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Direito ·
Teoria Geral do Estado
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MICHEL FOUCAULT HISTÓRIA DA SEXUALIDADE I A VONTADE DE SABER Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque 13a Edição httpgroupsgooglecombrgroupdigitalsource Esta obra foi preparada pelo grupo Digital Source para proporcionar de maneira totalmente gratuita o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprála ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler Dessa forma a venda deste ebook ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância Portanto distribua este livro livremente Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras Editions Gallimard Traduzido do original an francês Histoire de la Sexualité I La Volonté de savoir Capa Fernanda Gomes Produção gráfica Orlando Fernandes Preparada pelo Centro de Catalogação na fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ Foucault Michel F86h História da sexualidade I A vontade de saber tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque Rio de Janeiro Edições Graal 1988 Do original em francês Histoire de la sexualité I la volonté de savoir Bibliografia 1 Sexualidade História 2 Sexualidade Teoria I Título II Título A Vontade de saber III Série CDD 3014179 30141701 CDU 5778091 770459 5778001 Direitos adquiridos por EDIÇÕES GRAAL Ltda Rua Hermenegildo de Barros 3 1A Glória Rio de Janeiro RJ Tel021 252 8582 que se reserva a propriedade desta tradução 1999 SUMÁRIO I Nós vitorianos 9 II A hipótese repressiva 19 1 a incitação aos discursos 21 2 a implantação perversa 37 III Scientia sexualis 51 IV O dispositivo de sexualidade 73 1 o que está em jogo 79 2 método 88 3 domínio 98 4 periodização 109 V Direito de morte e poder sobre a vida 125 V direito de morte e poder sobre a vida Por muito tempo um dos privilégios característicos do poder soberano fora o direito de vida e morte Sem dúvida ele derivava formalmente da velha pátria potestas que concedia ao pai de família romano o direito de dispor da vida de seus filhos e de seus escravos podia retirarlhes a vida já que a tinha dado O direito de vida e morte como é formulado nos teóricos clássicos é uma fórmula bem atenuada desse poder Entre soberano e súditos já não se admite que seja exercido em termos absolutos e de modo incondicional mas apenas nos casos em que o soberano se encontre exposto em sua própria existência uma espécie de direito de réplica Acaso é ameaçado por inimigos externos que querem derrubálo ou contestar seus direitos Pode então legitimamente entrar em guerra e pedir a seus súditos que tomem parte na defesa do Estado sem se propor diretamente à sua morte élhe lícito exporlhes a vida neste sentido exerce sobre eles um direito indireto de vida e morte23 Mas se foi um deles quem se levantou contra ele e infringiu suas leis então pode exercer um poder direto sobre sua vida matálo a titulo de castigo Encarado nestes termos o direito de vida e morte já não é um privilégio absoluto é condicionado à defesa do soberano e à sua sobre pág 127 vivência enquanto tal Seria o caso de concebêlo com Hobbes como a transposição para o príncipe do direito que todos possuiriam no estado de natureza de defender sua própria vida à custa da morte dos outros Ou devese ver nele um direito específico que aparece com a formação deste ser jurídico novo que é o soberano 24 De qualquer modo o direito de vida e morte sob esta forma moderna relativa e limitada como também sob sua forma antiga e absoluta é um direito assimétrico O soberano só exerce no caso seu direito sobre a vida exercendo seu direito de matar ou contendo o só marca seu poder sobre a vida pela morte que tem condições de exigir O direito 23 S Pufendorf Le Droit de la nature trad de 1734 p 455 24 Da mesma forma que um corpo composto pode ter as qualidades que não se encontram em nenhum dos corpos simples da mistura de que é formado assim também um corpo moral pode ter em virtude da própria união das pessoas que o compõem certos direitos que não revestiam formalmente nenhum dos particulares e que cabe somente aos mentores exercêlos Pufendorf loc cif p 451 que é formulado como de vida e morte é de fato o direito de causar a morte ou de deixar viver Afinal de contas era simbolizado pelo gládio E talvez se devesse relacionar essa figura jurídica a um tipo histórico de sociedade em que o poder se exercia essencialmente como instância de confisco mecanismo de subtração direito de se apropriar de uma parte das riquezas extorsão de produtos de bens de serviços de trabalho e de sangue imposta aos súditos O poder era antes de tudo nesse tipo de sociedade direito de apreensão das coisas do tempo dos corpos e finalmente da vida culminava com o privilégio de se apoderar da vida para suprimila Ora a partir da época clássica o Ocidente conheceu uma transformação muito profunda desses mecanismos de poder O confisco tendeu a não ser mais sua forma principal mas somente uma peça entre outras com funções de incitação de reforço de controle de vigilância de majoração e de organização das forças que lhe são submetidas um poder destinado a produzir forças a fazêlas crescer e a ordenálas mais do que a barrálas dobrálas ou destruílas Com isso o direito de morte tenderá a se deslocar ou pelo menos a se apoiar nas exigências de um poder que gere a vida e a se ordenar em função de seus reclamos Essa morte que se fundamentava no direito do soberano se defender ou pedir que o defendessem vai aparecer como o simples reverso do direito do corpo social de garantir sua própria vida mantêla ou desenvolvêla Contudo jamais as guerras foram tão sangrentas como a partir do século XIX e nunca guardadas as proporções os regimes haviam até pág 128 então praticado tais holocaustos em suas próprias populações Mas esse formidável poder de morte e talvez seja o que lhe empresta uma parte da força e do cinismo com que levou tão longe seus próprios limites apresentase agora como o complemento de um poder que se exerce positivamente sobre a vida que empreende sua gestão sua majoração sua multiplicação o exercício sobre ela de controles precisos e regulações de conjunto As guerras já não se travam em nome do soberano a ser defendido travamse em nome da existência de todos populações inteiras são levadas à destruição mútua em nome da necessidade de viver Os massacres se tornaram vitais Foi como gestores da vida e da sobrevivência dos corpos e da raça que tantos regimes puderam travar tantas guerras causando a morte de tantos homens E por uma reviravolta que permite fechar o círculo quanto mais a tecnologia das guerras voltouse para a destruição exaustiva tanto mais as decisões que as iniciam e as encerram se ordenaram em função da questão nua e crua da sobrevivência A situação atômica se encontra hoje no ponto de chegada desse processo o poder de expor uma população à morte geral é o inverso do poder de garantir a outra sua permanência em vida O princípio poder matar para poder viver que sustentava a tática dos combates tornouse princípio de estratégia entre Estados mas a existência em questão já não é aquela jurídica da soberania é outra biológica de uma população Se o genocídio é de fato o sonho dos poderes modernos não é por uma volta atualmente ao velho direito de matar mas é porque o poder se situa e exerce ao nível da vida da espécie da raça e dos fenômenos maciços de população Poderia ter tomado em outro nível o exemplo da pena de morte Por muito tempo ela foi juntamente com a guerra a outra forma do direito de gládio constituía a resposta do soberano a quem atacava sua vontade sua lei sua pessoa Os que morrem no cadafalso se tornaram cada vez mais raros ao contrário dos que morrem nas guerras Mas foi pelas mesmas razões que estes se tornaram mais numerosos e aqueles mais raros A partir do momento em que o poder assumiu a função de gerir a vida já não é o surgimento pág 129 de sentimentos humanitários mas a razão de ser do poder e a lógica de seu exercício que tornaram cada vez mais difícil a aplicação da pena de morte De que modo um poder viria a exercer suas mais altas prerrogativas e causar a morte se o seu papel mais importante é o de garantir sustentar reforçar multiplicar a vida e pôla em ordem Para um poder deste tipo a pena capital é ao mesmo tempo o limite o escândalo e a contradição Daí o fato de que não se pôde mantêla a não ser invocando nem tanto a enormidade do crime quanto a monstruosidade do criminoso sua incorrigibilidade e a salvaguarda da sociedade São mortos legitimamente aqueles que constituem uma espécie de perigo biológico para os outros Podese dizer que o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver à morte Talvez seja assim que se explique esta desqualificação da morte marcada pelo desuso dos rituais que a acompanhavam A preocupação que se tem em esquivar a morte está menos ligado a uma nova angústia que por acaso a torne insuportável para as nossas sociedades do que ao fato de os procedimentos do poder não cansarem de se afastar dela Com a passagem de um mundo para o outro a morte era a substituição de uma soberania terrestre por uma outra singularmente mais poderosa o fausto que a acompanhava era da ordem do cerimonial político Agora é sobre a vida e ao longo de todo o seu desenrolar que o poder estabelece seus pontos de fixação a morte é o limite o momento que lhe escapa ela se torna o ponto mais secreto da existência o mais privado Não deve surpreender que o suicídio outrora crime pois era um modo de usurpar o direito de morte que somente os soberanos o daqui debaixo ou o do além tinham o direito de exercer tenhasê tornado no decorrer do século XIX uma das primeiras condutas que entraram no campo da análise sociológica ele fazia aparecer nas fronteiras e nos interstícios do poder exercido sobre a vida o direito individual e privado de morrer Essa obstinação em morrer tão estranha e contudo tão regular tão constante em suas manifestações portanto tampouco explicável pelas particularidades ou acidentes individuais foi uma das primeiras surpresas de pág 130 uma sociedade em que o poder político acabava de assumir a tarefa de gerir a vida Concretamente esse poder sobre a vida desenvolveuse a partir do século XVII em duas formas principais que não são antitéticas e constituem ao contrário dois pólos de desenvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de relações Um dos pólos o primeiro a ser formado ao que parece centrouse no corpo como máquina no seu adestramento na ampliação de suas aptidões na extorsão de suas forças no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas anátomopolítica do corpo humano O segundo que se formou um pouco mais tarde por volta da metade do século XVIII centrouse no corpoespécie no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos a proliferação os nascimentos e a mortalidade o nível de saúde a duração da vida a longevidade com todas as condições que podem fazêlos variar tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores uma biopolítica da população As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois pólos em tomo dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida A instalação durante a época clássica desta grande tecnologia de duas faces anatômica e biológica individualizante e especificante voltada para os desempenhos do corpo e encarando os processos da vida caracteriza um poder cuja função mais elevada já não é mais matar mas investir sobre a vida de cima a baixo A velha potência da morte em que se simbolizava o poder soberano é agora cuidadosamente recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida Desenvolvimento rápido no decorrer da época clássica das disciplinas diversas escolas colégios casernas ateliês aparecimento também no terreno das práticas políticas e observações econômicas dos problemas de natalidade longevidade saúde pública habitação e migração explosão portanto de técnicas diversas e numerosas para obterem a sujeição dos corpos e o controle das populações Abrese pág 131 assim a era de um triopoder As duas direções em que se desenvolve ainda aparecem nitidamente separadas no século XVIII Do lado da disciplina as instituições como o Exército ou a escola as reflexões sobre a tática a aprendizagem a educação e sobre a ordem das sociedade elas vão das análises propriamente militares do Marechal de Saxe aos sonhos políticos de Guibert ou de Servan Do lado das regulações de população a demografia a estimativa da relação entre recursos e habitantes a tabulação das riquezas e de sua circulação das vidas com sua duração provável Quesnay Moheau Süssmilch A filosofia dos Ideólogos como teoria da ideia do signo da gênese