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DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos bem como o simples teste da qualidade da obra com o fim exclusivo de compra futura É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda aluguel ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa Você pode encontrar mais obras em nosso site LeLivrosInfo ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento e não mais lutando por dinheiro e poder então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível Marc Bloch Apologia da História ou O Ofício de Historiador Edição anotada por Étienne Bloch Prefácio Jacques Le Goff Apresentação à edição brasileira Lilia Moritz Schw arcz Tradução André Telles Sumário Apresentação à edição brasileira por Lilia Moritz Schwarcz Prefácio por Jacques Le Goff A Lucien Febvre à guisa de dedicatória Introdução Capítulo I A história os homens e o tempo 1 A escolha do historiador 2 A história e os homens 3 O tempo histórico 4 O ídolo das origens 5 Passado e presente Capítulo II A observação histórica 1 Características gerais da observação histórica 2 Os testemunhos 3 A transmissão dos testemunhos Capítulo III A crítica 1 Esboço de uma história do método crítico 2 Em busca da mentira e do erro 3 Tentativa de uma lógica do método crítico Capítulo IV A análise histórica 1 Julgar ou compreender 2 Da diversidade dos fatos humanos à unidade de consciência 3 A nomenclatura 4 Sem título Capítulo V Sem título Apresentação à edição brasileira Por uma historiografia da reflexão Segundo um velho provérbio árabe os homens se parecem mais com sua época do que com seus pais Ditos pretensamente ingênuos fazem mais do que simplesmente dispor sobre o óbvio muitas vezes anunciam tendências ou expõem de forma sintética sentimentos e expectativas Na verdade foi essa fórmula que Marc Bloch o grande historiador medievalista francês sempre buscou Contra uma historiografia positiva e événementielle conforme designaram F Simiand e P Lacombe que se apoiava em fatos grandes nomes e heróis e assim constituía pautas e agendas históricas naturalizadas Bloch inaugurou a noção de história como problema Em primeiro lugar a história não seria mais entendida como uma ciência do passado uma vez que segundo Bloch passado não é objeto de ciência Ao contrário era no jogo entre a importância do presente para a compreensão do passado e viceversa que a partida era de fato jogada Nessa formulação pretensamente simples estava exposto o método regressivo temas do presente condicionam e delimitam o retorno possível ao passado Tal qual um dom das fadas a história faria com que o passado retornasse porém não de maneira intocada e pura Por isso mesmo Bloch preferia trocar os termos da equação e provocar dizendo que assim como a história não era a ciência do passado também não poderia ser definida como uma ciência do homem Entre tantos nãos sobrava porém espaço para a conclusão a história seria talvez a ciência dos homens ou melhor dos homens no tempo Não estamos longe da definição de Lucien Febvre um especialista no século XVI o qual junto com Marc Bloch fundou nos idos de 1929 a prestigiosa escola dos Annales que teria papel fundamental na constituição de um novo modelo de historiografia Segundo Febvre a história era filha de seu tempo o que já demonstrava a intenção do grupo de problematizar o próprio fazer histórico e sua capacidade de observar Cada época elenca novos temas que no fundo falam mais de suas próprias inquietações e convicções do que de tempos memoráveis cuja lógica pode ser descoberta de uma vez só A mesma postura crítica escorregava para a análise dos documentos que deixavam de representar fontes inoculadas e por si só verdadeiras Documentos são vestígios diz Marc Bloch contrapondose à versão da época que definia o passado como um dado rígido que ninguém altera ou modifica Longe dessa postura mais ontológica e reificadora para o historiador francês o passado era uma estrutura em progresso Segundo Bloch mesmo o mais claro e complacente dos documentos não fala senão quando se sabe interrogálo É a pergunta que fazemos que condiciona a análise e no limite eleva ou diminui a importância de um texto retirado de um momento afastado Novos tempos levam a novas historicidades boas perguntas constituem campos inesperados Diante da insistência de Alice em saber qual a melhor formulação assim reagia Humpty Dumpty na famosa história de Lewis Carrol A questão é quem é o senhor quem é o dono das perguntas Nenhum objeto tem movimento na sociedade humana exceto pela significação que os homens lhe atribuem e são as questões que condicionam os objetos e não o oposto Esse tipo de visão crítica oposta aos modelos mais tradicionais de historiografia que acreditavam naquilo que Le Goff chamou de imperialismo dos documentos marcou Marc Bloch e toda a primeira geração dos Annales Tratavase de uma espécie de guerra de trincheiras contra a história exclusivamente política e militar uma história até então segura e tranquila diante dos eventos e da realidade que buscava anunciar Os tempos eram decididamente outros assim como foi diferente a carreira do ainda jovem historiador Marc Bloch Tendo frequentado a École Normale até o ano de 1908 lá entrou em contato com a obra de LévyBruhl autor que advogava a ideia da existência de ideias definidoras de diferentes momentos civilizatórios e sobretudo de Émile Durkheim declaradamente sua maior influência Foi a partir da análise da obra do sociólogo e da revista Année Sociologique que Bloch reconheceu a importância da interdisciplinaridade e de revestir a prática da história de questões de fôlego mais amplo e afeitas a durações mais longas Atento aos problemas de seu próprio mundo Bloch optou porém pela história medieval e especializouse na Île de France sobre a qual publicou em 1913 seu primeiro estudo Já nesse momento a noção de problema surgia expressa quando Bloch questionava o conceito de região e alegava que este variava em função da questão que se tinha em mente Mas foi definitivamente na atmosfera da faculdade de letras da Universidade de Estrasburgo onde foi nomeado chargé de cours e maître de conférences em dezembro de 1919 e professeur em 1921 que Bloch conheceu um verdadeiro ambiente intelectual Nos anos após a I Guerra Mundial Estrasburgo recémdesanexada da Alemanha representava um ambiente renovado e aberto ao intercâmbio entre disciplinas e ideias Assim que a guerra termina a cidade se converte em uma espécie de vitrine intelectual francesa diante do mundo germânico e nosso historiador tira bom proveito da situação Bloch após ter lutado na Grande Guerra retorna dela em 15 de novembro de 1914 ferido e doente o suficiente para ser colocado na retaguarda No entanto no período de repouso aproveita para dar forma escrita às suas memórias e esboça uma série de temas que seriam retomados e transformados em livro só em 1940 quando publica LÉtrange défaite A estranha derrota Nesse contexto porém e amparado pela experiência de tantos colegas provenientes de outras áreas e disciplinas Bloch usa a vivência do front para pensar em temas da psicologia coletiva ou melhor em uma história da psicologia coletiva É nesse contexto intelectual também que conhece uma série de colegas cujas obras serão decisivas em sua carreira O especialista em Antiguidade romana André Piganiol o medievalista CharlesEdmond Perrin o sociólogo Gabriel Le Bras o geógrafo Henri Baulig o médico e psicólogo Charles Blondel e o sociólogo Maurice Halbwachs cujo estudo sobre a estrutura da memória social teve grande impacto no pensamento de Marc Bloch Mas Estrasburgo significou mais Foi lá que Bloch conviveu com o historiador da Revolução Francesa Georges Lefebre e acima de tudo com Lucien Febvre com quem se encontrou diariamente entre 1920 e 1933 De certa maneira a riqueza do grupo de professores ajuda a entender se não a força do livro que Bloch estava por terminar ao menos a importância de seu desafio e o tamanho da empreitada Em 1924 Marc Bloch publica Os reis taumaturgos obra que procurava entender o poder de toque praticado pelos monarcas ingleses e franceses durante a Idade Média e até o século XVIII Dizia a crença que os soberanos teriam o poder de curar os doentes de escrófulas uma moléstia de pele então conhecida como mal dos reis O tema permitia adentrar terrenos desconhecidos da psicologia religiosa assim como a seara das assim chamadas ilusões coletivas Ao fim e ao cabo Bloch reconhecia ter feito uma história do milagre isto é do desejo do milagre Como confessava o historiador o que criava a fé no milagre era a ideia de que deveria haver um milagre Investindo em uma história de longa duração de períodos históricos mais alargados e estruturas que se modificavam de maneira mais lenta e preguiçosa Bloch tornavase uma espécie de fundador da antropologia histórica ao selecionar eventos marcados pelo seu contexto mas acionados por estruturas e permanências sincrônicas anteriores ao momento mais imediato Em questão estava o poder monárquico mas também e igualmente crenças e ritos medicina popular e mentalidades Estávamos longe muito longe de uma história mais tradicional fiel a datas e nomes positivamente delimitados No fenômeno selecionado Bloch pretendia ter encontrado representações coletivas conceito retirado da sociologia de Émile Durkheim que mostrava o manejo complexo entre modelos individuais e sociais Como dizia o sociólogo A lógica da sociedade não é igual à soma dos indivíduos abrindose assim um campo próprio para pensar na lógica social e em suas especificidades Mas Bloch seria lembrado ainda mais por seus passos seguintes Em 1928 toma a iniciativa de ressuscitar velhos projetos que incluíam a ideia de fundar uma revista histórica Diante da negativa de Pirenne Bloch e Febvre tornamse editores da revista dos Annales publicação essa que daria origem a todo um movimento de renovação na historiografia francesa e que está na base do que hoje chamamos de Nova História Nos primeiros números e apesar do predomínio de artigos de historiadores econômicos ficavam expressas as prerrogativas do grupo o combate a uma história narrativa e do acontecimento a exaltação de uma historiografia do problema a importância de uma produção voltada para todas as atividades humanas e não só à dimensão política e por fim a necessária colaboração interdisciplinar A carreira de Bloch daí por diante seria brilhante mas breve e cortada pela guerra Em 1931 publica um livro sobre a história rural francesa onde sintetiza uma série de questões sobre o tema usando fontes também literárias Nessa obra o historiador aplica seu método regressivo buscando ler a história ao inverso e utilizandose de temas do presente Em 1939 é a vez de A sociedade feudal texto em que elabora outro grande painel sobre a história europeia de 900 a 1300 De maneira direta os estudos de Bloch junto com os de Lucien Febvre convertiamse em motes de ataque aos modelos mais empíricos assim como libelos de defesa de um novo tipo de história identificada no grupo seleto dos Annales A II Guerra Mundial significou no entanto um bloqueio aos espíritos que andavam assim soltos e animados Mesmo contando com 53 anos Bloch resolve alistarse mais uma vez no exército avaliando a responsabilidade social em jogo naquela ocasião Diante da derrota francesa retorna à vida acadêmica por pouco tempo entrando em 1943 para a Resistência do grupo de Lyon Preso no ano de 1944 o historiador mesmo em condições absolutamente desfavoráveis passa seu tempo redigindo Desse período resultam dois pequenos livros escritos entre quatro paredes sólidas O primeiro deles já comentamos brevemente é A estranha derrota obra que associa a experiência particular das duas guerras e se debruça sobre a derrota francesa de 1939 O segundo texto nos interessa mais de perto Tratase exatamente de Apologia da história ou O ofício de historiador obra inacabada que traz reflexões sobre método objetos e documentação histórica Isolado longe da família e das notícias que falavam do destino a um só tempo trágico e desastroso da França que até então parecia resistir à invasão alemã Marc Bloch redigia um pequeno ensaio até hoje uma peça preciosa para a compreensão desse movimento que revolucionou a historiografia Nesse ensaio a política ronda por perto Não é à toa que Marc Bloch tenha escrito que a história serve à ação No entanto e apesar de estar diante de situações tão radicais Bloch não dá receitas fáceis e não faz da história um exercício de reflexo imediato da política ou uma resposta pragmática qualquer Por certo não seria Bloch quem pediria o afastamento da ação Ao contrário seus conselhos são do calibre daqueles que vivem a violência de perto muito perto Não se recua diante da responsabilidade E em matéria intelectual horror da responsabilidade não é sentimento muito recomendável Mas não basta reagir ao contexto e aos ditames do momento presente a tarefa intelectual parece se impor de forma paralela e o rigor reassume sua importância mesmo diante de tantos impedimentos Os tempos eram porém difíceis e como dizia Bloch a história se encontra desfavorável às certezas Torturado pela Gestapo e depois fuzilado em 16 de julho de 1944 em Saint Didier de Formans perto de Lyon por causa de sua participação na Resistência francesa Bloch deixou com essa obra um legado e como que desdenhou daqueles que deram fim à sua vida Como escreveu nesse seu último livro os historiadores são obrigados a refletir sobre hesitações e arrependimentos Se isso tudo é verdade dessa vez Bloch não falou em causa própria Poucas vezes hesitou e pouco teve para se arrepender ou lamentar Foi sobretudo um homem de seu tempo quando se engajou nas causas que se apresentavam bem diante de seus olhos mas esteve à frente de todos quando não permitiu que os males do momento contaminassem sua capacidade de reflexão Seu ensaio que restou sem final como quem nada quer era antes a prova de que os eventos passam mas os grandes pensadores ficam e se perpetuam Nada como reproduzir a nota humilde deixada por Bloch em um pé de página Talvez não seja inútil acrescentar ainda uma palavra de desculpas as circunstâncias de minha vida atual a impossibilidade em que me encontro de ter acesso a uma biblioteca a perda de meus próprios livros fazem com que deva me fiar bastante em minhas notas e em minha memória As leituras complementares as verificações exigidas pelas próprias leis do ofício cujas práticas me proponho a descrever permanecem para mim frequentemente proibidas Será que um dia poderei preencher essas lacunas Nunca inteiramente receio Só posso sobre isso solicitar a indulgência diria assumir a culpa se isso não fosse assumir mais do que seria legítimo as culpas do destino O destino não quis e a culpa de Bloch é antes a culpa de cada um de nós O final abrupto do livro surge quase como um constrangedor silêncio Mais do que a falta de notas e referências que antes sinalizam a extrema erudição do historiador fica a ausência gritante de um ponto final Dizia Bloch causas não são postuladas são buscadas e assim o texto se cala por mais que o leitor angustiado com esse término inesperado tente ler nas entrelinhas ou em algum outro sinal que ficou sem querer ficar Causas não devem ser postuladas assim como não se explicam a violência da guerra e os radicalismos cometidos em nome dela Mesmo nesses contextos extremos em que a realidade se torna mais do que confusa inomeável Bloch defendeu a autonomia da reflexão e a ideia de que a responsabilidade e a necessária militância não eram sinônimos de fórmulas acabadas e índices milagrosos Dizem que os bons pensadores sobrevivem às suas obras nesse caso o provérbio é literalmente verdadeiro LILIA MORITZ SCHWARCZ Depto de Antropologia USP Esta obra é dedicada à Associação Marc Bloch criada em 19923 presidida por Emmanuel LeroyLadurie professor no Collège de France na esperança de corresponder a um dos objetivos da associação estimular a edição e a difusão das obras já publicadas de Marc Bloch e também as ainda inéditas Prefácio Devemos comemorar a publicação dessa nova edição da obra póstuma e inacabada de Marc Bloch Apologia da história ou O ofício de historiador anotada por seu filho primogênito Étienne Bloch Sabemos que o grande historiador cofundador em 1929 da revista Annales então intitulada Annales dHistoire Économique et Sociale e atualmente Annales Économies Sociétés Civilisations que havia sido obrigado a se esconder pois era judeu sob o regime de Vichy entrou em 1943 na rede FrancTireur de la Résistance em Lyon tendo sido fuzilado pelos alemães em 16 de junho de 1944 nos arredores desta cidade Foi uma das vítimas de Klaus Barbie Marc Bloch deixava inacabado em seus papéis um trabalho de metodologia histórica composto no final de sua vida intitulado Apologie de lhistoire o qual foi finalmente publicado em 1949 por Lucien Febvre sob o título Apologie de lhistoire ou Métier dhistorien Não farei aqui um estudo sistemático do texto confrontandoo com a obra anterior de Marc Bloch publicada ou ainda inédita em 1944 Será contudo importante avaliar se Apologia da história traduz essencialmente a conformação da metodologia aplicada por Marc Bloch em sua obra ou se marca uma etapa nova de sua reflexão e de seus projetos Deixarei de lado portanto o estudo que exigiria uma pesquisa de fôlego sobre uma comparação entre esse texto e outros textos metodológicos do final do século XIX e da primeira metade do século XX em particular sobre a oposição entre esse texto e a célebre Introdução aos estudos históricos de Langlois e Seignobos 1901 que o próprio Marc Bloch considera como demonstra a nota 1 de seu manuscrito ver nota à p41 um horror apesar da homenagem que presta a esses dois historiadores que foram seus professores Nada de surpreendente nisso pois os Annales são desde sua criação apresentados como o órgão de um combate contra a concepção da história definida por Langlois e Seignobos Esforçandome por ser o discípulo póstumo já que infelizmente não pude conhecer Marc Bloch desse grande historiador cuja obra e ideias foram para mim e continuam sendo as mais importantes em minha formação e minha prática de historiador e honrado por ter me tornado em 1969 graças a Fernand Braudel grande herdeiro de Lucien Febvre e de Marc Bloch codiretor dos Annales tentarei simplesmente nas páginas que vão se seguir exprimir as reações de um historiador de hoje um historiador que se situa na tradição de Marc Bloch e dos Annales e que se empenha em praticar no que lhes diz respeito a fidelidade definida por este último ao assinalar na nota evocada acima que a fidelidade não exclui a crítica Minha intenção é tentar dizer o que significava esse texto no contexto geral da historiografia em particular da historiografia francesa em 1944 e o que ainda significa atualmente O título e o subtítulo Apologia da história ou Como e por que trabalha um historiador exprimem bem as intenções de Marc Bloch Essa obra é em primeiro lugar uma defesa da história Essa defesa se exerce contra ataques explícitos por ele evocados na obra em especial os de Paul Valéry mas também contra a evolução real ou possível de um conhecimento científico do qual a história seria repelida para as margens ou até excluída Podese também pensar que Marc Bloch pretende defendêla contra os historiadores que a seu ver acreditam a ela servir mas a prejudicam Enfim e é acho um dos pontos fortes da obra ele faz questão de marcar as distâncias do historiador em relação a sociólogos ou economistas cujo pensamento lhe interessa mas onde enxerga também perigos para a disciplina histórica Será veremos o caso de Émile Durkheim ou de François Simiand O subtítulo definitivo O ofício de historiador que substituirá pertinentemente o primeiro subtítulo ressalta outra preocupação de Marc Bloch definir o historiador como um homem de ofício investigar suas práticas de trabalho e seus objetivos científicos e como veremos inclusive para além da própria ciência O que o título não diz mas o texto sim é que Marc Bloch não se contenta em definir a história e o ofício de historiador mas quer também assinalar o que deve ser a história e como deve trabalhar o historiador Antes de resumir minha leitura do texto de Marc Bloch gostaria de destacar a extraordinária capacidade desse historiador de transformar seu presente vivido em reflexão histórica Sabemos que esse grande dom se exprimirá sobretudo na redação de LÉtrange défaite provavelmente o estudo mais perspicaz realizado até hoje sobre causas e aspectos da derrota francesa de 1940 Marc Bloch refletiu sobre o acontecimento no calor da hora e o analisou praticamente sem dispor de qualquer arquivo qualquer documentação a princípio necessária ao historiador fez entretanto obra de história e não de jornalista Pois mesmo os melhores jornalistas permanecem colados ao acontecimento Ora desde junho de 1940 quando se encontra na Rennes ocupada longe de qualquer biblioteca Bloch aproveita lazeres ameaçadores preparados para ele por um estranho destino para refletir em um texto que como escreve assume necessariamente nas circunstâncias em que é elaborado o aspecto de um testamento sobre o problema da legitimidade da história e esboçar algumas das ideias chave do que será a Apologia da história Irei me deter um pouco na Introdução desse texto pois ela enuncia algumas das ideiasforça da obra projetada Como ponto de partida Marc Bloch toma a interrogação de um filho lhe perguntando para que serve a história Essa confidência não apenas nos mostra um homem tanto pai de família como servo de sua obra como nos introduz ao cerne de uma de suas convicções a obrigação de o historiador difundir e explicar seus trabalhos Ele deve diz saber falar no mesmo tom aos doutos e aos estudantes e salienta que simplicidade tão apurada é privilégio de alguns raros eleitos Nem que fosse por essa única afirmação essa obra permanece hoje em dia quando o jargão também invadiu tantos livros de história de uma atualidade espantosa A própria expressão legitimidade da história empregada por Marc Bloch desde as primeiras linhas mostra que para ele o problema epistemológico da história não é apenas um problema intelectual e científico mas também um problema cívico e mesmo moral O historiador tem responsabilidades e deve prestar contas Marc Bloch coloca assim o historiador entre os artesãos que devem dar provas de consciência profissional mas e aí está a marca de seu gênio ao pensar imediatamente na longa duração histórica o debate ultrapassa em muito os pequenos escrúpulos de uma moral corporativa Nossa civilização ocidental inteira está interessada nele Eis simultaneamente afirmadas a civilização como objeto privilegiado do historiador e a disciplina histórica como testemunha e parte integrante da civilização E imediatamente numa perspectiva de história comparativa Marc Bloch assinala que diferentemente de outros tipos de cultura a civilização ocidental sempre esperou muito de sua memória e assim é introduzido um par fundamental para o historiador e para o amante da história história e memória memória que é uma das principais matériasprimas da história mas que não se identifica com ela Logo a seguir é apresentada a explicação de um fenômeno que não é apenas constatado Essa atenção em relação à memória é ao mesmo tempo para o Ocidente herança da Antiguidade e herança do cristianismo Seguemse algumas linhas resumidas por uma fórmula lapidar da qual talvez ainda não se tenha extraído toda a fecundidade O cristianismo é uma religião de historiadores A esse propósito Marc Bloch menciona dois fenômenos que para ele estão no cerne da história a duração de um lado matéria concreta do tempo e a aventura de outro forma individual e coletiva da vida dos homens arrastados ao mesmo tempo pelos sistemas que os superam e confrontados a um acaso no qual se exprime com frequência a mobilidade da história Marc Bloch também falará mais adiante das aventuras do corpo Embora depois Marc Bloch estime que os franceses mostram menos interesse por sua história do que os alemães pela sua não estou seguro de que tenha razão Mas creio que temos aí a expressão de um sentimento profundo de Marc Bloch a respeito dos alemães sentimento que advém tanto da experiência de sua temporada estudantil na Alemanha em 19078 como de sua experiência de historiador Há na historiografia alemã e na própria história alemã Marc Bloch não esqueçamos escreveu durante a guerra uma orientação perigosa vinda do passado vinda da história Esse juízo emitido sobre as relações dos franceses com sua história também é marcado pela angústia da derrota e o pessimismo no qual vive Marc Bloch o leva a previsões apocalípticas Segundo ele se os historiadores não ficarem vigilantes a história arriscase a naufragar no descrédito e desaparecer de nossa civilização Tratase naturalmente da história como disciplina histórica e Marc Bloch tem consciência de que diferentemente da história coextensiva à vida humana a ciência histórica é um fenômeno ele mesmo histórico submetido às condições históricas Legitimidade da história mas também fragilidade da história Entretanto mal Marc Bloch evocou esse apocalíptico fim da história seu olhar mais lúcido de historiador alimentado pelo otimismo fundamental do homem propõe uma visão dos acontecimentos históricos mais serena e mais esperançosa Nossas tristes sociedades diz e a proximidade com os Tristes trópicos de Claude LéviStrauss me parece impressionante põemse a duvidar de si próprias e se perguntam se o passado não é culpado seja por têlas enganado seja por não terem sabido interrogálo Mas a explicação de suas angústias é que essas tristes sociedades estão em perpétua crise de crescimento ali onde outros historiadores teriam falado de declínio de decadência Marc Bloch que analisou tanto períodos de crise como períodos de mutação de crescimento confere de novo um sentido positivo e uma esperança a essas sociedades e aos movimentos da história Entrar no teor deste livro é portanto grave Tratase de um tema sério abordado em uma situação dramática No entanto Marc Bloch logo reencontra e repete uma das virtudes da história ela distrai Antes do desejo de conhecimento ela é estimulada pelo simples gosto E eis reabilitados num lugar decerto marginal limitado a curiosidade e o romance histórico colocados a serviço da história os leitores de Alexandre Dumas talvez não sejam senão historiadores em potencial É preciso portanto para fazer a boa história para ensiná la para fazêla ser amada não esquecer que ao lado de suas necessárias austeridades a história tem seus gozos estéticos próprios Do mesmo modo ao lado do necessário rigor ligado à erudição e à investigação dos mecanismos históricos existe a volúpia de apreender coisas singulares daí esse conselho que me parece também muito benvindo ainda hoje Evitemos retirar de nossa ciência sua parte de poesia Escutemos bem Marc Bloch Ele não diz a história é uma arte a história é literatura Frisa a história é uma ciência mas uma ciência que tem como uma de suas características o que pode significar sua fraqueza mas também sua virtude ser poética pois não pode ser reduzida a abstrações a leis a estruturas Buscando definir a utilidade da história Marc Bloch encontra então o ponto de vista dos positivistas e sempre preocupado em distinguir os historiadores peculiares dos historiadores sistemáticos acrescenta de estrita observância Seria preciso um estudo aprofundado desse termo e de seu uso por Marc Bloch e pelos historiadores dos Annales Hoje em dia ele provoca reticência e até mesmo hostilidade inclusive em historiadores abertos ao espírito dos Annales Apenas posso esboçar aqui as orientações de uma pesquisa e de uma reflexão Os historiadores positivistas visados por Marc Bloch são marcados pela filosofia positivista do final do século XIX a escola de Augusto Comte que era uma filosofia ainda dominante através de nuances muitas vezes profundas pois Renouvier por exemplo morto em 1903 muitas vezes qualificado de positivista é bem diferente de um simples discípulo de Comte e que constituía o fundo da ideologia filosófica na França na época em que Marc Bloch era estudante Mas também elaboraram um pensamento específico no domínio da história e esse pensamento que tinha o mérito que Marc Bloch não lhe negava de buscar dar fundamentos objetivos científicos à demarche histórica apresentava sobretudo o grande inconveniente empobrecendo o historicismo alemão do final do século XIX de limitar a história à estrita observação dos fatos à ausência de moralização e de ornamento à pura verdade histórica diagnóstico do americano Adams desde 1884 O que Marc Bloch não aceitava em seu mestre Charles Seignobos principal representante desses historiadores positivistas era iniciar o trabalho do historiador somente com a coleta dos fatos ao passo que uma fase anterior essencial exige do historiador a consciência de que o fato histórico não é um fato positivo mas o produto de uma construção ativa de sua parte para transformar a fonte em documento e em seguida constituir esses documentos esses fatos históricos em problema Eis o sentido do positivismo recriminado nesses historiadores positivismo que se tinge de utilitarismo quando em vez de fazerem a história total eles reduzem o trabalho histórico ao que lhes parece capaz de servir à ação Marc Bloch então apela com força à especificidade à aparente inutilidade de um esforço intelectual desinteressado Encontra na disciplina histórica uma tendência própria ao homem em geral a história nesse sentido também é uma ciência humana Seria infligir à humanidade uma estranha mutilação recusarlhe o direito de buscar fora de qualquer preocupação de bemestar o apaziguamento de suas fomes intelectuais Aqui aparecem duas palavraschave para compreender o temperamento de historiador de Marc Bloch Mutilação Bloch recusa uma história que mutilaria o homem a verdadeira história interessase pelo homem integral com seu corpo sua sensibilidade sua mentalidade e não apenas suas ideias e atos e que mutilaria a própria história esforço total para apreender o homem na sociedade e no tempo Fome a palavra já evoca a célebre frase inscrita desde o primeiro capítulo do livro O bom historiador se parece com o ogro da lenda Onde fareja carne humana sabe que ali está sua caça Marc Bloch é um faminto um faminto de história um faminto de homens dentro da história O historiador deve ter apetite É um comedor de homens Marc Bloch me faz pensar naquele teólogo parisiense da segunda metade do século XII por sua vez devorador de livros onde buscava também a vida e a história Petrus Comestor Pedro o Comedor Embora não seja positivista para Marc Bloch a história não deixa de ser uma ciência e uma de suas preocupações mais agudas neste livro é o apelo constante às ciências matemáticas às ciências da natureza às ciências da vida Não para daí extrair receitas para a história Marc Bloch recorreu à estatística de uso limitado para um medievalista e pertence ao período anterior à história quantitativa Mas para indicar a unidade do campo do saber mesmo com a história já tendo conquistado sua autonomia como paradigma Não sentimos mais a obrigação de buscar impor a todos os objetos do conhecimento um modelo intelectual uniforme inspirado nas ciências da natureza física Uma mesma condição todavia autentica as verdadeiras ciências As únicas ciências autênticas são aquelas que conseguem estabelecer ligações explicativas entre os fenômenos A história portanto para ter seu lugar entre as ciências deve propor em lugar de uma simples enumeração uma classificação racional e uma progressiva inteligibilidade Marc Bloch não pede à história que defina falsas leis as quais a intrusão incessante do acaso torna impossíveis Mas não a concebe válida senão penetrada de razão e de inteligibilidade o que situa sua cientificidade não do lado da natureza de seu objeto mas da démarche e do método do historiador A história deve portanto se colocar numa dupla situação o ponto que como cada disciplina ela atingiu na curva de seu desenvolvimento curva sempre um pouco entrecortada pois Marc Bloch recusa um evolucionismo primário e o momento do pensamento geral ao qual os historiadores a cada época se vinculam a atmosfera mental de uma época não muito distante no fundo do Zeitgeist do espírito do tempo de uma linhagem de historiadores alemães Nessa marcha rumo à inteligibilidade porém a história ocupa um lugar original entre as disciplinas do conhecimento humano Como a maior parte das ciências ainda mais que elas pois o tempo é parte integrante de seu objeto é uma ciência em marcha Para permanecer uma ciência a história deve se mexer progredir mais que qualquer outra não pode parar O historiador não pode ser um sedentário um burocrata da história deve ser um andarilho fiel a seu dever de exploração e de aventura Pois um segundo caráter da história a respeito do qual os historiadores não meditaram o suficiente a lição de Marc Bloch é que a história é também uma ciência na infância Ela há muito tempo só faz balbuciar numa préhistória que vai de Heródoto a dom Mabillon sobre o qual Marc Bloch vai dizer mais adiante que 1681 ano da publicação do De re diplomatica é uma grande data na história humana pois essa obra funda definitivamente a crítica dos documento de arquivos Ainda precisamos refletir sobre essa juventude da história que só se torna matéria de ensino no século XIX século fundador da história ainda hesitante entre a arte literária e o conhecimento científico Lição de humildade para o historiador mas também de confiança e esperança Para a história o vento do saber mal se levanta É a aurora do conhecimento histórico Onde sempre nos encontramos Historiadores antes de Marc Bloch e também de sua época resignaramse a ver na história apenas uma espécie de jogo estético e certos especialistas em ciências sociais admitiram deixar finalmente fora do alcance desse conhecimento dos homens inúmeras realidades demasiado humanas mas que lhes pareciam desesperadamente rebeldes a um saber racional Aqui é preciso ler Marc Bloch com atenção Esse resíduo era o que eles chamavam desdenhosamente de o acontecimento era também uma boa parte da vida mais intimamente individual1 O que é visado aqui A escola sociológica fundada por Durkheim Aí está praticamente desde o início revelada a importância excepcional que teve para Marc Bloch e para os primeiros Annales a sociologia de Durkheim Ele reitera aqui sua dívida Develhe sobretudo o fato de ter aprendido a pensar menos barato Eis uma de suas preocupações essenciais pensar a história pensar sua pesquisa pensar sua obra e não pensar pequeno pobre mesquinho Ele rejeita qualquer prática qualquer método redutor da história Mas também e isso foi uma constante em sua reflexão metodológica está preocupado em não confundir história e sociologia ele recusa a rigidez dos princípios mencionará em certo trecho a indiferença de Durkheim e de seus discípulos em relação ao tempo A influência de Durkheim sobre Marc Bloch e os primeiros Annales deverá ser objeto de uma investigação atenta pois os marcou profundamente mas também será preciso observar que Marc Bloch sempre resistiu aos encantos da sociologia e em primeiro lugar da sociologia durkheimiana Dialogar com a sociologia sim a história precisa dessas trocas com as outras ciências humanas e sociais Confundir história e sociologia não Marc Bloch é historiador e assim quer permanecer Renovar a história sim em particular pelo contato com essas ciências nelas imergir não Um leitor atento da frase que acabo de citar sobre o acontecimento e o individual teria permitido aos historiógrafos de Marc Bloch e dos Annales evitar certos erros de interpretação O acontecimento recusado por Marc Bloch é aquele desses sociólogos que dele fazem um resíduo desprezível Mas ele não recusa em todo caso o acontecimento Lucien Febvre teve talvez palavras menos prudentes a esse respeito Como uma história total poderia prescindir de acontecimentos Portanto o que se chama atualmente segundo Pierre Nora o retorno do acontecimento situase na linha direta da concepção de Marc Bloch Do mesmo modo embora dê mais atenção ao coletivo do que ao individual Marc Bloch não deixa por isso de fazer do indivíduo um dos polos de interesse da história Ele diz sobre a investigação histórica que ela deve se voltar de preferência para o indivíduo2 ou para a sociedade e critica a definição de história de Fustel de Coulanges a quem não obstante admirava o mestre que reivindica para si ao lado de Michelet a história é a ciência das sociedades humanas observando que isso talvez seja reduzir em excesso na história a parte do indivíduo Enfim e sobretudo uma parte importante do capítulo V que permaneceu inacabado e sem título definitivo teria sido dedicada ao indivíduo Depois de ter alfinetado Paul Valéry a quem criticará mais adiante por desconhecer o que é a verdadeira história e justificar a ignorância declarando que a história é o produto mais perigoso que a química do cérebro já elaborou define sua concepção da história e o desígnio deste livro A história que ele e seus amigos historiadores pretendem é uma história ao mesmo tempo ampliada e mais aprofundada À história estreita e superficial dos historiadores positivistas ele opõe essa vontade de ampliação e aprofundamento do domínio da história Ampliar e aprofundar é o essencial do movimento que continua ainda hoje a animar os historiadores tocados pelo espírito dos Annales Novos problemas novas abordagens novos objetos eis o triplo alcance que pedimos na esteira de Marc Bloch Pierre Nora e eu próprio a um grupo de historiadores para definir em 1974 na coletânea Faire de lhistoire Resta aprofundar ainda mais pois se as pesquisas sobre as mentalidades e as sensibilidades esboçaram essa descida dos historiadores às profundezas da história há ainda muito a fazer A psicanálise cautelosamente evocada por Marc Bloch aqui e ali neste livro e em A sociedade feudal não encontrou eco verdadeiro na reflexão dos historiadores Alphonse Dupront recémfalecido historiador das profundezas cuja obra em parte ainda inédita se situa nas margens da influência de Marc Bloch e dos Annales permanece relativamente isolado e as tentativas de história psicanalítica de Alain Besançon e de Michel de Certeau a quem os Annales dos anos 70 haviam oferecido uma coluna permanecem sem posteridade A psicohistória americana malgrado a abertura de pistas interessantes não se impôs Quanto ao desígnio do livro a defesa e ilustração da ciência história situase no nível do ofício dizer como e por que um historiador pratica seu ofício redigir o memento de um artesão a caderneta de anotações de um colega Sobre a erudição do século XIV diz mais adiante para elogiála através dela o historiador foi levado de volta à sua mesa de trabalho Historiador do mundo rural sob cuja pena correm facilmente as referências e as metáforas da vida agrária compara também o bom historiador ao bom lavrador segundo Péguy que ama o trabalho e a semeadura assim como as colheitas Termo ainda mais pascaliano de um caçador de um pesquisador que prefere a busca à presa Duas confidências vêm completar essa introdução Em uma delas Marc Bloch declara não ter a cabeça filosófica Vê humildemente uma lacuna em sua formação inicial Podemos ver aí também e sobretudo uma característica tradicional dos historiadores franceses Em sua maioria eles não têm prudência ou falha gosto pela filosofia em geral e pela filosofia da história em particular Este livro é um tratado de método não um ensaio de filosofia histórica Marc Bloch porém que não detesta nada tanto quanto a preguiça e a passividade de espírito não quer se limitar a dizer o que é a história e como é feita e escrita Há em meu livro confesso uma parte de programa É uma introdução e um guia para a história a ser feita Fazendo inteiramente meus os comentários evidentemente mais autorizados que os meus de Lucien Febvre É preciso lamentar profundamente a ausência de notas mais precisas e mais detalhadas de Bloch sobre as últimas partes de seu livro Elas estariam entre as mais originais vou me contentar agora em assinalar o que me parece mais importante no corpo do livro Em primeiro lugar a definição de história A história é busca portanto escolha Seu objeto não é o passado A própria noção segundo a qual o passado enquanto tal possa ser objeto de ciência é absurda Seu objeto é o homem ou melhor os homens e mais precisamente homens no tempo Reúno aqui as passagens mais importantes a meu ver sobre esse tempo da história ao qual Marc Bloch primeiramente pensara consagrar um capítulo especial O tempo é o meio e a matéria concreta da história Realidade concreta e viva submetida à irreversibilidade de seu impulso o tempo da história é o próprio plasma em que se engastam os fenômenos e como o lugar de sua inteligibilidade p55 O tempo da história oscila entre o que Fernand Braudel chamará a longa duração e essa cristalização que Marc Bloch prefere chamar o momento em vez de o acontecimento e onde coloca como mediadora a tomada de consciência O historiador nunca sai do tempo considera nele ora as grandes ondas de fenômenos aparentados que atravessam longitudinalmente a duração ora o momento humano em que essas correntes se apertam no poderoso nó das consciências p135 Quaisquer que sejam os progressos de uma unificação da medida do tempo o tempo da história escapa à uniformidade O tempo humano permanecerá sempre rebelde tanto à implacável uniformidade como ao seccionamento rígido do tempo do relógio Faltamlhe medidas adequadas à variabilidade de seu ritmo e que como limites aceitem frequentemente porque a realidade assim o quer apenas zonas marginais É apenas ao preço dessa plasticidade que a história pode esperar adaptar segundo as palavras de Bergson suas classificações às próprias linhas do real o que é propriamente a finalidade última de toda ciência p153 Observemos a propósito a referência a Bergson O pensamento de Marc Bloch é convergente com o de Bergson filosofia da duração e da fluidez do pensamento e da vida3 A história ciência do tempo e da mudança coloca a cada instante delicados problemas para o historiador por exemplo para seu grande desespero os homens não costumam mudar de vocabulário a cada vez que mudam de hábitos Essa concepção do tempo implica a renúncia ao ídolo das origens à obsessão embriogênica à ociosa ilusão segundo a qual as origens são um começo que se explica à confusão entre filiação e explicação E Marc Bloch explica aqui fato essencial para a história da Europa e do Ocidente que o cristianismo é por essência uma religião histórica o que lhe permite ligar o que se separa com muita frequência na realidade histórica uma profusão de traços convergentes seja de estrutura social seja de mentalidade Uma vez depositada no cemitério dos sonhos antigos a pergunta agora ociosa a história é ciência ou arte o medievalista Bloch investe no essencial Primeiro referenciar o presente que prefere chamar o atual definindo o que se denomina atualmente a aceleração da história fornece desta última um exemplo concreto cuja formulação esboça ao mesmo tempo um problema e um caminho de investigação explicativa A partir de Leibniz a partir de Michelet um grande fato se produziu as sucessivas revoluções das técnicas alargaram desmedidamente o intervalo psicológico entre as gerações Em seguida considerar o presente humano como perfeitamente suscetível de conhecimento científico e não reservar seu estudo a disciplinas bem distintas da história sociologia economia jornalismo publicistas diz Marc Bloch mas ancorálo na própria história Daí os limites e a impotência dos historiadores pusilânimes que temem o presente os que almejam poupar à casta Clio contatos demasiado ardentes os que ele chama de antiquários encerrados em uma concepção passadista da história ou os eruditos incapazes de passar da coleta de dados à explicação histórica o que não é desqualificar ao contrário a erudição que todo historiador deve praticar mas na qual não deve se encerrar Mas o erudito que não tem gosto por olhar em torno de si nem os homens nem as coisas nem os acontecimentos agiria sensatamente se renunciasse ao título de historiador O presente bem referenciado e definido dá início ao processo fundamental do ofício de historiador compreender o presente pelo passado e correlativamente compreender o passado pelo presente A elaboração e a prática de um método prudentemente regressivo são um dos legados essenciais de Marc Bloch e essa herança tem sido até agora muito insuficientemente recolhida e explorada A faculdade de apreensão do que é vivo qualidade suprema do historiador não se adquire e exerce senão por um contato perpétuo com o hoje A história do historiador começa a se fazer às avessas Então o historiador poderá capturar sua presa a mudança entregarse com eficiência ao comparativismo histórico e empreender a única história verdadeira a história universal Eu preferiria no que me diz respeito dizer com Michel Foucault a história geral Daí três afirmações que são ao mesmo tempo exortações A ignorância do passado não se limita a prejudicar o conhecimento do presente comprometendo no presente a própria ação constitui a primeira Além de ao historiador Marc Bloch se dirige a todos os membros da sociedade e em primeiro lugar àqueles que pretendem guiála Ainda hoje não parece ter sido bem compreendido A segunda é O homem também mudou muito em seu espírito e sem dúvida até nos mais delicados mecanismos de seu corpo Sua atmosfera mental transformouse profundamente não menos sua higiene sua alimentação Daí a legitimidade do estudo das mentalidades como objeto da história mas também o apelo sempre atual ao estudo da história do corpo seguindose o que Marc Bloch chama em outro trecho de as aventuras do corpo Mas acrescenta Decerto é preciso todavia que exista na natureza humana e nas sociedades humanas um fundo permanente sem o qual os próprios nomes homem e sociedade nada significariam Como exprimir melhor a legitimidade a própria necessidade de uma antropologia histórica que atualmente faz progressos apesar das recriminações dos tradicionalistas Enfim essa história ampla profunda longa aberta comparativa não pode ser realizada por um historiador isolado A vida é muito breve Isolado nenhum especialista nunca compreenderá nada senão pela metade mesmo em seu próprio campo de estudos A história só pode ser feita com uma ajuda mútua O ofício de historiador se exerce numa combinação do trabalho individual e do trabalho por equipes O movimento da história e da historiografia levou uma grande parte dos historiadores a abandonar sua torre de marfim Assim delimitados sem outras fronteiras senão as dos homens e do tempo seu domínio e sua démarche o historiador pode sentarse à sua mesa de trabalho Seu primeiro trabalho será a observação histórica capítulo II Ele não deve ignorar a imensa massa dos testemunhos não escritos aqueles da arqueologia em particular Deve portanto deixar de ser na ordem documentária obcecado pelo relato assim como na ordem dos fatos pelo acontecimento Mas deve também se resignar a não poder compreender tudo do passado a utilizar um conhecimento através de pistas a recorrer a procedimentos de reconstrução dos quais todas as ciências oferecem inúmeros exemplos Mas se o passado é por definição um dado que nada mais modificará o conhecimento do passado é uma coisa em progresso que se transforma e aperfeiçoa incessantemente A respeito de um ponto muito importante o conhecimento das mentalidades individuais os historiadores dos períodos antigos incluindo a Idade Média estão desarmados pois não possuem nem cartas privadas nem confissões e essa época nos legou no máximo apenas péssimas biografias em estilo convencional Resulta daí que toda uma parte de nossa histórica afeta necessariamente o aspecto um pouco exangue de um mundo sem indivíduo É