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Psicologia ·

Psicologia Institucional

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2 Neste livro transcrevo simplesmente as experiências de meus pacientes que me comunicaram suas agonias expectativas e frustrações É de esperar que outros se encorajem a não se afastar dos doentes condenados mas a se aproximar mais deles para melhor ajudálos em seus últimos momentos ELISABETH KÜBLERROSS 3 Sobre a Morte e o Morrer Digitalização Revisão Formatação Restauração capas U Luis Antonio Vergara Rojas LAVRo 4 Sobre a Morte e o Morrer Elisabeth KüblerRoss Tradução Paulo Menezes Martins Fontes Título original On Death And Dying 5 Copyright by Elisabeth KüblerRoss 1969 1ª edição brasileira setembro de 1981 CIP Brasil Catalogação na Fonte Câmara Brasileira do Livro SP KüblerRoss Elisabeth 1926 K97s Sobre a morte e o morrer Elisabeth KüblerRoss tradução Paulo Menezes São Paulo Martins Fontes 1981 Bibliografia 1 Moribundos Cuidados finais 2 Morte As pectos psicológicos I Título 17 CDD15593 18 155937 17 3621 18 362110425 811171 Índices para catálogo sistemático 1 Assistência a moribundos Bemestar social 3621 17 36210425 18 2 Moribundos Cuidados finais Bemestar social 3621 17 36210425 18 3 Morte Atitudes comportamentais Psicologia 15593 17 155937 18 4 Morte Influências psicológicas 15593 17 155937 18 Produção gráfica Nilton Thomé Assistente de produção Carlos Tomio Kurata Composição Lúcia Spósito Revisão Elvira da Rocha Pinto e Ademilde Lourenço da Silva Capa Adelfo M Suzuki Foto Paulo Menezes Todos os direitos desta edição reservados à LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA Rua Conselheiro Ramalho 330340 01325 São Paulo SP Brasil 6 À memória de meu pai e Seppli Bûcher 7 Índice Agradecimentos 08 Prefácio 10 I Sobre o temor da morte 12 II Atitudes diante da morte e do morrer 22 III Primeiro estágio Negação e isolamento 50 IV Segundo estágio A raiva 62 V Terceiro estágio Barganha 95 VI Quarto estágio Depressão 98 VII Quinto estágio Aceitação 126 VIII Esperança 154 IX A família do paciente 174 X Algumas entrevistas com pacientes em fase terminal 199 XI Reações ao seminário sobre a morte e o morrer 267 XII Terapia com os doentes em fase terminal 292 Bibliografia 302 Agradecimentos Muitos foram aqueles que direta ou indiretamente cooperaram na realização deste trabalho para que eu possa agradecer a cada um em particular Um agradecimento especial dirigese ao Dr Sydney Margolin pela idéia de entrevistar pacientes em fase terminal na presença de estudantes como modelo de ensino e aprendizagem Os agradecimentos se estendem ao Departamento de Psiquiatria do Hospital Billings da Universidade de Chicago que forneceu os meios e deu condições para que o seminário fosse tecnicamente viável Aos capelães Herman Cook e Carl Nighswonger que se mostraram eficientes coentrevistadores ajudando a localizar pacientes quando era difícil encontrálos A Wayne Rydberg e seus quatro estudantes cujo interesse e curiosidade me incentivaram a superar as dificuldades iniciais À equipe do Seminário Teológico de Chicago por seu incentivo e assistência Ao Reverendo Renford Gaines e sua esposa Harriet que passaram horas sem conta revisando o manuscrito mantendo sempre acesa minha fé na validade deste empreendimento Ao Dr C Knight Aldrich que apoiou este trabalho durante mais de três anos A D Edgar Draper e Jane Kennedy que revisaram parte deste material A Bonita McDaniel Janet Reshkin e Joyce Carlson por terem datilografado os capítulos 9 A melhor maneira de agradecer aos muitos pacientes e a seus familiares talvez se expresse publicando o que me disseram Aos muitos autores que me inspiraram este trabalho e finalmente a todos aqueles que dispensaram atenção e desvelo aos doentes em fase terminal Agradeço ainda ao Sr Peter Nevraumont por ter sugerido escrever este livro e ao Sr Clement Alexandre da Macmillan Company pela paciência e compreensão enquanto o livro estava sendo feito Por último mas não menos importante meu agradecimento a meu marido e a meus filhos pela paciência e estímulo contínuos que me permitiram trabalhar em tempo integral mesmo sendo esposa e mãe E KR 10 Prefácio Quando me perguntaram se gostaria de escrever um livro sobre a morte e o morrer aceitei o desafio com entusiasmo Entretanto quando me sentei para iniciar a obra e comecei a me compenetrar da realidade o horizonte mudou Por onde começar Que assunto abordar O que posso transmitir aos desconhecidos que vão ler este livro O que posso comunicar desta experiência com moribundos Quantas coisas são ditas sem pronunciar palavras mas são sentidas vivenciadas vistas e dificilmente traduzidas verbalmente Durante os últimos dois anos e meio trabalhei junto a pacientes moribundos Este livro contará o começo desta experiência que se tornou significativa e instrutiva para quantos dela participaram Não pretende ser um manual sobre como tratar pacientes moribundos tampouco