individual das sensações e também da composição social dos interesses a Ideologia como doutrina da aprendizagem mas também do contrato e da formação regulada do corpo social constitui sem dúvida o discurso abstrato em que se procurou coordenar as duas técnicas de poder para elaborar sua teoria geral De fato sua articulação não será feita no nível de um discurso especulativo mas na forma de agenciamentos concretos que constituirão a grande tecnologia do poder no século XIX o dispositivo de sexualidade será um deles e dos mais importantes Este biopoder sem a menor dúvida foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fe nômenos de população aos processos econômicos Mas o capitalismo exigiu mais do que isso foilhe necessário o crescimento tanto de seu reforço quanto de sua utilizabilidade e sua docilidade foramlhe necessários métodos de poder capazes de majorar as forças as aptidões a vida em geral sem por isto tornálas mais difíceis de sujeitar se o desenvolvimento dos grandes aparelhos de Estado como instituições de poder garantiu a manutenção das relações de produção os rudimentos de anátomo e de biopolítica inventados no século XVIII como técnicas de poder presentes em todos os níveis do corpo social e utilizadas por instituições bem diversas a família o Exército a escola a polícia a medicina individual ou a administração das coletividades agiram no nível dos processos econômicos do seu desenrolar das for pág 132 ças que estão em ação em tais processos e os sustentam operaram também como fatores de segregação e de hierarquização social agindo sobre as forças respectivas tanto de uns como de outros garantindo relações de dominação e efeitos de hegemonia o ajustamento da acumulação dos homens à do capital a articulação do crescimento dos grupos humanos à expansão das forças produtivas e a repartição diferencial do lucro foram em parte tornados possíveis pelo exercício do biopoder com suas formas e procedimentos múltiplos O investimento sobre o corpo vivo sua valorização e a gestão distributiva de suas forças foram indispensáveis naquele momento Sabemos quantas vezes se colocou a questão do papel que uma moral ascética teria tido em toda a primeira formação do capitalismo mas o que se passou no século XVIII em certos países ocidentais e esteve ligado ao desenvolvimento do capitalismo foi um outro fenômeno talvez de maior amplitude do que essa nova moral que parecia desqualificar o corpo foi nada menos do que a entrada da vida na história isto é a entrada dos fenômenos próprios à vida da espécie humana na ordem do saber e do poder no campo das técnicas políticas Não se trata de pretender que nesse momento tivesse sido produzido o primeiro contato da vida com a história Ao contrário a pressão biológica sobre o histórico fora durante milênios extremamente forte a epidemia e a fome constituíam as duas grandes formas dramáticas desta relação que ficava assim sob o signo da morte por um processo circular o desenvolvimento econômico e principalmente o agrícola do século XVIII o aumento da produtividade e dos recursos ainda mais rapidamente do que o crescimento demográfico por ele favorecido permitiram que se afrouxassem um pouco tais ameaças profundas a era das grandes devastações da fome e da peste salvo alguns recrudescimentos encerrouse antes da Revolução francesa a morte começava a não mais fustigar diretamente a vida Mas ao mesmo tempo o desenvolvimento dos conhecimentos a respeito da vida em geral a melhoria das técnicas agrícolas as observações e medidas visando a vida e a sobrevivência dos homens contribuíam para esse afrouxamento um relativo domínio sobre a vida afastava algumas das imi pág 133 nências da morte No terreno assim conquistado organizandoo e ampliandoo os processos da vida são levados em conta por procedimentos de poder e de saber que tentam controlálos e modificálos O homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie viva num mundo vivo ter um corpo condições de existência probabilidade de vida saúde individual e coletiva forças que se podem modificar e um espaço em que se pode repartilas de modo ótimo Pela primeira vez na história sem dúvida o biológico refletese no político o fato de viver não é mais esse sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em tempos no acaso da morte e de sua fatalidade cai em parte no campo de controle do saber e de intervenção do poder Este não estará mais somente a voltas com sujeitos de direito sobre os quais seu último acesso é a morte porém com seres vivos e o império que poderá exercer sobre eles deverá situarse no nível da própria vida é o fato do poder encarregarse da vida mais do que a ameaça da morte que lhe dá acesso ao corpo Se pudéssemos chamar bio história as pressões por meio das quais os movimentos da vida e os processos da história interferem entre si deveríamos falar de biopolítica para designar o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos e faz do podersaber um agente de transformação da vida humana não é que a vida tenha sido exaustivamente integrada em técnicas que a dominem e gerem ela lhes escapa conti nuamente Fora do mundo ocidental a fome existe numa escala maior do que nunca e os riscos biológicos sofridos pela espécie são talvez maiores e em todo caso mais graves do que antes do nascimento da microbiologia Mas o que se poderia chamar de limiar de modernidade biológica de uma sociedade se situa no momento em que a espécie entra como algo em jogo em suas próprias estratégias políticas O homem durante milênios permaneceu o que era para Aristóteles um animal vivo e além disso capaz de existência política o homem moderno é um animal em cuja política sua vida de ser vivo está em questão Essa transformação teve consequências consideráveis Não é necessário insistir aqui sobre a ruptura que se produziu então no regime do discurso científico e sobre a maneira pág 134 pela qual a dupla problemática da vida e do homem veio atravessar e redistribuir a ordem da epistemê clássica A razão por que a questão do homem foi colocada em sua especificidade de ser vivo e em relação aos outros seres vivos deve ser buscada no novo modo de relação entre a história e a vida nesta posição dupla da vida que a situa fora da história como suas imediações biológicas e ao mesmo tempo dentro da historicidade humana infiltrada por suas técnicas de saber e de poder Não é necessário insistir também sobre a proliferação das tecnologias políticas que a partir de então vão investir sobre o corpo a saúde as maneiras de se alimentar e de morar as condições de vida todo ô espaço da existência Uma outra consequência deste desenvolvimento do biopoder é a importância crescente assumida pela atuação da norma à expensas do sistema jurídico da lei A lei não pode deixar de ser armada e sua arma por excelência é a morte aos que a transgridem ela responde pelo menos como último recurso com esta ameaça absoluta A lei sempre se refere ao gládio Mas um poder que tem a tarefa de se encarregar da vida terá necessidade de mecanismos contínuos reguladores e corretivos Já não se trata de pôr a morte em ação no campo da soberania mas de distribuir os vivos em um domínio de valor e utilidade Um poder dessa natureza tem de qualificar medir avaliar hierarquizar mais do que se manifestar em seu fausto mortífero não tem que traçar a linha que separa os súditos obedientes dos inimigos do soberano opera distribuições em torno da norma Não quero dizer que a lei se apague ou que as instituições de justiça tendam a desaparecer mas que a lei funciona cada vez mais como norma e que a instituição judiciária se integra cada vez mais num contínuo de aparelhos médicos administrativos etc cujas funções são sobretudo reguladoras Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida Por referência às sociedades que conhecemos até o século XVIII nós entramos em uma fase de regressão jurídica as Constituições escritas no mundo inteiro a partir da Revolução francesa os Códigos redigidos e reformados toda uma atividade legislativa permanente e ruidosa não devem iludir pág 135 nos são formas que tomam aceitável um poder essencialmente normalizador E contra esse poder ainda novo no século XIX as forças que resistem se apoiaram exatamente naquilo sobre que ele investe isto é na vida e no homem enquanto ser vivo Desde o século passado as grandes lutas que põem em questão o sistema geral de poder já não se fazem em nome de um retorno aos antigos direitos ou em função do sonho milenar de um ciclo dos tempos e de uma Idade do ouro Já não se espera mais o imperador dos pobres nem o reino dos últimos dias nem mesmo o restabelecimento apenas das justiças que se crêem ancestrais o que é reivindicado e serve de objetivo é a vida entendida como as necessidades fundamentais a essência concreta do homem a realização de suas virtualidades a plenitude do possível Pouco importa que se trate ou não de utopia temos aí um processo bem real de luta a vida como objeto político foi de algum modo tomada ao pé da letra e voltada contra o sistema que tentava controlála Foi a vida muito mais do que o direito que se tornou o objeto das lutas políticas ainda que estas últimas se formulem através de afirmações de direito O direito à vida ao corpo à saúde à felicidade à satisfação das necessidades o direito acima de todas as opressões ou alienações de encontrar o que se é e tudo o que se pode ser esse direito tão incompreensível para o sistema jurídico clássico foi a réplica política a todos esses novos procedimentos de poder que por sua vez também não fazem parte do direito tradicional da soberania Sobre tal pano de fundo podese compreender a importância assumida pelo sexo como foco de disputa política Ê que ele se encontra na articulação entre os dois eixos ao longo dos quais se desenvolveu toda a tecnologia política da vida De um lado faz parte das disciplinas do corpo adestramento intensificação e distribuição das forças ajustamento e economia das energias Do outro o sexo pertence à regulação das populações por todos os efeitos globais que induz Inserese simultaneamente nos dois registros dá lugar a vigilâncias infinitesimais a controles constantes pág 136 a ordenações espaciais de estrema meticulosidade a exames médicos ou psicológicos infinitos a todos um micropoder sobre o corpo mas também dá margem a medidas maciças a estimativas estatísticas a intervenções que visam todo o corpo social ou grupos tomados globalmente O sexo é acesso ao mesmo tempo à vida do corpo e à vida da espécie Servimonos dele como matriz das disciplinas e como princípio das regulações É por isso que no século XIX a sexualidade foi esmiuçada em cada existência nos seus mínimos detalhes foi desencavada nas condutas perseguida nos sonhos suspeitada por trás das mínimas loucuras seguida até os primeiros anos da infância tornouse a chave da individualidade ao mesmo tempo o que permite ana lisála e o que torna possível constituíla Mas vêmola também tornarse tema de operações políticas de intervenções econômicas por meio de incitações ou freios à procriação de campanhas ideológicas de moralização ou de responsabilização é empregada como índice da força de uma sociedade revelando tanto sua energia política como seu vigor biológico De um pólo a outro dessa tecnologia do sexo escalonase toda uma série de táticas diversas que combinam em proporções variadas o objetivo da disciplina do corpo e o da regulação das populações Daí a importância das quatro grandes linhas de ataque ao longo das quais a política do sexo avançou nos últimos dois séculos Cada uma delas foi uma maneira de compor as técnicas disciplinares com os procedimentos reguladores As duas primeiras se apoiaram em exigências de regulação sobre toda uma temática da espécie da descendência da saúde coletiva para obter efeitos ao nível da disciplina a sexualização da criança foi feita sob a forma de uma campanha pela saúde da raça a sexualidade precoce foi apresentada desde o século XVIII até o fim do século XIX como ameaça epidêmica que corre o risco de comprometer não somente a saúde futura dos adultos mas o futuro da sociedade e de toda a espécie a histerização das mulheres que levou a uma medicalização minuciosa de seus corpos de seu sexo fez se em nome da responsabilidade que elas teriam no que diz respeito à saúde de seus filhos à solidez da instituição familiar e à salvação da sociedade Foi pág 137 a relação inversa que ocorreu quanto ao controle da natalidade e à psiquiatrização das perversões neste caso a intervenção era de natureza reguladora mas devia apoiarse na exigência de disciplinas e adestramentos individuais De um modo geral na junção entre o corpo e a população o sexo tornouse