no mundo de imigrantes e refugiados de diversas nacionalidades No Brasil como ocorreu no passado com os imigrantes europeus e de outras nacionali dades essa imigração do século XXI nos obriga a pensar na ampliação do sentido da cidadania Não pode faltar Iniciaremos nosso percurso didático pelo tratamento da relação entre democracia cidadania e direitos fundamentais Na contemporaneidade essa relação está prevista no que se chamou de quarta geração dos direitos fundamentais que segundo o jurista Paulo Bonavides 2004 surgiu no final do século XX no bojo da globalização e das décadas neoliberais após um processo cumulativo e qualitativo de formação das primeiras gerações dos direitos fundamentais BONAVIDES 2004 p 563 O autor nos oferece uma síntese sobre a história dos direitos fundamentais lembrandonos do fator que os distingue os direitos fundamentais são aqueles previstos na Constituição BRASIL 1988 têm portanto garantia constitucional e são essencialmente voltados a criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana BONAVIDES 2004 p 560 Como esclarece Bonavides 2004 a primeira geração dos direitos fundamentais surgiu durante a Revolução Francesa 1789 para afirmar os direitos individuais sobretudo os direitos civis e políticos A segunda geração se manifestou particularmente nas Constituições do pósSegunda Guerra Mundial inclusive na brasileira de forma um pouco tardia com o fim de exigir a implementação pelo Estado de políticas concretas para se efetivar os direitos sociais culturais econômicos e coletivos Dessa segunda geração deriva o dever do Estado e da sociedade de garantir o básico para se prover uma vida digna a todos os cidadãos ou seja o direito do acesso universal à 98 U2 Cidadania e direitos humanos saúde à educação a um trabalho e moradia dignos dentre outros Todavia para além das necessidades básicas percebeuse também no final do século XX a importância da terceira geração dos direitos fundamentais que proclama garantias universais para o gênero humano como a paz entre os povos a preservação do meio ambiente a comunicação livre e não subme tida a monopólios e por fim a proteção de locais que pela sua importância cultural e artística são patrimônio comum da humanidade Mas estejamos atentos Bonavides 2004 também nos faz um alerta de que esse desenho geracional dos direitos fundamentais previstos na nossa Constituição de 1988 BRASIL 1988 e de enorme importância para a nossa sociedade não é suficiente para a efetivação desses direitos na realidade Essa discussão foi colocada particularmente na década de 1990 justamente o período no qual os sintomas socioeconômicos maléficos das políticas de abertura dos países à globalização e de redução dos gastos públicos a partir do princípio neoliberal do Estado mínimo passam a se manifestar mais explicitamente em âmbito global com particular intensidade nas sociedades dos países mais pobres que são chamados hoje de Sul Global Nesse contexto percebeuse que a não efetivação dos direitos funda mentais guarda uma estreita relação com a forma de exercício de poder na maioria dos países ou seja em âmbito global que nega a efetiva participação da maioria dos cidadãos nas decisões políticas que lhes afetam diretamente Diversos mecanismos servem a essa situação desde a negação do acesso à renda trabalho educação saúde transporte e moradia até as tecnologias utilizadas para manipular a informação É por esse motivo que nasce a quarta geração dos direitos fundamentais centrada na ação de controle do poder político ao clamar pela participação consciente e corretamente informada não apenas pelo mero exercício do direito de voto mas também pela presença nos diferentes espaços políticos onde são discutidas e decididas questões de interesse comum O pluralismo de opiniões de crenças de culturas de etnias de visões de mundo é um requisito para que esse espaço democrático possa existir Segundo Bonavides 2004 essa quarta geração reflete a necessidade da construção de uma globalização política na qual os direitos fundamentais não estejam separados do modo de funcionamento das democracias e sejam colocados como uma prioridade diante de todos os outros fatores de funcio namento das sociedades inclusive o econômico Seção 23 Democracia e cidadania quem tem o poder 99 Exemplificando A seguinte trecho do jurista Bonavides coloca em evidência a relação entre direitos fundamentais da quarta geração e a atuação política em nível global para garantia da democracia Globalizar direitos fundamentais equivale a universalizálos no campo institucional Só assim aufere humanização e legitimi dade um conceito que doutro modo qual vem acontecendo de último poderá aparelhar unicamente a servidão do porvir A globalização política na esfera da normatividade jurídica introduz os direitos da quarta geração que aliás correspondem à derradeira fase da institucionalização do Estado social São direitos da quarta geração o direito à democracia à informação e o direito ao pluralismo BONAVIDES 2004 p 571 Dessa forma o autor destaca o fato de que a relação dos direitos fundamen tais com o exercício da cidadania pensada de forma articulada globalmente para além da esfera nacional e com a democracia é umbilical Sem um regime político que permita a participação cidadã democrática não é possível se falar em garantia dos direitos fundamentais É por esse motivo que a nossa Constituição de 1988 BRASIL 1988 a Carta Maior que está acima de todas as outras legisla ções do país além de estabelecer os direitos fundamentais também resguarda a democracia e a cidadania A Constituição de 1988 se contrapõe frontalmente ao sistema político das duas décadas anteriores à sua instituição do regime militar que interditou o exercício da cidadania ou seja a participação no poder político pela população Essa garantia da cidadania pela Constituição é uma condição sine qua non dos direitos fundamentais e não podemos esquecer disso Isso não nos exime no entanto de fazer uma crítica a mudanças reais que devem ocorrer nas sociedades para que os direitos fundamentais a democracia e a cidadania não se tornem apenas palavras vazias Sem dúvida alguma quanto mais os direitos fundamentais são desrespeitados eou ignorados mais haverá uma assimetria no funcionamento do poder político Essa perspectiva é extrema mente importante para a compreensão dos problemas vividos pelas sociedades na contemporaneidade Reflita Você já parou para pensar por exemplo na relação dos estremecimentos dos valores democráticos espelhados nos novos cenários políticos em ascensão no atual contexto de crise mundial com o desrespeito dos direitos fundamentais 100 U2 Cidadania e direitos humanos A questão da distribuição de renda está no coração dessa discussão Nos últimos anos os dados do economista francês Thomas Piketty 2014 fizeram muito barulho por deixarem evidente que a tendência à concentração de renda não é uma anomalia dos países do Sul Global Os Estados Unidos centro do sistema econômico mundial seguem criando desigualdades e pobreza Nesse país a renda recebida pelos 10 mais ricos nos anos 1970 era cerca de 35 da renda total A partir de então só foi aumentando e hoje estimase que os 10 mais ricos recebam 48 da renda total Tratase na verdade de uma tendência global O relatório do Comitê de Oxford de Combate à Fome OXFAM 2018 divulgado no início de 2018 mostra que 1 das pessoas mais ricas do mundo concentraram 82 da riqueza gerada em 2017 Esse estado de fato da divisão de renda no mundo torna muito atuais as análises de Charles Wright Mills 19161962 que nos anos 1950 escreveu um clássico da sociologia A elite do poder MILLS 1975 em que analisa a relação estreita entre economia e política para explicar a mudança na estru tura de classes dos Estados Unidos e sua imbricação com a dominação de uma elite econômica política e militar nesse país Essa análise foi atualizada por Robert Frank 2007 ao analisar a evolução dessa estrutura social no século XXI apontando para uma ainda maior concentração de renda de superricos que vivem com uma renda tão alta muitas vezes equivalente ao Produto Interno Bruto de um país ao passo que a maioria da população sofre a pressão do empobrecimento sobretudo após a eclosão da crise mundial em 20072008 Restanos entender como o Brasil se situa nessa questão O que você responderia se lhe perguntassem sobre a relação do funcionamento da democracia no Brasil com a efetividade dos direitos fundamentais Na sua opinião podemos dizer que as gerações dos direitos fundamentais são respeitadas no país No que se refere aos dados de concentração de renda no Brasil a situação é ainda mais alarmante Desde os anos 1990 muitos autores das diferentes áreas do conhecimento vêm demostrando o impacto da globalização no aprofundamento das desigualdades e da exclusão social e também portanto a sua relação com o funcionamento frágil da nossa democracia e de seus caminhos no futuro caso não se tome consciência a respeito da questão da distribuição de renda e riquezas Seção 23 Democracia e cidadania quem tem o poder 101 Pesquise mais Sobre o Índice de Gini sugerimos o material a seguir WOLFFENBÜTTEL A O que é Índice de Gini Ipea Sl ano 1 edição 4 1 nov 2004 A reportagem de Rossi 2017 referindose a dados também fornecidos pela Oxfam nos ajuda a entrar mais a fundo nesse quadro de desigualdades no Brasil ao evidenciar que seis brasileiros concentram a mesma riqueza que a metade da população ou seja um pouco mais de cem milhões de pessoas e os 5 mais ricos da população brasileira detêm a mesma fatia de renda que os demais 95 Segundo dados da Oxfam 2017 165 milhões de brasi leiros vivem com uma renda per capita inferior a dois salários mínimos Um indicador importante para entendermos esse quadro de desigualdade de renda no Brasil diz respeito à estrutura fundiária que revela números igualmente brutais apresentados pelo Censo Agropecuário 2006 091 dos estabelecimentos rurais latifúndios concentram 52 da área total das propriedades rurais Os estabelecimentos com dez hectares de terra repre sentando 47 do total dos estabelecimentos do país ocupam apenas 23 da área total OXFAM 2016 Essa desigualdade de distribuição de terras mantém estreita relação com a situação precária da vida urbana sobretudo das grandes metrópoles Raquel Rolnik 2016 recupera dados sobre a proliferação de assentamentos e moradias informais nas periferias das grandes cidades do mundo e do Brasil explicando os mecanismos de produção de semtetos e da segregação urbana pelo que chama de guerra dos lugares contemporânea Estimouse que no Brasil 2018 69 milhões de famílias não têm uma casa para morar ao passo que há 6 milhões de imóveis desocupados ODILLA PASSARINHO BARRUCHO 2018 É claro que esse quadro socioeconômico reflete questões estruturais sobretudo as antigas as novas e as diferentes faces das desigualdades que foram agravadas de forma drástica pelo contexto de crise econômica e política do Brasil e pelo aumento do desemprego e do trabalho terceirizado eou intermitente Autores como Florestan Fernandes 1973 analisaram as conexões dessa estrutura econômica das periferias do capitalismo com a reprodução de um regime político autoritário Seus estudos mostram bem como o traço colonial de opressão política e exclusão da participação cidadã da maioria da população permanece existindo mesmo depois de o Brasil se constituir como um Estadonação com sua própria burguesia nacional ficando particularmente mais evidentes em contextos de interrupção do 102 U2 Cidadania e direitos humanos regime democrático como no Estado Novo 19301945 e na ditadura militar 19641985 Todavia muitos especialistas no tema das desigualdades entendem que esse quadro é de fato difícil mas não impossível de ser resolvido Estudiosos preocupados com a justiça social não deixam nenhuma dúvida em relação à necessidade de políticas para agir na urgência da fome e do desemprego no Brasil como o Programa Bolsa Família que se torna ainda mais neces sário com o aumento do desemprego em 2018 estimouse em 14 milhões o número de desempregados no Brasil além de outras 15 milhões de pessoas vivendo do subemprego Mas para encarar de fato esse desnível de distri buição de renda eles mostram também a urgência da implementação de programas políticos de caráter mais estrutural como uma reforma no sistema de impostos que no Brasil são pagos desigualmente pelos mais pobres o aumento de salários para cobrir os custos de vida e oferecer maior poder de compra aos trabalhadores a reforma agrária além de outras políticas que garantam os direitos fundamentais de moradia educação saúde e preser vação do meio ambiente As ciências sociais problematizam na verdade como essas desigualdades de distribuição de renda e riqueza têm cor não brancos e sexo feminino combinandose também com outros fatores como escolaridade qualifi cação idade nacionalidade opção e identidade sexual A perspectiva da transubstancialidade CRENSHAW 2002 que articula as dimensões de classe gênero e etnia a fim de olhar para essas desigualdades tem sido muito útil para evidenciar essas particularidades No Brasil o grupo social dos negros é o mais atingido pelas desigual dades No que se refere à renda essa desigualdade é bastante explícita os brancos ganham em média o dobro dos negros OXFAM 2017 ocupando postos de trabalho mais bem remunerados e de maior prestígio e poder Essa desigualdade de renda se desdobra em desvantagens no acesso à educação à saúde ao poder político dentre outros fatores Ela atinge igualmente as mulheres e outros grupos sociais marginalizados os indígenas os migrantes internos e os imigrantes internacionais de perfil socioeconômico vulnerável Muitos movimentos sociais representantes desses grupos dentre outras reivindicações apoiamse na defesa de políticas afirmativas a fim de contrastar os efeitos das desigualdades para grupos sociais particulares No Brasil esses movimentos ganham destaque atualmente com a luta antirra cista e pelas cotas nas universidades públicas bem como pelas manifestações de mulheres para a defesa de seus direitos Souza Ribeiro e Carvalhaes 2010 oferecem um estudo completo sobre as desigualdades de acesso à educação para os negros no Brasil Apesar de Seção 23 Democracia e cidadania quem tem o poder 103 progressos conquistados pelo esforço desses indivíduos e de suas organiza ções coletivas os autores apontam um abismo que ainda persiste no Brasil se considerado o acesso e a permanência de brancos e negros no ensino superior A educação é considerada pelos autores como um fator deter minante para agir nessa desigualdade De fato embora o Brasil tenha sido um dos principais destinos do maior movimento de migração forçada da história o tráfico negreiro sendo que mais da metade da sua população se identifica como afrodescendente apenas 25 desse contingente tem ensino superior completo segundo dados do Censo 2010 A defesa das políticas afirmativas como o direito de cotas raciais nas universidades responde à necessidade de agir nas desigualdades reprodu zidas nas sociedades Como ressalta Silva 2017 a ação afirmativa não é concessão ação afirmativa é garantia de direitos SILVA 2017 p 15 sobretudo lembremonos de direitos fundamentais Diversos especialistas que têm se dedicado ao acompanhamento da implementação e desenvolvi mento das políticas de cotas raciais no ensino superior em particular nas universidades públicas ressaltam que essas instituições têm o dever de retri buir o investimento que recebem da sociedade com os impostos pagos pela população A autora oferece um relato sobre os ganhos para a universidade pública de receber diferentes culturas ao incluir as diferenças Todavia Silva 2017 também discute os diferentes tipos de preconceitos e estereótipos que são mobilizados para barrar a entrada desses grupos nas universidades Essa discriminação tem como alvo diferenças internas historicamente construídas negros indígenas migrantes internos e também as novas diferenças que provêm dos movimentos imigratórios para o Brasil na contemporaneidade Para que essa população não seja excluída é igualmente urgente que políticas de inclusão sejam aplicadas a exemplo da Cátedra Sérgio Vieira de Mello Brasil que promove o direito de refugiados ingres sarem ou continuarem seus estudos no ensino superior Para combater esses estereótipos e preconceitos são iluminadoras as palavras de Luiz Felipe de Alencastro historiador de nacionalidade brasi leira que foi um refugiado em Paris França durante a ditadura militar no Brasil Graças ao reconhecimento de sua cultura pela reputada Universidade La Sorbonne de Paris Alencastro pôde ensinar a história das Américas nessa universidade Como explica o historiador a sociedade brasileira como um todo ganha com as políticas afirmativas Que sociedade que democracia pode existir se grupos majoritários como os negros ou mesmo minoritá rios como os imigrantes e refugiados forem excluídos do acesso aos direitos fundamentais 104 U2 Cidadania e direitos humanos os sujeitos privados do direito não poderão sequer desfrutar das mesmas liberdades subjetivas enquanto não chegarem ao exercício conjunto de sua autonomia como cidadãos do Estado a ter clareza quanto aos interesses e parâmetros autorizados e enquanto não chegarem a um acordo acerca das visões relevantes segundo as quais se deve tratar como igual o que for igual e desigual o que for desigual Quando tomarmos a sério essa concatenação interna entre o Estado de direito e a Assimile O pronunciamento de Luiz Felipe de Alencastro no Supremo Tribunal Federal em prol das políticas de cotas mostra que o funcionamento da democracia no Brasil passa pelo reconhecimento desse direito funda mental para grupos mais atingidos pelas desigualdades agindo em sentido inverso a redução das discriminações que ainda pesam sobre os afrobrasileiros hoje majoritários no seio da população consolidará a democracia Portanto não se trata aqui de uma simples lógica indenizatória destinada a quitar dívidas da história e a garantir direitos usurpados de uma comunidade especí fica como o caso em boa medida dos memoráveis julgamentos dessa corte Supremo Tribunal Federal sobre a demarcação de terras indígenas No presente julgamento tratase sobretudo de inscrever a discussão sobre a política afirmativa no aperfeiçoa mento da democracia ALENCASTRO 2017 p 112113 No mesmo sentido vem a opinião do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas A sua teoria do reconhecimento levanta a questão de que uma democracia não garante por si só a justiça social e o respeito pelas diferenças culturais O debate sobre o reconhecimento está presente de forma não marginal na vasta produção intelectual do filósofo Aqui importa percebermos o que essa teoria ilumina ou seja que uma democracia efetiva não negligencia o problema do que chama minorias inatas tampouco aquele que surge quando uma cultura majoritária no exercício do poder político impinge às minorias a sua forma de vida negando assim aos cidadãos de origem cultural diversa uma efetiva igual dade de direitos HABERMAS 2004 p 170 A igualdade formal de direitos prevista no regime republicano com base no princípio universalista não exclui segundo o autor a necessidade do reconhecimento das diferenças pelas políticas de inclusão Em suas palavras Seção 23 Democracia e cidadania quem tem o poder 105 Habermas situa os direitos fundamentais na esfera do reconhecimento intersubjetivo ou seja como direitos que os cidadãos devem reconhecer mutuamente HABERMAS 2004 p 237 O autor ressalta a importância da ação de movimentos sociais por exemplo grupos feministas minorias de imigrantes e refugiados povos originários de regiões que foram submetidas ao sistema de colonização pessoas com deficiência homossexuais para que possa ocorrer uma articulação e afirmação de identidades coletivas em prol da efetivação do Estado de direito por uma via democrática HABERMAS 2004 p 237 e 245 O reconhecimento intersubjetivo confere assim legitimidade à luta social contra a opressão de grupos que se viram privados de chances iguais de vida no meio social assumindo que as injustas condições sociais de vida na sociedade capitalista devem ser compensadas com a distribuição mais justa dos bens coletivos HABERMAS 2004 p 238 Para finalizarmos esta seção será interessante revisitar um texto do autor escrito nos anos 1990 no qual é levantada a questão da imigração e do refúgio na Europa Habermas 1997 advertiu que essa questão ocuparia um lugar central nessas sociedades no futuro Sua análise também se mostra acertada ao advertir que o aumento da presença de imigrantes e refugiados acompanharia o que ele chamou de chauvinismo do bemestar democracia porém ficará claro que o sistema dos direitos não fecha os olhos nem para as condições de vida sociais desiguais nem muito menos para as diferenças culturais HABERMAS 2004 p 242243 Exemplificando Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa chauvinismo quer dizer 1 patriotismo fanático agressivo 11 p ext entusiasmo excessivo pelo que é nacional e menosprezo sistemático pelo que é estrangeiro 12 p ext entusiasmo intransigente por uma causa atitude ou grupo A etimologia origem dessa palavra vem de Chauvin nome de um soldado francês que exaltava ingenuamente as armas do primeiro Império tipo popularizado e ridicularizado por seu extremado patriotismo Fonte HOUAISS A VILLAR M S Dicionário Houaiss da língua portu guesa Rio de Janeiro Objetiva 2009 p 450 106 U2 Cidadania e direitos humanos Nesse momento histórico dos anos 1990 as sociedades europeias ainda não sofriam com os perversos efeitos da crise mundial eclodida em 20072008 pois segundo o autor ainda viviam no estado de graça em relação a outras partes do mundo de poder desfrutar de um bemestar O momento agora mudou Essa mesma Europa vive atualmente inúmeros conflitos sociais que são causados pelos efeitos da crise mundial e acabam se condensado na tendência de exacerbação do nacionalismo como uma forma de resolver os problemas que supostamente vêm de fora do estrangeiro e pela presença do estrangeiro São esses momentos de crise que como escla rece o autor trazem à tona a tensão latente entre cidadania e identidade nacional HABERMAS 1997 p 298 Esse debate é de enorme relevância e devemos estar atentos a ele Como Habermas 1997 explica o respeito pela democracia e pelos direitos funda mentais na atual configuração das sociedades com uma alta composição de imigrantes e refugiados só pode ocorrer no quadro de uma sociedade mundial formada por cidadãos do mundo Assim nessa sociedade mundial as diferenças são reconhecidas dentro de um quadro no qual a cidadania em nível nacional e a cidadania em nível mundial formam um continuum HABERMAS 1997 p 305 Esperamos que esta seção ao discutir os direitos fundamentais em sua relação com a democracia a cidadania e o reconhecimento das diferenças possa também iluminar esse caminho Sem medo de errar Faremos agora uma reflexão sobre as formas de luta contra as desigual dades e contra o estigma da diferença dos grupos sociais que em geral mais encontraram e ainda encontram barreiras no Brasil para o reconhe cimento e para o pleno exercício da cidadania Como sabemos os indígenas nossos povos originários desde o período colonial foram considerados como a diferença em relação aos padrões de cultura língua poder político modelo econômico que foram impostos como hegemônicos pelo Estado Colonial A imagem de que esses povos são selva gens incivilizados atrasados e ingênuos para atuar politicamente na representação de seus direitos devendo portanto assimilar a cultura e os modos de vida considerados mais avançados desde então serviu e ainda serve de arma ideológica para negar seus direitos e excluílos da parti cipação política A questão indígena está muito viva atualmente São recorrentes as notícias de jornais denunciando assassinatos de indígenas que lutam para Seção 23 Democracia e cidadania quem tem o poder 107 a defesa de seus territórios diante do avanço das fronteiras agrícolas De fato os nossos povos originários enfrentam as lógicas de expulsões que os forçam a se deslocarem para as cidades onde são tratados literalmente como estrangeiros ou cidadãos de segunda classe Essa questão é prova evidente de que toda a riqueza de suas culturas línguas e histórias nunca foi de fato reconhecida nem pela sociedade nem pelo Estado brasileiro Mas a imagem de que os indígenas são incapazes para atuar na política não corresponde à realidade Sabemos que esses povos são organizados politicamente para a defesa de seus direitos e a preservação de suas terras e da biodiversidade nelas presente muitas vezes até de forma articulada internacionalmente Os movimentos indígenas colocam em discussão como a nossa identidade nacional não reconhece a sua diversidade e por meio de diferentes formas de luta concreta tentam combater a injustiça social pela defesa do direito às suas terras e à preser vação de suas culturas Da mesma forma a diferença construída em relação às culturas e civili zações dos povos africanos que foram trazidos para o Brasil de maneira forçada para trabalhar nas plantações na condição de escravos não de cidadãos ainda tem um papel determinante na legitimação das desigual dades das quais os negros são vítimas A historiografia mostra como a luta para combater a escravidão foi transversal à presença dos africanos no Brasil e assumiu diferentes formas ao longo da história inclusive por meio da religião e da conhecida capoeira O Movimento Negro continuou desem penhando após a abolição 1888 e no século XX um papel de enorme relevância para lutar contra a atuação do racismo das desigualdades e das injustiças que atingem essa população Sem dúvida alguma o século XXI no Brasil é marcado pelas lutas desse movimento social que tem um papel importantíssimo para dar visibilidade às injustiças e desigualdades e para lutar por políticas de inclusão como a das cotas raciais em universidades e concursos públicos Também não podemos deixar de refletir sobre a luta dos trabalhadores para melhorar as suas condições de rendasalário e de trabalho com impor tante papel para agir nas desigualdades sociais no país Os imigrantes europeus atuaram também por meio dos sindicatos para organizar e empreender essas lutas no meio rural mas sobretudo no urbano na indústria A Consolidação das Leis Trabalhistas CLT foi aprovada em 1943 também como resposta a essas manifestações Sabemos que as lutas do trabalho hoje não são tão ativas como no passado por diversos motivos Mas é importante perceber que o trabalho se depara na contemporaneidade com diversas pressões e desafios em parti cular devido a formas flexíveis de contratação informalidade trabalho inter mitente desemprego que acompanham novas modalidades de organização e 108 U2 Cidadania e direitos humanos de reivindicação de direitos É evidente que essas lutas na esfera do trabalho continuam tendo uma função importantíssima para agir nas desigualdades Vale ressaltar que as mulheres também têm um papel ativo nessas lutas já que elas são as mais atingidas pelos trabalhos mais precarizados e desvalorizados Os movimentos feministas tiveram um papel histórico igualmente importante no mundo e também no Brasil para entendermos as formas de combater as desigualdades e a luta pelo reconhecimento O direito de voto foi uma das primeiras bandeiras reivindicadas por esse movimento nos séculos XIX e XX Hoje a questão feminina se revela em diferentes reivindicações desde a luta pela igualdade salarial maior participação nos postos com mais prestígio e poder até o direito ao aborto Lembremos que as velhas diferenças no Brasil se combinam com as novas diferenças que hoje são sobretudo representadas por uma nova base social da imigração principalmente proveniente de países do Sul Global que pertencem a culturas e têm línguas e histórias quase completa mente desconhecidas no Brasil além de diferentes fés religiosas como é caso dos haitianos senegaleses sírios palestinos dentre outras nacionalidades A cidade de São Paulo é um laboratório vivo das organizações desse grupo social em defesa de seus direitos A comunidade boliviana por exemplo tem se destacado em diferentes iniciativas nesse sentido É por esse motivo que a questão indígena bem como a questão negra a questão quilombola a questão feminina a questão trabalhista e a questão migratória estão intrinsicamente ligadas A sua base de fundo na verdade são as desigualdades de que esses grupos são alvo mas também a luta pelo reconhecimento de suas culturas particularidades e direitos Também por esse motivo as suas lutas não são apenas legítimas mas também atuam como fatores importantíssimos para a garantia do funcio namento do regime democrático no Brasil O país ainda tem muito o que avançar para a efetiva inclusão e o reconhecimento desses grupos sociais Seção 23 Democracia e cidadania quem tem o poder 109 As reportagens de jornais descrevem um cenário de eleições no qual a O reconhecimento das diferenças foi plenamente contemplado b O equilíbrio de poder político entre os diferentes grupos sociais foi garantido c As desigualdades sofridas pelas mulheres e pelos negros na sociedade brasileiras estão refletidas d O aumento exponencial da presença de mulheres na Câmara de Deputados sinaliza o fim das desigualdades de gênero no Brasil e O número de negros eleitos para deputados distritais estaduais federais e senador comprovam que o Brasil é uma democracia racial 2 Leia o fragmento a seguir 1 Leia o trecho a seguir Faça valer a pena O número de candidatas eleitas neste domingo 7 para deputada federal aumentou A bancada feminina até então composta por 53 parlamentares agora terá 77 integrantes o que representa 15 das 513 vagas na Câmara de Deputados o percentual era de 10 BRANDINO et al 2018 sp Dentre as 1626 vagas para deputados distritais estaduais federais e senador apenas 65 foram preenchidas por candidatos que se autodeclaram pretos nas eleições 2018 Eles são 4 dos eleitos neste ano DANTAS GELAPE 2018 sp Tem sido tão difícil admitir nos meios acadêmicos e entre a denominada elite que grupos populares empobrecidos negros ou indígenas possam fazer parte desse lugar que produz cultura e conhecimento tão valorizados pela sociedade É como se empobrecidos negros indígenas fossem contaminar a sociedade ou fossem incapazes de participar da produção de tão valiosos conhecimentos Até se admite que eles sejam capazes desde que aceitem esquecer sua base originária Essa é uma questão bastante séria a dos critérios da meritocracia no sentido de decidir quem poderia ou não participar da comunidade univer sitária produzir conhecimentos científicos SILVA 2017 p 17 110 U2 Cidadania e direitos humanos A tensão latente entre cidadania e identidade nacional referida pelo autor pode ser aplicada no seguinte caso a No acolhimento de imigrantes e refugiados que parte do princípio do reconheci mento de suas culturas e línguas b No reconhecimento da cidadania dos imigrantes e refugiados a despeito de terem entrado pelas fronteiras sem o visto c No acesso à educação e aos serviços de saúde que são direitos fundamentais esten didos a todos os seres humanos que se encontram no território nacional d No entendimento de que a democracia e a cidadania não se limitam ao território nacional mas articulamse à dimensão internacional e Na afirmação de que a cidadania tem base tão somente nacional e que a exclusão das diferenças garante a efetividade dos direitos fundamentais para os próprios nacionais Em toda a Europa aumentam as reações radicais da direita contra a infiltração de estrangeiros As camadas menos ricas ameaçadas pelo descenso ou já marginalizadas identificamse claramente com a supremacia ideologizada de sua própria coleti vidade rejeitando tudo o que é estrangeiro Este é o outro lado do chauvinismo do bemestar que cresce em todas as partes De sorte que o problema dos refugiados traz novamente à tona a tensão latente entre cidadania e identidade nacional HABERMAS 1997 p 298 Considerando a questão da implementação das políticas de cotas raciais no ensino superior no Brasil assinale a alternativa correta a O Brasil é o único país no mundo que implementou essas políticas para agir nas desigualdades historicamente produzidas que afetam particularmente determinados grupos sociais b As culturas que são contempladas pelas políticas de cotas raciais não têm uma base científica portanto devem estar fora das universidades c O reconhecimento das culturas dos grupos sociais beneficiários das políticas de cotas raciais é um pressuposto para a implementação das políticas de cotas raciais d Apenas critérios meritocráticos podem garantir a excelência do ensino e da produção do conhecimento nas universidades e O contato com a diversidade cultural empobrece o universo de raciocínio dos estudantes e professores 3 Leia a citação a seguir ACOSTA A O bem viver Uma oportunidade para imaginar outros mundos Trad Tardeu Breda São Paulo Autonomia LiteráriaElefante 2016 ADORNO T HORKHEIMER M Dialética do esclarecimento fragmentos filosóficos Tradução de Guido Antônio de Almeida Rio de Janeiro J Zahar 1986 AGÊNCIA DA ONU PARA REFUGIADOS ACNUR Disponível em httpswwwacnurorg portugues Acesso em 18 dez 2018 ALENCASTRO L F Conferência políticas afirmativas democracia e conhecimento do Brasil In NETO J C H FERREIRA A N Fórum inclusão e diversidade Belo Horizonte Instituto Casa da Educação Física 2017 BASSO P Lascesa del razzismo nella crisi globale In BASSO P Org Razzismo di stato Stati Uniti Europa Italia Milano FrancoAngeli 2010 BONAVIDES P Curso de Direito Constitucional São Paulo Malheiros 2004 BRANDINO G et al Percentual de mulheres eleitas para a Câmara cresce de 10 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como elementos estruturais constituintes da sociedade brasileira como todos os dados mostram por outro também é correto afirmar que em cenários de crise econômica e política as contradições já existentes explicitamse e acirramse Em um país com um quarto de sua população vivendo abaixo da linha da miséria são 55 milhões de brasileiros vivendo com renda mensal menor do que R 400 um cenário de crise econômica e inflação é mais do que um incômodo é um risco de vida Do mesmo modo em cenários de crise e aumento do desemprego populações historica mente marginalizadas são aquelas que mais sofrem e se veem muitas vezes obrigadas a aceitar condições de exploração desumanas para sobreviverem No caso brasileiro por exemplo a população afrodescendente é especial mente atingida por esse quadro pois convive com taxas de desemprego muito acima daquelas enfrentadas pela população branca Ao mesmo tempo diante das aflições sociais são buscadas soluções imediatistas para não dizer mágicas para problemas complexos Sobretudo nesses momentos a política tida como um espaço plural de debates e negociação de impasses passa a ser entendida não como o campo em que poderíamos resolver nossos obstáculos mas como o próprio obstá culo Diante da crise na mesma medida em que grande parte da sociedade passa a buscar salvadores líderes que seriam capazes de resolver sozinhos todos os nossos problemas passase também a procurar os culpados de tal situação não raramente trabalhadores imigrantes são considerados injustamente como os causadores do desemprego ou estudantes cotistas são acusados de roubarem as vagas das universidades Assim nesse cenário enquanto a crise econômica reforça o fosso que separa os mais ricos dos mais pobres e no caso brasileiro reitera as estatísticas que separam negros e brancos a política se torna sinônimo de corrupção e a xenofobia cresce Não à toa é comum na população uma sensação de desesperança muitas vezes resumida nos termos populares de esse país não tem jeito Isso não significa porém que nossa sociedade seja marcada apenas pela desesperança ou pela inércia diante dos acontecimentos a corrupção por exemplo é um tema debatido por todos independentemente de seu posicionamento ou visão de mundo e em todos os ambientes Mesmo entre desconhecidos em um caixa de supermercado o assunto aparece com frequência em conversas que podem durar apenas alguns segundos ou gerar longas e acalo radas discussões Podemos dizer de outro modo que a sociedade brasileira também oferece suas respostas para seus dilemas denunciando injustiças e discutindo soluções Da mesma forma podemos afirmar que predomina na população um desejo de oferecer propostas que levariam a sociedade para uma outra direção A constatação do problema ou o simples desejo de mudança porém não são suficientes para que apontemos soluções reais e sustentáveis para o nosso futuro É preciso partir de um diagnóstico preciso que vai além do senso comum e das respostas prontas como só no Brasil Se nossos problemas têm uma origem histórica e eles têm isso significa que eles também são possíveis de serem solucionados Em outros termos se os impasses que enfrentamos se originam na ação humana é também a ação humana o caminho para a sua resolução O conhecimento de experiências bemsucedidas de transformação social assim como dos princípios da ética da política e da cidadania deve portanto ocorrer lado a lado com a ciência aprofundada de como se estruturam nossos problemas Independentemente de sua opinião prévia ao discutir por exemplo programas sociais de renda mínima ou cotas étnicas você saberia dizer quais têm sido os efeitos reais os dados dessas políticas no Brasil ou no mundo Independentemente de sua posição política ou partidarismos saberia apontar dados sobre a corrupção no país assim como os poderes responsáveis por seu combate A luta contra a corrupção o racismo e a miséria são questões urgentes da população brasileira e mundial que invadem a sala de aula porque certa mente estão determinando a sociedade ao seu redor O desafio que cabe em um percurso de formação universitária é exatamente o de colocar essas questões em um plano objetivo com o devido distanciamento para podermos enxergar com mais nitidez quais elementos são de fato importantes para proporcionar os parâmetros científicos de entendimento da nossa própria realidade Só assim poderemos pensar com mais clareza nos caminhos que podem ser alternativos a esse desenho de uma sociedade em crise Seção 31 A corrupção tem solução 117 A corrupção tem solução Diálogo aberto Caro aluno convidamos você a refletir sobre um dos temas mais discu tidos nos últimos anos no Brasil a corrupção Nesta seção veremos que a corrupção não é um problema exclusivamente brasileiro e não se restringe aos fatos da atualidade mas é claro há períodos e lugares em que a corrupção está mais presente Apesar de ser complexo é possível identificar as causas que levam determinado país em determinado momento da sua história a ser marcado por casos de corrupção Conforme destacou o estudo de Cavalcanti 1991 escrito no início da década de 1990 quando o tema da corrupção viria a explodir no Brasil com o processo de impeachment do presidente Fernando Collor de Mello De fato no Brasil após a ditadura 19641985 período em que a discussão pública da corrupção foi interditada pois era entendida pelo governo militar como um tipo de contestação e ameaça à ordem o tema da corrupção ocupou um lugar central primeiramente com o referido processo de impeachment depois com as acusações em relação ao governo Fernando Henrique Cardoso e seu suposto favorecimento pelo chamado engave tador geral da República em seguida com as denúncias em relação ao Mensalão um pretenso esquema de compra de apoio no Congresso Mais tarde sobretudo após 2014 novamente a corrupção reaparece na mídia como uma das noções mais pronunciadas para explicar o contexto de crise no Brasil tanto na sua dimensão política quanto econômica Essa noção ganhou uma atenção crescente e passou a ser considerada tão evidente a ponto de dispensar qualquer tipo de demonstração Seção 31 Os brasileiros estão profundamente convencidos de que aqui vivem os políticos mais corruptos do mundo ou pelo menos os mais impunes convicção essa largamente partilhada por inúmeros outros povos em relação a seus próprios países Nada parece capaz de abalar essa estranha convicção CAVALCANTI 1991 p 18 118 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira depravação de hábitos costumes devassidão ato ou efeito de subornar uma ou mais pessoas em causa própria ou alheia com oferecimento de dinheiro ou suborno uso de meios ilegais para apropriarse de informações privilegiadas em benefício próprio HOUAISS VILLAR 2009 p 557 Nelson Rockfeller quando resolveu disputar as eleições para governador de Nova York em 1958 falou de seus planos à mãe Abby Aldrich Rockefeller Na lata ela lhe perguntou Meu filho isso não é coisa para nossos empregados Os patrões deixaram o serviço sujo para os serviçais Estes cumpriram o papel com entusiasmo Essa conotação invoca a dimensão essencialmente ética do comporta mento e das atitudes e balizou de certa forma a maior parte do debate sobre esse tema no Brasil É como se toda a forma de discutir o tema destacasse como o Brasil é corrupto não atentando à pergunta de como se tornou corrupto Para além da questão ética é importante investigar as causas menos visíveis da corrupção e a forma como a discussão do tema é feita no Brasil Não poderíamos deixar de lembrálo de que esse fenômeno vai muito além do contexto nacional assumindo na verdade uma dimensão global A questão central é entendermos por que esse fenômeno está mais presente em algumas sociedades do que em outras e qual é a relação disso com o funcio namento da democracia e sobretudo com o grau de concentração do poder político e econômico Uma dificuldade adicional de se discutir esse tema na atualidade diz respeito ao fato de que as políticas de privatização dos ativos dos bens e dos serviços públicos aplicadas de forma brutal nas décadas neoliberais tornam cada vez mais difícil a identificação das fronteiras entre o público e o privado trazendo em questão novas formas de corrupção JOHNSTON 2001 Para pensarmos nessas fronteiras entre o público e o privado vale resgatar aqui o caso envolvendo Nelson Rockfeller 19081979 membro de uma das famílias mais ricas e poderosas da história dos Estados Unidos Segundo o jornalista e historiador Gilberto Maringoni de Oliveira 2010 sp De imediato isso nos provoca a buscar antes de tudo o sentido dessa palavra Segundo o Dicionário Houaiss da língua portuguesa corrupção vem do latim e é sinônimo de declínio indecência e suborno No português assume o significado de Seção 31 A corrupção tem solução 119 Quando voltamos o olhar para o Brasil observamos que há uma relação complexa e promíscua entre o Estado e o setor privado entre servidores ou órgãos de Estado com grande poder para alterar normas e procedimentos tais como reservas de mercado meios financeiros e regulatórios de criar oligopólios concentração de poder e controle de serviços nas mãos de poucas empresas proteções exageradas contra a concorrência externa multiplicidade confusa de licenças para produzir e comerciar e controles de preços FREIRE 2017 sp Agora reflita sobre a seguinte questão na sua opinião a forma de se discutir a corrupção no Brasil traz ao conhecimento da população brasileira os problemas mais estruturais econômicos e políticos implicados e o modo mais adequado de combatêlos Ou o debate em geral dáse em torno apenas do comportamento e da ética individual Corrupção ao falar sobre o tema quase sempre lembramos imediata mente da palavra política certo Ainda assim os atos de corrupção não estão circunscritos apenas àqueles que têm cargos públicos Como poderí amos então redefinir essa noção para pensarmos o tema desta seção A noção mais comumente pensada para a corrupção remete a um comportamento individual de desrespeito a normas éticas morais e jurídicas para tirar benefício próprio a fim de beneficiar alguém ou um grupo Nesse sentido a corrupção pode estar presente em todos os âmbitos da vida de uma sociedade desde as dinâmicas familiares até o funcionamento de uma empresa privadapública ou do Estado podendo ser investigada a partir de diferentes ângulos a cultura e os valores de uma sociedade a opinião pública os costumes entre outros Todavia há uma outra perspectiva para tratarmos da corrupção que busca iluminar a disputa pelo poder econômico e político em uma dimensão mais sistêmica e estrutural para além da relação entre determinados indivíduos que também envolve o desrespeito a normas no âmbito de funcionamento de instituições como o Estado o mercado as empresas as organizações não governamentais ONGs as igrejas a mídia dentre outras entidades A sociologia parte dessa última perspectiva e tem a vantagem de afastar um tratamento moralista que foca o comportamento de um indivíduo determinado ou naturalizado que considera a corrupção um fenômeno natural do ser humano e das sociedades Ao contrário como explica José Arthur Rios nas ciências sociais prezase pela contextualização e desvenda mento do Não pode faltar 120 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira aspecto público a utilização direta ou indireta do poder público e administrativo fora de seu campo legítimo a fim de que o detentor do cargo ou do poder busque auferir vantagem em proveito próprio ou para distribuílas entre amigos servi dores parentes confrades correligionários sócios ou partidá rios RIOS 1987 p 86 Embora o conceito de corrupção tenha sido historica mente empregado com vistas a caracterizar compor tamentos moralmente inadequados a ciência social moderna abandonou esse tipo de definição Em vez disso buscou descrever o conceito em termos do não seguimento de leis e mais recentemente de ações que levem à sobreposição entre as esferas pública e privada mais especificamente de ações que impli quem algum tipo de ganho privado somado a dano ao bem público GERALDINI 2018 p 26 Há um vasto campo de estudos sobre a corrupção hoje que destaca como nessa trama de relações está envolvido principalmente o papel dos Estados em conjunto com os grandes grupos econômicos e corporações transnacio nais que têm um enorme poder político JAIN 2001 Assimile Veja como a ciência social define a corrupção Partiremos portanto da relação entre corrupção e ética que por sua vez também nos obriga a pensar na relação entre o público e o privado Como vimos em outro momento as esferas do público e do privado além de terem um critério objetivo de definição em leis e em princípios da administração pública também abrangem a noção de interesse público bem comum e interesse privado particular No Ocidente a distinção entre público e privado está prevista em normas e princípios jurídicos porém se na teoria pode parecer mais simples separar essas dimensões na prática elas estão imbricadas Ainda assim essa distinção que se aplica às leis e normas não deixa de ter importância pois permite identificar a ação corrompida dos agentes que exercem a função pública Seção 31 A corrupção tem solução 121 em muitas sociedades estamos vendo a evolução de um tipo de zona cinzenta que não é nem pública nem privada e onde as regras estão muito fluídas como exemplos temos indústrias recémdesregulamentadas ou a privatização de serviços públicos e planos de aposentadoria JOHNSTON 2001 p 25 Ao buscarmos o entendimento da relação implícita do público e do privado na corrupção deparamonos também com um problema colocado pelo atual momento histórico marcado pelo debate em torno das atribuições do Estado Após décadas de hegemonia de uma perspectiva políticoeconô mica que afirmava a importância de uma série de papéis do Estado nas socie dades capitalistas responsável pela saúde educação e previdência assim como de estatais em áreas consideradas essenciais outra abordagem sobre essa situação passou a crescer e se consolidou a partir dos anos 1970 Com o crescimento das propostas influenciadas pelo neoliberalismo segundo Johnston 2001 Sem dúvida é na esfera pública instituições empresas e funcionários regidos pelas normas do direito público que a corrupção ganha mais visibi lidade e também é mais estudada No entanto como esclarece o sociólogo José Artur Rios 1987 a esfera privada sobretudo das empresas também é permeada por operações de favoritismo apropriação indébita concor rência desleal RIOS 1987 p 87 além de outras formas de corrupção como o suborno o falseamento de dados para órgãos reguladores e ambien tais De fato estudos e acontecimentos recentes mostram os mecanismos de corrupção no mundo dos negócios privados Nos últimos anos por exemplo o polêmico site Wikileaks se tornou famoso ao expor documentos sigilosos que comprovavam casos de corrupção e interesses escusos não apenas de governos mas também de grandes empresas A respeito da corrupção relativa a normas de preservação do meio ambiente por empresas corporações e pelo Estado os prejuízos da corrupção são incalculáveis e podem até mesmo ser irreparáveis Na Exemplificando Segundo Rios 1987 os exemplos de corrupção são incontáveis e envolvem mecanismos diversos de práticas fraudulentas nos pleitos eleitorais falsificação de toda sorte de documentos públicos eou privados facilitações em meios públicos e contratos suspeitos e assim por diante Sem contar os casos em que existe conluio entre instituições eou representantes públicos e a criminalidade 122 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira sociedade brasileira é impossível discutir esse tema sem mencionarmos os dois maiores crimes ambientais de nossa história e dois dos maiores do mundo ocorridos nas cidades mineiras de Mariana 2015 e Brumadinho 2019 Enquanto os acontecimentos de Brumadinho ainda se desenrolam quase como uma repetição inadvertida do primeiro desastre podemos falar mais detalhadamente do crime ambiental que se consolidou no Distrito de Bento Rodrigues em Mariana com o rompimento da barragem da empresa Samarco Mineração S A que pertence à Vale e à BHP Billiton Estimase que 50 milhões de tipos de resíduos de metais pesados tenham sido lançados em diferentes rios em particular no Rio Doce A devastação causou danos sociais econômicos públicos e privados de enorme envergadura gerando mortes doenças contaminação destruição de cidades e particularmente a contaminação das águas dos rios que caminhou por diferentes regiões até desembocar no mar Figura 31 Rua de Bento Rodrigues Figura 32 Foz do Rio Doce invadi da pela lama Fonte httpsgooglChjcJG Acesso em 7 fev 2019 Fonte httpsgooglxau7er Acesso em 7 fev 2019 Esse desastre poderia ter sido evitado pois segundo notícias de jornais e alegações de movimentos ligados à causa o rompimento da barragem parece ter sua raiz última em uma fraude do licenciamento ambiental e em opera ções ilícitas das atividades dessa empresa MAB 2016 AUGUSTO 2019 A empresa não teria cumprido seu dever de gestão do risco ambiental e de fazer as reparações nas inúmeras rachaduras que estavam comprometendo a estrutura das barragens Também teria havido negligência e ausência de fiscalização efetiva por parte do Estado para que as normas de segurança ambiental fossem cumpridas GRAÇA 2018 Muitas vezes o alerta dos fiscais que trabalham comprometidos com seu dever público não é ouvido pelos responsáveis políticos Essa situação é muito mais abrangente no Brasil não se resumindo apenas ao caso da Samarco Seção 31 A corrupção tem solução 123 Reflita Leia os trechos a seguir de reportagem realizada um ano após o crime ambiental em Mariana Ao revisitar as ruínas do distrito de Bento Rodrigues a agricul tora Marinalva dos Santos Salgado conseguia explicar o que era cada cantinho do vilarejo devastado pela avalanche de rejeitos Mesmo doído o retorno ameniza a saudade e porque as lembranças revividas ali a aproximam de tudo que lhe faz falta dos amigos que se foram dos vizinhos que não estão por perto de sua casa e da carta que seu marido havia escrito com declarações de amor e registros de 22 anos de casamento Ele morreu cinco anos antes da destruição de Bento e Marinalva não teve tempo de pegar nenhuma recordação de seu compa nheiro naquele 5 de novembro Casa eu consigo de volta mas isso não consigo mais Ele escreveu na agenda muitas coisas sobre a vida da gente me agradecendo pelo que a gente viveu junto os maus momentos os bons momentos me declarando amor na hora da morte Até a camisa que ele morreu com ela que nunca havia sido lavada se foi com a lama Isso daí era o meu bem mais precioso revela Os números da tragédia são todos de grandes proporções 256 feridos 300 desabrigados 424 mil pessoas sem água Exceto um deles o de condenados ou presos até agora que é zero Um ano depois 22 pessoas são denunciadas sendo 21 por homicídio com dolo eventual quando se assume o risco de matar As lembranças ainda são latentes como se o dia 5 de novembro de 2015 realmente nunca tivesse acabado Bento Rodrigues virou ruína e permanece afundado em lama o rio Doce parece marcado para sempre por uma mancha escura de impurezas e tristeza FERREIRA sd sp Diante do sofrimento vivido pelos moradores de Bento Rodrigues no relato apresentado e da repetição do desastre no início de 2019 dessa vez em Brumadinho podemos questionar como equacionar os interesses privados de uma grande empresa mineradora e o interesse público o bem comum Qual deveria ser o papel do Estado diante desse conflito De fato essa questão se repete no Brasil e no mundo A questão da regula mentação como explica AltimirasMartin et al 2019 é fundamental para entendermos a visão predominante do mundo corporativo sobre o respeito a 124 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira normas ambientais Como explicam os autores a visão tradicional que defende a necessidade de regulamentação ambiental das empresas é vista como um custo que implica burocracia e tempo e reduz a competitividade pois geralmente exige investimentos No entanto segundo os autores essa visão não corresponde à realidade econômica das empresas comprometidas com o meio ambiente Como ressaltam há um desconhecimento mesmo por parte das universidades e de engenheiros que trabalham com questões ambientais dos benefícios das tecno logias verdes e de antipoluição bem como da gestão ambiental que segue as normas e investe em inovação ambientalmente limpa No Brasil a regulamentação ambiental parece estar muito longe de poder ser realizada de forma plena na mentalidade e na prática dos empresários e do Estado Em vez de proteção ambiental predomina aqui a pressão que as corporações e megaempresas fazem no meio político para quebrar todo tipo de barreira para explorar a natureza eou utilizar produtos químicos como agrotóxicos e venenos chamados por seus apologistas de defen sores agrícolas Além dessa pressão feita de fora para dentro os empresá rios ligados ao agronegócio constituem no Poder Legislativo Câmara dos Deputados e Senado Federal a Bancada do Boi Ou seja não só operam na lógica da pressão e do lobby como também ocupam os cargos de deputados e senadores articulando eles próprios as políticas e as leis favoráveis aos próprios negócios tais como flexibilização das leis de preservação ambiental e mudança do órgão responsável pela demarcação de terras indígenas Além de grupos organizados ao redor da questão ambiental pequenos agricultores a população indígena e tradicional de ribeirinhos e quilom bolas têm exercido um papel importante de defesa do meio ambiente e de sua função social no Brasil ZHOURI 2008 Para saber mais sobre como os quilombolas têm contribuído para a preservação de florestas acesse o site da Comissão PróÍndio de São Paulo 2011 indicado nas referências ao final da unidade Não por acaso a questão da demarcação das terras indígenas tem sido noticiada recorrentemente nos jornais com denúncias por parte dessa população do desrespeito de leis de proteção de seus territórios e de suas culturas Não obstante alguns avanços realizados em matéria de proteção ambiental por parte do público e do privado os limites e desafios da regula mentação sobretudo da justiça ambiental ainda são muitos SHIKI SHIKI ROSADO 2015 ZHOURI 2008 O risco de não conseguirmos avançar nesse sentido representa um dano para a população brasileira como um todo Tanto em se tratando da corrupção que se dá a partir das grandes empresas quanto daquela que acontece pelas mãos dos agentes governamen tais a corrupção pode ser contabilizada em termos econômicos e para isso Seção 31 A corrupção tem solução 125 há diversas metodologias destinadas a calcular seus prejuízos econômicos ao patrimônio público e à sociedade em geral SPECK 2000 Esse cálculo pode assumir a forma monetária ou seja evidenciar a quantia em dinheiro desviado ou pode ser efetuado por uma equivalência desse montante em dimensões concretas do funcionamento de uma sociedade por exemplo quantos leitos de hospitais por ano o desvio de dinheiro público significa para a sociedade brasileira Quantos professores poderiam ser contratados a mais Quantas praças e ruas poderiam ser reformadas e melhor cuidadas Quanto a mais poderia se investir em pesquisas para desenvolver tecnologias Enfim esses parâmetros deixam mais concretos os prejuízos de uma socie dade como um todo mas em particular de sua camada mais empobrecida Exemplificando Impostômetro e sonegômetro Duas medidas distintas que nos permitem quantificar e refletir sobre a corrupção e seus efeitos no país são o impostômetro e o sonegômetro Enquanto a primeira busca simular o cálculo em tempo real dos impostos pagos pela população o que permite pensarmos portanto no dinheiro arrecadado pelo Estado e que deveria ser integralmente revertido em políticas para o bem comum a segunda aponta para a quantidade de tributos sonegados e para os grandes devedores de impostos valor que uma vez mais poderia ser revertido em obras e ações que favoreceriam o bem público Conheça os sites das iniciativas indicados a seguir FEDERAÇÃO DAS ASSOCIAÇÕES COMERCIAIS DO ESTADO DE SÃO PAULO ASSOCIAÇÃO COMERCIAL DE SÃO PAULO INSTITUTO BRASILEIRO DE PLANEJAMENTO E TRIBUTAÇÃO Impostômetro Sl sd SINDICATO NACIONAL DOS PROCURADORES DA FAZENDA NACIONAL SINPROFAZ Sonegômetro Quanto custa o Brasil Sl sd Também Célia Regina Jardim Pinto 2011 tem como centro de seus estudos sobre a corrupção a questão do desrespeito generalizado da socie dade com o bem público sobretudo no que se refere à forma de governar dos partidos políticos mas também à forma de a sociedade brasileira se relacionar com o público PINTO 2011 p 8 Segundo a autora Devemos ter presente que a corrupção é um fenômeno complexo e para entendêlo temos que considerar um conjunto variado de fatores poder político e econômico concentrados profundas desigualdades sociais pouca ou nenhuma noção de interesse público não reconhecimento do direito a ter direitos e a própria 126 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira falta de garantia de direitos noção de direitos desiguais intro jetada na cultura elites distanciadas do restante da população falta de controle social entre outros PINTO 2011 p 8 Entendemos assim que a corrupção não apenas agrava as desigualdades sociais econômicas políticas culturais da sociedade como também as reproduz Por esse motivo a autora nos convida a refletir sobre a ideia da legitimidade da hierarquia das desigualdades como princípio que baliza as relações sociais no Brasil e o terreno que possibilita a emergência repro dução e aprofundamento da corrupção PINTO 2011 p 14 Se considerarmos a corrupção a partir dessa perspectiva verificamos que os casos de corrupção são transversais à história do Brasil Como explica Pedro Cavalcanti 1991 a história da corrupção no Brasil tem raízes antigas e diz respeito à formação social e econômica do país É claro que devemos considerar que cada período histórico tem uma definição específica de corrupção prevista na legis lação eou nos costumes éticos e morais de um determinado contexto Você pode imaginar que a forma de discutir a corrupção em uma monarquia absolutista na qual o rei tem poderes absolutos e ele mesmo define o que é ou não corrupção é bem diferente se comparada com a forma de discutir a corrupção em um Estado republicano e democrático balizado pelas leis da Constituição no qual os políticos eleitos e os funcionários públicos têm o dever de zelar pelo patrimônio comum e pela integridade na condução das instituições e negócios públicos No entanto a percepção que a sociedade brasileira tem da corrupção como um mal de origem assim como sua longa história em diferentes momentos políticos do país leva à pergunta somos mais corruptos que outros povos Para evitarmos naturalizar a corrupção isto é considerála além de natural um problema insolúvel é importante não cairmos nas armadilhas que essa pergunta nos coloca Por esse motivo consideramos mais relevante discutir as questões de fundo que explicam as características históricas do desenvolvimento do nosso Estado e da nossa sociedade com destaque para as marcas coloniais e escravocratas que de certa forma se prolongam no presente sobretudo se consideramos o papel subordinado do Brasil no mercado mundial e o distanciamento do poder político com a real representação dos interesses da nossa população Os clássicos do pensamento social brasileiro nos fornecem diferentes perspectivas para entendermos a formação do Estado no Brasil portanto também da organização do poder político marcado pela corrupção A perspectiva econômica por exemplo utilizada pelo historiador Caio Prado Jr 19071990 tentou explicar a formação do Estado brasileiro com base na noção de colônia de exploração em sua interpretação responsável Seção 31 A corrupção tem solução 127 pelas nossas raízes do subdesenvolvimento que se prolongam até hoje relativa à função que o Brasil assumiu no mercado mundial de 1500 a 1822 Segundo o historiador em sua clássica obra o Brasil nasceu para fornecer matériasprimas e trabalho barato de nativos e negros escravizados para a metrópole Portugal e para potências coloniais como a Inglaterra As riquezas naturais principalmente metais e aquela produzida no país sempre foram drenadas para fora Por esse motivo historiadores e sociólogos que refor çaram a interpretação de Prado Jr destacaram fontes daqueles que questio naram o domínio da metrópole como prova e denúncia da rapina como princípio de funcionamento do poder político e da sociedade no Brasil Esse traço colonial e escravocrata modelou não apenas a economia mas também a natureza do poder político nas colônias da América Latina ou seja o Estado deveria estar ao seu serviço Sobretudo para a historiografia que enfatizou um sentido exploratório da colonização a região foi conside rada um território onde os colonizadores e os entes privados das metrópoles que quisessem investir na aventura de colonizar tinham grandes possibili dades de conseguir lucro sem limites e de maneira rápida em detrimento dos interesses mais gerais da população do território e também da natureza Nesse sentido a sociologia a partir dos anos 1960 e 1970 tendeu a reiterar a intepretação de Prado Jr Como diversos estudos afirmaram tal como Fernandes 1973 tratase de pensar uma formação histórica que assume a concentração de poder político e econômico como seu traço principal Além disso o próprio processo de modernização da sociedade brasileira também fez com que os padrões corruptos que já existiam nas metrópoles fossem transportados e potencializados nas colônias CAVALCANTI 1991 Um exemplo de como o sistema escravocrata que construiu os jogos de poder que fundaram o país é marcadamente corrupto é o tráfico negreiro Nesse sentido mais do que imoral mesmo nos debates da época a elite escravocrata o admitia como um mal necessário se consideramos a corrupção a partir da perspectiva da infração de leis o tráfico negreiro era uma prática ilegal e exercida impunemente pela elite do país durante décadas após a sua independência Nos primeiros dias da independência a corrupção brasileira colocouse brutalmente a serviço do tráfico de escravos Foi esse sem sombra de dúvida o pior episódio o mais abrangente dramático e vergonhoso da longa história da corrupção no país Por uma série de tratados que a Inglaterra já começara a impor desde 1810 o tráfico negreiro saía lentamente da legalidade em que prosperara tranquilamente durante dois séculos e meio para 128 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira uma espécie de ilegalidade teórica só para inglês ver CAVAL CANTI 1991 p 3334 Foi a partir dessa prática ilegal tanto para leis e tratados internacionais quanto para leis nacionais que mais de um milhão de africanos escravizados foram trazidos a um Brasil já independente para servirem aos interesses econômicos de uma elite escravocrata que não apenas não pagaria por esse crime mas também compunha câmaras e poderes políticos que determi navam sua própria impunidade Ao mesmo tempo a partir desse crime essa pequena elite política e econômica que lucrava com a escravidão consolidava a estrutura desigual e injusta do país Exemplificando A ilegalidade do tráfico negreiro O historiador Luiz Felipe de Alencastro especialista no tema coloca de forma exemplar o caráter estruturalmente ilegal e imoral da escravidão tráfico negreiro na fundação de nosso país Segundo ele desde 1818 havia tratados que vetavam o tráfico de escravos mas isso não coibiu a entrada de milhares de africanos no país do citado ano até 1856 Muitos desses escravos mesmo com a lei de 1831 que garantia a sua liberdade foram mantidos cativos pelos seus senhores que não foram posteriormente condenados por tal crime Como o autor cita foram 760 mil escravos que entraram até 1856 e que foram mantidos ilegalmente como escravos até a publicação da Lei Áurea em 1888 Observe Resta que este crime coletivo guarda um significado dramático ao arrepio da lei a maioria dos africanos cativados no Brasil a partir de 1818 e todos os seus descendentes foram mantidos na escravidão até 1888 Ou seja boa parte das duas últimas gerações de indiví duos escravizados no Brasil não era escrava Moralmente ilegítima a escravidão do Império era ainda primeiro e sobretudo ilegal Como escrevi tenho para mim que este pacto dos sequestradores constitui o pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira Firmavase duradouramente o princípio da impuni dade e do casuísmo da lei que marca nossa história e permanece como um desafio constante aos tribunais e a esta Suprema Corte Consequentemente não são só os negros brasileiros que pagam o preço da herança escravista ALENCASTRO 2010 sp Seção 31 A corrupção tem solução 129 Outra interpretação clássica na historiografia e na sociologia que nos ajuda a entender as relações entre corrupção e história nacional está em uma perspectiva culturalista que enfatiza como os valores os costumes e a cultura herdados da sociedade portuguesa que prevaleceram na formação histórica do país são determinantes para se explicar esse traço do funcionamento de poder político no Brasil O debate evidencia como esses valores culturais privilegiam o caráter privado os interesses particulares e individuais em detrimento do público e do coletivo A explicação da enraizada corrupção no Estado brasileiro é feita assim a partir de chaves de interpretação como a tradição clientelista prática eleitoreira o patrimonialismo a fusão de interesse privado e público e o nepotismo favoritismo de parentes O historiador Sérgio Buarque de Holanda 19021982 em 1936 escreveu uma obra de referência para entendermos as raízes desses traços de comportamento na política brasileira que dificultam a separação do que é público e privado HOLANDA 2007 O autor faz alusão ao personalismo exagerado como marca da cultura dos povos ibéricos entre os quais estão os portugueses o que ajuda a entender as características de funcionamento das nossas instituições movidas pela desorganização falta de espírito de solidariedade individualismo e manutenção de privilégios e hierarquias Para Holanda o patrimonialismo visão que resguarda o próprio patrimônio privado é a marca da gestão política no país herdada dos portugueses Desse modo na interpretação de Holanda o homem cordial símbolo dessa lógica herdada da colônia transformaria o mundo público em uma projeção da vida privada As relações políticas que dependem do respeito à esfera pública são obstaculizadas pelas relações pessoais nas quais interesses e afetos pessoais moldariam ou burlariam a lei sempre que conveniente Em outra interpretação clássica Raimundo Faoro 19252003 em seu Os donos do poder 1958 buscou explicar os cenários de disputa política no Brasil e a reprodução da concentração de poder econômico e político em determinadas famíliasgrupos empresariais Para o autor é possível falar de um Estado patrimonialestamental no Brasil no qual No Brasil podese dizer que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados aos interesses objetivos e fundados nesses interesses Ao contrário é possível acompanhar ao longo da nossa história o predomínio constante das vontades particulares que encon tram seu ambiente pró pessoal Dentre esses círculos foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura na nossa sociedade HOLANDA 2007 p 146 130 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira os interesses privados de grupos poderosos totalmente desconectados da maioria da população prevalecem em detrimento de sua função pública Para o autor essa questão se mantém mesmo após proclamada a República 1889 e só começa a ser modificada nos anos 1930 com a campanha de nacionalização de Getúlio Vargas O Brasil dos séculos XXXXI e a corrupção Se para Faoro o período Vargas foi um momento importante da mudança na relação entre Estado e população o caráter autoritário de seu governo sobretudo no Estado Novo 193745 porém deixou à época pouco espaço para se discutir científica e abertamente o grau de transparência das institui ções públicas nesse período O mesmo ocorreu durante a Ditadura Militar 19641984 A negação do direito de participação e controle do exercício do poder político pelos cidadãos desse regime interditou qualquer discussão sobre o tema da corrupção já que o poder militar deveria ser considerado incontestavelmente como o mais isento de corrupção Nesse período por exemplo um dos casos de corrupção mais escandalosos da instituição de caridade gerida pelos militares Capemi no Rio de Janeiro foi resolvido com balas conforme explica Cavalcanti 1991 Suspeitavase na época que parte do dinheiro atirado pela janela da Capemi ia parar numa caixinha preparada para eleição do general Otávio Medeiros ministrochefe do SNI à presi dência da República Mas não era muito saudável expor tais teorias em público Foi por essas e outras que Alexandre von Baumgarten um homem que sabia falava e escrevia demais acabou sendo assassinado juntamente com sua mulher Janette Yvone Hansen e o pescador Manuel Augusto Valente Pires dono da traineira Mirimi na madrugada de 13 de outubro de 1982 CAVALCANTI 1991 p 107 Não por acidente muitas pessoas alegam que nos tempos da ditadura não ouviam falar de corrupção Em qualquer regime de exceção em que a imprensa e os meios de comunicação passam a ser controlados pela censura prévia e aqueles que a desafiam correm risco de vida é esperado que a sociedade não debata ou divulgue escândalos de corrupção É importante nesse sentido diferenciar a existência da corrupção de sua percepção pelo corpo da sociedade Seção 31 A corrupção tem solução 131 Pesquise mais A cultura da impunidade e a Ditadura Na palestra indicada a seguir entre os minutos 9 e 18 o historiador José Alves de Freitas Neto expõe os efeitos da não condenação das mazelas do regime militar no período de transição democrática O historiador explica a impunidade que se perpetua tanto em relação aos graves crimes contra a humanidade cometidos nesse período como a tortura assassinatos em massa entre outros quanto também os prejuízos aos cofres públicos A interdição de falar das mazelas do regime ditatorial e o esquecimento e silenciamento impostos estão diretamente ligados à falsa ideia de que regimes militares e autoritários estão isentos de corrupção FOI para isto que lutamos pela liberdade José Alves de Freitas Neto Diretor Mário Mazzilli Produção Instituto CPFL Sl Instituto CPFL 2017 1 vídeo 48min05s A instituição do regime democrático com a Constituição de 1988 BRASIL 1988 e a afirmação da garantia da participação cidadã abriu espaço para que essa discussão se tornasse pública e para que os mecanismos de controle do poder fossem aplicados Por esse motivo os primeiros estudos realizados no Brasil sobre o tema passaram a ser produzidos nesse período e ganharam ainda mais força na década de 1990 com o processo de impea chment do então presidente Fernando Collor de Mello que para fugir do processo renunciou ao seu cargo ficou um tempo inelegível e depois continuou atuando no cenário político brasileiro como senador Aos poucos o chamado presidencialismo de coalizão surgido com a Nova República expunha os dilemas da reconstrução da democracia no Brasil a partir de acordos muitas vezes obscuros da elite política do país Assimile O presidencialismo de coalizão Para compreender a expressão presidencialismo de coalizão leia o trecho do artigo de Sylvio Costa 2013 disponível no portal Congresso em Foco indicado a seguir A expressão presidencialismo de coalizão foi usada há 25 anos no título de um artigo acadêmico do cientista político Sérgio Abranches ao qual se atribui a criação do termo Ela designa a realidade de um país presidencialista em que a fragmentação do poder parlamentar entre vários partidos atualmente 23 132 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira Sabemos que a discussão sobre corrupção continuaria nos anos seguintes com o escândalo da compra de votos de deputados para a reeleição de Fernando Henrique Cardoso por exemplo e no século XXI sobretudo com o processo do chamado Mensalão durante a presidência de Luís Inácio Lula da Silva Esse debate se acentuou nos últimos anos particularmente após a manifestação da crise econômica mundial no país a partir de 2014 Os polêmicos processos de impeachment da expresidenta Dilma Rousseff PT e de prisão do expresidente Lula PT também fazem parte desse cenário O exdeputado Eduardo Cunha PMDB e o exgovernador de Minas Gerais Eduardo Azeredo PSDB também foram presos por denúncias de corrupção Por outro lado outros políticos não tiveram condenação mesmo após a apresentação de graves evidências como o expresidente Michel Temer PMDB e o deputado federal Aécio Neves PSDB Muitas questões sobre esses casos como sabemos ainda estão abertas Essa discussão na verdade é considerada como um dos fatores mais incisivos hoje na divisão da sociedade brasileira têm representação no Congresso Nacional obriga o Executivo a uma prática que costuma ser mais associada ao parlamentarismo Para governar ele precisa costurar uma ampla maioria frequen temente contraditória em relação ao programa do partido no poder difusa do ponto de vista ideológico e problemática no dia a dia em razão do potencial de conflitos trazido por uma aliança formada por forças políticas muito distintas entre si e que com frequência travam violenta competição interna Daí o que Abranches apresentou como o dilema institucional brasileiro Mesmo eleito diretamente o que não ocorre no parlamentarismo onde o Legislativo forma o gabinete governa mental o presidente da República em uma nação presidencia lista tornase refém do Congresso Este por outro lado embora forte o bastante para azucrinar a vida do presidente de plantão não possui musculatura suficiente para ditar o ritmo da política e enfrentar com razoável autonomia e celeridade as grandes questões nacionais COSTA 2013 sp Seção 31 A corrupção tem solução 133 Na trama do Brasil real não há um personagem principal que lidera um grande esquema de desvio de dinheiro público como por vezes ronda a imaginação popular Mas sim uma rede bem engendrada de relacionamentos da qual foram mapeados 404 nomes entre políticos empresários funcionários públicos doleiros e laranjas de pessoas envolvidas em 65 escândalos de corrupção entre 1987 e 2014 Essas redes criminosas operam de forma similar ao tráfico de drogas e às redes terroristas explica Luiz Alves pósdoutorando no Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da USP em São Carlos e um dos cinco pesquisadores do projeto A investigação foi feita com base em escândalos de corrupção divulgados na grande imprensa a partir de 1987 Antes disso não temos documentação sobre corrupção O que não significa que não existia mas sim que não havia uma imprensa livre para expor os casos explica Alves OLIVEIRA 2018 sp O grande mal relacionado à forma espetacularizada com a qual se discute o problema da corrupção no Brasil independentemente do posicionamento político em questão é o de tirar o foco do que está realmente em jogo na corrupção os malefícios ao bem comum É por esse motivo que José Arthur Rios 1987 descreve a corrupção como uma grande fraude social uma forma de espoliação do povo comum uma fonte de crime e extorsões RIOS 1987 p 88 Alguns estudiosos da corrupção também destacam a impossibilidade de cálculo desse fenômeno ao afetar o equilíbrio de uma sociedade Na maioria das vezes o produto maior da corrupção é o cinismo em face dos negócios públicos e também o elemento desagregador da moral pública sobretudo nos jovens o desgaste institucional a descrença e o cinismo generalizado RIOS 1987 p 87 e 96 Tratamse de prejuízos incalculáveis refletidos principalmente no afastamento da política a banalização dessa esfera tão importante da vida em sociedade justamente por ser a única dimensão capaz de resguardar os interesses gerais e coletivos em detrimento Pesquise mais A dinâmica estrutural das redes de corrupção Leia o trecho da notícia a seguir a respeito das conclusões de um estudo sobre a corrupção no Brasil das últimas décadas 134 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira dos interesses privados Qual é o efeito final desse processo de criminali zação da política Ora uma maior concentração de poder que contradiz os princípios democráticos e apenas propicia a reprodução e o aprofundamento da corrupção Por esse motivo lembremonos de que a banalização da corrupção não é a mesma coisa que a generalização da corrupção PINTO 2011 p 10 Com essa expressão a cientista política Céli Regina Pinto quer chamar a atenção ao fato de que apesar dessa marca negativa o Estado brasi leiro não pode ser reduzido apenas à corrupção uma vez que outras formas de governar habitam a política brasileira respeitosas e comprometidas com o público PINTO 2011 p 10 Nosso desafio enquanto sociedade é saber discernir a atuação do poder público em prol do bem público para que possamos garantir que o poder político sirva aos interesses gerais da população e não apenas à sua parcela privilegiada Esse desafio é ainda maior no momento atual de aguda crise econômica vivida pelo Brasil e por muitos outros países no mundo no qual se manifesta a escandalização generalizada da corrupção que é também instrumentali zada pelas disputas políticas e pela mídia PINTO 2011 p 11 Conforme explica Pinto o discurso da mídia sobre a corrupção condiciona a forma como cada brasileiro se relaciona com o mundo da política e tem um peso não desprezível na formação de opinião Seu principal efeito é o de impos sibilitar uma discussão política sobre a questão que ultrapasse uma indig nação moralista PINTO 2011 p 11 Disso deriva o dilema dos regimes democráticos nos quais a denúncia da corrupção é permitida porém não deixa de ser também uma arma política alimentada pela mídia e por meios de comunicação sobretudo nos períodos eleitorais O importante é entendermos que os mecanismos democráticos de controle da corrupção são os únicos que podem realmente combatêla Os regimes autoritários jamais serão um antídoto à corrupção A única diferença como já destacado é que nesses regimes os escândalos de corrupção devem ser necessariamente abafados ou eliminados para garantir a manutenção do poder O combate à corrupção por vias democráticas nos ensina na verdade que esse problema não é um mal crônico ele pode ser combatido e reduzido FILHO KUNTZ 2008 No entanto tratase de um processo constante de exercício da cidadania que de forma alguma pode significar criminalização da política difamação pouco comprometida com a veracidade das acusa ções censura Alternativamente há um rol de ações muito mais efetivas para o controle da corrupção