um estudo exaustivo da psicologia do moribundo É apenas um relatório de uma oportunidade nova e desafiante de focalizar uma vez mais o paciente como ser humano de fazêlo participar dos diálogos de saber dele os méritos e as limitações de nossos hospitais no tratamento dos doentes Pedimos que o paciente fosse nosso professor de modo que pudéssemos aprender mais sobre os estágios finais da vida com suas ansiedades temores e esperanças Transcrevo simplesmente as experiências de meus pacientes que me comunicaram suas agonias expectativas e frustrações É de esperar que outros se encorajem à não se afastarem dos doentes condenados mas a se aproximarem mais deles para melhor ajudálos em seus últimos momentos Os poucos que puderem realizar isso descobrirão que pode ser uma experiência gratificante para ambos aprenderão mais sobre 11 como o espírito humano age sobre os aspectos humanos peculiares à vida e haverão de sair desta experiência enriquecidos talvez até menos ansiosos quanto ao seu próprio fim E KR 12 I Sobre o temor da morte Não me deixe rezar por proteção contra os perigos mas pelo destemor em enfrentálos Não me deixe implorar pelo alívio da dor mas pela coragem de vencêla Não me deixe procurar aliados na batalha da vida mas a minha própria força Não me deixe suplicar com temor aflito para ser salvo mas esperar paciência para merecer a liberdade Não me permita ser covarde sentindo sua clemência apenas no meu êxito mas me deixe sentir a força de sua mão quando eu cair Rabindranath Tagore Colhendo frutos As epidemias dizimaram muitas vidas nas gerações passadas A morte de crianças era bastante freqüente e poucas eram as famílias que não tinham perdido um parente em tenra idade A medicina progrediu a olhos vistos nas últimas décadas A vacinação em massa praticamente erradicou muitas doenças sobretudo na Europa Ocidental e nos Estados Unidos A quimioterapia especialmente o uso de antibióticos contribuiu para que decrescesse o número de casos fatais de moléstias infecciosas A educação e uma puericultura melhor ocasionaram um baixo índice de doença e mortalidade infantil Os vários 13 males que causavam uma baixa impressionante entre jovens e adultos foram dominados Cresce o número de anciãos e com isto aumenta o número de vítimas de tumores e doenças crônicas associados diretamente à velhice Os pediatras lidam menos com situações críticas situações que ameaçam a vida contudo aumenta o número de pacientes com distúrbios psicossomáticos com problemas de comportamento e ajustamento Há mais casos de problemas emocionais nas salas de espera dos consultórios médicos do que jamais houve Entretanto os médicos cuidam de pacientes mais velhos que procuram não somente viver com suas limitações e habilidades físicas diminuídas mas também enfrentar a solidão e o isolamento com os anseios e angústias que deles advêm A maioria não consultou psiquiatras São outros os profissionais como os capelães e os assistentes sociais que têm de descobrir e suprir as necessidades desses pacientes É para eles que estou tentando delinear as mudanças ocorridas nas últimas décadas mudanças essas que afinal são responsáveis pelo crescente medo da morte pelo aumento do número de problemas emocionais e pela grande necessidade de compreender e lidar com os problemas da morte e do morrer Quando retrocedemos no tempo e estudamos culturas e povos antigos temos a impressão de que o homem sempre abominou a morte e provavelmente sempre a repelirá Do ponto de vista psiquiátrico isto é bastante compreensível e talvez se explique melhor pela noção básica de que em nosso inconsciente a morte nunca é possível quando se trata de nós mesmos É inconcebível para o inconsciente imaginar um fim real para nossa vida na terra e se a vida tiver um fim este será sempre atribuído a uma intervenção maligna fora de nosso alcance Explicando melhor em nosso inconsciente só podemos ser mortos é inconcebível morrer de causa natural ou de idade avançada Portanto a morte em si está ligada a uma ação má a um acontecimento medonho a algo que em si clama por recompensa ou castigo 14 É salutar lembrar esses fatos fundamentais condição primordial para compreender algumas mensagens muito importantes por vezes ininteligíveis de nossos pacientes Outro fator a ser compreendido é que não podemos distinguir entre o desejo e a realidade em nosso inconsciente Temos plena consciência de alguns dos nossos sonhos sem lógica onde duas proposições diametralmente opostas coexistem lado a lado perfeitamente aceitáveis nos sonhos mas ilógicas e inimagináveis quando estamos acordados Como nosso inconsciente não faz distinção entre a vontade de matar alguém pela raiva e o ato de têlo feito a criança é incapaz de discernir isto A criança que de raiva deseja que a mãe morra porque esta não satisfez seus desejos ficará muito traumatizada caso isso venha de fato a acontecer mesmo que não haja ligação alguma no tempo com seus desejos de destruição