o alvo central de um poder que se organiza em torno da gestão da vida mais do que da ameaça da morte Por muito tempo o sangue constituiu um elemento importante nos mecanismos do poder em suas manifestações e rituais Para uma sociedade onde predominam os sistemas de aliança a forma política do soberano a diferenciação em ordens e castas o valor das linhagens para uma sociedade em que a fome as epidemias e as violências tornam a morte iminente o sangue constitui um dos valores essenciais seu preço se deve ao mesmo tempo a seu papel instrumental poder derramar o sangue a seu funcionamento na ordem dos signos ter um certo sangue ser do mesmo sangue disporse a arriscar seu próprio sangue a sua precariedade fácil de derramar sujeito a extinção demasiadamente pronto a se misturar suscetível de se corromper rapidamente Sociedade de sangue ia dizer de sanguinidade honra da guerra e medo das fomes triunfos da morte soberano com gládio verdugo e suplícios o poder falar através do sangue este é uma realidade com função simbólica Quanto a nós estamos em uma sociedade do sexo ou melhor de sexualidade os mecanismos do poder se dirigem ao corpo à vida ao que a faz proliferar ao que reforça a espécie seu vigor sua capacidade de dominar ou sua aptidão para ser utilizada Saúde progenitura raça futuro da espécie vitalidade do corpo social o poder fala da sexualidade e para a sexualidade quanto a esta não é marca ou símbolo é objeto e alvo O que determina sua importância não é tanto sua raridade ou precariedade quanto sua insistência sua presença insidiosa o fato de ser em toda parte provocada e temida O poder a esboça suscitaa e dela se serve como um sentido proliferante de que sempre é preciso retomar o controle para que não escape ela é um efeito com valor de sentido Não pretendo dizer que uma substituição do sangue pelo sexo resuma por si só as transformações que mar pág 138 cam o limiar de nossa modernidade O que tento exprimir não é a alma de duas civilizações ou o princípio organizador de duas formas culturais busco as razões pelas quais a sexualidade longe de ter sido reprimida na sociedade contemporânea está ao contrário sendo permanentemente suscitada Foram os novos procedimentos do poder elaborados durante a época clássica e postos em ação no século XIX que fizeram passar nossas sociedades de uma simbólica do sangue para uma analítica da sexualidade Não é difícil ver que se há algo que se encontra do lado da lei da morte da transgressão do simbólico e da soberania é o sangue a sexualidade quanto a ela encontrase do lado da norma do saber da vida do sentido das disciplinas e das regulamentacões Sade e os primeiros eugenistas são contemporâneos desta passagem da sanguinidade para a sexualidade Mas enquanto os primeiros sonhos de aperfeiçoamento da espécie deslocam todo o problema do sangue para uma gestão bastante coercitiva do sexo arte de determinar os bons casamentos de provocar as fecundidades desejadas de garantir a saúde e a longevidade das crianças enquanto a nova ideia de raça tende a esmaecer as particularidades aristocráticas do sangue para voltarse apenas para os efeitos controláveis do sexo Sade vincula a análise exaustiva do sexo aos mecanismos exasperados do antigo poder de soberania e aos velhos prestígios inteiramente mantidos do sangue este corre ao longo de todo o prazer sangue do suplício e do poder absoluto sangue da casta que se respeita em si mesmo e se derrama contudo nos rituais maiores do parricídio e do incesto sangue do povo que se verte à vontade porque o que corre em suas veias não é digno nem de ser mencionado O sexo em Sade é sem norma sem regra intrínseca que possa ser formulada a partir de sua própria natureza mas é submetido à lei ilimitada de um poder que quanto a ele só conhece sua própria lei se lhe acontece de imporse por puro jogo a ordem das progressões cuidadosamente disciplinadas em jornadas sucessivas tal exercício o conduz a ser somente uma pura questão de soberania única e nua direito ilimitado da monstruosidade onipotente O sangue absorveu o sexo pág 139 De fato a analítica da sexualidade e a simbólica do sangue podem muito bem pertencer em princípio a dois regimes de poder bem distintos mas não se sucederam nem tampouco esses próprios poderes sem justaposições interações ou ecos De diferentes maneiras a preocupação com o sangue e a lei tem obcecado há quase dois séculos a gestão da sexualidade Duas dessas interferências são notáveis uma devido à sua importância histórica outra pelos problemas teóricos que coloca Ocorreu a partir da segunda metade do século XIX que a temática do sangue foi chamada a vivificar e a sustentar com toda uma profundidade histórica o tipo de poder político que se exerce através dos dispositivos de sexualidade O racismo se forma nesse ponto racismo em sua forma moderna estatal biologizante toda uma política do povoamento da família do casamento da educação da hierarquização social da propriedade e uma longa série de intervenções permanentes ao nível do corpo das condutas da saúde da vida quotidiana receberam então cor e justificação em função da preocupação mítica de proteger a pureza do sangue e fazer triunfar a raça Sem dúvida o nazismo foi a combinação mais ingênua e mais ardilosa ardilosa porque ingênua dos fantasmas do sangue com os paroxismos de um poder disciplinar Uma ordenação eugênica da sociedade com o que ela podia comportar de extensão e intensificação dos micropoderes a pretexto de uma estatização ilimitada era acompanhada pela exaltação onírica de um sangue superior esta implicava ao mesmo tempo o genocídio sistemático dos outros e o risco de expor a si mesmo a um sacrifício total E a história quis que a política hitleriana do sexo tenhase tornado uma prática irrisória enquanto o mito do sangue se transformava no maior massacre de que os homens por enquanto tenham lembrança No extremo oposto podese a partir deste mesmo fim do século XIX seguir o esforço teórico para reinscrever a temática da sexualidade no sistema da lei da ordem simbólica e da soberania É uma honra política para a psicanálise ou pelo menos para o que pôde haver nela de mais coerente ter suspeitado e isto desde o seu nascimento ou seja a partir de sua linha de ruptura com a neuropsiquia pág 140 tria da degenerescência do que poderia haver de irreparavelmente proliferante nesses mecanismos de poder que pretendiam controlar e gerir o quotidiano da sexualidade daí o esforço freudiano sem dúvida por reação ao grande crescimento do racismo que lhe foi contemporâneo para dar à sexualidade a lei como princípio a lei da aliança da consanguinidade interdita do PaiSoberano em suma para reunir em torno do desejo toda a antiga ordem do poder A isto a psicanálise deve o fato de ter estado com algumas exceções e no essencial em oposição teórica e prática ao fascismo Mas essa posição da psicanálise esteve ligada a uma conjuntura histórica precisa E nada pode impedir que pensar a ordem do sexual de acordo com a instância da lei da morte do sangue e da soberania com todas as referências a Sade e Bataille com todos os penhores de subversão que se lhes peça seja afinal de contas uma retroversão histórica O dispositivo de sexualidade deve ser pensado a partir das técnicas de poder que lhe são contemporâneas Podem me dizer isso é entrar num historicismo mais precipitado do que radical é esquivar em favor de fenômenos variáveis talvez mas frágeis secundários e sobretudo superficiais a existência biologicamente sólida das funções sexuais é falar da sexualidade como se o sexo não existisse E estariam no direito de me objetar V pretende analisar em detalhe os processos pelos quais o corpo das mulheres a vida das crianças e ás relações familiares e toda uma ampla rede de relações sociais foram sexualizadas V quer descrever esse grande aumento da preocupação sexual desde o século XVIII e a obstinação crescente que tivemos em suspeitar o sexo em toda parte Admitase E suponhamos que os mecanismos de poder foram de fato empregados mais para suscitar e irritar a sexualidade do que para reprimila Mas eis que V permaneceu bem próximo daquilo de que acredita certamente terse distanciado no fundo V mostra fenômenos de difusão de instalação de fixação da sexualidade tenta fazer ver o que se poderia chamar de organização de zonas erógenas no corpo social pode ser muito bem que V tenha apenas transposto para a escala de pág 141 processos difusos mecanismos que a psicanálise identificou com precisão ao nível do indivíduo Mas V elide o ponto de partida para essa sexualização que a psicanálise em si não desconhece a saber o sexo Antes de Freud procuravase localizar a sexualidade da maneira mais estreita no sexo em suas funções de reprodução em suas localizações anatômicas imediatas era restringida a um mínimo biológico órgão instinto finalidade V está por sua vez em posição simétrica e inversa só lhe restam efeitos sem apoio ramificações destituídas de raízes uma sexualidade sem sexo Aqui ainda a castração Nesse ponto devemse distinguir duas questões Por um lado a análise da sexualidade como dispositivo político implicaria necessariamente a elisão do corpo da anatomia do biológico do funcional A essa primeira questão creio que se pode responder não Em todo caso o objetivo da presente investigação é de fato mostrar de que modo se articulam dispositivos de poder diretamente ao corpo a corpo a funções a processos fisiológicos sensações prazeres longe do corpo ter de ser apagado tratase de fazêlo aparecer numa análise em que o biológico e o histórico não constituam sequência como no evolucionismo dos antigos sociólogos mas se liguem de acordo com uma complexidade crescente à medida em que se desenvolvam as tecnologias modernas de poder que tomam por alvo a vida Não uma história das mentalidades portanto que só leve em conta os corpos pela maneira como foram percebidos ou receberam sentido e valor mas história dos corpos e da maneira como se investiu sobre o que neles há de mais material de mais vivo Outra questão distinta da primeira esta materialidade a que nos referimos não é de fato a do sexo e não seria paradoxal querer fazer uma história da sexualidade no nível dos corpos sem se tratar por menos que seja do sexo Afinal de contas o poder que se exerce através da sexualidade não se dirige especificamente a esse elemento do real que é o sexo o sexo em geral Que a sexualidade não seja um domínio exterior ao poder ao qual ele se imponha que seja ao contrário efeito e instrumento de seus agenciamentos ainda passa Mas o sexo em si não seria o outro relativamente ao poder enquanto para a sexuali pág 142 dade ele seria o foco em torno do qual ela distribui seus efeitos Ora justamente é esta ideia do sexo em geral que não se pode receber sem exame prévio O sexo seria na realidade o ponto de fixação que apóia as manifestações da sexualidade ou ao contrário uma ideia complexa historicamente formada no seio do dispositivo de sexualidade Poderseia mostrar em todo caso de que maneira esta ideia do sexo se formou através das diferentes estratégias de poder e que papel definido desempenhou nisso tudo Ao longo de todas as grandes linhas em que se desenvolveu o dispositivo de sexualidade a partir do século XIX vemos elaborarse essa ideia de que existe algo mais do que corpos órgãos localizações somáticas funções sistemas anátomo fisiológicos sensações prazeres algo diferente e a mais algo que possui suas propriedades intrínsecas e suas leis próprias o sexo Assim no processo de histerização da mulher o sexo foi definido de três maneiras como algo que pertence em comum ao homem e à mulher ou como o que pertence também ao homem por excelência e portanto faz falta à mulher mas ainda como o que constitui por si só o corpo da mulher ordenandoo inteiramente para as funções de reprodução e perturbandoo continuamente pelos efeitos destas mesmas funções a histeria é interpretada nessa estratégia como o jogo do sexo enquanto um e outro tudo e parte princípio e falta Na sexualidade da infância elaborase a ideia de um sexo que está presente em razão da anatomia e ausente do ponto de vista da fisiologia presente também caso se considere sua atividade e deficiente se nos referirmos à sua finalidade reprodutora ou ainda atual em suas manifestações mas escondido em seus efeitos que só aparecerão em sua gravidade patológica mais tarde e no adulto se o sexo da criança ainda estiver presente será sob a forma de uma causalidade secreta que tende a anular o sexo do adulto foi um dos dogmas da medicina dos séculos XVIII e XIX supor que a precocidade sexual provocaria mais tarde a esterilidade a impotência a frigidez a incapacidade de sentir prazer a anestesia dos