tais como a pressão popular pela transpa rência do funcionamento das instituições públicas a informação consciente dos interesses por detrás das decisões políticas a recusa da impunidade Seção 31 A corrupção tem solução 135 dos infratores após serem condenados seguindo o princípio do devido processo legal e da imparcialidade a busca por canais de informação menos comprometidos com o poder político a existência de uma mídia e imprensa livres transparentes e politicamente independentes a possibilidade de que a população tenha acesso a uma prestação de contas accountability a alter nância de poder Todas essas iniciativas deveriam ser seriamente discutidas e aplicadas no Brasil A situaçãoproblema desta seção traz uma reflexão sobre a forma como a corrupção vem sendo discutida no Brasil A questão central é se essa forma traz ao conhecimento da população brasileira os problemas mais estruturais econômicos e políticos implicados Paralelamente é preciso se perguntar se essas questões estruturais são consideradas nas políticas propostas para combater de modo mais eficiente a corrupção Para a reflexão sobre o tema ressaltouse a necessidade de entendimento da relação do público e do privado na noção de corrupção que remete à necessidade de entender se a corrupção existe apenas no setor público ou se podemos analisála também no setor privado e particularmente na imbricação dessas duas esferas Conforme a reportagem da Agência Brasil que divulga os resultados do ranking internacional de percepção da corrupção fornecidos pelo Movimento da Transparência Internacional houve uma piora dessa percepção no Brasil desde 2014 Pesquise mais O movimento global Transparência Internacional não considera a corrupção como algo natural impossível de ser combatida nas empresas no Estado no cotidiano das pessoas É interessante notar que esse movimento coloca a discussão da corrupção em termos sistêmicos não apenas éticos relacionados ao comportamento de um indivíduo em particular Além disso a luta anticorrupção jamais é dissociada da luta pela justiça social realização de direitos e da paz Para saber mais acesse o site do movimento indicado a seguir TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL BRASIL Sobre a transparência inter nacional 2018 Sem medo de errar No entendimento da Transparência Internacional a piora no ranking se deve à percepção de que os fatores estruturais da corrupção nacional seguem inabalados tendo em vista que o Brasil não foi capaz de fazer avançar medidas para atacar de 136 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira Por exemplo em que momento a mídia trouxe em questão as desigual dades sociais internas ao Brasil e a exclusão da participação cidadã dos grupos sociais por elas mais atingidos que são acentuadas pelo desvio de dinheiro público Em algum momento discutiuse se a forma de combater a corrupção no Brasil considera esse problema estrutural e histórico da formação e desenvolvimento da economia e do sistema político no Brasil Foi seriamente discutido o fosso que existe entre o exercício do poder político e Parece haver certa seletividade de publicação no que diz respeito às instituições e às pessoas públicas que acabam por se tornar alvo dos escândalos de corrupção por um lado lideres populares da América Latina tem sido frequentemente alvo de denúncias de corrupção Por outro lado e tendo em vista o caso brasileiro mostrouse por exemplo que a corrupção enquanto tema só entra definitivamente na agenda dos jornais a partir de 2006 ou seja após a crise do chamado mensalão Isto é o tema não foi amplamente explorado GERALDINI 2018 p 14 O estudo científico de Geraldini 2018 que teve por objetivo investigar o discurso da mídia sobre a corrupção no Brasil ajudanos a pensar essas questões Segundo o autor Em uma democracia de massa os meios de comunicação selecionam determinados objetos em detrimento de outros seleção essa que molda a agenda do público GERALDINI 2018 p 35 Os resultados da pesquisa científica do autor sobre esse discurso apontam como a corrupção está longe de ser discutida em termos estruturais conforme instrumentos oferecidos pelas ciências sociais e pela economia que foram analisados na presente seção maneira sistêmica esse problema É fato que as grandes opera ções de investigação e repressão dos últimos anos trouxeram avanços importantes como a redução da expectativa de impuni dade e o estabelecimento de um novo padrão de eficiência para estas ações disse Bruno Brandão representante da Transpa rência Internacional no Brasil Para Brandão não houve em 2017 qualquer esboço de resposta sistêmica ao problema Ao contrário a velha política que se aferra ao poder sabota qualquer intento nesse sentido Se as forças que querem estancar a sangria se mostram bastante unidas a população se divide na polari zação cada vez mais extremada do debate público o que acaba anulando a pressão social e agravando ainda mais a situação SOUZA 2018 sp Seção 31 A corrupção tem solução 137 a representação efetiva dos interesses mais gerais da população Em algum momento discutiuse como a corrupção tende a ser mais reduzida nos países em que as desigualdades sociais são menores e a participação cidadã e a democracia são mais efetivas Essa dimensão mais sistêmica da corrupção segundo o jurista Tercio Sampaio Ferraz Jr 2016 diz respeito a um problema estrutural de um modo de ser político FERRAZ JR 2016 p 19 Para o autor os antigos tratavam a corrupção sobretudo a partir da sua dimensão ética porém com a emergência e o desenvolvimento dos Estadosnação e do mercado capita lista na modernidade o sentido dessa noção adquire um teor eminente mente político e afeta particularmente o exercício da democracia nos seus contornos liberais Estado de direito FERRAZ JR 2016 p 19 Para essa análise estrutural é necessário o entendimento da relação implí cita do público e do privado na noção de corrupção O senso comum tende a apresentar o problema da corrupção como algo que existe apenas no setor público defendendo a falsa tese de que o setor privado seria mais protegido desse mal que assola a maior parte das sociedades do globo Basta fazermos uma pesquisa muito básica sobre os livros e estudos científicos publicados na última década para percebermos como o setor privado está profundamente envolvido no sistema de corrupção Crimes como a fraude nos balanços das empresas para conseguir obter melhor preço na venda de ações o uso privilegiado de informações para se beneficiar nos negócios o suborno e o pagamento de propinas a agentes públicos a fraude ao licenciamento ambiental e as operações ilícitas que danificam o meio ambiente a fraude com relação à obediência da legislação de proteção à saúde dos trabalhadores as falsas falências de empresas que têm o mero propósito de desobrigálas do pagamento de dívidas junto aos trabalhadores aos fornecedores e ao erário público dentre muitos outros exemplos eviden ciam o enorme poder de setores econômicos sobretudo quando represen tados por grandes corporações e empresas transnacionais e sua interação com o modo de agir do Estado Além disso a ideia de que a privatização de inúmeras empresas bens e serviços públicos é o remédio mais eficaz para se combater a corrupção no setor público não tem nenhum embasamento científico pois ignora o que uma vasta literatura tem demonstrado nos últimos anos sobre as novas formas de corrupção que nascem justamente de processos de privatização de bens serviços e ativos públicos A relação entre o público e o privado não desaparece apenas porque o papel do Estado é reduzido por meio de processos de privatização pelo contrário 138 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira A questão de os políticos serem comissários do poder econômico e não exercerem a sua função de representar os cidadãos e seus interesses gerais é o problema de fundo que não podemos negligenciar Além da importante questão do interesse público esse debate envolve a análise de efeitos mais amplos relativos ao exercício do poder político em uma sociedade sobretudo remetendo como explica Johnston 2001 ao significado de democracia Nesse sentido há transações que são corruptas justamente por negarem o processo democrático que não é simplesmente um conjunto de regras do jogo mas sim valores importantes como representação accountability prestação de contas debate aberto e igualdade JOHNSTON 2001 p 23 Cabe portanto a discussão das questões estruturais da corrupção para que possamos ter melhores parâmetros para discutir os remédios apresen tados para seu combate É claro longe dessa discussão nos afastar da política como se pensar o coletivo e a vida em sociedade fosse algo menor por ser tão suscetível à corrupção vamos retomar o sentido da cidadania e da parti cipação democrática como o principal antídoto para combater a corrupção Faça valer a pena 1 Leia a citação a seguir A corrupção pode ser funcional do ponto de vista de uma socie dade clientelista que tende a se orientar para linhas corporativas de organização onde o favoritismo não se faz apensa para o indivíduo mas para grupos inteiros que se organizam solidaria mente com o fim de obter a prioridade das benesses do Estado em detrimento do bem comum Não é funcional no entanto do ponto de vista de uma sociedade plural e democrática onde os grupos competem por benefícios dentro de critérios de mérito subordinados a uma arbitragem desempenhada pelo Estado RIOS 1987 p 89 O texto coloca em discussão a funcionalidade do clientelismo considerado como um dos principais fatores da corrupção e a grande chaga do funcionamento das institui ções políticas no Brasil Qual das alternativas a seguir corresponde à tese defendida pelo autor a O clientelismo pode ser considerado um dos grandes entraves ao funcionamento da democracia por significar privilégios para indivíduos e grupos sociais no Brasil b O clientelismo é funcional ao acesso dos grupos mais desfavorecidos da socie Seção 31 A corrupção tem solução 139 2 Leia a citação a seguir O texto traz uma reflexão sobre o tipo de regime político de uma sociedade e a corrupção Qual das alternativas a seguir segue a tese do autor a A história do Brasil é atravessada pela corrupção e a única exceção a essa regra é o regime militar 19641984 b Uma das principais bandeiras do golpe de estado de 1964 foi a limpeza das nossas instituições políticas da corrupção e da imoralidade e esse objetivo foi cumprido pelo regime militar c Durante o regime militar o crime de desvio de fundos públicos a fraude contra o erário a lesão financeira assim que eram denunciados pela imprensa recebiam a devida punição d A ideia de que o regime militar é isento de corrupção não corresponde aos fatos históricos que ocorriam durante esse período e O regime militar ofereceu instrumentos institucionais para combater a corrupção da forma mais eficiente de toda a história do Brasil Depois de uma revolução do regime militar que se destinava expli citamente a combatêla a mazela da corrupção nunca foi extinta e reaparece com a força redobrada sobretudo nos últimos anos do regime autoritário Em vários momentos escândalos finan ceiros casos de suborno e peculato fraudes gigantescas ocuparam as primeiras páginas dos jornais Raramente o Procurador Geral da República assumiu a iniciativa da acusação Em geral o desvio de fundos públicos a fraude contra o erário a lesão financeira são primeiro denunciados na imprensa para depois repercutir no Congresso e no Ministério Público sendo seus autores só excep cionalmente levados à barra dos tribunais raros sentenciados e condenados e muito menos compelidos a devolver ao erário pelo confisco o produto do golpe RIOS 1987 p 84 dade brasileira ao poder político e econômico c Uma sociedade plural e democrática permite que o clientelismo se reproduza e se aprofunde nas instituições políticas d O clientelismo é funcional ao pluralismo pois abre espaço para que os indiví duos sejam reconhecidos pelos seus méritos no exercício de uma função pública e O clientelismo nunca esteve presente nas instituições políticas brasileiras 140 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira 3 O gráfico a seguir foi extraído da pesquisa de Bernardo Geraldini 2018 que oferece o resultado das entrevistas realizadas pelo Latinobarômetro opinião pública latinoamericana relativas às respostas dos brasileiros à seguinte pergunta Com qual das seguintes frases você está mais de acordo O gráfico apresentado permite fazermos reflexões sobre a relação entre escândalos de corrupção e o descrédito da democracia na sociedade brasileira Considerando essas reflexões qual das alternativas está correta a Em 2017 o percentual de entrevistados a favor da ideia de que em algumas circunstâncias um governo autoritário pode ser preferível corresponde a mais da metade b Em 2016 o percentual daqueles que consideram que dá na mesma se um regime é democrático ou não revela a crença dos entrevistados no funcionamento da democracia no Brasil c Após 1995 os entrevistados em geral são mais a favor da democracia do que de um regime autoritário d O alto percentual de entrevistados que concordam que em geral dá na mesma se um regime é democrático ou não torna incontestável a tese da eficiência do regime autoritário e O alto percentual de entrevistados que não sabia responder à pergunta ou não quis respondêla invalida a pesquisa Fonte Latinobarômetro 2018 apud GERALDINI 2018 p 29 Seção 32 Por que a miséria persiste em nosso país 141 Por que a miséria persiste em nosso país Diálogo aberto Caro aluno seja bemvindo a mais uma seção Sabemos muito bem que a miséria no Brasil não é um fenômeno novo pelo contrário tem raízes históricas muito antigas que se reproduzem ao longo do tempo Por conta de nossos objetivos nós nos concentraremos no século XXI mas o encorajamos sempre a seguir estudando a história do país para entender a historicidade de nossos dilemas Nesta seção buscaremos entender as dinâmicas mais características da pobreza no mundo atual sobretudo após a eclosão da crise mundial 20072008 e sua manifestação com mais força no Brasil a partir de 2014 Como você explicaria as estimativas de que no Brasil cerca de 13 milhões de pessoas passam fome enquanto 41 mil toneladas de alimentos são desperdiçadas por ano Para alguns a pobreza e a fome decorrente dela é considerada como algo natural que sempre existiu e continuará existindo no futuro Por isso para estes essa questão diz respeito à sorte e ao comportamento do indivíduo na socie dade se ele for esperto e não muito azarado pode se esforçar e lutar sozinho para combater a pobreza e a fome Se não conseguir não haverá o que fazer Enquanto isso muitos outros procuram as razões desse problema em um plano espiritual que explicaria o mundo terreno Assim a fome é vista como uma sina um destino e os homens na Terra nada podem fazer para modificála Nessa perspectiva no máximo é possível oferecer a caridade como paliativo No entanto a visão científica é a de que esse fenômeno é produzido pelas relações socioeconômicas sendo possível identificar e enfrentar suas causas objetivas Independentemente das correntes teóricas o conhecimento produzido pelas diferentes ciências sociais a partir de método e evidências portanto como a economia a sociologia e a ciência política concordam com o pressuposto de que a fome é um problema que passa por escolhas políticas e econômicas dos governos e da sociedade podendo assim ser combatida por políticas públicas e pela ação da sociedade Por exemplo para José Graziano da Silva diretor geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura FAO e para Adolfo Pérez Esquivel Prêmio Nobel da Paz e membro da Aliança da FAO pela Segurança Alimentar e Paz a fome é na verdade um crime que alimenta conflitos mais graves nas socie dades e ameaça a paz mundial SILVA ESQUIVEL 2018 Seção 32 142 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira No entanto é importante entendermos que mesmo dentro de um debate científico isto é racional a partir de dados e de metodologias de pesquisa se apresentam perspectivas dissonantes Como consequência essas visões também resultam em diferentes formas de enfrentar a fome Antes de uma leitura mais aprofundada do tema como você encara esse dilema Considera a fome do outro um problema que também é seu como um problema coletivo Você enxerga a fome como um problema individual ou social Que recomendações você daria para o combate à fome no Brasil atual Não pode faltar A tarefa de se discutir o mapa da miséria no Brasil nos obriga antes de tudo a fazer uma pontuação sobre o contexto internacional para que possamos entender a amplitude desse tema e suas características particulares de desenvolvimento no país Conforme nos explica Chossudovsky 1999 a pobreza é um fenômeno global e atinge com mais força os países do Sul Global sendo que seu traço característico é o de aniquilar a subsistência humana ou seja a possibilidade de sobrevivência das pessoas destruindo sociedades inteiras Seu estudo foi produzido na década de 1990 e permanece ainda muito atual Para o autor nesse período a pobreza dizia respeito a 80 da população mundial com uma incidência muito mais acentuada nos países do Sul Global excolônias já que os países ricos do Norte Global onde viviam 15 da população mundial controlavam 80 da renda mundial ao passo que os países de média e baixa renda onde viviam 85 da população mundial apenas 20 da renda mundial CHOSSUDOVSKY 1999 Esse quadro não se modificou nos anos 2000 pelo contrário só tem se acentuado Estimativas da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação apontam 821 milhões de pessoas atingidas pela fome no mundo em 2017 AZEVEDO 2018 Pesquise mais A pobreza rural e urbana em grande escala é um problema tipica mente moderno produto das transformações das sociedades do modo de produção capitalista e da Revolução Industrial Por esse mesmo motivo a miséria no campo e a condição de indigência e de sofrimento da classe operária em particular na Inglaterra Escócia e Irlanda da segunda metade do século XVIII em diante foram estudadas como um fenômeno o pauperismo e passaram a ser objeto de estudo das diferentes áreas da economia da sociologia e até mesmo largamente retratada na literatura da época Seção 32 Por que a miséria persiste em nosso país 143 Assista ao vídeo a seguir que traz uma reflexão sobre a miséria na história do Brasil que não deve ser considerada como natural como se existisse desde sempre e devesse permanecer para sempre pois é possível de ser reduzida por meio de políticas públicas O vídeo é um documentário dirigido por Camilo Tavares intitulado Histórias da fome no Brasil sugerimos que assista do minuto 000 ao minuto 1210 DOCUMENTÁRIO Histórias da Fome no Brasil Direção Camilo Tavares Sl Ancine 2017 1 vídeo 52min son color De fato a pobreza nos países do Sul Global é historicamente enraizada e disseminada por meio do funcionamento do sistema de colonização O Brasil é um exemplo claro disso Os níveis de pobreza do país sempre foram muito altos sobretudo devido à alta concentração de renda e de riquezas que situa o país como um dos mais desiguais do mundo com níveis acima da média global Segundo Souza e Medeiros 2017 a alta concentração de renda no topo da pirâmide social permaneceu intocada na última década Na prática o Brasil estar fora da curva em relação aos padrões interna cionais significa pertencer a uma sociedade na qual seis brasileiros concen tram a mesma riqueza que a metade da população ou seja um pouco mais de 100 milhões de pessoas e os 5 mais ricos da população brasileira detêm a mesma fatia de renda que os demais 95 ROSSI 2017 Paralelamente 165 milhões de brasileiros vivem com uma renda per capita inferior a dois salários mínimos OXFAM 2017 O aumento da renda dos mais pobres e as políticas bemsucedidas de combate à fome e à miséria que certamente são muito importantes pois tiveram efeitos reais benéficos para a população brasileira socioeconomica mente mais vulnerável não foram suficientes para blindar o Brasil de sua sina da desigualdade e da pobreza Em 2014 a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação anunciou que o Brasil saía do mapa da fome Após esse ano com os efeitos perversos da crise sobretudo o aumento do desemprego do subemprego e de pessoas que não têm nenhuma A estabilidade da concentração de renda no topo no Brasil é preocu pante porque os niveis são muito altos para padrões internacionais Ainda que comparações internacionais sejam sempre imper feitas e a amostra seja enviesada em prol de paises mais ricos o Brasil é claramente um ponto fora da curva Somos um entre apenas cinco paises com a Africa do Sul Argentina Colômbia e Estados Unidos em que o 1 por cento mais rico recebe mais de 15 por cento da renda total SOUZA MEDEIROS 2017 sp 144 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira renda e não são beneficiadas por programas públicos de transferência de renda alertouse sobre o risco de o Brasil voltar novamente ao mapa da fome AZEVEDO 2018 É preciso perceber portanto que no século XXI a estrutura das desigual dades de renda e de riqueza no Brasil não foi modificada Isso nos ajuda a entender por que os efeitos da crise global agravaram com tamanha rapidez a miséria Esse agravamento é claro não está separado de escolhas políticas que ao contrário de agir nas causas da miséria a acentua Assimile O gráfico a seguir foi extraído de um estudo da Fundação Getúlio Vargas 2018 e revela que na década de 20032013 houve uma significativa diminuição da miséria em relação aos patamares dos anos 1990 Todavia a partir de 2014 a taxa de miséria volta a subir Se a miséria continuar subindo o país poderá voltar rapidamente aos patamares de pobreza do início dos anos 1990 época em que o Brasil enfrentava sérios problemas sociais Por isso o brusco aumento da miséria após 2014 faz necessária uma reflexão crítica às formas de combate à miséria que não tocam nas questões estruturais envolvidas nesse problema Figura 33 Gráfico de evolução da miséria Fonte httpsportalfgvbrnoticiaspobrezaedesigualdadeaumentaramultimos4anos brasilrevelaestudo Acesso em 19 fev 2019 Seção 32 Por que a miséria persiste em nosso país 145 O mesmo estudo citado nos oferece dados concretos para entendermos o significado do aumento da miséria na sociedade brasileira explicitando a existência em 2018 de Se somamos os dados indicados com os fornecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE relativos às pessoas que vivem na linha de pobreza com renda familiar mensal de cerca de R 38707 esse montante sobe para 50 milhões de brasileiros No que se refere à geografia dessa miséria esses dados também revelam que a Região Nordeste do Brasil concentra 435 dessa população vivendo na linha da pobreza enquanto a Região Sul 123 OLIVEIRA 2017 Você já parou para pensar o que significa para uma família viver com esse patamar de renda Pensemos por exemplo nos gastos mensais com o básico no supermercado com o transporte com eventuais remédios É preciso nos atermos ao fato de que essa miséria também tem cor e sexo já que os negros e as mulheres são mais atingidos PEARCE 1978 MORAES 2018 FERNANDES 2008 MARTINS MARTINS 2017 José Graziano da Silva diretor geral da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação também dá destaque ao alto número de crianças que voltam a ser vítimas da fome no Brasil AZEVEDO 2018 Além disso estudos eviden ciam que as famílias que moram na zona rural cerca de 15 da população brasileira segundo o censo de 2010 estão mais expostas à situação de pobreza sobretudo se considerada a renda BUAINAIN et al 2012 Essa questão nos leva a discutir a estrutura fundiária do Brasil Para Sorj 2008 a alta concentração de terras no Brasil é uma característica histó rica do país que se tornou ainda mais complexa com a reorganização e o processo de transformação das relações de produção no país pela agroindús tria Dados recentes revelam que 233 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza com rendimentos abaixo de R 232 por mês cerca de 112 da população A miséria subiu 33 nos últimos quatro anos São 63 milhões de novos pobres mais do que a população do Paraguai adicionada ao estoque de pobreza Do final de 2014 até junho deste ano o Indice de Gini subiu a uma velocidade 50 maior do que vinha caindo na época de queda da desigualdade brasileira iniciada em 2001 Perfazendo quase quatro anos consecutivos de aumento de concentração de renda Isso não acontecia desde a derrocada do Plano Cruzado de 1986 até 1989 o recorde de desigualdade nas séries brasi leiras FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS 2018 sp 146 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira A concentração de terras no Brasil não está separada dos problemas urbanos que se agravam no país Como é notório o processo de urbanização e industrialização no Brasil e em geral na América Latina ocorreu de forma desordenada rápida e concentrada no século XX em parte da Europa por exemplo esse mesmo processo demorou dois ou três séculos para se efetivar Embora a indústria absorvesse parte dessa população muitas das pessoas que migravam para a cidade não conseguiam arranjar empregos e eram segregadas em bairros periféricos Hoje os estudos têm mostrado como a atração de pessoas para morar nas cidades é impulsionada mais pela reprodução da pobreza devido a fatores de expulsão do campo que se combinam com a falta de oferta de empregos e de renda nas cidades DAVIS 2006 Em particular esses estudos também mostram como há um aumento e uma multiplicação das favelas a concentração fundiária do pais fica evidente seja pela análise nos dados levantados pelo Censo Agropecuário do IBGE seja pelos dados do Sistema Nacional de Cadastro Rural SNCR do Incra O indice de concentração de terra medido pelo indice de Gini com base no SNCR de 083649 é muito elevado as pequenas propriedades com até 4 módulos fiscais de área somam mais de 54 milhões de unidades mas ocupam apenas 237 da área total dos imóveis rurais De outra parte as médias e grandes propriedades constituem menos de 9 do total e ocupam 76 da área VALADARES et al 2012 p 266 grifo nosso Reflita Para Katia Maia em entrevista concedida ao G1 a terra expressa muito o que é uma sociedade e a América Latina é a região com maior desigualdade na concentração de terra no mundo GONZALEZ 2016 Ao comentar os dados fornecidos pela OXFAM sobre concentração de terra no Brasil Katia Maia explica que o país ocupa o quinto lugar na América Latina depois do Paraguai Chile Colômbia Venezuela em termos de concentração de terra Essa pesquisa também indica que aqueles municípios que estão em área de maior produção agrícola do grande agronegócio têm os maiores níveis de pobreza e desigualdade Porque gera menos emprego e é mais concentrado em termos fundiá rios GONZALEZ 2016 O que essa constatação evidencia sobre a relação entre o agronegócio concentração de terra e pobreza no Brasil A ideia de que o agronegócio pode ser a salvação da pobreza no Brasil condiz com a realidade do país Seção 32 Por que a miséria persiste em nosso país 147 principalmente após os anos 1970 que passaram a expressar a fotografia da pobreza nas cidades e de todos os problemas sociais a ela relacionados exploração do trabalho condições de vida mortalidade violência insalu bridade segregação espacial Na mesma linha de raciocínio Raquel Rolnik 2016 sugere uma reflexão importante ao evidenciar que os problemas urbanos vividos no século XXI como a globalização a financeirização da economia a desindustrialização o desemprego talvez sejam piores que os problemas sociais clássicos do início do processo de industrialização e urbanização no século XIX Reflita A Índia é um país conhecido pela enorme quantidade de pessoas que não têm habitação Há pessoas tão pobres que são obrigadas a dormir em seu local de trabalho por exemplo nas oficinas de costura sentadas em uma cadeira ou deitados sobre uma mesa ou mesmo sentadas sobre os seus tuctuc veículos parecidos com uma bicicleta destinados a transportar passageiros estacionados na rua Figura 34 Mãe e criança sem teto na Índia Fonte iStock Mas não pense que essa questão da ausência de moradia é importante apenas em países pobres No Japão por exemplo também houve um aumento da pobreza com a crise mundial No trecho a seguir a pesquisadora Mariana Roncato trata do aumento da pobreza invisível escondida nas lan houses ou nos hotéis capsulas em Tóquio Japão Chamamse cyberrefugiados as 148 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira pessoas que não têm moradia e literalmente vivem em lan houses que funcionam 24 horas Ou seja são pessoas sem teto mas que não necessariamente dormem na rua Eles e elas passam a noite na cadeira disponibilizada na lan house dormemse acomodam como podem nela e no dia seguinte saem para traba lhar Tratase de uma forma de pobreza invisível pois os cyberrefugiados continuam sendo trabalha dores ativos embora realizem trabalhos intermitentes e informais o que não os permite ter condições para alugar uma moradia QUEM SÃO 2018 sp Também nos Estados Unidos há um fenômeno parecido com os trabalha dores do famoso parque de diversões da Disneylândia Uma reportagem da Folha de São Paulo Trabalhador no entorno da Disney da Califórnia sofre com alto custo de vida fala de uma trabalhadora dentre muitos outros de uma loja desse parque que atende os clientes com um sorriso ensolarado No entanto nenhum cliente sabe que ela dorme há meses na caçamba de sua picape e toma banho no complexo temático TRABALHADOR 2018 TRABALHADOR no entorno da Disney da Califórnia sofre com alto custo de vida Traduzido por Paulo Migliacci New York Times New York sd In Folha de São Paulo São Paulo 11 mar 2018 As favelas são hoje de fato a máxima expressão da pobreza Como mostra bem o estudo de Mike Davis 2006 há uma globalização das favelas que é a forma de moradia precária que se dissemina em nível global princi palmente nos países do Sul Global atingindo cerca de 80 da população urbana desses territórios Por esse motivo muitos estudos têm alertado que a pobreza urbana se tornaria o problema mais importante e explosivo do século XXI Pesquise mais Você já ouviu falar na Carolina Maria de Jesus 19141977 uma escri tora que viveu por muitos anos a fome e a miséria e apesar disso deixou diários escritos na década de 1960 que se transformaram em livros e foram publicados no Brasil e em muitos outros países Leia a descrição de Carolina de Jesus de seu cotidiano basta você escolher uma semana de seus dias relatados A autora o transportará para a vida sofrida porém reflexiva e combativa de uma favelada Repare Seção 32 Por que a miséria persiste em nosso país 149 na atualidade de suas palavras Quando cheguei do palacio que é a cidade os meus filhos vieram dizerme que havia encontrado macarrão no lixo E a comida era pouca eu fiz um pouco do macarrão com feijão E meu filho João José disseme Pois é A senhora disseme que não ia mais comer as coisas do lixo Foi a primeira vez que vi a minha palavra falhar JESUS 2014 p 39 A questão da produção de desalojados sobretudo relacionada a processos de financeirização da moradia e de despejos nos ajuda a entender esse cenário No Brasil estimase que 69 milhões de famílias não possuem uma casa para morar ODILLA PASSARINHO BARRUCHO 2018 Há um debate bastante vivo no sentido de se perguntar até que ponto esses números espelham um déficit de moradia tendo em vista a estimativa de que há um número equivalente de imóveis desocupados no país Procurase também entender até que ponto as políticas de moradia pensadas de forma indivi dual e imbricadas ao fornecimento de créditos pelos bancos e ao mercado privado de construção civil resolvem ou pioram esse cenário do déficit de moradia nas cidades sobretudo nos períodos de desemprego e de rebaixa mento de renda como é o caso do nosso país na atualidade ROLNIK 2016 FIX 2011 Em países como Espanha e Estados Unidos desde 2008 houve um aumento significativo de pessoas que não conseguem pagar as prestações de seus imóveis e acabam perdendo não apenas o imóvel mas também o dinheiro investido FIX 2011 Esse processo somado aos despejos forçados devido à especulação financeira ROLNIK 2016 ao aumento do desem prego e do subemprego ajudam a entender por que hoje nas cidades há um aumento expressivo de pessoas desalojadas e em situação de rua Os movimentos que lutam pela moradia e denunciam essa pobreza urbana refletida na situação dos semteto não estão separados desses processos estru turais de produção de desalojados Esses movimentos também mostram que a vulnerabilidade dessas pessoas e a sua exposição a fatores sociais proble máticos podem se reverter em uma força de denúncia das contradições das sociedades urbanas hoje sendo determinantes para a transformação desses espaços urbanos e para pressionar o Estado para a realização de políticas efetivas no atendimento a essas populações Da mesma forma é impossível entender a dinâmica de funcionamento dos Movimento dos Trabalhadores Sem Terra sem olharmos para os dados já evidenciados sobre a concentração de terra e a pobreza rural no Brasil 150 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira O direito à terra assim como o direito à moradia é fundamental para que possamos caminhar para uma sociedade mais equilibrada e também próspera Justamente por esse motivo na grande maioria dos países que hoje são consi derados desenvolvidos não há nem de perto uma concentração fundiária semelhante à do Brasil Lembremos também que as famílias assentadas desse movimento adotam um modelo de produção alternativo ao agronegócio que contempla um número infinitamente maior de famílias envolvidas e é compro metido com a saúde da população brasileira e com a garantia da biodiversidade de alimentos no país pois não utilizam transgênicos e agrotóxicos Assimile É válido olhar para as respostas dos movimentos sociais às desigualdades e à pobreza no Brasil pois elas nos ajudam a entender essas mazelas como socialmente produzidas De fato os movimentos sociais refletem a ação organizada de uma coletividade para a defesa de determinados interesses que são coletivos As reivindicações desses movimentos nos permitem identificar os fatores objetivos e as especificidades que situam as desigualdades e a pobreza como um fenômeno histórico não como um processo inevitável Assim evitamos cair nas armadilhas de representações das desigual dades sociais e da miséria como naturais ou seja como se fizessem parte desde sempre e para sempre das sociedades ou ainda como algo decorrente de um mero atraso de populações que estão aprendendo a se modernizar e quando finalmente se modernizarem e alcançarem os padrões justos para o desenvolvimento poderão sanar seus problemas de desigualdade ideia que remete à lógica das velhas teorias racistas e evolucionistas do século XIX ou finalmente como um problema indivi dual resultante da indolência dos pobres Diversos estudos têm mostrado os impactos perversos da atual crise na oferta e na qualidade do emprego no Brasil situação que foi agravada pelas políticas e reformas legislativas recentemente aplicadas KREIN GIMENEZ SANTOS 2018 Com base nos dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Di Cunto 2018 aponta que o Brasil em julho de 2018 era o segundo país com maior taxa de desemprego na América Latina 123 perdendo apenas para o Haiti O tipo de trabalho majoritariamente ofertado hoje está longe de permitir a estruturação de uma vida com segurança e dignidade Constatase a multiplicação dos minijobs empregos precários empregos temporários sem garantias e sem direitos com baixos salários jornadas longas flexíveis e intensas A explosão da terceirização no Brasil também contribui para esse quadro da pobreza já que os terceirizados ganham menos e são mais desprotegidos em relação a direitos e proteção social Seção 32 Por que a miséria persiste em nosso país 151 As reivindicações dos trabalhadores de suas categorias e sindicatos para um trabalho melhor remunerado e protegido que se opõem à tendência de deterioração da renda e devastação dos direitos dos trabalhadores têm portanto um papel central nas sociedades modernas para impulsionar as políticas sociais de distribuição de renda A maior parte da sociedade brasi leira hoje depende de um salário para sobreviver portanto é importantís simo que a qualidade do emprego não seja negligenciada Além dessas perspectivas alternativas para um país mais igualitário que partem de iniciativas da própria sociedade e são de enorme relevância para entendermos que esses problemas não são naturais e podem ser comba tidos devemos considerar também a importância das políticas sociais e de combate à fome Sem essas iniciativas e essas políticas certamente caminha remos para uma sociedade cada vez mais desigual logo também conflituosa e violenta Assimile A literatura é hoje razoavelmente consensual em entender a pobreza como um fenômeno multidimensional OLIVEIRA BUAINAIN NEDER 2012 Isso significa que a pobreza não é apenas uma questão de ter ou não uma renda ou do nível dessa renda mas também de escolaridade tipo de emprego acesso a saneamento básico transporte entre outros fatores Uma política pública eficiente deve levar em consideração essa multidimensionalidade No entanto como vivemos em uma sociedade na qual o dinheiro é central muitos estudos baseiam suas análises da pobreza em um de seus elementos fundamentais a renda No Brasil podese destacar alguns programas que foram importantes no período recente para o esforço de combate à pobreza Em primeiro lugar a implementação da aposentadoria rural que garantiu aos trabalhadores rurais uma renda de um salário mínimo ao chegar à terceira idade Em segundo lugar a política de valorização do salário mínimo já que parte importante da população brasileira tem seus salários vinculados a esse patamar mínimo e outra parte recebe benefícios sociais também atrelados ao salário mínimo Em terceiro lugar o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar Pronaf que provê crédito subsidiado ou às vezes a fundo perdido para pequenos produtores agrícolas E finalmente o Bolsa Família resultante da conglomeração de programas sociais anteriormente dispersos atribuindolhes mais organicidade em vez de as famílias pobres precisarem lidar com inúmeros programas distintos passaram a ser atendidas de forma unificada pelo Bolsa Família volume os valores destinados a esses benefí cios sociais aumentaram muito de 2003 a 2014 os montantes direcionados 152 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira para o Bolsa Família passaram de R 34 bilhões a R 272 bilhões e capila ridade o programa passou a atender famílias do país todo até mesmo de pequenas comunidades do sertão nordestino ou da Amazônia O Bolsa Família foi iniciado em 2003 com o atendimento de mais de 3 milhões de famílias e chegou a contemplar em 2014 14 milhões de famílias Segundo a pesquisa baseada em extensa coleta de dados e relatos realizada por Rego e Pinzani 2013 o pequeno montante transferido pelo programa para cada família assume um papel vital para os beneficiários de forma que cortálo significaria além de negar a cidadania dessas pessoas condenálas a passar fome expondoas também ao risco de morte Para Rego e Pinzani O sucesso do Bolsa Família foi reconhecido internacionalmente a ponto de o programa tornarse referência para muitos outros países e até mesmo para o Banco Mundial Mas ainda assim o programa foi e ainda é alvo de uma série de críticas As mais recorrentes se baseiam na ideia de que esse programa criaria uma dependência dos beneficiários em relação ao Estado ou incentiva a vagabundagem Além de preconceituosa contra os pobres há uma incoerência lógica gritante nesse tipo argumentação Um raciocínio lógico muito basilar que contempla os valores mensais dessa bolsa que em 2018 eram de no máximo R 195 e comparaos com o custo de vida mínimo no país por exemplo o preço dos alimentos transporte moradia é suficiente para entendermos que essa política não desestimula o trabalho e não produz vagabundagem na grande maioria das familias pesquisadas o repasse repre senta o único rendimento monetário percebido e em