Sempre assumirá parte ou toda a culpa pela morte da mãe Sempre repetirá para si e nunca para os outros Fui eu sou responsável fui má por isso mamãe me abandonou É bom lembrar que a criança reagirá do mesmo modo se vier a perder um dos pais por causa do divórcio por separação ou abandono A criança não raro vê a morte como algo nãopermanente quase não a distinguindo de um divórcio em que pode voltar a ver um dos pais Muitos pais se lembrarão de frases ditas por seus filhos como vou enterrar meu cachorrinho agora e ele vai se levantar de novo na primavera junto com as flores Talvez tenha sido este mesmo desejo que motivou os antigos egípcios a sepultarem seus mortos juntamente com as roupas e os alimentos para que continuassem felizes e da mesma forma os antigos índios americanos que enterravam seus parentes com tudo o que lhes pertencia Quando crescemos e começamos a perceber que nossa onipotência não é tão onipotente assim que nossos desejos mais fortes não têm força suficiente para tornar possível o impossível desaparece o medo de se ter contribuído para a morte de um ente querido e por conseguinte some a culpa o 15 medo permanece subjacente mas só enquanto não for fortemente despertado Seus vestígios podem ser vistos diariamente nos corredores dos hospitais e no rosto de quem acompanha os desolados Um casal pode ter passado anos brigando mas quando um deles morre o outro arranca os cabelos lamenta chora grita bate no peito em sinal de pesar medo e angústia temendo ainda mais a própria morte acreditando ainda na Pena de Talião dente por dente olho por olho sou responsável pela morte dele em troca mereço uma morte horrível Pode ser que o conhecimento disto seja de valia na compreensão de muitos dos velhos costumes e rituais que sobreviveram aos séculos cujo objetivo é aplacar a ira dos deuses ou das pessoas conforme o caso diminuindo assim o castigo previsto Penso nas cinzas nas vestes rasgadas no véu nas carpideiras dos velhos tempos meios não só de implorar piedade para eles os chorosos como também expressões de pesar tristeza e vergonha Se alguém se aflige bate no peito arranca os cabelos ou se recusa a comer é uma tentativa de autopunição para evitar ou reduzir o esperado castigo pela culpa assumida da morte do ente querido A aflição a vergonha a culpa são sentimentos que não distam muito da raiva e da fúria O processo de aflição sempre encerra algum item da raiva Como ninguém gosta de admitir sentimentos de raiva por uma pessoa falecida estas emoções são no mais das vezes disfarçadas ou reprimidas delongando o período de pesar ou se revelando por outras maneiras É bom lembrar que não nos cabe julgar se tais sentimentos são maus ou vergonhosos mas captar seu verdadeiro sentido e origem como algo muito humano A título de ilustração retomo o exemplo da criança a criança que existe em nós A criança de cinco anos que perde a mãe tanto se culpa pelo desaparecimento dela como se zanga porque ela a abandonou deixando de atender a seus rogos Quem morre se transforma então em um ser que a criança ama e adora mas também odeia com igual intensidade por essa dura ausência 16 Os hebreus consideravam o corpo do morto como alguma coisa impura que não podia ser tocada Os antigos índios americanos falavam dos espíritos do mal e atiravam flechas ao ar para afugentálos Muitas culturas possuem rituais para cuidar da pessoa má que morre os quais se originam deste sentimento de raiva latente em todos nós apesar de não gostarmos de admitir isso A tradição do túmulo pode advir do desejo de sepultar bem fundo os maus espíritos e as pedrinhas que muitos enlutados jogam como homenagem traduzem símbolos do mesmo desejo Apesar de chamarmos de última despedida a salva de tiros num funeral militar corresponde ao mesmo símbolo ritual dos índios ao atirarem aos céus suas lanças e flechas Cito estes exemplos para ressaltar que o homem basicamente não mudou A morte constitui ainda um acontecimento medonho pavoroso um medo universal mesmo sabendo que podemos dominálo em vários níveis O que mudou foi nosso modo de conviver e lidar com a morte com o morrer e com os pacientes moribundos Tendo sido criada num país europeu onde a ciência não é tão avançada onde as técnicas modernas só agora começaram a abrir caminho no campo da medicina onde as pessoas ainda vivem como há cinqüenta anos nos Estados Unidos eu tive oportunidade de estudar uma parte da evolução da humanidade num espaço de tempo mais curto Lembrome da morte de um fazendeiro quando eu ainda era criança Ele caíra de uma árvore e não havia esperanças de sobrevivência Pediu apenas para morrer em casa desejo atendido sem maiores dramas Chamou suas filhas à cabeceira da cama e conversou particularmente com cada uma por alguns minutos Calmamente apesar das dores que sentia pôs em ordem seus negócios e distribuiu pertences e terras com usufruto para sua mulher Em seguida pediu que distribuíssem entre si o trabalho as obrigações as incumbências