preciso escutar o honesto Marc Bloch que aconselha ao historiador saber dizer não sei não posso saber nesse ponto porém achoo um pouco pessimista Os historiadores das épocas remotas e sobretudo da Idade Média buscam atualmente escrever biografias que respondem a métodos rigorosos porém mais sofisticados de reconstituição das vidas ao menos das dos homens ilustres do passado e a história do indivíduo nesses tempos antigos deveria beneficiar pesquisas atuais ligadas ao retorno do sujeito em filosofia e nas ciências sociais retorno que não deixa indiferentes os historiadores Aliás em sua busca dos testemunhos o medievalista segundo Marc Bloch deverá interrogar por exemplo a vida dos santos que ele achará de um valor inestimável quanto às informações que fornecem sobre as maneiras de viver ou de pensar título de um capítulo memorável de A sociedade feudal específicas das épocas em que foram escritas Mas ao fazêlo não deverá esquecer como muitos medievalistas mesmo depois de Marc Bloch que tratase aí de coisas que o hagiógrafo não tinha o menor desejo de nos expor O essencial é enxergar que os documentos e os testemunhos só falam quando sabemos interrogálos toda investigação histórica supõe desde seus primeiros passos que a investigação já tenha uma direção A oposição aqui é nítida em relação às concepções dos historiadores ditos positivistas mas Marc Bloch nesse ponto vai ao encontro de um matemático célebre Henri Poincaré que refletira sobre suas práticas científicas e as de seus confrades demonstrando que toda descoberta científica é produzida a partir de uma hipótese prévia Poincaré havia publicado A ciência e a hipótese em 1902 Outra ilusão de certos eruditos imaginar que a cada problema histórico corresponde um tipo de documento específico para esse uso A história só é feita recorrendose a uma multiplicidade de documentos e por conseguinte de técnicas poucas ciências creio são obrigadas a usar simultaneamente tantas ferramentas dessemelhantes É que os fatos humanos são em relação a todos os outros complexos É que o homem se situa na ponta extrema da natureza Daí essa oposição É bom a meu ver indispensável que o historiador possua ao menos um verniz de todas as principais técnicas de seu ofício Vemos aqui como Marc Bloch vai mais longe na concepção das ciências auxiliares da história do que a maioria dos historiadores tradicionais Sua utilização não deve ser feita numa fragmentação das especializações Aqui também se faz necessário um recurso global total às técnicas de coleta e de tratamento dos documentos Mas como organizar o procedimento e a exploração dessa observação histórica Através do estabelecimento de guias técnicos inventários catálogos e repertórios e aqui Marc Bloch encontra o grande trabalho de erudição a partir de du Cange e dom Mabillon para os medievalistas o grande trabalho do século XIX porém não atribui a esse aparato técnico o mero papel passivo de um tesouro a explorar mas a função de um viveiro a serviço das questões a serem levantadas diante dos documentos e da história Marc Bloch também está atento à transmissão dos testemunhos aos encontros entre historiadores ele próprio e Lucien Febvre foram assíduos nos grandes congressos internacionais das ciências históricas nos anos 20 e 30 às trocas de informações a tudo o que chamaríamos hoje de comunicação em história Mas vai mais longe Ele almeja em primeiro lugar um acordo da comunidade dos historiadores para definir previamente por comum acordo alguns grandes problemas dominantes e além disso espera que as sociedades consentirão enfim em se organizar racionalmente com sua memória com seu conhecimento de si próprias Estamos aqui em plena atualidade Que objeto atualmente suscita mais a investigação e a reflexão dos historiadores em colaboração com outros especialistas das ciências humanas e sociais do que a investigação da memória coletiva base da busca de identidade Marc Bloch provavelmente evocava aqui os trabalhos de seu colega sociólogo de Estrasburgo Maurice Halbwachs cujo Estruturas sociais da memória havia sido publicado em 1925 Eis um outro objetivo ainda não plenamente alcançado na atualidade o relato por parte do historiador dos problemas e da história de sua investigação Todo livro de história digno desse nome deveria incluir um capítulo ou caso se prefira inserida nos pontos de reviravolta do desenvolvimento uma sequência de parágrafos que se intitularia algo como Como posso saber o que vou dizer Estou convencido de que ao tomar conhecimento dessas confissões mesmo os leitores que não são do ramo sentiriam um verdadeiro prazer intelectual O espetáculo da investigação com seus sucessos e reveses é raramente tedioso É o tudo pronto que espalha gelo e tédio Que modernidade de tom e de ideias Depois da observação a crítica capítulo III Marc Bloch esboça sua história e designa seu momento decisivo o século XVII A doutrina de pesquisas foi elaborada apenas ao longo desse século XVII cuja verdadeira grandeza nem sempre ocupa o lugar merecido e sobretudo por volta de sua segunda metade Eis as datas de nascimento dos três grandes nomes da crítica histórica o jesuíta Paperbroeck fundador da hagiografia científica e da congregação dos bollandistasI nascido em 1628 dom Mabillon o beneditino de SaintMaur fundador da diplomática nascido em 1632 Richard Simon o oratoriano que marca os primórdios da exegese bíblica crítica nascido em 1638 E por trás deles pois Marc Bloch está sempre preocupado em situar a história em um momento de pensamento dois grandes filósofos Espinosa nascido em 1632 e Descartes cujo Discurso do método é publicado em 1637 Mas a crítica histórica enroscase numa erudição rotineira que se priva dessa surpresa sempre renascente que a luta com o documento é a única a proporcionar Faço questão de citar essas frases que mostram que para Marc Bloch o ofício de historiador é fonte de prazer Marc Bloch fustiga ao mesmo tempo o esoterismo rebarbativo que alegria ler repito distante de qualquer jargão o estilo simples e límpido de Apologia da história o triste manual e os falsos brilhantes de uma história pretensiosa tristemente ilustrada por Maurras Bainville ou Plekhanov Marc Bloch encontra então um tom carinhoso para falar de nossas humildes observações nossas pequenas e escrupulosas referências Marc Bloch estendese longamente sobre um problema caríssimo a ele o da busca do erro e da mentira dos quais teve a experiência não apenas em seu trabalho de historiador mas também em sua vida de homem e de soldado através das falsas notícias da Grande Guerra Experiência que o marcou a ponto como observamos Carlo Ginzburg e eu próprio5 de ter influenciado sua pesquisa sobre os Reis taumaturgos beneficiários da credulidade popular que acreditou durante séculos no poder dos reis da França e da Inglaterra de curar os escrofulosos Marc Bloch desfia então minuciosamente as condições históricas dos tipos de sociedades sujeitas como a do Ocidente medieval a crer não no que se via na realidade mas naquilo que em uma certa época achavase natural ver E saúda o nascimento de uma disciplina quase nova a psicologia dos testemunhos a reflexão de Marc Bloch se pauta incessantemente pelas possibilidades que a psicologia pode oferecer ao historiador disciplina que se desenvolveu e que inspirou claramente um grande colóquio realizado recentemente em Munique e uma importante publicação sobre As falsificações da Idade Média Fälschungen im Mittelalter Marc Bloch desenvolve uma tentativa de uma lógica do método crítico que lhe permite recolocar novamente com características próprias a história no conjunto das ciências do real limitando sua responsabilidade pela segurança em dosar o provável e o improvável a crítica histórica não se distingue da maioria das outras ciências do real senão por um escalonamento dos graus sem dúvida mais nuançado Assim sempre sensível à unidade do conhecimento Marc Bloch pode afirmar o advento de um método racional de crítica aplicado ao testemunho humano foi um ganho imenso não só para o conhecimento histórico mas para o conhecimento tout court O capítulo desemboca em horizontes bem mais vastos a história tem o direito de contar entre suas glórias mais seguras o fato de ter ao elaborar sua técnica aberto aos homens uma estrada nova rumo à verdade e por conseguinte à justiça Marc Bloch que detesta os historiadores que julgam em lugar de compreender não deixa por isso de enraizar mais profundamente a história na verdade e na moral A ciência histórica se consuma na ética A história deve ser verdade o historiador se realiza como moralista como justo Nossa época desesperadamente em busca de uma nova ética deve admitir o historiador entre aqueles que procuram a verdade e a justiça não fora do tempo mas no tempo Compreender portanto e não julgar Eis o objetivo da análise histórica pela qual começa o verdadeiro trabalho do historiador depois da observação e da crítica histórica prévias capítulo IV Marc Bloch sempre preocupado em evitar qualquer ociosidade do espírito esclarece que compreender nada tem de uma atitude de passividade O historiador escolhe e peneira organiza racionalmente uma matéria cuja receptividade passiva só levaria a negar o tempo por conseguinte a própria história O vínculo entre ordenamento racional tempo e história é perfeitamente reafirmado Mais que isso essa démarche racional identificase com a ordem do tempo e com a natureza da história Essa análise dedicase particularmente a referenciar as ligações comuns a um grande número de fenômenos sociais às constantes interpretações sem esquecer as defasagens que conferem à vida social seu ritmo quase sempre contrastante e abrindo caminho para um Paul Veyne ou um Michel Foucault que buscam definir estilos em história Marc Bloch propõe a tonalidade que pode por exemplo caracterizar a atitude mental de um grupo Sensível a essa trama a essa rapsódia da história Marc Bloch detecta bem essa falta de autonomia das histórias particulares e mais especificamente da história econômica Isso vale sobretudo para a Idade Média que não tinha conceito para a economia e que não se contentou em fazer coexistir o religioso com o econômico mas entrelaçouos Marc Bloch apontava assim o que o economista Karl Polanyi morto em 1964 ia chamar de economia engastada na religião da moral ou da política nas sociedades arcaicas e antigas É preciso ler Marc Bloch com atenção nesse ponto Pois os ciosos guardiães de sua memória ainda mais ciosos na medida em que não são os verdadeiros discípulos consideram traição quando um historiador que invoca com todos os motivos a autoridades dos Annales em lugar da história global ou total recorta na história um objeto particular Ora Marc Bloch escreve Nada mais legítimo nada mais constantemente salutar do que centrar o estudo de uma sociedade em um de seus aspectos particulares ou melhor ainda em um dos problemas precisos que levantam este ou aquele desses aspectos crença economia estrutura das classes ou dos grupos crises políticas Um aspecto importante da análise histórica é o do vocabulário da terminologia da nomenclatura Marc Bloch demonstra como o historiador deve conduzir sua análise com o auxílio de uma dupla linguagem a da época estudada o que lhe permite evitar o anacronismo mas também a do aparato verbal e conceitual da disciplina histórica atual Estimar que a nomenclatura dos documentos possa bastar completamente para fixar a nossa seria o mesmo em suma que admitir que eles nos trazem a análise toda pronta Encontramos aí essa saudável fobia da passividade Mas o historiador se não tem o fetichismo da etimologia uma palavra vale bem menos por sua etimologia do que pelo uso que se faz dela se dedicará ao estudo dos sentidos à semântica histórica cujo renascimento hoje é preciso buscar E se resignará com que palavras mal escolhidas temperadas com os mais diversos molhos esvaziadas de sentido pela história continuem a fazer parte de seu vocabulário assim feudalismo capitalismo Idade Média Pelo menos esses conceitos têm o mérito de desvencilhar a história de uma classificação por hegemonias de natureza diplomática e militar Marc Bloch lembra que Voltaire já havia bradado seu protesto Parece que de 1400 anos para cá não houve nas Gálias senão reis ministros e generais A época da história dividida por reinados está pouco a pouco se acabando mas a da tirania abusiva dos séculos divisões artificiais em todo caso continua e como nos livrar de feudalismo de capitalismo e de Idade Média É preciso voltar à ideia central desse capítulo a das imbricações dos componentes das sociedades humanas mergulhadas na história reconhecemos que numa sociedade qualquer que seja tudo se liga e se controla mutuamente a estrutura política e social a economia as crenças tanto as manifestações mais elementares como as mais sutis da mentalidade E aqui Marc Bloch tira o chapéu para um dos grandes ancestrais da história nova Guizot que falou de um complexo na direção do qual todos os elementos da vida do povo todas as forças de sua existência vêm confluir Esse complexo como chamálo Marc Bloch sugere uma palavra e uma ideia cuja história foi feita por Lucien Febvre civilização Não negarei seu interesse mas devo constatar não sem lamentar que hoje ela está praticamente confinada à língua e à civilização francesas Em outros lugares cultura triunfa o que não é a mesma coisa e não se situa no mesmo nível de qualidade Sinal dos tempos provavelmente que condenam a civilização por seu elitismo e que a recusam em prol da cultura de massa invadindo um campo histórico que ela torna menos humano mais material A luta de Fernand Braudel querendo substituir civilização material por cultura material também parece perdida Será preciso se resignar a essa inumanidade Marc Bloch não pôde concluir seu trabalho tendo sido interrompido pelo engajamento ativo na Resistência e o fio de sua vida cortado pelas balas do pelotão inimigo em 1944 o capítulo V que sem dúvida teria sido sobre a explicação em história Apenas o início sobre a noção de causa foi redigido Marc Bloch também deixa nele algumas mensagens de grande importância Em primeiro lugar um novo protesto contra o positivismo que pretendeu eliminar da ciência a ideia de causa mas também a condenação da tentativa de redução do problema das causas em história a um problema de motivos e a recusa da banal psicologia Recusa a ser meditada pois sob a via régia demasiado régia das mentalidades corre o rio de uma vulgar psicologia Depois a designação de um novo ídolo a ser banido da problemática do historiador a superstição da causa única A condenação é inapelável preconceito do senso comum postulado de lógico um tique de magistrado instrutor o monismo da causa para a explicação histórica não é senão um estorvo A vida portanto a história é múltipla em suas estruturas em suas causas Marc Bloch aponta a esse propósito um outro erro aquele no qual se inspirava o pseudodeterminismo geográfico hoje definitivamente arruinado E acrescenta O deserto seja lá o que tenha dito Renan sobre isso não é necessariamente monoteísta Não estou seguro de que esse cadáver não se mexa ainda Não faz muito tempo espíritos conformados ainda se deslumbravam com as elucubrações sobre as quais sabemos atualmente além disso que não eram isentas de um certo ranço racista de um André Siegfried cuja geografia eleitoral fantasiosa da França parecia sempre carregada de seduções Não o granito não vota Chega agora o doloroso momento em que a frase não termina em que a página se torna inexoravelmente branca Mas o fim é belo Resumindo tudo as causas em história como em outros domínios não são postuladas São buscadas O livro interrompido concluise com uma palavra de homem de ofício de pesquisador mas também com uma tonalidade pascaliana Dizse comumente hoje em dia sobretudo entre aqueles que não os apreciam que Marc Bloch e os Annales triunfaram e que sua concepção da história conquistou a ciência histórica mas este é um pretexto para relegar sua lição e seu exemplo ao museu das antiguidades historiográficas Essa afirmação errônea ou maliciosa esconde duas verdades A primeira é que se Marc Bloch e os Annales tiveram uma influência decisiva na renovação da história essa renovação foi limitada sobretudo a aspectos essenciais de suas orientações como a concepção da históriaproblema ou da história interdisciplinar A segunda é que um livro como este conserva uma grande parte de sua novidade de sua necessidade e que é preciso reencontrar sua eficácia Sobre a complexidade do tempo histórico sobre a necessidade da explicação histórica sobre a natureza da história do presente sobre as relações entre presente e passado sobre o ídolo das origens sobre a noção de causa em história sobre a natureza e a construção do fato histórico sobre o papel da tomada de consciência o tratamento do acaso e as formas da mentira e do erro em história sobre o discurso histórico sobre as maneiras legítimas de fazer história sobre a definição de uma busca necessária da verdade histórica sob o pretexto de não ser enganado pela artificialidade da história a qual ela partilha com todas as ciências pois só existe conhecimento a esse preço quisse negar a existência de uma verdade histórica para se entregar a uma prática pretensamente nietzschiana de um jogo histórico com regras arbitrárias sobre a exigência de uma ética da história e do historiador é preciso partir de novo deste livro E se Marc Bloch guardou segredo sobre sua concepção da atitude do historiador em face do futuro legounos este problema como herança imperativa Retorno a Marc Bloch então Sem dúvida alguma este será um dos mais fecundos entre aqueles que não raro são apenas modas que mal dissimulam um retorno a uma préhistória historiográfica Mas evidentemente escutando também o conselho de Marc Bloch Permanecerei portanto fiel a suas lições criticandoas ali onde julgar útil muito livremente como desejo que um dia meus alunos por sua vez me critiquem Este livro com efeito não é um ponto de chegada mas um ponto de partida O que podem pensar hoje um historiador um professor de história um estudante um diletante da história e qualquer mulher qualquer homem deve no espírito de Marc Bloch ser diletante talvez até mesmo amante da história sobre esta obra Tratase em primeiro lugar da obra de um indivíduo inteligente e sensível homem e cidadão assim como professor e historiador tomado de certeza mas consciente da juventude incerta da ciência histórica carregado de uma erudição ampla e profunda mas pronto para as aventuras intelectuais tendo fome de saber de compreensão e de explicação É também a obra de um historiador nascido em 1886 formado no seio de uma família universitária judia e dreyfusista insatisfeito com a estreiteza e a superficialidade da concepção da prática e do ensino da história na França do início do século XX e que através de seu encontro com Lucien Febvre tornouse um dos grandes atores da renovação da história entre as duas guerras por sua obra seu ensino e a influência dos Annales dos quais foi como dissemos cofundador Um filho espiritual de Michelet e de Fustel de Coulanges reunindo assim o melhor da historiografia europeia no final do século XIX e no início do século XX um leitor de Marx de Durkheim de Simiand sempre pronto a escutar aquelas de suas mensagens que aprofundam e confortam a história a resistir igualmente ao que em suas análises elimina o tempo real da história e os homens concretos que a experimentam mas também a fazem até os atores anônimos das profundezas Como teria definido a si próprio um filho de sua época mais ainda que de seu pai E essa época é a III República as duas guerras mundiais que Marc Bloch fez e intensamente viveu como cidadão como soldado e como historiador Obra desse Marc Bloch individual e coletivo Apologia da história é também o produto de um momento O da França vencida prostrada na derrota na Ocupação e na infâmia de Vichy mas onde Marc Bloch capta os primeiros frêmitos de uma esperança tanto de uma libertação da história que é preciso ajudar na resistência ativa como de um progresso da ciência histórica que é preciso esclarecer escrevendo este livro Assim como o historiador belga Henri Pirenne grande mestre e cúmplice aqui citado com frequência colocado em prisão domiciliar vigiada pelos alemães durante a I Guerra Mundial ali escreve uma pioneira História da Europa assim como no mesmo momento em um campo de prisioneiros na Alemanha Fernand Braudel elabora sua tese sobre O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Filipe II 1949 Este livro inacabado é um ato completo de história JACQUES LE GOFF I Os bollandistas em sua maioria jesuítas eram membros de uma sociedade que a partir do século XVII passou a trabalhar na pesquisa da vida dos santos classificados por dia O nome vem de Jean de Bolland NT Para uso do leitor Nesta obra foram utilizados certos sinais que buscam refletir o mais fielmente possível os textos originais Assim indicam que uma ou várias palavras dos manuscritos de Marc Bloch são indecifráveis Caso se trate de várias palavras isso é mencionado separa as palavras os grupos de palavras e membros de frases na ausência de pontuação nas folhas manuscritas indicam palavras ou passagens acrescentadas em relação a uma redação anterior de Marc Bloch primeira redação ou redação intermediária quando não existe primeira redação indicam palavras ou passagens suprimidas em relação às redações anteriores de Marc Bloch 1 os números sobrescritos remetem a notas de rodapé de Étienne Bloch os asteriscos remetem a notas de tradução IN MEMORIAM MATRIS AMICAE A Lucien Febvre janvier 1941 A LUCIEN FEBVRE À guisa de dedicatória Caso um dia este livro seja publicado se de simples antídoto ao qual entre as piores dores e as piores angústias pessoais e coletivas peço neste momento um pouco de paz de espírito tornarse para sempre um verdadeiro livro oferecido para ser lido um outro nome que não o seu caro amigo será então inscrito na folha de rosto Você sabe disso era preciso este nome neste lugar única evocação permitida a uma ternura demasiado profunda e sagrada para ser mencionada Entretanto como iria resignarme a vêlo surgir apenas ao acaso de algumas referências muito pouco numerosas de resto1 Combatemos longamente em conjunto por uma história maior e mais humana A tarefa comum no momento em que escrevo decerto sofre ameaças Não por nossa culpa Somos os vencidos provisórios de um injusto destino Tempo virá estou certo em que nossa colaboração poderá verdadeiramente2 ser retomada pública como no passado e como no passado livre Por ora é nestas páginas todas repletas de sua presença que de minha parte ela prosseguirá Manterá com isso o ritmo que foi sempre o seu de um acordo fundamental vivificado na superfície pelo proveitoso jogo de nossas afetuosas discussões Entre as ideias que proponho sustentar mais de uma seguramente vem diretamente de você Muitas outras não saberia decidir em toda consciência se são suas minhas ou de nós ambos Você aprovará gabome disso muitas vezes Em outras me repreenderá E tudo isto criará entre nós um vínculo a mais3 Fougères Creuse 10 de maio de 1941 MARC BLOCH APOLOGIA DA HISTÓRIA OU O OFÍCIO DE HISTORIADOR ZAHAR Introdução Papai então me explica para que serve a história Assim um garoto de quem gosto muito interrogava há poucos anos um pai historiador Sobre o livro que se vai ler gostaria de poder dizer que é minha resposta Pois não imagino para um escritor elogio mais belo do que saber falar no mesmo tom aos doutos e aos escolares Mas simplicidade tão apurada é privilégio de alguns raros eleitos Pelo menos conservarei aqui de bom grado essa pergunta como epígrafe pergunta de uma criança cuja sede de saber eu talvez não tenha naquele momento conseguido satisfazer muito bem Alguns provavelmente julgarão sua formulação ingênua Pareceme ao contrário mais que pertinente O problema que ela coloca com a incisiva objetividade dessa idade implacável não é nada menos do que o da legitimidade da história1 Eis portanto o historiador chamado a prestar contas Só se arriscará a isso com certo estremecimento interior que artesão envelhecido no ofício não se perguntou algum dia com um aperto no coração se fez de sua vida um uso sensato Mas o debate supera em muito os pequenos escrúpulos2 de uma moral corporativa Nossa civilização ocidental inteira está interessada nele Pois diferentemente de outros tipos de cultura ela sempre esperou muito de sua memória Tudo a levava a isso tanto a herança cristã como a herança antiga Os gregos e os latinos nossos primeiros mestres eram povos historiógrafos O cristianismo é uma religião de historiador Outros sistemas religiosos fundaram suas crenças e seus ritos sobre uma mitologia praticamente exterior ao tempo humano como Livros sagrados os cristãos têm livros de história e suas liturgias comemoram com os episódios da vida terrestre de um Deus os faustos da Igreja e dos santos Histórico o cristianismo o é ainda de outra maneira talvez mais profunda colocado entre a Queda e o Juízo o destino da humanidade afigurase a seus olhos uma longa aventura da qual cada vida individual cada peregrinação particular apresenta por sua vez o reflexo é nessa duração portanto dentro da história que se desenrola eixo central de toda meditação cristã o grande drama do Pecado e da Redenção Nossa arte nossos monumentos literários estão carregados dos ecos do passado nossos homens de ação trazem incessantemente na boca suas lições reais ou supostas Sem dúvida conviria marcar mais de uma nuance entre as psicologias de grupos Cournot observou isso há muito tempo eternamente inclinados a reconstruir o mundo sobre as linhas da razão os franceses em sua massa vivem suas lembranças coletivas bem menos intensamente do que os alemães por exemplo Sem dúvida também as civilizações podem mudar Não é inconcebível em si que a nossa não se desvie da história um dia Os historiadores agirão sensatamente refletindo sobre isso A história malentendida caso não se tome cuidado seria muito bem capaz de arrastar finalmente em seu descrédito a história melhor entendida Mas se um dia chegássemos a isso seria ao preço de uma violenta ruptura com nossas mais constantes tradições intelectuais Por ora estamos apenas quanto a esse assunto no estágio do exame de consciência Cada vez que nossas tristes sociedades em perpétua crise de crescimento põemse a duvidar de si próprias vemolas se perguntar se tiveram razão ao interrogar seu passado ou se o interrogaram devidamente Leiam o que se escrevia antes da guerra o que ainda pode ser escrito nos dias de hoje entre as preocupações difusas da época presente escutarão quase inexoravelmente essa preocupação misturar sua voz às outras Em pleno drama foime dado captar seu eco todo espontâneo Era junho de 1940 no mesmo dia se bem me lembro da entrada dos alemães em Paris No jardim normando onde nosso estadomaior privado de tropas exercitava sua ociosidade remoíamos as causas do desastre É possível acreditar que a história nos tenha enganado murmurou um de nós Assim a angústia do homem feito ia ao encontro com um acento mais amargo da simples curiosidade do rapazola É preciso responder a um e a outro Entretanto convém saber o que quer dizer a palavra servir Decerto mesmo que a história fosse julgada incapaz de outros serviços restaria dizer a seu favor que ela entretém Ou para ser mais exato pois cada um busca seus passatempos3 onde mais lhe agrada assim parece incontestavelmente para um grande número de homens4 Pessoalmente do mais remoto que me lembre ela sempre me pareceu divertida Como todos os historiadores eu penso Sem o quê por quais razões teriam escolhido esse ofício Aos olhos de qualquer um que não seja um tolo completo com quatro letras todas as ciências são interessantes Mas todo cientista só encontra uma única cuja prática o diverte Descobrila para a ela se dedicar é propriamente o que se chama vocação Aliás essa inegável atração da história por si só já merece que a reflexão se detenha Como germe5 e como estímulo seu papel foi e permanece capital Antes do desejo de conhecimento o simples gosto antes da obra de ciência plenamente consciente de seus fins o instinto que leva a ela a evolução de nosso comportamento intelectual abunda em filiações desse tipo Podemos citar inclusive a física cujos primeiros passos devem muito aos gabinetes de curiosidade Vimos do mesmo modo as pequenas alegrias das quinquilharias figurarem no berço de mais de uma orientação de estudos que pouco a pouco se embebeu do sério Tal a gênese da arqueologia e mais próximo de nós do folclore Os leitores de Alexandre Dumas talvez não sejam mais do que historiadores em potencial aos quais falta apenas terem sido adestrados para se proporcionar um prazer puro e para mim mais agudo o da cor verdadeira Por outro lado que esse encanto esteja bem longe de se apagar uma vez abordada a investigação metódica com suas necessárias austeridades que ao contrário todos os verdadeiros historiadores podem testemunhar isso ele ganhe mais ainda em vivacidade e plenitude quanto a isso de certa forma não há nada que não valha alguma coisa para qualquer trabalho do espírito6 A história no entanto não se pode duvidar disso tem seus gozos estéticos próprios que não se parecem com os de nenhuma outra disciplina É que o espetáculo das atividades humanas que forma seu objeto específico é mais que qualquer outro feito para seduzir a imaginação dos homens Sobretudo quando graças a seu distanciamento no tempo ou no espaço seu desdobramento se orna das sutis seduções do estranho O grande Leibniz ele próprio nos deixou uma confissão a respeito quando das abstratas especulações matemáticas ou da teodiceia passava para o deciframento dos velhos documentos ou das velhas crônicas da Alemanha imperial experimentava como todos nós essa volúpia de aprender coisas singulares Resguardemonos de retirar de nossa ciência sua parte de poesia Resguardemonos sobretudo já surpreendi essa sensação em alguns de enrubescer por isso Seria uma espantosa tolice acreditar que por exercer sobre a sensibilidade um apelo tão poderoso ela devesse ser menos capaz de satisfazer também nossa inteligência Se a história não obstante para a qual nos arrasta assim uma atração quase universalmente sentida só tivesse isso para se justificar se fosse apenas em suma um amável passatempo como o bridge ou a pesca valeria a pena todo o esforço que fazemos para escrevêla Para escrevêla quero dizer honestamente indo verdadeiramente em direção o máximo possível às suas molas ocultas por conseguinte com dificuldade Os jogos escreveu André Gide deixaram hoje de nos ser permitidos inclusive acrescentava os da inteligência Isso era dito em 1938 Em 1942 quando por minha vez escrevo o quão mais carregada de um sentido mais pesado ficou tal declaração Com toda certeza num mundo que acaba de abordar a química do átomo e mal começa a sondar o segredo dos espaços estelares em nosso pobre mundo que justamente orgulhoso de sua ciência não consegue todavia criar para si um pouco de felicidade as longas minúcias da erudição histórica muito capazes de devorar uma vida inteira mereceriam ser condenadas como um desperdício de forças absurdo a ponto de ser criminoso se devesse apenas servir para dissimular com um pouco de verdade uma de nossas distrações Ou será preciso desaconselhar a prática da história a todos os espíritos capazes de serem melhor utilizados em outro lugar ou é como conhecimento que a história terá de provar sua consciência limpa Mas aqui uma nova pergunta se coloca o que precisamente torna legítimo um esforço intelectual Ninguém imagino ousaria mais dizer hoje em dia como os positivistas de estrita observância que o valor de uma investigação se mede em tudo e para tudo por sua aptidão a servir à ação A experiência não apenas nos ensinou que é impossível decidir previamente se as especulações aparentemente as mais desinteressadas não se revelarão um dia espantosamente úteis à prática Seria infligir à humanidade uma estranha mutilação recusarlhe o direito de buscar fora de qualquer preocupação de bemestar o apaziguamento de suas fomes intelectuais À história mesmo que fosse eternamente indiferente ao homo faber ou politicus bastaria ser reconhecida como necessária ao pleno desabrochar do homo sapiens Entretanto mesmo assim limitada a questão não está por isso logo resolvida Pois a natureza de nosso entendimento o leva muito menos a querer saber do que a querer compreender Daí resulta que as únicas ciências autênticas são para ele aquelas que conseguem estabelecer ligações explicativas entre os fenômenos O Ora a polimatia pode muito bem passar por distração ou mania tanto hoje quanto na época de Malebranche seria incapaz de representar uma das boas obras da inteligência Independentemente até de qualquer eventualidade de aplicação à conduta a história terá portanto o direito de reivindicar seu lugar entre os conhecimentos verdadeiramente dignos de esforço apenas na medida em que em lugar de uma simples enumeração sem vínculos e quase sem limites nos permitir uma classificação racional e uma progressiva inteligibilidade Não se pode negar no entanto que uma ciência nos parecerá sempre ter algo de incompleto se não nos ajudar cedo ou tarde a viver melhor Em particular como não experimentar com mais força esse sentimento em relação à história ainda mais claramente predestinada acreditase a trabalhar em benefício do homem na medida em que tem o próprio homem e seus atos como material De fato uma velha tendência à qual atribuirseá pelo menos um valor de instinto nos inclina a lhe pedir os meios de guiar nossa ação em consequência a nos indignar contra ela como o soldado vencido de cuja frase eu lembrava caso eventualmente pareça mostrar sua impotência em fornecêlos O problema da utilidade da história no sentido estrito no sentido pragmático da palavra útil não se confunde com o de sua legitimidade propriamente intelectual Este a propósito só pode vir em segundo lugar para agir sensatamente não será preciso compreender em primeiro lugar Mas sob pena de não responder senão pela metade às sugestões mais imperiosas do senso comum este problema tampouco poderá ser elucidado A essas perguntas alguns entre nossos conselheiros ou entre os que gostariam de sêlo já responderam Foi para zombar de nossas esperanças Os mais indulgentes disseram a história é tanto sem utilidade como sem solidez Outros cuja severidade despreza meiasmedidas ela é perniciosa O produto mais perigoso que a química do cérebro já elaborou assim pronunciouse um deles e não dos menos notórios Essas condenações têm um temível atrativo justificam antecipadamente a ignorância Felizmente para o que ainda subsiste em nós de curiosidade intelectual não são irrecorríveis Mas se o debate deve ser reconsiderado convém que seja sobre dados mais seguros Pois há uma precaução que os habituais detratores da história parecem não ter percebido A palavra deles não carece nem de eloquência nem de espirituosidade Em sua maioria porém omitiramse de se informar exatamente sobre aquilo de que falam A imagem que fazem de nossos estudos não foi captada na oficina Recende antes a oratório e a Academia do que o gabinete de trabalho7 Está sobretudo caduca De maneira que tanta verve poderia afinal ter sido gasta para exorcizar apenas uma fantasia Nosso esforço aqui deve ser bem diferente Os métodos cujo grau de certeza buscaremos avaliar serão aqueles que a pesquisa realmente utiliza até na humilde e delicada minúcia de suas técnicas Nossos problemas serão os problemas mesmos impostos ao historiador cotidianamente por sua matéria8 Em resumo gostaríamos antes de tudo de dizer como e por que um historiador pratica seu ofício Ao leitor cabe decidir em seguida se tal ofício merece ser exercido Prestemos no entanto atenção É apenas aparentemente que mesmo assim compreendida e limitada a tarefa pode passar por simples Sêloia talvez se nos encontrássemos em presença de uma dessas artes aplicadas sobre as quais já nos detemos o suficiente ao enumerar umas após as outras suas manipulações longamente experimentadas Mas a história não é a relojoaria ou a marcenaria É um esforço para o conhecer melhor por conseguinte uma coisa em movimento Limitarse a descrever uma ciência tal qual é feita será sempre traí la um pouco É mais importante dizer como ela espera ser capaz de progressivamente ser feita Ora da parte do analista semelhante empreendimento exige forçosamente uma imensa dose de escolha pessoal Toda ciência com efeito é a cada uma de suas etapas constantemente atravessada por tendências divergentes que não são possíveis de dirimir sem uma espécie de aposta sobre o futuro Não se pretende aqui recuar diante dessa necessidade Em matéria intelectual não mais que em qualquer outra o horror das responsabilidades não é um sentimento muito recomendável Entretanto ao menos seria honesto alertar o leitor Do mesmo modo as dificuldades com as quais inevitavelmente se choca qualquer estudo dos métodos variam muito segundo o ponto alcançado por cada disciplina na curva sempre entrecortada de seu desenvolvimento Há cinquenta anos quando Newton reinava soberano era imagino singularmente mais fácil que hoje construir com um rigor de épura uma exposição sobre a mecânica Mas a história ainda se encontra numa fase bem mais desfavorável às certezas Pois a história não apenas é uma ciência em marcha É também uma ciência na infância como todas aquelas que têm por objeto o espírito humano esse temporão no campo do conhecimento racional Ou para dizer melhor velha sob a forma embrionária da narrativa de há muito apinhada de ficções há mais tempo ainda colada aos acontecimentos mais imediatamente apreensíveis ela permanece como empreendimento racional de análise jovem Tem dificuldades para penetrar enfim no subterrâneo dos fatos de superfície para rejeitar depois das seduções da lenda ou da retórica os venenos atualmente mais perigosos da rotina erudita e do empirismo disfarçados em senso comum Ela ainda não ultrapassou quanto a alguns dos problemas essenciais de seu método os primeiros passos E eis por que Fustel de Coulanges e já antes dele Bayle provavelmente não estavam totalmente errados ao dizêla a mais difícil de todas as ciências9 Porém será uma ilusão Por mais incerta que permaneça em muitos pontos nosso caminho estamos na hora presente pareceme mais bem situados do que nossos predecessores imediatos para ver um pouco mais claro As gerações que vieram logo antes da nossa nas últimas décadas do século XIX e até os primeiros anos do XX viveram como alucinadas por uma imagem muito rígida uma imagem verdadeiramente comtiana das ciências do mundo físico Ao estender ao conjunto das aquisições do espírito esse prestigioso esquema parecialhes então não existir conhecimento autêntico que não devesse desembocar em demonstrações incontinenti irrefutáveis em certezas formuladas sob o aspecto de leis imperiosamente universais Esta era uma opinião praticamente unânime Mas aplicada aos estudos históricos dará origem segundo os temperamentos a duas tendências opostas Alguns julgaram possível com efeito instituir uma ciência da evolução humana que se conformasse a esse ideal de certo modo pancientífico e deram o melhor de si para estabelecê la livres a propósito de se reginarem no sentido de finalmente deixar fora do alcance desse conhecimento dos homens muita coisa de realidades bem humanas mas que lhes pareciam desesperadamente refratárias a um conhecimento racional Esse resíduo era o que eles chamavam desdenhosamente de acontecimento era também uma boa parte da vida mais intimamente individual Essa foi em suma a posição da escola sociológica fundada por Durkheim Ao menos se não ignorarmos concessões que à primeira inflexibilidade dos princípios vimos pouco a pouco introduzidas por homens inteligentes demais para não sofrerem a não ser à revelia a pressão das coisas Nossos estudos devem muito a esse grande esforço Ele nos ensinou a analisar mais profundamente a cerrar mais de perto os problemas a pensar ousaria dizer menos barato Não falaremos dele senão com reconhecimento e respeito infinitos Se hoje parece ultrapassado é para todos os movimentos intelectuais cedo ou tarde o resgate de sua fecundidade Entretanto outros pesquisadores tomaram no mesmo momento atitude bem diferente Não conseguindo inserir a história nos quadros do legalismo físico particularmente preocupados além disso em razão de sua formação inicial com as dificuldades as dúvidas os frequentes recomeços da crítica documental colheram nessas constatações antes de tudo uma lição de humildade desiludida A disciplina à qual consagravam seus talentos não lhes pareceu no fim das contas capaz nem no presente nem no futuro de muitas perspectivas de progresso Inclinaramse a ver nela em lugar de um conhecimento verdadeiramente científico uma espécie de jogo estético ou melhor dizendo de exercício de higiene benéfico à saúde do espírito Foram denominados às vezes historiadores historizantes apelido injurioso para nossa corporação uma vez que parece fazer a essência da história consistir na própria negação de suas possibilidades De minha parte de bom grado acharia para eles no momento do pensamento francês ao qual se vinculam um sinal de identificação mais expressivo O amável e fugidio Sylvestre Bonnard se considerarmos as datas que o livro fixa para sua atividade é um anacronismo assim como esses santos antigos que os escritores da Idade Média descreviam ingenuamente sob as cores de sua própria época Sylvestre Bonnard por menos que se queira imaginar por um instante uma existência carnal sob essa sombra inventada o verdadeiro Sylvestre Bonnard nascido sob o Primeiro Império ainda teria pertencido à geração dos grandes historiadores românticos ele teria compartilhado seus entusiasmos comoventes e fecundos a fé algo cândida no futuro da filosofia da história Ignoremos a época à qual supõese ter pertencido e dirijamonos àquela que viu sua vida imaginária ser escrita ele merece figurar como padroeiro o santo corporativo de todo um grupo de historiadores que foram praticamente os contemporâneos intelectuais de seu biógrafo trabalhadores profundamente honestos mas de fôlego um pouco curto e sobre os quais se pensaria às vezes que semelhantes às crianças cujos pais se divertiram demais trazem em seus ossos a fadiga das grandes orgias históricas do romantismo dispostos a se fazerem bastante pequenos diante de seus confrades do laboratório em suma mais inclinados a nos aconselhar a prudência do que o impulso Seria excesso de malícia buscar sua divisa nessa frase espantosa que escapou um dia ao homem de inteligência tão viva que no entanto foi meu caro professor Charles Seignobos É muito útil colocarse questões mas muito perigoso respondêlas Esta não é seguramente a declaração de um fanfarrão Mas se os físicos não tivessem feito profissão de intrepidez onde estaria a física Ora nossa atmosfera mental não é mais a mesma A teoria cinética dos gases a mecânica einsteiniana a teoria dos quanta alteraram profundamente a noção que ainda ontem qualquer um formava sobre a ciência Não a diminuíram Mas a flexibilizaram Com certeza substituíram em muitos pontos o infinitamente provável o rigorosamente mensurável pela noção da eterna relatividade da medida Sua ação foi sentida até mesmo pelos inumeráveis espíritos devo infelizmente colocarme entre eles aos quais as fraquezas de sua inteligência ou de sua formação proíbem de seguir se não de muito longe e de certo modo por reflexo essa grande metamorfose Estamos portanto agora bem melhor preparados para admitir que mesmo sem se mostrar capaz de demonstrações euclidianas ou de imutáveis leis de repetição um conhecimento possa contudo pretender ao nome de científico Aceitamos muito mais facilmente fazer da certeza e do universalismo uma questão de grau Não sentimos mais a obrigação de buscar impor a todos os objetos do conhecimento um modelo intelectual uniforme inspirado nas ciências da natureza física uma vez que até nelas esse gabarito deixou de ser integralmente aplicado Não sabemos ainda muito bem o que um dia serão as ciências do homem Sabemos que para existirem mesmo continuando evidentemente a obedecer às regras fundamentais da razão não precisarão renunciar à sua originalidade nem ter vergonha dela Apreciaria que entre os historiadores de profissão os jovens em particular se habituassem a refletir sobre essas hesitações esses perpétuos arrependimentos de nosso ofício Será para eles a maneira mais segura de se preparar por uma escolha deliberada para orientar racionalmente seus esforços Desejaria sobretudo vêlos participar em número cada vez maior dessa história ao mesmo tempo ampliada e aprofundada da qual somos vários em nosso caso cada vez mais raros a conceber a proposta Se meu livro puder ajudálos terei a sensação de que não foi absolutamente inútil Há nele confesso um lado de programa Mas não escrevo unicamente nem tampouco sobretudo para o uso interno da oficina Tampouco cogitei esconder aos simples curiosos as irresoluções de nossa ciência Elas são nossa desculpa Melhor ainda dão frescor a nossos estudos Não apenas temos o direito de reclamar em favor da história a indulgência devida a todos os começos O inacabado embora tenda a ser perpetuamente superado tem para todo espírito um pouco ardoroso uma sedução que equivale à do mais perfeito triunfo O bom trabalhador disse ou disse quase isso Péguy ama o trabalho e a semeadura assim como as colheitas10 Convém que estas poucas palavras de introdução terminem com uma confissão pessoal Toda ciência tomada isoladamente não significa senão um fragmento do universal movimento rumo ao conhecimento Já tive oportunidade acima de dar um exemplo disso para melhor entender e apreciar seus procedimentos de investigação mesmo aparentemente os mais específicos seria indispensável saber associálos com uma característica perfeitamente segura ao conjunto das tendências que se manifestam no mesmo momento nas outras ordens de disciplina Ora esse estudo dos métodos em si mesmos constitui à sua maneira uma especialidade da qual os técnicos se nomeiam filósofos É um título ao qual não posso pretender Em função dessa lacuna em minha formação inicial o ensaio aqui apresentado sem dúvida perde muito em precisão de linguagem como em amplitude de horizonte Só posso apresentálo pelo que é o memento de um artesão que sempre gostou de meditar sobre sua tarefa cotidiana a caderneta de um colega que manejou por muito tempo a régua e o compasso sem por isso se julgar matemático11 Capítulo I A história os homens e o tempo 1 A escolha do historiador A palavra história é uma palavra antiquíssima tão antiga que às vezes nos cansamos dela Raramente é verdade chegouse a querer riscála completamente do vocabulário Os próprios sociólogos da era durkheimiana lhe dão espaço Mas é para relegála a um singelo cantinho das ciências do homem espécie de calabouço onde reservando à sociologia tudo que lhes parece suscetível de análise racional despejam os fatos humanos julgados ao mesmo tempo mais superficiais e mais fortuitos Vamos preservarlhe aqui ao contrário sua significação mais ampla O que não proíbe antecipadamente nenhuma orientação de pesquisa deva ela voltarse de preferência para o indivíduo ou para a sociedade para a descrição das crises momentâneas ou a busca dos elementos mais duradouros o que também não encerra em si mesmo nenhum credo não diz respeito segundo sua etimologia primordial senão à pesquisa Seguramente desde que surgiu já há mais de dois milênios nos lábios dos homens ela mudou muito de conteúdo É a sorte na linguagem de todos os termos verdadeiramente vivos Se as ciências tivessem a cada uma de suas conquistas que buscar por uma nova denominação para elas que batismos e que perdas de tempo no reino das academias Mesmo permanecendo pacificamente fiel a seu glorioso nome