vários casos constitui a primeira experiência regular de obtenção de rendimento Antes disso a vida se resumia à luta diária para obter comida que poderia vir desde a caça como da ajuda de familiares Todas beneficiárias do bolsa família reconheceram que se suas vidas eram duras sem a bolsa o seriam ainda mais 2013 sp Seção 32 Por que a miséria persiste em nosso país 153 Tabela 31 Salário mínimo nominal e necessário DIEESE Período Salário mínimo nominal Salário mínimo necessário 2018 Dezembro R 95400 R 396057 2017 Dezembro R 93700 R 358505 2016 Dezembro R 88000 R 385623 2015 Dezembro R 78800 R 351851 2014 Dezembro R 72400 R 297555 2013 Dezembro R 67800 R 276544 2012 Dezembro R 62200 R 256147 2011 Dezembro R 54500 R 232935 Fonte adaptado de httpswwwdieeseorgbranalisecestabasicasalarioMinimohtml Acesso em 19 fev 2019 Assimile O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos DIEESE oferece mensalmente uma pesquisa nacional que indica o valor necessário para que o salário mínimo seja suficiente para as necessi dades básicas dos trabalhadores Essa pesquisa aponta a diferença entre o salário mínimo nominal salário mínimo corrente e o salário mínimo necessário calculado com base nesse montante ideal para acompanhar o custo de vida no Brasil Veja como em dezembro do último ano 2018 esse salário mínimo neces sário corresponde a cerca de quatro vezes o valor do salário mínimo corrente Se comparamos o valor do salário mínimo necessário desse mesmo ano com o valor do bolsa família R 19500 2018 percebemos que seriam necessárias 20 bolsas famílias para manter a correspon dência com o custo de vida mínimo no Brasil 154 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira Os dados apresentados com base nas pesquisas do DIEESE ajudam a entender a falta de sustentação de boa parte das críticas ao programa já que o montante máximo oferecido pelo Bolsa Família fica muito abaixo dos valores necessários para cobrir os custos de vida no país Isso mostra a impossibilidade de o conjunto de beneficiários do programa simplesmente optar pelo luxo de não trabalhar Além disso também podemos nos fazer uma pergunta muito simples como uma pessoa pode trabalhar ou produzir se não tem o que comer ou o mínimo necessário para a sua sobrevivência O recebimento dessa renda em geral oferece mais condições às pessoas em situação socioeconômica vulnerável de entrar para o mundo produtivo seja por meio de um emprego seja por meio de uma produção própria ou até de uma fase preparatória de qualificaçãoestudo Tratase portanto de garantir o mínimo ou na verdade menos do que o mínimo se consideramos o custo de vida no país A questão central é sabermos em qual país gostaríamos de viver em um país que assume a miséria como natural ou em um que aplica políticas públicas eficientes para combatêla Lembremonos portanto de que a pobreza pode ser combatida E é essen cial que a sociedade pressione o poder público nessa direção Do contrário como já acenado sem dúvida viveremos em uma sociedade conflituosa e violenta que desperdiça seu potencial de desenvolvimento Sem medo de errar No Brasil atualmente cerca de 13 milhões de pessoas passam fome enquanto 41 mil toneladas de alimentos são desperdiçadas por ano Perguntamos inicialmente como você enxerga esse fenômeno Ele está relacionado com o aumento da pobreza é um problema individual ou social Quais recomendações você daria para o combate à fome no Brasil atual Antes de tudo é necessário fazermos uma contextualização que possa nos situar a respeito da questão da pobreza e da fome no Brasil de hoje Vivemos atualmente no contexto de uma crise que vem se configurando como uma das maiores da história do capitalismo A dimensão internacional da crise é de enorme relevância para uma investigação voltada a analisar cientifica mente as características atuais da pobreza e da fome bem como suas parti cularidades em cada país inclusive do Brasil Diversos estudos têm mostrado o aumento da pobreza em escala mundial reflexo da concentração de renda e riquezas e sua acentuação após a eclosão da crise que afetou primeiramente os países do Norte Global e mais tarde com ainda mais intensidade os países do Sul Global que Seção 32 Por que a miséria persiste em nosso país 155 ocupam uma posição de dependência e subordinação no mercado mundial Questões problemáticas que antes pareciam estar geograficamente delimi tadas aos países do Sul Global como a acentuação das desigualdades de renda o aumento do número de pessoas em situação de rua o trabalho pobre chamado working poor e precário precariado o alto índice de desemprego e de informalidade a favelização o endividamento dentre outras invadem o cotidiano das cidades sobretudo das capitais nos países do Norte global BASSO 2010 Mesmo no país mais rico e potente do globo conforme explica Mariana Fix a onda de despejos que marcou a crise financeira mundial iniciada em 2007 deixou bairros inteiros praticamente abando nados nos EUA Mais de 2 milhões de famílias foram despejadas em poucos anos e outras saíram de suas casas por não conseguirem pagar as dívidas hipotecárias FIX 2011 p 1 Essas mesmas tendências pareciam estar longe de poder chegar ao Brasil No entanto em 2014 o impacto da crise econômica se fez igualmente agres sivo e generalizado no país refletindose claramente na estagnação em 2014 e depois na queda brusca do Produto Interno Bruto PIB em 2015 e 2016 Desde 2015 as medidas de austeridade aplicadas significaram uma queda de 83 no orçamento das políticas públicas para a área social no Brasil INSTITUTO DE ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS apud OXFAM 2017 No atual contexto de crise econômica esses cortes em programas sociais empurram com ainda mais rapidez as famílias para a pobreza Nesse contexto falase de novos pobres que são produtos da crise dos cortes em programas sociais e da grave situação de desemprego e precarização do trabalho Depois dessa contextualização tentaremos entender duas matrizes de discussão sobre a miséria e a fome para podermos também refletir se esses fenômenos são um problema individual ou social e quais seriam os caminhos para combatêlos A abordagem individualista inspirase na teoria econômica liberal que considera a liberdade do indivíduo e do funcionamento do mercado como elementos explicativos fundantes dos fenômenos sociais inclusive da pobreza e da fome A pobreza e as desigualdades são consideradas naturais das socie dades e em alguma medida benéficas ao próprio funcionamento do mercado por fomentar a concorrência Por exemplo segundo essa visão os operários recebem menos porque têm menos qualificação e são mais numerosos em relação à oferta reduzida de trabalhadores mais qualificados A melhor forma de equilibrar a pobreza e as desigualdades é deixar o mercado funcionar livremente e responsabilizar os indivíduos para que tomem iniciativas a fim de melhorar sua condição no mercado 156 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira A partir da visão individualista da pobreza o único papel do Estado e da sociedade é buscar políticas que fomentem o próprio mercado e em decor rência ofereçam oportunidades aos indivíduos para que estes tomem indivi dualmente iniciativas para agir na sua situação vulnerável Já a abordagem do Estado social baseiase em teorias que ganham corpo nos chamados anos gloriosos após a Segunda Guerra Mundial Elas abandonam o enfoque assistencialista de intervenção do Estado para agir pontualmente e de forma paliativa nas desigualdades e situam o Estado como uma entidade separada e que pode regular os desequilíbrios de matriz econômica como árbitro garantidor e promotor concomitantemente 1 dos interesses de mercado e da liberdade regulada de ação de suas forças 2 dos interesses sociais coletivos de seus membros e do bemestar social mínimo Nessa visão a pobreza e a fome não podem ser consideradas como um problema individual mas sim como um produto das relações sociais portanto coletivo Muitas reivindicações de movimentos sociais partem desse raciocínio de que é função do Estado intervir no mercado para corrigir injus tiças sociais e possibilitar a superação da condição de desvantagem desses grupos no sistema político e econômico Quais seriam então as formas de combater a pobreza e a desigualdade no Brasil No Brasil nós nunca tivemos um Estado social forte No entanto sobre tudo com a campanha de nacionalização de Getúlio Vargas e mais tarde com a redemocratização do país em 1988 foram criadas importantes estru turas sociais como o sistema de educação e de saúde pública Há também um histórico de programas sociais para agir contra a pobreza e a fome que foram tratados nesta seção A questão central é entendermos se o Estado deve se retirar de seu dever constitucional de combate à pobreza e às desigualdades como dita a Constituição de 1988 BRASIL 1988 ou se deve manter e melhorar a estru tura de suporte social que já foi construída A tendência colocada no contexto neoliberal que se acentuou com a atual crise é que o Estado faça cortes em orçamentos destinados ao social e também privatize seus bens serviços e ativos sobretudo a partir da aplicação dos ajustes fiscais como se esses fossem o único remédio para resolver os efeitos da crise Todavia essa via caminha ao lado como já problematizado nesta seção de uma sociedade desigual e conflituosa que corre o risco de naturalizar a pobreza em vez de combatêla Seção 32 Por que a miséria persiste em nosso país 157 Faça valer a pena 1 Observe o gráfico a seguir Figura Gráfico aumento no número de grandes propriedades rurais nos anos 2000 Fonte Sistema Nacional de Cadastro Rural Incra extraído de OXFAM 2016 Seguindo as informações do gráfico apresentado retiradas do estudo de OXFAM 2016 com base nos dados do Sistema Nacional de Cadastro Rural SCNR do Insti tuto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INCRA é correto concluir a No Brasil o início do século XXI representa uma exceção histórica em relação à estrutura fundiária do país b Os minifúndios e as pequenas propriedades que são responsáveis pela maior parte da produção de alimentos no Brasil tiveram um aumento significativo de área no início do século XXI c O número de estabelecimentos rurais cresceu entre os anos de 2003 e 2010 evidenciando a tendência de efetivação da reforma agrária no Brasil d O crescimento do número de estabelecimentos rurais associouse ao cresci mento da participação percentual das grandes propriedades no território nacional evidenciando a continuidade da concentração de terras no Brasil e As tendências para o futuro apontam para um decrescimento das grandes propriedades no Brasil 158 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira 2 Leia o trecho a seguir A notícia citada remete ao contexto espanhol póseclosão da crise mundial 2007 2008 que nesse país manifestouse sobretudo pela crise no mercado imobiliário Esse contexto de crise na Espanha permite traçar paralelos com a atual situação no Brasil Nesse sentido qual das alternativas a seguir é verdadeira a A crise imobiliária como na Espanha é o principal produtor de pobreza no Brasil após 2014 b A situação trabalhista de María é uma exceção no contexto espanhol póseclosão da crise 20072008 e também no Brasil após 2014 c O fenômeno dos trabalhadores pobres working poor é equivalente ao desemprego e não é relevante no contexto da Espanha e do Brasil do início do século XXI d A flexibilização do mercado de trabalho na Espanha e no Brasil com aumento de trabalhos temporários e terceirizados significou a erradicação da pobreza nesses dois países nos últimos dois anos e O fenômeno dos trabalhadores pobres retrata uma situação de trabalho porém muito precário e mal remunerado que não resolve o problema do aumento da pobreza na Espanha e no Brasil Para María a expressão não chegar ao fim do mês ainda não é precisa Não estamos nem no dia 10 e já não dá mais diz sem perder o sorriso Em sua casa os 900 euros 3440 reais que seu marido ganha como motorista e o pouco que ela consegue tirar ao dar uma mão em um bar saem tão rápido quanto entram Só para o aluguel já são 750 euros Esta cubana de 30 anos está entre os milhões de imigrantes que chegaram à Espanha no boom da construção e que mais tarde acabaram pagando pelos excessos daqueles dias Desde então sofrem com empregos precá rios e mal pagos Seu perfil se encaixa perfeitamente com um fenômeno que apesar de não ser novo tem crescido em decor rência da crise o dos trabalhadores pobres As estatísticas europeias mostram que este é um problema em alta em todo o continente mas especialmente grave na Espanha país que serviu de inspiração para a nova legislação trabalhista brasileira que entrou em vigor no sábado Entre os espanhóis 131 dos trabalhadores vivem em lares que não alcançam 60 da renda média Só Romênia e Grécia têm números piores nesse triste indicador E o risco de pobreza ameaça ainda mais os espanhóis que têm um contrato de trabalho parcial neste grupo a taxa dispara para 243 DONCEL 2017 sp Seção 32 Por que a miséria persiste em nosso país 159 3 Leia os excertos a seguir Excerto I Excerto II Os contextos descritos nos excertos ajudam a circunscrever relevantes problemáticas relacionadas com a questão da moradia no Brasil do início do século XXI Qual das alternativas a seguir ajuda a entender melhor a questão da moradia no nosso país e sua ligação com as dinâmicas de funcionamento das cidades no mundo de hoje a A política de moradia descrita no excerto II é destinada a resolver os problemas enfrentados pelo grupo social atingido pelos problemas descritos no excerto I b A pressão exercida pelos movimentos sociais descritos no excerto I levou à implementação da política de moradia descrita no excerto II c O aumento dos semteto descrito no excerto I tem estreita relação com o modelo de política de moradia descrito no excerto II Além do adensamento das favelas nos últimos anos testemu nhamos um crescimento acentuado de ocupações organizadas de terrenos e edifícios vazios em várias cidades brasileiras principalmente em São Paulo e Belo Horizonte Desde os anos 1980 movimentos sociais organizados por moradia promoveram ocupações planejadas de terrenos nas periferias com o duplo objetivo de chamar a atenção e pressionar por uma política habitacional para assim resolver o problema dos semteto ainda que de forma provisória ROLNIK 2016 p 278 No caso brasileiro o aumento exponencial da disponibilidade de crédito inclusive o crédito imobiliário uma das medidas centrais do modelo econômico desenvolvimentista incidiu de forma intensa sobre o preço dos imóveis Isso se deu particular mente após 2009 quando já vigorava a crise financeira interna cional detonada pela derrocada do crédito subprime no mercado hipotecário norteamericano Nesse contexto um programa de estímulo à produção de casas o Minha Casa Minha Vida lançou 100 bilhões de reais em crédito imobiliário residencial em dois anos articulado a um programa de subsídios para a compra de 1 milhão de unidades residenciais produzidas pelo mercado privado ROLNIK 2016 p 279 160 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira d A política implementada do excerto II significou a resolução definitiva do problema descrito no excerto I e O aumento dos semteto descrito no excerto I não tem nenhuma relação com o modelo de política de moradia descrito no excerto II Seção 33 Como combater nosso racismo 161 Como combater nosso racismo Diálogo aberto Caro aluno seja bemvindo à Seção 33 dedicada à discussão do racismo das desigualdades raciais e das respostas que a sociedade brasileira tem proposto para atuar nesses problemas No Brasil presenciamos inúmeros casos graves de racismo Os assassi natos constantes de jovens negros são certamente o exemplo mais explícito dessa gravidade Basta lembrarmos do brutal assassinato em 2018 da verea dora negra da cidade do Rio de Janeiro defensora dos direitos da população negra Marielle Franco A indiferença reina segundo a pesquisa da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial SEPPIR e do Senado Federal que evidencia que 56 da população brasileira considera que a morte violenta de um jovem negro choca menos a sociedade do que a morte de um jovem branco ONUBR 2017 Na atualidade o fato de o racismo ser considerado um crime no Brasil com penalidades previstas em lei parece não mais intimidar os ímpetos racistas latentes em nossa sociedade As redes sociais certamente são os lugares em que esse temor se desfaz com menos pudor mas para além das telas a realidade no Brasil também tem sido permeada de duras manifesta ções racistas por meio de xingamentos humilhações de todo tipo pichações violência psicológica e física contra os negros e outros grupos vitimados por esse fenômeno É claro que o negro não é a única vítima do racismo Poderíamos perguntar por exemplo a um brasileiro que já morou fora do Brasil sobretudo nos Estados Unidos e na Europa se ele já sentiu na pele o que é o racismo às vezes mesmo sendo branco Poderíamos perguntar para os imigrantes e refugiados de diferentes nacionalidades não brancos ou de fé religiosa não cristã se são tratados inclusive legalmente em posição de igualdade com os brasileiros e o que isso significa em suas vidas No entanto poderíamos também alargar o nosso olhar para as nossas diver sidades originárias ou seja nossos povos indígenas Para esses povos segundo o relatório da Comissão da Verdade o século XX se caracterizou como um dos mais violentos da história desde 1500 BRIGHENTI 2016 p 240 O que dizer então de nossos dias Diversas reportagens de jornais trazem Seção 33 162 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira declarações que parecem estimular a violência contra os indígenas e sobre tudo a espoliação de suas terras CUNHA 2019 O Relatório Violência contra os Povos Indígenas de 2016 confirma que houve um aumento de diferentes tipos de violência contra essa população em comparação com 2015 CIMI 2017 A verdade é que crimes desumanos continuam a acontecer em especial contra as lideranças indígenas Afinal há alguma diferença entre as características de atuação do racismo hoje e as do passado É possível pensar em medidas e práticas para reduzir ou até mesmo acabar com o racismo no Brasil Você está convidado a pensar nesse tema que é central para o conheci mento da sociedade brasileira A seguir faremos um percurso didático a fim de ajudálo a refletir sobre as raízes históricas profundas do racismo suas continuidades no presente mas também suas descontinuidades que nos ajudam a entender o racismo nos tempos atuais e as diferentes formas de combatêlo empreendidas por movimentos sociais e por políticas públicas Não pode faltar Muitas discussões são feitas no Brasil sobre como combater o racismo aqui imperante Lembramos que racismo pressupõe diferença e hierarquia entre as raças branca negra e amarela do gênero humano Um requisito básico para enfrentarmos essa questão é nos basearmos na formação histó rica desse fenômeno e sua imbricação com as desigualdades produzidas e reproduzidas no país A estrutura racializada da sociedade brasileira tem suas raízes no sistema colonial em particular na escravidão que vigorou por quase quatro séculos no Brasil Isso significa que as raízes históricas do racismo são antigas e profundas Todavia é igualmente importante entendermos que o racismo não é algo natural que deve ser considerado uma essência imutável do funcionamento da sociedade brasileira e de sua mentalidade predominante Pelo contrário o racismo foi construído historicamente por relações sociais e da mesma forma que se reproduz no tempo também pode ser combatido e quem sabe eliminado A relação dos colonos portugueses com os indígenas é o primeiro terreno histórico para pensarmos a estruturação do racismo no Brasil Essa relação longe de assumir uma base igualitária apoiouse na construção das diferenças e hierarquias demarcadas em relação aos costumes culturas línguas religio sidades dos nossos povos originários A concepção hegemônica da história do Brasil como se apenas tivesse começado depois da descoberta pelos Seção 33 Como combater nosso racismo 163 Assimile O genocídio dos povos indígenas na América Latina e no Brasil já foi documentado por muitos estudos No entanto é importante atentarmos ao que Souza e Wittman 2016 colocam em evidência Os autores chamam atenção ao fato de que essas populações estão vivas e presentes no território nacional sendo também detentoras de direitos como todos os brasileiros Nesse sentido destacam a falácia do discurso de que os povos indígenas estavam extintos ou em vias de se extinguir por completo o que legiti maria o espólio de terras A ideia do desaparecimento por meio da mestiçagem serve até hoje para o avanço sobre terras indígenas sob a justificativa de que os índios não podem mais ser assim reconhecidos porque mudaram A transformação porém é inerente às relações humanas O que esta história demonstra é mais do que a presença uma agência indígena na defesa de seus territórios coletivos SOUZA WITTMAN 2016 p 20 Os sistemas de tutela e de reserva de terras instituições jurídicas nas quais respectivamente o indígena foi considerado um menor de idade que devia ser tutelado pelo Estado e devia se contentar com um espaço reduzido de sua própria terra nativa delimitado pela administração colonial foram utilizados para apazi guar as relações dos portugueses com os indígenas sobreviventes Esse sistema provocou o isolamento dessa população o que até hoje é motivo de debates muito vivos sobre como integrar essa alteridade que a todos efeitos é a autêntica população brasileira Sabemos bem que essa população foi excluída da participação portugueses já que aqui habitavam povos sem história e sem cultura é exemplo claro dessas hierarquias estabelecidas No início do sistema colonial o racismo assumiu características religiosas Na Junta de Valladolid 155051 pela primeira vez se discutiu a questão da natureza cristã ou não dos indígenas das Américas portanto também de qual política colonial adotar em face deles Embora os nativos não tenham sido considerados nem hereges nem pagãos mas povos gentis cristãos por natureza que deveriam ser convertidos à fé cristã não foram reconhecidos como sujeitos em condição de igualdade com os portugueses Além disso a população nativa não foi nem um pouco poupada de tentativas de recruta mento para o trabalho forçado de muitos outros tipos de violência inclusive de abuso sexual e estupro das indígenas nem de massacres continuados para não dizer de tentativas de extermínio que certamente perduram até hoje não sem a resistência contínua desses povos é claro LEWIS 2019 164 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira das dimensões mais variadas da sociedade brasileira como o sistema educacional político de saúde o mercado de trabalho dentre tantas outras A Constituição Federal de 1988 BRASIL 1988 assegura aos nossos povos originários o direito à terra e reconhece suas organizações costumes tradições e crenças As terras indígenas representam além de um direito uma garantia de sobrevivência física e cultural dessa população É por esse motivo que a efetivação desse direito já reconhecido ou seja a demarcação de terra continua sendo a principal reivindicação dos povos indígenas no Brasil que lutam também contra as invasões de suas terras a pobreza e as violações de seus direitos Não devemos nos esquecer de que essas terras concentram a maior reserva de biodiversidade do país além de minerais diversos por isso são alvo de ambições desmedidas Estereótipos do tipo índio tem muita terra índio deveria trabalhar para comprar suas terras índio é pregui çoso que reforçam a ideia do primitivo da peça de museu continuam funcionando como um poderoso argumento para justificar a expropriação dessa população e privála de um direito originário Paralelamente o regime de escravidão base da economia agrária de exportação colonial foi outro importante fator histórico estruturante do racismo na nossa sociedade O historiador Luiz Felipe de Alencastro 2000 fez um estudo de referência para entendermos o que ele chama de trato dos viventes e sua importância para formação econômica e cultural do Brasil evidenciando como a escravidão penetrou nas dimensões mais íntimas do funcionamento da sociedade e do Estado Conforme explica o país foi o principal importador de escravos das Américas ou seja fez funcionar por séculos a migração forçada de cerca de 5 milhões de africanos Isso comprova como o sistema racista oficialmente legalizado no período da escravidão ao colocar os negros em uma condição de objeto que podia ser comprado e vendido além de poder ser utilizado à mercê dos caprichos de seu proprietário representava uma estrutura econômica altamente lucra tiva e difícil de ser eliminada da mentalidade dos proprietários de escravos e do funcionamento do Estado brasileiro Por esse motivo o historiador dá destaque ao fato de que mesmo após o tráfico negreiro ser declarado ilegal pela Inglaterra no início do século XIX o Brasil simplesmente ignorou essa lei e continuou importando e escravizando os negros que aqui chegavam O historiador também relata a violência os açoites punições utilizadas contra os negros que se revoltavam contra esse sistema já declarado ilegal A luta dos escravos e libertos teve papel determinante para o fim da escravidão por meio de diversas formas de resistência nas senzalas fugas das fazendas autoorganização dos quilombos mesmo sob o controle extremo do senhor e do aparato repressivo do Estado O historiador Clóvis Moura 19252003 destacou que enquanto o escravismo brasileiro era uma Seção 33 Como combater nosso racismo 165 instituição sólida e reconhecida somente os escravos lutaram radicalmente para extinguilo MOURA 2014 p 56 A questão central é que a sociedade moderna brasileira foi formada com base nessa estrutura racializada que não reconhecia que negros e indígenas tivessem a mesma natureza humana de todos tampouco seus direitos civis e religiosos Os estudos do historiador Charles Boxer 19042000 também dão destaque ao sentimento de superioridade racial dos portugueses e sua intrínseca relação com o pioneirismo de Portugal no comércio escra vagista e na exploração sistemática do trabalho dos negros por mais de três séculos BOXER 1981 p 254 Para Boxer o Império Português em todas as suas colônias foi estruturado por meio de barreiras raciais A prática da discriminação racial era onipresente e se justificava ideologicamente pela associação entre pureza da alma e brancura da pele colocando os portu gueses na posição de proprietários e detentores do poder político ao passo que os negros e indígenas eram considerados unicamente como objetos de exploração e dominação Boxer ressalta também que mesmo os mulatos de sangue misturado sempre ocuparam um lugar rebaixado na sociedade colonial portuguesa por causa da cor da pele BOXER 1967 p 104 A questão racial se complexifica quando em 1888 é abolida a escravidão e em 1889 é inaugurado o regime republicano que reconhece a igualdade formal de direitos entre negros e brancos A partir de então o racismo deixa de ser legalizado Florestan Fernandes é um autor essencial para enten dermos o significado contraditório dessa transformação ao mostrar que ao mesmo tempo em que o reconhecimento formal de direitos dos negros passa a ser uma arma de combate ao racismo contraditoriamente também serve como fator ideológico para justificar a sua reprodução Isso porque a igualdade formal de direito tem como contrapartida tornar o racismo mais insidioso e camuflado uma vez que pressupõe que o negro mesmo tendo sofrido um sistema secular de exploração e opressão parte de bases iguais para competir na sociedade de classes ou seja é como se esse grupo social estivesse em condições de igualdade com o branco para competir por uma vaga de trabalho para entrar e se manter no sistema escolar entre outros fatores A fotografia social fornecida na sua obra sobre a situação do negro e do mulato no momento sucessivo à abolição mostra que a liberdade e igualdade formal de direitos continuariam modeladas e bloqueadas pela concentração racial de renda do prestígio social e do poder ou seja conti nuavam impedidas de serem fruídas socialmente FERNANDES 2008 p 118 e 140 A partir de uma pesquisa empírica realizada nos anos 1950 na cidade de São Paulo para avaliar a integração do negro nessa cidade com alta concentração de imigrantes brancos europeus o autor denuncia as 166 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira desvantagens do negro para competir que refletem a continuidade da estru turação da sociedade brasileira na discriminação racial e nas desigualdades raciais É por esse motivo que Florestan Fernandes critica veementemente o que ele chama de mito da democracia racial bastante arraigado na nossa sociedade por construir a ideia de que o Brasil diferentemente de outras sociedades é menos preconceituoso mais aberto à miscigenação de raças e culturas Na opinião de Fernandes essa ideia defendida por Gilberto Freyre 19001987 como uma herança positiva do colonialismo português FREYRE 1958 é retrato na verdade de uma sociedade que aparenta ter preconceitos de ter preconceito porém ratifica as desigualdades raciais criando um consenso de que certas posições de maior renda prestígio social e poder pertencem ao branco FERNANDES 2008 p 309 e 437 Pesquise mais Sugerimos que você assista ao vídeo produzido pela Editora Perspectiva sobre o livro do escritor e Professor Abdias do Nascimento 19142011 O genocídio do negro brasileiro em suas diversas formas 1978 Perceba como o genocídio não remete apenas à sua dimensão concreta de extermínio físico da população negra mas também à simbólica relativa à psique à identidade do negro que sofre diversos tipos de violência cotidiana em uma sociedade racista O GENOCÍDIO do negro brasileiro em suas diversas formas 1978 Sl Editora Perspectiva 2018 1 vídeo 3min06s A pesquisa empírica de Fernandes para avaliar a integração do negro resultou em seu livro A integração do negro na sociedade de classes 1964 e foi atualizada mais tarde por diversos estudiosos do racismo SILVA 2017 IPEA 2007 HASENBALG 2005 Não faltam estatísticas para comprovar as desvantagens que os afrodescendentes enfrentam na estrutura de emprego qualificação educacional distribuição de renda e riqueza entre outras dimensões da sociedade brasileira As políticas de ação afirmativa são destinadas a agir nesse quadro de desigualdades raciais e de reprodução de injustiças sociais Moehlecke 2002 nos explica que as ações afirmativas surgem nos EUA na década de 1960 em decorrência das reivindicações dos movimentos dos direitos civis sobretudo impulsionados pelos movimentos negros para promoção da igualdade de oportunidades Essas políticas também foram implantadas em diversos países do mundo com o intuito de combater a discriminação e as desigualdades contra grupos historicamente excluídos ou aqueles que nas estatísticas têm grande possibilidade de o serem Além dos negros Seção 33 Como combater nosso racismo 167 essas políticas contemplam as mulheres e as minorias étnicas religiosas linguísticas nacionais O foco dessas ações é principalmente o mercado de trabalho o sistema educacional sobretudo o ensino superior a promoção de funcionários a representação política e nos meios de comunicação a incorporação do quesito cor nos sistemas de informação Conforme destaca a autora no Brasil essas políticas começam a ser discutidas nos anos 1980 passam a ser aplicadas timidamente nos anos 1990 e com mais sistematicidade nos anos 2000 A política das cotas raciais no ensino superior acabou ganhando mais destaque por causar polêmicas acirradas sobretudo no que se refere ao argumento da quebra do princípio da igualdade protegido pela Constituição e de supostos privilégios conferidos aos beneficiários das cotas Esses e outros argumentos foram totalmente descontruídos empírica e teoricamente não apenas por estudos científicos mas também pelo próprio Supremo Tribunal Federal STF que declarou a constitucionalidade dessa política Na ocasião em que foi discutida a constitucionalidade das cotas nesse Órgão foi convocada uma audiência pública na qual diversos intelectuais e especialistas no tema racial a favor e contra as cotas foram chamados para se pronunciar Vejam o que o historiador Alencastro disse no seu pronunciamento Os ensinamentos do passado ajudam a situar o atual julgamento sobre cotas universitárias na perspectiva da construção da nação e do sistema político do nosso país Nascidas no século XIX a partir da impunidade garantida aos proprietários de indiví duos ilegalmente escravizados da violência e das torturas infli gidas aos escravos e da infracidadania reservada aos libertos as arbitrariedades engendradas pelo escravismo submergiam o país inteiro Por isso agindo em sentido inverso a redução das discriminações que ainda pesam sobre os afrobrasileiros hoje majoritários no seio da população consolidará nossa democracia ALENCASTRO 2012 p 3738 Exemplificando O papel do movimento prócotas é provocar o poder público a agir nas desigualdades raciais seculares no Brasil As discussões que surgiram em torno da implantação da política de cotas nas universidades públicas no Brasil para o acesso e a permanência estudantil de negros e indígenas explicitaram a atuação do racismo aqui 168 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira Se por um lado existe esse tipo de reação favorável por outro se disseminam posições de repúdio às cotas de forma discriminatória e na maioria das vezes ilegal Serve de exemplo a notícia publicada no Portal G1 dando conta de que Cotas raciais viram assunto de polícia no Rio Grande do Sul Portal G1 2007a fazendo referência às pichações feitas no muro próximo à faculdade de direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul com a frase Negros só se for na cozinha do RU restaurante universitário sic PEREIRA 2008 p 176 Poderia sintetizar as quatro motivações principais para justificar a legitimidade e a urgência das cotas nas universidades O primeiro argumento seria a representação após mais de 300 anos de escravidão a comunidade negra exige uma compensação inequí voca pela tragédia da escravidão Garantir o acesso ao ensino superior pelo menos para um pequeno contingente de descendentes de africanos escravi zados no Brasil é uma das tantas formas possíveis de Além dos inúmeros dados estatísticos que explicitam a discriminação contra os afrodescendentes e indígenas e a persistência da diferença de anos de escolarização entre brancos e esses grupos no Brasil um rico debate sobre o significado da democracia dos princípios de justiça social de defesa da diversidade e de reparação histórica foi mobilizado para mostrar para a sociedade a legitimidade e sobretudo a necessidade das políticas de cotas JR FERES DAFLON CAMPOS 2012 Na prática tratase de aplicar o binômio distribuiçãoreconheci mento SILVÉRIO 2012 p 22 e tratar de maneira desigual um problema gerado por uma situação desigual ALENCASTRO 2012 p 30 Hoje essa política foi implementada por diversas instituições de ensino superior no Brasil públicas e privadas nos concursos públicos no mercado de trabalho ZONINSEIN FERES 2008 porém ainda há muito a ser feito Reflita Confira as principais motivações que sustentam as políticas de cotas raciais na visão de Carvalho 2005 Conforme destaca o autor as cotas raciais abrangem um campo mais amplo de lutas antirracistas no Brasil Seção 33 Como combater nosso racismo 169 Art 26A Nos estabelecimentos de ensino funda mental e de ensino médio públicos e privados tornase obrigatório o estudo da história e cultura afrobrasileira e indígena reparação Um segundo motivo para as cotas seria a cobrança de um direito mesmo depois de abolida a escravidão A Constituição da República de 1988 assegurava um tratamento igual a todos os cidadãos no que diz respeito aos serviços públicos oferecidos pelo Estado entre eles o acesso ao ensino gratuito Após mais de um século de república a desigualdade de participação no ensino superior da comunidade negra é escandalosa e sob este ponto de vista as cotas garantem um direito mínimo de participação Um terceiro argumento diz respeito especificamente à dinâmica da instituição universitária a presença de negros e índios enriquecerá a produção de saberes e forçará uma revisão do eurocentrismo subalternizante e absoluto que marca a vida universitária brasileira Contudo há uma quarta motivação para as cotas que considero de maior relevância a intensificação da luta antirracista no Brasil Propor as cotas é abrir a discussão até agora silenciada sobre a sociedade racista em que vivemos CARVALHO 2005 p 110 O combate ao eurocentrismo e o ensino de história da África e dos povos indígenas também se inserem nessa frente de combate ao racismo no Brasil voltada a agir no campo da educação em especial nos currículos escolares e nas instituições de ensino A Lei nº 1063903 BRASIL 2003 que declarou a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura AfroBrasileiras e Africanas nas escolas públicas e privadas do ensino fundamental e médio e posterior mente a Lei nº 116452008 BRASIL 2008 que incluiu os indígenas são marcos institucionais de reivindicações da população afrodescendente e indígena e seus movimentos de representação Assimile A Lei n 11 6452008 BRASIL 2008 modificou o art 26A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 1996 conforme indicado a seguir 170 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira a partir desses dois grupos étnicos tais como o estudo da história da África e dos africanos a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional resgatando as suas contribuições nas áreas social econômica e política pertinentes à história do Brasil 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afrobrasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras BRASIL 2008 sp A instituição dessas legislações não se deu sem crítica sobretudo ligadas à falta de efetividade na implementação dessa política e também acompa nhou um rico debate sobre o reconhecimento da diversidade dos povos indígenas e africanos e sobre a necessidade da construção de uma nova narrativa da história do Brasil desvinculada dos parâmetros hegemônicos eurocêntricos que consideram a cultura europeia ocidental como superior portanto a ser assimilada por todas civilizações do mundo em detrimento de suas próprias culturas Ao contrário discutese a necessidade de se colocar os saberes dessas populações no mesmo patamar de importância dos saberes hegemônicos do Ocidente Para tanto estabeleceuse a implementação de um novo currículo escolar que contemplasse o combate aos estereótipos às mistificações funcionais à discriminação e à exploração dessas populações e o estudo da atuação dessas populações como sujeitos e protagonistas de sua própria história foram Conforme explica Carvalho 2005 Evidentemente carregamos ainda uma carga muito forte de eurocentrismo dado que todo esse modelo de academia exclu sivista foi gerado pelo mundo europeu Ocidental que se via como homogêneo etnicamente Dito em termos antropológicos mais soltos havia uma etnia dominante tanto na Europa Central como na Inglaterra e na França os brancos As minorias de outras línguas que não as línguas coloniais estavam fora desse jogo político e acadêmico Tratavase na verdade de um mundo branco ocidental que funcionava como se não tivesse fraturas internas de visão de mundo que se autoproclamava universal Seção 33 Como combater nosso racismo 171 Santos e Meneses 2010 também denunciaram a violência epistemológica ocidental ligada ao exercício do poder colonial da economia capitalista e do processo de expansão da cultura ocidental A construção de epistemologias dominantes para os autores implica o epistemicídio ou seja a supressão da diversidade de culturas e saberes dos povos submetidos à dominação pelo ocidente hegemônico Para desconstruir essa narrativa histórica contada a partir do ponto de vista dos dominantes há um esforço sendo feito de reconstrução da história dos países colonizados a partir da perspectiva dos colonizados dos sujeitos subalternos e suas lutas