que eram dele até o momento do acidente Pediu a seus amigos que o 17 visitassem uma vez mais para lhes dar o seu adeus Apesar de sermos crianças naquela época não nos excluíram nem a mim nem a meus irmãozinhos Deixaram que participássemos dos preparativos da família e partilhássemos de suas dores até que o fazendeiro morreu Deixaramno então em casa no amado lar que construíra cercado de amigos e vizinhos que foram vêlo pela última vez enquanto jazia no meio de flores no lugar em que vivera e que tanto amara Hoje em dia não existe naquela cidade nem embalsamento nem velório nem retoques para simular que os mortos dormem Apenas se cobrem com ataduras os sinais de doenças desfigurantes e os mortos só são removidos de casa antes do sepultamento em casos de doenças infecto contagiosas Por que estou descrevendo estes costumes já superados Por achar que são indícios de nossa aceitação perante um acontecimento inexorável e que ajudam os pacientes moribundos e suas famílias a aceitarem a perda de uma pessoa amada Se permitem que um paciente finde seus dias no querido ambiente familiar isto requer dele menor adaptação Seus familiares conhecemno o suficiente para substituir um sedativo por um copo de seu vinho preferido ou o cheiro de uma boa sopa caseira pode lhe despertar o apetite para sorver algumas colheradas o que na minha opinião é bem mais agradável do que um chá Não menosprezo a importância dos sedativos e infusões e sei muito bem pela minha experiência de médica do interior o quanto são indispensáveis e às vezes inevitáveis Mas sei também que paciência familiares alimentação poderiam ser substitutos de um frasco de soro intravenoso ministrado pelo simples fato de atender às necessidades do corpo sem envolver muitas pessoas eou cuidados particulares de enfermagem O fato de permitirem que as crianças continuem em casa onde ocorreu uma desgraça e participem da conversa das discussões e dos temores faz com que não se sintam sozinhas na dor dandolhes o conforto de uma responsabilidade e luto compartilhados É uma preparação gradual um incentivo para 18 que encarem a morte como parte da vida uma experiência que pode ajudálas a crescer e amadurecer Isso contrasta muito com uma sociedade em que a morte é encarada como tabu onde os debates sobre ela são considerados mórbidos e as crianças afastadas sob pretexto de que seria demais para elas Costumam ser mandadas para a casa de parentes levando muitas vezes consigo mentiras nãoconvin centes de que mamãe foi fazer uma longa viagem ou outras histórias incríveis A criança percebe algo de errado e sua desconfiança nos adultos tende a crescer à medida que outros parentes acrescentam novas variantes ao fato evitam suas perguntas e suspeitas ou cobremna de presentes como um mero substituto de uma perda que não pode atingila Mais cedo ou mais tarde a criança se aperceberá de que mudou a situação familiar e dependendo de sua idade e personalidade sentirá um pesar irreparável retendo este incidente como uma experiência pavorosa misteriosa muito traumática com adultos que não merecem sua confiança e com quem não terá mais condição de se entender É igualmente insensato como aconteceu dizer que Deus levou Joãozinho para o céu por amar às crianças a uma menina que perdeu seu irmão Esta menina ao se tornar mulher jamais superou sua mágoa contra Deus mágoa que degenerou em depressão psicótica quando da perda de seu próprio filho trinta anos mais tarde Poderíamos pensar que nosso alto grau de emancipação nosso conhecimento da ciência e do homem nos proporcionaram melhores meios de nos prepararmos e às nossas famílias para este acontecimento inevitável Ao contrário já vão longe os dias em que era permitido a um homem morrer em paz e dignamente em seu próprio lar Quanto mais avançamos na ciência mais parece que tememos e negamos a realidade da morte Como é possível Recorremos aos eufemismos fazemos com que o morto pareça adormecido mandamos que as crianças saiam para 19 protegêlas da ansiedade e do tumulto reinantes na casa isto quando o paciente tem a felicidade de morrer em seu lar impedimos que as crianças visitem seus pais que se encontram à beira da morte nos hospitais sustentamos discussões longas e controvertidas sobre dizer ou não a verdade ao paciente dúvida que raramente surge quando é atendido pelo médico da família que o acompanhou desde o parto até a morte e que está a par das fraquezas e forças de cada membro da família Há muitas razões para se fugir de encarar a morte calmamente Uma das mais importantes é que hoje em dia morrer é triste demais sob vários aspectos sobretudo é muito solitário muito mecânico e desumano Às vezes é até mesmo difícil determinar tecnicamente a hora exata em que se deu a morte Morrer se torna um ato solitário e impessoal porque o paciente não raro é removido de seu ambiente familiar e levado às pressas para uma sala de emergência Qualquer um que tenha estado muito doente e necessitado de