helênico nossa história não será absolutamente por isso aquela que escrevia Hecateu de Mileto assim como a física de lord Kelvin ou de Langevin não é a de Aristóteles Qual é ela então No começo deste livro centrado em torno dos problemas reais da pesquisa não haveria interesse algum em fazer uma longa e rigorosa definição Que trabalhador sério já se embaraçou com semelhantes artigos de fé1 A meticulosa precisão desses problemas não apenas deixa escapar o melhor de qualquer impulso intelectual vejam o que há nisso de simples veleidades de impulso rumo a um saber ainda mal determinado de extensão potencial O grande perigo deles está em não definir tão cuidadosamente senão para melhor delimitar Este tema diz o guardião dos deuses palavras ou esta maneira de tratálo eis provavelmente o que é capaz de seduzir Mas toma cuidado ó efebo isso não é a história Somos então um jurado dos tempos antigos para codificar as tarefas permitidas às pessoas do ofício e provavelmente uma vez a lista fechada reservar seu exercício a nossos mestres patenteados Os físicos e os químicos são mais esclarecidos já que nenhum deles que eu saiba jamais foi visto polemizando sobre os direitos respectivos da física da química da química física ou supondo que o termo exista da física química Não deixa de ser menos verdade que face à imensa e confusa realidade o historiador é necessariamente levado a nela recortar o ponto de aplicação particular de suas ferramentas em consequência a nela fazer uma escolha que muito claramente não é a mesma que a do biólogo por exemplo que será propriamente uma escolha de historiador Este é um autêntico problema de ação Ele nos acompanhará ao longo de todo o nosso estudo2 2 A história e os homens Dizse algumas vezes A história é a ciência do passado É no meu modo de ver falar errado3 Pois em primeiro lugar a própria ideia de que o passado enquanto tal possa ser objeto de ciência é absurda Como sem uma decantação prévia poderíamos fazer de fenômenos que não têm outra característica comum a não ser não terem sido contemporâneos matéria de um conhecimento racional Será possível imaginar em contrapartida uma ciência total do Universo em seu estado presente Sem dúvida nas origens da historiografia os velhos analistas não se constrangiam nem um pouco com tais escrúpulos Narravam desordenadamente acontecimentos cujo único elo era terem se produzido mais ou menos no mesmo momento os eclipses as chuvas de granizo a aparição de espantosos meteoros junto com batalhas tratados mortes dos heróis e dos reis Mas nessa primeira memória da humanidade confusa como a percepção de um bebê um esforço constante de análise pouco a pouco operou a classificação necessária É verdade a linguagem essencialmente tradicionalista conserva o nome de história para todo estudo de uma mudança na duração O hábito não traz perigo pois não engana ninguém Há nesse sentido uma história do sistema solar na medida em que os astros que o compõem nem sempre foram como os vemos Ela é da alçada da astronomia Há uma história das erupções vulcânicas que é estou convencido disso do mais vivo interesse para a física do globo Ela não pertence à história dos historiadores Ou pelo menos não lhe pertence na medida em que talvez suas observações por algum viés se reuniriam às preocupações específicas da história que nos diz respeito Como estabelecer portanto na prática a divisão das tarefas Sem dúvida para apreender isso um exemplo é melhor que muitos discursos No século X de nossa era um golfo profundo o Zwin recortava a costa flamenga Depois foi tomado pela areia A que seção do conhecimento levar o estudo desse fenômeno De imediato todos designarão a geologia Mecanismo de aluvionamento papel das correntes marinhas mudanças talvez no nível dos oceanos não foi ela criada e posta no mundo para tratar de tudo isso Certamente Olhando de perto porém as coisas não são de modo algum assim tão simples Tratarseia em primeiro lugar de escrutar as origens da transformação Eis o nosso geólogo já obrigado a se colocar questões que não são mais estritamente de sua alçada Pois sem dúvida esse assoreamento foi pelo menos favorecido por construções de diques desvios de canais secas diversos atos do homem resultado de necessidades coletivas e que apenas uma certa estrutura social torna possíveis Na outra ponta da cadeia novo problema o das consequências A pouca distância do fundo do golfo uma cidade se erguia Era Bruges Comunicavase com ele por um breve trajeto fluvial Pelas águas do Zwin ela recebia ou expedia a maior parte das mercadorias que faziam dela guardadas todas as proporções a Londres ou a Nova York de sua época Vieram cada dia mais sensíveis os avanços da sedimentação Bruges tentou em vão à medida que a superfície inundada recuava empurrar ainda mais seus portos avançados para a foz e seus cais pouco a pouco adormeceram Decerto essa não foi absolutamente longe disso a causa única de seu declínio Age a física alguma vez sobre o social sem que sua ação seja preparada ajudada ou permitida por outros fatores que não venham do homem Mas no ritmo das ondas causais esta causa está pelo menos não poderíamos duvidar disso entre as mais eficazes Ora a obra de uma sociedade que remodela segundo suas necessidades o solo em que vive é todos intuem isso um fato eminentemente histórico Assim como as vicissitudes de um poderoso núcleo de trocas Através de um exemplo bem característico da topografia do saber eis portanto de um lado um ponto de sobreposição onde a aliança de duas disciplinas revelase indispensável a qualquer tentativa de explicação de outro um ponto de passagem onde depois de constatar um fenômeno e pôr seus efeitos na balança este é de certa maneira definitivamente cedido por uma disciplina à outra O que se produziu que parecera apelar imperiosamente à intervenção da história Foi que o humano apareceu Há muito tempo com efeito nossos grandes precursores Michelet Fustel de Coulanges nos ensinaram a reconhecer o objeto da história é por natureza o homem4 Digamos melhor os homens Mais que o singular favorável à abstração o plural que é o modo gramatical da relatividade convém a uma ciência da diversidade Por trás dos grandes vestígios sensíveis da paisagem os artefatos ou as máquinas por trás dos escritos aparentemente mais insípidos e as instituições aparentemente mais desligadas daqueles que as criaram são os homens que a história quer capturar Quem não conseguir isso será apenas no máximo um serviçal da erudição Já o bom historiador se parece com o ogro da lenda Onde fareja carne humana sabe que ali está a sua caça Do caráter da história como conhecimento dos homens decorre sua posição específica em relação ao problema da expressão Será uma ciência ou uma arte Sobre isso nossos bisavós por volta de 1800 gostavam de dissertar gravemente Mais tarde por volta dos anos 1890 banhados em uma atmosfera de positivismo um pouco rudimentar pôdese ver especialistas do método indignaremse com que nos trabalhos históricos o público desse importância para eles excessiva ao que eles chamavam forma Arte contra ciência forma contra fundo tantas polêmicas boas para devolver ao saco de processos da escolástica Não há menos beleza numa equação exata do que numa frase correta Mas cada ciência tem sua estética de linguagem que lhe é própria Os fatos humanos são por essência fenômenos muito delicados entre os quais muitos escapam à medida matemática Para bem traduzilos portanto para bem penetrálos pois será que se compreende alguma vez perfeitamente o que não se sabe dizer uma grande finesse de linguagem uma cor correta no tom verbal são necessárias Onde calcular é impossível impõese sugerir Entre a expressão das realidades do mundo físico e a das realidades do espírito humano o contraste é em suma o mesmo que entre a tarefa do operário fresador e a do luthier ambos trabalham no milímetro mas o fresador usa instrumentos mecânicos de precisão o luthier guiase antes de tudo pela sensibilidade do ouvido e dos dedos Não seria bom nem que o fresador se contentasse com o empirismo do luthier nem que este pretendesse imitar o fresador Será possível negar que haja como o tato das mãos um das palavras 3 O tempo histórico Ciência dos homens dissemos É ainda vago demais É preciso acrescentar dos homens no tempo O historiador não apenas pensa humano A atmosfera em que seu pensamento respira naturalmente é a categoria da duração Decerto dificilmente imaginase que uma ciência qualquer que seja possa abstrair do tempo Entretanto para muitas dentre elas que por convenção o desintegram em fragmentos artificialmente homogêneos ele representa apenas uma medida Realidade concreta e viva submetida à irreversibilidade de seu impulso o tempo da história ao contrário é o próprio plasma em que se engastam os fenômenos e como o lugar de sua inteligibilidade O número dos segundos anos ou séculos que um corpo radioativo exige para se transformar em outros corpos é para a atomística um dado fundamental Mas que esta ou aquela dessas metamorfoses tenha ocorrido há mil anos ontem ou hoje ou que deva se produzir amanhã sem dúvida tal consideração interessaria ao geólogo porque a geologia é à sua maneira uma disciplina histórica ela deixa o físico frio como gelo Nenhum historiador em contrapartida se contentará em constatar que César levou oito anos para conquistar a Gália e que foram necessários quinze anos a Lutero para que do ortodoxo noviço de Erfurt saísse o reformador de Wittenberg Importalhe muito mais atribuir à conquista da Gália seu exato lugar cronológico nas vicissitudes das sociedades europeias e sem absolutamente negar o que uma crise espiritual como a de irmão Martinho continha de eterno só julgará ter prestado contas disso depois de ter fixado com precisão seu momento na curva dos destinos tanto do homem que foi seu herói como da civilização que teve como atmosfera Ora esse tempo verdadeiro é por natureza um continuum É também perpétua mudança Da antítese desses dois atributos provêm os grandes problemas da pesquisa histórica Acima de qualquer outro aquele que questiona até a razão de ser de nossos trabalhos Sejam dois períodos sucessivos recortados na sequência ininterrupta das eras Em que medida o vínculo que estabelece entre eles o fluxo da duração prevalecendo ou não sobre a dessemelhança resultante dessa própria duração devemos considerar o conhecimento do mais antigo como necessário ou supérfluo para a compreensão do mais recente 4 O ídolo das origens Nunca é mau começar por um mea culpa Naturalmente cara a homens que fazem do passado seu principal tema de estudos de pesquisa a explicação do mais próximo pelo mais distante dominou nossos estudos às vezes até à hipnose Sob sua forma mais característica esse ídolo da tribo dos historiadores tem um nome é a obsessão das origens No desenvolvimento do pensamento histórico teve também seu momento particular de favor Foi Renan acho quem escreveu um dia cito de memória portanto receio inexatamente Em todas as coisas humanas as origens em primeiro lugar são dignas de estudo E Sainte Beuve antes dele Espio e observo com5 curiosidade aquilo que começa A ideia é bem de sua época A palavra origens também Às Origens do cristianismo 6 corresponderam um pouco mais tarde aquelas da França contemporânea7 Sem contar os epígonos Mas a palavra é preocupante pois equívoca Significa simplesmente começo8 Isso seria quase claro Com a ressalva entretanto de que para a maioria das realidades históricas a própria noção desse ponto inicial permanece singularmente fugaz9 Caso de definição provavelmente De uma definição que infelizmente esquecese muito facilmente de fornecer Será que ao contrário por origens entendese as causas Então não haveria mais outras dificuldades a não ser aquelas que constantemente e sem dúvida mais ainda nas ciências do homem são por natureza inerentes às investigações causais Mas entre os dois sentidos frequentemente se constitui uma contaminação tão temível que não é em geral muito claramente sentida Para o vocabulário corrente as origens são um começo que explica Pior ainda que basta para explicar Aí mora a ambiguidade aí mora o perigo Haveria outra pesquisa a fazer das mais interessantes sobre essa obsessão embriogênica tão marcada em toda uma família de grandes espíritos Como não raro acontece nada sendo mais difícil do que estabelecer entre as diversas ordens de conhecimento uma exata simultaneidade as ciências do homem aqui se atrasaram em relação às ciências da natureza Pois estas já se encontravam por volta da metade do século XIX dominadas pelo evolucionismo biológico que supõe ao contrário um progressivo afastamento das formas ancestrais e explica isso a cada etapa pelas condições de vida ou de ambiente próprios ao momento Este gosto apaixonado pelas origens a filosofia francesa da história de Victor Cousin a Renan recebera acima de tudo do romantismo alemão Ora em seus primeiros passos este fora contemporâneo de uma fisiologia bem anterior à nossa a dos préreformistas que acreditavam encontrar ora no esperma ora no ovo um resumo da idade adulta Acrescentem a glorificação do primitivo Ela havia sido familiar ao século XVIII francês Porém herdeiros desse tema os pensadores da Alemanha romântica antes de o retransmitir a nossos historiadores seus discípulos o ornamentaram por sua vez com os prestígios de muitas seduções ideológicas novas Que palavra nossa conseguirá um dia expressar a força desse famoso prefixo germânico Ur Urmensch Urdichtung Tudo inclinava portanto essas gerações a atribuir nas coisas humanas uma importância extrema aos fatos do início Um outro elemento entretanto de natureza bem diferente também exerceu sua ação Na história religiosa o estudo das origens assumiu espontaneamente um lugar preponderante porque parecia fornecer um critério para o próprio valor das religiões Designadamente10 da religião cristã Bem sei para alguns neocatólicos entre os quais de resto mais de um não absolutamente católico a moda atual é zombar dessas preocupações de exegeta Não compreendo sua emoção declarava Barrès a um padre que perdera a fé As discussões de um punhado de eruditos em torno de algumas palavras hebraicas o que tem isso a ver com minha sensibilidade Bastame a atmosfera das igrejas E Maurras por sua vez Que me importam evangelhos de quatro judeus obscuros Obscuros quer dizer imagino plebeus pois em Mateus Marcos Lucas e João parece difícil não reconhecer pelo menos uma certa notoriedade literária Esses engraçadinhos ficam tentando nos convencer e nem Pascal nem Bossuet teriam certamente falado assim Sem dúvida podese conceber uma experiência religiosa que nada deva à história Ao puro deísta basta uma iluminação interior para crer em Deus Não para crer no Deus dos cristãos Pois o cristianismo já mencionei isso é por essência uma religião histórica vejam bem cujos dogmas primordiais se baseiam em acontecimentos Releiam seu Credo Creio em Jesus Cristo que foi crucificado sob Pôncio Pilatos e ressuscitou dentre os mortos no 3º dia Também nesse caso os primórdios da fé são seus fundamentos Ora por um contágio sem dúvida inevitável essas preocupações que em uma certa forma de análise religiosa podiam ter sua razão de ser estenderamse a outros campos de pesquisa onde sua legitimidade era muito mais contestável Aí também uma história centrada sobre os nascimentos foi colocada a serviço da apreciação dos valores Ao escrutar as origens da França de sua época o que propunha Taine senão denunciar o erro de uma política oriunda a seu ver de uma falsa filosofia do homem Quer se trate das invasões germânicas ou da conquista normanda da Inglaterra o passado só foi empregado tão ativamente para explicar o presente no desígnio do melhor justificar ou condenar De modo que em muitos casos o demônio das origens foi talvez apenas um avatar desse outro satânico inimigo da verdadeira história a mania do julgamento Voltemos todavia aos estudos cristãos Uma coisa é para a inquieta consciência que busca uma regra para si fixar sua atitude em relação à religião católica tal como é definida cotidianamente outra coisa é para o historiador explicar o catolicismo do presente como um fato de observação Indispensável é claro a uma correta percepção dos fenômenos religiosos atuais o conhecimento de seus primórdios não basta para explicálos A fim de simplificar o problema chegamos a renunciar a nos perguntar até que ponto sob um nome que não mudou a fé em sua substância permaneceu realmente imutável Por mais intacta que suponhamos uma tradição faltará sempre apresentar as razões de sua manutenção Razões humanas é claro a hipótese de uma ação providencial escaparia à ciência A questão em suma não é mais saber se Jesus foi crucificado depois ressuscitado O que agora se trata de compreender é como é possível que tantos homens ao nosso redor creiam na Crucificação e na Ressurreição Ora a fidelidade a uma crença é apenas com toda evidência um dos aspectos da vida geral do grupo no qual essa característica se manifesta Ela se situa no nó onde se misturam um punhado de traços convergentes seja de estrutura social seja de mentalidade Ela coloca em suma todo um problema de clima humano O carvalho nasce da glande Mas carvalho se torna e permanece apenas ao encontrar condições de ambiente favoráveis as quais não resultam da embriologia A história religiosa foi citada aqui apenas a título de exemplo A qualquer atividade humana que seu estudo se associe o mesmo erro sempre espreita o intérprete confundir uma filiação com uma explicação Essa já era em suma a ilusão dos antigos etimologistas que pensavam ter dito tudo quando sob o olhar do sentido atual apresentavam o mais antigo sentido conhecido quando haviam provado imagino que bureau designou primitivamente um pano ou timbre um tambor Como se não fosse mais necessário explicar esse deslizamento Como se sobretudo o papel de uma palavra na língua não fosse assim como seu próprio passado comandado pelo estado contemporâneo do vocabulário reflexo por sua vez do estado social do momento Bureaux em bureaux do ministério supõe uma burocracia Quando peço timbresI no guichê do correio o emprego que assim faço do termo exigiu para se estabelecer junto com a organização lentamente elaborada de um serviço postal a transformação técnica que para grande benefício das trocas entre pensamentos substituiu a impressão de um lacre pela aposição de uma etiqueta gomada Ele tornouse possível apenas porque especializadas por ofícios as diferentes acepções da velha palavra se distanciaram demais hoje em dia uma da outra para deixar subsistir o menor risco de confusão entre o timbre de minha carta e aquele por exemplo de cuja pureza o luthier se gaba em seus instrumentos Origens do regime feudal dizse Onde buscálas Alguns responderam em Roma Outros na Germânia As razões dessas miragens são evidentes Aqui e ali certos costumes com efeito existiam relações de clientela companheirismo guerreiro papel da tenureII como salário dos serviços a que as gerações posteriores contemporâneas na Europa das épocas ditas feudais deviam dar sequência Não aliás sem modificálos muito Das duas partes sobretudo eram empregadas palavras tais como benefício beneficium para os latinos feudo para os germanos das quais essas gerações persistirão em se servir ainda que lhes conferindo sem se dar conta um conteúdo quase inteiramente novo Pois para grande desespero dos historiadores os homens não têm o hábito a cada vez que mudam de costumes de mudar de vocabulário Estas são certamente constatações interessantíssimas Podemos crer que esgotam o problema das causas O feudalismo europeu em suas instituições características não foi um arcaico tecido de sobrevivências Durante certa fase de nosso passado ele nasceu de todo um clima social O sr Seignobos disse em algum lugar Creio que as ideias revolucionárias do século XVIII provêm das ideias inglesas do XVII Queria ele dizer com isso que tendo lido certos escritos ingleses do século precedente ou sofrido indiretamente sua influência os publicistas franceses da idade das Luzes adotaram seus princípios políticos Podemos lhe dar razão Supondo ao menos que nossos filósofos por sua vez nada tenham despejado de original nas fórmulas estrangeiras como substância intelectual ou como tonalidade de sentimento Mas mesmo assim reduzida não sem muita arbitrariedade a um empréstimo a história desse movimento de pensamento está longe de ser11 esclarecida Pois sempre restará o problema de saber por que a transmissão se operou na data indicada nem mais cedo nem mais tarde Um contágio supõe duas coisas gerações de micróbios e no momento em que a doença se instala um terreno Em suma nunca se explica plenamente um fenômeno histórico fora do estudo de seu momento Isso é verdade para todas as etapas da evolução Tanto daquela em que vivemos como das outras12 O provérbio árabe disse antes de nós Os homens se parecem mais com sua época do que com seus pais Por não ter meditado essa sabedoria oriental o estudo do passado às vezes caiu em descrédito 5 Passado e presente Nos antípodas dos exploradores de origens situamse os devotos do imediato Montesquieu em uma de suas obras de juventude fala dessa cadeia infinita das causas que se multiplicam e combinam de século em século A crer em certos escritores a cadeia em sua extremidade mais próxima de nós estaria aparentemente bem tênue Pois eles concebem o conhecimento do que chamam presente como quase absolutamente desligado do passado A ideia espalhouse demais para não merecer que busquemos dissecar seus elementos Convém primeiramente observar tomada ao pé da letra ela seria propriamente impensável13 O que é com efeito o presente No infinito da duração um ponto minúsculo e que foge incessantemente um instante que mal nasce morre Mal falei mal agi e minhas palavras e meus atos naufragam no reino de Memória São palavras ao mesmo tempo banais e profundas do jovem Goethe não existe presente apenas um devir nichts gegenwärtig alles vorübergehend Condenada a uma eterna transfiguração uma pretensa ciência do presente se metamorfosearia a cada momento de seu ser em ciência do passado Já sei será denunciada14 como sofismo Na linguagem corrente presente quer dizer passado recente Aceitemos portanto de agora em diante sem hesitação esse emprego um pouco frouxo da palavra Não que isso não levante por sua vez sérias dificuldades À noção de proximidade não apenas falta precisão de quantos anos se trata como ela também nos coloca em presença do mais efêmero dos atributos Embora o momento atual no sentido estrito do termo não seja senão uma perpétua evanescência a fronteira entre o presente e o passado não se desloca por isso num movimento menos constante O regime da moeda estável e do padrãoouro que ontem figurava em todos os manuais de economia política como a própria norma da atualidade ainda será presente para o economista de hoje Ou é a história que já cheira um pouco a mofo Por trás desses paralogismos no entanto é fácil descobrir um leque de ideias menos inconsistentes cuja simplicidade pelo menos aparentemente seduziu certos espíritos Acreditase poder colocar à parte uma fase de pouca extensão no vasto escoamento do tempo Relativamente pouco distante para nós em seu ponto de partida ela abarca em seu desfecho os próprios dias em que vivemos Nela nada nem as características mais marcantes do estado social ou político nem o aparato material nem a tonalidade genérica da civilização nela nada apresenta ao que parece diferenças profundas com o mundo onde temos nossos hábitos Ela parece em suma afetada em relação a nós por um coeficiente muito forte de contemporaneidade Daí a honra ou a tara de não ser confundida com o restante do passado A partir de 1830 já não é mais história dizianos um de nossos professores de liceu que era muito velho quando eu era muito jovem é política Não diríamos mais hoje a partir de 1830 as Três Gloriosas por sua vez envelheceram nem é política Antes num tom respeitoso é sociologia ou com menos consideração jornalismo Muitos porém repetiriam de bom grado a partir de 1914 ou 1940 não é mais história Sem aliás entenderemse muito bem sobre os motivos desse ostracismo15 Alguns16 estimando que os fatos mais próximos a nós são por isso mesmo rebeldes a qualquer estudo verdadeiramente sereno desejavam simplesmente poupar à casta Clio contatos demasiado ardentes17 Assim pensava imagino meu velho professor Isso é certamente atribuirnos um fraco domínio dos nervos É também esquecer que a partir do momento em que entram em jogo as ressonâncias sentimentais o limite entre o atual e o inatual está longe de se ajustar necessariamente pela média matemática de um intervalo de tempo Estava tão errado meu bravo diretor do liceu languedociano onde empunhei minhas primeiras armas18 que advertiame com sua voz grossa de capitão de ensino Aqui o século XIX não é muito perigoso19 quando chegares nas guerras de Religião sê prudente Na verdade quem uma vez diante de sua mesa de trabalho não tiver a força de poupar seu cérebro do vírus do momento será bem capaz de destilar suas toxinas até num comentário sobre a Ilíada ou o Ramayana Outros cientistas ao contrário acham com razão o presente humano perfeitamente suscetível de conhecimento científico Mas é para reservar seu estudo a disciplinas bem distintas daquela que tem o passado como objeto Eles analisam por exemplo pretendem compreender a economia contemporânea com a ajuda de observações limitadas no tempo a algumas décadas Em suma consideram a época em que vivem como separada das que a precederam por contrastes vivos demais para trazer em si mesma sua própria explicação Esta é também a atitude instintiva de muitos curiosos simplistas A história dos períodos um pouco distantes só os seduz como um inofensivo luxo do espírito De um lado um punhado de antiquários ocupados por macabra dileção em desenfaixar os deuses mortos do outro sociólogos economistas publicistas os únicos exploradores do vivo O curioso é que a ideia desse cisma surgiu bem recentemente20 Os velhos historiadores gregos um Heródoto um Tucídides mais próximos de nós os verdadeiros mestres de nossos estudos os ancestrais cujas imagens merecerão eternamente figurar na cella da corporação jamais imaginaram que para explicar a tarde bastasse conhecer no máximo a manhã21 Aquele que quiser se circunscrever ao presente ao atual não compreenderá o atual escrevia22 Michelet no início desse belo livro sobre O povo ainda que sentindo os frêmitos contudo das febres do século E Leibniz já colocava entre os benefícios que esperava da história as origens das coisas presentes encontradas nas coisas passadas pois acrescentava uma realidade nunca é compreendida melhor do que por suas causas Mas desde Leibniz desde Michelet um grande fato se produziu as revoluções sucessivas das técnicas ampliaram desmedidamente o intervalo psicológico entre as gerações Não sem alguma razão talvez o homem da era da eletricidade e do avião se sinta bem longe de seus ancestrais De bom grado ele conclui disso mais imprudentemente que deixou de por eles ser determinado Acrescentem o estilo modernista inato a qualquer mentalidade de engenheiro Para fazer funcionar ou reparar um dínamo será necessário ter dominado as ideias do velho Volta sobre o galvanismo Por uma analogia sem dúvida capenga mas que se impõe espontaneamente a mais de uma inteligência submetida à máquina vão pensar do mesmo modo que para compreender os grandes problemas humanos do momento e tentar resolvêlos de nada serve ter analisado seus antecedentes Tragados eles também sem muito se dar conta por essa atmosfera mecanicista certos historiadores fazem coro Como explicação do presente a história se reduziria quase ao estudo do período contemporâneo Assim não temiam escrever em 1899 dois dentre eles Olhando de perto o privilégio de autointeligibilidade assim reconhecido no presente apoia se numa série de estranhos postulados Supõe em primeiro lugar que as condições humanas sofreram no intervalo de uma ou duas gerações uma mudança não apenas muito rápida mas também total de modo que nenhuma instituição um pouco antiga nenhuma maneira de se conduzir tradicional teria escapado às revoluções do laboratório ou da fábrica Isso é esquecer a força da inércia própria a tantas criações sociais O homem passa seu tempo a montar mecanismos dos quais permanece em seguida prisioneiro mais ou menos voluntário Que observador percorrendo nossos campos do Norte não ficou admirado com o estranho desenho das paisagens A despeito das atenuações que as vicissitudes da propriedade ao longo das épocas trouxeram ao esquema primitivo o espetáculo dessas faixas que exageradamente estreitas e compridas cortam o solo arável em um número prodigioso de frações conserva ainda hoje com o que confundir o agrônomo O desperdício de esforços que acarreta semelhante disposição e os incômodos que impõe aos exploradores não são nada contestáveis Como explicálo Pelo Código Civil e seus inevitáveis efeitos responderam publicistas apressados demais Modifiquem então acrescentavam nossas leis sobre a herança e suprimirão todo o mal Se conhecessem melhor a história se tivessem também melhor interrogado uma mentalidade camponesa formada por séculos de empirismo teriam julgado o remédio menos fácil De fato essa armadura remonta a origens tão recuadas que nem um cientista até aqui conseguiu relatar isso satisfatoriamente23 os decifradores da era dos dólmens provavelmente têm mais responsabilidade quanto a isso do que os legistas do Primeiro Império24 Ao se prolongar aqui o erro sobre a causa como acontece quase necessariamente na ausência de terapêutica a ignorância do passado não se limita a prejudicar a compreensão do presente compromete no presente a própria ação Tem mais Para que uma sociedade qualquer que fosse pudesse ser inteiramente determinada pelo momento logo anterior àquele que vive não lhe bastaria uma estrutura tão perfeitamente adaptável à mudança que ficaria efetivamente desossada Seria preciso ainda que as trocas entre as gerações operassem apenas se ouso dizer em fila indiana as crianças só tendo contatos com seus ancestrais por intermédio dos pais25 Ora isso não é verdade inclusive em relação a comunicações puramente orais26 Vejam por exemplo nossas aldeias Pelo fato de as condições do trabalho manterem ali praticamente o dia inteiro o pai e a mãe afastados dos filhos pequenos estes são educados sobretudo pelos avós A cada nova formação do espírito portanto dáse um passo atrás que por cima da geração eminentemente portadora de mudanças liga os cérebros mais maleáveis aos mais cristalizados Daí acima de tudo não duvidemos disso o tradicionalismo inerente a tantas sociedades camponesas O caso é particularmente claro E não é único Exercendose o antagonismo natural aos grupos de idade principalmente entre grupos limítrofes mais de uma juventude deveu às aulas dos anciãos pelo menos tanto quanto àquela dos homens maduros Com mais forte razão o escrito facilita imensamente entre gerações às vezes muito afastadas essas transferências de pensamento que fazem propriamente a continuidade de uma civilização Lutero Calvino Loyola homens de outrora sem dúvida homens do século XVI os quais o historiador ocupado em compreender e fazer compreender terá como primeiro dever recolocar em seu meio banhados pela atmosfera mental de seu tempo face a problemas de consciência que já não são exatamente os nossos Ousarseá entretanto dizer que para correta compreensão do mundo atual a compreensão da Reforma protestante ou da Reforma católica afastadas de nós por um intervalo várias vezes centenário não tem mais importância do que muitos outros movimentos de ideia ou de sensibilidade mais próximos seguramente no tempo porém mais efêmeros O erro em suma é claro e sem dúvida para destruílo basta formulálo Representase a corrente da evolução humana como formada por uma série de breves e profundos sobressaltos dos quais cada um não duraria senão o espaço de algumas vidas A observação prova ao contrário que nesse imenso continuum os grandes abalos são perfeitamente capazes de propagar desde as moléculas mais longínquas até as mais próximas27 O que diríamos de um físico que contentandose em enumerar os miriâmetros estimasse a ação da Lua sobre nosso globo bem mais considerável do que a do Sol Não mais na duração do que no céu a eficácia de uma força não se mede exatamente por sua distância Entre as coisas passadas enfim aquelas mesmas crenças desaparecidas sem deixar o menor traço formas sociais abortadas técnicas mortas que parece deixaram de comandar o presente vamos considerálas por esse motivo inúteis à sua compreensão Seria esquecer que não existe conhecimento verdadeiro sem uma certa escala de comparação Sob a condição é verdade de que a aproximação diga respeito a realidades ao mesmo tempo diversas e não obstante aparentadas Não se negará absolutamente que não seja este o caso aqui Decerto não estimamos mais hoje em dia que como escrevia Maquiavel como pensavam Hume ou Bonald haja no tempo pelo menos algo de imutável é o homem Aprendemos que o homem também mudou muito em seu espírito e sem dúvida até nos mais delicados mecanismos de seu corpo Como poderia ser de outro modo Sua alimentação não menos É preciso claro no entanto que exista na natureza humana e nas sociedades humanas um fundo permanente sem o que os próprios nomes de homem e de sociedade nada iriam querer dizer Portanto acreditamos compreender estes homens estudandoos apenas em suas reações diante das circunstâncias particulares de um momento Mesmo para o que eles são nesse momento a experiência será insuficiente Muitas virtualidades provisoriamente pouco aparentes mas que a cada instante podem despertar muitos motores mais ou menos inconscientes das atitudes individuais ou coletivas permanecerão na sombra Uma experiência única é sempre impotente para discriminar seus próprios fatores por conseguinte para fornecer sua própria interpretação28 Do mesmo modo essa solidariedade das épocas tem tanta força que entre elas os vínculos de inteligibilidade são verdadeiramente de sentido duplo A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado Mas talvez não seja menos vão esgotarse em compreender o passado se nada se sabe do presente Já contei em outro lugar o episódio eu estava acompanhando em Estocolmo Henri Pirenne Mal chegamos ele me diz O que vamos ver primeiro Parece que há uma prefeitura nova em folha Comecemos por ela Depois como se quisesse prevenir um espanto acrescentou Se eu fosse antiquário só teria olhos para as coisas velhas29 Mas sou um historiador É por isso que amo a vida Essa faculdade de apreensão do que é vivo eis justamente com efeito a qualidade mestra do historiador Não nos deixemos enganar por certa frieza de estilo30 os maiores entre nós a possuíram todos31 Fustel ou Maitland à sua maneira que era mais austero não menos que Michelet E talvez ela seja em seu princípio um dom das fadas que ninguém pode pretender adquirir se não o trouxe do berço Nem por isso ela deixa de precisar ser constantemente exercitada e desenvolvida Como senão assim como o próprio Pirenne por um contato perpétuo com o hoje Pois o frêmito da vida humana que exige um duríssimo esforço de imaginação para ser restituído aos velhos textos é aqui diretamente perceptível a nossos sentidos32 Li muitas vezes narrei frequentemente relatos de guerras e de batalhas Conhecia eu verdadeiramente no sentido pleno do verbo conhecer conhecia por dentro antes de ter eu mesmo experimentado a atroz náusea o que são para um exército o cerco para um povo a derrota Antes de ter eu mesmo durante o verão e o outono de 1918 respirado a alegria da vitória na expectativa e decerto espero de com ela encher uma segunda vez meus pulmões mas o perfume ai de mim não será mais completamente o mesmo sabia eu verdadeiramente o que encerra essa bela palavra Na verdade conscientemente ou não é sempre a nossas experiências cotidianas que para nuançálas onde se deve atribuímos matizes novos em última análise os elementos que nos servem para reconstituir33 o passado os próprios nomes que usamos a fim de caracterizar os estados de alma desaparecidos as formas sociais evanescidas que sentido teriam para nós se não houvéssemos antes visto homens viverem Vale mais cem vezes substituir essa impregnação instintiva por uma observação voluntária e controlada Um grande matemático não será menos grande suponho por haver atravessado de olhos fechados o mundo onde vive Mas o erudito que não tem o gosto de olhar a seu redor nem os homens nem as coisas nem os acontecimentos ele merecerá talvez como dizia Pirenne o título de um útil antiquário E agirá sensatamente renunciando ao de historiador Além de tudo a educação da sensibilidade histórica nem sempre está sozinha em questão Ocorre de em uma linha34 dada o conhecimento do presente ser diretamente ainda mais importante para a compreensão do passado Com efeito seria um erro grave acreditar que a ordem adotada pelos historiadores em suas investigações deva necessariamente modelarse por aquela dos acontecimentos Livres para em seguida restituir à história seu movimento verdadeiro eles frequentemente têm proveito em começar por lêla como dizia Maitland às avessas35 Pois a démarche natural de qualquer pesquisa é ir do mais ou do menos mal conhecido ao mais obscuro36 Sem dúvida falta e muito para que a luz dos documentos se faça regularmente mais viva à medida que percorremos o fio das eras Somos incomparavelmente menos informados sobre o século X de nossa era por exemplo do que sobre a época de César ou de Augusto Na maioria dos casos os períodos mais próximos não coincidem menos nesse aspecto com as zonas de clareza relativa Acrescentem que ao proceder mecanicamente de trás para frente correse sempre o risco de perder tempo na busca das origens ou das causas de fenômenos que à luz da experiência irão revelarse talvez imaginários Por ter se omitido de praticar ali onde se impunha um método prudentemente regressivo os mais ilustres dentre nós às vezes se entregaram a estranhos erros Fustel de Coulanges debruçouse sobre as origens de instituições feudais das quais não formava receio senão uma imagem confusíssima e sobre as premissas de uma servidão que mal instruído por descrições de segunda mão concebia sob cores absolutamente falsas Ora sem dúvida menos excepcionalmente do que se pensa acontece de a fim de atingir o dia ser preciso prosseguir até o presente Em certas de suas características fundamentais nossa paisagem rural já o sabemos data de épocas extremamente remotas Mas para interpretar os raros documentos que nos permitem penetrar nessa brumosa gênese para formular corretamente os problemas para até mesmo fazer uma ideia deles uma primeira condição teve que ser cumprida observar analisar a paisagem de hoje Pois apenas ela dá as perspectivas de conjunto de que era indispensável partir Não decerto que se trate tendo imobilizado de uma vez por todas essa imagem de impôla tal qual a cada etapa do passado sucessivamente encontrado da montante à jusante Aqui como em todo lugar essa é uma mudança que o historiador quer captar Mas no filme por ele considerado apenas a última película está intacta Para reconstituir os vestígios quebrados das outras tem obrigação de antes desenrolar a bobina no sentido inverso das sequências Portanto não há senão uma ciência dos homens no tempo e que incessantemente tem necessidade de unir o estudo dos mortos ao dos vivos Como chamálo Já disse por que o antigo nome de história me parece o mais compreensivo o menos exclusivo o menos carregado também das comoventes lembranças de um esforço muito mais que secular portanto o melhor Propondo assim estendêlo contrariamente a certos preconceitos aliás muito menos velhos do que ela até o conhecimento do presente não buscamos será preciso defendernos nenhuma reivindicação corporativa A vida é muito breve os conhecimentos a adquirir muito longos para permitir até para o mais belo gênio uma experiência total da humanidade O mundo atual terá sempre seus especialistas como a idade da pedra ou a egiptologia A ambos pedese simplesmente para se lembrarem de que as investigações históricas não sofrem de autarquia Isolado nenhum deles jamais compreenderá nada senão pela metade mesmo em seu próprio campo de estudos e a única história verdadeira que só pode ser feita através de ajuda mútua é a história universal Uma ciência entretanto não se define apenas por seu objeto Seus limites podem ser fixados também pela natureza própria de seus métodos Resta portanto nos perguntarmos se segundo nos aproximemos ou afastemos do momento presente as próprias técnicas da investigação não deveriam ser tidas por essencialmente diferentes Isto é colocar o problema da observação histórica I Selo em francês NT II Tenure terra cedida como pagamento de serviços porém apenas para uso O concedente retinha os direitos de propriedade NT Capítulo II A observação histórica 1 Características gerais da observação histórica Situemonos resolutamente para começar no estudo do passado As características mais visíveis da informação histórica entendida no sentido restrito e usual do termo foram muitas vezes descritas O historiador por definição está na impossibilidade de ele próprio constatar os fatos que estuda Nenhum egiptólogo viu Ramsés nenhum especialista das guerras napoleônicas ouviu o canhão de Austerlitz Das eras que nos precederam só poderíamos portanto falar segundo testemunhas Estamos a esse respeito na situação do investigador que se esforça para reconstruir um crime ao qual não assistiu do físico que retido no quarto pela gripe só conhecesse os resultados de suas experiências graças aos relatórios de um funcionário de laboratório Em suma em contraste com o conhecimento do presente o do passado seria necessariamente indireto Que haja nessas observações uma1 parte de verdade ninguém pensará em negálo Elas exigem no entanto serem sensivelmente nuançadas Um comandante de exército suponhamos acaba de obter uma vitória Imediatamente começa de punho próprio a escrever seu relato Concebeu o plano de batalha Dirigiua Graças à medíocre extensão do terreno pois decididos a colocar todos os ornatos em nosso jogo imaginamos um confronto dos tempos antigos concentrado num espaço pequeno ele pôde ver a refrega quase toda se desenrolar sob seus olhos Entretanto não duvidemos sobre mais de um episódio essencial lhe será forçoso referirse aos relatórios de seus tenentes2 No que aliás ele só fará se conformar transformado em narrador ao próprio comportamento que teve algumas horas mais cedo na ação Para coordenar a cada momento os movimentos de suas tropas nas vicissitudes do combate de que informações terá melhor se servido das imagens mais ou menos confusamente entrevistas através de seu binóculo ou dos relatos que traziam rédeas soltas estafetas ou ajudantes de campo Raramente um líder consegue ter a si mesmo como sua própria testemunha Entretanto até numa hipótese tão favorável o que resta da chamada observação direta pretenso privilégio do estudo do presente É que na verdade ela é quase sempre um mero artifício no instante pelo menos em que o horizonte do observador se alarga um pouco Toda coletânea de coisas vistas é em uma boa metade de coisas vistas por outro Economista estudo o movimento das transações este mês esta semana é com a ajuda de estatísticas que não foram feitas pessoalmente por mim Explorador da crista da atualidade ponhome a sondar a opinião pública sobre os grandes problemas do momento faço perguntas anoto confiro3 recenseio respostas O que me fornecem elas senão mais ou menos inabilmente expressa a imagem que meus interlocutores formam do que acreditam eles mesmos pensar ou aquela que pretendem me apresentar de seus pensamentos Eles são os sujeitos de minha experiência Mas ao passo que um fisiologista que disseca uma cobaia percebe com seus próprios olhos a lesão ou a anomalia buscada não conheço4 a situação de meus homens de rua senão por meio do panorama que eles mesmos aceitam me fornecer Porque no imenso tecido de acontecimentos gestos e palavras de que se compõe o destino de um grupo humano o indivíduo percebe apenas um cantinho estreitamente limitado por seus sentidos e sua faculdade de atenção porque além disso ele nunca possui5 a consciência imediata senão de seus próprios estados mentais todo conhecimento da humanidade qualquer que seja no tempo seu ponto de aplicação irá beber sempre nos testemunhos dos outros uma grande parte de sua substância O investigador do presente não é quanto a isso melhor aquinhoado do que o historiador do passado Mas tem mais A observação do passado mesmo de um passado muito recuado será com certeza sempre indireta a esse ponto Vemos muito bem por que razões a impressão desse distanciamento entre o objeto do conhecimento e o pesquisador impôsse com tanta força a tantos teóricos da história É que pensavam antes de tudo em uma6 história de acontecimentos até mesmo de episódios quero dizer aqueles que certo ou errado não é o momento de examinar dão extrema importância a retraçar exatamente os atos palavras ou atitudes de alguns personagens agrupados em uma cena de duração relativamente curta em que se concentram como na tragédia clássica todas as forças da crise do momento jornada revolucionária combate entrevista diplomática Contase que em 2 de setembro de 1792 a cabeça da princesa Lamballe havia desfilado na ponta de um chuço sob as janelas da família real É verdade isso É falso O sr Pierre Caron que escreveu sobre os Massacres um livro de admirável probidade não ousa se pronunciar Se lhe houvesse sido dado contemplar ele próprio de uma das torres do Templo o terrível cortejo teria seguramente a que se ater Pelo menos supondo que tendo preservado como podemos acreditar nessas circunstâncias todo seu sanguefrio de cientista houvesse além disso por uma justa desconfiança de sua memória tomado cuidado de anotar imediatamente suas observações Em tal caso sem nenhuma dúvida o historiador se sente em relação à boa testemunha de um fato presente em uma posição algo humilhante Fica como que no fim de uma fila na qual os avisos são transmitidos desde a frente de fileira em fileira Não é um lugar muito bom para se ser informado com segurança Assim um tempo atrás presenciei durante uma troca de guarda noturna7 passar ao longo da fila o grito Atenção Buracos de obus à esquerda O último homem recebeuo sob a forma Para a esquerda deu um passo nesse sentido e foi tragado Existem no entanto outras eventualidades Nos muros de certas cidadelas sírias erguidas alguns milênios antes de Jesus Cristo os arqueólogos descobriram presas em pleno entulho cerâmicas cheias de esqueletos de crianças Como não se poderia razoavelmente supor que essas ossadas estivessem ali por acaso estamos muito evidentemente diante de restos de sacrifícios humanos realizados no próprio momento da construção e a ela ligados Sobre as crenças que se exprimem através desses ritos seremos provavelmente obrigados a nos remeter a testemunhos da época caso existam ou a proceder por analogia com a ajuda de outros testemunhos Uma fé que não compartilhamos como então conhecêla8 senão através das palavras de outro É esse o caso é preciso repetir de todos os fenômenos de consciência a partir do momento em que são estranhos a nós Quanto ao fato mesmo do sacrifício em contrapartida nossa posição é bem diferente Decerto não o captamos propriamente falando de um relance absolutamente imediato Tampouco o geólogo a amonita onde descobre o fóssil Tampouco o físico o movimento molecular cujos efeitos deduz no movimento browniano Mas o raciocínio muito simples que ao excluir qualquer outra possibilidade de explicação nos permite passar do objeto verdadeiramente constatado ao fato cuja prova nos traz esse trabalho de interpretação rudimentar muito vizinho em suma das operações