com destaque ao seu papel ativo como protagonistas dessa história Hoje a nossa historiografia possui um arsenal de estudos nessa linha que embora ainda tenha muitas lacunas a serem preenchidas permite que outra narrativa histórica comprometida com os saberes indígenas e africanos seja ensinada nas escolas e universidades SILVA SOUZA 2016 Como a reconstrução dessa narrativa não alude apenas ao passado mas também à história presente desses grupos sociais é imprescindível conhecermos as reivindicações e frentes de resistência e transformação dos movimentos indígenas e negros Esses movimentos bebem das fontes de resistência do passado A década de 1970 é um marco para entendermos o crescimento desses movimentos em nível nacional No que se refere ao movimento indígena há diversas organizações espalhadas pelo país que também se articulam em nível regional e nacional Para Matos 2006 esses movimentos contribuíram para a construção de uma nova imagem social de índio reconhecido como sujeito político da sociedade civil brasileira MATOS 2006 p 40 A autora ainda destaca a complexidade desses movimentos que abrangem desde ações coletivas e enfrentamentos diretos pelos indígenas a esferas de institucionalização de representação política no formato de organizações não governamentais ONGs partidos políticos e gestão administrativa nas instituições Todavia quando transladamos essa configuração sócioracial para o nosso mundo fomos forçados a pagar um preço muito alto em termos de silenciamento de censura de repressão de outras visões de mundo porque nós não estamos nesse espaço austríaco prussiano britânico parisiense Existem pelo menos 180 línguas indígenas faladas hoje no Brasil daí que pelo menos a nossa Extensão deveria manterse conectada com a parte nãoeurocêntrica da nossa sociedade Deve ser o lugar onde se faz o esforço de incorporar saberes não europeus que foram definidos por nós brancos como não acadêmicos CARVALHO 2005 p 146 172 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira Diversos líderes indígenas ganharam destaque no país mas sabemos que eles também são alvo privilegiado de assassinatos Conforme Matos 2006 esses líderes assumem o papel de articuladores gestores representantes políticos em esferas públicas sobretudo de tradutores políticos por fazerem a mediação das relações interétnicas entre as populações indígenas e a socie dade e o Estado nacionais antes efetuada principalmente por indigenistas do órgão governamental SPI FUNAI e indigenistas de organizações não governamentais de apoio aos direitos indígenas MATOS 2006 p 217 Os movimentos negros também assumem um papel de enorme relevância na sociedade brasileira A resistência secular à escravidão na forma política cultural e religiosa é central para combater o racismo no Brasil Desde as primeiras décadas do século XX esses movimentos tinham uma expressão significativa na imprensa literatura e construíam diversas organizações com diferentes pautas de atuação afirmação da identidade negra presença no poder político ampliação da visibilidade do negro dentre outras O Movimento Negro Unificado fundado em 1978 é um exemplo do grau complexo de organização e representação que esses movimentos assumiram no Brasil Esses movimentos atuam nas cidades nas suas periferias e também no mundo rural onde há a população quilombola É importante destacar o protagonismo das mulheres negras nesses movimentos que também assumem pautas dando destaque à opressão de gênero da mulher negra A atuação desse movimento foi determinante para a implantação das políticas de cotas raciais no país anteriormente discutidas além de outras frentes de combate ao racismo Analistas iluminam o processo de institucionalização e participação no poder público desses movimentos conquistado após a redemocratização do país 1988 em particular no início do século XXI RIOS 2008 É importante lembrarmos que essas conquistas podem sofrer retro cessos O momento atual que estamos vivendo no Brasil e no mundo descrito pelo sociólogo italiano Pietro Basso como de agudização do racismo BASSO 2015 coloca desafios enormes para esses movimentos e para todos os setores da sociedade empenhados em combater esse fenômeno e seus efeitos nefastos Seção 33 Como combater nosso racismo 173 No Brasil presenciamos inúmeros casos graves de racismo com assas sinatos constantes de jovens negros e da população indígena em particular de suas lideranças Embora o racismo seja crime no Brasil com penalidades previstas em lei isso parece não mais intimidar os ímpetos racistas latentes em nossa sociedade que se explicitam sobretudo nas redes sociais mas também na vida real cotidiana da sociedade com os xingamentos humilha ções de todo tipo pichações violência psicológica e física contra os grupos sociais vítimas desse fenômeno Afinal há alguma diferença entre as características de atuação do racismo de hoje e as do passado Não é possível entender as manifestações de racismo em nossa socie dade sem a compreensão das raízes históricas profundas ligadas ao funcio namento do sistema colonial e da escravidão no Brasil O olhar de longo prazo para a nossa história ilumina o quão enraizado esse fenômeno está na sociedade brasileira A estrutura racializada durante muitos séculos tinha respaldo em leis Apenas em 1888 com a abolição da escravidão e em 1889 com a Proclamação da República a igualdade formal do branco e do negro foi instituída Aos indígenas foi reservado um sistema de tutela que os privava da igualdade de direitos civis Essa estrutura racializada e toda a violência racista nela implicada reproduziuse de diferentes formas Não faltam estatísticas para comprovar a exclusão e a exploração do negro e dos indígenas do funcionamento de diferentes dimensões da sociedade brasileira do mercado de trabalho do sistema educativo de saúde do acesso à moradia e ao poder político Todavia de forma alguma devemos considerar essa situação como natural ou imutável de nossa sociedade Da mesma forma que o racismo é historicamente construído por relações sociais ele também pode ser comba tido e quem sabe também eliminado Para isso é necessário o combate da dimensão material estrutural e também cultural e ideológica do racismo Conforme explicam Ferrero e Perocco 2011 Sem medo de errar O racismo é uma relação social de opressão e de exploração que compreende um complexo ideológico que naturaliza as relações desiguais e que justifica a subordinação de um grupo social por um outro Uma relação material de dominação que atinge parti cularmente as classes subalternas ou parte delas e que é parte integrante dos processos de produção e reprodução das desigual dades sociais Filho primogênito do colonialismo o racismo é 174 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira um fenômeno congênito estrutural generalizado da sociedade moderna É verdade que nas sociedades prémodernas existiam situações parecidas com o racismo isto é realidades sociais caracterizadas por uma ligação entre uma posição social subor dinada e uma forma de atribuição física ou metafísica conferida pelos grupos dominantes às populações dominadas escravos estrangeiros servos da gleba porém essas situações não apresentavam nem um complexo ideológico racista de caráter sistemático ou seja uma ideologia racista completa e integral mente combinada com o funcionamento do sistema social nem uma centralidade estrutural do fator raça no sistema de organização social FERRERO PEROCCO 2011 p 9 A resistência dos nossos povos indígenas e negros foi transversal à história do Brasil Os movimentos sociais e indígenas além daqueles de outras minorias étnicas como os imigrantes e refugiados ainda têm uma atuação bastante presente e significativa no Brasil empreendendo diversas frentes de luta de denúncia e combate ao racismo que já tiveram resultados importantes na sociedade brasileira como a política de cotas o aumento da representação desses grupos nas instituições públicas e privadas o aumento da visibilidade nos meios de comunicação e em outros âmbitos a implan tação do quesito cor nos sistemas de informação Entretanto também é verdade que o momento atual coloca desafios redobrados para esses movimentos e para todos os setores da sociedade que repudiam e combatem o racismo O sociólogo italiano Pietro Basso explica o momento atual como expressão da agudização e ascensão do racismo que mantém fortes continuidades com as raízes coloniais desse fenômeno Consideramos que essa perspectiva também é válida para analisarmos o nosso contexto de ascensão do racismo e concomitantemente as estraté gias das lutas antirracistas Basso evidencia como o racismo é central para entendermos o funciona mento das sociedades modernas A experiência social cotidiana mostra sem deixar espaço para equívocos que a raça é uma realidade Uma sólida realidade social psicológica ideológica politica A raça é ainda hoje uma categoria plena de significado E tem importância e que importância As raças existem E são socialmente desiguais O mundo está de fato profundamente dividido em raçassenhoras e raçasescravas Especialmente entre a raça branca ariana ocidental e as raças nãobrancas há uma desigualdade muito Seção 33 Como combater nosso racismo 175 Na opinião do sociólogo não há portanto uma ruptura com a forma de agir desse fenômeno no passado Pelo contrário o movimento de agudi zação e ascensão do racismo evidencia como esse fenômeno pode voltar a ser um elemento explícito e legalizado na sociedade como ocorria na época de funcionamento dos sistemas coloniais Por esse motivo Basso utiliza o conceito de racismo de Estado 2010 para se referir ao que está aconte cendo nos países ricos Europa Estados Unidos em particular contra os imigrantes e refugiados dos países pobres em sua maioria não brancos Para o autor nesses países o racismo adquiriu um caráter explicitamente insti tucional nas leis e atos administrativos procedimentos burocráticos entre outros como uma marca declarada desses Estados à semelhança dos velhos tempos do colonialismo Essa atuação racista dos Estados implica uma estra tificação e hierarquização do mundo social que é funcional ao sistema econô mico vigente Mas o sociólogo também nos lembra que um movimento contrário a essa tendência de luta contra o racismo também está ativo nessas sociedades e ganha adesão da população desses lugares As frentes de combate ao racismo devem ter em mente as diferentes esferas de sua atuação institucional cultural econômica e política As políticas de ação afirmativa são destinadas a agir no quadro de desigual dades e discriminação raciais e de reprodução de injustiças sociais O foco dessas ações é principalmente o mercado de trabalho para melhora no acesso aos postos de trabalho o sistema educacional sobretudo o ensino superior para promover a qualificação das populações discriminadas o incentivo para empresas fomentarem a diversidade a representação política e nos meios de comunicação o questionamento do lugar das populações discriminadas nos meios de comunicação para evitar a reprodução de estereótipos a incorpo ração do quesito cor nos sistemas de informação para que políticas públicas de combate à discriminação possam ser aplicadas com mais eficácia Com esse fim a política de cotas por exemplo foi implementada por diversas instituições de ensino superior no Brasil públicas e privadas nos concursos públicos no mercado de trabalho porém ainda há muito a ser evidente que está inclusive se acentuando Além disso no Ocidente há anos o racismo está em ascensão Em todos os campos e em todas as suas formas No campo teórico nas politicas estatais e até no âmbito popular Na vida pública e naquela privada Em suas formas expressas e latentes burocráticas e informais Como racismo biológicogenético e como racismo cultural E tendo como alvo as populações de paises periféricos e as populações europeias mais pobres os eslavos por exemplo BASSO 2015 p 71 176 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira feito tendo em vista a necessidade de diversas frentes para promover o reconhecimento da diversidade e o combate ao racismo no Brasil O combate ao eurocentrismo e o ensino de história da África e dos povos indígenas também se insere nessa frente de enfrentamento do racismo no Brasil Buscase o reconhecimento da diversidade dos povos indígenas e africanos do seu protagonismo na história do Brasil e do valor de seus saberes à cultura hegemônica ocidental Não podemos esquecer também que o racismo é considerado crime no Brasil Portanto a punição efetiva desse crime também é uma frente de combate ao racismo que o Estado e a sociedade devem reconhecer Por fim é imprescindível conhecermos as reivindicações e frentes de ação dos movimentos indígenas e negros para entendermos o combate ao racismo no Brasil Faça valer a pena No Brasil sete em cada dez pessoas assassinadas são negras Na faixa etária de 15 a 29 anos são cinco vidas perdidas para a violência a cada duas horas De 2005 a 2015 enquanto a taxa de homicídios por 100 mil habitantes teve queda de 12 para os nãonegros entre os negros houve aumento de 182 A letali dade das pessoas negras vem aumentando e isto exige políticas com foco na superação das desigualdades raciais Segundo dados recentes divulgados pela UNICEF de cada mil adolescentes brasileiros quatro vão ser assassinados antes de completar 19 anos Se nada for feito serão 43 mil brasileiros entre os 12 e os 18 anos mortos de 2015 a 2021 três vezes mais negros do que brancos Entre os jovens de 15 a 29 nos próximos 23 minutos uma vida negra será perdida e um futuro cancelado ONUBR 2017 1 Leia o trecho a seguir Os dados fornecidos pela campanha Vidas Negras evidenciam que a O número de mortes de pessoas negras na sociedade brasileira é insignificante por isso é compreensível que a mídia não dê destaque à cor das pessoas mortas no país Seção 33 Como combater nosso racismo 177 2 Em um país multicultural a interculturalidade deve ser parte do processo educa tivo Por que o Brasil não faz Por que até hoje a temática da diversidade não faz parte do currículo escolar Por que até hoje a temática indígena não é tema básico nas escolas Por que precisamos de uma lei para incluir essa temática no currículo escolar BRIGHENTI 2016 p 236 Qual das respostas a seguir contempla todas as perguntas do enunciado a A realidade curricular do ensino básico e fundamental no Brasil desde sempre contemplou o estudo de 180 línguas indígenas e das diferentes culturas africanas b Não há material didático e professores preparados para permitir o ensino das culturas indígenas e afrobrasileiras no sistema de ensino básico e fundamental no Brasil c As culturas indígenas e afrobrasileiras não têm natureza científica e não oferecem nenhuma contribuição para que sejam ensinadas nos currículos escolares d A hegemonia da cultura ocidental ligada ao processo de colonização do Brasil refletese nos currículos escolares até hoje e Justificase apenas o ensino das culturas afrobrasileiras nos currículos escolares pois os negros representam mais da metade da população brasileira 3 Edward Said em seu livro Orientalismo 2007 cunhou o conceito de orientalismo sinônimo de domínio euroamericano Seu objetivo foi destacar o modo de pensar o Oriente por parte dos estudiosos ocidentais a partir de uma série de concepções falsas e estereotipadas uma visão de mundo eurocêntrica que acaba por construir oposições radicais e hierarquizadas entre aquilo que é europeu e o que não é criando um conceito de alteridade e de diferença em confronto a tudo que não é ocidental O objetivo de fundo de sua obra lida mundialmente é propor uma reflexão crítica sobre a expansão da cultura ocidental no mundo e sobre sua influência na contemporaneidade analisandoa como um processo histórico interligado à função de legitimação do sistema de colonização de dominação e exploração dos povos não ocidentais Para Said o colonialismo é um acontecimento chave da história moderna marco da criação do paradigma da modernidade ocidental da cultura ocidental como b As mortes de jovens negros no Brasil não têm nenhum impacto negativo na nossa sociedade e não há problema se estão aumentando c As políticas com foco na superação das desigualdades raciais tiveram um impacto positivo na redução da mortalidade de brancos no Brasil d A categoria cor não deveria ser utilizada nas estatísticas sobre as mortes no Brasil já que não tem nenhuma utilidade científica e social e Mais da metade das pessoas assassinadas no Brasil são negras sobretudo jovens o que comprova a atuação do racismo no país 178 U3 Dilemas éticos da sociedade brasileira algo diferente e separado das outras culturas A invenção do outro primitivo selvagem mantém uma relação com a afirmação da identidade do Ocidente é claro como superior Essa questão ajuda a entender a problemática da hierarquia da produção de conhe cimento nas diversas áreas do saber bem como outras questões relacionadas com a cultura e a identidade na contemporaneidade Com base na discussão de fundo levantada pelo ennciado escolha a alternativa correta a O orientalismo é um fenômeno situado no passado distante quando o sistema colonial ainda era vigente no mundo b O orientalismo ajuda na compreensão do funcionamento do racismo no mundo contemporâneo por iluminar as relações hierárquicas entre povos e culturas c As relações hierárquicas entre culturas dizem respeito apenas ao juízo de valor de cada indivíduo ou seja qual cultura ele considera como superior ou inferior d A produção do conhecimento em todas as áreas científicas como diz respeito à ciência é isenta de relações de poder e dominação e A crítica proposta por Edward Said não se aplica à história colonial da América Latina pois referese exclusivamente à relação do Oriente Médio com o Ocidente ALENCASTRO L F de O trato dos viventes formação do Brasil no Atlântico Sul São Paulo Cia das Letras 2000 ALENCASTRO L F de O pecado original da sociedade e da ordem 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isto é de reconhecer a existência do outro e respeitar suas características e sua forma de vida em um processo que pode ampliar nossa tolerância ou em sentido inverso elevar nosso desconforto ao sairmos de nossos espaços tradicionais Se é verdade que os avanços tecnológicos mais recentes podem expandir padrões de vida ao redor do globo com maior facilidade as reações naturais a essa uniformização tendem a ressaltar diferenças que também serão divul gadas com mais profusão nos meios tecnológicos Os processos de padroni zação e diferenciação encontramse curiosamente intensificados nos dois sentidos Diante desse quadro se queremos compreender alguns dos elementos fundamentais para uma abordagem crítica dos dilemas éticos e políticos atuais com o objetivo de fortalecer nossa participação cidadã na sociedade brasileira contemporânea devemos refletir a respeito de questões impor tantes como a relação entre a democracia e a pluralidade levando em conta toda uma série de conceitos específicos desses campos de estudo Também para assegurar o aspecto humanista de nossa formação precisaremos nos atualizar sobre as novas formas de afirmação das identidades contemporâ neas abordando igualmente a retomada de movimentos tradicionalistas e avessos a essas novidades Assim deveremos nos perguntar se essa tolerância de que falamos é mesmo necessária Se vivemos em um mundo mais receptivo ou mais fechado a novidades do que em tempos passados O transcorrer do tempo traz consigo automaticamente mais liberdades e uma maior aceitação das diferenças Ou essa pluralidade pode ser reduzida conforme os dias passam exigindo um esforço específico para sua manutenção Além disso essa diver sidade seria boa ou ruim para a formação das sociedades A intolerância afeta apenas as vítimas ou é prejudicial também a quem a pratica Nesse mesmo sentido o aspecto quantitativo das populações interfere na qualidade das garantias dos grupos sociais de nosso país isto é ser maioria ou minoria é importante para que se tenha este ou aquele direito no Brasil Ou a afirmação dos direitos não tem nada a ver com a quantidade de pessoas de uma comunidade específica As comunidades minoritárias de nosso país devem observar obrigatoriamente o que a maioria da população determinou Será que alguns problemas já longínquos da espécie humana racismo machismo nacionalismos foram solucionados ou pelo contrário acentu ados Talvez em verdade estejamos criando novas formas de intolerância ou de ceticismo acerca dos problemas globais como o aquecimento da tempe ratura terrestre Ou mesmo retomando antigas formas de fanatismo como o fundamentalismo religioso A causa feminista por exemplo já está superada ou seus argumentos ainda têm validade mesmo nos dias de hoje E as novas formas de se lidar com as questões de gênero e sexualidade são um exagero ou têm importância para os indivíduos e sociedades contemporâneas Sejam quais forem as respostas prezado aluno a busca para definilas exigirá certamente reflexões e questionamentos fundamentais para nos situarmos de modo consciente na sociedade em que vivemos Seção 41 Toda democracia é plural 189 Toda democracia é plural Diálogo aberto Não raras vezes nos deparamos com notícias nos jornais ou somos nós mesmos os próprios autores das declarações de que um governo tomou uma atitude incompatível com os valores democráticos de que determi nada prática constitui uma afronta à pluralidade ou às liberdades essenciais da democracia ou de que uma postura apresenta inclinações autoritárias Por mais que essas informações sejam compreensíveis para grande parte da população o exercício de explicar os conceitos que estão por trás dessas simples afirmações tornase um pouco mais complexo Essa dificuldade pode ser entendida como resultado do uso de termos corriqueiros de nosso cotidiano que entretanto possuem fundamentos um pouco mais elaborados e não tão trabalhados em nosso dia a dia Assim se tomamos de exemplo o próprio Brasil poderíamos dizer que a realização de eleições periódicas e legítimas é motivo suficiente para considerarmos o país uma democracia plena O que podemos dizer por exemplo diante da ausência de representatividade das nações indígenas que não possuem um único congressista eleito desde a Constituição de 1988 Em outro exemplo que parece colocar em dúvida a plenitude de nossa democracia como avaliar os dados inquietantes compilados pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro CCIR que demonstraram que Seção 41 mais de 70 de 1014 casos de ofensas abusos e atos violentos registrados no Estado entre 2012 e 2015 são contra praticantes de religiões de matrizes africanas Por um lado o racismo e a discriminação que remontam à escravidão e que desde o Brasil colônia rotulam tais religiões pelo simples fato de serem de origem africana e pelo outro a ação de movimentos neopentecostais que nos últimos anos teriam se valido de mitos e preconceitos para demonizar e insuflar a perseguição a umban distas e candomblecistas PUFF 2016 sp Caso um grupo social específico as comunidades indígenas por exemplo não dispuser de meios institucionais suficientes para afirmar publicamente suas opiniões e posicionamentos o caráter democrático do país estaria preju dicado E se essa limitação fosse no campo religioso afetando por exemplo o pleno exercício das crenças de matriz africana o Brasil ainda assim seria 190 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI uma democracia Ou a população relativamente menor dessas comunidades veria reduzida a importância de assegurar sua presença e expressões em nosso país Tais situações reais que afligem comunidades tradicionais da história e da identidade brasileiras nos direcionam a reflexões teóricas sobre quais seriam os elementos essenciais de um regime democrático bem como se esses pilares da democracia sempre foram os mesmos ou se alteraram com o passar do tempo Seção 41 Toda democracia é plural 191 Não pode faltar Um dos fenômenos mais tradicionais no campo das ciências humanas consiste na constante evolução dos conceitos utilizados por suas disciplinas para analisar e explicar as condutas e relações humanas Diferentemente por exemplo das ciências exatas em que o aparato teórico é majoritaria mente mantido um metro significa hoje o mesmo que significou há séculos atrás os termos utilizados nas humanidades podem apresentar profundas alterações em seu sentido conforme a espécie humana se desenvolve isso se justifica principalmente pela necessidade de incorporar nesses conceitos as inovações produzidas pelo homem com o passar dos anos adequandoos às novas realidades que se sucedem Quando trabalhamos com conceitos já milenares esse processo de transformação pode ser ainda mais intenso como é o caso da ideia de democracia Em grande medida o conceito de democracia nos transmite a ideia de um regime político no qual os cidadãos têm participação na condução do governo de uma coletividade seja essa atuação exercida de modo direto pelos cidadãos a exemplo de uma consulta popular sobre um tema importante ou por meio da representação na qual os cidadãos elegem mandatários para tomarem as decisões relativas à coletividade como é o caso clássico das eleições Esse sentido de participação popular que deriva do termo democracia se explica já nas origens desta palavra que em grego antigo unia demos povo e kratos poder constituindo portanto o poder do povo ou o governo do povo Se é bem verdade que essa noção de participação popular se mantém vinculada ao termo democracia desde a Grécia Antiga até a atualidade existem outras concepções que foram grada tivamente adicionadas ao conceito para que chegássemos ao que hoje enten demos por democracia conforme veremos a seguir Para Platão 428427 aC 348347 aC expoente da filosofia da Grécia Antiga e em verdade um dos fundadores da filosofia enquanto ciência as reflexões políticas deveriam questionar qual seria a melhor forma de governo a exemplo da perfeita e fictícia república de Callipolis Segundo esse pensador mais do que pensar quantitativamente como seria estabelecido o governo se com apenas um alguns ou vários governantes a filosofia política deve obrigatoriamente levar em conta aspectos relacionados aos valores de um sistema uma vez que a busca pela justiça deveria orientar a condução das cidadesestados as unidades políticas típicas da Grécia Antiga Desse modo em um plano ideal os governantes deveriam ser indiví duos cujas almas superiores fossem capazes de racionalmente buscar o bem comum vinculado à ideia de justiça homens cujas virtudes e educação específicas os tornassem aptos para exercer o comando de uma comunidade 192 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI de modo puro e honrado tratase dos sábios dos filósofosreis Entretanto entendendo que essa pureza e sabedoria não estão presentes em todos os indivíduos e reconhecendo que as escolhas dos cidadãos podem refletir essas deficiências Platão argumenta que a opinião popular pode ser manipu lada ou tendenciosa produzindo uma degeneração do sistema político em etapas sucessivas Nessa concepção a democracia seria a fase na qual os indivíduos em busca de seus interesses pessoais eliminassem essa diferenciação entre sábios governantes e não sábios governados equiparandoos em um mesmo patamar e fazendo com que haja uma liberdade excessiva no sistema político algo que prejudica os laços de obediência e hierarquia da sociedade e produz uma situação de caos e anarquia Agora imagina que algo semelhante a isto o processo de perda de um comando capacitado e o consequente estabelecimento da desordem se passa a bordo de um ou de vários navios O coman dante em compleição e força física sobrepuja toda a tripulação mas é um pouco surdo um pouco míope e possui em termos de navegação conhecimentos tão curtos como a sua vista Os marinheiros disputam o leme entre si cada um julga que tem direito a ele apesar de não conhecer a arte e nem poder dizer com que mestre nem quando a aprendeu Além disso não a consi deram uma arte passível de ser aprendida e se alguém ousa dizer o contrário estão prontos a fazêlo em pedaços Atormentam o comandante com os seus pedidos e se valem de todos os meios para que ele lhes confie o leme e se porventura não conseguem convencêlo e outros o conseguem matam estes ou os lançam ao mar Em seguida apoderamse do comandante quer adorme cendoo com mandrágora quer embriagandoo quer de qualquer outra forma senhores do navio apropriamse então de tudo o que nele existe e bebendo e festejando navegam como podem navegar tais indivíduos além disso louvam e chamam de bom marinheiro de ótimo piloto de mestre na arte náutica aquele que os ajuda a assumir o comando usando de persuasão ou de violência em relação ao comandante e reputam inútil quem Assimile Motim Leia o trecho do livro A república de Platão e assimile como a situação descrita pelo filósofo ilustra por meio de uma comparação envolvendo embarcações a ideia de caos produzida em uma democracia segundo a lógica aqui estudada Seção 41 Toda democracia é plural 193 quer que não os ajude Por outro lado no que concerne ao verdadeiro piloto nem sequer suspeita de que deve estudar o tempo as estações do ano o céu os astros os ventos se quiser de fato tornarse capaz de dirigir um navio Quanto à maneira de comandar com ou sem a aquiescência desta ou daquela facção da tripulação não pensam que seja possível aprender isso pelo estudo ou pela prática e ao mesmo tempo a arte da pilotagem Não acreditam que nos navios onde acontecem semelhantes cenas o verdadeiro piloto será tratado pelos marinheiros de indivíduo inútil interessado apenas em observar as estrelas PLATAO sd p 258259 Percebese ante o exposto que o argumento de Platão sobre a dinâmica democrática mostrase preponderantemente negativo Isso acontece em grande medida porque a existência de uma diversidade de características individuais é encarada nessa dinâmica política como sendo algo nocivo à condução de um bom governo uma vez que a existência de almas despro vidas da racionalidade filosófica se sobreporia às virtudes dos sábios e condu ziria a sociedade a uma situação de desordem Esse funcionamento deve ser compreendido à luz do contexto em que o argumento foi produzido no qual a participação política era reduzida a alguns homens considerados aptos à vida pública excluindose por exemplo escravos estrangeiros e mulheres da dinâmica política Assim o desenvol vimento de novas concepções acerca da titularidade de direitos civis e políticos expandindo a categoria de indivíduos considerados capacitados para a atuação pública apresentará certamente impacto na compreensão do conceito de democracia motivo pelo qual poderíamos avançar até o momento de surgimento dos ideais liberais e de questionamento dos Estados absolutistas europeus a partir do século XVII Nesse período da história europeia três processos políticos e sociais podem ser elencados como determinantes para a ressignificação do Estado das prerrogativas individuais e consequentemente do aspecto democrático da era moderna De imediato a Revolução Inglesa 16401688 sob forte influência do pensamento de John Locke 16321704 foi essencial para a limitação do poder absoluto das monarquias absolutistas e está relacionada ao processo de consolidação de direitos naturais dos indivíduos nascidos livres e iguais capazes portanto de exercer o poder político nas formas a serem determinadas por lei a exemplo do Bill of Rights Carta de direitos de 1689 A Revolução Americana 1776 por sua vez exerceu fundamental importância para a afirmação das ideias de supremacia da vontade popular da liberdade de associação e do estabelecimento de mecanismos de controle permanente sobre o governo conforme defendido por Thomas Jefferson 194 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI 17431826 Por fim a Revolução Francesa 1789 centraliza interesses diversos sob a ideia de nação e estabelece importantes preceitos acerca da separação entre a política e a religião ampliando o alcance dos homens nascidos livres e iguais em direitos Assimile Declaramos Repare como o intervalo temporal de mais de 200 anos que separa a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América 1776 a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão 1789 e a Constituição da República Federativa do Brasil 1988 não foi suficiente para desfazer a influência de certas ideias liberais fortalecidas ao longo do século XVIII e relevantes até os dias de hoje Declaração de Independência dos Estados Unidos da América Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas que todos os homens são criados iguais dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis que entre estes estão a vida a liber dade e a procura da felicidade HANCOCK 1776 sp Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão Art1º Os homens nascem e são livres e iguais em direitos As distinções sociais só podem fundamentarse na utilidade comum Art 2º A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem Esses direitos são a liberdade a propriedade a segurança e a resistência à opressão DECLARAÇÃO 1789 sp Constituição da República Federativa do Brasil Art 5º Todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza garantindose aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida à liberdade à igualdade à segurança e à propriedade nos termos seguintes BRASIL 1988 sp Seção 41 Toda democracia é plural 195 As consequências reais observadas nas sociedades que passaram pelos movimentos revolucionários bem como os valores e ideias que surgiam nessa mentalidade burguesa e liberal foram determinantes para moldar uma nova concepção mais moderna da ideia de democracia Esse novo modelo democrático tornase extremamente emblemático pelos estudos do francês Alexis de Tocqueville 18051859 sobretudo em função de sua obra A democracia na América resultado de um período de investigações sobre as instituições e costumes observados nos Estados Unidos da América ao longo dos anos 1831 e 1832 Para Tocqueville o regime democrático tornouse à época uma tendência ampla e inevitável às sociedades constituído em linhas gerais por uma igualdade de condições por exemplo legais culturais ou políticas incompatível com qualquer regime de castas sociais ou de diferenças sociais hereditárias Tal situação permite certa mobilidade social e facilita o acesso a postos profissionais ou políticos constituindo os denominados fatores geradores de igualdade Para o pensador francês é indispensável para um ambiente democrático a efetivação de uma constante atuação política dos cidadãos exercida não apenas pelo voto mas também nas atividades administrativas partidárias ou associativas Aprofundando suas considerações sobre o aspecto da igualdade Tocqueville ressalta o risco que esse compartilhamento de ideias e valores poderia criar na medida em que a homogeneização excessiva de uma sociedade estabeleceria uma certa tirania exercida pela maioria de seus habitantes impedindo que expressões científicas filosóficas ou artísticas por exemplo fossem diversificadas Assim segundo o autor seria funda mental estabelecer um importante equilíbrio entre a busca pela igualdade e a manutenção das liberdades individuais a fim de que essa concepção de igualdade não seja incompatível com uma também importante pluralidade em meio ao corpo social Nesse sentido em toda situação na qual se estabelece um consenso majoritário a respeito de um determinado tema sem que entretanto sejam respeitados direitos dissidentes legítimos os direitos das minorias que diferem dessa concordância predominante estamos diante de um caso da tirania da maioria Esse desrespeito aos direitos minoritários ou às liber dades individuais pode atingir as mais diversas formas de expressão indivi dual ou coletiva conforme se observa nos exemplos a seguir 196 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI O caso da Suíça é didático O rico país europeu foi um dos últimos do continente a autorizar o voto das mulheres em nível nacional o que ocorreu apenas em 1971 em um referendo Antes a legalização do voto feminino era sistematicamente rejeitada em consultas populares nas quais apenas os homens votavam Em âmbito estadual continuaram existindo restrições ao voto feminino até 1990 quando a Suprema Corte forçou todas as regiões do país a cumprirem a diretriz federal a respeito do voto das mulheres Em 2009 o majoritarismo do sistema político suíço novamente produziu uma violação de direitos humanos Nas urnas os suíços votaram para proibir a construção de minaretes as torres de oração das mesquitas A vitória da proibição ocorreu graças a uma firme mobilização da direita xenófoba que instigou o medo na população ao confundir islã e terrorismo O fantasma foi tão bem criado que os suíços ignoraram a realidade quando o referendo foi realizado havia apenas quatro mesquitas com minaretes no país todo e nenhum deles realizava as convoca ções para as orações usuais em países de maioria muçulmana O CASAMENTO 2017 sp Repare caro aluno como essas constatações percebidas já no século XVIII correspondem a certos dilemas que observamos ainda em tempos atuais Isso acontece porque a compreensão contemporânea do conceito de democracia apresenta uma importante herança teórica do pensamento liberal Conforme visto as revoluções burguesas ou liberais obtiveram algum êxito no sentido de garantir certos direitos individuais dos cidadãos frente a potenciais abusos por parte do Estado ou mesmo de outros cidadãos Assim podemos mencionar como elementos democráticos prove nientes dessa lógica a proteção das liberdades individuais compreendidas como a disponibilidade conferida aos indivíduos de fazer tudo o que não incomode o próximo a fim de evitar interferências indevidas do Estado em sua autonomia e a igualdade de direitos vedando qualquer discriminação no exercício das prerrogativas individuais seja ele em função das classes sociais convicções pessoais ou outras formas de afirmação pessoal A combinação desses dois elementos fornece a base teórica para formação de um outro aspecto indispensável à noção contemporânea de democracia o direito à alteridade ou direito à diferença Se os indivíduos são livres e devem ser tratados sem quaisquer preferências injustificáveis é natural que os elementos relacionados à identidade de uma pessoa possam ser expres sados da maneira que lhe convier e que essas manifestações por mais plurais Seção 41 Toda democracia é plural 197 que sejam detenham as mesmas garantias jurídicas que as demais Em outras palavras sejam quais forem os gostos preferências hábitos pensamentos que alguém apresente será sempre necessário ao Estado e aos demais indivíduos reconhecer o direito desta pessoa a ter sua existência manifestada conforme quiser desde que logicamente não afronte a existência ou a dignidade de outras pessoas Não se trata de estimular ou forçar um comportamento destoante em uma sociedade que apresenta certos padrões de costumes e valores mas sim de permitir que alguém ainda que isoladamente encontre espaço para sustentar posições importantes de sua condição humana A alteridade tornase particularmente importante no que se refere às liberdades de expressão e religião tendo em vista a relevância dessas áreas para a afirmação da personalidade de um indivíduo Assim o direito que todos os seres humanos têm de manifestar livremente suas ideias seus pensamentos e opiniões bem como de buscar fontes de informação sem qualquer tipo de repressão ou censura traduz o respeito que as sociedades modernas conferem à autonomia e à capacidade de raciocínio discerni mento e exteriorização da consciência individual Semelhantemente essa consideração da autonomia humana deve abranger também suas crenças ou até mesmo a possibilidade de não se ter crença nenhuma permi tindo a cada pessoa escolher uma religião mudar de religião expressar sua fé organizarse em comunidades religiosas praticar seus cultos e qualquer outra forma de prática religiosa seja em âmbito público ou privado Reflita Religiões no plural Conforme visto a liberdade de religião reconhece a existência de uma diversidade de credos assegurando a cada indivíduo a prerrogativa de seguir se quiser aquele que