repouso e conforto se lembrará de ter sido posto numa maca sob o som estridente da sirene e da corrida desenfreada até se abrirem os portões do hospital Só quem sobreviveu a isto é que pode aquilatar o desconforto e a fria necessidade deste transporte começo apenas de um longo tirocínio duro de se suportar quando se está bem difícil de traduzir em palavras quando o barulho a luz as sondas e as vozes se tornam insuportáveis É provável também que devêssemos dar mais atenção ao paciente sob os lençóis e cobertores pôr talvez um ponto final em nossa bem intencionada eficiência e correr para segurar a mão do paciente sorrir ou prestar atenção numa pergunta O caminho para o hospital é aqui o primeiro capítulo da morte como de fato acontece com muitos É verdade que exagero um pouco na comparação com o doente que fica em casa não querendo dizer com isso que não devamos salvar vidas se puderem ser salvas mediante hospitalização mas querendo evidenciar a experiência do paciente suas necessidades e reações 20 Quando um paciente está gravemente enfermo em geral é tratado como alguém sem direito a opinar Quase sempre é outra pessoa quem decide sobre se quando e onde um paciente deverá ser hospitalizado Custaria tão pouco lembrar se de que o doente também tem sentimentos desejos opiniões e acima de tudo o direito de ser ouvido Nosso paciente hipotético acaba de chegar à sala de emergência Logo é cercado por enfermeiras pressurosas assistentes hospitalares internos residentes talvez até um técnico de laboratório para colher sangue outro técnico para fazer um eletrocardiograma Pode ser levado à sala de raio X pode ouvir sem querer as opiniões sobre seu estado as trocas de idéias ou as perguntas feitas aos familiares Pouco a pouco e inevitavelmente começa a ser tratado como um objeto Deixou de ser uma pessoa Decisões são tomadas sem o seu parecer Se tentar reagir logo lhe dão um sedativo e depois de horas de espera e conjecturas sobre suas forças é conduzido para a sala cirúrgica ou para a unidade de terapia intensiva transformandose num objeto de grande preocupação e grande investimento financeiro Pode clamar por repouso paz e dignidade mas recebe em troca infusões transfusões coração artificial ou uma traqueotomia se necessário Pode desejar que alguém pare por um instante para fazer só uma pergunta mas o que vê é uma dúzia de pessoas olhando um relógio todas muito preocupadas com as batidas de seu coração com seu pulso com o eletrocardiograma com o funcionamento dos pulmões com as secreções ou excreções mas não com o ser humano que há nele Pode querer lutar contra tudo mas será uma luta em vão pois tudo isto é feito na tentativa de que ele viva e se salvarem sua vida podem dispensar atenções à sua pessoa mais tarde Quem dispensa atenção à pessoa em primeiro lugar pode perder um tempo precioso para salvarlhe a vida Pelo menos este parece ser ou é o motivo ou a justificativa que se esconde por trás de tudo Nossa capacidade de defesa será a razão desta abordagem cada vez mais mecânica e despersonalizada E será 21 esta abordagem o meio de reprimirmos e lidarmos com as ansiedades que um paciente em fase terminal ou gravemente doente desperta em nós O fato de nos concentrarmos em equipamentos e em pressão sangüínea não será uma tentativa desesperada de rejeitar a morte iminente tão apavorante e incômoda que nos faz concentrar nossas atenções nas máquinas já que elas estão menos próximas de nós do que o rosto amargurado de outro ser humano a nos lembrar uma vez mais nossa falta de onipotência nossas limitações nossas falhas e por último mas não menos importante nossa própria mortalidade Urge talvez levantar uma questão estamos nos tornando mais ou menos humanos Embora este livro não pretenda julgar de forma alguma a verdade é que independentemente da resposta o paciente está sofrendo mais talvez não fisicamente mas emocionalmente Suas necessidades não mudaram através dos séculos mudou apenas nossa aptidão em satisfazêlas 22 II Atitudes diante da morte e do morrer Os homens são cruéis mas o homem é bondoso Tagore Pássaros errantes CCXIX Em que a sociedade contribui para a defensiva Vimos até agora como o ser humano reage à morte e ao morrer Examinando nossa sociedade perguntamonos logo sobre o que acontece com os homens numa sociedade propensa a ignorar ou a evitar a morte Quais os fatores se é que existem que contribuem para a crescente ansiedade diante da morte O que acontece num campo da medicina em evolução em que nos perguntamos se ela continuará sendo uma profissão humanitária e respeitada ou uma nova mas despersonalizada ciência cuja finalidade é prolongar a vida em vez de mitigar o sofrimento humano Um campo da medicina em que os estudantes têm possibilidade de escolha entre dezenas de tratados sobre RNA e DNA mas nenhuma experiência no simples relacionamento médicopaciente antiga cartilha de todo médico de família bemsucedido O que acontece numa sociedade que valoriza o