sentidos sexualizandose a infância constituiuse a ideia de um sexo marcado pelo jogo essencial da presença e da ausência do oculto e do manifesto a masturbação com os pág 143 efeitos que lhe atribuem revelaria de maneira privilegiada este jogo da presença e da ausência do manifesto e do oculto Na psiquiatrização das perversões o sexo foi refe rido a funções biológicas e a um aparelho anátomofisiológico que lhe dá sentido isto é finalidade também a um instinto que através do seu próprio desenvolvimento e de acordo com os objetos a que pode se vincular torna possível o aparecimento das condutas perversas e sua gênese inteligível com isso o sexo se define por um entrelaçamento de função e instinto de finalidade e significação e sob essa forma manifestase melhor do que nunca na perversão modelo nesse fetichismo que pelo menos a partir de 1877 serviu de fio condutor à análise de todos os outros desvios pois nele se lia claramente a fixação do instinto em um objeto à maneira da aderência histórica e da inadequação biológica Enfim na socialização das condutas procriadoras o sexo é descrito como estando preso entre uma lei de realidade cuja forma imediata e mais abrupta são as necessidades econômicas e uma economia de prazer que sempre tenta contornála quando não a desconhece a mais célebre das fraudes o coitus interruptus representa o ponto em que a instância do real obriga a pôr termo ao prazer e em que o prazer ainda consegue se manifestar apesar da economia prescrita pelo real Vemos claramente é o dispositivo de sexualidade que em suas diferentes estratégias instaura essa ideia do sexo e o faz aparecer sob as quatro grandes formas da histeria do onanismo do fetichismo e do coito interrompido como sendo submetido ao 1050 do todo e da parte do princípio e da falta da ausência e da presença do excesso e da deficiência da função e do instinto da finalidade e do sentido do real e do prazer Assim formouse pouco a pouco a armação de uma teoria geral do sexo Ora essa teoria assim engendrada exerceu um certo número de funções no dispositivo de sexualidade que a tornaram indispensável Sobretudo três foram importantes Primeiro a noção de sexo permitiu agrupar de acordo com uma unidade artificial elementos anatômicos funções biológicas condutas sensações e prazeres e permitiu fazer funcionar esta unidade fictícia como princípio causal sentido pág 144 onipresente segredo a descobrir em toda parte o sexo pôde portanto funcionar como significante único e como significado universal Além disso apresentandose unitariamente como anatomia e falha como função e latência como instinto e sentido pôde marcar a linha de contato entre um saber sobre a sexualidade humana e as ciências biológicas da reprodução desse modo aquele saber sem nada receber realmente dessas últimas salvo algumas analogias incertas e uns poucos conceitos transplantados ganhou por privilégio de vizinhança uma garantia de quase cienti ficidade mas através dessa mesma vizinhança certos conteúdos da biologia e da fisiologia puderam servir de princípio de normalidade à sexualidade humana Enfim a noção de sexo garantiu uma reversão essencial permitiu inverter a representação das relações entre o poder e a sexualidade fazendoa aparecer não na sua relação essencial e positiva com o poder porém como ancorada em uma instância específica e irredutível que o poder tenta da melhor maneira sujeitar assim a ideia do sexo permite esquivar o que constitui o poder do poder permite pensálo apenas como lei e interdição O sexo essa instância que parece dominarnos esse segredo que nos parece subjacente a tudo o que somos esse ponto que nos fascina pelo poder que manifesta e pelo sentido que oculta ao qual pedimos revelar o que somos e liberarnos o que nos define o sexo nada mais é do que um ponto ideal tornado necessário pelo dispositivo de sexualidade e por seu funcionamento Não se deve imaginar uma instância autônoma do sexo que produza secundariamente os efeitos múltiplos da sexualidade ao longo de toda a sua superfície de contato com o poder O sexo é ao contrário o elemento mais especulativo mais ideal e igualmente mais interior num dispositivo de sexualidade que o poder organiza em suas captações dos corpos de sua materialidade de suas forças suas energias suas sensações seus prazeres Poderseia acrescentar que o sexo exerce uma outra função ainda que atravessa e sustém as primeiras Papel desta vez mais prático do que teórico É pelo sexo efetivamente ponto imaginário fixado pelo dispositivo de sexualidade que todos devem passar para ter acesso à sua pró pág 145 pria inteligibilidade já que ele é ao mesmo tempo o elemento oculto e o princípio produtor de sentido à totalidade de seu corpo pois ele é uma parte real e ameaçada deste corpo do qual constitui simbolicamente o todo à sua identidade já que ele alia a força de uma pulsão à singularidade de uma história Por uma inversão que começou provavelmente de modo subreptício há muito tempo e já na época da pastoral cristã da carne chegamos ao ponto de procurar nossa inteligibilidade naquilo que foi durante tantos séculos considerado como loucura a plenitude de nosso corpo naquilo que durante muito tempo foi um estigma e como que a ferida neste corpo nossa identidade naquilo que se percebia como obscuro impulso sem nome Daí a importância que lhe atribuímos o temor reverente com que o revestimos a preocupação que temos de conhecêlo Daí o feto de se ter tomado na escala dos séculos mais importante do que nossa alma mais importante do que nossa vida e daí todos os enigmas do mundo nos parecerem tão leves comparados a esse segredo minúsculo em cada um de nós mas cuja densidade o toma mais grave do que todos O pacto feustiano cuja tentação o dispositivo de sexualidade inscreveu em nós é doravante o seguinte trocar a vida inteira pelo próprio sexo pela verdade e a soberania do sexo O sexo bem vale a morte É nesse sentido estritamente histórico como se vê que o sexo hoje em dia é de fato transpassado pelo instinto de morte Quando o Ocidente há muito tempo descobriu o amor concedeulhe bastante valor para tomar a morte aceitável é o sexo quem aspira hoje a essa equivalência a maior de todas E enquanto o dispositivo de sexualidade permite às técnicas de poder investirem sobre a vida o ponto fictício do sexo marcado por esse mesmo dispositivo exerce bastante fascínio sobre cada um para que se aceite escutar nele bramir a morte Com a criação deste elemento imaginário que é o sexo o dispositivo de sexualidade suscitou um de seus princípios internos de funcionamento mais essenciais o desejo do sexo desejo de têlo de aceder a ele de descobrilo liberálo articulá lo em discurso formulálo em verdade Ele constituiu o sexo como desejável E é essa desirabilidade do sexo que fixa cada um de nós à injunção de conhe pág 146 cêlo de descobrir sua lei e seu poder é essa desirabilidade que nos faz acreditar que afirmamos contra todo poder os direitos de nosso sexo quando de fato ela nos vincula ao dispositivo de sexualidade que fez surgir do fundo de nós mesmos como uma miragem onde acreditamos reconhecernos o brilho negro do sexo Tudo é sexo dizia Kate em The plumed serpent tudo é sexo Como o sexo pode ser belo quando o homem o mantém poderoso e sagrado e quando ele preenche o mundo Ele é como o sol que vos inunda que vos penetra com sua luz Portanto não referir uma história da sexualidade à instância do sexo mostrar porém como o sexo se encontra na dependência histórica da sexualidade Não situar o sexo do lado do real e a sexualidade do lado das ideias confusas e ilusões a sexualidade é uma figura histórica muito real e foi ela que suscitou como elemento especulativo necessário ao seu funcionamento a noção do sexo Não acreditar que dizendose sim ao sexo se está dizendo não ao poder ao contrário se está seguindo a linha do dispositivo geral de sexualidade Se por uma inversão tática dos diversos mecanismos da sexualidade quisermos opor os corpos os prazeres os saberes em sua multiplicidade e sua possibilidade de resistência às captações do poder será com relação à instância do sexo que deveremos liberarnos Contra o dispositivo de sexualidade o ponto de apoio do contraataque não deve ser o sexodesejo mas os corpos e os prazeres Houve tanta ação no passado dizia DH Lawrence especialmente ação sexual uma repetição tão monótona e fatigante sem nenhum desenvolvimento paralelo no pensamento e na compreensão Atualmente nossa tarefa é compreender a sexualidade Hoje em dia a compreensão plenamente consciente do instinto sexual importa mais do que o ato sexual Talvez um dia cause surpresa Não se compreenderá que uma civilização tão voltada por outro lado para o pág 147 desenvolvimento de imensos aparelhos de produção e de destruição tenha achado tempo e infinita paciência para se interrogar com tanta ansiedade sobre o que é do sexo talvez haja quem sorria lembrando que esses homens que teremos sido acreditavam que houvesse desse lado uma verdade pelo menos tão preciosa quanto a que tinham procurado na terra nas estrelas e nas formas puras do pensamento talvez cause surpresa a obstinação que tivemos em fingir arrancar de sua obscuridade uma sexualidade que tudo nossos discursos nossos hábitos nossas instituições nossos regulamentos nossos saberes trazia à plena luz e refletia com estrépito E se perguntará por que quisemos tanto suspender a lei do silêncio sobre o que era a mais ruidosa de nossas preocupações O ruído retrospectivamente poderá parecer desmesurado mas ainda mais estranha nossa obstinação em descobrir nele somente a recusa de falar e a ordem de calarse Interrogarseá sobre o que pôde tornarnos tão presunçosos por que nos atribuímos o mérito de termos primeiro que todos emprestado ao sexo contra toda uma moral milenar a importância que dizemos ter e como pudemos glorificarnos por nos termos liberado enfim no século XX de um tempo de longa e dura repressão o tempo de um ascetismo cristão prolongado desviado avaramente impertinentemente utilizado pelos imperativos da economia burguesa E lá onde hoje vemos a história de uma censura dificilmente suprimida reconhecerseá ao contrário a lenta ascensão através dos séculos de um dispositivo complexo para nos fazer falar do sexo para lhe dedicarmos nossa atenção e preocupação para nos fazer acreditar na soberania de sua lei quando de fato somos atingidos pelos mecanismos de poder da sexualidade Rirseá da acusação de pansexualismo que em certo momento se opôs a Freud e à psicanálise Mas os que parecerão cegos serão talvez nem tanto os que a formularam como os que a rejeitaram com um simples gesto como se ela traduzisse somente os temores de uma velha pudicícia Pois os primeiros afinal de contas apenas se surpreenderam com um processo que começara havia muito tempo e que não tinham percebido que já os cercava de todos os lados tinham atribuído exclusivamente ao gênio mau de Freud o pág 148 que estava preparado há muito tempo tinhamse enganado de data quanto à instauração em nossa sociedade de um dispositivo geral de sexualidade Mas os outros erraram quanto à natureza do processo acreditaram que Freud restituía enfim ao sexo por uma reversão súbita a parte que lhe era devida e que lhe fora contestada por tanto tempo não viram que o gênio bom de Freud o colocara em um dos pontos decisivos marcados desde o século XVIII pelas estratégias de saber e de poder e que com isso ele relançava com admirável eficácia digna dos maiores espirituais e diretores da época clássica a injunção secular de conhecer o sexo e colocálo em discurso Evocase com frequência os inúmeros procedimentos pelos quais o cristianismo antigo nos teria feito detestar o corpo mas pensemos um pouco em todos esses ardis pelos quais há vários séculos fizeramnos amar o sexo tornaram desejável para nós conhecêlo e precioso tudo o que se diz a seu respeito pelos quais também incitaramnos a desenvolver todas as nossas habilidades para surpreendêlo e nos vincularam ao dever de extrair dele a verdade pelos quais nos culpabilizaram por têlo desconhecido por tanto tempo São esses ardis que mereceriam espanto hoje em dia E devemos pensar que um dia talvez numa outra economia dos corpos e dos prazeres já não se compreenderá muito bem de que maneira os ardis da sexualidade e do poder que sustêm seu dispositivo conseguiram submeternos a essa austera monarquia do sexo a ponto de votarnos à tarefa infinita de forçar seu segredo e de extorquir a essa sombra as confissões mais verdadeiras Ironia deste dispositivo é preciso acreditarmos que nisso está nossa liberação pág 149 Revisão e formatação Dayse Duarte httpgroupsgooglecombrgroupdigitalsource httpgroupsgooglecombrgroupexpressoliterario