mentais instintivas sem as quais nenhuma sensação tornarseia percepção não há nada nele que entre a coisa e nós tenha exigido a interpolação de outro observador Os especialistas do método9 geralmente entenderam como conhecimento indireto aquele que não atinge o espírito do historiador senão pelo canal de espíritos humanos diferentes10 O termo talvez não seja bem escolhido limitase a indicar a presença de um intermediário não vemos por que esse elo seria necessariamente de natureza humana Aceitemos todavia sem discutir quanto às palavras o uso comum Nesse sentido nosso conhecimento das imolações murais na antiga Síria seguramente nada tem de indireto Ora assim também muitos outros vestígios do passado nos oferecem um acesso do mesmíssimo nível É o caso em sua quase totalidade da imensa massa de testemunhos não escritos e até de um bom número de escritos Se os mais conhecidos teóricos de nossos métodos não tivessem manifestado tão espantosa e soberba indiferença em relação às técnicas próprias da arqueologia se tivessem sido na ordem documentária obcecados pelo relato ao passo que na ordem dos fatos pelo acontecimento sem dúvida os veríamos menos prontos a nos jogar para uma observação eternamente dependente Nos túmulos reais de Ur na Caldeia encontraramse contas de colar feitas de amazonita Como as jazidas mais próximas dessa pedra situamse no coração da Índia ou nos arredores do lago Baikal parece se impor a conclusão de que a partir do terceiro milênio antes de nossa era as cidades do Baixo Eufrates mantinham relações de troca com terras extremamente longínquas A indução pode parecer boa ou frágil Qualquer juízo que se faça sobre ela tratase inegavelmente de uma indução do tipo mais clássico fundamentase na constatação de um fato e a palavra de outro em nada interfere nisso Mas os documentos materiais não são longe disso os únicos a possuir esse privilégio de poderem ser apreendidos de primeira mão Do mesmo modo o sílex talhado outrora pelo artesão da idade da pedra um traço de linguagem uma regra de direito incorporada em um texto um rito fixado por um livro de cerimônias ou representado sobre uma estela são realidades que nós próprios captamos e que exploramos por um esforço de inteligência estritamente pessoal Nenhum outro cérebro humano precisa ser convocado para isso como intermediário Não é absolutamente verdade para retomar a comparação de ainda há pouco que o historiador seja necessariamente reduzido a só saber o que acontece em seu laboratório por meio de relatos de um estranho Ele só chega depois de concluído o experimento sempre Mas se as circunstâncias o permitirem o experimento terá deixado resíduos os quais não é impossível que perceba com os próprios olhos É portanto em outros termos ao mesmo tempo menos ambíguos e mais compreensíveis que convém definir as indiscutíveis particularidades da observação histórica Como primeira característica o conhecimento de todos os fatos humanos no passado da maior parte deles no presente deve ser segundo a feliz expressão de François Simiand um conhecimento através de vestígios Quer se trate das ossadas emparedadas nas muralhas da Síria de uma palavra cuja forma ou emprego revele um costume de um relato escrito pela testemunha de uma cena antiga ou recente o que entendemos efetivamente por documentos senão um vestígio quer dizer a marca perceptível aos sentidos deixada por um fenômeno em si mesmo impossível de captar Pouco importa que o objeto original se encontre por natureza inacessível à sensação como o átomo cuja trajetória é tornada visível na câmara de Wilson ou que assim tenha se tornado só no presente por efeito do tempo como o limo apodrecido há milênios cuja impressão subsiste no bloco de hulha ou como as solenidades caídas em longo desuso que vemos pintadas e comentadas nas paredes dos templos egípcios Em ambos os casos o procedimento de reconstituição é o mesmo e todas as ciências oferecem muitos exemplos disso11 Mas do fato de um grande número de pesquisadores de todas as categorias veremse obrigados a não apreender certos fenômenos senão através de outros fenômenos destes derivados não resulta entre eles longe disso uma perfeita igualdade de meios É possível que como físico tenham eles próprios o poder de provocar o surgimento desses vestígios É possível ao contrário que fiquem reduzidos a esperálo do capricho de forças sobre as quais não exercem a menor influência Em ambos os casos a posição deles será muito evidentemente bastante diferente O que foi feito dos observadores dos fatos humanos Aqui a questão da data reassume seus direitos1213 Parece evidente que todos os fatos humanos um pouco complexos escapem à possibilidade de uma reprodução ou de uma orientação voluntárias e teremos a propósito que voltar a isso mais tarde Decerto desde as mais elementares medi das de sensação até os textos mais refinados da inteligência ou da emotividade existe14 uma experimentação psicológica Mas ela não se aplica em suma senão ao indivíduo A psicologia coletiva lhe é quase totalmente rebelde Não se poderia não se ousaria supondo que se o pudesse suscitar deliberadamente pânico ou um movimento de entusiasmo religioso Entretanto quando os fenômenos estudados pertencem ao presente ou ao passado muito recente o observador por mais incapaz que seja de forçálos a se repetir ou de infletir a seu belprazer seu desenrolar não se encontra do mesmo modo desarmado em relação a suas pistas Ele pode literalmente dar vida a algumas delas15 São os relatos das testemunhas Em 5 de dezembro de 1805 a experiência de Austerlitz não era assim como hoje suscetível de se repetir Porém o que havia feito na batalha este ou aquele regimento Caso Napoleão tivesse desejado algumas horas depois do cessarfogo informarse sobre isso duas palavras lhe bastariam para que um dos oficiais lhe enviasse um relatório16 Nenhum relato desse tipo público ou privado jamais foi ao contrário estabelecido Os que foram17 escritos se perderam Por mais que façamos por nossa vez a mesma pergunta ela corre o grande risco de permanecer eternamente sem resposta ao lado de muitas outras muito mais importantes Qual historiador não sonhou poder como Ulisses alimentar as sombras com sangue para interrogálas18 Mas os milagres da Nekuia não estão mais em voga e não existe outra máquina de voltar no tempo senão a que funciona em nosso cérebro com materiais fornecidos por gerações passadas Sem dúvida tampouco devemos exagerar os privilégios do estudo do presente Imaginemos que todos os oficiais que todos os homens do regimento tenham morrido ou mais simplesmente que entre os sobreviventes não se tenham encontrado testemunhas cuja memória cujas faculdades de atenção fossem dignas de crédito Napoleão não terá sido melhor aquinhoado do que nós19 Qualquer um que tenha tomado parte mesmo no papel mais humilde em qualquer grande ação sabe bem que acontece de um episódio às vezes capital tornarse ao cabo de poucas horas impossível de precisar Acrescentese que nem todas as pistas se prestam com a mesma docilidade a essa evocação retrospectiva Se as aduanas deixaram de registrar a cada dia em novembro de 1942 a entrada e saída das mercadorias não terei praticamente meio algum em dezembro de apreciar o comércio exterior do mês precedente Em resumo da investigação sobre o remoto à investigação sobre o passado muito recente a diferença é uma vez mais apenas de grau Ela não atinge o fundo dos métodos Não deixa de ser menos importante por isso e convém daí extrair as consequências O passado é por definição um dado que nada mais modificará Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso que incessantemente se transforma e aperfeiçoa Para quem duvidasse bastaria lembrar20 o que há pouco mais de um século aconteceu sob nossos olhos Imensos contingentes da humanidade saíram das brumas O Egito e a Caldeia sacudiram suas mortalhas As cidades da Ásia central revelaram suas línguas que ninguém mais sabia falar e suas religiões há muito extintas Uma civilização inteirinha ignorada acaba de se levantar do túmulo nas margens do Indo Isso não é tudo e a engenhosidade dos pesquisadores em vasculhar mais a fundo as bibliotecas em abrir novas trincheiras nos solos cansados não trabalha apenas nem talvez mais eficazmente para enriquecer a imagem dos tempos idos Procedimentos de investigação até então desconhecidos também surgiram Sabemos melhor que nossos predecessores interrogar as línguas acerca dos costumes as ferramentas acerca do artesão Aprendemos sobretudo a mergulhar mais profundamente21 na análise dos fatos sociais O estudo das crenças e dos ritos populares mal desenvolve suas primeiras perspectivas A história da economia da qual Cournot há tempos enumerando os diversos aspectos da investigação histórica não fazia22 nem mesmo ideia apenas começa a se constituir Tudo isso é certo Tudo isso permite as mais vastas esperanças Não esperanças ilimitadas Essa sensação de progressão verdadeiramente indefinida que uma ciência como a química dá capaz de criar até seu próprio objeto nos é recusada É que os exploradores do passado não são homens completamente livres O passado23 é seu tirano Proíbelhes conhecer de si qualquer coisa a não ser o que ele mesmo lhes fornece conscientemente ou não Jamais estabeleceremos uma estatística dos preços na época merovíngia pois nenhum documento registrou esses preços em número suficiente Jamais seremos capazes de penetrar tão bem a mentalidade dos homens do século XI europeu por exemplo quanto o podemos fazer para os contemporâneos de Pascal ou de Voltaire porque não temos deles nem cartas privadas nem confissões porque só temos sobre alguns deles biografias ruins24 em estilo convencional Em virtude dessa lacuna toda uma parte de nossa história necessariamente incide sobre o aspecto um pouco exangue de um mundo sem indivíduos Não nos queixemos muito Nessa rigorosa submissão a um inflexível destino não estamos nós pobres adeptos frequentemente escarnecidos das jovens ciências do homem melhores do que muitos de nossos confrades dedicados a disciplinas mais antigas e mais seguras de si Tal é a sorte comum de todos os estudos cuja missão implica escrutar fenômenos consumados e o préhistoriador não é na falta de escritos menos capaz de reconstituir as liturgias da idade da pedra do que o paleontólogo suponho as glândulas de secreção interna do plessiosauro do qual apenas subsiste o esqueleto É sempre desagradável dizer Não sei não posso saber Só se deve dizêlo depois de têlo energicamente desesperadamente buscado Mas há momentos em que o mais imperioso para o cientista é tendo tentado tudo resignarse à ignorância e confessálo honestamente 2 Os testemunhos Heródoto de Túrio expõe aqui suas pesquisas a fim de que as coisas feitas pelos homens não sejam esquecidas com o tempo e que grandes e maravilhosas ações realizadas tanto pelos gregos como pelos bárbaros nada percam de seu brilho Assim começa o mais antigo livro de história que no mundo ocidental chegou até nós sem ser no estado de fragmentos Ao lado dele coloquemos por exemplo um desses guias de viagem que os egípcios na época dos faraós introduziam nos túmulos Temos cara a cara os próprios tipos de duas grandes classes entre as quais se divide a massa imensamente variada dos documentos colocados pelo passado à disposição dos historiadores Os testemunhos do primeiro grupo são voluntários Os outros não Quando com efeito lemos para nos informar Heródoto ou Froissart as Memórias do marechal Joffre ou as notícias aliás completamente contraditórias dadas pelos jornais alemães e britânicos por estes dias sobre o ataque a um comboio no Mediterrâneo o que fazemos senão nos conformar exatamente ao que os autores desses escritos esperavam de nós Ao contrário as fórmulas dos papiros dos mortos eram destinadas a serem recitadas apenas pela alma em perigo e ouvidas tão somente pelos deuses o homem das palafitas que no lago vizinho onde o arqueólogo os remexe atualmente jogava fora os dejetos de sua cozinha queria apenas poupar sujeira à sua cabana a bula de isenção pontifical só era tão precavidamente preservada nos cofres do mosteiro a fim de ser chegado o momento brandida aos olhos de um bispo importuno Entre todos esses cuidados não figurava absolutamente o de informar à opinião pública ou aos historiadores futuros e quando o medievalista folheia nos arquivos no ano da graça de 1492 a correspondência comercial dos Cedames de Lucqua tornase culpado de uma indiscrição que os Cedames de nossos dias se tomassem as mesmas liberdades com seus copistas de cartas qualificariam duramente Ora as sources narratives para empregar em seu francês um pouco barroco a expressão consagrada quer dizer os relatos deliberadamente destinados à informação dos leitores não cessaram certamente de prestar um precioso socorro ao pesquisador Entre outras vantagens geralmente são as únicas a fornecer um enquadramento cronológico razoavelmente seguido O que o préhistoriador o que o historiador da Índia não dariam para dispor de um Heródoto25 Não podemos duvidar no entanto é na segunda categoria dos testemunhos é nas testemunhas à revelia que a investigação histórica ao longo de seus progressos foi levada a depositar cada vez mais sua confiança Comparem a história romana tal como a escreviam Rollin ou mesmo Niebuhr com aquela que qualquer compêndio coloca hoje sob nossos olhos a primeira que extraía a maior parte de sua substância de Tito Lívio Suetônio ou Floro a segunda construída em larga medida à força de inscrições papiros moedas Pedaços inteiros do passado só puderam ser reconstituídos assim toda a préhistória quase toda a história econômica quase toda a história das estruturas sociais No próprio presente quem de nós em lugar de todos os jornais de 1938 ou 193926 não preferiria ter em mãos algumas peças secretas da chancelaria alguns relatórios confidenciais de chefes militares Não é que os documentos desse gênero sejam mais que outros isentos de erro ou de mentira Não faltam falsas bulas e assim como todos os relatórios de embaixadores nenhuma carta de negócios diz a verdade Mas a deformação aqui a supor que exista pelo menos não foi concebida especialmente em intenção da posteridade Acima de tudo esses indícios que sem premeditação o passado deixa cair ao longo de sua estrada não apenas nos permitem suplementar esses relatos quando estes apresentam lacunas ou controlálos caso sua veracidade seja suspeita eles afastam de nossos estudos um perigo mais mortal do que a ignorância ou a inexatidão o de uma irremediável esclerose Sem seu socorro com efeito não veríamos inevitavelmente o historiador a cada vez que se debruça sobre gerações desaparecidas logo tornarse prisioneiro dos preconceitos das falsas prudências das miopias de que a própria visão dessas gerações sofrera por exemplo o medievalista não dar senão pequena importância ao movimento comunal sob pretexto de que os escritores da Idade Média não falavam muito dele a seu público ou desdenhar os grandes elãs da vida religiosa pela simples razão de que ocupam na literatura narrativa da época um lugar bem mais modesto do que as guerras dos barões a história em resumo para retomar uma antítese cara a Michelet tornarse menos exploradora cada vez mais ousada das épocas consumadas do que o eterno e imóvel aluno de suas crônicas Do mesmo modo até nos testemunhos mais resolutamente voluntários o que os textos nos dizem expressamente deixou hoje em dia de ser o objeto predileto de nossa atenção Apegamonos geralmente com muito mais ardor ao que ele nos deixa entender sem haver pretendido dizêlo Em SaintSimon o que descobrimos de mais instrutivo Suas informações frequentemente inventadas sobre os acontecimentos do reino Ou a espantosa luz que as Memórias nos lançam sobre a mentalidade de um grande senhor na corte do ReiSol Entre as vidas dos santos da alta Idade Média pelo menos três quartos são incapazes de nos ensinar qualquer coisa de concreto sobre os piedosos personagens cujo destino pretendem nos retraçar Interroguemolas ao contrário sobre27 as maneiras de viver ou de pensar particulares às épocas em que foram escritas todas as coisas que o hagiógrafo não tinha o menor desejo de nos expor Vamos achálas de um valor inestimável Em nossa inevitável subordinação em relação ao passado ficamos portanto pelo menos livres no sentido de que condenados sempre a conhecêlo exclusivamente por meio de seus vestígios conseguimos todavia saber sobre ele muito mais do que ele julgara sensato nos dar a conhecer É pensando bem uma grande revanche da inteligência sobre o dado Mas a partir do momento em que não nos resignamos mais a registrar pura e simplesmente as palavras de nossas testemunhas a partir do momento em que tencionamos fazêlas falar mesmo a contragosto mais do que nunca impõese um questionário Esta é com efeito a primeira necessidade de qualquer pesquisa histórica bem conduzida Muitas pessoas e mesmo28 parece certos autores de manuais fazem uma imagem surpreendentemente cândida da marcha de nosso trabalho No princípio diriam de bom grado eram os documentos O historiador os reúne lê29 empenhase em avaliar sua autenticidade e veracidade Depois do que e somente depois os põe para funcionar Uma infelicidade apenas nenhum historiador jamais procedeu assim Mesmo quando eventualmente imagina fazêlo Pois os textos ou os documentos arqueológicos mesmo os aparentemente mais claros e mais complacentes não falam30 senão quando sabemos interrogálos Antes de Boucher de Perthes os sílex abundavam como em nossos dias nos aluviões do Somme Mas faltava o interrogador e não existia préhistória Velho medievalista confesso não conhecer leitura mais atraente do que um cartulário É que sei aproximadamente o que lhe perguntar Uma coletânea de inscrições romanas em contrapartida me diz pouco Se com dificuldade consigo lêlas não sei solicitálas Em outros termos toda investigação histórica supõe desde seus primeiros passos que a busca tenha uma direção No princípio é o espírito31 Nunca em nenhuma ciência a observação passiva gerou algo de fecundo Supondo aliás que ela seja possível32 Com efeito não nos deixemos enganar Acontece sem dúvida de o questionário permanecer puramente instintivo Entretanto ele está ali Sem que o trabalhador tenha consciência disso seus tópicos lhe são ditados pelas afirmações ou hesitações que suas explicações anteriores inscreveram obscuramente em seu cérebro através da tradição do senso comum isto é muito frequentemente dos preconceitos comuns Nunca se é tão receptivo quanto se acredita Não há pior conselho a dar a um iniciante do que esperar assim numa atitude de aparente submissão a inspiração do documento Com isso mais de uma investigação de boa vontade destinouse ao fracasso ou à insignificância33 Naturalmente é necessário que essa escolha ponderada de perguntas seja extremamente flexível suscetível de agregar no caminho uma multiplicidade de novos tópicos e aberta a todas as surpresas De tal modo no entanto que possa desde o início servir de ímã às limalhas do documento O explorador sabe muito bem previamente que o itinerário que ele estabelece no começo não será seguido ponto a ponto Não ter um no entanto implicaria o risco de errar eternamente ao acaso A diversidade dos testemunhos históricos é34 quase infinita Tudo que o homem diz ou escreve tudo que fabrica tudo que toca pode e deve informar sobre ele É curioso constatar o quão imperfeitamente as pessoas alheias a nosso trabalho avaliam a extensão dessas possibilidades É que continuam a se aferrar a uma ideia obsoleta de nossa ciência a do tempo em que não se sabia ler senão os testemunhos voluntários Criticando a história tradicional por deixar na penumbra fenômenos consideráveis porém prenhes de consequências mais capazes de modificar a vida futura do que todos os acontecimentos políticos o sr Paul Valéry propõe como exemplo a conquista da terra pela eletricidade Quanto a isso aplaudiloemos de pé Infelizmente é bastante exato que esse imenso tema ainda não gerou nenhum trabalho sério35 Mas quando arrastado de certo modo pelo próprio excesso de sua severidade em justificar o erro que acaba de denunciar o sr Valéry acrescenta que esses fenômenos escapam necessariamente ao historiador pois prossegue nenhum documento os menciona expressamente a acusação dessa vez ao passar do cientista para a ciência enganase de destinatário Quem acreditará que as empresas de eletricidade não tenham seus arquivos seus balanços de consumo seus mapas de extensão das redes Os historiadores diz o senhor omitiramse de interrogar esses documentos É um grande erro da parte deles certamente a menos todavia que a responsabilidade disso caiba aos guardiães talvez ciosos demais de tantos belos tesouros Portanto tenha paciência A história ainda não é tal como deveria ser Não é uma razão para imputar à história tal como pode ser escrita o peso de erros que só pertencem à história malcompreendida Desse caráter maravilhosamente díspar de nossos materiais nasce entretanto uma dificuldade bastante grave na verdade36 para contar entre os três ou quatro grandes paradoxos do ofício de historiador Seria uma grande ilusão imaginar que a cada problema histórico corresponde um tipo único de documentos específico para tal emprego Quanto mais a pesquisa ao contrário se esforça por atingir os fatos profundos menos lhe é permitido esperar a luz a não ser dos raios convergentes de testemunhos muito diversos em sua natureza Que historiador das religiões se contentaria em compilar tratados de teologia ou coletâneas de hinos Ele sabe muito bem que as imagens pintadas ou esculpidas nas paredes dos santuários a disposição e o mobiliários dos túmulos têm tanto a lhe dizer sobre as crenças e as sensibilidades mortas quanto muitos escritos Assim como o levantamento das crônicas ou dos documentos nosso conhecimento das invasões germânicas depende da arqueologia funerária e do estudo dos nomes de lugares À medida que nos aproximamos de nossa época essas exigências tornamse sem dúvida diferentes Nem por isso se tornam menos imperiosas Para compreender as sociedades atuais será que basta mergulhar na leitura dos debates parlamentares ou dos autos de chancelaria Não será preciso também saber interpretar um balanço de banco texto para o leigo mais hermético do que muitos hieróglifos O historiador de uma época em que a máquina é rainha aceitará que se ignore como são constituídas e modificadas as máquinas Ora se quase todo problema humano importante pede assim o manejo de testemunhos de tipos opostos é ao contrário de absoluta necessidade que as técnicas eruditas se distingam por tipos de testemunhos O aprendizado de cada uma delas é longo sua posse plena exige uma prática mais longa ainda e quase constante Um número muito pequeno de trabalhadores por exemplo pode se vangloriar de estar igualmente bem preparado para ler e criticar um documento medieval para interpretar corretamente os nomes de lugares que são antes de tudo fatos de linguagem para datar sem erro os vestígios do habitat préhistórico celta galoromano para analisar as associações vegetais de um prado de uma charneca de uma landa Sem tudo isso porém37 como pretender escrever a história da ocupação do solo Poucas ciências creio são obrigadas a usar simultaneamente tantas ferramentas distintas É que os fatos humanos são mais complexos que quaisquer outros É que o homem se situa na ponta extrema da natureza É bom a meu ver é indispensável que o historiador possua ao menos um verniz de todas as principais técnicas de seu ofício Mesmo apenas a fim de saber avaliar previamente a força da ferramenta e as dificuldades de seu manejo A lista das disciplinas auxiliares cujo ensino propomos a nossos iniciantes é demasiado restrita Por qual absurdo paralogismo deixamos que homens que boa parte do tempo só conseguirão atingir os objetos de seus estudos através das palavras ignorem entre outras lacunas as aquisições fundamentais da linguística38 No entanto por maior que seja a variedade de conhecimentos que se queira proporcionar aos pesquisadores mais bem armados elas encontrarão sempre e geralmente muito rápido seus limites Nenhum remédio então senão substituir a multiplicidade de competências39 em um mesmo homem por uma aliança de técnicas praticadas por eruditos diferentes mas todas voltadas para a elucidação de um tema único Esse método supõe o consentimento no trabalho por equipes Exige também a definição prévia por comum acordo de alguns grandes problemas predominantes São êxitos de que nos encontramos ainda bastante distantes Eles determinam porém numa larga medida não duvidemos o futuro de nossa ciência 3 A transmissão dos testemunhos Reunir os documentos que estima necessários é uma das tarefas mais40 difíceis do historiador De fato ele não conseguiria realizála sem a ajuda de guias diversos inventários de arquivos ou de bibliotecas catálogos de museus repertórios bibliográficos de toda sorte41 Vêse às vezes pedantes à cavaleiro42 espantaremse com o tempo sacrificado por alguns eruditos a compor semelhantes obras por todos os trabalhadores a se informar sobre sua existência e seu manejo Como se graças às horas assim gastas em tarefas que por não deixarem de43 ter um atrativo oculto carecem certamente de brilho romanesco o mais terrível dispêndio de energia não se visse finalmente poupado44 Apaixonado por todos os motivos pela história do culto dos santos45 suponham que ignoro a Bibliotheca hagiographica latina46 dos Padres bollandistas imaginarão com dificuldade caso não sejam especialistas a soma de esforços estupidamente inúteis que essa lacuna de meu equipamento não deixará de me custar O que convém lamentar na verdade não é que já possamos colocar nas prateleiras de nossas bibliotecas uma quantidade notável desses instrumentos cuja enumeração matéria por matéria pertence aos livros específicos de orientação É que ainda não sejam suficientemente numerosos sobretudo para as épocas menos afastadas de nós que o seu estabelecimento particularmente na França obedeça apenas por exceção a um plano de conjunto racionalmente concebido que sua atualização enfim seja muito frequentemente abandonada aos caprichos dos indivíduos ou à parcimônia malinformada de algumas editoras O primeiro tomo das admiráveis Fontes da história da França que devemos a Émile Molinier não foi reeditado desde sua primeira edição em 1901 Esse simples fato equivale a um ato de acusação47 A ferramenta decerto não faz a ciência Mas uma sociedade que pretende respeitar as ciências não deveria se desinteressar de suas ferramentas Sem dúvida quanto a isso também seria sensata em não se reportar a corpos acadêmicos uma vez que seu recrutamento favorável à preeminência da idade e propícia aos bons alunos não predispõe particularmente ao espírito de empreendimento Nossa Escola de Guerra e nossos estadosmaiores não são os únicos em nosso país a ter conservado a mentalidade do carro de bois na época do automóvel Entretanto por mais bem feitos por mais abundantes que possam ser esses marcos indicadores seriam somente de pouca serventia para um trabalhador que não tivesse previamente alguma ideia do terreno a explorar A despeito do que às vezes parecem imaginar os iniciantes os documentos não surgem aqui ou ali por efeito de não se sabe qual misterioso decreto dos deuses Sua presença ou ausência em tais arquivos em tal biblioteca48 em tal solo deriva de causas humanas que não escapam de modo algum à análise e os problemas que sua transmissão coloca longe de terem apenas o alcance de exercícios de técnicos tocam eles mesmos no mais íntimo da vida do passado pois o que se encontra assim posto em jogo é nada menos do que a passagem da lembrança através das gerações À frente das obras históricas do gênero sério o autor em geral coloca uma lista das cotas de arquivos que vasculhou das coletâneas de que fez uso Isso é muito bom Mas não basta Todo livro de história digno desse nome deveria comportar um capítulo ou caso se prefira inserida nos pontos de inflexão da exposição uma série de parágrafos que se intitulariam algo como Como posso saber o que vou lhes dizer Estou convencido de que ao tomar conhecimento dessas confissões inclusive os leitores que não são do ofício experimentariam um verdadeiro prazer intelectual O espetáculo da busca com seus sucessos e reveses raramente entedia É o tudo pronto que espalha o gelo e o tédio49 Ocorreme50 receber a visita de trabalhadores que desejam escrever a história de sua aldeia Normalmente atenhome aos seguintes comentários que apenas simplifico um pouco a fim de evitar detalhes de erudição que aqui seriam fora de propósito As comunidades camponesas só possuíram arquivos rara e tardiamente As senhorias ao contrário sendo empreendimentos relativamente bem organizados e dotados de continuidade em geral preservaram desde cedo seus dossiês Para todo o período anterior a 1789 e especialmente para as épocas mais antigas os principais documentos dos quais vocês podem esperar se servir serão documentos portanto de proveniência senhorial Daí resulta por sua vez que a primeira pergunta à qual terão de responder e de que tudo vai depender vai ser esta em 1789 qual era o senhor da aldeia De fato a existência simultânea de vários senhores entre os quais a aldeia teria sido dividida não é absolutamente inverossímil mas para sermos breves deixaremos de lado essa suposição Três eventualidades são concebíveis A senhoria pode ter pertencido a uma igreja a um leigo que sob a Revolução emigrou ainda a um leigo que ao contrário nunca emigrou O primeiro caso é de longe o mais favorável O arquivo não apenas tem chance de ser melhor preservado51 e há mais tempo Foi certamente confiscado a partir de 1790 ao mesmo tempo em que as terras por aplicação da Constituição civil do clero Levado então para algum depósito público podese sensatamente esperar que continue hoje ali praticamente intacto à disposição dos eruditos A hipótese do emigrado merece ainda uma muito boa observação Aí também ele deve ter52 sido apreendido e transferido no máximo o risco de uma destruição voluntária como vestígio de um regime amaldiçoado parecerá um pouco mais temível Resta a última possibilidade Ela seria infinitamente incômoda Os ci devant com efeito na medida em que não deixavam a França nem caíam de alguma outra maneira sob o golpe das leis de Salvação Pública não eram absolutamente atingidos em seus bens Perdiam sem dúvida seus direitos senhoriais uma vez que estes haviam sido universalmente abolidos Conservavam o conjunto de suas propriedades pessoais por conseguinte seus dossiês de negócios Jamais tendo sido reclamados pelo Estado as peças que buscamos terão nesse caso simplesmente sofrido a sorte comum a todos os papéis de família durante o século XIX e o século XX Supondo que não tenham se extraviado sido comidos pelos ratos ou dispersados ao sabor das vendas e heranças entre os celeiros de três ou quatro casas de campo diferentes nada obrigará seu detentor atual a lhes comunicálos53 Cito esse exemplo porque me parece absolutamente típico das condições que frequentemente determinam e limitam a documentação Não seria desinteressante analisar mais de perto seus ensinamentos O54 papel desempenhado pelos confiscos revolucionários que acabamos de ver é o de uma deidade não raro propícia ao pesquisador a catástrofe Incontáveis municípios romanos se transformaram em banais cidadezinhas italianas onde o arqueólogo descobre penosamente alguns vestígios da Antiguidade foi só a erupção do Vesúvio que preservou Pompeia55 Decerto os grandes desastres da humanidade estão longe de sempre terem servido à história Com os manuscritos literários e historiográficos amontoados os inestimáveis dossiês da burocracia imperial romana soçobraram na confusão das Invasões Sob nossos olhos as duas guerras mundiais riscaram de um solo carregado de glória monumentos e depósitos de arquivos nunca mais poderemos folhear as cartas dos velhos comerciantes de Ypres e presenciei durante a derrota o prontuário de um exército queimar No entanto por sua vez a pacífica continuidade de uma vida social sem rasgos de febre mostrase menos favorável do que às vezes se acredita à transmissão da memória São as revoluções que forçam as portas dos armários de ferro e obrigam os ministros à fuga antes que tenham achado tempo para queimar suas notas secretas Nos antigos arquivos judiciários os fundos de falências têm disponíveis atualmente os papéis de empresas que se lhes houvesse sido dada a oportunidade de levar a cabo uma existência frutífera e honrada acabariam por destinar à destruição o conteúdo de suas papeleiras Graças à admirável permanência das instituições monásticas a abadia de SaintDenis conservava ainda em 1789 os diplomas que lhe haviam sido outorgados mais de mil anos antes pelos reis merovíngios Mas é nos Arquivos Nacionais que os lemos hoje Se a comunidade dos monges dionisianos tivesse sobrevivido à Revolução seria certo que nos permitiria vasculhar em seus cofres Tampouco talvez a Companhia de Jesus abrisse ao profano o acesso a seus acervos cuja falta faz com que tantos problemas da história moderna permaneçam para sempre desesperadamente obscuros ou o Banco da França convidasse os especialistas em Primeiro Império a consultar seus registros mesmo os mais poeirentos tanto a mentalidade do iniciado é inerente a todas as corporações Eis onde o historiador do presente se vê nitidamente em desvantagem fica quase totalmente privado dessas confidências involuntárias Em compensação dispõe é verdade das indiscrições que lhe cochicham seus amigos ao ouvido A informação infelizmente distinguese mal da bisbibilhotice Um bom cataclisma resolveria frequentemente melhor nosso caso Será assim pelo menos até que renunciando a se entregar às suas próprias tragédias com essa disposição as sociedades consintam enfim a organizar racionalmente com sua memória o conhecimento de si mesmas Só conseguirão isso lutando corpo a corpo com os dois principais responsáveis pelo esquecimento e pela ignorância a negligência que extravia os documentos e mais perigosa ainda a paixão pelo sigilo sigilo diplomático sigilo dos negócios sigilo das famílias que os esconde ou destrói É natural56 que o notário tenha o dever de não revelar as operações de seu cliente Mas que lhe seja permitido envolver em tão impenetrável mistério os contratos passados pelos clientes de seu bisavô ao passo que por outro lado nada lhe proíbe seriamente deixar essas peças57 se irem na poeira 58 nossas leis quanto a isso de fato exalam bolor Quanto aos motivos que fazem com que a maioria das grandes empresas recuse tornar públicas as estatísticas mais indispensáveis a um saudável comportamento da economia nacional são raramente dignos de respeito Nossa civilização terá realizado um grande progresso no dia em que a dissimulação erigida em método de ação e quase em virtude burguesa ceder lugar ao gosto pela informação isto é necessariamente pelas trocas de informações Voltemos entretanto à nossa aldeia As circunstâncias que nesse caso preciso decidem sobre a perda ou a preservação sobre a acessibilidade ou a inacessibilidade dos testemunhos têm sua origem nas forças históricas de caráter geral não apresentam nenhum traço que não seja perfeitamente inteligível mas são desprovidas de qualquer relação lógica com o objeto da investigação cujo desfecho se acha no entanto colocado sob sua dependência Pois não se vê evidentemente por que o estudo de uma pequena comunidade rural na Idade Média por exemplo seria mais ou menos instrutivo conforme alguns séculos mais tarde o senhor do momento resolvesse ou não ir engrossar a reunião de Koblenz59 Nada mais frequente do que esse desacordo Ao mesmo tempo se conhecemos o Egito romano infinitamente melhor do que a Gália não é que mostremos um interesse mais vivo pelos egípcios do que pelos galo romanos o ambiente seco e os ritos funerários da mumificação preservaram lá os escritos que o clima do Ocidente e seus costumes destinavam ao contrário a uma rápida destruição Entre as causas que fazem o sucesso ou o fracasso da caça aos documentos e os motivos que tornam esses documentos desejáveis nada há em geral de comum é o elemento irracional impossível de eliminar que confere a nossas pesquisas um pouco desse trágico interior em que tantas obras do espírito veem talvez com seus limites uma das razões secretas de sua sedução Além disso no exemplo citado o destino dos documentos aldeia por aldeia tornase uma vez conhecido o fato crucial praticamente previsível Não é sempre o caso O resultado final devese às vezes ao encontro de um número tão grande de cadeias causais totalmente independentes uma das outras que qualquer previsão se verifica impossível Sei que quatro incêndios sucessivos depois uma pilhagem devastaram os arquivos da antiga abadia de SaintBenoîtsurLoire como explorando esse filão eu adivinharia previamente que tipos de autos essas devastações pouparam preferencialmente O que foi chamado de migração dos manuscritos oferece um tema de estudos do maior interesse as passagens de uma obra literária através das bibliotecas a execução das cópias o cuidado ou a negligência dos bibliotecários e dos copistas são alguns dos traços pelos quais se exprimem ao vivo as vicissitudes da cultura e o variável jogo de suas grandes correntes Mas o erudito mais bem informado teria sido capaz de anunciar antes de sua descoberta que o manuscrito único da Germania de Tácito acabou parando no século XVI no mosteiro de Hersfeld Em suma há no fundo de quase toda pesquisa documentária um resíduo de inopinado e por conseguinte de risco Um trabalhador que tenho alguns motivos para conhecer bem contoume que ao esperar sem mostrar muita impaciência na costa bombardeada de Dunquerque um incerto embarque um de seus colegas lhe disse com cara de espanto É estranho Você não parece detestar a aventura Meu amigo respondeu que a despeito do preconceito corrente o hábito da pesquisa não é de modo algum desfavorável com efeito a uma aceitação bem tranquila da aposta com o destino Capítulo III A crítica 1 Esboço de uma história do método crítico Que a palavra das testemunhas não deve ser obrigatoriamente digna de crédito1 os mais ingênuos dos policiais sabem bem2 Livres de resto para nem sempre tirar desse conhecimento teórico o partido que seria preciso Do mesmo modo há muito tempo estamos alertados no sentido de não aceitar cegamente todos os testemunhos históricos Uma experiência quase tão velha como a humanidade nos ensinou que mais de um texto se diz de3 outra proveniência do que de fato é nem todos os relatos são verídicos e os vestígios materiais eles também podem ser falsificados Na Idade Média diante da própria abundância de falsificações4 a dúvida foi frequentemente como um reflexo natural de defesa5 Com tinta qualquer um pode escrever qualquer coisa exclamava no século XI um fidalgo provinciano loreno em processo contra monges que armavamse de provas documentais contra ele A Doação de Constantino essa espantosa elucubração que um clérigo romano do século VIII assinou sob o nome do primeiro César cristão foi três séculos mais tarde contestada nos círculos do mui pio imperador Oto III As falsas relíquias são procuradas desde que as relíquias existem No entanto o ceticismo de princípio não é uma atitude intelectual mais estimável ou mais fecunda que a credulidade com a qual aliás combinase facilmente em muitos espíritos um pouco simplistas Conheci durante a outra guerra um simpático veterinário que não sem alguma aparência de razão recusavase sistematicamente a dar qualquer crédito às notícias dos jornais Mas se alguém6 despejasse em seu ouvido boatos dos mais inverossímeis deliciavase Do mesmo modo a crítica de simples bom senso que por muito tempo foi a única praticada e a qual às vezes seduz certos espíritos não podia ir muito longe O que é com efeito o mais das vezes esse pretenso bom senso Nada mais que um composto de postulados disparatados e de experiências precipitadamente generalizadas Tratase do mundo físico Ele negou os antípodas nega o universo einsteiniano trata como fábula o relato de Heródoto segundo o qual ao dar a volta na África os navegadores em certo dia viam o ponto onde o Sol nasce passar de sua direita para a esquerda Tratase de atos humanos O pior é que as observações alçadas assim à eternidade são obrigatoriamente extraídas de um momento muito curto da duração o nosso Aí residiu o principal vício da crítica voltairiana aliás não raro muito penetrante Não apenas as bizarrices individuais são de todas as épocas como mais de um estado de alma outrora comum nos parece bizarro porque não o compartilhamos mais O bom senso parece proibiria aceitar que o imperador Oto I tenha sido capaz de subscrever a favor dos papas concessões territoriais inaplicáveis que desmentiam seus atos anteriores e que seus atos posteriores nem levavam em conta É preciso acreditar contudo que ele não tinha o espírito configurado do mesmo modo que nós que mais precisamente colocavase em sua época entre o escrito e a ação uma distância cuja extensão nos surpreende uma vez que o privilégio é incontestavelmente autêntico O verdadeiro progresso veio no dia em que a dúvida tornouse como dizia Volney examinadora em que regras objetivas em outros termos foram pouco a pouco elaboradas as quais entre a mentira e a verdade permitem uma triagem O jesuíta von Paperbroeck ao qual a leitura das Vidas dos santos inspirara uma incoercível desconfiança em relação à herança da alta Idade Média inteira considerava falsos todos os diplomas merovíngios preservados nos mosteiros Não responde em substância Mabillon existem incontestavelmente diplomas inteiramente forjados remanejados ou interpolados há também os autênticos e eis como é possível distinguir uns dos outros Nesse ano 1681 ano da publicação do De re diplomatica uma grande data na verdade na história do espírito humano a crítica de documentos foi definitivamente fundada Esse foi certamente aliás de todo modo o momento decisivo na história do método crítico O humanismo do período precedente tivera suas veleidades e suas intuições Não havia ido mais longe Nada mais característico do que uma passagem dos Ensaios Montaigne nela justifica Tácito por ter narrado prodígios Cabe diz aos teólogos e filósofos discutirem os créditos comuns Os historiadores têm apenas de recitálas como suas fontes lhas fornecem Que eles antes nos transmitam a história segundo recebem do que segundo estimam Em outros termos uma crítica filosófica apoiada em uma certa concepção da ordem natural ou divina é perfeitamente legítima e entendemos de resto que Montaigne não endossa os milagres de Vespasiano tampouco muitos outros Mas o exame especificamente histórico de um testemunho enquanto tal visivelmente não capta bem como sua prática seria possível A doutrina de pesquisa foi elaborada apenas ao longo do século XVII século cuja verdadeira grandeza não colocamos onde deveríamos e sobretudo por volta de sua segunda metade7 Os próprios homens dessa época tiveram consciência disso Era um lugarcomum8 entre 1680 e 1690 denunciar como moda do momento o pirronismo da história Dizse escreve Michel Levassor comentando esse termo que a retidão do espírito consiste em não acreditar levianamente e em saber duvidar de várias descobertas A própria palavra crítica que não designara até então senão um juízo de gosto adquire então o sentido de prova de veracidade Só arriscamos seu uso pedindo desculpas antes Pois não pertence absolutamente ao uso culto entendam que também existe um sabor técnico No entanto triunfa cada vez mais Bossuet a mantém prudentemente à distância quando fala de nossos autores críticos adivinhamos seu dar de ombros Mas Richard Simon a inscreve no título de quase todas as suas obras Os mais alertas não se deixam enganar aliás o que esse nome anuncia é justamente a descoberta de um método de aplicação quase universal A crítica essa espécie de archote que nos ilumina e conduz pelas estradas obscuras da Antiguidade fazendo nos distinguir o verdadeiro do falso assim se exprime Elias du Pin E Bayle9 ainda mais nitidamente O sr Simon espalhou nessa novela Réponse diversas regras de crítica que podem servir não apenas para entender as Escrituras mas também para ler com desfrute outras obras Ora confrontemos algumas datas de nascimento Paperbroeck que embora se enganasse sobre documentos não deixa de ter seu lugar na primeira fila entre os fundadores da crítica aplicada à historiografia 1628 Mabillon 1632 Richard Simon cujos trabalhos predominam nos primórdios da exegese bíblica 1638 Acrescentem fora da coorte dos eruditos propriamente ditos10 Espinosa o Espinosa do Tratado teológicopolítico essa pura obraprima de crítica filológica e histórica 1632 também No sentido mais correto da palavra é uma geração cujos contornos ainda se desenham diante de nós com uma espantosa nitidez Mas é preciso esclarecer mais É muito exatamente a geração que veio à luz no momento em que era publicado o Discurso do método Não estamos falando de uma geração de cartesianos Mabillon para nos atermos a ele era um monge devoto ortodoxo com simplicidade e que nos deixou como último escrito um tratado da Morte cristã Desconfiase de que não tenha conhecido muito de perto a nova filosofia na época tão suspeita a tanta gente piedosa ainda mais porque caso houvesse tido algumas de suas luzes teria encontrado ali muitos temas a serem aprovados Por outro lado por mais que pareçam sugerir algumas páginas talvez demasiado célebres de Claude Bernard as verdades de evidência de caráter matemático cujo caminho a dúvida metódica em Descartes tem por missão abrir apresentam poucos traços em comum com as probabilidades cada vez mais aproximativas que a crítica histórica como as ciências de laboratório se contenta em deduzir Mas para que uma filosofia impregne toda uma época não é necessário nem que aja exatamente ao pé da letra nem que a maioria dos espíritos11 sofra seus efeitos de outro modo que não por uma espécie de osmose frequentemente semi inconsciente Assim como a ciência cartesiana a crítica do testemunho histórico faz tábula rasa da credulidade Assim como a ciência cartesiana ela procede a essa implacável inversão de todos as bases antigas apenas a fim de conseguir com isso novas certezas ou grandes probabilidades agora devidamente comprovadas Em outros termos a ideia que a inspira12 supõe uma reviravolta quase total das concepções antigas da dúvida A ideia de que essas feridas pareçam um sofrimento ou de que na dúvida encontremos ao contrário não sei que nobre suavidade só havia sido considerada até então uma atitude mental puramente negativa uma simples ausência Estimase agora que racionalmente conduzida possa tornarse um instrumento de conhecimento É uma ideia cujo surgimento se situa em um momento muito preciso da história do pensamento A partir daí as regras essenciais do método crítico estavam em suma fixadas13 Seu alcance geral era tão simples que no século XVIII entre os temas mais frequentemente propostos pela Universidade de Paris no concurso de agrégation dos filósofos vemos figurar o seguinte que soa curiosamente moderno Do testemunho dos homens sobre os fatos históricos Não é certamente que as gerações seguintes não tenham14 trazido ao aparato15 muitos aperfeiçoamentos Sobretudo generalizaram bastante seu emprego e estenderam consideravelmente suas aplicações16 Por muito tempo as técnicas da crítica foram praticadas pelo menos de maneira assídua quase que exclusivamente por um punhado de eruditos exegetas e curiosos Os escritores dedicados a compor obras históricas com um certo arroubo não se preocupavam em se familiarizar com essas receitas de laboratório a seu ver muito demasiadamente minuciosas e era com dificuldade que consentiam em levar em conta seus resultados Ora nunca é bom segundo as palavras de Humboldt os químicos recearem molhar as