QI e os padrões de classe mais do que a simples questão do tato da sensibilidade da percepção do bom senso no contato com os que sofrem O que acontece numa sociedade profissionalizante onde o jovem estudante de medicina é admirado pelas pesquisas 23 que faz e pelo desempenho no laboratório nos primeiros anos de faculdade mas não sabe responder uma simples pergunta que lhe faz um paciente Se déssemos ao relacionamento humano e interpessoal a ênfase que dispensamos ao ensino dos novos avanços técnicos e científicos não há dúvida de que faríamos progresso mas não se este novo conhecimento for ministrado ao estudante à custa de um contato interpessoal cada vez menor O que será de uma sociedade que concentra mais seu valor nos números e nas massas do que no indivíduo Uma sociedade em que a tendência é reduzir o contato entre professor e aluno substituindoo pelo ensino de circuito fechado de televisão pelas gravações pelos filmes instrumentos todos que atingem um maior número de estudantes mas de um modo bem despersonalizado Esta mudança de enfoque do indivíduo para a massa temse revelado mais dramática em outros setores da interação humana Se se quiser constatar será suficiente observar as transformações que ocorreram nas últimas décadas Antigamente o homem era capaz de enfrentar o inimigo cara a cara Eralhe propiciado um encontro pessoal com um inimigo visível Agora soldados e cidadãos se previnem com armas de destruição em massa que não oferecem a ninguém a possibilidade sequer a consciência de uma aproximação A destruição tanto pode cair do azul do céu e arrasar multidões haja vista a bomba de Hiroxima como pode surgir invisível sob forma de gases ou outros meios de guerra química ceifando e matando Não mais é o homem em luta por seus direitos e convicções ou em luta pela salvaguarda e honra de sua família é o país inteiro que está em guerra inclusive mulheres e crianças afetadas direta ou indiretamente sem meios de sobreviverem Eis o contributo da ciência e da tecnologia para um medo sempre crescente de destruição e por conseguinte medo da morte Surpreende então que o homem tente se defender mais Diminuindo a cada dia sua capacidade de defesa física aumentam de várias maneiras suas defesas psicológicas O homem não se pode manter sempre em contradição Não pode 24 fingir estar continuamente a salvo Se não podemos negar a morte pelo menos podemos tentar dominála Podemos fazer um racha nas pistas podemos constatar nos jornais que a morte ronda nos feriados trememos e nos alegramos ao constatar que ainda bem que não fui eu desta eu escapei Grupos de pessoas tanto os grupos de rua como os países inteiros podem usar sua identificação grupai para exprimir o medo de destruição atacando e destruindo os outros A guerra será talvez uma necessidade de defrontar a morte de conquistála de dominála para escapar dela incólume uma forma peculiar de negar nossa própria mortalidade Um de nossos pacientes condenado pela leucemia disse numa dúvida atroz Não posso morrer agora Não pode ser vontade de Deus pois Ele me salvou na Segunda Guerra Mundial quando fui baleado Uma senhora mostrava surpresa e incredulidade quanto à morte injusta de um jovem recémegresso do Vietnã que morrera num acidente de carro como se o fato de ter escapado nos campos de batalha o isentasse da morte ao voltar para casa Assim é possível vislumbrar a possibilidade de paz estudando as atitudes perante a morte nos líderes dos países naqueles que tomam decisões finais de guerra e paz entre os povos Se fizéssemos um esforço sobrehumano para encarar nossa própria morte para analisar as ansiedades que permeiam nosso conceito de morte e para ajudar os semelhantes a se familiarizarei com tais pensamentos talvez houvesse menos destruição ao nosso redor As agências de notícias bem poderiam dar sua contribuição para que o povo enfrentasse a realidade da morte evitando expressões gerais como solução da questão judaica querendo definir o massacre de milhares de homens mulheres e crianças Ou para citar um fato mais recente a tomada de uma colina no Vietnã desbaratando um ninho de metralhadoras com pesada baixa para os vietcongs bem poderia ser descrita em termos de 25 tragédia humana e perda de seres humanos de ambos os lados Há tantos exemplos em todos os jornais e outros meios de comunicação que é desnecessário enumerálos aqui Em resumo acho que com o avanço rápido da técnica e as novas conquistas científicas os homens tornaramse capazes de desenvolver qualidades novas e novas armas de destruição de massa que aumentam o temor de uma morte violenta e catastrófica Sob o ponto de vista psicológico o homem tem que se defender de vários modos contra o medo crescente da morte e contra a crescente incapacidade de prevêla e precaverse contra ela Psicologicamente ele pode negar a realidade de sua morte por um certo tempo Em nosso inconsciente não podemos conceber nossa própria morte mas acreditamos em nossa imortalidade