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MICHEL FOUCAULT HISTÓRIA DA SEXUALIDADE I A VONTADE DE SABER Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque 13a Edição httpgroupsgooglecombrgroupdigitalsource Esta obra foi preparada pelo grupo Digital Source para proporcionar de maneira totalmente gratuita o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprála ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler Dessa forma a venda deste ebook ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância Portanto distribua este livro livremente Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras Editions Gallimard Traduzido do original an francês Histoire de la Sexualité I La Volonté de savoir Capa Fernanda Gomes Produção gráfica Orlando Fernandes Preparada pelo Centro de Catalogação na fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Livros RJ Foucault Michel F86h História da sexualidade I A vontade de saber tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque Rio de Janeiro Edições Graal 1988 Do original em francês Histoire de la sexualité I la volonté de savoir Bibliografia 1 Sexualidade História 2 Sexualidade Teoria I Título II Título A Vontade de saber III Série CDD 3014179 30141701 CDU 5778091 770459 5778001 Direitos adquiridos por EDIÇÕES GRAAL Ltda Rua Hermenegildo de Barros 3 1A Glória Rio de Janeiro RJ Tel021 252 8582 que se reserva a propriedade desta tradução 1999 SUMÁRIO I Nós vitorianos 9 II A hipótese repressiva 19 1 a incitação aos discursos 21 2 a implantação perversa 37 III Scientia sexualis 51 IV O dispositivo de sexualidade 73 1 o que está em jogo 79 2 método 88 3 domínio 98 4 periodização 109 V Direito de morte e poder sobre a vida 125 V direito de morte e poder sobre a vida Por muito tempo um dos privilégios característicos do poder soberano fora o direito de vida e morte Sem dúvida ele derivava formalmente da velha pátria potestas que concedia ao pai de família romano o direito de dispor da vida de seus filhos e de seus escravos podia retirarlhes a vida já que a tinha dado O direito de vida e morte como é formulado nos teóricos clássicos é uma fórmula bem atenuada desse poder Entre soberano e súditos já não se admite que seja exercido em termos absolutos e de modo incondicional mas apenas nos casos em que o soberano se encontre exposto em sua própria existência uma espécie de direito de réplica Acaso é ameaçado por inimigos externos que querem derrubálo ou contestar seus direitos Pode então legitimamente entrar em guerra e pedir a seus súditos que tomem parte na defesa do Estado sem se propor diretamente à sua morte élhe lícito exporlhes a vida neste sentido exerce sobre eles um direito indireto de vida e morte23 Mas se foi um deles quem se levantou contra ele e infringiu suas leis então pode exercer um poder direto sobre sua vida matálo a titulo de castigo Encarado nestes termos o direito de vida e morte já não é um privilégio absoluto é condicionado à defesa do soberano e à sua sobre pág 127 vivência enquanto tal Seria o caso de concebêlo com Hobbes como a transposição para o príncipe do direito que todos possuiriam no estado de natureza de defender sua própria vida à custa da morte dos outros Ou devese ver nele um direito específico que aparece com a formação deste ser jurídico novo que é o soberano 24 De qualquer modo o direito de vida e morte sob esta forma moderna relativa e limitada como também sob sua forma antiga e absoluta é um direito assimétrico O soberano só exerce no caso seu direito sobre a vida exercendo seu direito de matar ou contendo o só marca seu poder sobre a vida pela morte que tem condições de exigir O direito 23 S Pufendorf Le Droit de la nature trad de 1734 p 455 24 Da mesma forma que um corpo composto pode ter as qualidades que não se encontram em nenhum dos corpos simples da mistura de que é formado assim também um corpo moral pode ter em virtude da própria união das pessoas que o compõem certos direitos que não revestiam formalmente nenhum dos particulares e que cabe somente aos mentores exercêlos Pufendorf loc cif p 451 que é formulado como de vida e morte é de fato o direito de causar a morte ou de deixar viver Afinal de contas era simbolizado pelo gládio E talvez se devesse relacionar essa figura jurídica a um tipo histórico de sociedade em que o poder se exercia essencialmente como instância de confisco mecanismo de subtração direito de se apropriar de uma parte das riquezas extorsão de produtos de bens de serviços de trabalho e de sangue imposta aos súditos O poder era antes de tudo nesse tipo de sociedade direito de apreensão das coisas do tempo dos corpos e finalmente da vida culminava com o privilégio de se apoderar da vida para suprimila Ora a partir da época clássica o Ocidente conheceu uma transformação muito profunda desses mecanismos de poder O confisco tendeu a não ser mais sua forma principal mas somente uma peça entre outras com funções de incitação de reforço de controle de vigilância de majoração e de organização das forças que lhe são submetidas um poder destinado a produzir forças a fazêlas crescer e a ordenálas mais do que a barrálas dobrálas ou destruílas Com isso o direito de morte tenderá a se deslocar ou pelo menos a se apoiar nas exigências de um poder que gere a vida e a se ordenar em função de seus reclamos Essa morte que se fundamentava no direito do soberano se defender ou pedir que o defendessem vai aparecer como o simples reverso do direito do corpo social de garantir sua própria vida mantêla ou desenvolvêla Contudo jamais as guerras foram tão sangrentas como a partir do século XIX e nunca guardadas as proporções os regimes haviam até pág 128 então praticado tais holocaustos em suas próprias populações Mas esse formidável poder de morte e talvez seja o que lhe empresta uma parte da força e do cinismo com que levou tão longe seus próprios limites apresentase agora como o complemento de um poder que se exerce positivamente sobre a vida que empreende sua gestão sua majoração sua multiplicação o exercício sobre ela de controles precisos e regulações de conjunto As guerras já não se travam em nome do soberano a ser defendido travamse em nome da existência de todos populações inteiras são levadas à destruição mútua em nome da necessidade de viver Os massacres se tornaram vitais Foi como gestores da vida e da sobrevivência dos corpos e da raça que tantos regimes puderam travar tantas guerras causando a morte de tantos homens E por uma reviravolta que permite fechar o círculo quanto mais a tecnologia das guerras voltouse para a destruição exaustiva tanto mais as decisões que as iniciam e as encerram se ordenaram em função da questão nua e crua da sobrevivência A situação atômica se encontra hoje no ponto de chegada desse processo o poder de expor uma população à morte geral é o inverso do poder de garantir a outra sua permanência em vida O princípio poder matar para poder viver que sustentava a tática dos combates tornouse princípio de estratégia entre Estados mas a existência em questão já não é aquela jurídica da soberania é outra biológica de uma população Se o genocídio é de fato o sonho dos poderes modernos não é por uma volta atualmente ao velho direito de matar mas é porque o poder se situa e exerce ao nível da vida da espécie da raça e dos fenômenos maciços de população Poderia ter tomado em outro nível o exemplo da pena de morte Por muito tempo ela foi juntamente com a guerra a outra forma do direito de gládio constituía a resposta do soberano a quem atacava sua vontade sua lei sua pessoa Os que morrem no cadafalso se tornaram cada vez mais raros ao contrário dos que morrem nas guerras Mas foi pelas mesmas razões que estes se tornaram mais numerosos e aqueles mais raros A partir do momento em que o poder assumiu a função de gerir a vida já não é o surgimento pág 129 de sentimentos humanitários mas a razão de ser do poder e a lógica de seu exercício que tornaram cada vez mais difícil a aplicação da pena de morte De que modo um poder viria a exercer suas mais altas prerrogativas e causar a morte se o seu papel mais importante é o de garantir sustentar reforçar multiplicar a vida e pôla em ordem Para um poder deste tipo a pena capital é ao mesmo tempo o limite o escândalo e a contradição Daí o fato de que não se pôde mantêla a não ser invocando nem tanto a enormidade do crime quanto a monstruosidade do criminoso sua incorrigibilidade e a salvaguarda da sociedade São mortos legitimamente aqueles que constituem uma espécie de perigo biológico para os outros Podese dizer que o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida ou devolver à morte Talvez seja assim que se explique esta desqualificação da morte marcada pelo desuso dos rituais que a acompanhavam A preocupação que se tem em esquivar a morte está menos ligado a uma nova angústia que por acaso a torne insuportável para as nossas sociedades do que ao fato de os procedimentos do poder não cansarem de se afastar dela Com a passagem de um mundo para o outro a morte era a substituição de uma soberania terrestre por uma outra singularmente mais poderosa o fausto que a acompanhava era da ordem do cerimonial político Agora é sobre a vida e ao longo de todo o seu desenrolar que o poder estabelece seus pontos de fixação a morte é o limite o momento que lhe escapa ela se torna o ponto mais secreto da existência o mais privado Não deve surpreender que o suicídio outrora crime pois era um modo de usurpar o direito de morte que somente os soberanos o daqui debaixo ou o do além tinham o direito de exercer tenhasê tornado no decorrer do século XIX uma das primeiras condutas que entraram no campo da análise sociológica ele fazia aparecer nas fronteiras e nos interstícios do poder exercido sobre a vida o direito individual e privado de morrer Essa obstinação em morrer tão estranha e contudo tão regular tão constante em suas manifestações portanto tampouco explicável pelas particularidades ou acidentes individuais foi uma das primeiras surpresas de pág 130 uma sociedade em que o poder político acabava de assumir a tarefa de gerir a vida Concretamente esse poder sobre a vida desenvolveuse a partir do século XVII em duas formas principais que não são antitéticas e constituem ao contrário dois pólos de desenvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de relações Um dos pólos o primeiro a ser formado ao que parece centrouse no corpo como máquina no seu adestramento na ampliação de suas aptidões na extorsão de suas forças no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas anátomopolítica do corpo humano O segundo que se formou um pouco mais tarde por volta da metade do século XVIII centrouse no corpoespécie no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos a proliferação os nascimentos e a mortalidade o nível de saúde a duração da vida a longevidade com todas as condições que podem fazêlos variar tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores uma biopolítica da população As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois pólos em tomo dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida A instalação durante a época clássica desta grande tecnologia de duas faces anatômica e biológica individualizante e especificante voltada para os desempenhos do corpo e encarando os processos da vida caracteriza um poder cuja função mais elevada já não é mais matar mas investir sobre a vida de cima a baixo A velha potência da morte em que se simbolizava o poder soberano é agora cuidadosamente recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida Desenvolvimento rápido no decorrer da época clássica das disciplinas diversas escolas colégios casernas ateliês aparecimento também no terreno das práticas políticas e observações econômicas dos problemas de natalidade longevidade saúde pública habitação e migração explosão portanto de técnicas diversas e numerosas para obterem a sujeição dos corpos e o controle das populações Abrese pág 131 assim a era de um triopoder As duas direções em que se desenvolve ainda aparecem nitidamente separadas no século XVIII Do lado da disciplina as instituições como o Exército ou a escola as reflexões sobre a tática a aprendizagem a educação e sobre a ordem das sociedade elas vão das análises propriamente militares do Marechal de Saxe aos sonhos políticos de Guibert ou de Servan Do lado das regulações de população a demografia a estimativa da relação entre recursos e habitantes a tabulação das riquezas e de sua circulação das vidas com sua duração provável Quesnay Moheau Süssmilch A filosofia dos Ideólogos como teoria da ideia do signo da gênese individual das sensações e também da composição social dos interesses