mãos Para a história o perigo de um tal cisma entre preparação e realização tem uma dupla face Atinge primeira e cruelmente os grandes ensaios de interpretação Estes não faltam não apenas com isso ao dever primordial da veracidade pacientemente buscada privados além disso dessa perpétua renovação dessa surpresa sempre renascente que a luta com o documento é a única a proporcionar tornaselhes impossível escapar a uma17 oscilação sem trégua entre alguns temas estereotipados impostos pela rotina Mas o próprio trabalho técnico não sofre menos Não sendo mais guiado de cima arriscase18 a se agarrar indefinidamente a problemas insignificantes ou malformulados Não existe pior desperdício do que o da erudição quando gira no vazio nem soberba mais deslocada do que o orgulho do instrumento que se toma por um fim em si Contra esses perigos o esforço consciencioso do século XIX lutou bravamente A escola alemã Renan Fustel de Coulanges restituíram à erudição sua condição intelectual O historiador foi levado à mesa de trabalho A partida entretanto foi totalmente ganha Acreditar nisso seria mostrar muito otimismo Em grande parte o trabalho de pesquisa continua a andar aos trancos e barrancos sem escolha racional de seus pontos de aplicação Sobretudo a necessidade crítica não conseguiu conquistar plenamente essa opinião das pessoas de bem no sentido antigo do termo cujo assentimento sem dúvida necessário à higiene moral de toda ciência é mais particularmente indispensável19 à nossa Tendo os homens por objeto de estudo como se os homens deixam de nos compreender não ter o sentimento de só realizar nossa missão pela metade Talvez aliás não a tenhamos na realidade exercido plenamente O esoterismo rebarbativo em que às vezes os melhores dentre nós persistem em se encerrar em nossa produção de leitura corrente a preponderância do triste manual que a obsessão de um ensino mal concebido coloca no lugar de uma verdadeira síntese o pudor singular que mal saídos da oficina parece nos proibir de colocar sob os olhos dos leigos as nobres apalpadelas de nossos métodos todos esses maus hábitos nascidos da acumulação de preconceitos contraditórios comprometem uma causa entretanto bela Conspiram para entregar sem defesa a massa dos leitores aos falsos brilhantes de uma pretensa história da qual a ausência de seriedade o pitoresco de fancaria os partis pris políticos pensam ser resgatados por uma imodesta segurança ali onde Maurras Bainville ou Plekhanov afirmam Fustel de Coulanges ou Henri Pirenne teriam duvidado Entre a investigação histórica tal como é feita ou aspira a ser feita e o público que lê incontestavelmente subsiste um malentendido Para colocar em jogo das duas partes tantos divertidos defeitos a grande polêmica a respeito das notas não é o menos significativo dos sintomas As margens inferiores das páginas exercem em muitos eruditos uma atração que beira a vertigem É certamente absurdo entulhar seus brancos como eles o fazem de remissões bibliográficas as quais uma lista feita no início do volume teria em sua maioria poupado ou pior ainda reservar esse espaço por pura preguiça a longos desenvolvimentos cujo lugar estava marcado no próprio corpo da exposição de modo que o mais útil desses trabalhos é frequentemente no porão que é preciso20 buscar Mas quando alguns leitores se queixam de que a menor linha que seja bancando a insolente no rodapé do texto lhes confunde o cérebro quando certos editores pretendem que seus fregueses sem dúvida menos hipersensíveis na realidade do que se costuma pintálos martirizamse à vista de qualquer folha assim desonrada esses delicados simplesmente provam sua impermeabilidade aos mais elementares preceitos de uma moral da inteligência Pois fora dos livres jogos da fantasia uma afirmação não tem o direito de ser produzida senão sob a condição de poder ser verificada e cabe ao historiador no caso de usar um documento indicar o mais brevemente sua proveniência ou seja o meio de encontrálo equivale sem mais a se submeter a uma regra universal de probidade21 Envenenada de dogmas e de mitos nossa opinião mesmo a menos inimiga das luzes perdeu até o gosto do controle No dia em que tomando cuidado primeiramente para não repelila por um inútil pedantismo conseguirmos persuadila a estimar o valor de um conhecimento por sua solicitude em oferecer o pescoço previamente à refutação as forças da razão terão obtido uma de suas maiores vitórias É no sentido de preparála que trabalham nossas humildes notas nossas pequenas e minuciosas referências de que tantos espíritos ilustrados zombam atualmente Os documentos manejados pelos primeiros eruditos eram no mais das vezes escritos que se apresentavam por si só ou que eram apresentados tradicionalmente como de um autor ou época dados que contavam deliberadamente estes ou aqueles acontecimentos Diziam a verdade Os livros qualificados de mosaicos são realmente de Moisés E de Clóvis os diplomas que trazem seu nome O que valem os relatos do Êxodo Aí reside o problema Mas à medida que a história foi levada a fazer dos testemunhos involuntários um uso cada vez mais frequente ela deixou de se limitar a ponderar as afirmações explícitas dos documentos Foilhe necessário também extorquir as informações que eles não tencionavam fornecer Ora as regras críticas que haviam mostrado sua validade no primeiro caso mostraramse igualmente eficazes no segundo Tenho sob meus olhos um lote de documentos medievais Alguns estão datados Outros não Ali onde figura a indicação será preciso verificála pois a experiência prova que pode ser mentirosa Está faltando É importante restabelecêla Os mesmos meios irão servir para ambos os casos Pela escrita caso se trate de um original pelo estado da latinidade pelas instituições às quais faz alusão e o aspecto geral do dispositivo suponhamos que determinado ato corresponde aos costumes facilmente reconhecíveis dos notários franceses por volta do ano mil Caso se apresente como da época merovíngia eis a fraude denunciada Está sem data Eila aproximativamente fixada Do mesmo modo o arqueólogo que ao se propor classificar por períodos e por civilizações artefatos préhistóricos ou rastrear falsas antiguidades examina aproxima distingue as formas ou os procedimentos de fabricação segundo regras das duas partes essencialmente similares22 O historiador não é é cada vez me nos esse juiz um pouco rabugento cuja imagem desabonadora se não tomarmos cuidado é facilmente imposta por certos manuais introdutórios Não se tornou certamente crédulo Sabe que suas testemunhas podem se enganar ou mentir Mas antes de tudo preocupase em fazêlas falar para compreendêlas É uma das marcas mais belas do método crítico ter sido capaz sem em nada modificar seus primeiros princípios de continuar a guiar a pesquisa nessa ampliação Haveria no entanto má vontade em negálo o testemunho ruim não apenas foi o estimulante que gerou os primeiros esforços de uma técnica de verdade Resta o caso simples de que esta para desenvolver suas análises deve necessariamente partir 2 Em busca da mentira e do erro De todos os venenos capazes de viciar o testemunho o mais virulento é a impostura23 Esta por sua vez pode assumir duas formas Em primeiro lugar o embuste sobre autor e data a falsificação no sentido jurídico do termo Todas as cartas publicadas sob a assinatura de Maria Antonieta não foram escritas por ela acontece que foram fabricadas no século XIX Vendida ao Louvre como Antiguidade citogrega do século IV antes de nossa era a tiara dita de Saitafernes foi cinzelada cerca de 1895 em Odessa Vem em seguida o embuste sobre o conteúdo César em seus Comentários cuja paternidade não lhe poderia ser contestada deliberadamente deformou muito omitiu muito A estátua que se exibe em SaintDenis como representando Filipe o Audaz é de fato a figura funerária desse rei tal como foi executada pouco depois de sua morte mas tudo indica que o escultor se limitou a reproduzir um modelo convencional que de retrato tem apenas o nome24 Ora esses dois aspectos da mentira levantam problemas bem distintos cujas soluções não dependem uma da outra A maioria dos escritos assinados com um nome suposto mente com certeza também pelo conteúdo25 Um pretenso diploma de Carlos Magno revelase ao exame como forjado dois ou três séculos mais tarde Podese apostar mesmo que as generosidades com as quais qualifica a honra ao imperador foram igualmente inventadas Porém nem isso poderia ser admitido previamente Pois certos atos foram fabricados com o único fim de repetir as disposições de peças perfeitamente autênticas que haviam sido perdidas Excepcionalmente uma falsificação pode dizer a verdade Deveria ser supérfluo lembrar que inversamente os testemunhos mais insuspeitos em sua proveniência declarada não são necessariamente por isso testemunhos verídicos26 Mas antes de aceitar uma peça como autêntica os eruditos se empenharam tanto em pesála em suas balanças que depois nem sempre têm o estoicismo de criticar suas afirmações A dúvida em particular hesita facilmente diante dos escritos que se apresentam ao abrigo de garantias jurídicas impressionantes atos do poder ou contratos privados por pouco que estes últimos tenham sido solenemente validados Nem uns nem outros são contudo dignos de muito respeito27 Em 21 de abril de 1834 antes do processo das Sociedades Secretas Thiers escrevia ao prefeito do BaixoReno28 Recomendovos dedicar o maior cuidado em fornecer vossa contribuição de documentos para o grande processo em vias de se instruir29 O que importa bem esclarecer é a correspondência de todos os anarquistas é a íntima conexão dos acontecimentos de Paris Lyon Estrasburgo é em suma a existência de um vasto complô envolvendo a França inteira Aqui está incontestavelmente uma documentação oficial bem preparada Quanto à miragem das cartas devidamente lacradas devidamente datadas a menor experiência do presente basta para dissipála Ninguém ignora os atos lavrados em cartório regularmente pululam de inexatidões voluntárias30 e lembrome31 de já ter no passado pré datado por ordem de alguém minha assinatura embaixo de um auto requerido por uma das grandes administrações do Estado32 Neste aspecto nossos pais não eram mais escrupulosos33 Ocorrido em tal dia em tal lugar lemos embaixo dos diplomas reais Mas consultem os relatórios de viagem do soberano Verão mais de uma vez que no citado dia ele passava na verdade uma temporada a muitas léguas dali Inumeráveis atos de alforria de servos que ninguém pensaria em sã consciência tachar de falsos afirmamse concedidos por pura caridade ao passo que podemos colocar diante deles a fatura da liberdade Mas não basta constatar o embuste É preciso também descobrir seus motivos Mesmo que a princípio para melhor rastreálo Enquanto subsistir uma dúvida sobre suas origens ele permanecerá em si mesmo algo de rebelde à análise por conseguinte de apenas até semicomprovado Acima de tudo uma mentira enquanto tal é34 a seu modo um testemunho35 Provar sem mais que o célebre diploma de Carlos Magno para a igreja de AixlaChapelle não é autêntico é pouparse um erro não é adquirir um conhecimento36 Conseguiremos em contrapartida determinar que a falsificação foi composta pelos círculos de Frederico Barba Ruiva Que iria por todos os motivos servir aos grandes sonhos imperiais Uma nova visão se abre para vastas perspectivas históricas Eis portanto a crítica levada a buscar por trás da impostura o impostor ou seja conforme à própria divisa da história o homem Seria pueril pretender enumerar em sua infinita variedade as razões que podem levar alguém a mentir Mas os historiadores naturalmente levados a intelectualizar em excesso a humanidade agirão sensatamente ao lembrar que todas essas razões não são sensatas Em certos seres humanos a mentira embora em geral associada aí também a um complexo de vaidade ou de recalcamento tornase quase segundo a terminologia de André Gide um ato gratuito O cientista alemão que mourejou para redigir em excelente grego a história oriental cuja paternidade atribuiu ao fictício Sanchoniathon teria adquirido facilmente a um custo menor uma estimável reputação de helenista Filho de um membro do Instituto ele próprio mais tarde convocado a se sentar nessa honorável companhia François Lenormant ingressou na carreira aos 17 anos mistificando seu próprio pai com a falsa descoberta das inscrições de La ChapelleSaintÉloi inteiramente fabricadas por suas mãos já velho e cercado de honrarias seu último golpe de mestre foi dizem publicar como originárias da Grécia algumas banais antiguidades préhistóricas que ele simplesmente recolhera na campagne francesa37 Ora do mesmo modo que indivíduos existiram épocas mitômanas Tais como por volta do final do século XVIII e início do XIX as gerações préromânticas e românticas Poemas pseudoceltas atribuídos a Ossian epopeias baladas que Chatterton imaginou escrever em inglês arcaico poesias pretensamente medievais de Clotilde de Surville cantos bretões imaginados por Villemarqué cantos supostamente traduzidos do croata por Mérimée cantos heroicos tchecos38 de KravoliDvor39 e assim por diante é40 de uma extremidade a outra da Europa durante essas décadas como uma vasta sinfonia de fraudes A Idade Média 41 sobretudo do século VIII ao XII apresenta um outro exemplo dessa epidemia coletiva Decerto a maioria dos falsos diplomas dos falsos decretos pontificais das falsas capitulares42 então forjados em tão grande número o foi por interesse Assegurar a uma igreja um bem contestado apoiar a autoridade da Sé romana defender os monges contra o bispo os bispos contra os metropolitanos o papa contra os soberanos temporais o imperador contra o papa os falsários não enxergavam mais longe O fato característico não deixa de ser que personagens de uma piedade e não raro de uma virtude incontestáveis não hesitavam em lançar mão desses embustes Visivelmente não ofuscavam a moralidade comum Quanto ao plágio43 parecia universalmente nessa época44 o ato mais inocente do mundo o analista o hagiógrafo apropriavamse sem remorsos em passagens inteiras dos escritos de autores mais antigos Nada menos futurista porém do que essas duas sociedade além do mais de tipo tão diferente Em sua fé como em seu direito a Idade Média não conhecia outro fundamento senão a lição de seus ancestrais O romantismo desejava beber na fonte viva tanto do primitivo como do popular Assim os períodos mais ligados à tradição foram também os que45 tomaram mais liberdades com sua herança precisa Como se por uma singular revanche de uma irresistível necessidade de criação à força de venerar o passado naturalmente se fosse levado a inventálo No mês de julho de 1857 o matemático Michel Chasles comunicou à Academia das Ciências a existência de todo um lote de cartas inéditas de Pascal que lhe foram vendidas por seu fornecedor habitual o ilustre falsário VrainLucas Resultava daí que o autor das Provinciales havia formulado antes de Newton o princípio da atração universal Um cientista inglês se surpreendeu Como explicar dizia em substância46 que esses textos estejam a par de medidas astronômicas efetuadas47 muitos anos depois da morte de Pascal e das quais o próprio Newton só teve conhecimento uma vez48 publicadas as primeiras edições de sua obra VrainLucas não era homem de se constranger por tão pouco Voltou para sua mesa de trabalho e logo novamente abastecido por ele49 Chasles pôde produzir novos autógrafos Como assinatura tinham dessa vez Galileu como destinatário Pascal Assim o enigma estava esclarecido o ilustre astrônomo fornecera as observações Pascal os cálculos Tudo de ambas as partes sigilosamente É verdade Pascal por ocasião da morte de Galileu tinha apenas 18 anos O quê Era apenas uma razão a mais para se admirar a precocidade de seu gênio Eis no entanto observou o infatigável objetor uma outra estranheza em uma dessas cartas datadas de 1641 vemos Galileu queixarse de só escrever ao preço de muito cansaço para seus olhos Ora não sabemos50 que a partir do final ano de 1637 ele estava na realidade complemente cego Perdão replicou pouco depois o bom Chasles todos acreditaram concordo nessa cegueira até aqui Muito erradamente Pois surgida oportunamente para confundir o erro comum posso agora lançar nos debates uma peça decisiva Um outro cientista italiano dava a conhecer a Pascal em 2 de dezembro de 1641 nessa data Galileu cuja vista sem dúvida já vinha se enfraquecendo há vários anos acabava justamente de a perder por inteiro51 Nem todos os impostores certamente exibiram tanta fecundidade quanto VrainLucas52 nem todos os tolos a candura de sua lamentável vítima Mas que o insulto à verdade seja uma engrenagem que toda mentira arraste53 forçosamente com ela em sua esteira muitas outras chamadas a se proporcionar ao menos aparentemente um mútuo apoio a experiência da vida ensina e a da história o confirma Eis por que tantas falsificações célebres se apresentam em cachos54 Falsos privilégios da Sé de Canterbury falsos privilégios do ducado de Áustria subscritos por tantos grandes soberanos de Júlio César a Frederico BarbaRuiva falsificações na árvore genealógica do caso Dreyfus parece e só quis citar alguns exemplos que estamos vendo uma disseminação de colônias microbianas A fraude por natureza engendra a fraude Há enfim uma forma55 mais insidiosa do embuste Em lugar da contraverdade brutal plena e se me permitem franca há a soturna manipulação interpolações em documentos autênticos na narração acréscimos sobre um fundo toscamente verídico detalhes inventados Interpola se geralmente por interesse Acrescentase com frequência para enfeitar As devastações que uma estética falaciosa exerceu sobre a historiografia antiga ou medieval foram com frequência denunciadas Sua parte talvez não seja muito menor em nossa imprensa Mesmo às custas da veracidade o mais modesto romancista instala de bom grado seus personagens segundo as convenções de uma retórica cuja idade não consumiu o prestígio àquela época e em nossas salas de redação Aristóteles e Quintiliano contam mais discípulos do que em geral se acredita Inclusive certas condições técnicas parecem favorecer essas deformações Quando o espião Bolo foi condenado em 1917 um diário dizem publicou a partir de 6 de abril o relato da execução Primeiro fixada de fato para essa data ela só teve56 lugar57 realmente onze dias mais tarde O jornalista estabelecera seu papel previamente convencido de que o evento se daria no dia previsto julgou inútil verificar Não sei o que vale o episódio Certamente erros tão crassos são excepcionais Mas nada há de inverossímil em supor que para andar mais rápido pois antes de tudo é preciso que a edição saia a tempo as reportagens de cenas esperadas sejam às vezes preparadas antes da hora Quase sempre estejamos certos o rascunho depois da observação será modificado caso haja necessidade em todos os pontos importantes duvidase em contrapartida que muitos retoques sejam feitos nos traços58 acessórios julgados necessários para dar cor e os quais ninguém pensa em controlar Pelo menos é o que um leigo acredita entrever Gostaríamos que um homem de ofício nos fornecesse quanto a isso luzes sinceras59 O jornal infelizmente ainda não encontrou seu Mabillon ou seu Paperbroeck O que é certo é que a obediência a um código um pouco em desuso de bom gosto literário o respeito a uma psicologia estereotipada a febre do pitoresco não estão próximos de perder seu lugar na galáxia dos geradores de mentiras Do puro e simples fingimento até o erro inteiramente involuntário há muitos níveis Quando mais não fosse em razão da fácil metamorfose pela qual a patranha mais sincera se transforma com a colaboração das circunstâncias em mentira Inventar supõe um esforço que a preguiça de espírito comum à maioria dos homens repele Quão mais cômodo aceitar complacentemente60 uma ilusão originalmente espontânea que lisonjeie o interesse do momento Vejam o célebre episódio do avião de Nuremberg Ainda que a questão jamais tenha sido perfeitamente esclarecida parece de fato que um avião comercial francês sobrevoou a cidade poucos dias antes da declaração de guerra É provável que o tenham tomado por um avião militar Não é inverossímil que em uma população já presa dos fantasmas da escaramuça próxima o rumor tenha se espalhado como bombas jogadas aqui e ali É certo porém que nenhuma delas foi lançada que os governantes do Império alemão possuíam todos os meios de reduzir esse falso rumor a nada que por conseguinte ao acolhêlo sem controle para dele fazer um motivo de guerra propriamente mentiram Mas sem nada imaginar Nem mesmo talvez61 sem ter inicialmente uma consciência muito clara de sua impostura O absurdo rumor cresceu porque era útil acreditar nele De todos os tipos de mentira aquela que se impinge a si mesmo não está entre as menos62 frequentes e a palavra sinceridade envolve um conceito um pouco tosco que só poderia ser manipulado com a introdução de muitas nuances Não é menos verdade que muitas testemunhas se enganam com toda a boafé Eis portanto chegado o momento para o historiador de tirar proveito dos preciosos resultados com que a observação sobre o vivo há algumas décadas vem armando uma disciplina quase63 nova a psicologia do testemunho Na medida em que interessa a nossos estudos essas aquisições parecem ser no essencial as seguintes A se acreditar em Guillaume de SaintThierry seu discípulo e amigo são Bernardo ficou um dia muito surpreso ao saber que a capela onde jovem monge seguia cotidianamente os ofícios divinos abriase ao fundo da nave em três janelas sempre imaginara que tinha apenas uma Sobre essa característica64 o hagiógrafo por sua vez se espanta e admira que perfeito65 servo de Deus tal desprendimento das coisas da Terra não pressagiava Tudo indica que Bernardo devia sofrer de uma distração pouco comum considerando pelo menos é verdade como se conta também que lhe acontecia margear o Léman durante um dia inteiro sem percebêlo Numerosas provas entretanto o atestam para se enganar grosseiramente sobre realidades que deveriam ao que tudo indica ser mais bem conhecidas não é preciso de modo algum estar entre os príncipes da mística Os alunos do professor Claparède em Genebra mostraramse durante experiências célebres tão incapazes de descrever corretamente o vestíbulo de sua universidade quanto o Doutor da palavra de mel a igreja de seu mosteiro A verdade é que na maioria dos cérebros o mundo circundante só acha medíocres aparelhos gravadores Acrescentem que sendo os testemunhos apenas a expressão de lembranças os erros primordiais da percepção arriscamse sempre a complicaremse graças a erros de memória dessa fluida dessa fecunda memória já denunciada por um de nossos velhos juristas66 Em certos espíritos a inexatidão assume aspectos verdadeiramente patológicos seria muito irreverente propor para essa psicose o nome de doença de Lamartine Todo mundo sabe essas pessoas não são geralmente as menos prontas a afirmar algo Porém se assim existem testemunhas mais ou menos suspeitas e seguras a experiência prova que não se encontra uma cujas palavras sejam igualmente dignas de fé sobre todos os assuntos e todas as circunstâncias Duas ordens de causa principalmente alteram até no homem mais dotado a veracidade das imagens cerebrais Algumas se dão na condição momentânea do observador são o cansaço por exemplo ou a emoção Outras no nível de sua atenção Com poucas exceções não se vê não se ouve bem a não ser o que se esperava de fato perceber Um médico encontrase na cabeceira de um doente eu acreditaria nele mais facilmente quanto ao aspecto de seu paciente cujo comportamento examinou com cuidado do que quanto aos móveis do quarto ao qual provavelmente lançou apenas olhares distraídos Eis por que a despeito de um preconceito bastante comum os objetos mais familiares como para são Bernardo a capela de Cîteaux estão em geral entre aqueles sobre os quais é mais difícil obter uma descrição correta pois a familiaridade traz quase necessariamente a indiferença Ora muitos acontecimentos históricos só puderam ser observados em momentos de violenta perturbação emotiva ou por testemunhas cuja atenção ora solicitada tarde demais quando havia surpresa ora retida pelas preocupações com a ação imediata67 era incapaz de incidir com intensidade suficiente sobre as características às quais o historiador com68 razão atribuiria atualmente um interesse preponderante Certos casos são célebres O primeiro tiro que em 25 de fevereiro de 1848 em frente ao ministério das Relações Exteriores desencadeou a rebelião da qual devia sair por sua vez a Revolução foi disparado da tropa Ou da multidão Nunca saberemos de fato69 Como então por outro lado levar a sério nos cronistas os grandes trechos descritivos as pinturas minuciosas dos costumes dos gestos das cerimônias dos episódios guerreiros Através de qual rotina obstinada conservar a menor ilusão sobre a veracidade de todo esse bricabraque no qual se alimentava a arraiamiúda dos historiadores românticos ao passo que ao nosso redor sequer uma testemunha está em condições de reter corretamente em sua integralidade os detalhes sobre os quais tão ingenuamente foram interrogados os velhos autores No máximo esses quadros nos fornecem o cenário das ações tal como na época do escritor imaginavase que devia ser Isso é extremamente instrutivo não é o gênero de informações que os amantes do pitoresco geralmente perguntam a suas fontes Convém perceber entretanto a que conclusões essas observações talvez apenas aparentemente pessimistas levam nossos estudos daqui para frente Elas não atingem a estrutura elementar do passado A afirmação de Bayle permanece correta Jamais se objetará algo que esbarre nessa verdade de que César venceu Pompeu e sobre qualquer tipo de princípio que se queira ficar discutindo não se encontrarão coisas mais inabaláveis do que esta proposição César e Pompeu existiram e não foram uma mera modificação da alma daqueles que escreveram suas vidas É verdade caso devessem subsistir como confirmados apenas alguns fatos desse tipo desprovidos de explicação a história se reduziria a uma série de observações toscas sem grande valor intelectual Felizmente não é este o caso As únicas causas que a psicologia do testemunho atinge assim com uma frequente incerteza são os antecedentes completamente imediatos Um grande acontecimento pode ser comparado a uma explosão Sob que condições exatamente produzse o último choque molecular indispensável à distensão dos gases Frequentemente seremos obrigados a nos resignar a ignorálo O que é lamentável sem dúvida mas estão os químicos sempre melhor colocados Isso em nada impede que a composição da mistura detonante permaneça inteiramente suscetível de análise Numerosos fatores muito diversos e muito atuantes que desde logo um Tocqueville soube vislumbrar haviam preparado há muito tempo a revolução de 1848 esse movimento tão claramente determinado o qual por uma estranha aberração certos historiadores acreditaram poder transformar em protótipo do acontecimento fortuito O fuzilamento do boulevard des Capucines foi outra coisa senão a última pequena fagulha Do mesmo modo veremos essas causas próximas não escapam apenas com muita frequência à observação de nossos fiadores portanto à nossa Em si mesmas constituem também a parte privilegiada do imprevisível do acaso na história Podemos nos consolar sem muita dificuldade porque as enfermidades do testemunho as dissimulam geralmente aos mais sutis de nossos instrumentos Mesmo mais bem conhecidas seu encontro com as grandes cadeias causais da evolução representaria o resíduo de contingências que nossa ciência jamais conseguirá eliminar que ela não tem o direito de pretender eliminar Quanto aos impulsos íntimos dos destinos humanos às vicissitudes da mentalidade ou da sensibilidade das técnicas da estrutura social ou econômica as testemunhas que interrogamos sobre isso não estão sujeitas às fragilidades da percepção momentânea Por uma feliz coincidência que Voltaire já entrevira o que existe em história de mais profundo bem poderia ser também o que existe de mais seguro Eminentemente variável de indivíduo para indivíduo a faculdade de observação tampouco é uma constante social Certas épocas viramse desprovidas dela mais que outras Por mais medíocre por exemplo que permaneça atualmente para a maioria dos homens a apreciação dos números ela não é tão universalmente falha quanto entre os analistas medievais nossa percepção como nossa civilização impregnouse de matemática No entanto se os erros do testemunho fossem determinados em última análise apenas pelas fraquezas dos sentidos ou da atenção o historiador só teria em suma que entregar seu estudo ao psicólogo Mas para além desses pequenos acidentes cerebrais de natureza bastante comum muitos deles remontam a causas muito mais significativas de uma atmosfera social particular Eis por que assumem frequentemente por sua vez como a mentira um valor documental No mês de setembro de 1917 o regimento de infantaria ao qual eu pertencia detinha as trincheiras do Chemin des Dames ao norte da cidadezinha de Braisne Numa investida fizemos um prisioneiro Era um reservista negociante de ofício e oriundo de Bremen às margens do Weser Pouco depois uma curiosa história nos chegou da retaguarda das linhas A espionagem alemã diziam mais ou menos esses colegas bem informados que maravilha Tomamos um de seus pequenos postos no coração da França Com que nos deparamos Um comerciante estabelecido durante a paz a alguns quilômetros dali em Braisne O disparate parece claro Evitemos porém fazer um apanhado tão simplista Vão apontar sem mais um erro de audição Seria de todo modo exprimirse bastante inexatamente Pois mais do que mal ouvido o nome verdadeiro havia sido provavelmente mal compreendido geralmente desconhecido ele não chamava atenção por uma tendência natural do espírito pensavase captar em seu lugar um nome familiar Mas tem mais nesse primeiro trabalho de interpretação um segundo igualmente inconsciente já se encontrava implicado A imagem não raro verídica das astúcias alemãs havia sido popularizada por incontáveis relatos70 lisonjeava ao71 vivo a sensibilidade romanesca das massas A substituição de Bremen por Braisne harmonizavase muito bem com essa obsessão de não se impor de certo modo espontaneamente72 Ora tal é o caso de um grande número de deformações do testemunho O erro quase sempre é previamente orientado Sobretudo espalhase só ganha vida sob a condição de se combinar com os partis pris da opinião comum tornase então como o espelho em que a consciência coletiva contempla seus próprios traços Muitas casas belgas apresentam em suas fachadas estreitas aberturas destinadas a facilitar aos operários a colocação do reboco nesses pequenos artifícios de pedreiros os soldados alemães em 1914 jamais imaginaram ver tantas seteiras preparadas por francoatiradores se sua imaginação não houvesse sido alucinada de longa data pelo medo das guerrilhas As nuvens não mudaram de forma desde a Idade Média Não percebemos73 mais porém nem cruz nem espada milagrosas A cauda do cometa observada pelo grande Ambroise Paré possivelmente não era nada diferente daquelas que varrem às vezes nossos céus Ele acreditou entretanto aí descobrir toda uma panóplia de armas estranhas A obediência ao preconceito universal triunfara sobre a habitual exatidão de seu olhar e seu testemunho como tantos outros informa não sobre o que ele viu na realidade mas sobre o que em sua época era estimado natural ver No entanto para que o erro de uma testemunha tornese o de muitos homens para que uma observação malfeita se metamorfoseie em falso rumor é preciso também que a situação da sociedade favoreça essa difusão Nem todos os tipos sociais lhe são longe disso igualmente propícios Nesse aspecto os extraordinários distúrbios da vida coletiva que nossas gerações viveram constituem outras tantas admiráveis experiências As do momento presente para dizer a verdade estão muito próximas de nós para já passarem por uma análise exata A guerra de 191418 permite mais o recuo Todos sabem o quanto esses quatro anos mostraramse fecundos em notícias falsas Sobretudo entre os combatentes É na particularíssima sociedade das trincheiras que a formação dessas notícias parece mais interessante de ser estudada O papel da propaganda e da censura foi à sua maneira considerável Mas exatamente o contrário74 do que os criadores dessas instituições esperavam delas75 Como disse muito bem um humorista Prevalecia nas trincheiras a opinião de que tudo podia ser verdade à exceção do que se deixava imprimir Ninguém acreditava nos jornais tampouco nas cartas pois além de chegarem irregularmente eram consideradas muito vigiadas Daí uma renovação prodigiosa da tradição oral mãe antiga das lendas e dos mitos Num golpe audacioso jamais sonhado pelo mais audacioso dos experimentadores os governos abolindo os séculos decorridos devolviam o soldado do front aos meios de informação e ao estado de espírito dos tempos antigos antes do jornal antes do informativo antes do livro Não era geralmente na linha de fogo que os rumores nasciam Para isso os pequenos grupos encontravamse muito isolados uns dos outros O soldado não tinha direito algum de se deslocar sem ordem só o fazia aliás o mais frequentemente com o risco de sua vida Em alguns momentos circulavam viajantes intermitentes agentes de ligação76 telefonistas consertando suas linhas observadores de artilharia Esses personagens consideráveis frequentavam pouco o simples soldado Mas existiam77 comunicações periódicas muito mais importantes Impunhamse pela preocupação com a alimentação A ágora desse pequeno mundo dos abrigos e dos postos de vigilância foram as cozinhas Ali uma ou duas vezes por dia os abastecedores vindos dos diversos pontos do setor encontravamse e tagarelavam entre si ou com os cozinheiros Estes sabiam muito pois colocados na encruzilhada de todas as unidades tinham além disso o raro privilégio de cotidianamente trocar algumas palavras com os condutores do trem regimental homens sortudos que acantonavam na vizinhança dos estadosmaiores78 Assim por um instante em torno das fogueiras sob pleno vento ou das unidades móveis atavamse entre círculos singularmente dessemelhantes vínculos precários Depois essas equipes moviamse através das pistas e trincheiras e levavam até a dianteira do front com suas marmitas as informações verdadeiras ou falsas em todo caso quase sempre deformadas e prontas então para uma nova elaboração Nos mapas de orientação um pouco atrás dos riscos enlaçados desenhados pelas primeiras posições podiase cobrir com hachuras uma faixa contínua isso teria sido a zona de formação das lendas79 Ora a história conheceu mais de uma sociedade regida em grande parte por condições análogas com a diferença de que em lugar de ser o efeito passageiro de uma crise toda excepcional elas ali representariam a trama normal da vida Ali também a transmissão oral era praticamente a única eficaz Ali também entre elementos bastante fragmentados as ligações eram operadas quase exclusivamente por intermediários80 especializados ou em pontos de conexão definidos Caixeirosviajantes jograis peregrinos mendigos ocupavam o lugar do pequeno povo errante81 das comunicações subterrâneas Os encontros regulares davamse nos mercados por ocasião das festas religiosas Assim por exemplo durante a alta Idade Média Feitas a golpe de interrogatórios tendo os passantes como informantes as crônicas monásticas se parecem bastante com os mementos que nossos caporais ordinários poderiam ter elaborado se tivessem tido o gosto Essas sociedades sempre foram para as falsas notícias um excelente caldo de cultura Relações frequentes entre os homens facilitam a comparação entre os diversos relatos Estimulam o senso crítico Ao contrário acreditase piamente no narrador que a longos intervalos traz por caminhos difíceis os rumores de terras longínquas82 3 Tentativa de uma lógica do método crítico83 A crítica do testemunho que trabalha sobre realidades psíquicas permanecerá sempre uma arte de sensibilidade Não existe para ela nenhum livro de receitas Mas é também uma arte racional que repousa na prática metódica de algumas grandes operações do espírito Tem em suma sua dialética própria que convém deduzir Suponhamos que de uma civilização desaparecida subsista um único objeto que além disso as condições de sua descoberta impeçam até de relacionálo com características alheias ao homem tais como sedimentações geológicas pois nessa busca das ligações a natureza inanimada também pode ter sua participação Será completamente impossível tanto datar esse vestígio único como se pronunciar sobre sua autenticidade Só se estabelece de fato uma data só se controla e em suma só se interpreta um documento por sua inserção em uma série cronológica ou um conjunto sincrônico Foi aproximando os diplomas merovíngios seja entre si seja de outros textos de época ou de natureza diferente que Mabillon fundou a diplomática foi da confrontação dos relatos evangélicos que nasceu a exegese Na base de quase toda a crítica inscrevese um trabalho de comparação Mas os resultados dessa comparação nada têm de automático Necessariamente acarretam ressaltar tanto semelhanças como diferenças Ora segundo o caso a concordância entre um testemunho e os testemunhos vizinhos pode impor conclusões exatamente contrárias É preciso considerar em primeiro lugar o caso elementar do relato Em suas Memórias que fizeram disparar tantos jovens corações Marbot conta com grande abundância de detalhes um rasgo de bravura do qual se apresenta como herói a se acreditar nele teria na noite de 7 para 8 de maio de 1809 atravessado de barca as ondas encapeladas do Danúbio então em plena cheia para raptar na outra margem alguns prisioneiros austríacos Como verificar o episódio Recorrendo a outros testemunhos Possuímos as ordens as cadernetas de viagem os relatórios dos exércitos adversários atestam que durante a famosa noite a unidade austríaca cujos acampamentos Marbot pretende ter descoberto na margem esquerda ocupava ainda a margem oposta A própria Correspondência de Napoleão alude ao fato de que em 8 de maio a subida das águas ainda não começara Enfim encontrouse um pedido de promoção elaborado em 30 de junho de 1809 por Marbot em pessoa entre os títulos que ali invoca não diz palavra sobre sua suposta façanha do mês precedente De um lado eis então as Memórias do outro todo um lote de textos que as desmentem Convém dirimir essas irreconciliáveis testemunhas Que alternativa julgarseá mais verossímil que naquele momento os estados maiores o próprio imperador tenham se enganado a menos que Deus sabe lá por quê tenham conscientemente alterado a realidade que o Marbot de 1809 na ausência de uma promoção tenha pecado por falsa modéstia ou que bem mais tarde o velho guerreiro cujas bravatas são além disso notórias tenha dado uma nova rasteira na verdade Ninguém certamente hesitará as Memórias mentiram mais uma vez Aqui portanto a constatação de uma discrepância arruinou um dos testemunhos opostos Era preciso que um dos dois sucumbisse Assim o exigia o mais universal dos postulados lógicos o princípio da contradição proíbe impiedosamente que um acontecimento possa ser e não ser ao mesmo tempo Encontramos mundo afora eruditos cuja generosidade não descansa até descobrir entre afirmações antagônicas um meiotermo isso é imitar o pirralho que interrogado sobre o quadrado de 2 como um de seus vizinhos lhe soprasse 4 e outro 8 acreditou acertar respondendo 6 Faltava depois escolher o testemunho rejeitado e o que devia subsistir Uma análise psicológica decidiu pesaramse as razões presumidas da veracidade da mentira ou do erro em cada um dos testemunhos Descobriuse no caso que essa apreciação trazia uma marca de evidência quase absoluta Ela não deixará de se mostrar em outras circunstâncias afetada por um coeficiente de incerteza muito mais forte Conclusões que se fundam numa delicada dosagem de motivos supõem do infinitamente provável ao apenas verossímil uma longa degradação Mas eis agora exemplos de outro tipo Um documento que se diz do século XIII está escrito sobre papel ao passo que todos os originais dessa época até agora encontrados o são sobre pergaminho a forma das letras aparece aí bem diferente do desenho observado em outros documentos da mesma data a língua abunda em palavras e figuras de estilo estranhas a seu uso unânime Ou então as dimensões de uma ferramenta pretensamente paleolítica revelam procedimentos de fabricação empregados apenas em épocas bem mais próximas de nós Concluiremos que o documento e que a ferramenta são falsificações Como precedentemente a discrepância condena Mas por razões de natureza bem diferente A ideia que desta vez orienta a argumentação reza que em uma mesma geração de uma mesma sociedade reina uma similitude de hábitos e técnicas muito grande para permitir a qualquer indivíduo afastarse sensivelmente da prática comum Temos como certo que um francês da época de Luís VII desenhava suas letras aproximadamente como seus contemporâneos que se exprimia aproximadamente nos mesmos termos84 que se servia dos mesmos assuntos que caso um operário das tribos magdalenianas para cortar suas pontas de osso dispusesse de uma serra mecânica seus colegas a teriam utilizado como ele O postulado em resumo é aí de ordem sociológica Confirmadas indubitavelmente em seu valor geral por uma constante experiência da humanidade as noções de endosmose coletiva de pressão do número de imperiosa imitação sobre as quais ele repousa confundemse no final com o próprio conceito de civilização Não é preciso no entanto que a semelhança seja muito grande Ela deixaria então de depor em favor do testemunho Pronunciaria ao contrário sua condenação Alguém que participou da batalha de Waterloo soube que Napoleão fora vencido ali Consideraríamos a testemunha original que negasse a derrota uma falsa testemunha Além disso que Napoleão tenha sido vencido em Waterloo admitimos que não haja em francês muitas maneiras de dizêlo por pouco que nos limitemos a essa simples e tosca constatação Mas duas testemunhas ou que se dizem como tais descrevem a batalha exatamente na mesma linguagem Ou ainda que ao preço de uma certa diversidade de expressão exatamente com os mesmos detalhes Concluiremos sem hesitar que um deles copiou o outro ou que ambos copiaram um modelo comum Nossa razão recusa com efeito admitir que colocados necessariamente em pontos diferentes do espaço e dotados de faculdades de atenção desiguais dois observadores tenham podido observar ponto a ponto os mesmos episódios que entre as inumeráveis palavras da língua francesa dois escritores trabalhando independentemente um do outro tenham fortuitamente feito escolha dos mesmos termos analogamente organizados para contar as mesmas coisas Se dois relatos se dão como tomados diretamente da realidade é preciso portanto que um dos dois pelo menos minta Considerem em dois monumentos antigos esculpidas de cada lado da pedra duas cenas guerreiras Relacionamse a campanhas diferentes São representadas no entanto sob traços quase iguais O arqueólogo dirá Um dos dois artistas certamente plagiou o outro a menos que ambos tenham se contentado em reproduzir uma convenção de escola Pouco importa que os combates tenham sido separados apenas por um curto intervalo que talvez tenham oposto adversários oriundos dos mesmos povos egípcios contra hititas Assur contra Elam Revoltamonos ante a ideia de que na imensa variedade das atitudes humanas duas ações distintas em momentos diversos tenham sido capazes de se renovar exatamente com os mesmos gestos Como testemunho dos faustos militares que ela finge retraçar uma das duas imagens pelo menos se não as duas é propriamente uma falsificação Assim a crítica movese entre esses dois extremos a similitude que justifica e a que desacredita Isso porque o acaso dos encontros tem seus limites e o concerto social é feito de malhas afinal bem frouxas Em outros termos estimamos que haja no universo e na sociedade bastante uniformidade para excluir a eventualidade de desvios muito marcados Mas essa uniformidade tal como a representamos atémse a características bem genéricas Achamos que ela supõe de certo modo engloba mal se penetra um pouco mais no real um número de combinações possíveis muito próximo do infinito para que sua repetição espontânea seja concebível para tal é preciso um ato voluntário de imitação De modo que no final das contas a crítica do testemunho apoiase numa instintiva metafísica do semelhante e do dessemelhante do Um e do Múltiplo Resta ao se impor a hipótese da cópia fixar as direções de influência Em cada par os dois documentos beberam em uma fonte comum A supor que um dos dois ao contrário seja original em qual reconhecer esse título Às vezes a resposta será fornecida por critérios externos tais como por exemplo as datas relativas se for possível estabelecêlas Na falta desse apoio a análise psicológica com a ajuda das características internas do objeto ou do texto reassumirá seus direitos É evidente que ela não comporta regras mecânicas Será preciso por exemplo erigir em princípio como certos eruditos parecem fazêlo que os remanieurs85 multiplicam constantemente as novas invenções de modo que o texto mais sóbrio e o menos inverossímil teriam sempre a chance de ser o mais antigo Isso é verdade algumas vezes De inscrição em inscrição vemos o número de inimigos caídos sob os golpes de um rei da Assíria crescer desmedidamente Mas acontece também de a razão se rebelar A mais fabulosa das Paixões de são Jorge é a primeira em data por conseguinte retomando o velho relato os sucessivos redatores sacrificaram inicialmente tal característica dela depois uma outra cuja extravagante fantasia os chocava Há muitas maneiras diferentes de imitar Variam segundo o indivíduo às vezes segundo modas comuns a uma geração Assim como qualquer outra atitude mental não poderiam ser pressupostas sob o pretexto de que nos pareceriam naturais Felizmente os plagiadores se traem frequentemente por suas imperícias Quando não compreendem seu modelo seus contrassensos denunciam a fraude Procuram disfarçar seus empréstimos A inabilidade de seus estratagemas os perde Conheci um liceano que durante uma composição o olho fito no dever de seu vizinho transcrevia cuidadosamente suas frases de trás para frente a seguir com muita espirituosidade transformava os sujeitos em atributo e a ativa na passiva Só fez fornecer a seu professor um excelente exemplo de crítica histórica Desmascarar uma imitação é ali onde inicialmente acreditamos lidar com duas ou várias testemunhas deixar subsistir apenas uma Dois contemporâneos de Marbot o conde de Ségur e o general Pelet fizeram sobre a pretensa travessia do Danúbio um relato análogo ao seu Mas Ségur vinha depois de Pelet leuo só fez copiálo Quanto a Pelet de nada adianta ter escrito antes de Marbot era seu amigo sem dúvida alguma escutarao evocar suas fictícias proezas pois o incansável fanfarrão preparavase fagueiramente enganando seus familiares para mistificar a posteridade Marbot permanece portanto nosso único aval uma vez que suas aparentes cauções só falaram depois dele Quando Tito Lívio reproduz Políbio ainda que o ornamentando é Políbio que é nossa única autoridade Quando Éginhard sob o pretexto de nos descrever Carlos Magno copia o retrato de Augusto por Suetônio não existe mais no sentido próprio nenhuma testemunha Acontece enfim de por trás da suposta testemunha estar oculto um soprador que por nada quer se dar a ver Estudando o processo dos Templários Robert Lea observou que quando dois acusados pertencentes a duas casas diferentes eram interrogados pelo mesmo inquisidor vemolos invariavelmente confessar as mesmas atrocidades e as mesmas blasfêmias Vindos da mesma casa eram ao contrário interrogados por inquisidores diferentes e as confissões deixavam de concordar A conclusão evidente