Contudo podemos aceitar a morte do próximo e as notícias do número dos que morrem nas guerras nas batalhas e nas autoestradas só confirmam a crença inconsciente em nossa imortalidade fazendo com que no mais recôndito de nosso inconsciente nos alegremos com um ainda bem que não fui eu Se já não é possível rejeitar a morte podemos tentar dominála pelo desafio Se podemos dirigir em alta velocidade nas autoestradas se podemos regressar do Vietnã devemos então sentirnos imunes contra a morte O que ouvimos quase diariamente nos noticiários é que matamos dez vezes mais inimigos em comparação com nossas baixas É isto que queremos seja verdade a projeção de nosso desejo infantil de onipotência e imortalidade Se um país inteiro se uma sociedade inteira sofre deste medo e rejeição da morte deve lançar mão de defesas que só podem ser destrutivas As guerras os tumultos o aumento do índice de criminalidade podem ser sintomas da decrescente incapacidade de enfrentar a morte com resignação e dignidade Talvez devamos voltar ao ser humano individual e começar do ponto de partida para tentar compreender nossa própria morte aprendendo a encarar menos 26 irracionalmente e com menos temor este acontecimento trágico mas inevitável Qual o papel da religião nestes tempos de transição Antigamente havia maior número de pessoas que acreditava incondicionalmente em Deus inclusive numa vida futura onde as pessoas seriam aliviadas de dores e sofrimentos Havia uma recompensa nos céus e se tivéssemos sofrido muito na terra seríamos reconhecidos após a morte dependendo da coragem do denodo da paciência e da dignidade com que tivéssemos carregado nosso fardo O sofrimento era mais comum como o nascimento era um evento mais natural mais longo mais doloroso contudo quando a criança nascia a mãe estava desperta Havia uma finalidade e uma recompensa futura no sofrimento Hoje em dia as mães são anestesiadas na tentativa de evitar dores e agonia o parto é até programado para que o nascimento se dê no dia do aniversário de um dos pais ou não caia no dia de outro acontecimento importante Muitas mães só acordam horas depois de a criança ter nascido bastante drogadas sonolentas demais para se regozijarem com o nascimento do filho Não há muito sentido no sofrimento uma vez que se podem administrar sedativos contra dores pruridos ou outros incômodos Há muito sumiu a crença de que o sofrimento aqui na terra será recompensado no céu O sofrimento perdeu sua razão de ser Entretanto com essa mudança há menos pessoas que acreditam realmente na vida após a morte o que talvez seja por si só uma negação de nossa mortalidade Pois bem se não podemos antever a vida depois da morte temos de refletir sobre ela Se no céu não temos recompensa alguma por nosso sofrimento então o sofrimento perde a sua finalidade Se participamos das atividades paroquiais visando apenas a um contato social ou a um baile estamos nos privando do fim precípuo da Igreja isto é o de transmitir esperanças dar um sentido às tragédias terrenas e tentar captar e dar sentido aos acontecimentos dolorosos de nossa vida que de outra forma seriam inaceitáveis 27 Por mais paradoxal que seja enquanto a sociedade tem contribuído para que rejeitemos a morte a religião tem perdido adeptos entre os que acreditavam numa vida após a morte isto é na imortalidade diminuindo assim a rejeição sob este aspecto No que tange ao paciente foi uma troca desvantajosa Enquanto a rejeição religiosa ou seja a crença no significado do sofrimento aqui na terra e a recompensa no céu após a morte tem oferecido esperança e sentido a rejeição propalada pela sociedade nada disso oferece aumentando apenas nossa ansiedade contribuindo para acentuar nosso senso de destruição e agressão matar para fugir à realidade e ao confronto com nossa própria morte Uma antevisão do futuro nos revela uma sociedade em que as pessoas são cada vez mais mantidas vivas tanto com máquinas que substituem órgãos vitais como com computadores que as controlam periodicamente para ver se alguma função fisiológica merece ser substituída por equipamento eletrônico Podem ser implantados centros de processamento em número cada vez maior onde sejam coletados todos os dados técnicos e onde uma luz se acenda avisando que o paciente morreu para que o equipamento se desligue automaticamente Outros centros podem gozar de maior popularidade Neles os mortos são imediatamente congelados e levados a um edifício especial sob baixa temperatura aguardando o dia em que a ciência e a tecnologia tiverem avançado o suficiente para descongelálos e devolvêlos à vida e à sociedade a qual poderá estar tão assustadoramente superpovoada que se farão necessários comitês especiais para decidir quantos podem ser descongelados como há hoje comitês que decidem quem deve receber um órgão disponível e quem deve morrer Pode parecer horrível e inacreditável no entanto a triste verdade é que tudo isto já acontece agora Não existe lei neste país