melhor lhe convém Como conciliar todavia essa grande variedade religiosa em uma mesma sala de aula com diferentes estudantes O ensino religioso é compatível com a liber dade religiosa dos alunos Sugerimos a leitura da reportagem sobre o tema indicada a seguir para que reflita sobre a viabilidade ou não do ensino religioso no Brasil à luz do direito à liberdade religiosa MARTÍN María STF decide que escola pública pode promover crença específica em aula de religião El País 2017 Entretanto caro aluno se é bem verdade que os conceitos de liberdade de expressão e liberdade de religião podem ser considerados estímulos à afirmação daquilo que um indivíduo pensa e crê em ambientes democrá ticos esses conceitos trazem também uma contrapartida extremamente 198 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI Assimile Liberdade de ser contrariado À primeira vista pode parecer estranho que o exercício de uma liber dade de que disponho assegure a possibilidade de que algo me contrarie não é mesmo Em grande medida quando pensamos em uma liberdade consideramos as vantagens que esta prerrogativa nos dará mas não nas desavenças que teremos que aceitar Entretanto o conceito de liber dade de expressão se bem utilizado exige certas complementações conforme explica o historiador Leandro Karnal KARNAL liberdade de expressão nos tira da selvageria São Paulo Band Jornalismo 2016 1 vídeo 2min32s Há que se reconhecer entretanto limites às liberdades aqui analisadas com o objetivo de assegurar que o exercício desse direito não constitua um abuso incompatível com outros parâmetros das sociedades democráticas Nesse contexto as liberdades de expressão e religião encontram seu termo nas margens da ética e da lei de modo a garantir que manifestações perigosas ou criminosas não sejam protegidas por esses direitos Assim afirmações preconceituosas caluniosas e racistas por exemplo excedem o uso respon sável da liberdade de expressão constituindo em verdade atitudes ilegais Pesquise mais Questão de fé A temática da liberdade religiosa não constitui um dilema recente na história da humanidade Ao longo dos séculos guerras já foram travadas e impérios já emergiram e sucumbiram em nome da religiosidade Nesse contexto a imposição e a perseguição religiosas tornaramse instrumentos frequentes nas disputas por fiéis motivo pelo qual o filme Silêncio dir Martin Scorsese Estados Unidos México Taiwan 2016 constitui um material adequado para estimular reflexões acerca da liber dade e do exercício religiosos importante que é o respeito àquilo que o indivíduo não pensa e não crê Essas liberdades não se restringem a uma única e exclusiva opinião e a uma religião específica mas abrangem obrigatoriamente todas as opiniões e crenças compatíveis com um ambiente democrático Desse modo o exercício pleno dessas liberdades não se limita a afirmar aquilo que eu gosto ou prezo mas também deve consolidar o respeito por aquilo que difere de minha identidade em harmonia com a ideia de pluralidade aqui trabalhada Seção 41 Toda democracia é plural 199 Exemplificando Livre para Veja como os temas da liberdade de expressão e de religião são conceitos importantes para o Estado brasileiro expressamente incluídos na Consti tuição Federal de 1988 e protegidos de quaisquer emendas constitucio nais que objetivem sua limitação sejam essas expressões verbais ou escritas ainda que dispostas em redes sociais do mesmo modo práticas religiosas baseadas em extorsões dos fiéis maus tratos ou violência física exemplificam irregularidades que se situam além da proteção fornecida pela liberdade religiosa Demais limitações às liberdades de expressão e religião sob bases diferentes da lei e da ética não apenas constituem afrontas aos valores teóricos da democracia interferindo negativamente na existência plena de um cidadão mas também ameaçam o funcionamento prático de uma socie dade uma vez que conforme já defendia Tocqueville a tirania das massas pode limitar o surgimento de inovações em meio à comunidade e reduzir a diversidade social já que encerram prematuramente qualquer tentativa de se descobrir algo ou de se viver de modo diferenciado Art 5º Todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza garantindose aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida à liberdade à igualdade à segurança e à propriedade nos termos seguintes IV é livre a manifestação do pensamento sendo vedado o anonimato VI é inviolável a liberdade de consciência e de crença sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida na forma da lei a proteção aos locais de culto e a suas liturgias VII é assegurada nos termos da lei a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva VIII ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política salvo se as invocar para eximirse de obrigação legal a todos imposta e recusarse a cumprir prestação alternativa fixada em lei IX é livre a expressão da atividade intelectual artística científica e de comunicação independentemente de censura ou licença 200 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI Existindo significativas contenções às liberdades características de um regime democrático com limitações ao pluralismo que poderia emergir em meio à comunidade estamos diante um regime autoritário A diversidade de maneiras pelas quais essas restrições são impostas à sociedade bem como a diversidade de prerrogativas que a democracia nos oferece pode permitir que se conservem alguns dos componentes da dinâmica democrática como o voto nesse caso existindo resquícios da dinâmica democrática sem que ela seja manifesta em sua totalidade em razão de condutas governamentais pouco tolerantes e intransigentes podemos considerar que se trata de uma democracia autoritária Desse modo a democracia autoritária traduz a existência conjunta de alguns dos elementos constitutivos de um ambiente democrático como a existência de processos eleitorais ou a manutenção de direitos para grupos específicos da população com a eliminação de outras características típicas do regime democrático como a supressão do direito das minorias ou a limitação de certas liberdades Observase em verdade uma versão falha e limitada de uma democracia tradicional seja por deficiência involuntária no funcionamento das instituições que reduz o alcance dos valores democrá ticos na sociedade ou pelo objetivo expresso de certo grupo social de impor sua vontade aos demais A possibilidade de que esse autoritarismo seja incorporado ao funciona mento dos Estados já era prevista no pensamento de JeanJacques Rousseau 17121778 uma vez que segundo o filósofo a formação da sociedade civil resulta da transferência das liberdades individuais dos homens a um governo por meio de um pacto social no qual o governante se compromete a buscar o bem comum Entretanto prossegue o pensador se esse acordo não se estabelece em condições de simetria entre as partes ou sob conjun turas de limitação da liberdade de um dos pactuantes teríamos em verdade um pacto de submissão responsável por um regime autoritário e despó tico Adicionalmente segundo esse autor a soberania resultante de um pacto social não seria detida pelo governante mas sim permaneceria em posse do povo coletivamente A soberania popular seria absoluta conferindo ao corpo social um poder sobre todos os indivíduos considerados isolada mente uma vez que ainda de acordo com Rousseau o interesse do indivíduo estaria incluído no interesse público Nesse contexto mais uma vez nos deparamos com a possibilidade do surgimento de uma tirania da maioria Art 60 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir IV os direitos e garantias individuais BRASIL 1988 sp Seção 41 Toda democracia é plural 201 caso as prerrogativas de grupos minoritários ou mesmo de indivíduos sejam desconsideradas em função da vontade popular absoluta Em termo práticos tais experiências autoritárias foram observadas com relativa frequência ao longo do século XX compondo certos padrões políticos identificados pelos estudiosos do tema Em linhas gerais tais regimes autori tários apresentavam como elementos comuns afrontas e abusos a liberdades civis a falta de separação legal ou efetiva entre os poderes executivo legislativo e judiciário com a primazia do primeiro sobre os outros dois o controle dos veículos de comunicação a censura a eliminação redução ou manipulação de procedimentos eleitorais o antiliberalismo o naciona lismo exacerbado o militarismo o unipartidarismo político entre outros Exemplos clássicos nesse sentido são os regimes nazista na Alemanha de Adolf Hitler 18891945 e o fascismo italiano de Benito Mussolini 1883 1945 ambos chegando ao poder por vias democráticas o totalitarismo soviético de Joseph Stalin 18781953 e os regimes ditatoriais do terceiro mundo a exemplo do período militar brasileiro compreendido entre 1964 e 1985 Há que se recordar todavia que esse autoritarismo nem sempre se manifestou de modo ditatorial existindo como vimos estruturas políticas democráticas que entretanto não asseguravam as garantias tradicionais da democracia à totalidade de seus habitantes Exemplo significativo dessa situação pode ser encontrado em pleno Estados Unidos da América uma vez que existiram no país até meados da década de 1960 as denominadas Leis de Jim Crow uma série de normas locais e estaduais que estipulavam a segregação racial como política pública existindo estabelecimentos e veículos públicos distintos para raças diferentes Nesse mesmo sentido a democracia da República da África do Sul conviveu até a última década do século XX com o regime do Apartheid imposto pela comunidade branca do país e limitador dos direitos concedidos à população negra a qual por sinal era numericamente mais expressiva fato que revela que o caráter majoritário de uma comunidade nem sempre acompanha o domínio político Esse autoritarismo como se vê podia variar em termos da segregação perpetrada Por vezes questões raciais serviam de parâmetro para as distin ções praticadas em outros locais o sexo biológico se tornaria o critério de diferenciação limitando severamente os direitos das mulheres no Brasil por exemplo o sufrágio feminino foi estabelecido apenas em 1932 sob certas restrições Semelhantemente a existência de grupos sociais diferentes justifi caria segundo argumentavase as disparidades de direitos estabelecidas a exemplo do regime de castas sociais da Índia A forma mais extrema de autoritarismo entretanto observada no século XX talvez seja o extermínio de judeus que compôs o Holocausto nazista Esse 202 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI Artigo 2 A Organização e seus Membros para a realização dos propósitos mencionados no Artigo 1 agirão de acordo com os seguintes Princípios 6 A Organização fará com que os Estados que não são Membros das Nações Unidas ajam de acordo com esses Princípios em tudo quanto for necessário à manutenção da paz e da segurança inter nacionais Artigo 25 Os Membros das Nações Unidas concordam em aceitar e executar as decisões do Conselho de Segurança de acordo com a presente Carta genocídio perpetrado pela Alemanha hitlerista dizimou aproximadamente 6 milhões de pessoas ao longo das décadas de 1930 e 1940 e foi determinante para a reação internacional que culminaria no maior conflito armado da história da humanidade A extensão geográfica a duração e a mortalidade elevada dos embates armados desenvolvidos no contexto da Segunda Guerra Mundial 19391945 evidenciam os limites da concertação da comunidade internacional e a ausência de uma instituição centralizada capaz de mediar as desavenças entre países fazendo com que os Estados entrassem em acordo para a criação da Organização das Nações Unidas ONU em 1945 A ONU é uma organização internacional que também possui direitos e deveres na ordem global entretanto há que se ressaltar ela não possui hierarquia superior aos países que a compõem Isso acontece porque assim como os indivíduos são sujeitos do direito interno de seus países os Estados por sua vez constituem sujeitos do direito internacional público entretanto os indivíduos encontram na atuação do Estado a hierarquia superior para impor dentro de seu território os procedimentos a serem observados por todos algo que não é observado na ordem internacional O conceito de soberania do direito internacional público afirma que cada Estado possui o poder de determinar as normas vigentes em seu interior e a capacidade de efetiválas e também que a soberania alheia não terá validade frente a outro Estado Desse modo as relações entre Estados soberanos se desenvolvem de modo juridicamente horizontal isto é sem que um Estado possua mais ou menos direitos ou deveres do que outro e adicionalmente sem que exista uma instituição legal hierarquicamente acima desses Estados soberanos Assim no processo de composição da ONU existe apenas uma concordância dos Estados exercida em conformidade com a soberania de cada um deles de que algumas decisões proferidas por certos órgãos da organização deveriam ser acatadas pela comunidade internacional conforme estabelece a Carta das Nações Unidas nos seguintes dispositivos Seção 41 Toda democracia é plural 203 Artigo 41 O Conselho de Segurança decidirá sobre as medidas que sem envolver o emprego de forças armadas deverão ser tomadas para tornar efetivas suas decisões e poderá convidar os Membros das Nações Unidas a aplicarem tais medidas Estas poderão incluir a interrupção completa ou parcial das relações econômicas dos meios de comunicação ferroviários marítimos aéreos postais telegráficos radiofônicos ou de outra qualquer espécie e o rompimento das relações diplomá ticas Artigo 42 No caso de o Conselho de Segurança considerar que as medidas previstas no Artigo 41 seriam ou demonstraram que são inadequadas poderá levar a efeito por meio de forças aéreas navais ou terrestres a ação que julgar necessária para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais Tal ação poderá compreender demonstrações bloqueios e outras operações por parte das forças aéreas navais ou terrestres dos Membros das Nações Unidas BRASIL 1945 sp Notase portanto que as decisões relativas à paz e à segurança tomadas pelo Conselho de Segurança da ONU serão consideradas obrigatórias para todos os países conferindo a este órgão um poder sem precedentes na ordem internacional Há de se ressaltar todavia que a composição desse conselho deriva do contexto imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial fazendo com que desde 1945 esse órgão possua os mesmos cinco membros permanentes Estados Unidos Rússia China França e Reino Unido ao lado de outros dez membros rotativos com poderes reduzidos Tratandose de um órgão extremamente poderoso as fragilidades no que se refere ao aspecto democrático de seu processo decisório são evidentes de imediato a existência de membros permanentes com poderes superiores aos demais é uma clara afronta à igualdade de direitos defendida pela lógica democrática adicionalmente a falta de representatividade da comuni dade internacional que já conta com aproximadamente duas centenas de Estados limita a participação e o controle das atividades do Conselho em desacordo com a lógica democrática vigente Podese afirmar portanto que assim como ocorre em âmbito interno a falta de pluralidade e diversidade na dinâmica internacional também caracteriza uma limitação indesejada ao funcionamento democrático 204 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI Sem medo de errar À luz do que estudamos nesta seção percebemos que o conceito de democracia passou por uma longa evolução histórica para nos fornecer atualmente uma compreensão que vai muito além do simples estabeleci mento de mecanismos eleitorais ou de tomadas de decisões sobre assuntos da vida em coletividade A democracia em sua concepção vigente na contem poraneidade revestese também de fundamentos e valores voltados ao pleno desenvolvimento de nossas capacidades e liberdades em razão do simples fato de sermos considerados sujeitos dotados de direitos e prerrogativas essenciais Nesse contexto o governo a sociedade e o indivíduo democráticos não devem se ater a raciocínios matemáticos para determinar qual o grupo social mais numeroso ou o rol de direitos de maior representatividade que merecem prevalecer em detrimento dos demais isso porque a mera afronta das prerrogativas dessas comunidades ou mesmo desses indivíduos Reflita Intervenções tendenciosas Observe no site oficial das operações de paz da ONU as intervenções em curso e reflita se alguma delas está sendo realizada em algum país que você considere fortemente aliado de qualquer dos membros perma nentes do Conselho de Segurança da ONU Tente encontrar uma expli cação para sua resposta levando em conta os elementos democráticos ou sua ausência na composição do órgão UNITED NATIONS Where we operate There are currently 14 peaceke eping operations led by the Department of Peace Operations United Nations Peacekeeping Sl sn Assim ao final desses mais de dois mil anos de história da democracia avaliando considerações teóricas e aplicações práticas do conceito em diferentes contextos e gradações concluímos que a pluralidade não confi gura um requisito obrigatório dos ambientes democráticos forçála contra a liberdade dos indivíduos seria inclusive antidemocrático mas que existindo qualquer indício de uma diversidade espontânea levada a cabo por seres humanos na plena afirmação de suas mais variadas formas de manifes tação individual é dever do regime democrático assegurar o respeito a tolerância e a tutela dessa diversidade encarada não mais como discórdia social mas como uma riqueza inigualável da natureza humana Seção 41 Toda democracia é plural 205 deixados em segundo plano já é motivo suficiente para prejudicar o aspecto democrático de um sistema político As liberdades de expressão de crença ou qualquer outra forma de manifestação individual ou coletiva desde que não constituam ameaças ao sistema democrático são por si só valores indispensáveis à manutenção de uma dinâmica democrática independentemente da frequência com que aparecem nessa sociedade A imposição de critérios estranhos ao conceito de democracia o que produzem para a sociedade estão em conformidade com nossos padrões sociais como condição para a concessão de direitos não somente fragiliza o aspecto democrático de um regime como tende a criar mecanismos autoritários extremamente nocivos à pluralidade caracte rística da natureza humana sob uma empobrecedora ditadura da maioria Assim retomando os casos práticos que deram partida à nossa análise pouco importa que as comunidades indígenas sejam minoria em nosso país ou que apresentem certos modos de vida particulares é fundamental que asseguremos mecanismos institucionais de representatividade a essas comunidades sob pena de termos uma democracia incompleta Caso esses povos não tenham acesso direto aos processos decisórios e aos instrumentos de poder da sociedade brasileira suas liberdades se veem reduzidas suas necessidades ignoradas e a própria democracia nacional como um todo encontrase fragilizada A mesma lógica se aplica à intolerância religiosa promovida contra as crenças de matriz africana uma vez que a despeito de serem práticas minoritárias em meio à população nacional a repressão a seus rituais e suas manifestações bem como o racismo e o preconceito que frequentemente justificam essas atitudes são uma afronta à liberdade de religião indispensável ao pluralismo democrático Sob tais perspectivas a democracia apresenta uma dupla função em nossas comunidades uma vez que constitui importante instrumento para que se busque a consolidação de direitos e prerrogativas algo de extrema importância para os grupos mais fragilizados de uma sociedade e ao mesmo tempo tornase o objetivo final de uma coletividade capaz de reconhecer a grandeza da diversidade em seu corpo social 206 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI 2 Leia a citação a seguir Liberdade de expressão não pode ser usada para discurso de ódio diz juiz Ali Mazloum da 7ª Vara Criminal Federal de São Paulo nega ao Ministério Público Federal arquivamento de investigação sobre crime cibernético internauta escreveu em rede social que deveriam matar todos islâmicos AFFONSO VASSALLO 2017 sp Aplicando os temas estudados nesta seção ao trecho da reportagem transcrito podemos afirmar corretamente que a A percepção do juiz acerca da liberdade de expressão é equivocada já que no Brasil este direito não possui limitações a frase do internauta portanto revela apenas sua opinião sem qualquer afronta à democracia nacional Faça valer a pena 1 Leia a citação a seguir Haverá alguma relação entre a ideia moderna de democracia e aquela que se encontra na Grécia Antiga A resposta é afirma tiva no que respeita à noção de governo do povo havendo entretanto uma divergência fundamental quanto à noção do povo que deveria governar DALLARI 1982 p 128 Acerca das características das democracias da antiguidade grega e da modernidade levantadas pelo professor Dallari assinale a alternativa correta a A concepção moderna de democracia teve como objetivo restringir a parcela da população apta a participar da condução da vida pública reduzindo direitos civis e políticos b Para Platão todos os indivíduos apresentavam as mesmas condições de governar c Alexis de Tocqueville defendia que o governo de filósofosreis se tornaria uma tendência universal d As Revoluções Burguesas apresentaram grande influência para a evolução do conceito de democracia e JeanJacques Rousseau argumentava que o povo não exercia nenhum poder na sociedade civil Seção 41 Toda democracia é plural 207 3 Leia a citação a seguir O ponto de partida da tese de Tocqueville é a constatação que ele já fizera em sua juventude a democracia que tende a igualar as condições em todo lugar corre como uma torrente num crescente irresistível GOYARDFABRE 2003 p 205 Analise os itens a seguir e assinale a alternativa correta I A igualdade de condições legais culturais e políticas por exemplo tende a produzir sociedades mais homogêneas PORQUE II Correse o risco de emergir uma tirania da maioria em uma democracia b A percepção do juiz acerca da liberdade de expressão é equivocada uma vez que os limites da liberdade de expressão não se aplicam aos meios digitais como as redes sociais c A afirmação do internauta desrespeita a um só tempo as liberdades de expressão e religião d Em razão de a comunidade islâmica brasileira ser pouco numerosa a frase do internauta não fere os princípios democráticos brasileiros e A frase do internauta pode até ser considerada autoritária mas está dentro dos limites da liberdade de expressão a As afirmativas I e II estão erradas b As afirmativas I e II estão corretas mas não apresentam nenhuma relação lógica entre si c A afirmativa I está correta e a afirmativa II está errada d As afirmativas I e II estão corretas e a afirmativa II pode ser considerada uma causa da afirmativa I e As afirmativas I e II estão corretas e a afirmativa I pode ser considerada uma causa da afirmativa II 208 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI O que é ideologia de gênero Diálogo aberto Menina não pode sentar desse jeito Homem não chora Mulher dirigindo é um perigo Menino é mesmo desorganizado não tem jeito Você certamente já ouviu uma dessas frases não é mesmo caro aluno Essas e com certeza mais uma infinidade de afirmações que atribuem a homens e mulheres a meninos e meninas aptidões e obrigações diferentes estabe lecendo certas formas de agir e sobretudo de não agir a este ou aquele sexo Entretanto se é verdade que essas alegações são muito frequentes em nosso dia a dia as justificativas para tais posicionamentos nem sempre estão presentes ou são satisfatórias Afinal o que justifica uma prática como um comportamento deste ou daquele sexo De onde se origina a ideia de que uma atitude é coisa de homem ou de mulher Da biologia Da tradição de nosso povo Da cultura vigente em nossa sociedade A fim de melhor entendermos como essas questões se desenvolvem em nossa sociedade focaremos nosso estudo nos fundamentos e nas conse quências do conceito de gênero tão frequente nas discussões atuais Para tanto será enriquecedor voltarmos um pouco no tempo nos familiarizando com pensamentos e autoras que alertando para certas desigualdades entre homens e mulheres nos ajudarão a analisar a situação feminina contempo rânea sobretudo no campo profissional Além de uma análise conceitual e histórica essa reflexão pode nos ajudar a entender uma outra situação recorrente na sociedade brasileira a violência contra a mulher e os crescentes casos de feminicídio Dependendo de seu sexo e de sua vida até aqui essa situação pode lhe parecer distante Além disso um leitor menos empático pode ainda se basear em um dado verda deiro mas generalizante o Brasil possui uma das maiores taxas de homicídio do mundo e por isso tanto mulheres quanto homens são assassinados aos milhares todos os anos No entanto basta usar seu buscador na internet com as frases homem morto por ao que o algoritmo responderá acidente bandido carro policial e mulher morta por que terá entre as primeiras ocorrências nas notícias namorado marido companheiro para constatar um dado evidente e triste milhares de mulheres são assas sinadas todos os anos por seus familiares parceiros e exparceiros Como dados da ONU mostram o lugar mais perigoso para as mulheres onde elas mais correm o risco de sofrerem uma morte violenta é a própria casa REUTERS 2018 Isso porque apesar de haver certos avanços no campo Seção 42 Seção 42 O que é ideologia de gênero 209 da igualdade entre homens e mulheres as sociedades ainda apresentam enormes desafios para assegurar às mulheres uma vida verdadeiramente digna Observe os dados para o caso brasileiro O Brasil registrou 1 estupro a cada 11 minutos em 2015 São os Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública os mais utili zados sobre o tema Levantamentos regionais feitos por outros órgãos têm maior ou menor variação em relação a isso As estimativas variam mas em geral calculase que estes sejam apenas 10 do total dos casos que realmente acontecem Ou seja o Brasil pode ter a medieval taxa de quase meio milhão de estupros a cada ano A cada 72 segundos uma mulher é vítima DE VIOLÊNCIA FÍSICA Fonte Relógios da Violência do Instituto Maria da Penha Em 2013 13 mulheres morreram todos os dias vítimas de feminicídio isto é assassinato em função de seu gênero Cerca de 30 foram mortas por parceiro ou ex Fonte Mapa da Violência 2015 Esse número representa um aumento de 21 em relação a década passada Ou seja temos indicadores de que as mortes de mulheres estão aumentando SOARES 2017 sp Diante desse cenário prezado aluno reflita o que estaria por trás da permanência da violência contra a mulher em nossa sociedade Adicionalmente quais medidas na sua opinião são necessárias para que os índices de violência contra a mulher sejam reduzidos no Brasil Não pode faltar Nas mais diversas situações da vida social em que precisamos nos apresentar ou nos definir enquanto pessoa há uma grande chance de que nossa condição enquanto homens ou mulheres seja incluída no rol de carac terísticas essenciais de nossa identidade Seja para preencher um simples formulário ou para afirmar nossas personalidades algo que fazemos cotidianamente ao definir o que queremos vestir quais são nossos passa tempos preferidos qual esporte praticamos ou qualquer outra expressão que determine nossa individualidade o fato de sermos homens ou mulheres possivelmente terá algo de relevante e será considerado nas relações a serem estabelecidas Isso acontece porque não são raras as vezes em que esta condição ser homem ou mulher traz consigo uma série de expectativas 210 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI Pesquise mais Terceiro ou diverso Se as classificações acerca do sexo dos indivíduos comumente tendem a oscilar entre masculino e feminino a natureza de nossa espécie apresenta uma complexidade ainda maior a intersexualidade Tradi cionalmente debatida nos estudos científicos a intersexualidade vem gradativamente ganhando espaço na formulação de políticas públicas com o reconhecimento da importância de se respeitarem os direitos e a identidade dessa população Leia as duas matérias indicadas a seguir para entender mais sobre esse tema OPINIÃO Reconhecer intersexo é apenas um primeiro passo Terra 2018 SOU INTERSEXUAL não hermafrodita El País 2016 O conceito de gênero por sua vez pode ser compreendido como uma elaboração histórica de padrões de comportamento e sociabilidade repro duzidos ao longo do tempo em nossas estruturas sociais Em outras palavras o gênero é uma construção social atribuída a um sexo biológico apresen tando uma série de condutas hábitos e modos a serem observados especifi camente por homens ou mulheres em conformidade com a cultura história e tradições de um determinado povo acerca dos gostos das preferências e das predisposições que possuímos de certa forma atribuindo ao fato de sermos homens ou mulheres um agregado de características já preconcebidas Entretanto essa amplificação de informa ções que surge apenas do fato de sermos homens ou mulheres não acontece de modo automático e invariável e até por isso essas expectativas se mostram erradas em boa parte das vezes uma vez que existe uma diferença fundamental entre o sexo de que dispomos e o conceito de gênero vigente em uma sociedade Quando falamos de sexo nos referimos aos elementos orgânicos decor rentes de nossa composição genética isto é das características bioló gicas que se manifestam em nosso corpo em razão de sermos homens ou mulheres aparelhos reprodutivos hormônios anatomia entre outros Muito embora a afirmação do sexo se dê majoritariamente em termos binários homem ou mulher existem outras formas de composição biológica dos seres humanos na denominada intersexualidade Seção 42 O que é ideologia de gênero 211 Reflita Papéis masculinos e femininos ou papéis conferidos a homens e mulheres Quando questionamos a perspectiva de que existem funções e ativi dades naturalmente exercidas por homens ou mulheres em benefício de uma outra visão menos rígida e mais focada nas influências histó ricas e culturais tornase interessante conhecer realidades diferentes da nossa em que essas atribuições são determinadas de forma bem diversa Você já ouviu falar dos muxes no México Essa concepção acerca da masculinidade e da feminilidade baseada na ideia de gênero tem sua origem em meados do século XX em um contexto de busca pela ampliação dos direitos das mulheres e da consequente afirmação da cidadania da comunidade feminina Nesse cenário a constatação de que as diferentes realidades vivenciadas por homens e mulheres não constituem um produto das diferenças naturais entre os sexos mas sim de uma assime tria de condições direitos oportunidades estímulos socialmente estabe lecidas evidenciaria uma relação de poder também cultural e socialmente determinada na qual as mulheres teriam suas liberdades limitadas Dizem em Juchitán que São Vicente patrono dessa região do sul do México viajava com três sacos cheios de grãos que ia distribuindo por todo o país Em um deles estavam os grãos masculinos no outro os femininos e em um terceiro eles eram misturados Em Juchitán o terceiro saco rasgou brincam os habitantes das comunidades zapotecas Bem na cintura do México no Istmo de Tehuantepec Estado de Oaxaca vivem os muxes indígenas nascidos com sexo masculino que assumem papéis femininos Os muxes presentes já na época précolombiana são respei tados nas famílias tradicionais onde são considerados os melhores filhos pois diferentemente dos heterossexuais que acabam virando independentes eles nunca saem de casa e se tornam um ponto de apoio incondicional especialmente para as mães GARCÍA 2017 sp Esse é apenas um de vários casos que poderíamos citar sobre outras sociedades nas quais os papéis normalmente atribuídos a homens e mulheres são distintos daqueles que estamos habituados em nossa cultura A partir disso reflita sobre as conexões entre sexo biológico cultura e deveres ou obrigações sociais 212 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI Nesse contexto é importante ressaltar que a perspectiva levantada pelo conceito de gênero não procura negar a existência de diferenças entre homens e mulheres mas apenas salientar que as distinções biológicas entre os sexos masculino e feminino não são capazes de explicar toda uma vastidão de ideias concebidas a respeito de como homens e mulheres devem se comportar É natural que existam diferenças por exemplo na força física entre homens e mulheres em função de suas distintas composições biológicas entretanto tais contrastes naturais não são suficientes para atribuir aos sexos certas propensões distintas por exemplo de que os homens teriam uma aptidão natural à liderança ao passo que as mulheres devem ser submissas tratan dose em verdade de relações sociais de poder Assimile História masculina Caro aluno você provavelmente já ouviu alguém dizer inclusive nesta disciplina que muitas das ideias que temos hoje foram criadas ou influenciadas pelos movimentos liberais e pelo pensamento iluminista não é mesmo Quando pensamos nos indivíduos que levaram a cabo essas mobilizações normalmente nos lembramos de Voltaire Kant Rousseau Adam Smith todos homens Fica então a pergunta as mulheres não influenciaram nesses movimentos Muito pelo contrário E a tendência de não incluirmos figuras femininas nesses processos históricos é apenas mais um exemplo de como existem relações de poder que influenciam no modo como enxergamos o mundo reduzindo nesse caso a importância histórica das mulheres para a construção de nosso mundo contemporâneo Nesse contexto devemos reconhecer a importante atuação de Marie Gouze 17481793 em meio às lutas travadas na Revolução Francesa Adotando o nome de Olympe de Gouges para divulgar seus escritos essa dramaturga e ativista política considerada por muitos como a primeira feminista francesa foi uma forte defensora da expansão dos direitos civis e políticos da abolição da escravidão e da emancipação da mulher esta última ideia sobretudo contribuiu para sua condenação à morte declarada como mulher desnaturada e guilhotinada em 1793 Autora da Declaração de Direitos da Mulher e da Cidadã 1791 Olympe de Gouges afirma no preâmbulo desse documento que Seção 42 O que é ideologia de gênero 213 Mães filhas irmãs mulheres representantes da nação reivin dicam constituirse em uma assembleia nacional Considerando que a ignorância o menosprezo e a ofensa aos direitos da mulher são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção no governo resolvem expor em uma declaração solene os direitos naturais inalienáveis e sagrados da mulher Assim que esta declaração possa lembrar sempre a todos os membros do corpo social seus direitos e seus deveres que para gozar de confiança ao ser comparado com o fim de toda e qualquer instituição política os atos de poder de homens e de mulheres devem ser inteiramente respeitados e que para serem fundamentadas doravante em princípios simples e incontestáveis as reivindica ções das cidadãs devem sempre respeitar a constituição os bons costumes e o bem estar geral Rejeitando essa naturalização das assimetrias políticas jurídicas sociais e econômicas observadas entre homens e mulheres e fornecendo explica ções socioculturais para essa realidade a análise propiciada pelo conceito de gênero fornece novas qualificações às diferenças constatadas nas sociedades alertando para a existência de desigualdades e privilégios sociais em favor dos homens e em detrimento das mulheres Reflita Diferenças e desigualdades Por que defendemos a existência das diferenças entre os indivíduos e criticamos a permanência das desigualdades em nossa sociedade Afinal deve haver diferenças entre homens e mulheres em nossa sociedade E desigualdades entre homens e mulheres Assista à aula Conceitos de igualdade diferença e desigualdade 0000 0404 disponibilizada pela Univesp TV e reflita sobre tais questionamentos SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO Aula 6 Conceitos de igualdade diferença e desigualdade Univesp 2015 Essa tomada de consciência por parte de alguns segmentos da população de mulheres de que as desigualdades constatadas em suas sociedades resul tavam de uma construção social tendente a subjugar o papel feminino em suas coletividades serviu de importante estímulo aos crescentes movimentos feministas observados ao longo do século XX Se é bem verdade que manifestações de afirmação dos direitos da mulher podem ser identificadas 214 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI Pesquise mais Sufragistas A luta travada por mulheres britânicas na década de 1920 pelo voto ou sufrágio feminino ilustra de modo exemplar a força e o comprometi mento dos movimentos feministas anteriores a este período Mesclando diversas táticas de pressão e apresentando uma crescente conscienti zação política esse movimento feminista foi retratado no filme As sufra gistas dir Sarah Gavron Reino Unido 2015 De imediato tornase importante esclarecer que o feminismo de modo algum pode ser considerado como o equivalente feminino do machismo isso porque este último termo traduz a ideia de superioridade e supervalo rização das características culturais ou físicas vinculadas ao homem estabe lecendo assim uma relação de hierarquia entre homens e mulheres com o predomínio dos primeiros O feminismo em sentido contrário consiste na articulação de argumentos filosóficos políticos sociais entre outros visando à defesa da igualdade de direitos entre homens e mulheres em suas mais diversas manifestações sociais tratase portanto do esforço no sentido de eliminar as mais diversas formas de subordinação ou inferioridade das mulheres frente aos homens com vistas a uma sociedade mais igualitária Reflita Machismo uma faca de dois gumes As consequências negativas do machismo são evidentes quando focamos os efeitos perversos dessa mentalidade sobre as mulheres feminicídio violência física e mental preconceito opressão entre diversas outras formas de afronta ou desrespeito à existência feminina Entretanto novos olhares sobre o tema evidenciam os resultados prejudiciais do comportamento machista também para os homens As ideias machistas de que não cabe aos homens expor seus senti mentos ou de que eles devem ser sempre durões expressas nas frases corriqueiras homem não chora vira homem podem estar por trás da tristeza e angústia que atingem meninos jovens e homens de nossa sociedade conforme argumenta o documentário A máscara em que você vive do título original em inglês The mask you live in dir Jennifer em diversos períodos da história humana não se pode negar que a segunda metade do século XX se mostra particularmente rica no que se refere ao fortalecimento de movimentos e intelectuais feministas Seção 42 O que é ideologia de gênero 215 Expoente da intelectualidade feminista do século XX Simone de Beauvoir 19081986 foi uma escritora e filósofa francesa notabilizada por investigar o papel das mulheres nas sociedades utilizandose de um vasto instrumental teórico que engloba história literatura ciências médicas filosofia entre demais fontes de conhecimento Em seus estudos Beauvoir critica a posição de inferioridade que socialmente se atribuía às mulheres incluindo em sua desaprovação tanto as mulheres que se mostravam passivas submissas e sem ambições quanto os homens cujo comportamento cruel e covarde tendia a oprimir suas contemporâneas femininas Em sua defesa da emancipação da mulher a filósofa francesa argumen tava que não há destino ou predisposição natural da figura feminina a por exemplo trabalhos domésticos conforme tradicionalmente se observava na época uma vez que a mulher poderia responsabilizarse por outras atividades profissionais sobretudo se fortalecesse seu acesso ao mercado de trabalho e garantisse uma maior autonomia em termos de controle de natalidade Nesse sentido tornouse célebre sua ideia de rejeição a papéis naturalmente vinculados à mulher e sim de existência de construções sociais com esses efeitos explicitada no trecho a