é que o juiz ditava as respostas Eis uma característica de que os anais judiciais forneceriam imagino outros exemplos Em nenhum lugar provavelmente o papel desempenhado no raciocínio crítico pelo que poderíamos chamar de princípio de semelhança limitada aparece sob luz mais curiosa do que através de uma das aplicações mais recentes do método a crítica estatística Estou estudando suponhamos a história dos preços entre duas datas determinadas numa sociedade bem coesa os quais passam por correntes de trocas ativas Depois de mim um segundo trabalhador depois um terceiro empreendem a mesma pesquisa mas com ajuda de elementos que diferentes dos meus diferem igualmente entre si outros livros de contas outras mercuriais Cada um de seu lado estabelecemos nossas médias anuais nossos númerosíndices a partir de uma base comum nossos gráficos As três curvas praticamente se superpõem Disso se concluirá que cada uma delas fornece uma imagem sumariamente exata do movimento Por quê A razão não está somente em que num meio econômico homogêneo as grandes flutuações dos preços deviam necessariamente obedecer a um ritmo sensivelmente uniforme Sem dúvida essa consideração bastaria para lançar suspeita sobre curvas brutalmente divergentes não para nos garantir que entre todos os traçados possíveis aquele que os três gráficos concordam em apresentar seja por que nisso concordam forçosamente o verdadeiro Três pesagens com balanças parelhamente adulteradas fornecerão o mesmo número e esse número será falso Todo o raciocínio repousa aqui numa análise do mecanismo dos erros Nenhuma das três listas de preços poderia ser considerada isenta desses erros de detalhe Em matéria de estatística eles são praticamente inevitáveis Suponhamos mesmo eliminados os erros pessoais do pesquisador sem falar de equívocos mais grosseiros quem de nós ousará dizerse seguro de nunca ter tropeçado no terrível dédalo das medidas antigas Por mais maravilhosamente atento que imaginemos o erudito restarão sempre as armadilhas engendradas pelos próprios documentos certos preços poderiam ter sido por leviandade ou máfé inexatamente inscritos outros serão excepcionais preços de amigos por exemplo ou inversamente preços de tolos com isso bastante adequados a distorcer as médias as mercuriais que registravam as taxas médias praticadas nos mercados nem sempre terão sido elaboradas com um cuidado rigoroso Mas para um grande número de preços esses erros se compensam Pois seria altamente improvável que fossem sempre no mesmo sentido Se portanto a concordância dos resultados obtidos com ajuda de dados diferentes os confirma uns pelos outros é que na base a concordância nas negligências nos mínimos enganos nas mínimas complacências nos parece a justo título inconcebível O que há de irredutivelmente diverso nos testemunhos levou a concluir que sua concordância final só pode advir de uma realidade cuja unidade essencial era nesse caso fora de dúvida Os reagentes da prova do testemunho não são feitos para serem brutalmente manipulados Quase todos os princípios racionais quase todas as experiências que a guiam encontram por pouco que se os leve a fundo seus limites em princípios ou experiências contrários Como toda lógica fidedigna a crítica histórica tem suas antinomias ao menos aparentes Para que um testemunho seja reconhecido como autêntico o método vimos isso exige que ele apresente uma certa similitude com os testemunhos vizinhos Se aplicarmos entretanto esse preceito ao pé da letra o que seria da descoberta Pois quem diz descoberta diz surpresa e dessemelhança Uma ciência que se limitasse a constatar que tudo acontece sempre como se esperava não teria uma prática proveitosa nem divertida Até agora não se encontrou documento redigido em francês em vez de sêlo como precedentemente em latim anterior ao ano 1204 Imaginemos que amanhã um pesquisador produza um documento francês datado de 1180 Concluiremos86 daí que o documento é falso Ou que nossos conhecimentos eram insuficientes Não apenas aliás a impressão de uma contradição entre um testemunho novo e seus similares arriscase a ter como origem apenas uma temporária enfermidade de nosso saber como acontece de a discrepância residir autenticamente nas coisas A uniformidade social não detém tanta força que dela não consigam escapar certos indivíduos ou pequenos grupos Sob o pretexto de que Pascal não escrevia como Arnauld que Cézanne não pintava como Bouguereau nos negaremos a admitir as datas reconhecidas das Provinciales ou da Montagne SainteVictoire Acusaremos de falsificações os mais antigos artefatos de bronze pela razão de que a maioria das jazidas da mesma época não nos fornece senão artefatos de pedra Essas falsas conclusões nada têm de imaginárias e a lista dos fatos que a rotina erudita inicialmente negou porque eram surpreendentes será longa Desde a zoolatria egípcia que divertia muito Voltaire até os vestígios humanos da era terciária Olhando mais de perto porém o paradoxo metodológico é somente de superfície O argumento de semelhança não perde seus direitos Acarreta apenas que uma análise mais exata discirna dos possíveis desvios os pontos de similitude necessários Pois toda originalidade individual tem seus limites O estilo de Pascal não pertence senão a ele mas sua gramática e a base de seu vocabulário são de seu tempo Pelo emprego que faz de uma língua inusitada em vão nosso suposto documento de 1180 irá diferir dos documentos de mesma data até aqui conhecidos para que seja julgado aceitável será preciso que seu francês se conforme grosso modo à situação da linguagem atestada nessa época pelos textos literários e que as instituições mencionadas correspondam àquelas do momento Do mesmo modo aproximar os testemunhos num mesmo plano de duração não satisfaz a comparação crítica competente Um fenômeno humano é sempre um elo de uma série que atravessa as eras No dia em que um novo VrainLucas lançando sobre a mesa da Academia um punhado de autógrafos pretender nos provar que Pascal inventou a relatividade geral antes de Einstein estejamos logo certos de que as peças serão falsas Não é que Pascal fosse incapaz de descobrir o que seus contemporâneos não descobriam Mas a teoria da relatividade tem seu ponto de partida num longo e prévio desenvolvimento de especulações matemáticas grande que fosse nenhum homem podia apenas pela força de seu gênio substituir gerações nesse trabalho Quando em contrapartida diante das primeiras descobertas de pinturas paleolíticas vemos certos cientistas contestar sua autenticidade ou data sob o pretexto de que arte semelhante seria incapaz de florescer e depois desaparecer esses céticos raciocinavam mal há cadeias que se rompem e as civilizações são mortais Ao ler escreve em substância o padre Delahaye que a Igreja celebra no mesmo dia a festa de dois de seus servos mortos ambos na Itália que a conversão dos dois foi resultado da leitura da vida dos santos que fundaram cada um uma ordem religiosa sob o mesmo vocábulo que essas duas ordens enfim foram suprimidas por dois papas homônimos não há ninguém que não fique tentado a exclamar que um único indivíduo duplicado por engano foi inscrito no martirológio sob dois nomes distintos Porém é verdade que similarmente guiado para a vida religiosa pelo exemplo de piedosas biografias são João Colombani estabeleceu a ordem dos jesuatas e Inácio de Loyola a dos jesuítas que morreram ambos num 31 de julho o primeiro perto de Siena em 1367 o segundo em Roma em 1556 que os jesuatas foram dissolvidos pelo papa Clemente IX e a Companhia de Jesus por Clemente XIV O exemplo é divertido Provavelmente não é o único Se um dia um cataclisma deixar que subsistam apenas alguns magros delineamentos destes últimos séculos quantos escrúpulos de consciência não irá preparar para os eruditos do futuro a existência de dois pensadores que ambos ingleses e ambos portadores do nome Bacon87 coincidiram ao dar com suas doutrinas uma grande contribuição ao conhecimento experimental O sr Païs condenou como lendárias muitas das antigas tradições romanas pela única razão ou quase isso de que nela vemos repassarem os mesmos nomes associados a episódios bem parecidos Mesmo desagradando à crítica do plágio cuja alma é a negação das repetições espontâneas de acontecimentos ou de palavras a coincidência é uma das bizarrices que não se deixam eliminar da história Mas não basta reconhecer evasivamente a possibilidade de encontros fortuitos Reduzida a essa simples constatação a crítica oscilaria eternamente entre o pró e o contra Para que a dúvida se torne instrumento de conhecimento é preciso que em cada caso particular o grau de verossimilhança da combinação possa ser sopesado com alguma exatidão Aqui a pesquisa histórica como tantas outras disciplinas do espírito cruza seu caminho com a via régia da teoria das probabilidades Avaliar a probabilidade de um acontecimento é estimar as chances que tem de se produzir88 Posto isto será legítimo falar da possibilidade de um fato passado No sentido absoluto evidentemente não Só o futuro é aleatório O passado é um dado que não deixa mais lugar para o possível Antes do lance de dados a probabilidade para qualquer das faces era de um sobre seis lançados os dados o problema desaparece Pode ser que hesitemos mais tarde se nesse dia desse o três ou então o cinco A incerteza está portanto em nós em nossa memória ou na de nossas testemunhas Não nas coisas Analisando com calma no entanto o uso que a pesquisa histórica faz da noção do provável nada tem de contraditório89 Com efeito o que tenta o historiador que se interroga sobre a probabilidade de um acontecimento ocorrido senão transportarse por um movimento ousado do espírito para antes desse próprio acontecimento para ponderar sobre suas chances tal como se apresentavam às vésperas de sua realização A probabilidade permanece portanto de fato no futuro Mas tendo sido a linha do presente de certo modo imaginariamente recuada tratase de um futuro de outrora construído com um pedaço daquilo que para nós é atualmente o passado Se o fato aconteceu de maneira incontestável essas especulações não têm valor senão de jogos metafísicos Qual era a probabilidade de Napoleão nascer De Adolf Hitler soldado em 1914 escapar das balas francesas Não é proibido divertirse com tais perguntas Sob a condição de considerálas apenas pelo que realmente são simples artifícios de linguagem destinados a trazer à luz na marcha da humanidade a parte de contingência e de imprevisibilidade Elas nada têm a ver com a crítica do testemunho A própria existência do fato parece incerta ao contrário Duvidamos por exemplo de que um autor sem ter copiado um relato alheio esteja em condições de repetir espontaneamente muitos de seus episódios e muitas de suas palavras que só o acaso ou não sei que harmonia divinamente preestabelecida bastem para explicar desde os Protocolos dos sábios de Sião até os panfletos de um obscuro polemista do Segundo Império semelhança tão espantosa Conforme a coincidência pareça afetada por um maior ou menor coeficiente de probabilidade antes de o relato ter sido composto admitiremos sua verossimilhança hoje ou a rejeitaremos A matemática do acaso no entanto repousa numa ficção Em todos os casos possíveis postula de saída a imparcialidade das condições uma causa particular que previamente favorecesse um ou outro seria um corpo estranho no cálculo O dado dos teóricos é um cubo perfeitamente equilibrado se sob uma de suas faces insinuássemos um grão de chumbo as chances dos jogadores deixariam de ser iguais Mas na crítica do testemunho todos os dados estão viciados Pois elementos muito delicados intervêm constantemente para fazer a balança pender para uma eventualidade privilegiada Uma disciplina histórica a bem da verdade faz exceção É a linguística ou pelo menos aquela de suas ramificações que se empenha em estabelecer os parentescos entre as línguas Bem diferente por seu alcance das operações propriamente críticas essa investigação não deixa de ter com muitas delas como característica comum o esforço de descobrir filiações Ora as condições sob as quais ela raciocina estão excepcionalmente próximas da convenção primordial de igualdade familiar à teoria do acaso Ela deve essa prerrogativa às próprias particularidades dos fenômenos da linguagem Não apenas com efeito o imenso número de combinações possíveis entre os sons reduz a um valor ínfimo a probabilidade de sua repetição fortuita em grande quantidade em diferentes falares Coisa ainda muito mais importante deixando de lado algumas raras harmonias imitativas as significações atribuídas a essas combinações são completamente arbitrárias Nenhuma associação de imagens impõe que as associações vocais bastante vizinhas tu ou tou tu pronunciado à francesa ou à latina sirvam para notar a segunda pessoa muito evidentemente Se portanto constatamos que têm esse papel ao mesmo tempo em francês italiano espanhol e romeno se observamos ao mesmo tempo entre essas línguas uma multiplicidade de outras correspondências igualmente irracionais a única explicação sensata será que o francês o italiano o espanhol e o romeno têm uma origem comum Porque os diversos possíveis eram humanamente indistintos um cálculo das chances quase puro impôs a decisão Mas falta muito para que tal simplicidade seja usual Vários diplomas de um soberano medieval tratando de assuntos diferentes reproduzem as mesmas palavras e os mesmos maneirismos Isso quer dizer portanto afirmam os adeptos da Stilkritik fanáticos pela crítica dos estilos que um mesmo notário os redigiu De acordo se só o acaso estivesse em questão Mas não é o caso Cada sociedade e mais ainda cada pequeno grupo profissional tem seus hábitos de linguagem Não bastava portanto enumerar os pontos de similitude Era ainda preciso distinguir entre eles o raro do usual Apenas as expressões verdadeiramente excepcionais podem denunciar um autor supondo naturalmente que suas repetições sejam numerosas o bastante O erro aqui é atribuir a todos os elementos do discurso um peso igual como se os variáveis coeficientes de preferência social de que cada um deles se acha afetado não fossem os grãos de chumbo que contrariam a equivalência das chances Toda uma escola de eruditos se dedicou a partir do início do século XIX a estudar a transmissão dos textos literários O princípio é simples sejam três manuscritos de uma mesma obra B C e D Constatase que todos os três apresentam as mesmas lições evidentemente errôneas é o métodos dos erros o mais antigo o de Lachman Ou então mais geralmente extraímos daí as mesmas lições boas ou más mas diferentes em sua maioria em relação às de outros manuscritos é o recenseamento integral das variantes preconizado por dom Quentin Decidirseá que são aparentados Entendam conforme o caso ou que foram copiados uns sobre os outros segundo uma ordem que resta determinar ou que remontam todos por filiações particulares a um modelo comum É certíssimo com efeito que um encontro assim sustentado não poderia ser fortuito Entretanto duas observações que passaram a ser levadas em conta bem recentemente obrigaram a crítica textual a abandonar muito do rigor quase mecânico de suas primeiras conclusões Os copistas às vezes corrigiam seu modelo Mesmo trabalhando independentemente um do outro hábitos de espírito comuns devem com muita frequência terlhes sugerido conclusões semelhantes Terêncio usa em algum lugar a palavra raptio que é excessivamente rara Não a compreendendo dois escribas a substituíram por ratio o que é um contrassenso mas lhes era familiar Tinham necessidade para isso de combinarem entre si ou de se imitarem Eis então um gênero de erros que é impotente demais para nos ensinar alguma coisa sobre a genealogia dos manuscritos Tem mais Por que o copista só teria utilizado um modelo único Não lhe era proibido se conseguisse confrontar vários exemplares a fim de escolher o melhor possível entre suas variantes O caso foi certamente muito excepcional na Idade Média cujas bibliotecas eram pobres Bem mais frequente em contrapartida segundo tudo indica na Antiguidade Sobre as belas árvores de Jefté que é praxe dispor no umbral das edições críticas que lugar atribuir a esses incestuosos produtos de diversas tradições diferentes No jogo das coincidências a vontade do indivíduo como a pressão das forças coletivas trapaceia com o acaso Quando ainda há pouco reconhecíamos na coincidência das curvas estatísticas a prova dos nove de sua exatidão o que fazíamos senão um raciocínio de probabilidades A compensação dos erros é um dos capítulos clássicos da teoria do acaso Também aqui no entanto tomemos cuidado porque o querer humano pode perturbar a partida Supúnhamos erros de sentido variável É com efeito o caso normal entre os documentos das cadernetas de contas ou das mercuriais Mas existem também erros combinados Na França dos séculos XVII e XVIII certos encargos camponeses estipulados em produtos haviam com o correr do tempo deixado de ser pagos a não ser em numerário Para permitir a percepção disso quadros de equivalência eram estabelecidos anualmente em princípio segundo as cotações dos mercados este ano diziam para cada alqueire de trigo por exemplo tantas libras e vinténs serão devidos Os senhores naturalmente levavam vantagem por terem fixado preços mais elevados do que a realidade Onde a autoridade encarregada de elaborar a tabela estava sob a dependência deles ou partilhava de seus interesses os números eram então falseados Será que nos servimos atualmente para reconstituir os preços antigos de fontes desse tipo A coincidência das curvas arriscase a traduzir apenas uma mera tomada de posição comum ou seus movimentos bruscos meras disposições cambiantes de pequenas judicaturas da província Observações análogas atingem mais de uma estatística aduaneira ou ainda os cálculos dos preços de imóveis a serem consultados nos atos registrados de venda a fim de escapar ao fisco as somas realmente despendidas são ali corriqueiramente abaixadas O que seriam as leis do sorteio se as bolas brancas ou vermelhas tivessem a faculdade de se entender sob a mão que remexe no saco para combinarem a ordem de seu surgimento90 Assim como já percebera a filosofia do século XVIII com Volney a maioria dos problemas da crítica histórica consiste de fato em problemas de probabilidade mas tais que o cálculo mais sutil deve declararse incapaz de resolvêlos Não é apenas que os dados aí sejam de uma extraordinária complexidade Em si mesmos permanecem o mais das vezes rebeldes a qualquer tradução matemática Como numerar por exemplo o favor particular concedido por uma sociedade a uma palavra ou a um costume Não nos desvencilharemos de nossas dificuldades em relação à arte de Fermat de Laplace ou de Émile Borel Ao menos já que ela se coloca de certo modo no limite inacessível de nossa lógica podemos pedirlhe que nos ajude de cima a melhor analisar nossas argumentações e a melhor conduzilas Quem não tem prática direta com os eruditos mal se dá conta de como lhes repugna em geral aceitar a inocência de uma coincidência Porque duas expressões semelhantes encontramse na lei sálica e num édito de Clóvis não vimos um ilustre cientista alemão afirmar que a lei devia ser desse príncipe Deixemos de lado a banalidade das palavras e de outros usos Um simples verniz da teoria matemática teria bastado para prevenir o passo em falso Quando o acaso age livremente a probabilidade de uma descoberta única ou de um pequeno número de achados raramente é da ordem do impossível Pouco importa que pareçam espantosas as surpresas do senso comum raramente são impressões de muito valor Podemos nos divertir calculando a probabilidade do lance do acaso que em dois anos diferentes fixa no mesmo dia do mesmo mês as mortes de personagens completamente distintos Ela é de 1365291 Admitamos agora apesar do absurdo do postulado como certo de antemão que as instituições de Colombani e de Inácio de Loyola tivessem sido suprimidas pela Igreja romana O exame das listas pontificais permite estabelecer que a probabilidade para que a abolição fosse pronunciada por dois papas do mesmo nome era de 1113 A probabilidade combinada ao mesmo tempo de uma mesma data de dia e de mês para as mortes e de dois papas homônimos como autores das condenações situase entre 1105 e 1106 um cem milésimos e um cem mil avos92 Um apostador provavelmente não se contentaria com isso Mas as ciências da natureza só consideram como próximo do realizável na escala terrestre as possibilidades da ordem de 11015 Estamos como se vê em pleno engano Por todos os motivos como testemunha o exemplo seguramente comprovado dos dois santos Essas são apenas concordâncias acumuladas cuja probabilidade tornase praticamente desprezível pois em virtude de um teorema bem conhecido as probabilidades dos casos elementares multiplicamse então para fornecer a probabilidade da combinação e sendo as probabilidades frações seu produto é por definição inferior a seus componentes É célebre o exemplo da palavra bad que em inglês como em persa quer dizer mau sem que o termo inglês e o termo persa tenham absolutamente uma origem comum Quem sobre essa correspondência única pretendesse fundamentar uma filiação pecaria contra a lei tutelar de toda crítica das coincidências apenas os grandes números têm vez As concordâncias ou discordâncias abundantes são feitas de uma multiplicidade de casos particulares No total as influências acidentais são destruídas Consideramos ao contrário cada elemento independentemente dos outros A ação dessas variáveis não pode mais ser eliminada Mesmo se os dados estivessem viciados o lance isolado permaneceria sempre mais difícil de prever do que o desfecho da partida por conseguinte uma vez lançado sujeito a uma diversidade de explicações bem maior Eis por que à medida que se penetrou mais no detalhe as verossimilhanças da crítica vão se degradando Não há na Oréstia tal como a lemos hoje quase nenhuma palavra tomada à parte que estejamos seguros de ler como Ésquilo a escrevera Não duvidemos a despeito disso que em seu conjunto nossa Oréstia seja de fato aquela de Ésquilo Há mais certeza no todo do que em seus componentes Em que medida entretanto nos é permitido pronunciar essa palavra grandiosa certeza A crítica dos documentos não seria capaz de atingir a certeza metafísica já declarava Mabillon Não estava errado É apenas por simplificação que substituímos algumas vezes uma linguagem de probabilidade por uma linguagem de evidência Mas sabemos isso hoje melhor do que na época de Mabillon essa convenção não nos é absolutamente exclusiva Não é no sentido absoluto do termo impossível que a Doação de Constantino seja autêntica que a Germania de Tácito segundo a mania de alguns eruditos seja uma falsificação No mesmo sentido tampouco é impossível que batendo ao acaso no teclado de uma máquina de escrever um macaco consiga fortuitamente reconstituir letra por letra a Doação ou a Germania O acontecimento fisicamente impossível disse Cournot não é outra coisa senão o acontecimento cuja probabilidade é infinitamente pequena Limitando sua parcela de garantia a dosar o provável e o improvável a crítica histórica não se distingue da maioria das ciências do real senão por um escalonamento sem dúvida mais nuançado dos graus Avaliamos93 sempre com exatidão o ganho imenso que foi o advento de um método racional de crítica aplicado ao testemunho humano Entendo ganho não apenas para o conhecimento histórico mas para o conhecimento tout court Antigamente a menos que se tivesse previamente razões bem fortes para suspeitar de mentira suas testemunhas ou seus narradores todo fato afirmado era em três quartos das ocasiões um fato aceito Não estamos falando isso aconteceu há muito tempo Lucien Febvre mostrou isso excelentemente para o Renascimento não se pensava não se agia de maneira diferente em épocas bastante próximas de nós para que suas obrasprimas permanecessem para nós ainda um alimento vivo Não estamos falando esta era naturalmente a atitude daquela multidão crédula da qual até os dias em que vivemos a grande massa infelizmente mesclada a mais de um semierudito ameaça constantemente arrastar nossas frágeis civilizações rumo a terríveis abismos de ignorância ou de loucuras As mais firmes inteligências não escapavam então não podiam escapar ao preconceito comum Contavase que caíra uma chuva de sangue Então é que havia chuvas de sangue Montaigne lia em seus caros Antigos esta ou aquela lorota sobre o país cujos habitantes nascem sem cabeça ou sobre a força prodigiosa do peixe remora Ele as inscrevia sem pestanejar entre os argumentos de sua dialética por mais capaz que fosse de desmontar engenhosamente o mecanismo de um falso rumor as ideias feitas o deixavam bem mais desconfiado do que supostos fatos atestados Assim reinava segundo o mito rabelaisiano o velho OuvirDizer No mundo físico como no mundo dos homens No mundo físico talvez mais ainda do que no mundo dos homens Pois instruído por uma experiência mais direta duvidavase mais de um acontecimento humano do que de um meteoro ou de um pretenso acidente da vida orgânica A filosofia de vocês repelia o milagre Ou a religião de vocês repelia os milagres das outras religiões Seria preciso que se esforçassem penosamente para descobrir para essas surpreendentes manifestações causas supostamente inteligíveis que na verdade ações demoníacas ou influxos ocultos continuavam a aderir a um sistema de ideias ou imagens completamente estranho ao que chamaríamos hoje de pensamento científico Negar a própria manifestação tal audácia não ocorria ao espírito Corifeu dessa escola paduana tão estranha ao sobrenatural cristão Pomponazzi não acredita que reis mesmo ungidos pelo crisma da santa ampola pudessem porque eram reis curar doentes ao tocálos No entanto não contestava absolutamente as94 curas Admitiaas a título de uma propriedade fisiológica por ele concebida como hereditária95 o glorioso privilégio da função sagrada era associado às virtudes curativas de uma saliva dinástica Ora se nossa imagem do universo pôde hoje ser limpa de tantos fictícios prodígios porém confirmados parece pela concordância das gerações certamente devemos isso antes de tudo à noção lentamente deduzida de uma ordem natural comandada por leis imutáveis Mas essa própria noção não conseguiu se estabelecer tão solidamente as observações que pareciam contradizêla só puderam ser eliminadas graças ao paciente trabalho de uma experiência crítica empreendida pelo próprio homem enquanto testemunha Somos agora capazes ao mesmo tempo de desvendar e de explicar as imperfeições do testemunho Adquirimos o direito de não acreditar sempre porque sabemos melhor do que pelo passado quando e por que aquilo não deve ser digno de crédito E foi assim que as ciências conseguiram rejeitar o peso morto de muitos falsos problemas Mas o conhecimento puro não é aqui mais que em outro lugar dissociado da conduta Richard Simon cujo nome na geração de nossos fundadores tem lugar destacado não nos deixou apenas admiráveis lições de exegese Certo dia o vimos empregar a acuidade de sua inteligência para salvar alguns inocentes perseguidos pela estúpida acusação de crime ritual O encontro nada tinha de arbitrário Das duas partes a exigência de dignidade intelectual era a mesma Um mesmo instrumento a cada vez permitia satisfazêla Constantemente levada a guiarse pelas referências dos outros a ação é tão interessada quanto a investigação em verificar sua exatidão Não dispõe para isso de meios diferentes Sejamos mais claros seus meios são aqueles que a erudição havia inicialmente forjado Na arte de dirigir proveitosamente a dúvida a prática judiciária só fez seguir os passos não sem atraso dos bollandistas e dos beneditinos e os próprios psicólogos só se deram conta de encontrar no testemunho diretamente observado e provocado um objeto de ciência muito tempo depois que a turva memória do passado havia começado a ser submetida a uma prova de raciocínio Em nossa época mais que nunca exposta às toxinas da mentira e do falso rumor que escândalo o método crítico não figurar nem no menor cantinho dos programas de ensino Pois ele deixou de ser apenas o humilde auxiliar de alguns trabalhos de oficina Doravante vê abriremse diante de si horizontes bem mais vastos e a história tem o direito de contar entre suas glórias mais seguras ter assim ao elaborar sua técnica aberto aos homens um novo caminho rumo à verdade e por conseguinte àquilo que é justo Capítulo IV A análise histórica 1 Julgar ou compreender A fórmula do velho Ranke é célebre o historiador propõe apenas descrever as coisas tais como aconteceram wie es eigentlich gewesen Heródoto o dissera antes dele ta eonta legein contar o que foi O cientista em outros termos é convidado a se ofuscar diante dos fatos Como muitas máximas esta talvez deva sua fortuna apenas à sua ambiguidade Podemos ler aí modestamente um conselho de probidade este era não se pode duvidar o sentido de Ranke Mas também um conselho de passividade De modo que eis colocados de chofre dois problemas o da imparcialidade histórica o da história como tentativa de reprodução ou como tentativa de análise Mas haverá então um problema da imparcialidade Ele só se coloca porque a palavra por sua vez é equívoca Existem duas maneiras de ser imparcial a do cientista e a do juiz Elas têm uma raiz comum que é a honesta submissão à verdade O cientista registra ou melhor provoca o experimento que talvez inverterá suas mais caras teorias Qualquer que seja o voto secreto de seu coração o bom juiz interroga as testemunhas sem outra preocupação senão conhecer os fatos tais como se deram Tratase dos dois lados de uma obrigação de consciência que não se discute Chega um momento porém em que os caminhos se separam Quando o cientista observou e explicou sua tarefa está terminada Ao juiz resta ainda declarar sua sentença Calando qualquer inclinação pessoal pronuncia essa sentença segundo a lei Ele se achará imparcial Sêloá com efeito no sentido dos juízes Não no sentido dos cientistas Pois não se poderia condenar ou absolver sem tomar partido por uma tábua de valores que não depende de nenhuma ciência positiva Que um homem tenha matado um outro é um fato eminentemente suscetível de prova Mas castigar o assassino supõe que se considere o assassino culpado o que feitas as contas é apenas uma opinião sobre a qual todas as civilizações não entraram num acordo Ora por muito tempo o historiador passou por uma espécie de juiz dos Infernos encarregado de distribuir o elogio ou o vitupério aos heróis mortos Acreditamos que essa atitude corresponda a um instinto poderosamente enraizado Pois todos os professores que tiveram de corrigir trabalhos de estudantes sabem o quão pouco esses jovens se deixam dissuadir de brincar do alto de suas carteiras de Minos ou Osíris São mais que nunca as palavras de Pascal Todo mundo age como deus ao julgar isto é bom ou ruim Esquecemos que um juízo de valor1 tem sua única razão como preparação de um ato e com sentido apenas em relação a um sistema de referências morais deliberadamente aceito Na vida cotidiana as exigências do comportamento nos impõem essa rotulagem geralmente bastante sumária Ali onde nada mais podemos ali onde os ideais comumente recebidos diferem profundamente dos nossos ela é apenas um estorvo Então estaríamos tão seguros sobre nós mesmos e sobre nossa época para separar na trupe de nossos pais os justos dos malditos Elevando ao absoluto os critérios todos relativos de um indivíduo de um partido ou de uma geração que brincadeira infligir suas normas à maneira como Sila governou Roma ou Richelieu os Estados do rei Cristianíssimo Como aliás nada é mais variável por natureza que semelhantes decretos submetidos a todas as flutuações da consciência coletiva ou do capricho pessoal a história ao permitir muito frequentemente que o quadro de honra prevaleça sobre a caderneta de experiências gratuitamente deuse ares da mais incerta das disciplinas às ocas acusações sucedem as incontáveis vãs reabilitações Robespierristas antirrobespierristas nós vos imploramos por piedade dizeinos simplesmente quem foi Robespierre Além disso se o julgamento apenas acompanhava a explicação o leitor estará livre para pular a página Por infelicidade à força de julgar acabase quase fatalmente por perder até o gosto de explicar Com as paixões do passado misturando seus reflexos aos partis pris do presente o olhar se turva sem remédio e assim como o mundo dos maniqueus a humana realidade vira apenas um quadro em preto e branco Montaigne já nos chamara a atenção A partir do momento em que o julgamento pende para um lado não se pode evitar de contornar e distorcer a narração nesse viés Do mesmo modo para penetrar uma consciência estranha separada de nós pelo intervalo das gerações é preciso quase se despojar de seu próprio eu Para lhe dizer algumas verdades basta permanecer o que se é O esforço é certamente menos rude Assim como é muito mais fácil escrever pró ou contra Lutero do que escrutar sua alma acreditar que o papa Gregório VII está acima do imperador Henrique IV ou Henrique IV acima de Gregório VII do que desemaranhar as razões profundas de um dos grandes dramas da civilização ocidental Vejam ainda fora do plano individual a questão dos bens nacionais Rompendo com a legislação anterior o governo revolucionário resolve vendêlos em parcelas e sem licitação Era incontestavelmente comprometer gravemente os interesses do Tesouro Certos eruditos em nossos dias ergueramse veementemente contra essa política Que coragem caso presentes na Convenção ali tivessem ousado falar nesse tom Longe da guilhotina essa violência sem perigo diverte Mais vale investigar o que queriam realmente os homens do ano III Almejavam antes de tudo favorecer a aquisição da terra por seu pequeno povo da província ao equilíbrio do orçamento preferiam consolar os camponeses pobres garante de sua fidelidade a uma nova ordem Estavam errados Ou tinham razão Quanto a isso o que me importa a decisão retardatária de um historiador Apenas lhe pedimos que não se deixe hipnotizar por sua própria escolha a ponto de não mais conceber que uma outra outrora tenha sido possível A lição do desenvolvimento intelectual da humanidade é no entanto clara as ciências sempre se mostraram mais fecundas e por conseguinte muito mais proveitosas enfim para a prática na medida em que abandonavam mais deliberadamente o velho antropocentrismo do bem e do mal Hoje riríamos de um químico que separasse os gases ruins como o cloro dos bons como o oxigênio Mas se a química em seus primórdios tivesse adotado essa classificação teria corrido o sério risco de nela chafurdar em grande detrimento do conhecimento dos corpos Resguardemonos contudo de precipitar a analogia A nomenclatura de uma ciência dos homens terá sempre seus traços específicos A das ciências do mundo físico exclui o finalismo Palavras como sucesso ou acaso inabilidade ou habilidade apenas seriam capazes de desempenhar aí no melhor dos casos o papel de ficções sempre prenhes de perigos Elas pertencem ao contrário ao vocabulário normal da história Pois a história lida com seres capazes por natureza de fins conscientemente perseguidos Podemos admitir que um comandante de exército que trava uma batalha empenhese ordinariamente em vencêla Caso a perca sendo as forças de ambos os lados aproximadamente iguais será perfeitamente legítimo dizer que manobrou mal Eralhe habitual um acidente assim Tampouco escaparemos do mais escrupuloso julgamento de fato observando que este não era provavelmente um estratagema muito bom Seja ainda uma mudança monetária cujo objeto era suponhamos favorecer os devedores à custa dos credores Qualificála de excelente ou deplorável seria tomar partido em favor de um dos dois grupos por conseguinte transportar arbitrariamente para o passado uma noção toda subjetiva do bem público Mas imaginemos que casualmente a operação destinada a aliviar o peso das dívidas tenha desembocado na prática isso foi visto em um resultado oposto Fracassou dizemos sem nada fazer com isso senão constatar honestamente uma realidade O ato falho é um dos elementos essenciais da evolução humana Assim como de toda psicologia E mais Nosso general por acaso conduziu voluntariamente suas tropas à derrota Ninguém hesitará em declarar que traiu porque sem rodeios é assim que a coisa se chama Mostrar seia por parte da história uma delicadeza algo pedante em recusar o socorro do simples e correto léxico do uso comum Restará depois investigar o que a moral comum da época ou do grupo pensava de tal ato A traição pode ser a seu modo um conformismo como testemunham os condottieri da antiga Itália Uma palavra para resumir domina e ilumina nossos estudos compreender Não digamos que o historiador é alheio às paixões ao menos ele tem esta Palavra não dissimulemos carregada de dificuldades mas também de esperanças Palavra sobretudo carregada de benevolência Até na ação julgamos um pouco demais É cômodo gritar à forca Jamais compreendemos o bastante Quem difere de nós estrangeiro adversário político passa quase necessariamente por mau Inclusive para travar as inevitáveis lutas um pouco mais de compreensão das almas seria necessário com mais razão ainda para evitálas enquanto ainda há tempo A história com a condição de ela própria renunciar a seus falsos ares de arcanjo deve nos ajudar a curar esse defeito Ela é uma vasta experiência de variedades humanas um longo encontro dos homens A vida como a ciência tem tudo a ganhar se esse encontro for fraternal 2 Da diversidade dos fatos humanos à unidade da consciência Compreender no entanto nada tem de uma atitude de passividade Para fazer uma ciência será sempre preciso duas coisas uma realidade mas também um homem A realidade humana como a do mundo físico é enorme e variegada Uma simples fotografia supondo mesmo que a ideia dessa reprodução mecanicamente integral tivesse um sentido seria ilegível Dirão que entre o que foi e nós os documentos já interpõem um primeiro filtro Sem dúvida eliminam frequentemente a torto e a direito Quase nunca em contrapartida organizam de acordo com as exigências de um entendimento que quer conhecer Assim como todo cientista como todo cérebro que simplesmente percebe o historiador escolhe e tria Em uma palavra analisa Tenho sob os olhos uma inscrição funerária romana texto de um único bloco estabelecido com uma só intenção Porém os testemunhos que esperam pela varinha de condão do erudito são de natureza bastante diferente2 Dedicamonos aos fatos de linguagem As palavras a sintaxe dirão o estado do latim tal as pessoas esforçavamse por escrevêlo nessa época e nesse lugar e transparentemente através dessa língua semiculta transparecerá o falar de todo dia Nossa predileção dirigese às crenças Estamos em pleno coração das esperanças no alémtúmulo À vida política Um nome de imperador uma data de magistratura nos deixarão satisfeitíssimos À economia O epitáfio revelará talvez um ofício ignorado E paro por aqui Em lugar de um documento isolado consideremos agora conhecido por documentos numerosos e variados um momento qualquer no desenrolar de uma civilização Dos homens que viviam então não havia um que não participasse quase simultaneamente de múltiplos aspectos do destino humano que não falasse e não se fizesse entender por seus vizinhos que não tivesse seus deuses que não fosse produtor traficante ou simples consumidor que não tendo papel nos acontecimentos políticos não sofresse pelo menos seus desdobramentos Será possível retraçar todas essas diversas atividades cujo conjunto compõe uma sociedade de roldão voando incessantemente de uma para outra no próprio emaranhado em suma em que são apresentadas por cada documento ou cada vida individual ou coletiva Isso seria sacrificar a clareza não em detrimento da ordem verdadeira do real que é feita de afinidades naturais e ligações profundas mas da ordem puramente aparente do sincronismo Uma caderneta de experiências não se confunde com o diário minuto por minuto do que acontece dentro do laboratório Do mesmo modo quando ao longo da evolução humana acreditamos discernir entre certos fenômenos o que chamamos um parentesco o que entendemos por isso senão que cada tipo de instituições de crenças de práticas ou mesmo de acontecimentos assim distinguidos parece exprimir uma tendência particular e até certo ponto estável do indivíduo ou da sociedade Negaremos por exemplo que através de todos os contrastes não haja algo de comum entre as emoções religiosas Resulta daí necessariamente que compreenderemos sempre melhor um fato humano qualquer que seja se já possuirmos a compreensão de outros fatos do mesmo gênero O uso que a primeira época feudal fazia da moeda como padrão dos valores bem antes que como meio de pagamento diferia profundamente daquele que lhe atribuía a economia ocidental por volta de 1850 entre o regime monetário de meados do século XIX e o nosso os contrastes por sua vez não são menos vivos No entanto não acho que um erudito que só tivesse descoberto a moeda por volta do ano mil conseguisse apreender facilmente as próprias originalidades de seu emprego nessa data É o que justifica certas especializações de certo modo verticais no sentido é evidente infinitamente modesto em que as especializações nunca são legítimas isto é como remédios contra a falta de extensão de nosso espírito e a brevidade de nossos destinos Tem mais Ao deixar de classificar racionalmente uma matéria que nos foi entregue toda bruta acabaríamos afinal de contas por negar apenas o tempo por conseguinte a própria história Pois esse estado do latim poderemos compreendêlo se não o desligarmos do desenvolvimento anterior da língua Essa estrutura da propriedade essas crenças não eram certamente começos absolutos Na medida em que sua determinação é operada do mais antigo para o mais recente os fenômenos humanos se orientam antes de tudo por cadeias de fenômenos semelhantes Classificálos por gêneros é portanto desvelar linhas de força de uma eficácia capital Mas exclamarão alguns as linhas3 que você estabelece entre os diversos modos da atividade humana estão apenas em seu espírito não estão na realidade onde tudo se confunde Você usa portanto de abstração De acordo Por que temer as palavras Nenhuma ciência seria capaz de prescindir da abstração Tampouco aliás da imaginação É significativo seja dito de passagem que os mesmos espíritos que pretendem banir a primeira manifestem geralmente um igual mau humor pela segunda É das duas partes o mesmo positivismo mal compreendido As ciências do homem não são exceção François Simiand ergueuse há tempos com justo vigor contra as brincadeiras nominalistas cujo singular privilégio pretendiaselhes reservar Em que a função clorofílica é mais real no sentido do extremo realismo que a função econômica Um nome abstrato jamais representa senão um rótulo de classificação Tudo o que se tem direito de exigir dele é que agrupe os fatos segundo uma ordem útil para seu conhecimento Apenas as classificações arbitrárias são funestas Cabe ao historiador experimentar incessantemente as suas para revisálas se for o caso e sobretudo flexibilizálas Aliás elas são necessariamente de natureza bastante variável Vejam por exemplo o que se chama usualmente de história do direito O ensino e o manual que são admiráveis instrumentos de esclerose vulgarizaram o nome Vejamos mais de perto porém o que este abrange Uma regra de direito é uma norma social explicitamente imperativa sancionada além disso por uma autoridade capaz de impor seu respeito com a ajuda de um sistema preciso de coerções e de punições Na prática tais preceitos podem reger as atividades mais diversas Nunca são os únicos a governálas obedecemos constantemente em nosso comportamento cotidiano a códigos morais profissionais mundanos não raro muito mais imperiosos que o Código puro e simples As fronteiras deste oscilam incessantemente aliás e para ser ou não inserida nele uma obrigação socialmente reconhecida não muda evidentemente de natureza O direito no sentido estrito do termo é portanto o envoltório formal de realidades em si mesmas extremamente variadas para fornecer com proveito o objeto de um estudo único e não esgota nenhum deles Será que para explorar a vida da família quer se trate da pequena família matrimonial de hoje vivendo perpétuas sístoles e diástoles ou da grande linhagem medieval essa coletividade cimentada por uma rede fortíssima de sentimentos e de interesses basta enumerar uns depois dos outros os artigos de um direito de família qualquer Parece que às vezes já se acreditou nisso com alguns decepcionantes resultados a impotência em que hoje permanecemos de retraçar a íntima evolução da família francesa o denuncia com clareza No entanto há na noção do fato jurídico como distinto dos outros algo de exato É que ao menos em numerosas sociedades a aplicação e em larga medida a própria elaboração das regras de direito foram obra própria de um grupo de homens relativamente especializado e nesse papel que seus membros podiam naturalmente combinar com outras funções sociais suficientemente autônoma para possuir suas tradições próprias e com frequência até uma lógica de raciocínio particular A história do direito em suma poderia muito bem só ter existência separada como história dos juristas o que não é para um ramo de uma ciência dos homens maneira tão ruim de existir Entendida nesse sentido ela lança sobre fenômenos bastante diversos mas submetidos a uma ação humana comum luzes forçosamente incompletas mas em seus limites bastante reveladoras Ela apresenta um ponto de vista sobre o real Um gênero completamente diferente de divisão é fornecido pela disciplina que se adotou chamar geografia humana Aqui o ângulo de visada não é focado na ação de uma mentalidade de grupo como é o caso sem que ela nem sempre se dê conta para a história do direito nem tampouco como para a história religiosa ou a história econômica na natureza específica de um fato humano crenças emoções elãs do coração e frêmitos da alma inspirados pela imagem de forças alheias à humanidade ou esforços para satisfazer e organizar as necessidades materiais A busca centrase em um tipo de ligações comuns a um grande número de fenômenos sociais A antropogeografia estuda as sociedades em suas relações com o meio físico trocas de sentido duplo isso é claro em que o homem age incessantemente sobre as coisas ao mesmo tempo que estas sobre ele Aqui portanto nada mais nada menos que uma perspectiva que outras perspectivas deverão completar Este é com efeito em qualquer ordem de investigação o papel de uma análise A ciência decompõe o real apenas a fim de melhor observálo graças a um jogo de fogos cruzados cujos raios constantemente se combinam e interpenetram O perigo começa quando cada projetor pretende ver tudo sozinho quando cada canto do saber é tomado por uma pátria Mais uma vez contudo desconfiemos de postular entre as ciências da natureza e uma ciência dos homens não sei que paralelismo falsamente geométrico Na vista que tenho de minha janela cada cientista pega o seu quinhão sem muito se ocupar do conjunto O físico explica o azul do céu o químico a água do riacho o botânico a relva O cuidado de recompor a paisagem tal como a percebo e me comove eles deixam para a arte se o pintor ou o poeta houverem por bem dela se encarregar É que a paisagem como unidade existe apenas em minha consciência e o que é próprio do método científico como essas formas do saber o praticam e pelo sucesso que fazem o justificam é abandonar deliberadamente o contemplador para conhecer apenas os objetos contemplados Os laços que nosso espírito tece entre as coisas lhes parecem arbitrários elas os rompem preconcebidamente para restabelecer uma diversidade a seu ver mais autêntica Logo entretanto o mundo orgânico estará formulando problemas mais delicados para seus analistas O biólogo pode efetivamente por