a Ideologia como doutrina da aprendizagem mas também do contrato e da formação regulada do corpo social constitui sem dúvida o discurso abstrato em que se procurou coordenar as duas técnicas de poder para elaborar sua teoria geral De fato sua articulação não será feita no nível de um discurso especulativo mas na forma de agenciamentos concretos que constituirão a grande tecnologia do poder no século XIX o dispositivo de sexualidade será um deles e dos mais importantes Este biopoder sem a menor dúvida foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo que só pôde ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fe nômenos de população aos processos econômicos Mas o capitalismo exigiu mais do que isso foilhe necessário o crescimento tanto de seu reforço quanto de sua utilizabilidade e sua docilidade foramlhe necessários métodos de poder capazes de majorar as forças as aptidões a vida em geral sem por isto tornálas mais difíceis de sujeitar se o desenvolvimento dos grandes aparelhos de Estado como instituições de poder garantiu a manutenção das relações de produção os rudimentos de anátomo e de biopolítica inventados no século XVIII como técnicas de poder presentes em todos os níveis do corpo social e utilizadas por instituições bem diversas a família o Exército a escola a polícia a medicina individual ou a administração das coletividades agiram no nível dos processos econômicos do seu desenrolar das for pág 132 ças que estão em ação em tais processos e os sustentam operaram também como fatores de segregação e de hierarquização social agindo sobre as forças respectivas tanto de uns como de outros garantindo relações de dominação e efeitos de hegemonia o ajustamento da acumulação dos homens à do capital a articulação do crescimento dos grupos humanos à expansão das forças produtivas e a repartição diferencial do lucro foram em parte tornados possíveis pelo exercício do biopoder com suas formas e procedimentos múltiplos O investimento sobre o corpo vivo sua valorização e a gestão distributiva de suas forças foram indispensáveis naquele momento Sabemos quantas vezes se colocou a questão do papel que uma moral ascética teria tido em toda a primeira formação do capitalismo mas o que se passou no século XVIII em certos países ocidentais e esteve ligado ao desenvolvimento do capitalismo foi um outro fenômeno talvez de maior amplitude do que essa nova moral que parecia desqualificar o corpo foi nada menos do que a entrada da vida na história isto é a entrada dos fenômenos próprios à vida da espécie humana na ordem do saber e do poder no campo das técnicas políticas Não se trata de pretender que nesse momento tivesse sido produzido o primeiro contato da vida com a história Ao contrário a pressão biológica sobre o histórico fora durante milênios extremamente forte a epidemia e a fome constituíam as duas grandes formas dramáticas desta relação que ficava assim sob o signo da morte por um processo circular o desenvolvimento econômico e principalmente o agrícola do século XVIII o aumento da produtividade e dos recursos ainda mais rapidamente do que o crescimento demográfico por ele favorecido permitiram que se afrouxassem um pouco tais ameaças profundas a era das grandes devastações da fome e da peste salvo alguns recrudescimentos encerrouse antes da Revolução francesa a morte começava a não mais fustigar diretamente a vida Mas ao mesmo tempo o desenvolvimento dos conhecimentos a respeito da vida em geral a melhoria das técnicas agrícolas as observações e medidas visando a vida e a sobrevivência dos homens contribuíam para esse afrouxamento um relativo domínio sobre a vida afastava algumas das imi pág 133 nências da morte No terreno assim conquistado organizandoo e ampliandoo os processos da vida são levados em conta por procedimentos de poder e de saber que tentam controlálos e modificálos O homem ocidental aprende pouco a pouco o que é ser uma espécie viva num mundo vivo ter um corpo condições de existência probabilidade de vida saúde individual e coletiva forças que se podem modificar e um espaço em que se pode repartilas de modo ótimo Pela primeira vez na história sem dúvida o biológico refletese no político o fato de viver não é mais esse sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em tempos no acaso da morte e de sua fatalidade cai em parte no campo de controle do saber e de intervenção do poder Este não estará mais somente a voltas com sujeitos de direito sobre os quais seu último acesso é a morte porém com seres vivos e o império que poderá exercer sobre eles deverá situarse no nível da própria vida é o fato do poder encarregarse da vida mais do que a ameaça da morte que lhe dá acesso ao corpo Se pudéssemos chamar bio história as pressões por meio das quais os movimentos da vida e os processos da história interferem entre si deveríamos falar de biopolítica para designar o que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos e faz do podersaber um agente de transformação da vida humana não é que a vida tenha sido exaustivamente integrada em técnicas que a dominem e gerem ela lhes escapa conti nuamente Fora do mundo ocidental a fome existe numa escala maior do que nunca e os riscos biológicos sofridos pela espécie são talvez maiores e em todo caso mais graves do que antes do nascimento da microbiologia Mas o que se poderia chamar de limiar de modernidade biológica de uma sociedade se situa no momento em que a espécie entra como algo em jogo em suas próprias estratégias políticas O homem durante milênios permaneceu o que era para Aristóteles um animal vivo e além disso capaz de existência política o homem moderno é um animal em cuja política sua vida de ser vivo está em questão Essa transformação teve consequências consideráveis Não é necessário insistir aqui sobre a ruptura que se produziu então no regime do discurso científico e sobre a maneira pág 134 pela qual a dupla problemática da vida e do homem veio atravessar e redistribuir a ordem da epistemê clássica A razão por que a questão do homem foi colocada em sua especificidade de ser vivo e em relação aos outros seres vivos deve ser buscada no novo modo de relação entre a história e a vida nesta posição dupla da vida que a situa fora da história como suas imediações biológicas e ao mesmo tempo dentro da historicidade humana infiltrada por suas técnicas de saber e de poder Não é necessário insistir também sobre a proliferação das tecnologias políticas que a partir de então vão investir sobre o corpo a saúde as maneiras de se alimentar e de morar as condições de vida todo ô espaço da existência Uma outra consequência deste desenvolvimento do biopoder é a importância crescente assumida pela atuação da norma à expensas do sistema jurídico da lei A lei não pode deixar de ser armada e sua arma por excelência é a morte aos que a transgridem ela responde pelo menos como último recurso com esta ameaça absoluta A lei sempre se refere ao gládio Mas um poder que tem a tarefa de se encarregar da vida terá necessidade de mecanismos contínuos reguladores e corretivos Já não se trata de pôr a morte em ação no campo da soberania mas de distribuir os vivos em um domínio de valor e utilidade Um poder dessa natureza tem de qualificar medir avaliar hierarquizar mais do que se manifestar em seu fausto mortífero não tem que traçar a linha que separa os súditos obedientes dos inimigos do soberano opera distribuições em torno da norma Não quero dizer que a lei se apague ou que as instituições de justiça tendam a desaparecer mas que a lei funciona cada vez mais como norma e que a instituição judiciária se integra cada vez mais num contínuo de aparelhos médicos administrativos etc cujas funções são sobretudo reguladoras Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida Por referência às sociedades que conhecemos até o século XVIII nós entramos em uma fase de regressão jurídica as Constituições escritas no mundo inteiro a partir da Revolução francesa os Códigos redigidos e reformados toda uma atividade legislativa permanente e ruidosa não devem iludir pág 135 nos são formas que tomam aceitável um poder essencialmente normalizador E contra esse poder ainda novo no século XIX as forças que resistem se apoiaram exatamente naquilo sobre que ele investe isto é na vida e no homem enquanto ser vivo Desde o século passado as grandes lutas que põem em questão o sistema geral de poder já não se fazem em nome de um retorno aos antigos direitos ou em função do sonho milenar de um ciclo dos tempos e de uma Idade do ouro Já não se espera mais o imperador dos pobres nem o reino dos últimos dias nem mesmo o restabelecimento apenas das justiças que se crêem ancestrais o que é reivindicado e serve de objetivo é a vida entendida como as necessidades fundamentais a essência concreta do homem a realização de suas virtualidades a plenitude do possível Pouco importa que se trate ou não de utopia temos aí um processo bem real de luta a vida como objeto político foi de algum modo tomada ao pé da letra e voltada contra o sistema que tentava controlála Foi a vida muito mais do que o direito que se tornou o objeto das lutas políticas ainda que estas últimas se formulem através de afirmações de direito O direito à vida ao corpo à saúde à felicidade à satisfação das necessidades o direito acima de todas as opressões ou alienações de encontrar o que se é e tudo o que se pode ser esse direito tão incompreensível para o sistema jurídico clássico foi a réplica política a todos esses novos procedimentos de poder que por sua vez também não fazem parte do direito tradicional da soberania Sobre tal pano de fundo podese compreender a importância assumida pelo sexo como foco de disputa política Ê que ele se encontra na articulação entre os dois eixos ao longo dos quais se desenvolveu toda a tecnologia política da vida De um lado faz parte das disciplinas do corpo adestramento intensificação e distribuição das forças ajustamento e economia das energias Do outro o sexo pertence à regulação das populações por todos os efeitos globais que induz Inserese simultaneamente nos dois registros dá lugar a vigilâncias infinitesimais a controles constantes pág 136 a ordenações espaciais de estrema meticulosidade a exames médicos ou psicológicos infinitos a todos um micropoder sobre o corpo mas também dá margem a medidas maciças a estimativas estatísticas a intervenções que visam todo o corpo social ou grupos tomados globalmente O sexo é acesso ao mesmo tempo à vida do corpo e à vida da espécie Servimonos dele como matriz das disciplinas e como princípio das regulações É por isso que no século XIX a sexualidade foi esmiuçada em cada existência nos seus mínimos detalhes foi desencavada nas condutas perseguida nos sonhos suspeitada por trás das mínimas loucuras seguida até os primeiros anos da infância tornouse a chave da individualidade ao mesmo tempo o que permite ana lisála e o que torna possível constituíla Mas vêmola também tornarse tema de operações políticas de intervenções econômicas por meio de incitações ou freios à procriação de campanhas ideológicas de moralização ou de responsabilização é empregada como índice da força de uma sociedade revelando tanto sua energia política como seu vigor biológico De um pólo a outro dessa tecnologia do sexo escalonase toda uma série de táticas diversas que combinam em proporções variadas o objetivo da disciplina do corpo e o da regulação das populações Daí a importância das quatro grandes linhas de ataque ao longo das quais a política do sexo avançou nos últimos dois séculos Cada uma delas foi uma maneira de compor as técnicas disciplinares com os procedimentos reguladores As duas primeiras se apoiaram em exigências de regulação sobre toda uma temática da espécie da descendência da saúde coletiva para obter efeitos ao nível da disciplina a sexualização da criança foi feita sob a forma de uma campanha pela saúde da raça a sexualidade precoce foi apresentada desde o século XVIII até o fim do século XIX como ameaça epidêmica que corre o risco de comprometer não somente a saúde futura dos adultos mas o futuro da sociedade e de toda a espécie a histerização das mulheres que levou a uma medicalização minuciosa de seus corpos de seu sexo fez se em nome da responsabilidade que elas teriam no que diz respeito à saúde de seus filhos à solidez da instituição familiar e à salvação da sociedade Foi pág 137 a relação inversa que ocorreu quanto ao controle da natalidade e à psiquiatrização das perversões neste caso a intervenção era de natureza reguladora mas devia apoiarse na exigência de disciplinas e adestramentos individuais De um modo geral na junção entre o corpo e a população o sexo