seguir Siebel Newsom Estados Unidos 2015 Sem que se tenha o intuito de relativizar o sofrimento das principais vítimas do machismo certamente as mulheres reflita sobre as formas pelas quais o machismo pode afetar negativamente os homens contemporâneos Ninguém nasce mulher tornase mulher Nenhum destino bioló gico psíquico econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino BEAUVOIR 1967 p 9 Assim a inferioridade social atribuída à mulher não teria sua origem no nascimento e tampouco seria algo inevitável ou predeterminado na consti tuição biológica das mulheres mas sim algo culturalmente imposto pela comunidade que gradativamente seria incorporado no agir feminino daí a expressão tornase mulher O simbolismo estabelecido por Beauvoir na figura do produto intermediário entre o macho e o castrado colocando a mulher numa posição inferior ao homem pode até parecer estranho à primeira vista entretanto temos que reconhecer que em nossa linguagem frequentemente estabelecemos esse processo de negar a masculinidade e afirmar a feminilidade de castrar o indivíduo que apresenta fraquezas ou incapacidades chamar um garoto de mulherzinha ou dizerlhe achei 216 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI que você era homem ideias sempre associadas à vulnerabilidade exempli ficam essa representação feita pela filósofa Nesse mesmo sentido a emancipação da mulher e a equiparação de direitos entre homens e mulheres são os objetivos de importantes movimentos feministas observados nos Estados Unidos na década de 1960 a exemplo do Liberação das Mulheres do inglês Womens Lib ou Womens Liberation Movement ação que se expandiu para o mundo anglosaxão no combate a qualquer forma de sexismo discriminação fundamentada em razão de questões de sexo Também nos Estados Unidos Betty Fridan 1921 2006 cria a Organização Nacional para Mulheres do inglês National Organization for Women instituição cuja militância política e cultural em favor da defesa dos direitos da mulher foi marcante nas décadas de 1960 e 1970 e que continua em atividade Na Islândia uma greve geral promovida pelas mulheres no ano de 1975 foi essencial para a formalização legal da igualdade de direitos observada no país no ano seguinte Merece também destaque a contribuição teórica fornecida pela filósofa norteamericana Judith Butler 1956 sobretudo em razão das novas abordagens trazidas em sua ideia de performances de gênero Segundo essa concepção a perspectiva de que o sexo é algo estritamente biológico ao passo que o gênero pode ser compreendido pela cultura e pela história é algo equivocado existiria em verdade uma construção social que afetaria igualmente o sexo o gênero e os desejos de um indivíduo Assim há em nossa sociedade contemporânea uma ordem compulsória exclusivamente heterossexual que estabelece uma relação fixa entre um determinado sexo um gênero e um desejo por exemplo ter pênis ser e comportarse como menino e gostar de meninas Seria necessário segundo Butler questionar essa obrigatoriedade essa relação em que um sexo seria ligado por meio do gênero unicamente a um tipo de desejo Para tanto a filósofa identifica na expressão dos gêneros a existência de uma performance isto é o comportamento masculino e feminino resulta da elaboração social e da repetição de gestos atitudes posturas práticas e significados que foram historicamente associados aos corpos masculino e feminino Isso se torna um problema por restringir as possíveis relações entre sexo gênero e desejo pois na realidade existem continua Butler casos que se desviam dessa relação obrigatória dessa situação em que há apenas homens e mulheres heterossexuais Nesse sentido o feminismo deveria ampliar seu enfoque para considerar também afirma ções plurais do que é ser mulher incluindo formas desviantes da concepção tradicional de mulher heterossexual Seção 42 O que é ideologia de gênero 217 Assimile Problemas de gênero Apesar de complexas e polêmicas as ideias de Judith Butler são conside radas referências importantes do pensamento feminista da atualidade Assista às explicações da professora de filosofia Carla Rodrigues da Universidade Federal do Rio de Janeiro para aprofundar sua compre ensão acerca dos argumentos da intelectual norteamericana Curta Academia O pensamento de Judith Butler Canal Curta 2016 Muito embora esses movimentos feministas do século XX tenham efetiva mente contribuído para uma maior equiparação de direitos entre homens e mulheres sobretudo em termos de garantias políticas e civis e de uma maior liberdade social para a população feminina existem desigualdades ainda persistentes que impedem que se possa falar em termos da realidade internacional ou do contexto estritamente brasileiro de uma efetiva igual dade nas condições de vida percebidas por homens e mulheres em tempos contemporâneos Se focamos a análise na experiência brasileira constatase que as últimas décadas foram proveitosas em variáveis inquestionavelmente relevantes para a emancipação da mulher a exemplo da elevação dos níveis educacionais médios da população feminina do Brasil e da consagração definitiva do direito ao voto e à elegibilidade das mulheres Todavia em certos critérios sobretudo naqueles relacionados à participação da mulher no mercado de trabalho nacional os desafios ainda são imensos para que se observe uma paridade de condições verdadeira Exemplificando 50 anos de Brasil Assista ao vídeo 19602010 Mulheres cada vez mais iguais apresentado pela Universidade de São Paulo e atente para o fato de que o processo de equiparação de direitos garantias e oportunidades dispostas a homens e mulheres brasileiros tem apresentado resultados díspares a depender da área de análise revelando que a igualdade entre os gêneros no país constitui um movimento ainda inacabado 19602010 Mulheres cada vez mais iguais Canal USP 2017 218 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI Se é verdade que as mulheres têm assumido um protagonismo cada vez maior em termos de participação no mercado de trabalho brasileiro elevando o percentual de mulheres no total de empregos formais ao longo dos últimos anos essa inserção não se dá nas mesmas condições observadas pelos trabalhadores homens De imediato constatase que a renda média percebida pelas trabalha doras mulheres ainda se mostra bastante inferior aos proventos obser vados pela população masculina atingindo em dados de 2016 apenas 765 dos rendimentos dos homens conforme se observa no gráfico da Figura 41 Figura 41 Gráfico sobre o rendimento habitual médio mensal de todos os trabalhadores e razão de rendimentos por sexo Fonte IBGE 2018 p 5 Ainda do ponto de vista quantitativo observamos que as mulheres se responsabilizam por encargos domésticos com uma frequência signifi cativamente superior àquela apresentada pelos homens conforme alerta o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística No Brasil em 2016 as mulheres dedicaram aos cuidados de pessoas eou afazeres domésticos cerca de 73 a mais de horas do que os homens 181 horas contra 105 horas IBGE 2018 p 3 Essa percepção tornase particularmente importante quando traba lhamos a questão de gênero uma vez que os dados computados revelam que os afazeres do domicílio permanecem compreendidos como responsabili dade predominantemente feminina em linha com os processos históricos de construção social anteriormente analisados Esse processo é responsável por criar o fenômeno da dupla jornada de trabalho da mulher haja vista Seção 42 O que é ideologia de gênero 219 a necessidade de compatibilizar os trabalhos profissionais externos com as atividades do domicílio fato que inquestionavelmente torna a inserção profissional ainda mais cansativa para as mulheres sujeitas a tal duplicidade de tarefas Exemplificando Desigualdade desde cedo Não bastasse afetar a igualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho a compreensão de que as tarefas domésticas constituem atribuições femininas é extremamente prejudicial já na infância das meninas A constatação de que essa desigualdade frente às responsabi lidades domésticas já é percebida dos 5 aos 14 anos conforme revelam os estudos do Fundo das Nações Unidas para a Infância Unicef sinaliza para graves problemas no aprendizado no desenvolvimento e no lazer das meninas com consequências que podem se estender por toda a vida adulta MENINAS gastam 40 mais tempo que meninos em tarefas domésticas O Globo 2016 Agora sob uma perspectiva qualitativa mas ainda sob os efeitos nocivos derivados de concepções estereotipadas de gênero os diversos tipos de preconceitos atribuídos à conduta profissional da mulher podem ser identi ficados como fatores limitadores do desenvolvimento feminino em um ambiente de trabalho Nesse sentido percepções sexistas de que as mulheres não desempenham satisfatoriamente funções de liderança podem interferir negativamente nos procedimentos de escolha e promoção a cargos de autori dade gerando o descontentamento de eventuais subordinados sobretudo por parte daqueles dotados de um pensamento ainda machista e até mesmo reduzindo as aspirações de mulheres potencialmente compatíveis com tais postos de chefia Nesse mesmo sentido as percepções de que existiriam ativi dades essencialmente masculinas ou femininas ainda sob perspectivas de padrões de comportamento típicas do sexismo tendem a relegar às mulheres funções de menor qualificação e remuneração ao passo que as atividades de maior complexidade e lucratividade seriam nessa lógica preconceituosa da alçada de trabalhadores homens Adicionalmente não bastasse a desigualdade ainda existente no que se refere aos cuidados domésticos com os filhos como visto nem sempre compartilhados de modo igualitário pelos pais das crianças a própria gestação feminina pode ser identificada como desafio a inserção profissional da mulher no mercado de trabalho uma vez que o direito constitucional à 220 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI licençamaternidade nem sempre é respeitado por empregadores exigindo o trabalho a despeito de tal garantia fundamental da mulher ou até mesmo evitando fazer contratações femininas a fim de evitar tal situação em clara atitude discriminadora e ilegal Nesse cenário é fundamental reconhecer a importância da licençapaternidade bem como os benefícios de um eventual prolongamento em sua duração O estabelecimento de prazos semelhantes à licençamaternidade para esse direito dos pais é essencial não apenas para reverter o preconceito com a mulher no mercado de trabalho mas também para que os pais possam compartilhar de modo mais igualitário os cuidados com o recémnascido rejeitando a discriminação de que a dedicação aos filhos é dever sobretudo da mulher Pesquise mais E no mundo Se no Brasil o papel da mulher no mercado de trabalho ainda apresenta desafios para que obtenhamos condições mais equilibradas no desem penho de atividades profissionais por parte de homens e mulheres como esse cenário se encontra no mundo Estudos recentes da Organização Internacional do Trabalho revelam que certas desigualdades podem ser caracterizadas como obstáculos globais prejudicando a relação de igual dade em escala mundial OIT participação das mulheres no mercado de trabalho ainda é menor que dos homens ONUBR 2018 Se conforme visto concepções limitadoras do conceito de gênero podem ser extremamente nocivas aos indivíduos estabelecendo padrões de condutas restritivos e muitas vezes preconceituosos a respeito das reais capacidades de uma pessoa a afirmação de novas configurações de gênero que emergem nas sociedades atuais podem atuar no sentido inverso ampliando as poten cialidades individuais e fortalecendo o sentimento de identidade e realização de cada ser humano Nesse contexto cabenos inicialmente conceituar a ideia de identidade de gênero tão frequente nas discussões contemporâneas sobre o tema Na medida em que o gênero traduz uma construção social imposta a um sexo a identidade de gênero corresponde a uma percepção pessoal de qual o gênero a que este mesmo indivíduo pertence independentemente do sexo biológico em outras palavras é a perspectiva subjetiva de uma pessoa em relação à sua própria existência no que se refere aos diferentes gêneros obser vados Assim caso a identidade de gênero de uma pessoa seja coincidente com o gênero que lhe foi originalmente designado tratase de um indivíduo Seção 42 O que é ideologia de gênero 221 cisgênero do contrário observase um transgênero Desse modo em termos concretos se uma pessoa é designada no nascimento como mulher mas tem uma percepção diferente a respeito de si mesma enxergandose e sentin dose como homem tratase de um homem transgênero caso alguém seja apontado como homem e realmente se identifique com essa característica estamos diante de um homem cisgênero Outro critério relevante para essa discussão que no entanto não deve ser confundido com sexo biológico gênero ou identidade de gênero é a orien tação afetivosexual a qual apresenta a inclinação para as relações amorosas e eróticas do indivíduo qualificandose como heterossexual caso esse desejo seja dirigido a pessoas de outro gênero homossexual no caso do interesse por indivíduos que compartilham o mesmo gênero bissexual na existência do desejo por ambos os gêneros e assexual diante da não atração por quais quer dos gêneros Notase assim que vivemos um processo contínuo de estabelecimento de novas perspectivas e configurações envolvendo aspectos elementares de nossa constituição enquanto seres humanos Desqualificar essa série de aprendizados e constatações desenvolvidas ao longo de nossa história classi ficando tais argumentos como sendo radicalismos lamentações exageradas ou ideologias sem fundamentação real seria desconsiderar as adversidades que efetivamente atingem grupos significativos de nossa sociedade bem como negar os benefícios que as mobilizações políticas e sociais podem trazer em termos de igualdade de direitos Pesquise mais Mimimi ou não No Brasil as discussões sobre gênero bem como outras questões envol vendo pessoas LGBT Lésbicas Gays Bissexuais Travestis Transexuais ou Transgêneros e comunidades relacionadas são frequentemente criticadas sob a alegação de que não existiriam motivos reais para a organização dessas comunidades uma vez que não haveria problemas particulares ou objetivos legítimos nessas mobilizações Todavia dados evidenciam que essas pessoas estão sujeitas a tormentos específicos que fazem de nosso país um dos mais violentos nesse campo Para compreender essa realidade leia a reportagem indicada a seguir SANCHES D CONTARATO A AZEVEDO A L Dados públicos sobre violência homofóbica no Brasil 28 anos de combate ao preconceito FGV DAPP Rio de Janeiro 2018 222 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI Exemplificando Ideologia de gênero De onde surgiu O termo foi cunhado pela Igreja Católica na Conferência Episcopal do Peru em 1998 para se referir a uma linha de pensa mento que seria contrária à divisão da humanidade entre mascu lino e feminino Nela os gêneros são moldados de acordo com a estrutura cultural e social dos indivíduos Essa ideologia é consi derada pelos religiosos um perigo para o mundo uma doutrina que poria em risco a concepção de família Não é um conceito teórico A questão é que entre pesquisadores da área essa linha de pensamento nem sequer existe Doutora em estudos de repre sentatividade de gênero pela UFSC Universidade Federal de Santa Catarina a escritora Fernanda Friedrich afirma que os teóricos não negam diferenças físicas e biológicas de homens e mulheres O que fazemos é identificar essas diferenças e compreender como elas criam desigualdades entre as pessoas Por exemplo por que um homem branco tem uma relação com a sociedade e uma mulher negra tem outra questiona Como explica o pesquisador Rogério Diniz Junqueira do Centro de Estudos Multidisciplinares Avançados da UnB Universidade de Brasília o termo ideologia de gênero não é considerado um conceito teórico mas um sintagma ou seja um termo inven tado que passou a ser usado como slogan Slogan para quê Para ir contra o gênero contra as conquistas do feminismo e contra LGBTIs afirma Junqueira Ele diz que a expressão é usada em tom alarmista chamando para enfrentar um inimigo imagi nário E em nome da luta contra ele se empreendem ações políticas voltadas a reafirmar e impor valores morais tradicionais e pontos doutrinais cristãos dogmáticos intransigentes afirma ele em um de seus artigos Não há segundo pesquisadores intenção de impor um estilo de vida uma escolha ou uma determinada orientação sexual às pessoas Tampouco doutrinar crianças nas escolas A proposta de falar sobre gênero em sala de aula se baseia no compromisso ético da educação segundo Jane Felipe de Souza professora da Faculdade de Educação da UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul coordenadora do Grupo de Estudos de Educação Infantil e Infância e integrante do Grupo de Estudos em Educação e Gênero A criança pode vir de uma família que menospreza Seção 42 O que é ideologia de gênero 223 mulheres gays e lésbicas e nesse caso há um compromisso ético em falar sobre gênero para ensinar o aluno a respeitar o outro indivíduo BRANDALISE 2019 sp É evidente que todo e qualquer processo de transformação histórica deve estar sujeito a críticas entretanto rejeitar a própria existência de movimentos que nada mais buscam do que equiparar direitos diante de situações reais e desiguais o que repitase é algo diferente de buscar privilégios ou vanta gens seria atribuir ao funcionamento da sociedade uma neutralidade inexistente ignorando que há como visto relações de poder desequilíbrios prejudiciais e violências específicas sobre determinados grupos A pluralidade e a diversidade resultantes do reconhecimento das diferentes formas que os indivíduos encontram para afirmar suas persona lidades somente ampliam as liberdades de que dispomos para buscarmos a felicidade e a realização pessoal assegurando que as diferenças e não as desigualdades sejam elemento consagrados das democracias que preten demos construir neste século XXI Sem medo de errar Conforme observamos em relação às pensadoras e aos movimentos feministas de meados do séculos XX e mais recentemente no que se refere ao surgimento de novas concepções envolvendo as ideias de gênero na atuali dade a humanidade apresenta um contínuo esforço teórico e importantes manifestações sociais culturais e políticas no sentido de manter definições não restritivas acerca daquilo que nos define enquanto seres humanos trans cendendo os aspectos meramente materiais ou biológicos em favor da valori zação de quaisquer identidades ou liberdades que contemplem de modo mais integral aquilo que nos faz feliz Não é difícil constatar que aquilo que enten demos em um determinado momento e local como sendo natural pode em verdade representar uma imposição voluntária ou involuntária das concepções do grupo dominante nesse espaço e tempo assim como são as perspectivas machistas em relação às mulheres e possivelmente as compre ensões limitadoras sobre as novas afirmações da identidade de gênero Assim retomando os questionamentos que deram início ao nosso estudo seria extremamente pertinente supor que a permanência de uma mentali dade machista constitui fator fundamental para a persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira A conservação de perspectivas antiquadas de que a mulher deve se sujeitar a atividades subordinadas e de que essas limitações seriam justificadas pela natureza feminina tendem a relegar as mulheres a uma posição de inferioridade em relação aos homens 224 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI sustentando uma relação de poder histórica e culturalmente construída Nesse cenário a suposta supremacia do homem enraizada numa concepção machista bem como a menor autonomia conferida a mulher limitando sua capacidade de reação acabam por produzir os alarmantes níveis de violência contra a mulher que infelizmente testemunhamos ainda em nosso país A reversão desse quadro exige inevitavelmente a ruptura dessas concep ções preconceituosas segregacionistas e sexistas De imediato o reconheci mento da opressão feminina como sendo resultado de um processo civili zatório machista e não de uma inferioridade natural da mulher algo em linha com o conceito de gênero tornase o ponto de partida para o forta lecimento do papel da mulher na sociedade Como consequência identi ficaríamos não apenas a equiparação das garantias legais entre homens e mulheres como direitos civis e políticos mas também de toda uma série de concepções culturais de nossa sociedade reconhecendo por exemplo a igualdade no mercado de trabalho o equilíbrio na responsabilização pelas tarefas domésticas o protagonismo feminino nas mais diversas áreas da vida coletiva em posição de paridade com os homens entre outros Sem dúvida a eliminação da hierarquia entre homens e mulheres terá efeitos positivos na redução dos índices de violência contra a mulher Vale lembrar que a identificação de uma violência específica que tem a mulher por vítima deve ser combatida com medidas também específicas não se trata de privilégio mas pelo contrário da equiparação do modo como esse grupo é tratado Sendo assim Apesar de os números relacionados à violência contra as mulheres no Brasil serem alarmantes muitos avanços foram alcançados em termos de legislação sendo a Lei Maria da Penha Lei 113402006 considerada pela ONU uma das três leis mais avançadas de enfrentamento à violência contra as mulheres do mundo A Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher mais conhecida como Convenção de Belém do Pará define violência contra a mulher como qualquer ato ou conduta baseada no gênero que cause morte dano ou sofrimento físico sexual ou psicológico à mulher tanto na esfera pública como na esfera privada Capítulo I Artigo 1 A Lei Maria da Penha apresenta mais duas formas de violência moral e patrimonial que somadas às violências física sexual e psicológica totalizam as cinco formas de violência doméstica e familiar conforme definidas em seu Artigo 7 Seção 42 O que é ideologia de gênero 225 Para concluirmos prezado aluno devemos sempre desprender uma atenção especial para questionarmos se existem relações de hierarquia que restringem a pluralidade típica da espécie humana transformando nossas diferenças em desigualdades Se pretendemos reconhecer na diversidade e na pluralidade alguns dos alicerces fundamentais dos regimes políticos e das dinâmicas sociais que queremos construir em nosso país e no mundo é necessário admitir e fortalecer o valor desses movimentos e concepções inovadores e libertadores Em 2012 o Supremo Tribunal Federal decidiu que qualquer pessoa não apenas a vítima de violência pode registrar ocorrência contra o agressor Denúncias podem ser feitas nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher DEAMs ou através do Disque 180 Em 2015 a Lei 13104 Lei nº 13104 de 2015 altera o Código Penal para prever o feminicídio como circunstância qualifica dora do crime de homicídio e inclui o feminicídio no rol dos crimes hediondos O feminicídio então passa a ser entendido como homicídio qualificado contra as mulheres por razões da condição de sexo feminino SENADO FEDERAL sd Igualdade salarial entre homens e mulheres é lei Por que não é cumprida A legislação brasileira garante a igualdade salarial entre homens e mulheres na CLT Consolidação das Leis do Trabalho desde 1943 No texto a determinação de que salários devem ser iguais sem distinção de sexo aparece em pelo menos quatro artigos no 5º no 46 no 373A e no 461 O tema também é abordado no artigo 7º da Constituição de 1988 que proíbe a diferença de salários de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo idade cor ou estado civil Mas a desigualdade salarial entre os gêneros persiste no Brasil O país ocupa o 132º lugar no ranking do Fórum Econômico Mundial de uma lista de 149 nações sobre equidade salarial para trabalho similar formulado em 2018 Um ano antes ocupava a 119º posição Mas por que apesar de haver leis claras sobre o 1 Leia a citação a seguir Faça valer a pena 226 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI A alternativa que apresenta corretamente possíveis respostas para a pergunta que encerra o trecho da reportagem transcrita é a Homens recebem mais do que mulheres pois o sexo masculino realmente apresenta uma maior disposição natural para assumir cargos de liderança b Um possível motivo pelo qual homens recebem mais do que mulheres é o fato de que no Brasil ainda existem concepções acerca do gênero feminino repletas de preconceitos socialmente construídos que podem prejudicar o desenvolvimento profissional das mulheres c Um possível motivo pelo qual homens recebem mais do que mulheres é o fato da licençamaternidade ser um benefício excepcional para as mulheres devendo ser compensado por salários maiores aos homens d Um possível motivo pelo qual homens recebem mais do que mulheres é o fato de que a natureza feminina apresenta uma predisposição para dividir seu tempo entre os afazeres domésticos e o trabalho fora de casa e Não há qualquer motivo relacionado ao sexo biológico que possa explicar o fato de homens receberem mais do que mulheres Não há tampouco qualquer explicação no que se refere aos padrões de gênero atribuídos aos sexos masculino e feminino no Brasil contemporâneo 2 Leia a citação a seguir Em A Garota Dinamarquesa Eddie Redmayne interpreta alguém que não se vê no corpo de um homem Ok ele é Einar Wegener um pintor dinamarquês casado de relativo sucesso Mas quer assumir sua identidade feminina A GAROTA 2015 sp O trecho transcrito faz parte de uma crítica ao filme A garota dinamarquesa dir Tom Hooper Reino Unido Estados Unidos 2015 Pelas informações contidas na passagem transcrita podemos afirmar corretamente que o personagem interpretado por Eddie Redmayne é 1 uma vez que seusua 2 difere doda 3 Assinale a alternativa que preenche corretamente as lacunas 1 2 e 3 a 1 cisgênero 2 sexo biológico 3 orientação afetivosexual b 1 cisgênero 2 identidade de gênero 3 gênero biológico assunto homens ainda recebem mais do que mulheres BRANDALISE 2019 sp Seção 42 O que é ideologia de gênero 227 3 Leia a citação a seguir No entanto a partir da década de 1960 começando nos EUA mas espalhandose rapidamente pelos países ricos do Ocidente e além nas elites de mulheres educadas do mundo dependente mas não inicialmente nos recessos do mundo socialista encontramos um impressionante reflorescimento do feminismo Embora esses movimentos pertencessem essencialmente ao ambiente de classe média educada é provável que na década de 1970 e sobretudo na de 1980 uma forma política e ideologica mente menos específica de consciência feminina se espalhasse entre as massas do sexo que as ideólogas agora insistiam que devia chamarse gênero muito além de qualquer coisa alcan çada pela primeira onda de feminismo HOBSBAWM 1995 p 244 grifo nosso c 1 transgênero 2 gênero 3 gênero biológico d 1 transgênero 2 identidade de gênero 3 gênero a ele originalmente atribuído e 1 cisgênero 2 orientação afetivosexual 3 gênero a ele originalmente atribuído I O conceito de gênero socialmente constituído contraria a ideia de que existem comportamentos naturais atribuíveis ao sexo biológico feminino PORQUE II As intelectuais feministas da segunda metade do século XX preferem usar o termo gênero A partir do trecho do livro de Eric Hobsbawm e das afirmativas anteriores assinale a alternativa correta a A afirmativa I é falsa e a afirmativa II é verdadeira b A afirmativa II é falsa e a afirmativa I é verdadeira c As afirmativas I e II são verdadeiras mas não há relação lógica entre elas d As afirmativas I e II são verdadeiras e a afirmativa II é causa da afirmativa I e As afirmativas I e II são verdadeiras e a afirmativa I é causa da afirmativa II Agora analise as afirmativas a seguir 228 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI Vivemos uma onda de fanatismo Diálogo aberto Prezado aluno chegamos à última seção da última unidade desta disci plina Nesse momento de nosso estudo já deve estar claro que a pluralidade e a diversidade constituem atributos importantes para a democracia e a socie dade brasileiras Sendo assim seria enriquecedor para nosso país que teste munhássemos o florescimento de diferentes modos de vida e de pensar em nosso território não é mesmo Entretanto ao defendermos a multiplicidade de pontos de vista é interessante nos questionarmos se qualquer opinião ideologia ou perspec tiva encontraria proteção na tão valorizada diversidade E se eventualmente uma compreensão de mundo pregasse exatamente a redução da pluralidade Devemos considerála como apenas mais um entendimento diverso em linha com a democracia plural que deve portanto ser respeitado Ou existi riam fatores específicos nesse posicionamento que excluem essa concepção de mundo daquilo que valorizamos enquanto sociedade diversificada Em suma a intolerância deve ser tolerada Se não toleramos algo intolerante estamos sendo nós também intolerantes Veja como essas reflexões têm aplicabilidade imediata em nossa socie dade contemporânea sendo fácil identificarmos manifestações extremas muitas vezes violentas que se chocam com a diversidade já existente em nosso país Um caso emblemático nesse sentido foi o ataque a um refugiado sírio ocorrido em 2017 gravado em vídeo e tema da reportagem citada a seguir Seção 43 As imagens mostram um homem armado com dois pedaços de madeira agredindo verbalmente Mohamed Ali que vende esfirras e doces sírios no bairro Nas imagens o homem não identificado grita Saia do meu país Eu sou brasileiro e estou vendo meu país ser invadido por esses homensbomba miserá veis que mataram crianças adolescentes São miseráveis diz o homem Vamos expulsar ele UOL sp 2017 Poderíamos considerar então a ameaça a um estrangeiro que fugiu de uma guerra sangrenta e está trabalhando como autônomo em nosso país como sendo algo normal dentro da dinâmica democrática ou essa manifestação Seção 43 Vivemos uma onda de fanatismo 229 traduz um movimento estranho àquilo que consideramos como sociedade plural E quanto às outras formas de intolerância como racismo homofobia ou preconceito religioso Sabemos que existem profundas diferenças entre o conceito de tolerância e a ideia de que tudo é permitido fato que nos obriga a manter um olhar atento a certas manifestações e movimentos da atualidade sobretudo em um país que tem na diversidade uma característica marcante de sua história e de seu povo Não pode faltar Prezado aluno pense em um homem alemão Agora o que vem a sua cabeça se nos referirmos a uma mulher japonesa E quanto a um garoto da Nigéria Provavelmente você não teve muitas dificuldades para estabelecer certas características físicas a tais indivíduos como a cor da pele e do cabelo Obviamente existem cidadãos desses países que diferem da fisionomia imaginada entretanto o exercício mental nos conduz a certos aspectos mais frequentes desses povos Agora repita o exercício em relação a um homem brasileiro e se possível compare essas características com aquelas imagi nadas e com as características de seus familiares e amigos Existe uma chance de que você tenha hesitado ao tentar definir as características de nosso povo ou mesmo que esses elementos sejam diferentes daqueles pensados pelas outras pessoas Isso acontece porque a diversidade é um componente marcante de nossa população Formados historicamente por um contingente de povos nativos imigrantes europeus descendentes de africanos entre outros a miscige nação é uma característica inegável de nossa população e impressa em nossas mais diversas características físicas Semelhantemente essa formação plural forneceu à nossa sociedade inúmeras tradições culturas e hábitos que convivem não sem conflitos há séculos ao lado uns dos outros Pesquise mais Identidade São diversos os estudos que procuram investigar a constituição hetero gênea e variada de nossa população reafirmando ser esse um tema fundamental para a compreensão da nossa identidade nacional Dentre tais obras um clássico relevante para o estudioso ou mesmo para o curioso de nossa constituição é o livro O povo brasileiro a formação e o sentido do Brasil do antropólogo Darcy Ribeiro São Paulo Compa nhia das Letras 1995 p 19 a 26 em que a miscigenação é analisada de 230 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI modo didático e enriquecedor A importância de tal obra para o enten dimento de nosso país justificou inclusive a produção de um documen tário baseado no livro O povo brasileiro dir Isa Grinspum Ferraz Brasil 2005 que apresenta em linha com os argumentos de Darcy Ribeiro as diversas matrizes de nossa sociedade Semelhantemente alguns temas desenvolvidos na obra são discutidos pelo autor em entrevista concedida à época do lançamento do livro sendo recomendada sua visualização Nesse contexto seria natural que as diferenças fossem compreendidas como algo autêntico e genuíno da sociedade brasileira manifestando suas particularidades de modo equilibrado e em um ambiente de tolerância não é mesmo Porém não é isso que se observa na prática uma vez que infelizmente não é difícil nos depararmos desde os primórdios de nossa sociedade até os dias de hoje com as mais variadas formas de intolerância e discriminação em nosso cotidiano Pesquise mais Intolerância A seguir sugerimos a leitura de um artigo de opinião que traz dados que refletem a presença da intolerância na sociedade NOGUEIRA F Explosão de intolerância O Globo 2018 Diante desse cenário a conclusão é de que a intolerância ainda é algo presente na realidade cotidiana de nosso país Quando essa intolerância é praticada de modo intenso em que aparentemente não há limites para a afirmação de um ideal ou de uma convicção em que uma causa ou doutrina é perseguida ainda que em contrariedade a evidências científicas revelando uma adesão fervorosa e desmedida a uma convicção e em total desprezo às outras maneiras de se analisar o tema podemos identificar o fanatismo nesse comportamento Reflita Forte só que ao contrário Via de regra manifestações de intolerância são caracterizadas pelo uso acentuado da violência da força ou de qualquer outra forma de expressão intensa do poder Ao afirmar que uma etnia seria superior a outra recorrese à agressão física no intuito de afirmar uma orien tação afetivosexual ridicularizamse as demais para proclamar uma Seção 43 Vivemos uma onda de fanatismo 231 O fanatismo pode ser exercido nas mais diversas áreas da vida humana seja na paixão a um time de futebol ou numa perspectiva mais pertinente aos estudos aqui empreendidos por meio da adesão a movimentos sociais mais amplos envolvendo componentes mais abrangentes da vida em comunidade como política e religião Se é verdade que as motivações que estimulam o comportamento fanático são inúmeras e as formas pelas quais essa conduta se manifesta são também muito variadas existem alguns fatores levantados pelos estudiosos do tema que revelam em linhas gerais algumas tendências do fanatismo Nesse sentido constatase a tendência de se distinguir as pessoas em categorias ou grupos muitas vezes em apenas duas classes opostas adeptos de uma religião x não adeptos dessa religião nacionais de um país x não nacionais com o objetivo de reforçar nossas necessidades ou aquilo que acreditamos Também nesses grupos observase a prática de enaltecer as próprias características ignorando críticas e vulnerabilidades aplicáveis a essa conduta ou modo de pensar em um processo que eleva a rejeição em relação ao outro àquele que não faz parte dessa comunidade visto por vezes como inimigo Um elemento importante nesse cenário é o desenvolvimento de histórias ou narrativas sobre a vida de um líder sobre a formação de um Estado que fortalecem os vínculos emocionais que estabelecemos com as causas e ideias relatadas Assim criamos uma mentalidade coletiva uniforme comparti lhando interesses e finalidades por meio de uma identidade social dentro do grupo Quando a afirmação dessa identidade social é intensa corremos o risco de limitar nossa percepção do mundo enxergando apenas o que esse grupo expressa ignorando outras orientações presentes em nosso dia a dia e acentuando as características que nos vinculam a esse grupo específico Esse comportamento coletivo pode servir de incentivo para que as pessoas assumam condutas que normalmente não teriam sozinhas revelando a influência do meio social sobre a ação individual algo ainda mais forte se coordenado por um líder carismático FERNANDES TANJI 2015 religião afrontase a fé alheia Todavia essas demonstrações de vigor e autoafirmação podem apresentar laços com fundamentos bem menos resolutos da personalidade humana a exemplo de incertezas fragili dades e inseguranças Sugerimos que assista à explicação do psicanalista Pedro de Santi e reflita sobre possíveis causas das mais diversas formas modernas de intolerância Raízes da intolerância Pedro de Santi Casa do Saber 2016 232 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI Um dos campos da vida coletiva em que o fanatismo encontra terreno fértil para se desenvolver é na conjunção entre a dinâmica política e a lógica religiosa Se em tempos passados de nossa história os poderes político e religioso estavam frequentemente concentrados em uma mesma autoridade o rei ou o imperador por exemplo um marco histórico significativo para a separação desses dois domínios da vida social se dá na eclosão da Revolução Francesa 1789 Do ponto de vista individual e em linha com a afirmação dos direitos civis e políticos dos movimentos liberais do século XVIII afirmouse a liberdade de crença permitindo que cada indivíduo professasse sua fé independentemente da religião adotada nesse sentido é exemplar o artigo 10º da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão 1789 Ninguém pode ser molestado por suas opiniões incluindo opiniões religiosas desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei DECLARAÇÃO 1789 sp Em âmbito estatal essa separação se dá por meio da subordinação dos órgãos religiosos ao poder político aproxi mando a classe religiosa francesa do que hoje chamamos de funcionários públicos Esse processo de afastamento da atuação política da condução da vida religiosa se desenvolveria com mais intensidade a partir de então até que chegássemos ao conceito de laicidade estatal reconhecendo em linhas gerais a neutralidade do Estado em relação às questões religiosas a liberdade de religião e a pluralidade Exemplificando Laicidade no Brasil Repare como a separação dos poderes político e religioso se desen volveu no Estado brasileiro a partir da comparação entre a Constituição Política do Império do Brasil 1824 e a Constituição da República Federa tiva do Brasil 1988 nossa atual carta constitucional Atente para o fato de que no Império havia uma religião oficial do Estado o que justifi cava inclusive a retirada de direitos políticos dos praticantes de outros credos ao passo que o documento de 1988 afirma a laicidade do Estado e a liberdade religiosa Constituição Política do Império do Brasil Art 5 A Religião Católica Apostólica Romana continuará a ser a Religião do Império Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto doméstico ou particular em casas para isso desti nadas sem forma alguma exterior do Templo Seção 43 Vivemos uma onda de fanatismo 233 Art 95 Todos os que podem ser Eleitores abeis para serem nomeados Deputados Excetuamse III Os que não professarem a Religião do Estado BRASIL 1824 sp Constituição da República Federativa do Brasil Art 5º Todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza garantindose aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida à liberdade à igualdade à segurança e à propriedade nos termos seguintes VI é inviolável a liberdade de consciência e de crença sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida na forma da lei a proteção aos locais de culto e a suas liturgias VII é assegurada nos termos da lei a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva VIII ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política salvo se as invocar para eximirse de obrigação legal a todos imposta