maior comodidade estudar à parte a respiração a digestão as funções motoras não ignora que acima disso tudo há o indivíduo do qual é preciso dar conta Mas as dificuldades da história são também de uma outra essência Pois em última instância ela tem como matéria precisamente consciências humanas As relações estabelecidas através destas as contaminações até mesmo as confusões da qual são terreno constituem a seus olhos a própria realidade Ora homo religiosus homo oeconomicus homo politicus toda essa ladainha de homens em us cuja lista poderíamos estender à vontade evitemos tomálos por outra coisa do que na verdade são fantasmas cômodos com a condição de não se tornarem um estorvo O único ser de carne e osso é o homem sem mais que reúne ao mesmo tempo tudo isso Certamente as consciências têm seus biombos interiores que alguns dentre nós mostramse particularmente hábeis em erguer Gustave Lenotre não cansava de se espantar com a presença de tantos pais de família entre os Terroristas Mesmo que nossos grandes revolucionários tenham sido autênticos bebedores de sangue cuja descrição causava pruridos tão agradáveis em um público confortavelmente aburguesado esse espanto não deixa de trair uma psicologia bem tacanha Quantos homens levam em três ou quatro planos diferentes diversas vidas que almejavam distintas e conseguem algumas vezes manter como tais Daí porém a negar a unidade essencial do eu e as constantes interpenetrações dessas diversas atitudes vai uma grande distância Eram dois estranhos um para o outro Pascal matemático e Pascal cristão Nunca cruzavam seus caminhos o douto médico François Rabelais e mestre Alcofribas de pantagruélica memória No exato momento em que os papéis alternadamente assumidos pelo ator único parecerem se opor tão brutalmente quanto os personagens estereotipados de um melodrama é possível que ao examinarmos melhor essa antítese seja apenas a máscara de uma solidariedade mais profunda Zombouse do elegíaco Floriano que parece batia em suas amantes talvez não espalhasse em seus versos tanta doçura senão para melhor se consolar por não conseguir colocála em prática em sua conduta Quando o comerciante medieval depois de haver ao longo do dia violado os mandamentos da Igreja sobre a usura e o preço justo ia rezar para Nossa Senhora e depois no crepúsculo de sua vida assumia funções pias e esmoleres quando o grande manufaturador dos tempos difíceis construía hospitais com o dinheiro poupado sobre os miseráveis salários de crianças em andrajos buscavam eles apenas como em geral se diz garantir contra os raios celestes um certo grau de proteção ou então com essas explosões de fé ou de caridade também não satisfaziam sem demasiadamente exprimilo necessidades secretas do coração que a dura prática cotidiana os havia condenado a recalcar Há contradições que se parecem muito com fugas4 Prescindese dos homens na sociedade Como esta de qualquer maneira que se a considere só poderia ser no final das contas não diremos uma soma seria sem dúvida dizer muito pouco mas um produto de consciências individuais ninguém se espantará de nela descobrir o mesmo jogo de perpétuas interações É um fato certo que do século XII à Reforma pelo menos as comunidades dos tecelões constituíram um dos terrenos privilegiados de heresias Eis seguramente um belo assunto para uma ficha de história religiosa Coloquemos portanto cuidadosamente esse pedaço de cartolina em sua gaveta Nos escaninhos vizinhos etiquetados dessa vez histórica econômica lancemos uma segunda safra de anotações Acreditamos com isso ter dado conta dessas trêfegas sociedadezinhas de teares Ainda falta muito para explicálas uma vez que um de seus traços fundamentais foi não fazer coexistir o religioso com o econômico mas entrelaçálos Atingido por essa espécie de certeza de segurança de base moral de que algumas gerações vindas imediatamente antes da nossa parecem ter gozado com espantosa plenitude Lucien Febvre descobre para isso acima de tudo duas razões o império sobre as inteligências do sistema cosmológico de De Laplace e a anormal fixidez do regime monetário Nenhum fato humano de natureza aparentemente mais oposta do que estes Colaboraram no entanto para dar à atitude mental de um grupo sua tonalidade mais característica Sem dúvida não mais que no seio de qualquer consciência pessoal essas relações em escala coletiva não são simples Não se ousaria mais escrever hoje em dia pura e simplesmente que a literatura é a expressão da sociedade Pelo menos não o é de forma alguma no sentido em que um espelho exprime o objeto refletido Ela pode traduzir tanto reações de defesa quanto uma concordância Ela carreia quase inevitavelmente5 um grande número de temas herdados de mecanismos formais aprendidos na oficina antigas convenções estéticas que são também causas de atraso Na mesma data escreve com sagacidade o sr Focillon o político o econômico o artístico não ocupam eu preferiria não ocupam forçosamente a mesma posição em suas curvas respectivas Mas é a defasagens precisamente que a vida social deve seu ritmo quase sempre entrecortado Do mesmo modo na maior parte dos indivíduos as diversas almas para falar a linguagem pluralista da antiga psicologia raramente têm uma idade igual quantos homens maduros conservam ainda recônditos de infância Michelet explicava em 1837 a SainteBeuve Se eu tivesse introduzido apenas a história política na narração se não houvesse tratado dos elementos diversos da história religião direito geografia literatura arte etc minha atitude teria sido completamente outra Mas era preciso um grande movimento vital porque todos esses diversos elementos distintos gravitavam juntos na unidade do relato Em 18806 Fustel de Coulanges por sua vez dizia a seus ouvintes da Sorbonne Suponham cem especialistas dividindo por lotes o passado da França vocês acreditam que no final eles tenham feito a história da França Duvido muito faltarlhesia pelo menos o liame dos fatos ora esse liame também é uma verdade histórica Movimento vital liame a oposição das imagens é significativa Michelet pensava sentia sob os augúrios do orgânico filho de uma época à qual o universo newtoniano parecia fornecer o modelo acabado da ciência Fustel recebia suas metáforas do espaço A concordância fundamental entre os dois apenas torna isso mais sonoro Esses dois grandes historiadores eram grandes demais para ignorálo não mais que um indivíduo uma civilização nada tem de um jogo de paciência mecanicamente arranjado o conhecimento dos fragmentos sucessivamente estudados cada um por si jamais propiciará o do todo não propiciará sequer o dos próprios fragmentos Mas o trabalho de recomposição ao qual nos convidavam tanto Michelet como Fustel só poderia vir depois da análise Sejamos mais claros ele próprio não é senão o prolongamento da análise como sua razão de ser Na imagem primitiva antes contemplada do que observada como teriam sido discernidas as ligações já que nada se distinguia Sua rede delicada só podia aparecer uma vez os fatos classificados inicialmente por linhagens específicas Do mesmo modo para permanecer fiel à vida no constante entrecruzamento de suas ações e reações não é de forma alguma necessário pretender abraçála por inteiro por um esforço geralmente muito vasto para as possibilidades de um único cientista Nada mais legítimo nada mais saudável do que centrar o estudo de uma sociedade em um desses aspectos particulares ou melhor ainda em um dos problemas precisos que levanta este ou aquele desses aspectos crenças estrutura das classes ou dos grupos as crises políticas Por meio dessa escolha meditada os problemas não apenas serão em geral mais firmemente colocados inclusive os fatos de contato e de troca ressairão com mais clareza Com a condição simplesmente de se querer descobrilos Gostariam de conhecer de fato esses grandes comerciantes da Europa do Renascimento vendedores de tecidos ou de especiarias monopolizadores de cobre de mercúrio ou de alume banqueiros dos imperadores e dos reis através de suas próprias mercadorias Não será indiferente lembraremse que eram pintados por Holbein que liam Erasmo ou Lutero A fim de compreenderem a atitude do vassalo para com seu senhor será preciso também informaremse sobre qual era sua atitude para com Deus O historiador nunca sai do tempo Mas por uma oscilação necessária que o debate sobre as origens já nos deu à vista ele considera ora7 as grandes ondas de fenômenos aparentados que atravessam longitudinalmente a duração ora o momento humano em que essas correntes se apertam no nó poderoso das consciências 3 A nomenclatura Seria então pouca coisa limitarse a discernir em um homem ou uma sociedade os principais aspectos de sua atividade No seio de cada um de seus grandes grupos de fatos um novo e mais delicado esforço de análise é necessário É preciso distinguir as diversas instituições que compõem um sistema político as diversas crenças práticas emoções de que é feita uma religião É preciso em cada uma dessas peças e nos próprios conjuntos caracterizar os traços que ora os aproximam ora os desviam das realidades de mesma ordem Problema de classificação inseparável na prática do problema fundamental da nomenclatura Pois toda análise requer primeiro como instrumento uma linguagem apropriada capaz de desenhar com precisão os contornos dos fatos embora conservando a flexibilidade necessária para se adaptar progressivamente às descobertas uma linguagem sobretudo sem flutuações nem equívocos Ora é aí que o sapato aperta para nós historiadores Um escritor de espírito aguçado que não nos aprecia enxergou bem Esse momento capital das definições e das convenções nítidas e específicas que vêm substituir as significações de origem confusa e estatística não chegou para a história Assim fala o sr Paul Valéry Mas se é verdade que essa hora de exatidão ainda não chegou será impossível que chegue um dia E em primeiro lugar por que se mostra tão morosa para chegar A química forjou para si seu material de signos Até suas palavras gás é se não me engano um dos raros vocábulos autenticamente inventados que a língua francesa possui É que a química tinha a grande vantagem de se dirigir a realidades incapazes por natureza de se nomearem a si mesmas A linguagem da percepção confusa que ela rejeitou não era menos exterior às coisas e nesse sentido menos arbitrária do que a da observação classificada e controlada pela qual foi substituída quer se diga vitríolo ou ácido sulfúrico o corpo em nada interfere nisso É totalmente diferente no caso de uma ciência da humanidade Para dar nomes a seus atos a suas crenças e aos diversos aspectos de sua vida de sociedade8 os homens não esperaram para vêlos tornaremse o objeto de uma pesquisa desinteressada A história recebe seu vocabulário portanto em sua maior parte da própria matéria de seu estudo Aceitao já cansado e deformado por um longo uso ambíguo aliás não raro desde a origem como todo sistema de expressão que não resulta do esforço severamente combinado dos técnicos O pior é que esses próprios empréstimos carecem de unidade Os documentos tendem a impor sua nomenclatura o historiador se os escuta escreve sob o ditado de uma época cada vez diferente Mas pensa por outro lado naturalmente segundo as categorias de sua própria época por conseguinte com as palavras desta quando falamos de patrícios um contemporâneo do velho Catão nos teria compreendido o autor em contrapartida que evoca o papel da burguesia nas crises do Império Romano como traduziria em latim o nome e a ideia Assim duas orientações distintas compartilham quase necessariamente a linguagem da história Examinemos uma de cada vez Reproduzir ou decalcar a terminologia do passado pode parecer à primeira vista um procedimento bastante seguro Chocase porém na aplicação com múltiplas dificuldades Em primeiro lugar as mudanças das coisas estão longe de acarretar sempre mudanças paralelas em seus nomes Este é o procedimento natural do caráter tradicionalista inerente a toda linguagem assim como a pobreza de inventividade da qual sofre a maioria dos homens A observação vale também para os utensílios sujeitos no entanto a9 modificações em geral bem radicais Quando meu vizinho me diz vou sair de carro devo compreender que está falando de um veículo a cavalo Ou de um automóvel Apenas a experiência que possuo previamente de seu estábulo ou de sua garagem me permitirá responder Aratrum designava em princípio o instrumento de trabalho da terra sem rodas carruca o que era provido delas Como no entanto o primeiro apareceu antes do segundo estaria eu seguro se encontrasse em um texto a velha palavra de que ela não foi simplesmente mantida para o novo instrumento Inversamente Mathieu de Dombasle chamou charrue o instrumento que imaginara e que privado de rodas era na verdade um arado O quão porém esse apego ao nome herdado não parece mais forte a partir do momento em que consideramos realidades de uma ordem menos material É que as transformações em tal caso operamse quase sempre muito lentamente para serem perceptíveis aos próprios homens que afetam Eles não experimentam a necessidade de mudar o rótulo porque a mudança do conteúdo lhes escapa A palavra latina servus que deu em francês serf atravessou os séculos Mas ao preço de tantas alterações sucessivas na condição assim designada que entre o servus da antiga Roma e o serf da França de são Luís os contrastes prevaleceram em muito sobre as semelhanças Também os historiadores geralmente tomam partido de reservar servo para a Idade Média Tratase da Antiguidade Eles falam de escravos Em outras palavras ao decalque preferem no caso o equivalente Não sem sacrificar à exatidão intrínseca da linguagem um pouco da harmonia de suas cores pois o termo que eles transplantam assim para uma atmosfera romana nasce apenas lá pelo ano mil nos mercados de carne humana onde os cativos eslavos pareciam fornecer o próprio modelo de uma inteira sujeição que se tornou totalmente estranha aos servos nativos do Ocidente O artifício é cômodo tanto que o levamos a seus extremos10 No intervalo contudo em que data fixar o limite no qual diante do servo o escravo sumiria É o eterno sofisma do monte de trigo De todo modo eisnos então obrigados para fazer justiça aos próprios fatos a substituir a linguagem deles por uma nomenclatura se não propriamente inventada pelo menos remanejada e defasada Acontece de reciprocamente os nomes variarem no tempo ou no espaço independentemente de qualquer variação nas coisas Algumas vezes causas particulares à evolução da linguagem resultaram no desaparecimento de uma palavra sem que o objeto ou o ato que ela servia para notar fosse minimamente afetado Pois os fatos linguísticos têm seu coeficiente próprio de resistência ou de ductilidade Ao constatar o desaparecimento nas línguas romanas do verbo latino emere e sua substituição por outros verbos de origens bastante diferentes acheter comprar etc um erudito antes acreditou poder tirar daí as conclusões mais amplas as mais engenhosas sobre as transformações que nas sociedades herdeiras de Roma teriam afetado o regime das trocas O que não teria se perguntado caso esse fato indiscutível pudesse ser tratado como um fato isolado Nada foi mais comum ao contrário nos falares oriundos do latim do que a queda de palavras muito curtas que com isso mais a ajuda da anemia das sílabas átonas tornaram se progressivamente indistintas O fenômeno é de ordem estritamente fonética e é divertido o erro de tomar uma aventura da pronúncia por um traço de civilização econômica11 Em outras fontes são as condições sociais que se opõem ao estabelecimento ou à manutenção de um vocabulário uniforme Em sociedades muito fragmentadas como as da Idade Média era frequente que instituições essencialmente idênticas fossem conforme os lugares designadas por termos muito diferentes Ainda em nossos dias os falares rurais se distanciam muito entre si até nas notações dos objetos mais comuns e dos costumes mais universais Na província do Centre onde escrevo essas linhas chamam village o que no Norte seria denominado hameau a aldeia do Norte aqui é um bourg Essas divergências verbais apresentam em si mesmas fatos bastante dignos de atenção Porém ao conformar a isso sua própria terminologia o historiador não comprometeria apenas a inteligibilidade de seu discurso impossibilitaria até mesmo o trabalho de classificação que figura entre seus primeiros deveres Nossa ciência não dispõe como a matemática ou a química de um sistema de símbolos completamente separado da língua nacional O historiador fala unicamente com palavras portanto com as de seu país Achase ele em presença de realidades que se exprimiram numa língua estrangeira morta ou ainda viva Será obrigado a traduzilas Quanto a isso nenhum obstáculo sério contanto que as palavras se relacionem a coisas ou a ações banais essa moeda corrente do vocabulário é facilmente intercambiável Em contrapartida logo que surgem instituições crenças costumes que participam mais profundamente da vida própria de uma sociedade a transposição em uma outra língua feita à imagem de uma sociedade diferente tornase uma empresa cheia de riscos Escolher o equivalente é postular uma semelhança Pelo menos zelemos para que ela não seja só de superfície Vamos nos resignar portanto em desespero de causa a conservar ainda que com uma explicação o termo original Certamente algumas vezes isso será preciso Quando vimos em 1919 a Constituição de Weimar manter o velho nome de Reich para o Estado alemão Estranha República exclamaram entre nós certos publicistas E não é que ela insiste em se dizer Império A verdade não está apenas em que Reich não evoca de modo algum por si mesma a ideia de um imperador associada às imagens de uma história política perpetuamente oscilante entre o particularismo e a unidade a palavra exprime um som muito especificamente alemão para permitir numa língua em que se reflete um passado nacional completamente diferente a menor tentativa de tradução Como generalizar porém essa reprodução mecânica verdadeira solução pela lei do menor esforço Abandonemos mesmo qualquer preocupação com propriedade de linguagem seria aborrecido confessemos ver os historiadores entulhando suas frases de vocábulos estrangeiros imitar esses autores de romances históricos que à força de dialetizar deslizam para um jargão em que o homem dos campos não se reconheceria mais do que um citadino Ao renunciar a qualquer tentativa de equivalência com frequência é a própria realidade que trairíamos Um uso que remonta creio ao século XVIII diz que serf em francês palavra de sentido próximo em outras línguas ocidentais seja empregado para designar o camponês estritamente submisso ao senhor da terra o chriépostnoï da antiga Rússia tzarista Seria difícil imaginar combinação mais desencontrada De um lado um regime de apego à gleba pouco a pouco transformado em verdadeira escravatura do outro uma forma de dependência pessoal que malgrado seu rigor estava muito longe de tratar o homem como uma coisa desprovida de todos os direitos a pretensa servidão russa quase nada de comum tinha com nossa servidão medieval Mas dizer pura e simplesmente chriépostnoï não nos adiantaria em nada Pois existiram na Romênia na Hungria na Polônia e até na Alemanha oriental tipos de sujeição camponesa estreitamente aparentados àquele que12 se estabeleceu na Rússia Será preciso respectivamente falar romeno húngaro polonês alemão ou russo Mais uma vez o essencial que seria reconstituir as ligações profundas entre os fatos exprimindoos em uma nomenclatura correta escaparia O rótulo foi mal escolhido Um rótulo comum colado aos nomes nacionais em lugar de copiálos não deixa de continuar a ser menos necessário Numerosas sociedades praticaram o que podemos chamar um bilinguismo hierárquico Duas línguas enfrentavamse uma popular outra culta O que se pensava e se dizia correntemente na primeira escreviase exclusiva ou preferencialmente na segunda Assim a Abissínia do século XI ao XVII escreveu em guerze falou em anfárico Assim os Evangelhos relataram em grego que era então a grande língua de cultura do Oriente frases que é preciso supor ditas em aramaico pelas pessoas Assim mais próxima de nós a Idade Média durante muito tempo não se administrou não se narrou a si própria senão em latim Herdeiras de civilizações mortas ou emprestadas de civilizações estrangeiras essas línguas de letrados de padres e de notários deviam necessariamente exprimir muitas realidades para as quais não eram de modo algum originalmente talhadas Só conseguiam isso com a ajuda de todo um sistema de transposições inevitavelmente canhestro Ora é por esses escritos que excetuando testemunhos materiais conhecemos uma sociedade Aquelas em que triunfou um tal dualismo de linguagem revelamse a nós portanto em muitos de seus traços principais apenas através de um véu aproximativo Às vezes inclusive até uma tela suplementar se interpõe O grande cadastro da Inglaterra que Guilherme o Conquistador mandou estabelecer o famoso Livro do Julgamento Domesday Book foi obra de clérigos normandos ou do Maine Eles não apenas descreveram instituições especificamente inglesas em latim primeiro repensaramnas em francês Ao se chocar com essas nomenclaturas por substituição de termos o historiador não dispõe de outro recurso senão realizar o trabalho às avessas Se as correspondências foram comodamente escolhidas e sobretudo aplicadas com sequência a tarefa será relativamente simples Não se terá muita dificuldade em reconhecer por trás dos cônsules dos cronistas os condes da realidade Encontramse infelizmente casos menos favoráveis O que eram os colliberti os bordarii do Domesday Book Despojadas de seus ouropéis latinos as palavras deixamse facilmente reconstituir nos falares da França do Oeste cuverts bordiersI Mas hesitamos quanto a que termos ingleses deveriam corresponder Uma coisa é certa o equivalente não se impunha Pois apenas alguns dos redatores do documento o empregaram e nunca depois deles alguém o retomou O que era o colonus de nossos documentos dos séculos XI e XII Pergunta desprovida de sentido Com efeito sem herdeira nessa língua vulgar porque havia deixado de evocar qualquer coisa de vivo a palavra representava somente um artifício de tradução empregado pelos notários para designar respectivamente em belo latim clássico condições jurídicas ou econômicas bem distintas Do mesmo modo essa oposição de duas línguas forçosamente diferentes não traduz na verdade senão o caso limite de contrastes comuns a todas as sociedades Até nas nações mais unificadas como a nossa cada pequena coletividade profissional cada grupo caracterizado pela cultura ou a fortuna possui seu sistema de expressão particular Ora nem todos os grupos escreveram ou escrevem tanto ou têm tantas oportunidades de transmitir seus escritos à posteridade Todos sabem é raro que o auto de um interrogatório judicial reproduza literalmente as declarações pronunciadas o escrivão quase espontaneamente organiza esclarece restabelece a sintaxe poda as palavras julgadas demasiado vulgares13 As civilizações do passado também tiveram seus escrivães cronistas juristas sobretudo Foi a voz deles antes de qualquer coisa que nos chegou Evitemos esquecer que as palavras que eles usavam as classificações que propunham com essas palavras eram resultado de uma elaboração erudita frequentemente sistemática muitas vezes exageradamente influenciada pela tradição Que surpresa talvez se no lugar de penar sobre a terminologia confusa contraditória e provavelmente artificial dos recenseadores ou dos capitulários merovíngios pudéssemos passeando em uma aldeia dessa época escutar os camponeses entre si dando nome às suas condições ou os senhores às de seus súditos É claro que essa descrição da prática cotidiana por si mesma não nos forneceria tampouco toda a vida pois as tentativas de expressão e por conseguinte de interpretação que advêm dos doutos ou dos homens da lei constituem elas também forças concretamente atuantes seria pelo menos atingir uma fibra profunda Que ensinamento para nós se fosse o deus de ontem ou de hoje fôssemos capazes de captar nos lábios dos humildes sua verdadeira prece Supondo no entanto que eles próprios tenham sabido traduzir sem mutilálos os impulsos de seu coração Pois aí está em última instância o grande obstáculo Nada mais difícil para um homem do que se exprimir a si mesmo Mas não é menor a dificuldade de encontrar para as fluidas realidades sociais que são a trama de nossa existência nomes isentos ao mesmo tempo de ambiguidade e de falso rigor Os termos mais usuais nunca são senão aproximações Mesmo os termos de fé que imaginaríamos de bom grado de sentido estrito Escrutando o mapa religioso da França vejam quantas distinções nuançadas um erudito como o sr Le Bras é hoje obrigado a substituir por este simples rótulo católica Os historiadores que do alto de suas crenças se não talvez com mais frequência de sua descrença tocam14 rigidamente quanto ao catolicismo ou não catolicismo de um Erasmo têm muito sobre o que refletir Outras realidades muito vivas falharam em encontrar as palavras necessárias Um operário de nossos dias fala tranquilamente de sua consciência de classe mesmo sendo esta eventualmente bastante fraca Não acredito que esse sentimento de solidariedade ponderada e armada tenha um dia se manifestado com mais força ou clareza do que entre os operários de nossos campos do Norte por volta do final do Antigo Regime diversas petições certas cadernetas de 1789 nos preservaram deles ecos pungentes O sentimento entretanto não podia então ser nomeado porque ainda não tinha nome Para resumir o vocabulário dos documentos não é a seu modo nada mais que um testemunho precioso sem dúvida entre todos mas como todos os testemunhos imperfeito portanto sujeito à crítica Cada termo importante cada figura de estilo característica tornase um verdadeiro instrumento de conhecimento bastando ser confrontado uma única vez com seu ambiente recolocado no uso da época do meio ou do autor protegido sobretudo quando sobreviveu por muito tempo contra o perigo sempre presente do contrassenso por anacronismo A unção real no século XII era naturalmente tratada como sacramento afirmação certamente repleta de significação apesar de desprovida naquela data do valor singularmente mais forte que lhe atribuiria atualmente uma teologia rígida em suas definições e portanto em seu léxico O advento do nome é sempre um grande fato mesmo se a coisa o havia precedido pois marca a etapa decisiva da tomada de consciência Que passo o dia em que os adeptos de uma nova fé se disserem eles mesmos cristãos Alguns de nossos primogênitos como Fustel de Coulanges nos forneceram admiráveis modelos desse estudo dos sentidos dessa semântica histórica Desde sua época os progressos da linguística aguçaram ainda mais a ferramenta Decerto por mais incompleta que em geral seja a aderência os nomes dizem respeito apesar de tudo às realidades de uma influência forte demais para permitir um dia descrever uma sociedade sem que seja feito um largo emprego das palavras devidamente explicadas e interpretadas Não imitaremos os tradicionais tradutores da Idade Média Falaremos de condes quando se tratar de condes de cônsules se Roma estiver em cena Um grande progresso foi realizado na compreensão das religiões helênicas quando nos lábios dos eruditos Júpiter viuse definitivamente destronado por Zeus Mas isso diz respeito sobretudo ao detalhe das instituições dos artefatos ou das crenças Estimar que a nomenclatura dos documentos possa bastar completamente para fixar a nossa seria o mesmo em suma que admitir que nos fornecem a análise toda pronta A história nesse caso não teria muito a fazer Felizmente para nossa satisfação não é nada disso Eis por que somos obrigados a procurar em outro lugar nossas grandes estruturas de classificação Para fornecêlas todo um léxico já nos é oferecido cuja generalidade se pretende superior às ressonâncias de qualquer época particular Elaborado sem seu objetivo preestabelecido pelos retoques sucessivos de várias gerações de historiadores ele reúne elementos de data e de proveniência muito diversos Feudal feudalismo termos de rábula tirados do Tribunal desde o século XVIII por Boulainvilliers depois por Montesquieu para tornarem se rótulos bem inapropriados de um tipo de estrutura social ele mesmo bastante mal definido Capital palavra de usurário e de contador cuja significação foi bastante estendida muito cedo pelos economistas Capitalista distante resíduo do jargão dos especuladores nas primeiras Bolsas europeias Mas capitalismo que detém atualmente em nossas classificações um lugar bem mais considerável é recentíssima carrega sua desinência como uma marca de origem Kapitalismus Classe ressoa o naturalista ou o filósofo porém com um acento novo em que as lutas sociais repercutem sua dureza Revolução trocou por um sentido muito humano suas antigas associações astrológicas no céu era é ainda um movimento regular na Terra agora uma brusca crise Proletário vestese à antiga como os homens de 89 dos quais se originou mas Marx depois de Babeuf deixou para sempre sua marca aí A própria América deu totem e a Oceania tabu extraídas de etnógrafos diante dos quais o classicismo dos historiadores hesita Nem essa variedade de origens nem esses desvios de sentido são de forma alguma um incômodo Uma palavra vale menos por sua etimologia do que pelo uso que dela é feito Se capitalismo mesmo em suas aplicações mais amplas está longe de se estender a todos os regimes econômicos em que o capital dos emprestadores de dinheiro desempenha um papel se feudal serve correntemente para caracterizar sociedades cujo feudo não foi certamente o traço mais significativo não há nada aí que contradiga a universal prática de todas as ciências obrigadas a partir do momento em que não se contentam mais com meros símbolos algébricos a beber no vocabulário misturado da vida cotidiana Vamos nos escandalizar se o físico persistir em chamar átomo quer dizer indivisível o objeto de suas mais audaciosas dissecações Muito mais temíveis são os eflúvios emotivos de que tantas dessas palavras nos chegam carregadas Os poderes do sentimento raramente favorecem a precisão na linguagem O uso até nos historiadores tende a confundir da maneira mais desagradável as expressões regime feudal e regime senhorial É assimilar arbitrariamente à rede de vínculos de dependência característica de uma aristocracia guerreira um tipo de sujeição camponesa que muito diferente por natureza nasceu além disso muito mais cedo durou muito mais tempo e foi mundo afora muito mais difundido O quiproquó remonta ao século XVIII A vassalagem e o feudo continuavam então a existir mas no estado de simples formas jurídicas já há vários séculos quase vazias de substância Oriunda desse mesmo passado a senhoria ao contrário permanecia vivíssima Nessa herança os escritores políticos não souberam fazer distinções Não era apenas que a compreendiam mal Em sua maioria não a consideravam friamente Detestavam ao mesmo tempo seus arcaísmos e pior o que ainda teimava em conter forças opressoras Uma condenação comum envolvia o todo Depois a Revolução aboliu simultaneamente e sob um nome único junto com as instituições propriamente feudais a senhoria Dela não subsistiu senão uma lembrança embora tenaz e colorida com tintas vivas pela imagem das lutas dos últimos tempos A confusão doravante estava estabelecida nascida da paixão ainda pronta a se expandir sob o efeito de novas paixões Hoje mesmo quando evocamos a torto e a direito os feudalismos industriais ou bancários fazemos isso com absoluta serenidade Há sempre por trás um reflexo de castelos em chamas durante o quente verão de 89 Ora essa é infelizmente a sorte de muitas de nossas palavras Elas continuam a viver a nosso lado uma vida conturbada de praça pública Não são as arengas de um historiador que atualmente nos instam a identificar capitalismo e comunismo Sinais frequentemente variáveis segundo os ambientes ou os momentos esses coeficientes de afetividade não engendram senão mais equívoco Diante do nome revolução os ultras de 1815 velavam o rosto Os de 1940 camuflam com ele seu golpe de Estado Suponhamos porém nosso vocabulário definitivamente rendido à impassibilidade As mais intelectuais das línguas também têm suas armadilhas Decerto não se experimenta aqui a menor tentação de reeditar as brincadeiras nominalistas cujo singular privilégio François Simiand se espantava tempos atrás com razão por ver reservado às ciências do homem Com que direito nos recusar facilidades de linguagem indispensáveis a todo conhecimento racional Estamos falando por exemplo do maquinismo Isso não é de modo algum criar uma entidade Sob um nome expressivo isso é agrupar a seu belprazer fatos concretos cuja similitude que o nome propriamente tem como objetivo significar é também uma realidade Em si essas rubricas têm portanto toda legitimidade Seu verdadeiro perigo vem de sua própria comodidade Malescolhido ou aplicado demasiado mecanicamente o símbolo que só estava aí para ajudar a análise acabou por dispensar o ato de analisar Com isso fomenta o anacronismo entre todos os pecados ao olhar de uma ciência do tempo o mais imperdoável As sociedades medievais distinguiam duas grandes condições humanas havia os homens livres outros que passavam por não sêlo absolutamente Mas a noção de liberdade é daquelas que cada época manipula à vontade Certos historiadores julgaram portanto em nossos dias que no sentido pretensamente normal da palavra ou seja o deles os não livres da Idade Média haviam sido mal nomeados Eram apenas diziam semilivres Palavra inventada sem nenhum apoio nos textos essa intrusa em qualquer situação seria um estorvo Infelizmente não mais que isso Por uma consequência quase inevitável o falso rigor que ela conferia à linguagem pareceu tornar supérflua qualquer pesquisa verdadeiramente aprofundada sobre a fronteira da liberdade e da servidão tal como essas civilizações concebiam a imagem limite com frequência incerto variável inclusive segundo os partis pris do momento ou do grupo mas do qual uma das características essenciais foi justamente jamais ter tolerado essa zona marginal que sugere com uma insistência importuna o nome de semiliberdade Uma nomenclatura imposta ao passado acarretará sempre uma deformação caso tenha por proposta ou apenas por resultado pespegar suas categorias às nossas alçadas para a ocasião à eternidade Não há outra atitude razoável a tomar em relação a esses rótulos senão eliminálos Capitalismo foi uma palavra útil Provavelmente tornarseá de novo quando conseguirmos lavála de todos os equívocos dos quais à medida que ia passando ao uso mais corrente cada vez mais se impregnou Por ora transportada incautamente através das civilizações as mais diversas acaba quase fatalmente por mascarar suas originalidades Capitalista o regime econômico do século XVI Pode ser Considerem porém essa espécie de descoberta universal do ganho de dinheiro infiltrandose então de cima para baixo na sociedade tragando tanto o comerciante ou notário de aldeia quanto o grande banqueiro de Augsburgo ou de Lyon vejam a ênfase colocada no empréstimo ou na especulação comercial muito mais cedo do que na organização da produção em sua contextura humana como era então diferente esse capitalismo do Renascimento do sistema bem mais hierarquizado do sistema manufatureiro do sistema saintsimoniano da era da revolução industrial Que por sua vez Do mesmo modo uma observação muito simples bastaria para nos precaver quanto a isso Em que data fixar o surgimento do capitalismo não mais de uma época determinada mas do capitalismo em si do capitalismo com C maiúsculo Na Itália do século XII Na Flandres do XIII Na época de Fugger e da Bolsa de Anvers No século XVIII até no XIX Tantos historiadores ou quase isso tantas certidões de nascimento quase tão numerosas na verdade quanto as daquela burguesia cujo acesso ao poder é festejado pelos manuais escolares segundo os períodos sucessivamente propostos às meditações de nossos guris ora sob Filipe o Belo ora sob Luís XIV a menos que não seja em 1789 ou em 1830 Talvez afinal de contas não fosse exatamente a mesma burguesia Tampouco o mesmo capitalismo E aí está creio onde tocamos o fundo das coisas Todos lembram da bonita frase de Fontenelle Leibniz dizia formula definições exatas que o privam da agradável liberdade de abusar dos termos nessas ocasiões Agradável não sei perigosa certamente é uma liberdade bastante familiar a nós O historiador raramente define Poderia com efeito julgar esse cuidado supérfluo se bebesse num uso ele próprio de sentido estrito Como não é esse o caso não tem até no emprego de suas palavraschave nenhum outro guia a não ser seu instinto pessoal Ele estende restringe deforma despoticamente as significações sem advertir o leitor sem nem sempre ele próprio se dar conta Quantos feudalismos mundo afora desde a China até a Grécia dos aqueus das belas cnêmidas Em sua grande parte não se parecem em nada É que cada historiador ou quase isso compreende o nome a seu belprazer Definimos entretanto fortuitamente O mais frequente é um por nós Nada mais significativo do que o caso de um analista de economia tão penetrante quanto John Maynard Keynes Não há quase nenhum livro seu em que não o vejamos antes ao se apoderar de termos por exceção bastante bem fixados decretarlhes sentidos completamente novos mudando às vezes de obra para obra voluntariamente distantes em todo caso da prática comum Curioso problema das ciências do homem que por terem sido por tanto tempo tratadas como mero gênero literário parecem ter preservado algo do impenitente individualismo do artista Poderíamos conceber um químico dizendo é preciso para formar uma molécula de água dois corpos um fornece dois átomos o outro um só no vocabulário que engendrei é o primeiro que se chamará oxigênio e o segundo hidrogênio Por mais rigoroso que as suponhamos linguagens de historiadores alinhadas lado a lado nunca comporão a linguagem da história A bem da verdade esforços mais bem combinados foram aqui e ali tentados por grupos de especialistas que a juventude relativa de suas disciplinas parece colocar ao abrigo das piores rotinas corporativas linguistas etnógrafos geógrafos para a história inteira pelo Centro de Síntese sempre na expectativa dos serviços a prestar e dos exemplos a dar Deve se esperar muito disso Mas menos ainda talvez que dos progressos de uma difusa boa vontade Dia virá sem dúvida em que uma série de acordos permitirá precisar a nomenclatura depois de etapa em etapa refinála Então a própria iniciativa do pesquisador conservará seus direitos aprofundando a análise ele remaneja necessariamente a linguagem O essencial é que o espírito de equipe viva entre nós É preciso que o historiador renuncie a desviar intempestivamente de seus sentidos as palavras já recebidas mais vale se for preciso uma franca criação que evite rejeitar por capricho aquelas já experimentadas que ao usar definições escrupulosas façao com o cuidado de tornar seu vocabulário constantemente utilizável para todos A torre de Babel forneceu a um irônico Demiurgo um espetáculo bastante satisfatório Seria para a ciência um modelo deplorável 415 O rio das eras corre sem interrupção Nisso também todavia é preciso que nossa análise pratique recortes Pois a natureza de nosso espírito nos proíbe de apreender até mesmo o mais contínuo dos movimentos se não o dividirmos por balizas Como fixar ao longo do tempo as da história Elas serão sempre num sentido arbitrárias Além disso é importante que coincidam com os principais pontos de inflexão da eterna mudança Nas historiografias que herdamos não poderia falar do Extremo Oriente a história era antes de tudo uma crônica de líderes Era das vicissitudes da soberania que ela extraía16 tradicionalmente as articulações de seu relato isso quando não se contentava transformando se em anais em claudicar de milésimo em milésimo Ao destruir uma à outra as dominações dos povos conquistadores traçavam as grandes épocas A memória coletiva da Idade Média quase toda viveu assim do mito apocalíptico dos quatro Impérios meda persa grego romano Fôrma incômoda porém mesmo assim Não se obrigava apenas por submissão ao texto sagrado a prolongar até o presente a miragem de uma fictícia unidade romana Por um estranho paradoxo numa sociedade de cristãos como deve ser atualmente aos olhos de qualquer historiador a Paixão parecia na marcha da humanidade uma pausa menos notável do que as vitórias de ilustres devastadores de províncias Quanto às divisões menores a sucessão de monarcas em cada nação lhes conferia seus limites Esses hábitos provaramse maravilhosamente tenazes Fiel espelho da escola francesa nas proximidades de 1900 a História da França de Levisse ainda avança tropeçando de reino em reino a cada morte de príncipe narrada com o detalhe que se atribui aos grandes acontecimentos ela marca uma etapa Não existem mais reis Os sistemas de governo também são mortais suas revoluções servem então como marcos Mais próximos de nós é por preponderâncias nacionais equivalentes atenuados dos Impérios de outrora que uma importante coleção de manuais segmenta a seu belprazer o curso da história moderna Espanhola francesa inglesa alemã essas hegemonias são é preciso dizer de natureza diplomática e militar O resto arranjase como for possível Eis já um bom tempo no entanto que o século XVIII fizera ouvir seu protesto Parece escrevia Voltaire que de 1400 anos para cá não houve nas Gálias senão reis ministros e generais Pouco a pouco surgem novas divisões que alheias à obsessão imperialista ou monárquica pretendiam se adequar a fenômenos mais profundos Feudalismo tanto como nome de um período como de um sistema social e político data como vimos dessa época Mas entre todas as coisas os destinos da expressão Idade Média são instrutivos Por sua origem distante era ela própria medieval Pertencia ao vocabulário daquele profetismo semiherético que desde o século XIII sobretudo seduzira tantas almas inquietas A Encarnação pusera fim à Antiga Lei Ela não estabelecera o Reino de Deus Apontando para a expectativa desse dia abençoado o tempo presente não seria portanto senão uma era intermediária um medium aevum Depois a partir dos primeiros humanistas parece aos quais essa língua mística permanecia familiar a imagem foi desviada para realidades mais profanas Num certo sentido o reino do Espírito chegara Era essa renovação das letras e do pensamento cuja consciência nos melhores faziase então viva testemunha Rabelais testemunha Ronsard A meia idade concluíra que entre a fecunda Antiguidade e sua nova revelação houve apenas do mesmo modo uma longa espera Assim entendida a expressão durante várias gerações viveu obscuramente restrita sem dúvida a alguns círculos de eruditos Acreditase que foi no finalzinho do século XVII que um alemão um modesto confeccionador de manuais Christophe Keller imaginou pela primeira vez numa obra de história geral rotular de Idade Média todo o período muito mais que milenar que vai das Invasões ao Renascimento O uso introduzido não se sabe por que canais entrou definitivamente na historiografia europeia e sobretudo francesa na época de Guizot e de Michelet Voltaire havia ignorado isso Enfim o que quereis é superar o desgosto que vos causa a História moderna desde a decadência do Império Romano reconhecemos aí a primeira frase do Ensaio sobre os costumes Não duvidemos no entanto foi justamente o espírito do Ensaio que tão poderoso nas gerações seguintes fez o sucesso de Idade Média Como aliás de seu pendant quase necessário o termo Renascimento cujo destino foi definitivamente fixado mais ou menos no mesmo momento Corrente de longa data no vocabulário da história do gosto mas como substantivo e com a adjunção obrigatória de um complemento o renascimento das artes ou das letras no século XVI sob Leão X ou sob Francisco I diziase conquista antes de Michelet junto com a maiúscula a honra de servir sozinho para marco do período inteiro Das duas partes a ideia é a mesma As batalhas a política das cortes a ascensão ou queda das grandes dinastias forneciam o contexto Sob sua bandeira a arte a literatura as ciências eram organizadas de qualquer maneira É preciso agora inverter Nas épocas da humanidade são as manifestações mais refinadas do espírito humano que por seus variáveis progressos dão o tom Não existe ideia que com mais clareza do que esta exiba mais a marca voltairiana Mas uma grande fraqueza viciava as classificações o traço distintivo era ao mesmo tempo um julgamento A partir do momento em que não cremos mais na noite da Idade Média que renunciamos a descrever como um deserto uniformemente estéril séculos que no domínio das invenções técnicas da arte do sentimento da reflexão religiosa foram tão ricos que viram o primeiro desabrochar da expansão econômica europeia que enfim nos deram nossas pátrias que razão restaria ainda para confundir sob uma rubrica comum a despeito de toda a cor verdadeira a Gália de Clóvis e a França de Filipe o Belo Alcuíno e são Tomás ou Occam o estilo animalista das joias bárbaras e as estátuas de Chartres os pequenos burgos coesos dos tempos carolíngios e as esplendorosas burguesias de Gênova de Bruges ou de Lubeck A Idade Média na verdade vive apenas de uma humilde vidazinha pedagógica contestável comodidade de programas rótulo sobretudo de técnicas eruditas cujo campo a propósito é bastante mal delimitado pelas datas tradicionais O medievalista é o homem que sabe ler velhas escrituras criticar um documento compreender o francês arcaico É alguma coisa sem dúvida Não o suficiente com certeza para satisfazer na busca das divisões exatas uma ciência do real Na confusão de nossas classificações cronológicas uma moda insinuouse bem recente creio tanto mais intrusiva em todo caso quanto menos sensata Com naturalidade contamos por séculos Por muito tempo alheia sabemos a qualquer recenseamento exato de anos a palavra também tinha originariamente suas ressonâncias místicas acentos de Quarta Écloga ou Dies irae Talvez não estivessem tão amortecidas na época em que sem grande preocupação com a precisão numérica a história alongavase com complacência sobre o século de Péricles ou o de Luís XIV Mas nossa linguagem se fez mais severamente matemática não nomeamos mais os séculos de acordo com seus heróis Numeramolos sequencialmente bem sensatamente de cem em cem anos a partir de um ponto fixado de uma vez por todas A arte do século XIII a filosofia do XVIII o estúpido XIX essas figuras de máscara aritmética enxameiam as páginas de nossos livros Quem de nós se gabará de ter um dia escapado às seduções de sua aparente comodidade Infelizmente nenhuma lei da história impõe que os anos cujos milésimos se determinam pelo algarismo 1 coincidam com os pontos críticos da evolução humana Daí estranhas inflexões de sentido É bem sabido que o século XVIII começa em 1715 e termina em 1789 li essa frase um dia num trabalho de aluno Candura Ou malícia Não sei Em todo caso isso servia bem para colocar a nu certas bizarrices do uso Caso se trate porém do século XVIII filosófico poderseia provavelmente dizer ainda melhor que começou bem antes de 1701 a História dos oráculos é de 1687 e o Dicionário de Bayle de 1697 O pior é que o nome como sempre carrega com ele a ideia e os falsos rótulos acabam por iludir quanto à mercadoria Falase com frequência do renascimento do século XII Grande movimento intelectual certamente Porém ao se inscrevêlo sob essa rubrica esquecese facilmente que começou na realidade por volta de 1060 e certas ligações essenciais escapam Em suma parece que distribuímos segundo um rigoroso ritmo pendular arbitrariamente escolhido realidades às quais essa regularidade é completamente estranha É um desafio Nós o aceitamos naturalmente com muita dificuldade e a única coisa