tornouse o alvo central de um poder que se organiza em torno da gestão da vida mais do que da ameaça da morte Por muito tempo o sangue constituiu um elemento importante nos mecanismos do poder em suas manifestações e rituais Para uma sociedade onde predominam os sistemas de aliança a forma política do soberano a diferenciação em ordens e castas o valor das linhagens para uma sociedade em que a fome as epidemias e as violências tornam a morte iminente o sangue constitui um dos valores essenciais seu preço se deve ao mesmo tempo a seu papel instrumental poder derramar o sangue a seu funcionamento na ordem dos signos ter um certo sangue ser do mesmo sangue disporse a arriscar seu próprio sangue a sua precariedade fácil de derramar sujeito a extinção demasiadamente pronto a se misturar suscetível de se corromper rapidamente Sociedade de sangue ia dizer de sanguinidade honra da guerra e medo das fomes triunfos da morte soberano com gládio verdugo e suplícios o poder falar através do sangue este é uma realidade com função simbólica Quanto a nós estamos em uma sociedade do sexo ou melhor de sexualidade os mecanismos do poder se dirigem ao corpo à vida ao que a faz proliferar ao que reforça a espécie seu vigor sua capacidade de dominar ou sua aptidão para ser utilizada Saúde progenitura raça futuro da espécie vitalidade do corpo social o poder fala da sexualidade e para a sexualidade quanto a esta não é marca ou símbolo é objeto e alvo O que determina sua importância não é tanto sua raridade ou precariedade quanto sua insistência sua presença insidiosa o fato de ser em toda parte provocada e temida O poder a esboça suscitaa e dela se serve como um sentido proliferante de que sempre é preciso retomar o controle para que não escape ela é um efeito com valor de sentido Não pretendo dizer que uma substituição do sangue pelo sexo resuma por si só as transformações que mar pág 138 cam o limiar de nossa modernidade O que tento exprimir não é a alma de duas civilizações ou o princípio organizador de duas formas culturais busco as razões pelas quais a sexualidade longe de ter sido reprimida na sociedade contemporânea está ao contrário sendo permanentemente suscitada Foram os novos procedimentos do poder elaborados durante a época clássica e postos em ação no século XIX que fizeram passar nossas sociedades de uma simbólica do sangue para uma analítica da sexualidade Não é difícil ver que se há algo que se encontra do lado da lei da morte da transgressão do simbólico e da soberania é o sangue a sexualidade quanto a ela encontrase do lado da norma do saber da vida do sentido das disciplinas e das regulamentacões Sade e os primeiros eugenistas são contemporâneos desta passagem da sanguinidade para a sexualidade Mas enquanto os primeiros sonhos de aperfeiçoamento da espécie deslocam todo o problema do sangue para uma gestão bastante coercitiva do sexo arte de determinar os bons casamentos de provocar as fecundidades desejadas de garantir a saúde e a longevidade das crianças enquanto a nova ideia de raça tende a esmaecer as particularidades aristocráticas do sangue para voltarse apenas para os efeitos controláveis do sexo Sade vincula a análise exaustiva do sexo aos mecanismos exasperados do antigo poder de soberania e aos velhos prestígios inteiramente mantidos do sangue este corre ao longo de todo o prazer sangue do suplício e do poder absoluto sangue da casta que se respeita em si mesmo e se derrama contudo nos rituais maiores do parricídio e do incesto sangue do povo que se verte à vontade porque o que corre em suas veias não é digno nem de ser mencionado O sexo em Sade é sem norma sem regra intrínseca que possa ser formulada a partir de sua própria natureza mas é submetido à lei ilimitada de um poder que quanto a ele só conhece sua própria lei se lhe acontece de imporse por puro jogo a ordem das progressões cuidadosamente disciplinadas em jornadas sucessivas tal exercício o conduz a ser somente uma pura questão de soberania única e nua direito ilimitado da monstruosidade onipotente O sangue absorveu o sexo pág 139 De fato a analítica da sexualidade e a simbólica do sangue podem muito bem pertencer em princípio a dois regimes de poder bem distintos mas não se sucederam nem tampouco esses próprios poderes sem justaposições interações ou ecos De diferentes maneiras a preocupação com o sangue e a lei tem obcecado há quase dois séculos a gestão da sexualidade Duas dessas interferências são notáveis uma devido à sua importância histórica outra pelos problemas teóricos que coloca Ocorreu a partir da segunda metade do século XIX que a temática do sangue foi chamada a vivificar e a sustentar com toda uma profundidade histórica o tipo de poder político que se exerce através dos dispositivos de sexualidade O racismo se forma nesse ponto racismo em sua forma moderna estatal biologizante toda uma política do povoamento da família do casamento da educação da hierarquização social da propriedade e uma longa série de intervenções permanentes ao nível do corpo das condutas da saúde da vida quotidiana receberam então cor e justificação em função da preocupação mítica de proteger a pureza do sangue e fazer triunfar a raça Sem dúvida o nazismo foi a combinação mais ingênua e mais ardilosa ardilosa porque ingênua dos fantasmas do sangue com os paroxismos de um poder disciplinar Uma ordenação eugênica da sociedade com o que ela podia comportar de extensão e intensificação dos micropoderes a pretexto de uma estatização ilimitada era acompanhada pela exaltação onírica de um sangue superior esta implicava ao mesmo tempo o genocídio sistemático dos outros e o risco de expor a si mesmo a um sacrifício total E a história quis que a política hitleriana do sexo tenhase tornado uma prática irrisória enquanto o mito do sangue se transformava no maior massacre de que os homens por enquanto tenham lembrança No extremo oposto podese a partir deste mesmo fim do século XIX seguir o esforço teórico para reinscrever a temática da sexualidade no sistema da lei da ordem simbólica e da soberania É uma honra política para a psicanálise ou pelo menos para o que pôde haver nela de mais coerente ter suspeitado e isto desde o seu nascimento ou seja a partir de sua linha de ruptura com a neuropsiquia pág 140 tria da degenerescência do que poderia haver de irreparavelmente proliferante nesses mecanismos de poder que pretendiam controlar e gerir o quotidiano da sexualidade daí o esforço freudiano sem dúvida por reação ao grande crescimento do racismo que lhe foi contemporâneo para dar à sexualidade a lei como princípio a lei da aliança da consanguinidade interdita do PaiSoberano em suma para reunir em torno do desejo toda a antiga ordem do poder A isto a psicanálise deve o fato de ter estado com algumas exceções e no essencial em oposição teórica e prática ao fascismo Mas essa posição da psicanálise esteve ligada a uma conjuntura histórica precisa E nada pode impedir que pensar a ordem do sexual de acordo com a instância da lei da morte do sangue e da soberania com todas as referências a Sade e Bataille com todos os penhores de subversão que se lhes peça seja afinal de contas uma retroversão histórica O dispositivo de sexualidade deve ser pensado a partir das técnicas de poder que lhe são contemporâneas Podem me dizer isso é entrar num historicismo mais precipitado do que radical é esquivar em favor de fenômenos variáveis talvez mas frágeis secundários e sobretudo superficiais a existência biologicamente sólida das funções sexuais é falar da sexualidade como se o sexo não existisse E estariam no direito de me objetar V pretende analisar em detalhe os processos pelos quais o corpo das mulheres a vida das crianças e ás relações familiares e toda uma ampla rede de relações sociais foram sexualizadas V quer descrever esse grande aumento da preocupação sexual desde o século XVIII e a obstinação crescente que tivemos em suspeitar o sexo em toda parte Admitase E suponhamos que os mecanismos de poder foram de fato empregados mais para suscitar e irritar a sexualidade do que para reprimila Mas eis que V permaneceu bem próximo daquilo de que acredita certamente terse distanciado no fundo V mostra fenômenos de difusão de instalação de fixação da sexualidade tenta fazer ver o que se poderia chamar de organização de zonas erógenas no corpo social pode ser muito bem que V tenha apenas transposto para a escala de pág 141 processos difusos mecanismos que a psicanálise identificou com precisão ao nível do indivíduo Mas V elide o ponto de partida para essa sexualização que a psicanálise em si não desconhece a saber o sexo Antes de Freud procuravase localizar a sexualidade da maneira mais estreita no sexo em suas funções de reprodução em suas localizações anatômicas imediatas era restringida a um mínimo biológico órgão instinto finalidade V está por sua vez em posição simétrica e inversa só lhe restam efeitos sem apoio ramificações destituídas de raízes uma sexualidade sem sexo Aqui ainda a castração Nesse ponto devemse distinguir duas questões Por um lado a análise da sexualidade como dispositivo político implicaria necessariamente a elisão do corpo da anatomia do biológico do funcional A essa primeira questão creio que se pode responder não Em todo caso o objetivo da presente investigação é de fato mostrar de que modo se articulam dispositivos de poder diretamente ao corpo a corpo a funções a processos fisiológicos sensações prazeres longe do corpo ter de ser apagado tratase de fazêlo aparecer numa análise em que o biológico e o histórico não constituam sequência como no evolucionismo dos antigos sociólogos mas se liguem de acordo com uma complexidade crescente à medida em que se desenvolvam as tecnologias modernas de poder que tomam por alvo a vida Não uma história das mentalidades portanto que só leve em conta os corpos pela maneira como foram percebidos ou receberam sentido e valor mas história dos corpos e da maneira como se investiu sobre o que neles há de mais material de mais vivo Outra questão distinta da primeira esta materialidade a que nos referimos não é de fato a do sexo e não seria paradoxal querer fazer uma história da sexualidade no nível dos corpos sem se tratar por menos que seja do sexo Afinal de contas o poder que se exerce através da sexualidade não se dirige especificamente a esse elemento do real que é o sexo o sexo em geral Que a sexualidade não seja um domínio exterior ao poder ao qual ele se imponha que seja ao contrário efeito e instrumento de seus agenciamentos ainda passa Mas o sexo em si não seria o outro relativamente ao poder enquanto para a sexuali pág 142 dade ele seria o foco em torno do qual ela distribui seus efeitos Ora justamente é esta ideia do sexo em geral que não se pode receber sem exame prévio O sexo seria na realidade o ponto de fixação que apóia as manifestações da sexualidade ou ao contrário uma ideia complexa historicamente formada no seio do dispositivo de sexualidade Poderseia mostrar em todo caso de que maneira esta ideia do sexo se formou através das diferentes estratégias de poder e que papel definido desempenhou nisso tudo Ao longo de todas as grandes linhas em que se desenvolveu o dispositivo de sexualidade a partir do século XIX vemos elaborarse essa ideia de que existe algo mais do que corpos órgãos localizações somáticas funções sistemas anátomo fisiológicos sensações prazeres algo diferente e a mais algo que possui suas propriedades intrínsecas e suas leis próprias o sexo Assim no processo de histerização da mulher o sexo foi definido de três maneiras como algo que pertence em comum ao homem e à mulher ou como o que pertence também ao homem por excelência e portanto faz falta à mulher mas ainda como o que constitui por si só o corpo da mulher ordenandoo inteiramente para as funções de reprodução e perturbandoo continuamente pelos efeitos destas mesmas funções a histeria é interpretada nessa estratégia como o jogo do sexo enquanto um e outro tudo e parte princípio e falta Na sexualidade da infância elaborase a ideia de um sexo que está presente em razão da anatomia e ausente do ponto de vista da fisiologia presente também caso se considere sua atividade e deficiente se nos referirmos à sua finalidade reprodutora ou ainda atual em suas manifestações mas escondido em seus efeitos que só aparecerão em sua gravidade patológica mais tarde e no adulto se o sexo da criança ainda estiver presente será sob a forma de uma causalidade secreta que tende a anular o sexo do adulto foi um dos dogmas da medicina dos séculos XVIII e XIX supor que a precocidade sexual provocaria mais tarde a esterilidade a impotência a frigidez a incapacidade de sentir prazer a anestesia