e recusarse a cumprir prestação alternativa fixada em lei Art 19 É vedado à União aos Estados ao Distrito Federal e aos Municípios I estabelecer cultos religiosos ou igrejas subvencionálos embara çarlhes o funcionamento ou manter com eles ou seus represen tantes relações de dependência ou aliança ressalvada na forma da lei a colaboração de interesse público BRASIL 1988 sp Adotada atualmente na grande maioria dos países do globo a exemplo do Brasil a laicidade determina que não há uma religião oficial do Estado e permite que os cidadãos estejam livres e protegidos para praticarem a religião que escolherem Note que a laicidade ao negar a existência de uma fé estatal não estabelece a proibição das manifestações religiosas mas muito pelo contrário autoriza a exteriorização de toda e qualquer crença religiosa amparandoas de modo igualitário Assim caro aluno é a laicidade do Estado brasileiro que estabelece funda mentos constitucionais para que ninguém tenha seus direitos reduzidos sob justificativas religiosas que possibilita que os indivíduos disponham de total liberdade para exprimirem sua fé de modo pleno e salvaguardado tornando ilegais ofensas por parte tanto do Estado quanto de outros indivíduos ou 234 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI acaba beneficiando a religião católica que tem uma estrutura de catequistas editoras e meios de comunicação capaz de atuar em todo o país As outras instituições saem em desvantagem Fico imaginando como uma instituição como a umbanda que não tem editoria não tem TV não tem estrutura Como vai formar professores para dar aula nas escolas Como as culturas indígenas vão preparar professores Estamos selando uma desigualdade de partida MORENO 2017 sp Em âmbito político também podemos questionar a manutenção ou não da laicidade estatal e o consequente impacto sobre a tolerância religiosa se mantivermos o foco sobre a formação de grupos parlamentares religiosos que buscam em suas crenças os fundamentos para a normatização de temas como o aborto a política sobre drogas ou o casamento homoafetivo condi cionando a atuação da dinâmica legislativa a uma determinada visão religiosa MARINI CARVALHO 2018 Em bases teóricas percebemos que a laicidade reconhece de modo acertado a existência de fundamentos distintos para a condução da dinâmica política e para o exercício da vida religiosa Há que se reconhecer que as variáveis que orientam a performance política devem ser estritamente órgãos da sociedade civil e que impede que órgãos estatais poder judici ário polícias hospitais públicos ou quaisquer que sejam estabeleçam uma religião manifesta sob risco de afetar a liberdade religiosa e o tratamento igualitário aos cidadãos nacionais Percebese portanto a centralidade desse conceito para a manutenção da pluralidade da democracia de nosso país Sob tal entendimento são variados os dilemas de nossa sociedade contemporânea que se vinculam ao preceito de tolerância ou intolerância religiosa incluindo situações que já se encontram incorporadas em nosso dia a dia mas que ganham destaque sob perspectivas mais atentas sobre o tema Nesse sentido a presença frequente de oratórios dispostos em locais públicos construídos com verbas públicas e destinados a cultos específicos pode ser polemizada à luz do conceito de laicidade do Estado BALAN 2019 Semelhantemente a autorização para o ensino religioso em escolas públicas na modalidade confessional isto é em que se aprofunda o estudo de uma crença específica poderia prejudicar a neutralidade do Estado no campo religioso uma vez que a fé ensinada em uma instituição pública estaria em situação de privilégio frente às demais Segundo Elcio Cecchetti coordenadorgeral do Fórum Nacional Permanente de Ensino Religioso Fonaper a possibilidade do ensino confessional Seção 43 Vivemos uma onda de fanatismo 235 racionais isto é por mais que existam diferentes opiniões sobre como a política deve ser conduzida é fundamental que tais argumentos sejam estabelecidos com base em dados estudos e análises empíricos do mundo real uma vez que é nesse campo terreno e não no domínio celeste ou divino que as relações políticas se estabelecem Na religião por sua vez existem dogmas crenças e princípios que estão além da razão humana situandose no campo da fé do sagrado questões inquestionáveis do ponto de vista estritamente racional e é justamente nessa condição que o fanatismo religioso se torna problemático Estabelecer toda uma série de preceitos religiosos sejam ele de qualquer religião como parâmetros para a determinação de políticas públicas seria retirar a política do campo da razão e transferila para a lógica da fé Esse movimento não só constituiria um desrespeito à liberdade religiosa uma vez que os adeptos de crenças diversas à religião preponderante estariam em situação de inferioridade ao se verem obrigados a acatar uma crença diferente da sua mas também a ausência de laicidade estatal fragiliza a administração da vida pública já que torna a política distante da argumentação racional que é igualmente acessível a todos os cidadãos Reflita Tudo é permitido Na obra Os irmãos Karamazov de Fiódor Dostoiévsk argumentase que a ausência de Deus reduziria as limitações para a ação humana na célebre frase Deus está morto tudo é permitido O filósofo esloveno Slavoj Zizek entretanto altera essa relação afirmando que é justamente a ideia de uma divindade sagrada com premissas que estariam acima da razão humana que autoriza que os homens tenham comportamentos extremos justificandoos sob uma espécie de vontade divina inquestio nável ZIZEK 2008 p 136 Na sua opinião incluir dogmas religiosos na condução de políticas públicas facilitaria ou dificultaria o estabelecimento de consensos de acordos abrangendo opiniões condutas e compromissos coletivamente estabelecidos sobre o que é permitido e o que não é permitido fazer nesse campo de ação Vale lembrar que se o fundamentalismo religioso se torna evidente quando exercido por meio de ações extremas como atentados violentos ou perseguições a minorias religiosas esse mesmo fanatismo pode muito bem ser praticado através de atuações mais sutis como o aparelhamento dos cargos públicos por integrantes de uma doutrina específica pelo desvio da 236 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI Notase portanto que o fundamentalismo religioso contemporâneo apresenta obstáculos significantes ao pluralismo e à consolidação de ambientes democráticos Essa modalidade de fanatismo estimula a segre gação social ao criar categorias dos adeptos e não adeptos da fé oficial reduz as possibilidades de diálogo em meio à comunidade já que orienta sua conduta por crenças específicas unilaterais e estimula a intolerância na medida em que atinge a pluralidade social Nesse momento do estudo tornase importante ressaltar que embora normalmente se costume atribuir o fundamentalismo religioso a esta ou aquela crença é necessário reconhecer que o fanatismo infelizmente não é exclusividade de nenhuma religião existindo exemplos históricos nas mais diversas devoções Podemos identificar por exemplo a atuação fundamentalista de grupos católicos irlandeses como o Exército Republicano Irlandês IRA na sigla em inglês que se utilizavam do terrorismo para forçar a separação da Irlanda do Norte do Reino Unido justificando sua atuação sob fundamentos da fé católica aplicados às questões políticas da região No campo do protestan tismo são emblemáticas a opressão e a segregação pregadas pelo Ku Klux Klan nos Estados Unidos cuja ideologia mesclava dogmas religiosos com teorias racistas resultando em violência extrema contra as comunidades negra hispânica entre outras No mundo islâmico por sua vez o pensa mento wahhabista constituiria o fundamento teórico para as atrocidades cometidas pelo autointitulado Estado Islâmico contra indivíduos conside rados infiéis FERNANDES sd atuação estatal em benefício ou em detrimento de um grupo religioso e mesmo pela utilização de princípios religiosos particulares na produção legislativa na atividade judiciária ou na administração pública O fundamen talismo religioso também pode apresentar diferentes facetas no que se refere à sua autoria já que essa prática pode ser empreendida por autoridades e órgãos estatais condicionando a atividade pública a certa concepção religiosa discriminatória a também pode resultar da ação da sociedade civil a exemplo da expulsão ou mesmo agressão de membros praticantes de religiões distintas daquelas predominantes em suas comunidades Notase portanto que a percepção de que o fundamentalismo religioso constitui atributo de uma fé específica ou de um grupo prati cante dessa crença não resiste a uma averiguação mais detalhada de nossa história ou de nossa realidade contemporânea já que essa prática esteve ou está presente nas mais diversas religiões de nosso planeta Seção 43 Vivemos uma onda de fanatismo 237 Exemplificando Fundamentalismo para além dos clichês Ao analisarmos alguns acontecimentos mundiais contemporâneos é preciso manter sempre um esforço adicional para evitarmos qualquer compreensão preconceituosa da realidade sobretudo quando tratamos de comunidades que não são tão expressivas em nosso país Nesse sentido alguns clichês aplicados a grupos religiosos vinculando por exemplo a violência ao mundo islâmico e atribuindo aos budistas uma caracterização de quietude e serenidade devem ser desconstru ídos já que podem contrariar fatos reais conforme exemplificam as reportagens a seguir Entenda quem são os rohingyas a minoria mais perseguida do mundo O Globo 2017 Monge budista entoa sermões de ódio contra minoria islâmica de Mianmar Folha de SPaulo 2017 Se o aspecto religioso pode ser identificado como fundamento para fanatismos que remontam a séculos passados e que persistem até os dias de hoje existem outras formas de radicalismo que são marcantes da época contemporânea sobretudo por se utilizarem dos meios tecnológicos caracte rísticos de nosso tempo O advento da internet em meados do século XX é sem dúvida um divisor de águas do modo como conduzimos nossos afazeres cotidianos não é mesmo Os benefícios em termos de difusão do conhecimento ampliação dos contatos e acesso à informação são inegáveis alterando hábitos e rotinas ao redor de todo o mundo Entretanto na condição de instrumento técnico a internet pode ser utilizada tanto para fazer o bem como para propósitos perversos O estabelecimento de mídias digitais compreendidas de modo resumido como a comunicação que estabelecemos por meio da internet foi importante para a democratização da informação permitindo que novas fontes fossem criadas sem que se exigisse um custo elevado como os dos jornais impressos por exemplo Todavia essa diversificação abrange a difusão de conteúdos sérios e verdadeiros mas também a proliferação de materiais malintencionados ou mesmo pouco compromissados com a reali dade Consolidouse desse modo um ambiente propício para a divulgação de ideias extremistas constituídas por pensamentos ou doutrinas que visam à ruptura radical da realidade existente utilizandose de táticas e proce dimentos que não raras vezes se mostram ilegais eou violentos 238 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI De imediato podemos identificar na percepção de anonimato que a internet produz um forte estímulo ao comportamento extremista A dificul dade de rastrear a origem ou a autoria de um conteúdo divulgado pelas mídias digitais incentiva que esse seja o meio escolhido para a difusão de materiais de doutrinação extremista Semelhantemente se a identidade pessoal pode ser escondida mais facilmente na internet o próprio conteúdo disseminado digitalmente sofre um menor controle se comparado a outros tipos de comunicação como jornais ou revistas facilitando que ideologias racistas ou preconceituosas por exemplo alastremse pelas redes digitais A utilização das mídias digitais eleva a capacidade de mobilização dos agentes extremistas aproximando virtualmente indivíduos que se encontram geograficamente dispersos em um país ou mesmo ao redor do globo Nesse contexto a utilização de algoritmos pelas redes sociais e outras plataformas digitais acaba por criar o chamado Efeito bolha ou Câmaras de eco na medida em que os meios digitais são programados para reforçar os conte údos já pesquisados pelo internauta reafirmando suas convicções e passando a impressão de que seu ponto de vista é o único existente ou o preponde rante Esse processo pode ser ainda mais intenso se o internauta se recusa a acessar pontos de vista ou opiniões diferentes na chamada Autocensura em movimento que reduz a diversidade nas fontes e nas perspectivas por ele analisadas Assimile Um mundo virtual à nossa imagem e semelhança Por mais que alguém tente sempre se manter imparcial para analisar os acontecimentos contemporâneos a forma como conduzimos nossas atividades cotidianas o que lemos o que assistimos com quem conver samos terá influência sobre nossa maneira de pensar Nas redes sociais esse processo pode ser excessivamente acentuado uma vez que existem programas específicos para captar nossos gostos e inclinações direcio nando aquilo que vemos e em consequência aquilo que pensamos A criação dessas bolhas virtuais pode ser extremamente limitadora para nossa percepção da realidade Do ponto de vista metodológico o pensamento extremista encontra forte potencial na utilização das mídias sociais sob a forma de fake news ou notícias falsas Se é verdade que informações incorretas podem causar graves consequências na percepção comunitária sobre determinado tema a elaboração proposital de conteúdos falsos cuidadosamente preparados para causar comoção eou desinformação sobre temas polêmicos pode ter Seção 43 Vivemos uma onda de fanatismo 239 Pesquise mais Real ou mentira eis a questão Ainda que você sequer tenha votado nas últimas eleições é provável que tenha recebido algum tipo de material eleitoral em meio digital alertando para graves consequências que a vitória deste ou daquele candidato traria ao Brasil não é mesmo Existindo uma dificuldade para distinguirmos o que é real do que é mentira tornase necessário compreendermos com clareza como as fake news podem interferir na dinâmica eleitoral Pesquise mais sobre esse assunto para compreender como esse processo se desenvolve Um ponto que merece destaque nessa análise sobre a utilização das mídias digitais para propósitos extremistas é a facilidade com que qualquer indivíduo pode fazer parte dessa engrenagem Se a explosão de uma bomba o ataque físico a minorias ou um ato de vandalismo exigem um compro metimento maior do agente a difusão de material extremista na internet ou a propagação de fake news podem decorrer de um leve descuido dos internautas Ao permitir que sejam postados conteúdos desconhecidos em sua conta nas redes sociais ou ao divulgar informações incertas aos conhecidos um indivíduo pode estimular o processo de desinformação característico das mídias digitais Notase nesse caso que não há necessariamente o objetivo expresso de causar o mal mas apenas a ausência de uma reflexão maior sobre as consequências negativas da conduta estabelecida aproximandose do conceito de banalidade do mal de Hannah Arendt Nessa concepção a filósofa argumenta que a maldade não necessariamente está ligada obrigato riamente a uma finalidade cruel por parte do indivíduo mas a simples falta de juízo crítico sobre uma conduta realizada de modo irrefletido já é suficiente para caracterizar o mal ARENDT 2006 com o advento da internet esse comportamento imprudente pode ter um alcance inédito com consequên cias extremamente perigosas Se essas considerações podem eventualmente parecer algo exagerado a realidade insiste em demonstrar que a proliferação descuidada de notícias falsas ou informações inverídicas tem o potencial para originar graves graves impactos sobre por exemplo processos eleitorais Semelhantemente a programação de bots ou robôs que assumem a aparência de um inter nauta real é frequentemente utilizada para acelerar a difusão ou o comparti lhamento de uma ideia ampliando sua visibilidade e gerando uma percepção de que determinada visão seria amplamente aceita o que não é real 240 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI desgraças mesmo que não seja esse o intuito de tal compartilhamento Um boato disseminado na internet de que uma mulher estaria sequestrando crianças para a prática de magia negra algo que sequer ocorreu promoveu a ira de alguns habitantes do litoral paulista que acabaram por assassinar uma inocente ao confundila com a suposta e repitase inexistente sequestradora constituindo a primeira tragédia nacional de grande reper cussão causada pelas fake news Longe de ser um caso isolado o fenômeno insiste em repetir seu desfecho Desde então histórias bárbaras como esta se repetem Recente mente na Índia um homem de 26 anos foi confundido com um sequestrador de crianças exibido em um vídeo Apanhou até a morte Novamente uma invenção tratavase de uma campanha veiculada no Paquistão alertando para a segurança dos menores nas ruas O material foi editado e compartilhado via redes sociais levando a população em pânico a matar outro inocente nos últimos meses o país registrou dezenas de casos parecidos CARPANEZ 2018 sp Em termos sociais mais amplos a prática de disseminar notícias falsas voluntária ou involuntariamente apresenta um dano coletivo extremamente grave na medida em que fragiliza o compromisso que a comunicação deve ter com a verdade A profusão de inúmeras versões sobre um mesmo fato muitas das quais propositadamente falsas bem como a utilização das fake news para divulgar eventos que sequer ocorreram afeta negativamente a possibilidade de se verificar a veracidade das informações recebidas Nesse cenário os fatos reais objetivos podem receber menos importância para a formação das opiniões individuais ou pública do que por exemplo apelos emocionais boatos ou crenças pessoais tratase da pósverdade Termo recorrente nos dias de hoje a pósverdade inverte o processo tradicional da formação de opiniões no qual fatos objetivos produzem uma certa percepção sobre a realidade fazendo com que a própria vontade que um indivíduo tem sobre algo ser ou não verdade interfere na sua compre ensão dos fatos Seção 43 Vivemos uma onda de fanatismo 241 Pesquise mais É relativo Assim como acontece no conceito de pósverdade algumas perspec tivas e modos contemporâneos de se pensar sobre a realidade apresentam uma maior flexibilidade em seus conceitos e ponderações reduzindo a rigidez nos critérios de análise Nesse contexto classificado por muitos como a pósmodernidade referências ou racionalidades fixas objetivas e coletivas válidas para todos têm menor importância em benefício de ponderações relativistas que dependem de reflexões identificações e considerações individuais sendo portanto subjetivas Essas perspectivas fragmentadas individualistas e fluídas seriam nos termos do filósofo polonês Zygmunt Bauman 19252017 componentes de nossa modernidade líquida origem de certas instabilidades e incer tezas de nossas vidas contemporâneas desprovidas de parâmetros concretos BAUMAN Z Modernidade líquida Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001 Consolidada com certa frequência nas conversas cotidianas e nas mídias digitais a pósverdade se torna ainda mais preocupante quando inserida em contextos nos quais a busca pela verdade é algo essencial como na ciência Assim o estabelecimento de procedimentos científicos que relativizam a verdade desviando suas conclusões para objetivos e interesses específicos dá origem àquilo que chamamos de fake Science ou falsa ciência pseudo ciência Nesse contexto muito embora a tecnologia possa fornecer como vimos instrumentos para a propagação do fanatismo o radicalismo pode em sentido inverso se opor aos avanços da ciência refutando evidências que os estudos e pesquisas sérias insistem em oferecer em benefício de resultados alternativos obtidos pela fake Science Tratase nesse caso do negacionismo cuja aplicação mais significativa da contemporaneidade tem por objeto o aquecimento global O aquecimento global pode ser compreendido grosso modo como um fenômeno de elevação das temperaturas médias da atmosfera e dos oceanos terrestres se comparados aos dados registrados décadas atrás em razão do calor ocasionado pela ação humana sobretudo em função dos gases causadores do efeito estufa Por sua natureza transfronteiriça isto é que não está restrita a nenhum país específico esse fenômeno constitui um dos mais graves problemas da ordem mundial contemporânea cujas consequências se mostram extremamente perigosas incluindo o derreti mento de calotas e áreas polares a elevação dos níveis dos oceanos a deser tificação de áreas férteis entre outros 242 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI Figura 42 Oscilação da temperatura Fonte httpssaopauloestadaocombrnoticiasgeralparaipccplanetanuncaestevepior imp1079259 Acesso em 31 jan 2019 Instituição criada no âmbito da Organização das Nações Unidas em 1988 o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas ou IPCC na sigla em inglês constitui hoje a principal fonte de estudos a respeito do aquecimento global Alertando com reiterada frequência e intensidade acerca dos riscos trazidos pelo aquecimento global essa entidade científica produziu em 2018 seu quinto relatório no qual adverte sobre a necessi dade urgente de uma ação climática em âmbito global Aprovado por 195 Estados o documento informa que os níveis atuais de emissão de gases de efeito estufa produzirão efeitos irreversíveis no ambiente afetando negati vamente a saúde humana o crescimento econômico mundial e claro os ecossistemas de nosso planeta Pesquise mais Inconveniente mas presente A problematização a respeito do aquecimento global ganhou forte ímpeto com o documentário Uma verdade inconveniente dir Davis Guggenheim Estados Unidos 2006 que aborda uma série de apresentações do exvi cepresidente dos EUA Al Gore em sua jornada para conscientizar a população mundial sobre esse grave desafio da humanidade Seção 43 Vivemos uma onda de fanatismo 243 Exemplificando Clima e tempo Um dos argumentos mais comuns para se negar o fenômeno do aqueci mento global é a constatação de que algumas das regiões de nosso planeta testemunham recordes em termos de temperaturas frias a exemplo dos recentes invernos rigorosos nos Estados Unidos da América Segundo essa lógica o frio intenso seria um indicativo de que o aquecimento global não seria algo verdadeiro Entretanto especia listas afirmam haver erros graves nessa alegação uma vez que há uma confusão entre os conceitos de tempo e de clima o primeiro expressa as condições atmosféricas momentâneas o segundo indica padrões de tempo predominantes em uma região por longos períodos Assim oscila ções de tempos extremamente frios e quentes em locais pontuais não podem ser utilizados para negar a mudança climática de aquecimento gradativo e generalizado da temperatura da Terra Por que frio recorde nos EUA não é argumento válido para negar aqueci mento global BBC Brasil 2018 A perspectiva notificada pelo IPCC relativa à existência e à gravidade do aquecimento global foi objeto de um estudo científico que em 2013 constatou ser essa a conclusão obtida pela quase totalidade dos artigos cientí ficos que abordaram o tema em escala global Em um universo de cerca de 12 mil trabalhos científicos aproximadamente 99 atribuíam ao homem a principal causa das mudanças climáticas observadas EBEL 2013 Nesse contexto contando com um suporte científico ínfimo de cerca de 1 da produção especializada sobre o tema e contrariando o principal foro de análise da questão o IPCC os negacionistas afirmam que o aquecimento global é um fenômeno inexistente ou que a ação humana seria irrelevante para tal elevação das temperaturas Por este motivo a falta de embasa mento científico e a abundância de conclusões em sentido contrário os argumentos negacionistas são comumente classificados como pseudocientí ficos isto é podem até apresentar uma aparência científica mas entretanto não resistem a uma averiguação mais robusta Foram constatados erro graves na argumentação negacionista por exemplo a escolha enviesada de dados que contribuem para a conclusão pretendida mas que não representam com fidelidade o total de informações disponíveis ou mesmo a utilização de artifícios matemáticos para moldar os resultados obtidos SERÁ QUE 2017 244 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI Adicionalmente e ainda mais grave identificouse que alguns dos estudos negacionistas foram financiados por companhias interessadas em refutar a ideia de aquecimento global como as do ramo energético Nesse caso é evidente o conflito de interesses existente na elaboração das pesquisas reduzindo a credibilidade dos resultados obtidos ORF 2015 Se no caso do aquecimento global o negacionismo apresenta uma abran gência também mundial em linha com o objeto de estudo transfronteiriço há casos de ondas de fanatismos contemporâneos preponderantemente interiores aos limites dos Estados soberanos como é o caso dos movimentos xenófobos e ultranacionalistas do século XXI A xenofobia pode ser caracterizada como o sentimento de aversão desprezo ou ódio contra aquele que é considerado diferente Se a formação da palavra deriva da junção de xénos estrangeiro estranho e phóbos medo ambos do grego a concepção atual do termo não se restringe à repulsa unica mente ao estrangeiro àquele que vem de outro país mas também inclui todo indivíduo considerado pelo xenófobo como diferente de seu grupo social podendo ser baseada em critérios de raça etnia ou cultura por exemplo mesmo entre indivíduos de um mesmo Estado O ultranacionalismo por sua vez compreende uma valorização exacerbada e fervorosa do senti mento de pertencimento a uma nação apresentando em contrapartida um desprezo em relação aos não nacionais assim são características frequentes do ultranacionalismo o conservadorismo e a valorização de uma homoge neidade isto é de uma uniformidade étnica Em comum xenófobos e ultranacionalistas apresentam a repugnância e o ódio aos indivíduos considerados distintos de seu grupo identitário em um processo que frequentemente é marcado pela mitificação de sua própria coletividade estabelecendo uma uniformidade racial ou étnica que não corresponde verdadeiramente ao processo de formação histórica desse povo ou mesmo uma série de glórias e atributos valorosos que não existiram de fato ou se mostram exagerados somada ao desconhecimento e à estereo tipação dos demais indivíduos isto é à atribuição de características precon ceituosas depreciativas e clichês aos pertencentes de outras coletividades A esse respeito é emblemática a declaração do presidente dos Estados Unidos Donald Trump em conversa com Enrique Peña Nieto presidente mexicano Você tem um bando de homens maus aí Você não está fazendo o suficiente para detêlos em repulsa complementada por Trump na seguinte frase Nós vamos construir o muro e vocês pagarão por ele queiram ou não queiram TRUMP 2017 sp Seção 43 Vivemos uma onda de fanatismo 245 Reflita Xenófobo no Brasil Sugerimos a leitura da reportagem a seguir a respeito da composição étnica e racial da população europeia e reflita se faz sentido de um ponto de vista da formação histórica da população nacional um brasi leiro se declarar xenófobo Europa sempre foi povoada por diversas etnias ao contrário do que pensam supremacistas brancos UOL 2018 No século XXI esses fanatismos foram possivelmente intensificados em razão da acentuação dos movimentos migratórios que em âmbito nacional ou internacional fortalecem a mobilidade humana e consequentemente elevam o contato com pessoas originárias de outros países ou regiões não por acaso os estrangeiros e os migrantes internos são vítimas frequentes desses movimentos fanáticos Adicionalmente inovações nas tecnologias de comunicação e informação têm o efeito prático de intensificar o contato ainda que virtual entre povos distintos em um processo que gera reações defensivas de grupos que se sentem ameaçados e precisam reforçar sua identidade local KAPLAN 2012 Assim crescem nesse período os movimentos de oposição aos fluxos migratórios sendo observados por exemplo com grande vigor no conti nente europeu no qual partidos radicais têm obtido vitórias expressivas nos processos eleitorais sob promessas de barrar a entrada de imigrantes No Brasil esse preconceito é observado sob um aspecto internacional em que imigrantes são hostilizados em razão da utilização de serviços públicos nacionais como é o caso dos venezuelanos no estado de Roraima por crité rios raciais nas ofensas a imigrantes haitianos por intolerância religiosa nos ataques a refugiados sírios entre outros ainda constatase no país uma nefasta discriminação regional atribuindose a populações de estados diversos da federação a responsabilidade por dificuldades de nosso país em clara perspectiva xenófoba NORDESTE 2018 sp É importante lembrar também os efeitos da crise econômica de 2008 no fortalecimento dos movimentos xenófobos e ultranacionalistas do século XXI A fragilização da economia mundial e as graves consequências sociais dela decorrentes podem servir de estímulo para que se busquem culpados para a situação de calamidade em que muitas comunidades se encontraram assim atribuir ao outro seja ele de outro país de outra religião de outra região a responsabilidade pelas mazelas sofridas funcionaria como fator de agregação social ainda que essa culpabilização não tenha fundamentos verídicos 246 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI Analisados os diversos movimentos de fanatismo contemporâneos tornase evidente que existem fatores comuns à intolerância por eles defen dida dentre os quais podemos citar a utilização de argumentos sem embasa mento científico ou racional valendose portanto de mitos que não espelham e realidade bem como o profundo medo ou incompreensão daquilo que é diferente revelando a fragilidade que reside por trás da aparência de força tradicional aos movimentos fanáticos Para concluirmos nosso estudo a contribuição do filósofo Karl Popper 19021994 em seu Paradoxo da Tolerância revela não haver espaço para ideologias autoritárias preconceituosas e antidemocráticas Menos conhecido é o paradoxo da tolerância a tolerância ilimi tada pode levar ao desaparecimento da tolerância Se esten dermos tolerância ilimitada até àqueles que são intolerantes se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra os ataques dos intolerantes o resultado será a destruição dos tolerantes e com eles da tolerância POPPER 1974 p 289 Diante de tais ponderações caro aluno tornase interessante questio narmos qual seria o tratamento que em uma sociedade democrática e plural deveria ser dispensado às ondas de intolerância contemporâneas Sem medo de errar Prezado aluno se nos propusemos a estudar as formas como a diversi dade e a pluralidade se manifestam neste século XXI aplicandoas sobre tudo à sociedade brasileira contemporânea parecenos evidente que as mais diversas maneiras de se expressar um comportamento intolerante não encon trarão qualquer tipo de defesa teórica ou mesmo de justificativa prática que fundamentem sua permanência em território nacional Do ponto de vista teórico como vimos a eventual aceitação ou compla cência com quaisquer mentalidades intolerantes coloca em risco a própria tolerância que tanto valorizamos em nossa sociedade e no exercício de nossa cidadania A constituição de uma sociedade brasileira tolerante não implica o acolhimento de todo e qualquer pensamento e ideologia mas sim daqueles que mantêm igual respeito ao conceito de tolerância assegurandose dessa forma um ciclo virtuoso de fortalecimento desse valor Sob uma lógica prática a tolerância não deveria encontrar espaço para se desenvolver em um ambiente já tão plural e diverso em suas origens Seção 43 Vivemos uma onda de fanatismo 247 Marcado por uma formação histórica e social extremamente miscigenada o Brasil deve reconhecer em sua multiplicidade de tradições culturas hábitos e modos de vida um de seus ativos mais valiosos Por isso o comportamento xenófobo de atacar um refugiado sírio assim como qualquer outro imigrante de qualquer outra nacionalidade por sua simples acolhida em território nacional é evidentemente algo incompatível com os preceitos de nossa democracia pluralista devendo ser prontamente repudiado pela sociedade civil e pelas autoridades públicas As ofensas desfe ridas pelo agressor contra Mohamed Ali são exemplos claros de um pensa mento preconceituoso dotado de estereótipos grosseiros e desprovidos de qualquer fundamentação real Desse modo se é verdade que ainda se observam no país movimentos mais próximos de concepções fanáticas os motivos acima elencados justi ficam uma conduta atuante e concertada exercida por parte da sociedade civil e dos órgãos públicos para revelar as deficiências e fragilidades concei tuais que estão por trás das mobilizações fundamentalistas extremistas negacionistas xenófobas e ultranacionalistas ressaltando o distanciamento entre as lógicas autoritárias e reducionistas por elas pregadas e a diversidade e pluralidade típicas de nossa constituição nacional Felizmente tal perspectiva parece ser compartilhada por parte de nossa população capaz de reagir a esses atos de intolerância e lutar pela diversidade e pelo respeito em solo nacional Num ato de solidariedade e apoio a Mohamed várias pessoas se reuniram para comprar os produtos vendidos por ele Logo uma imensa fila se fez em frente da barraca de Mohamed que teve que contar com a ajuda de quatro compatriotas para poder atender a tanta gente Mohamed sequer conseguiu tempo para conversar com a Agência Brasil Disse apenas que estava feliz com todas aquelas pessoas Veja quanta gente disse enquanto já se preparava para atender a outro cliente ABDALA 2017 sp 248 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI A partir do trecho da reportagem anteriormente citado escolha a alternativa correta a Diferentemente do Brasil os países europeus apresentam uma única etnia muito bem definida motivo pelo qual o comentário de Weber possui fundamentação científica b O comentário de Weber a respeito da cor de pele do homem do anúncio utilizando termo depreciativo não pode ser classificado como xenofobia uma vez que a ofensa não foi feita a um estrangeiro c O acontecimento narrado na reportagem trata de um caso isolado já que a internet não costuma ser usada para a propagação de ideias extremistas d Termos como tratamento busca recuperar pessoas arrependimento e melhora reafirmam a ideia de que o fanatismo muitas vezes esconde profundos medos e fragi lidades dos indivíduos e O trecho transcrito nos permite afirmar com toda certeza que as ofensas de Weber são de cunho ultranacionalista Faça valer a pena 1 Leia atentamente o texto que segue Tratamento na Áustria busca recuperar pessoas que espalham ódio na internet Vereador de extremadireita do país teve de fazer seis meses de terapia por ordem da Justiça Respondendo a um anúncio que mostrava um homem branco e outro não branco segurando um bebê Weber fez comentários homofóbicos e racistas descrevendo a imagem como sujeira e usando uma palavra depreciativa para negro Depois ele pediu desculpas e ofereceu sua renúncia que não foi aceita pelo partido Agora um tribunal austríaco enviou Weber para um programa de aconselhamento de seis meses que lhe ensinará como se comportar na internet As autoridades também vão examinar as possíveis origens das ideias racistas e homofóbicas de Weber e a menos que ele demonstre arrependimento e melhora poderão reenviálo à Justiça NOACK 2018 sp Seção 43 Vivemos uma onda de fanatismo 249 2 Leia atentamente o excerto de texto que segue Em seis meses Brasil teve mais de 200 casos de intolerância religiosa Apesar de a Constituição Federal garantir o respeito à liberdade religiosa agressões a pessoas ou locais de culto continuam ocorrendo em todo o país Constitucionalmente o Brasil é laico há mais de 120 anos e não discrimina nenhuma religião Na prática o país ainda mostra as faces da intolerância religiosa com agressões físicas xinga mentos depredações destruições de imagens tentativas de homicídio e incêndios criminosos Levantamento feito pelo Ministério dos Direitos Humanos MDH com base nas ligações para o Disque 100 aponta que no primeiro semestre deste ano foram registradas 210 denúncias de discriminação por religião SOARES 2018 sp Com base no trecho da reportagem disponibilizado e nos estudos desenvolvidos analise as afirmativas assertivas seguintes I O fato de o Brasil ser um Estado laico significa que apesar de o país ter uma religião oficial nenhuma crença pode ser discriminada II Conforme demonstra a reportagem a intolerância religiosa só pode ser praticada pela sociedade civil nunca pelos órgãos públicos III O Brasil nem sempre foi um Estado laico IV Ao afirmar a laicidade do Brasil pressupomos que este país pratica a neutra lidade do Estado em relação às questões religiosas valoriza a liberdade de religião e o pluralismo a São corretas apenas as afirmativas I II e III b São corretas apenas as afirmativas II e III c Apenas a afirmativa IV é correta d Nenhuma das afirmativas é correta e São corretas apenas as afirmativas III e IV De acordo com o excerto de texto apresentado escolha a alternativa correta 250 U4 Pluralidade e diversidade no século XXI 3 Leia atentamente o excerto de texto que segue A ciência explica como desarmar argumentos de negacionistas Pensamento crítico é fundamental para impedir que informa ções falsas continuem circulando entre a sociedade A ampla disseminação de notícias falsas e o efeito da pósver dade tornou a vida dos amantes da ciência um tanto desanima dora Afinal ninguém gostaria de estar explicando que a Terra não é plana em pleno século 21 Para combater isso pesquisadores publicaram um artigo para ajudar você a desmascarar afirmações falsas A desinformação se espalha facilmente e pode ter consequências profundas para a sociedade se não for corrigida analisa John Cook pesquisador da Universidade George Mason nos Estados Unidos e um dos autores do estudo Os cientistas selecionaram 42 sentenças comuns entre os negacionistas e demonstraram que todas elas tinham um racio cínio falacioso e falharam em refutar as provas científicas sobre o aquecimento global A CIÊNCIA2018 sp Assinale a alternativa que aplica corretamente os conceitos estudados ao trecho trans crito a A ampla disseminação de notícias falsas constitui um fenômeno que sempre ocorreu com a mesma intensidade em toda a história humana b A utilização de mídias digitais facilita o controle das informações divulgadas reduzindo a desinformação que se espalha facilmente c As conclusões do IPCC são exemplos típicos do argumento negacionista de que trata o texto d O artigo que ajuda a desmascarar afirmações falsas é de extrema utilidade prática uma vez que os artigos negacionistas constituem a grande maioria da produção científica especializada sobre o tema do aquecimento global e O trecho um raciocínio falacioso e falharam em refutar as provas científicas sobre o aquecimento global faz alusão aos argumentos pseudocientíficos levantados pelos negacionistas Referências ABDALA V Cariocas se mobilizam em defesa de sírio vítima de xenofobia no Rio Agência Brasil 2017 Disponível em httpagenciabrasilebccombrgeralnoticia201708cariocasse mobilizamemdefesadesiriovitimadexenofobianorio Acesso em 13 fev 2019 A CIÊNCIA explica como desarmar argumentos de negacionistas Galileu 8 jan 2018 Disponível em httpsgooglWcMfZd Acesso em 29 mar 2018 A GAROTA DINAMARQUESA Adoro Cinema Sl 2015 Disponível em httpwww adorocinemacomfilmesfilme140552criticasadorocinema Acesso em 21 jan 2019 AFFONSO J VASSALLO L Liberdade de expressão não pode ser usada para discurso de ódio diz juiz Estadão São Paulo 2017 Disponível em httpspoliticaestadaocombrblogsfaustol macedoliberdadedeexpressaonaopodeserusadaparadiscursodeodiodizjuiz Acesso em 29 jan 2019 ALVES B M PITANGUY J O que é feminismo São Paulo Editora Brasiliense 1991 ARENDT H Eichmann in 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