que fizemos foi introduzir mais uma confusão Evidentemente é preciso procurar melhor Na medida em que nos limitamos a estudar no tempo cadeias de fenômenos aparentados o problema é em suma simples É a esses próprios fenômenos que convém solicitar seus próprios períodos Uma história religiosa do reino de Filipe Augusto Uma história econômica do reino de Luís XV Por que não Diário do que aconteceu em meu laboratório sob a segunda presidência de Grévy por Louis Pasteur Ou inversamente História diplomática da Europa de Newton a Einstein Sem dúvida vêse bem por onde divisões extraídas uniformemente da série dos Impérios dos reis ou dos regimes políticos conseguiram seduzir Não tinham por elas apenas o prestígio que uma longa tradição confere ao exercício do poder a essas ações dizia Maquiavel que parecem ter grandeza própria nos atos do governo do Estado Um advento uma revolução têm seu lugar fixado na duração em determinado ano quase em determinado dia Ora o erudito gosta como se diz de datar precisamente Encontra com isso com o abrandamento de um instintivo horror do vago uma grande comodidade de consciência Almeja ter tudo lido tudo conferido sobre o que diz respeito a seu assunto Como ficaria mais à vontade se diante de cada dossiê de arquivos pudesse calendário na mão fazer a divisão antes durante depois Tomemos cuidado porém o recorte mais exato não é forçosamente o que faz uso da menor unidade de tempo se assim fosse seria preciso então preferir não apenas o ano à década mas também o segundo ao dia A verdadeira exatidão consiste em se adequar a cada vez à natureza do fenômeno considerado Pois cada tipo tem sua densidade de medida particular e por assim dizer seu decimal específico As transformações da estrutura social da economia das crenças do comportamento mental não seriam capazes sem um desagradável artifício de se dobrar a uma cronometragem muito rígida Quando escrevo que uma modificação extremamente profunda da economia ocidental marcada ao mesmo tempo pelas primeiras importações maciças de trigos exóticos e pelo primeiro grande desabrochar das indústrias alemãs e americanas produziuse entre cerca de 1875 e 1885 uso da única aproximação que esse gênero de fatos autoriza Vou ao contrário cismar em buscar uma data supostamente mais precisa Escolher para isso como se se apresentasse de repente ao espírito o Tratado de Frankfurt Eu trairia a realidade no altar de um respeito mal compreendido pelo número Aliás não é de modo algum impossível a priori que com a experiência as fases naturais de fenômenos de ordem aparentemente bem diversa venham a se superpor Será exato que o advento do Segundo Império introduziu um novo período na economia francesa Sombart tinha razão em identificar o florescimento do capitalismo com aquele do espírito protestante O sr Thierry Maulnier enxerga corretamente ao descobrir na democracia a expressão política desse mesmo capitalismo não totalmente o mesmo receio Não temos o direito de rejeitar de antemão essas coincidências por mais duvidosas que possam nos parecer Mas elas só surgirão se for o caso sob uma condição não terem sido postuladas previamente Certamente as marés estão em relação com as lunações Para sabêlo porém foi preciso antes determinar separadamente as épocas de fluxo e as da Lua Contemplando ao contrário a evolução social em sua integralidade tratase de caracterizar suas etapas sucessivas É um problema de nota dominante Aqui só se pode sugerir os caminhos pelos quais a classificação parece ter que se engajar A história não esqueçamos ainda é uma ciência em obras Os homens que nasceram num mesmo ambiente social em datas próximas sofrem necessariamente em particular em seu período de formação influências análogas A experiência prova que seu comportamento apresenta em relação aos grupos sensivelmente mais velhos ou mais jovens traços distintivos geralmente bastante nítidos Isso até em suas discordâncias que podem ser das mais agudas Apaixonarse por um mesmo debate mesmo em sentidos opostos ainda é assemelharse Essa comunidade de marca oriunda de uma comunidade de época faz uma geração Uma sociedade a bem da verdade raramente é una Ela se decompõe em ambientes diferentes Em cada um deles as gerações nem sempre se superpõem será que as forças que atuam sobre um jovem operário fatalmente são exercidas pelo menos com uma intensidade igual no jovem camponês Acrescentem mesmo nas civilizações mais coesas a lentidão de propagação de certas correntes Éramos românticos na província durante minha adolescência ao passo que em Paris haviase deixado de sêlo diziame meu pai nascido em Estrasburgo em 1848 Com frequência aliás como nesse caso a oposição reduzse sobretudo a uma defasagem Quando falamos desta ou daquela geração francesa por exemplo evocamos uma imagem complexa às vezes não sem discordâncias mas da qual é natural reter antes de tudo os elementos verdadeiramente orientadores Quanto à periodicidade das gerações é evidente que a despeito dos devaneios pitagóricos de certos autores nada tem de regular Segundo a cadência mais ou menos viva do movimento social os limites se cerram ou se distendem Existem em história gerações longas ou gerações curtas Só a observação permite apreender os pontos em que a curva muda de orientação Pertenci a uma escola em que as datas de matrícula facilitam as referências Muito cedo vime sob muitos aspectos mais próximo das turmas que me haviam precedido do que das que me seguiram quase imediatamente Colocávamonos meus colegas e eu na ponta do que se pode chamar creio a geração do caso Dreyfus A experiência da vida não desmentiu essa impressão Ocorre enfim obrigatoriamente de as gerações se interpenetrarem Pois os indivíduos não reagem sempre similarmente às mesmas influências Hoje mesmo entre nossos filhos já se pode discernir mais ou menos segundo as idades a geração da guerra daquela que será apenas a do pósguerra Com uma ressalva contudo nas idades que não são ainda a adolescência quase madura e não são mais a da pequena infância a sensibilidade em relação aos acontecimentos do presente varia muito segundo os temperamentos pessoais as mais precoces serão de fato da guerra as outras permanecerão no lado oposto A noção de geração é portanto muito flexível como todo conceito que tenta exprimir sem deformálas as coisas do homem Mas corresponde também a realidades que sentimos bem concretas Há muito tempo vimola ser utilizada como por instinto por disciplinas cuja natureza levava a que rejeitassem antes de quaisquer outras as velhas divisões por reinos ou por governos como a história do pensamento ou das formas artísticas Ela parece destinada a fornecer cada vez mais um primeiro balizamento a uma análise ponderada das vicissitudes humanas Mas uma geração representa apenas uma fase relativamente curta As fases mais longas chamamse civilizações A palavra como Lucien Febvre mostrou só se desvencilhou muito lentamente do juízo de valor Hoje conquistou sua liberdade Admitimos que haja se ouso dizer civilizações de não civilizados Reconhecemos que em uma sociedade seja qual for tudo se liga e controla mutuamente a estrutura política e social a economia as crenças tanto as formas mais elementares como as mais sutis da mentalidade Esse complexo tem uma tonalidade própria a cada vez Ela é difícil de exprimir sem dúvida Evitemos rótulos muito simples A facilidade das palavras em ismo Typismus Konventionalismus arruinou a iniciativa no entanto inteligente de descrição evolutiva tentada por Karl Lamprecht em sua História da Alemanha Contudo ninguém se ilude quanto à existência das oposições de nomes Alguém contestará atualmente uma civilização chinesa Duvidará que difere imensamente da europeia Essa ênfase maior é além disso suscetível de se modificar mais ou menos lenta ou bruscamente Quando a transformação se operou dizemos que uma civilização sucede a uma outra as sociedades da alta Idade Média ocidental haviam herdado muito do Império Romano todos porém estarão de acordo que não era mais a mesma civilização Assim como a civilização ocidental do Renascimento não se identifica por exemplo com a nossa Cabe à prática introduzir em suas distinções uma exatidão e um discernimento crescentes O tempo humano em resumo permanecerá sempre rebelde tanto à implacável uniformidade como ao seccionamento rígido do tempo do relógio Faltamlhe medidas adequadas à variabilidade de seu ritmo e que como limites aceitem frequentemente porque a realidade assim o quer conhecer apenas zonas marginais É apenas ao preço dessa plasticidade que a história pode esperar adaptar segundo as palavras de Bergson suas classificações às próprias linhas do real o que é propriamente a finalidade última de toda ciência I Cuverts bordiers pessoas que exploravam uma pequena fazenda ou borde sujeita a encargos pagos a um senhor NT Capítulo V1 Em vão o positivismo pretendeu eliminar da ciência a ideia de causa Querendo ou não todo físico todo biólogo pensa através de por quê e de porque Os historiadores não podem escapar a essa lei comum do espírito Alguns como Michelet encadeiam tudo num grande movimento vital em lugar de explicar de forma lógica outros exibem seu aparelho de induções e de hipóteses em todos o vínculo genético está presente Porém do fato de o estabelecimento das relações de causa e efeito constituir assim uma necessidade instintiva de nosso entendimento não se segue que sua investigação possa ser relegada ao instinto Se a metafísica da causalidade está aqui fora de nosso horizonte o emprego da relação causal como ferramenta do conhecimento histórico exige incontestavelmente uma tomada de consciência crítica Um homem suponhamos caminha por um atalho de montanha tropeça e cai num precipício Foi preciso para que esse acidente acontecesse a reunião de um grande número de elementos determinantes Entre eles a existência da gravidade a presença de um relevo resultante de longas vicissitudes geológicas o traçado de um caminho destinado por exemplo a ligar uma aldeia a suas pastagens de verão Será portanto perfeitamente legítimo dizer que se as leis da mecânica celeste fossem diferentes se a evolução da Terra tivesse sido outra se a economia alpina não se fundasse na transumância sazonal a queda não teria acontecido Perguntase porém qual foi a causa Todos responderão o tropeço Não é de modo algum que este antecedente fosse mais necessário ao fato Muitos outros o eram no mesmo nível Mas entre todos ele se distingue por diversas características mais evidentes vinha por último era o menos permanente o mais excepcional na ordem geral do mundo enfim em razão mesmo dessa menor generalidade sua intervenção parece a que pode mais facilmente ser evitada Por essas razões parece ligado ao efeito de uma influência mais direta e não escapamos ao sentimento de que foi ele o único a têlo produzido Aos olhos do senso comum que ao falar de causa tem sempre dificuldade em se livrar de um certo antropomorfismo esse componente do último minuto esse componente particular e inopinado se parece um pouco com o artista que dá forma a uma matéria plástica já toda preparada O raciocínio histórico em sua prática corrente não procede de modo diferente Os antecedentes mais constantes e mais genéricos permanecem simplesmente subentendidos Que historiador militar pensará em colocar entre as razões de uma vitória a gravitação que dá conta das trajetórias dos obuses ou as disposições fisiológicas do corpo humano sem as quais os projéteis não seriam capazes de danos mortais Já os antecedentes mais particulares porém dotados também de uma certa permanência formam o que se convencionou chamar de condições O mais específico aquele que no leque das forças geradoras de certo modo representa o elemento diferencial recebe de preferência o nome de causa Diremos por exemplo que a inflação da época de Law foi a causa da alta global dos preços A existência de um meio econômico francês já homogêneo e bem coeso será apenas uma condição Pois essas facilidades de circulação que ao espalhar as cédulas por todo lado permitiram sozinhas a alta haviam precedido a inflação e lhe sobreviveram Ninguém poderia duvidar de que reside nessa discriminação um princípio fecundo de pesquisa Para que insistir2 em antecedentes quase universais Eles são comuns a muitos fenômenos para merecer figurar na genealogia de um deles em particular Sei bem de antemão que não haveria incêndio se o ar não contivesse oxigênio o que me interessa e justifica um esforço de descoberta é determinar como o fogo pegou3 As leis das trajetórias variam tanto para a derrota como para a vitória explicam a ambas são portanto inúteis para a explicação apropriada de todas as duas Mas não se poderia sem perigo elevar ao absoluto uma classificação hierárquica que é apenas na verdade uma comodidade do espírito4 A realidade nos apresenta uma quantidade quase infinita de linhas de força todas convergindo para o mesmo fenômeno A escolha que fazemos entre elas pode muito bem se fundar em características na prática bastante dignas de atenção não deixa de se tratar sempre de uma escolha Existe sobretudo muito de arbitrário na ideia de uma causa por excelência oposta às simples condições O próprio Simiand tão cioso de rigor e que tentara antes em vão acredito definições mais estritas parece ter acabado por reconhecer o caráter todo relativo dessa distinção Uma epidemia escreve ele terá como causa para o médico a propagação de um micróbio e como condições a sujeira a má saúde produzidas pelo pauperismo para o sociólogo e o filantropo o pauperismo será a causa e os fatores biológicos a condição Isso é admitir de boafé a subordinação da perspectiva ao ângulo próprio da investigação Tomemos cuidado aliás a superstição da causa única em história não raro é apenas a forma insidiosa da busca do responsável por conseguinte juízo de valor De quem é a culpa ou mérito diz o juiz O cientista contentase em perguntar por quê e aceita que a resposta não seja simples Preconceito do senso comum postulado de lógico ou tique de magistrado instrutor o monismo da causa seria para a explicação histórica simplesmente um embaraço Ela busca fluxos de ondas causais e não se assusta uma vez que a vida assim os mostra ao encontrálos múltiplos Os fatos históricos são por essência fatos psicológicos5 É portanto em outros fatos psicológicos que encontram geralmente seus antecedentes Sem dúvida os destinos humanos inseremse no mundo físico e sofrem sua influência Aí mesmo porém onde a intrusão dessas forças exteriores parece mais brutal sua ação não é exercida senão orientada pelo homem e seu espírito O vírus da Peste Negra foi a causa primordial do despovoamento da Europa Mas a epidemia só se propagou tão rapidamente em razão de certas condições sociais portanto em sua natureza profunda mentais e seus efeitos morais explicamse apenas pelas predisposições particulares da sensibilidade coletiva6 Entretanto só existe psicologia da consciência clara Lendo certos livros de história acreditaríamos a humanidade composta unicamente de vontades lógicas para quem suas razões de agir jamais teriam o menor segredo Diante do estado atual das pesquisas sobre a vida mental e suas obscuras profundezas isso é uma prova a mais da eterna dificuldade por parte das ciências de permanecerem exatamente contemporâneas umas das outras É também repetir ampliando o erro porém tão frequentemente denunciado da velha teoria econômica Se u homo oeconomicus não era uma sombra vã apenas porque supunhamno ocupado exclusivamente com seus interesses a pior ilusão consistia em imaginar que pudesse fazer de seus interesses uma ideia tão nítida Nada mais raro do que um desígnio já dizia Napoleão A pesada atmosfera moral em que nos encontramos mergulhados neste momento será que a estimaremos capaz de marcar em nós apenas o homem de decisões sensatas Falsearíamos gravemente o problema das causas em história se o reduzíssemos sempre e em toda parte a um problema de motivos Que curiosa antinomia aliás nas atitudes sucessivas de tantos historiadores Tratase de se assegurar que um ato humano aconteceu realmente Eles não poderiam colocar tantos escrúpulos nessa investigação Passam às razões desse ato A mínima aparência os satisfaz fundada geralmente num desses apotegmas de psicologia banal que não são nem mais nem menos verdadeiros que seus contrários Dois críticos de formação filosófica Georg Simmel na Alemanha François Simiand na França divertiramse ao colocar a nu algumas dessas petições de princípio Os hébertistas escreve um historiador alemão concordaram de início completamente com Robespierre porque ele se dobrava a todos os seus desejos depois se afastaram dele porque o julgavam poderoso demais É observa em substância Simmel subentender as duas proposições seguintes um benefício provoca o reconhecimento não se gosta de ser dominado Ora essas duas proposições não são obrigatoriamente falsas sem dúvida Mas nem obrigatoriamente corretas tampouco Pois não poderíamos sustentar com igual verossimilhança que uma submissão tão pronta às vontades de um partido provoque nele mais desprezo por essa fraqueza do que gratidão e além disso já se viu algum ditador pelo temor que seu poder inspira calarse à menor veleidade de resistência Um escolástico dizia da autoridade que ela tem um nariz de cera que se dobra indiferentemente para a direita ou para a esquerda Do mesmo modo pretensas verdades psicológicas de senso comum O erro no fundo é análogo àquele em que se inspirava o determinismo geográfico hoje definitivamente arruinado Seja na presença de um fenômeno do mundo físico ou de um fato social as reações humanas nada têm de um movimento de relojoaria sempre engrenado no mesmo sentido O deserto seja lá o que diga Renan não é necessariamente monoteísta porque nem todos os povos que o habitam carregam a mesma alma a seus espetáculos O pequeno número dos pontos de água acarretaria em qualquer lugar o agrupamento do habitat rural e a abundância deles apenas sua dispersão se é verdade que os aldeões colocassem na frente de qualquer outra preocupação a proximidade das fontes dos poços ou dos charcos O que acontece na realidade é que preferem se reunir por questão de segurança e de ajuda mútua até por simples humor gregário ali mesmo onde todo canto de terra tem sua fonte ou então inversamente como em certas regiões da Sardenha cada um estabelecendo sua morada no centro de seu pequeno domínio aceita como preço por esse júbilo que lhes fala ao coração longos caminhos rumo à água rara Na natureza o homem não será por excelência a grande variável Não nos enganemos no entanto o erro não está em semelhante caso na própria explicação reside inteiramente em seu apriorismo Embora os exemplos até aqui não pareçam muito frequentes é possível que em determinadas condições sociais a divisão dos recursos hídricos decida antes de qualquer outra causa sobre o habitat o que é certo é que não decide necessariamente Também não é de modo algum impossível que os hébertistas tenham de fato obedecido aos motivos que lhes atribuía o historiador O erro foi considerar essa hipótese previamente como evidente É preciso provála Depois uma vez fornecida esta prova que não temos o direito de considerar evidente ou mesmo antecipadamente impraticável restava ainda aprofundando mais a análise perguntarse por que de todas as atitudes psicológicas possíveis estas se impuseram ao grupo Pois a partir do momento em que uma reação da inteligência ou da sensibilidade não for natural ela exige por sua vez caso se produza que nos esforcemos por descobrir suas razões Resumindo tudo as causas em história como em outros domínios não são postuladas São buscadas Notas Prefácio por Jacques Le Goff 1 Os grifos são meus 2 O grifo também é meu 3 LÉvolution créatrice é de 1907 Durée et simultanéité de 1922 La Pensée et le mouvant de 1914 4 No prefácio à tradução italiana de Os reis taumaturgos 1973 e no da terceira edição francesa 1983 A Lucien Febvre à guisa de dedicatória 1 Essas palavras entre parênteses objeto de uma remissão parecem ter sido mantidas ao passo que a sequência foi riscada seja por Marc Bloch seja por outra mão Eis aqui o texto na medida em que o exigiu a estrita equidade pois é quase a cada passo que é preciso citálo tanto suas declarações familiares como seus escritos mas para ser justo seria preciso estendêlas até suas declarações familiares 2 Lucien Febvre substituiu essa palavra véritablement pelo advérbio vraiment 3 Existem dois textos da Dedicatória ambos redigidos pela mão de Marc Bloch um o original que reproduzimos aqui e outro copiado em uma folha anexada a uma carta a Lucien Febvre datada de 17 de agosto de 1942 Lucien Febvre escolheu publicar esse segundo texto o qual não comporta nem o parêntese muito pouco numerosas de resto nem a vírgula antes de um vínculo a mais Introdução 1 Nota de Marc Bloch A respeito do que oponhome desde o início e sem o ter buscado à Introdução aos estudos históricos de Langlois e Seignobos A passagem que se acaba de ler já estava escrita há muito tempo quando me caiu sob os olhos na Advertência dessa obra pXII uma lista de perguntas ociosas Ali consta textualmente a seguinte Para que serve a história Sem dúvida ocorre com esse problema o mesmo que com quase todos os que concernem às razões de ser de nossos atos e nossos pensamentos os espíritos que lhes permanecem por natureza indiferentes ou que voluntariamente decidiram por tal postura dificilmente compreendem que outros espíritos vejam nisso o tema de reflexões apaixonantes Entretanto uma vez que a ocasião me é assim oferecida vale mais creio fixar desde já minha posição a respeito de um livro justamente notório ao qual o meu aliás construído sobre outro plano e em certas de suas partes muitos menos desenvolvido não pretende de forma alguma substituir Fui aluno desses dois autores e especialmente do sr Seignobos Deramme ambos preciosas demonstrações de sua boa vontade Meus primeiros estudos deveram muito a seu ensino e a sua obra Mas ambos não nos ensinaram apenas que o historiador tem como primeiro dever ser sincero tampouco dissimulavam que o próprio progresso de nossos estudos é feito da contradição necessária entre as gerações sucessivas de trabalhadores Permanecerei portanto fiel às suas lições criticandoas ali onde julgo ser útil bastante livremente como desejo que um dia meus alunos por sua vez me critiquem 2 por mais respeitáveis que sejam 3 a 4 É possivelmente em torno desse trecho que devia se situar a nota de Marc Bloch Prefácio a Accessiones Historicae 1700 Opera ed Dutens tIV2 p55 Tria sunt quae expetimus in Historia primum voluptatem noscendi res singulares deinde utilia in primis vitae praecepta ad denique origines praesentium a praeteritis repetitas cum omnia optime ex causis noscantur 5 primeiramente 6 Todo exercício intelectual habilmente conduzido não será à sua maneira uma obra de arte 7 Albert Vandal talvez tenha se reconhecido Pirenne a teria renegado 8 considerando naturalmente que a aborde armado desse espírito de reflexão crítica sem o qual nunca há verdadeiramente problemas É preciso ser dois para a obra da ciência um objeto e um homem 9 É provavelmente aqui que devia se inserir a seguinte nota de Marc Bloch Fustel de Coulanges citado por Paul Guiraud Bayle Dictionnaire verbete Renaud A história falando genericamente é a mais difícil de todas as composições que um autor pode empreender ou uma das mais difíceis e do punho de Marc Bloch uma curta menção a verificar 10 Aqui na primeira redação situase uma passagem deslocada com algumas modificações para o capítulo I na redação definitiva 11 Nota de Marc Bloch Talvez não seja inútil acrescentar ainda uma palavra de desculpas as circunstâncias de minha vida atual a impossibilidade em que me encontro de ter acesso a uma grande biblioteca a perda de meus próprios livros fazem com que deva me fiar bastante em minhas notas e em minha memória As leituras complementares as verificações exigidas pelas próprias leis do ofício cujas práticas me proponho descrever permanecem para mim frequentemente inacessíveis Será que um dia poderei preencher essas lacunas Nunca inteiramente receio Só posso sobre isso solicitar a indulgência diria assumir a culpa se isso não fosse assumir mais do que seria legítimo as culpas do destino Capítulo I A história os homens e o tempo 1 Quanto ao fundo cada um estará de acordo que falando do trabalho do historiador não será inútil começar por fazer uma ideia algo precisa do objeto de seu trabalho Mas será preciso que esse reconhecimento do terreno desemboque necessariamente numa definição em estilo de dicionário 2 Todo esse desenvolvimento em uma forma bem diferente figurava na primeira redação ao final da Introdução A passagem foi posteriormente reescrita e subsistem atualmente duas folhas manuscritas numeradas I1 e I2 que serviram para a datilografia da redação definitiva 3 e duplamente Deixemos por ora o que tem de factível o cisma que se pretende decretar entre o passado e o suposto presente 4 Sem trair Marc Bloch creio que podemos situar aqui a nota de rodapé por ele prevista Fustel de Coulanges aula inaugural de 1862 na Revue de Synthèse Historique tII 1901 p243 Michelet aula da École Normale 1829 citado por G Monod tI p127 Ocupamonos ao mesmo tempo do estudo do homem individual e isso será a filosofia e do estudo do homem social e isso será a história Convém acrescentar que Fustel mais tarde disse isso numa fórmula mais sintética e carregada cujo desenvolvimento que acabamos de ler não é senão em suma um comentário A história não é a acumulação dos acontecimentos de qualquer natureza que se tenham produzido no passado Ela é a ciência das sociedades humanas Mas isso talvez seja veremos adiante reduzir em excesso na história a parte do indivíduo o homem em sociedade e as sociedades não são duas noções exatamente equivalentes 5 interesse e 6 Lucien Febvre sublinhou 7 Lucien Febvre substituiu aquelas por origens colocou entre aspas origens da França contemporânea e sublinhou 8 Lucien Febvre colocou começo entre aspas 9 De onde fazer partir o cristianismo Da atmosfera sentimental em que se elaboraram no mundo mediterrâneo ou iraniano as religiões da salvação De Jesus De Paulo Ou das gerações que vieram se fixar nas linhas essenciais do dogma 10 do valor 11 completamente 12 Lucien Febvre creio a rasura não me parece da mão de meu pai riscou essas duas últimas frases que figuram no entanto na edição precedente 13 Este assim como os dois seguintes e uma parte do terceiro até ardentes contatos foram deslocados A passagem originalmente encontravase no 2º do capítulo I 14 aqui 15 Na primeira versão a quebra do encontravase antes dessa frase que no início do seguinte começava por Sem aliás concordarem muito bem 16 entre os quais se teria colocado evidentemente meu velho professor 17 O início desse assim como os dois precedentes na primeira versão situavamse na segunda divisão do capítulo I 18 de professor 19 mas 20 As duas primeiras frases desse sob uma forma bem diferente encontravamse na primeira redação antes da passagem sobre a natureza do presente 21 Lucien Febvre preferiu a essa frase a da primeira redação No entanto para não explicar se colocar 22 no século passado 23 e 24 Ela não deixa de continuar a comandar a via de muitas de nossas comunidades rurais 25 Todo esse foi reescrito 26 Observei em outro lugar a principal razão do espírito tradicionalista inato a quase todas as sociedades rurais é sem dúvida que as condições de trabalho 27 que por conseguinte para retomar a expressão de Michelet o atual não é jamais completamente explicável senão pelo remoto negálo equivaleria a cair num erro análogo ao do físico 28 Podese considerar que esse novo substitui uma passagem bem mais curta da primeira redação O presente e o passado se interpenetram A tal ponto que seus elos quanto à prática do ofício de historiador são de sentido duplo Se para quem quer compreender mesmo o presente a ignorância do passado deve ser funesta a recíproca embora não se esteja sempre tão nitidamente alertado não é menos verdadeira 29 Mas não sou um antiquário 30 verdadeiro 31 sob formas diversas 32 e nosso espírito 33 e imaginar 34 de estudos 35 a partir do mais recente para chegar ao mais remoto 36 de habituar para falar como Maitland os olhos ao crepúsculo antes de mergulhar na noite Capítulo II A observação histórica 1 grande 2 por sua vez numa larga medida estabelecidaos com a ajuda de informações expedidas por subalternos 3 e 4 eu mesmo 5 graças a uma introspecção ela própria de resto bem frágil 6 outra 7 tentar 8 quaisquer que fossem 9 histórico 10 Tomado nesse sentido o termo deixa de valer para nosso conhecimento dos sacrifícios sírios 11 Mas a essa primeira característica uma outra se acrescenta aqui sempre que o passado está em questão com muita frequência quando se trata do presente Ao observador é impossível provocar ele mesmo o surgimento desses vestígios 12 Na primeira redação seguiase um longuíssimo que foi suprimido nesta redação 13 Na primeira redação essas duas últimas frases eram objeto de um cuja primeira frase é Tomemos cuidado com isso entretanto 14 em resumo 15 Essa passagem começando aqui pelas palavras Mas ela não se aplica em suma senão ao indivíduo corresponde na primeira redação a um desenvolvimento muito alterado 16 livre aliás para depois submeter essa peça à crítica este é um outro aspecto do método que nos deterá no devido lugar 17 talvez 18 infelizmente sempre sem sucesso 19 somos 20 tudo 21 que eles 22 ainda 23 inclusive 24 contemporâneas 25 Essa passagem começando em Ora as sources na primeira redação situavase com variantes depois da passagem relativa a SaintSimon e aos santos da alta Idade Média 26 de toda a literatura sobre as origens da guerra 27 as instituições 28 nos 29 critica quer dizer como vamos ver 30 verdadeiramente 31 Isso é verdade para a história assim como para qualquer ciência 32 Na primeira redação encontramos este e o seguinte em duas ocasiões no capítulo I e no capítulo II com importantes alterações 33 Mais vale cem vezes uma escolha explícita e racional das perguntas 34 já tive oportunidade de indicar 35 As rotinas que falseiam assim nossa imagem do mundo merecem todos os opróbrios 36 embora geralmente desapercebida das pessoas que julgam de fora 37 ao lado de ainda muitas outras coisas 38 Aqui na primeira redação inseriase um exemplo que foi modificado e deslocado para o capítulo IV na redação definitiva 39 técnicas 40 longas e mais 41 coletâneas de textos ou de representações gráficas classificadas por natureza 42 fingindo 43 sempre 44 Se 45 na Europa católica 46 elaborada pelos 47 Renan não será creio suspeito de insensibilidade às ideias ou à poesia Escritas em 1841 suas palavras a propósito desse gênero de trabalhos permanecem sempre verdadeiras e sempre incompreendidas Afirmovos que os cerca de cem mil francos que um ministro da Educação Pública destinariam para isso seriam melhor empregados do que três quartos daqueles consagrados às letras 48 de manuscritos 49 Na primeira redação seguiase um bem curto que foi suprimido nesta redação 50 profissionalmente 51 em ordem 52 em 1790 53 Diante de tal situação não é improvável que a única saída seja finalmente renunciar ao estudo projetado 54 No exemplo que acabamos de ler o 55 detendo bruscamente a cadeia de seu destino 56 ébom 57 se perderem 58 as prescrições de 59 Algumas frases da primeira redação foram suprimidas aqui Capítulo III A crítica 1 mesmo 2 e de longa data 3 de uma outra época ou de 4 característica de uma mentalidade essencialmente tradicionalista à força de depositar sua fé no passado acabavase por inventálo 5 reação muito menos excepcional do que às vezes se imagina 6 encontrado num trem ou durante uma escala 7 Esse substitui dois da primeira redação com frases bem diferentes 8 parece 9 menos pomposamente mas 10 A folha numerada III5 começando pelas palavras propriamente ditos e terminando por em outros termos é o resultado de uma nova datilografia em um original e um carbono Ela subsiste completa no manuscrito o original com duas correções manuscritas aqui reproduzido e a cópia sem nenhuma correção manuscrita 11 submetidos à sua influência 12 é que a dúvida 13 A folha numerada III6 começando pelas palavras em suma fixadas e concluindo por Não sendo mais guiado de cima ele é resultado de uma nova datilografia em um original e uma cópia que subsistem O carbono aqui reproduzido comporta uma rasura importante que é assinalada adiante O original não comporta nenhuma correção Vamos encontrálas no Primeiro discurso sobre a história eclesiástica do padre Fleury publicado em data ilegível uma exposição bem razoável que dAlembert na Enciclopédia apenas reproduzirá 14 pouco a pouco 15 crítico 16 Aqui na primeira redação encontrase um começando pelas palavras Os primeiros eruditos e terminando com o comércio das antiguidades egípcias o na redação definitiva foi deslocado 17 espécie de 18 A folha numerada III7 começando pela palavra arriscase e terminando com o pitoresco de fancaria é resultado de uma nova datilografia em um original e um carbono O carbono aqui reproduzido comporta diversas palavras riscadas e raras correções manuscritas O original subsiste e não comporta nenhuma correção manuscrita 19 boa consciência da 20 ir 21 Tenho neste momento ao meu lado um livro interessantíssimo sobre a Alemanha antes da Reforma Assim como um químico que ao anunciar uma descoberta se recusasse a expor a experiência que o levou até ela pois diria isso aborreceria meu leitor Várias afirmações me surpreendem Sem razão talvez Gostaria de verificar isso Não posso fazêlo nem ninguém pois nenhuma indicação me permite voltar à fonte 22 A passagem que vai de tenho sob meus olhos expansão substitui um cartulário da Idade Média Certos documentos são providos de indicações cronológicas que eu deveria controlar pois encontramse talvez entre elas algumas mentirosas Para classificar por período e civilização as ferramentas dos homens préhistóricos classificação que só ela permitirá interpretar esses indícios mudos os procedimentos não são sensivelmente diferentes daqueles de um perito chamado a rastrear por exemplo as inumeráveis fabricações que o comércio das antiguidades egípcias jogam todo ano no mercado 23 Esta frase substitui três frases bem diferentes 24 A passagem correspondente é bem diferente na primeira redação 25 A fraude em geral tem outra razão de ser A história contemporânea forneceu o exemplo de uma falsificação que alguns se vangloriavam em considerar patriótica não era nada patriótica e os fatos que pretendia relatar afastavamse radicalmente da verdade 26 É preciso insistir nessa regra de bom senso Pois por banal que possa parecer ela nem sempre foi exatamente aplicada Não é a opinião que convém incriminar aqui A época não permite mais que incutamos esta máxima aos simples Está no jornal Portanto é verdade As propagandas por seus abusos destroemse a si próprias Em nossos dias as notícias da imprensa assim como as das publicações oficiais encontram nas massas uma incredulidade de princípio que para a higiene mental do país não se mostra muito menos carregada de perigos do que a cega credulidade de outrora a supor pelo menos que esta tenha sido tão generalizada como se acredita 27 Esta passagem começando aqui por Mas antes de aceitar uma peça como autêntica os eruditos substitui quatro frases bem diferentes 28 nestes termos 29 junto à Câmara de Paris 30 grandes ou pequenas 31 pessoalmente 32 Na primeira redação esta frase era bem mais concretamente desenvolvida Lembrome de pessoalmente já haver subscrito bem a posteriori um auto instalado em um liceu de província datado de um dia em que com conhecimento das autoridades que a fim de evitar uma ridícula dificuldade administrativa me ordenaram essa assinatura eu me encontrava retido em Paris por motivo de doença 33 do que nós 34 também 35 exprime uma mentalidade informa sobre as circunstâncias que a inspiraram 36 positivo 37 O curioso é que o gosto da mentira assume às vezes o aspecto de uma verdadeira epidemia coletiva 38 do manuscrito 39 crônica inglesa do pseudoIngulph comentário sobre o sítio da Bretanha atribuído ao pseudoRichard de Circencester 40 quase 41 já tive oportunidade de assinalar 42 que vemos 43 propriamente dito 44 como devia parecer por muito tempo ainda 45 por razões aliás diferentes 46 esse desmanchaprazeres 47 apenas 48 já 49 esse corajoso trabalhador 50 no entanto da fonte mais segura 51 alguns dias antes 52 cujas contribuições ao dossiê espantosamente abundante do caso PascalNewton fui obrigado para não cansar o leitor a abreviar um pouco 53 quase 54 Tais como 55 particular 56 no entanto 57 depois de um sursis 58 um pouco 59 um sincero estudo sobre as práticas da reportagem seria mais importante do que qualquer outro para a prática da história contemporânea 60 ou amplificar 61 pelo menos dentre alguns deles 62 perigosas nem mesmo entre as menos 63 toda 64 e outras análogas 65 A partir das palavras uma população cf p precedente e até que perfeito ao lado do original aqui reproduzido comportando várias correções manuscritas existe uma folha um carbono sem nenhuma correção manuscrita numerada III14 cujo texto é idêntico ao da primeira redação mas que representa uma nova datilografia 66 Podese comparar essa passagem com a exposição desses mesmos exemplos feita por Marc Bloch em Réflexions dun historien sur les fausses nouvelles de la guerre Revue de Synthèse Historique 1921 republicada na obra de March Bloch Mélanges historiques tI p42 67 ou com a segurança 68 justa 69 Tampouco a investigação judicial conseguiu determinar se o em Cluses o diretor da fábrica fez uso de sua arma antes ou depois da chuva de pedras lançada pelos grevistas 70 não era apenas espantosa 71 mais 72 Comparar esse com a passagem correspondente em Mélanges historiques p53 artigo citado nota e p101 73 aí 74 a propósito 75 Já tive oportunidade de insistir acima sobre essa epidemia de ceticismo em relação ao escrito 76 de toda ordem 77 também 78 e às vezes mesmo de aldeias ainda povoadas 79 Acrescentem naturalmente instrumentos de contatos mais distantes os licenciados em seu retorno Todavia o que eles traziam vinha do país dos civis que passava também por ser aquele da lavagem cerebral Desconfiavase muito disso 80 de certo modo 81 e intermitente 82 Não é preciso porém forçar a aproximação A guerra foi sob muitos aspectos uma espantosa experiência de regressão Mas uma regressão jamais é inteiramente completa e não se apaga de uma só vez a impressão de vários séculos de evolução mental A credulidade no falso rumor era grande entre a soldadesca de 191418 Era me pareceu de bastante curta duração Centrada antes de tudo como era natural nos acontecimentos que pareciam suscetíveis de afetar seu destino imediato a troca de guarda a mudança de setor o ataque próximo sua curiosidade não deixava por isso de ser sensivelmente mais ampla sua visão de mundo menos limitada ou menos lacunar que a do povo medieval comum O historiador já o dissemos não estuda o presente com a esperança de nele descobrir a exata reprodução do passado Busca nele simplesmente os meios de melhor compreender de melhor sentilo É do que as falsas notícias da guerra dão se não me engano um exemplo muito bom 83 A contar desse título até o final dessa redação as notas de rodapé assinalam as modificações introduzidas ao longo da única datilografia entre a versão definitiva que compreende algumas folhas manuscritas intercaladas e folhas datilografadas comportando correções manuscritas e o texto da datilografia sem correções manuscritas 84 Talvez aqui se situasse a nota de Marc Bloch Ouvi em minha juventude um ilustríssimo erudito que foi diretor da École des Chartes nos dizer com muito orgulho Dato a escrita de um manuscrito com margem de erro de aproximadamente 20 anos Esqueciase de uma coisa muitos homens escribas vivem mais de 40 anos e se as escritas às vezes se modificam com o envelhecimento raramente é para se adaptar às novas escritas correntes Deve ter havido por volta de 1200 escribas que sexagenários ainda escreviam como haviam aprendido a fazêlo em 1150 De fato a história da escrita está atrasada estranhamente em relação à da linguagem Ela espera o seu Diez ou seu Meillet 85 Neologismo 86 sem maiores preocupações 87 que a mais de 300 anos de distância na verdade mas ninguém deixará de julgar essas datas controversas 88 Esse e os sete seguintes são objeto de três folhas manuscritas numeradas III32 III33 e III34 que foram utilizadas para a datilografia e cujo texto é idêntico à datilografia não corrigida 89 com as definições que precedem 90 Esse entre colchetes foi por razões desconhecidas omitido na edição preparada por Lucien Febvre Ele figura no manuscrito em um original e um carbono ambos sem nenhuma correção manuscrita que não passam da datilografia de uma folha manuscrita numerada III37 bis cujo texto é idêntico 91 Nota de Marc Bloch Supondo que as chances de mortalidade para cada um dos dias do ano sejam iguais O que não é exato existe uma curva anual da mortalidade mas pode ser sem inconveniente postulado aqui 92 Nota de Marc Bloch Desde a morte de Columbano até nossos dias 65 papas governaram a Igreja incluindo a dupla e tripla série da época do Grande Cisma 38 se sucederam desde a morte de Inácio A primeira lista oferece 55 homônimos com a segunda onde esses mesmos nomes se repetem exatamente 38 vezes os papas tendo como se sabe o costume de assumir nomes já consagrados pelo uso A probabilidade para que os jesuatas fossem suprimidos por um desses papas homônimos era portanto de 5565 ou 1113 para os jesuítas subia a 3838 ou 1 em outras palavras tornavase certeza A probabilidade combinada é de 1113 x 1 ou 1113 Enfim 13652 ou 1133225 x 1113 dá 111731925 ou seja um pouco mais de 11157447 Para ser totalmente exato seria preciso levar em conta as durações respectivas dos pontificados Mas a natureza desse passatempo matemático cujo único objetivo é trazer à luz uma ordem de grandeza pareceume autorizar a simplificar os cálculos Esta nota de Marc Bloch subsiste em dois exemplares datilografados um original sem correções manuscritas e um carbono com algumas correções manuscritas aqui reproduzido 93 Uma folha manuscrita numerada III37 começando por esse representa a versão manuscrita que serviu para a datilografia antes das correções manuscritas Seu texto é idêntico ao aqui reproduzido 94 Aqui termina a folha manuscrita numerada III37 95 O médico real supunha ele molhando todas as vezes seu dedo antes de tocálo Capítulo IV A análise histórica 1 Três folhas manuscritas respectivamente numeradas IV2 IV3 IV4 contêm a partir das palavras que um juízo de valor até o título da segunda seção do capítulo Da diversidade dos fatos humanos à unidade de consciência o texto aqui reproduzido que serviu para a datilografia 2 Essa frase é resultado de uma correção manuscrita que figura abaixo do texto datilografado de tal modo rasurada que torna impossível sua leitura Não podemos portanto apresentar a versão antes da correção 3 Depois de alguns três ou quatro palavras estão riscadas de modo que são indecifráveis O texto datilografado legível retoma em que Além disso a palavra linhas não apresenta um caráter de certeza 4 A página datilografada numerada IV11 termina com essas palavras Falta a página IV12 de modo que se recorreu ao texto datilografado estabelecido segundo as instruções de Lucien Febvre para reconstituíla 5 Aqui termina o texto extraído do estabelecido por Lucien Febvre 6 Marc Bloch havia deixado um branco no lugar da data Retomamos a que figurava na edição precedente 7 A página datilografada numerada IV14 termina com essas palavras Falta a página IV15 Procedeuse portanto como indicado na nota 4 8 Aqui termina o texto extraído do estabelecido por Lucien Febvre 9 A página datilografa numerada IV16 termina com essas palavras Falta a página IV17 Procedeuse portanto como anteriormente 10 Aqui termina o texto extraído de Lucien Febvre 11 Essa passagem começando com Pois os fatos linguísticos é uma reescrita da que se encontrava na primeira redação no capítulo II como ilustração do desconhecimento das ciências auxiliares da história 12 Com essas palavras termina a folha manuscrita numerada IV17 começando com Nossa ciência não dispõe como a matemática utilizada para a datilografia e cujo texto é idêntico 13 A prática de juiz de instrução e do ofício de juiz obrigame aqui a trazer uma precisão na França contemporânea pelo menos o escrivão não redige o auto de um interrogatório senão materialmente este é ditado pelo juiz de instrução e muito frequentemente esse ditado é uma verdadeira traição das declarações da pessoa interrogada ou ouvida quanto à prática dos tribunais não é mais satisfatória é o escrivão quem redige o auto dos debates o mais frequentemente elíptico e com relações apenas distantes com o que verdadeiramente ocorreu na audiência 14 Tratase provavelmente de um erro de datilografia é mais possível que a palavra seja decidem 15 O manuscrito datilografado traz o número quatro romano no meio da página o que mostra que se trata de um novo desenvolvimento mas não está acompanhado de nenhum subtítulo Se cotejarmos esta lacuna com uma carta a Lucien Febvre contendo o último plano podemos formular a hipótese de um subtítulo tal como As divisões cronológicas 16 Ao passo que a datilografia estabelecida por Lucien Febvre continha a integralidade da passagem entre asteriscos sem levar em conta é verdade a cesura as edições sucessivas da obra omitiram a passagem e criaram uma nova frase Aí então a iniciativa do pesquisador conservará tradicionalmente as articulações de seu relato o que não fazia qualquer sentido Capítulo V Sem título 1 O texto integral desse capítulo figura em cinco folhas manuscritas respectivamente numeradas V1 V2 V3 V4 V5 que foram utilizadas para a datilografia o texto é idêntico ao aqui reproduzido 2 As supressões ou acréscimos indicados aqui o são em relação a uma folha manuscrita numerada V2 indefinidamente 3 Sobre a folha manuscrita o texto prossegue sem parágrafo com Mas o perigo seria elevar ao absoluto uma simples comodidade do espírito o que se tornou na versão definitiva o começo de um parágrafo Mas não se poderia sem perigo 4 O texto da folha manuscrita é mais sucinto Mas o perigo seria elevar ao absoluto uma simples comodidade do espírito 5 Uma folha manuscrita de rascunho numerada V3 começa com a frase Os fatos históricos são por essência fatos psicológicos Ela prossegue com uma redação contínua até o meio da folha com um texto próximo da redação definitiva As supressões em relação a essa folha manuscrita são aqui indicadas em nota 6 São constatações dessa ordem que arruinaram o pseudodeterminismo geográfico Às mesmas circunstâncias de clima de solo de localização peritos diversamente preparados opõem reações bem diferentes O deserto não é mais necessariamente monoteísta assim como os povos dos litorais recortados não são por uma inelutável fatalidade povos de marinheiros Título original Apologie pour lhistoire ou Métier dhistorien Tradução autorizada da edição francesa publicada em 1997 por Armand Colin de Paris França Copyright 1993 1997 Armand Colin Copyright da edição brasileira 2002 Jorge Zahar Editor Ltda rua México 31 sobreloja 20031144 Rio de Janeiro RJ tel 21 21080808 fax 21 21080800 editorazaharcombr wwwzaharcombr Todos os direitos reservados A reprodução não autorizada desta publicação no todo ou em parte constitui violação de direitos autorais Lei 961098 Este livro publicado no âmbito do programa de auxílio à publicação contou com o apoio do Ministério francês das Relações Exteriores da Embaixada da França no Brasil e da Maison française do Rio de Janeiro Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa Capa Sérgio Campante ISBN 9788537805732 Arquivo ePub produzido pela Simplìssimo Livros Simplicissimus Book Farm