dos sentidos sexualizandose a infância constituiuse a ideia de um sexo marcado pelo jogo essencial da presença e da ausência do oculto e do manifesto a masturbação com os pág 143 efeitos que lhe atribuem revelaria de maneira privilegiada este jogo da presença e da ausência do manifesto e do oculto Na psiquiatrização das perversões o sexo foi refe rido a funções biológicas e a um aparelho anátomofisiológico que lhe dá sentido isto é finalidade também a um instinto que através do seu próprio desenvolvimento e de acordo com os objetos a que pode se vincular torna possível o aparecimento das condutas perversas e sua gênese inteligível com isso o sexo se define por um entrelaçamento de função e instinto de finalidade e significação e sob essa forma manifestase melhor do que nunca na perversão modelo nesse fetichismo que pelo menos a partir de 1877 serviu de fio condutor à análise de todos os outros desvios pois nele se lia claramente a fixação do instinto em um objeto à maneira da aderência histórica e da inadequação biológica Enfim na socialização das condutas procriadoras o sexo é descrito como estando preso entre uma lei de realidade cuja forma imediata e mais abrupta são as necessidades econômicas e uma economia de prazer que sempre tenta contornála quando não a desconhece a mais célebre das fraudes o coitus interruptus representa o ponto em que a instância do real obriga a pôr termo ao prazer e em que o prazer ainda consegue se manifestar apesar da economia prescrita pelo real Vemos claramente é o dispositivo de sexualidade que em suas diferentes estratégias instaura essa ideia do sexo e o faz aparecer sob as quatro grandes formas da histeria do onanismo do fetichismo e do coito interrompido como sendo submetido ao 1050 do todo e da parte do princípio e da falta da ausência e da presença do excesso e da deficiência da função e do instinto da finalidade e do sentido do real e do prazer Assim formouse pouco a pouco a armação de uma teoria geral do sexo Ora essa teoria assim engendrada exerceu um certo número de funções no dispositivo de sexualidade que a tornaram indispensável Sobretudo três foram importantes Primeiro a noção de sexo permitiu agrupar de acordo com uma unidade artificial elementos anatômicos funções biológicas condutas sensações e prazeres e permitiu fazer funcionar esta unidade fictícia como princípio causal sentido pág 144 onipresente segredo a descobrir em toda parte o sexo pôde portanto funcionar como significante único e como significado universal Além disso apresentandose unitariamente como anatomia e falha como função e latência como instinto e sentido pôde marcar a linha de contato entre um saber sobre a sexualidade humana e as ciências biológicas da reprodução desse modo aquele saber sem nada receber realmente dessas últimas salvo algumas analogias incertas e uns poucos conceitos transplantados ganhou por privilégio de vizinhança uma garantia de quase cienti ficidade mas através dessa mesma vizinhança certos conteúdos da biologia e da fisiologia puderam servir de princípio de normalidade à sexualidade humana Enfim a noção de sexo garantiu uma reversão essencial permitiu inverter a representação das relações entre o poder e a sexualidade fazendoa aparecer não na sua relação essencial e positiva com o poder porém como ancorada em uma instância específica e irredutível que o poder tenta da melhor maneira sujeitar assim a ideia do sexo permite esquivar o que constitui o poder do poder permite pensálo apenas como lei e interdição O sexo essa instância que parece dominarnos esse segredo que nos parece subjacente a tudo o que somos esse ponto que nos fascina pelo poder que manifesta e pelo sentido que oculta ao qual pedimos revelar o que somos e liberarnos o que nos define o sexo nada mais é do que um ponto ideal tornado necessário pelo dispositivo de sexualidade e por seu funcionamento Não se deve imaginar uma instância autônoma do sexo que produza secundariamente os efeitos múltiplos da sexualidade ao longo de toda a sua superfície de contato com o poder O sexo é ao contrário o elemento mais especulativo mais ideal e igualmente mais interior num dispositivo de sexualidade que o poder organiza em suas captações dos corpos de sua materialidade de suas forças suas energias suas sensações seus prazeres Poderseia acrescentar que o sexo exerce uma outra função ainda que atravessa e sustém as primeiras Papel desta vez mais prático do que teórico É pelo sexo efetivamente ponto imaginário fixado pelo dispositivo de sexualidade que todos devem passar para ter acesso à sua pró pág 145 pria inteligibilidade já que ele é ao mesmo tempo o elemento oculto e o princípio produtor de sentido à totalidade de seu corpo pois ele é uma parte real e ameaçada deste corpo do qual constitui simbolicamente o todo à sua identidade já que ele alia a força de uma pulsão à singularidade de uma história Por uma inversão que começou provavelmente de modo subreptício há muito tempo e já na época da pastoral cristã da carne chegamos ao ponto de procurar nossa inteligibilidade naquilo que foi durante tantos séculos considerado como loucura a plenitude de nosso corpo naquilo que durante muito tempo foi um estigma e como que a ferida neste corpo nossa identidade naquilo que se percebia como obscuro impulso sem nome Daí a importância que lhe atribuímos o temor reverente com que o revestimos a preocupação que temos de conhecêlo Daí o feto de se ter tomado na escala dos séculos mais importante do que nossa alma mais importante do que nossa vida e daí todos os enigmas do mundo nos parecerem tão leves comparados a esse segredo minúsculo em cada um de nós mas cuja densidade o toma mais grave do que todos O pacto feustiano cuja tentação o dispositivo de sexualidade inscreveu em nós é doravante o seguinte trocar a vida inteira pelo próprio sexo pela verdade e a soberania do sexo O sexo bem vale a morte É nesse sentido estritamente histórico como se vê que o sexo hoje em dia é de fato transpassado pelo instinto de morte Quando o Ocidente há muito tempo descobriu o amor concedeulhe bastante valor para tomar a morte aceitável é o sexo quem aspira hoje a essa equivalência a maior de todas E enquanto o dispositivo de sexualidade permite às técnicas de poder investirem sobre a vida o ponto fictício do sexo marcado por esse mesmo dispositivo exerce bastante fascínio sobre cada um para que se aceite escutar nele bramir a morte Com a criação deste elemento imaginário que é o sexo o dispositivo de sexualidade suscitou um de seus princípios internos de funcionamento mais essenciais o desejo do sexo desejo de têlo de aceder a ele de descobrilo liberálo articulá lo em discurso formulálo em verdade Ele constituiu o sexo como desejável E é essa desirabilidade do sexo que fixa cada um de nós à injunção de conhe pág 146 cêlo de descobrir sua lei e seu poder é essa desirabilidade que nos faz acreditar que afirmamos contra todo poder os direitos de nosso sexo quando de fato ela nos vincula ao dispositivo de sexualidade que fez surgir do fundo de nós mesmos como uma miragem onde acreditamos reconhecernos o brilho negro do sexo Tudo é sexo dizia Kate em The plumed serpent tudo é sexo Como o sexo pode ser belo quando o homem o mantém poderoso e sagrado e quando ele preenche o mundo Ele é como o sol que vos inunda que vos penetra com sua luz Portanto não referir uma história da sexualidade à instância do sexo mostrar porém como o sexo se encontra na dependência histórica da sexualidade Não situar o sexo do lado do real e a sexualidade do lado das ideias confusas e ilusões a sexualidade é uma figura histórica muito real e foi ela que suscitou como elemento especulativo necessário ao seu funcionamento a noção do sexo Não acreditar que dizendose sim ao sexo se está dizendo não ao poder ao contrário se está seguindo a linha do dispositivo geral de sexualidade Se por uma inversão tática dos diversos mecanismos da sexualidade quisermos opor os corpos os prazeres os saberes em sua multiplicidade e sua possibilidade de resistência às captações do poder será com relação à instância do sexo que deveremos liberarnos Contra o dispositivo de sexualidade o ponto de apoio do contraataque não deve ser o sexodesejo mas os corpos e os prazeres Houve tanta ação no passado dizia DH Lawrence especialmente ação sexual uma repetição tão monótona e fatigante sem nenhum desenvolvimento paralelo no pensamento e na compreensão Atualmente nossa tarefa é compreender a sexualidade Hoje em dia a compreensão plenamente consciente do instinto sexual importa mais do que o ato sexual Talvez um dia cause surpresa Não se compreenderá que uma civilização tão voltada por outro lado para o pág 147 desenvolvimento de imensos aparelhos de produção e de destruição tenha achado tempo e infinita paciência para se interrogar com tanta ansiedade sobre o que é do sexo talvez haja quem sorria lembrando que esses homens que teremos sido acreditavam que houvesse desse lado uma verdade pelo menos tão preciosa quanto a que tinham procurado na terra nas estrelas e nas formas puras do pensamento talvez cause surpresa a obstinação que tivemos em fingir arrancar de sua obscuridade uma sexualidade que tudo nossos discursos nossos hábitos nossas instituições nossos regulamentos nossos saberes trazia à plena luz e refletia com estrépito E se perguntará por que quisemos tanto suspender a lei do silêncio sobre o que era a mais ruidosa de nossas preocupações O ruído retrospectivamente poderá parecer desmesurado mas ainda mais estranha nossa obstinação em descobrir nele somente a recusa de falar e a ordem de calarse Interrogarseá sobre o que pôde tornarnos tão presunçosos por que nos atribuímos o mérito de termos primeiro que todos emprestado ao sexo contra toda uma moral milenar a importância que dizemos ter e como pudemos glorificarnos por nos termos liberado enfim no século XX de um tempo de longa e dura repressão o tempo de um ascetismo cristão prolongado desviado avaramente impertinentemente utilizado pelos imperativos da economia burguesa E lá onde hoje vemos a história de uma censura dificilmente suprimida reconhecerseá ao contrário a lenta ascensão através dos séculos de um dispositivo complexo para nos fazer falar do sexo para lhe dedicarmos nossa atenção e preocupação para nos fazer acreditar na soberania de sua lei quando de fato somos atingidos pelos mecanismos de poder da sexualidade Rirseá da acusação de pansexualismo que em certo momento se opôs a Freud e à psicanálise Mas os que parecerão cegos serão talvez nem tanto os que a formularam como os que a rejeitaram com um simples gesto como se ela traduzisse somente os temores de uma velha pudicícia Pois os primeiros afinal de contas apenas se surpreenderam com um processo que começara havia muito tempo e que não tinham percebido que já os cercava de todos os lados tinham atribuído exclusivamente ao gênio mau de Freud o pág 148 que estava preparado há muito tempo tinhamse enganado de data quanto à instauração em nossa sociedade de um dispositivo geral de sexualidade Mas os outros erraram quanto à natureza do processo acreditaram que Freud restituía enfim ao sexo por uma reversão súbita a parte que lhe era devida e que lhe fora contestada por tanto tempo não viram que o gênio bom de Freud o colocara em um dos pontos decisivos marcados desde o século XVIII pelas estratégias de saber e de poder e que com isso ele relançava com admirável eficácia digna dos maiores espirituais e diretores da época clássica a injunção secular de conhecer o sexo e colocálo em discurso Evocase com frequência os inúmeros procedimentos pelos quais o cristianismo antigo nos teria feito detestar o corpo mas pensemos um pouco em todos esses ardis pelos quais há vários séculos fizeramnos amar o sexo tornaram desejável para nós conhecêlo e precioso tudo o que se diz a seu respeito pelos quais também incitaramnos a desenvolver todas as nossas habilidades para surpreendêlo e nos vincularam ao dever de extrair dele a verdade pelos quais nos culpabilizaram por têlo desconhecido por tanto tempo São esses ardis que mereceriam espanto hoje em dia E devemos pensar que um dia talvez numa outra economia dos corpos e dos prazeres já não se compreenderá muito bem de que maneira os ardis da sexualidade e do poder que sustêm seu dispositivo conseguiram submeternos a essa austera monarquia do sexo a ponto de votarnos à tarefa infinita de forçar seu segredo e de extorquir a essa sombra as confissões mais verdadeiras Ironia deste dispositivo é preciso acreditarmos que nisso está nossa liberação pág 149 Revisão e formatação Dayse Duarte httpgroupsgooglecombrgroupdigitalsource httpgroupsgooglecombrgroupexpressoliterario