que impeça que negociantes façam dinheiro em cima do temor da morte que negue aos oportunistas o direito de propagarem e venderem a alto preço uma promessa de vida após 28 anos de congelamento Já existem tais organizações e conquanto possamos rir de pessoas que indagam se a viúva de um congelado pode receber o seguro ou contrair novas núpcias são demasiado sérias as perguntas para serem ignoradas Na realidade essas pessoas demonstram alto grau de rejeição necessário a alguns para evitar enfrentar a morte como uma realidade Parece ter chegado o momento de as pessoas de todas as profissões e religiões se unirem antes que a nossa sociedade se torne insensível a ponto de se autodestruir Agora que volvemos ao passado considerando a capacidade humana de enfrentar a morte com serenidade e vislumbramos um tanto amedrontados o futuro voltemos ao presente e indaguemos seriamente o que podemos fazer como indivíduos com relação a tudo isto O fato é que não podemos fugir de todo da tendência dos números crescentes Vivemos numa sociedade onde predomina o homem da massa em detrimento do homem como indivíduo Queiramos ou não serão maiores as classes nas faculdades de medicina O número de carros nas rodovias aumentará O número de pessoas mantidas vivas crescerá se levarmos em conta apenas o avanço no campo da cardiologia e da cirurgia cardíaca Não podemos retroceder no tempo Não podemos propiciar a todas as crianças a experiência de uma vida simples numa fazenda em estreito contato com a natureza nem a experiência do nascimento e da morte no ambiente natural da criança Os religiosos podem não conseguir que se volte a acreditar na vida depois da morte o que tornaria mais compensador o ato de morrer mesmo através de uma forma de rejeição da mortalidade num certo sentido Não podemos negar a existência de armas de destruição em massa tampouco podemos regredir de alguma forma no tempo A ciência e a tecnologia proporcionarão sempre mais transplantes de órgãos vitais e crescerá enormemente a responsabilidade das interrogações sobre a vida e a morte sobre doadores e receptores Problemas legais morais éticos e 29 psicológicos serão postos diante das gerações presente e futura que decidirão questões de vida e morte em número cada vez maior enquanto tais decisões não forem tomadas também por computadores Embora todo homem por seus próprios meios tente adiar o encontro com estes problemas e estas perguntas enquanto não for forçado a enfrentálos só será capaz de mudar as coisas quando começar a refletir sobre a própria morte o que não pode ser feito no nível de massa o que não pode ser feito por computadores o que deve ser feito por todo ser humano individualmente Todos nós sentimos necessidade de fugir a esta situação contudo cada um de nós mais cedo ou mais tarde deverá encarála Se todos pudéssemos começar admitindo a possibilidade de nossa própria morte poderíamos concretizar muitas coisas situandose entre as mais importantes o bemestar de nossos pacientes de nossas famílias e talvez até de nosso país Se pudéssemos ensinar aos nossos estudantes o valor da ciência e da tecnologia ensinando a um tempo a arte e a ciência do interrelacionamento humano do cuidado humano e total ao paciente sentiríamos um progresso real Se não fosse feito mau uso da ciência e da tecnologia no incremento da destruição prolongando a vida em vez de tornála mais humana se ciência e tecnologia pudessem caminhar paralelamente com maior liberdade para contatos de pessoa a pessoa então poderíamos falar realmente de uma grande sociedade Encarando ou aceitando a realidade de nossa própria morte poderemos alcançar a paz tanto a paz interior como a paz entre as nações O caso seguinte vivido pelo Sr P elucida o avanço médicocientífico aliado ao aspecto humano O Sr P de 51 anos de idade foi hospitalizado com rápida e progressiva atrofia muscular por esclerose lateral com envolvimento bulbar Era incapaz de respirar fora do 30 ventilador tinha dificuldade de tossir e escarrar contraíra pneumonia e a cicatriz da traqueostomia infeccionara o que o impedia também de falar sendo obrigado a guardar o leito ouvindo o som horrível do ventilador incapaz de comunicar aos outros seus pensamentos suas necessidades e sensações Talvez jamais nos aproximássemos dele se um dos médicos não tivesse pedido ajuda Veio visitarnos numa noite de sextafeira pedindo simplesmente apoio para si e não para o paciente Enquanto prestávamos atenção no que dizia ouvimos a comunicação de uma gama de sentimentos de que normalmente não se fala Na hora da internação o médico fora incumbido de cuidar desse paciente e estava muito impressionado com o sofrimento do homem Relativamente jovem tinha um distúrbio neurológico que exigia uma atenção médica particular e cuidados especiais de enfermagem para que sua vida durasse um pouco mais A mulher do paciente sofria de esclerose múltipla tendo todos os membros paralisados há três anos Ele esperava morrer durante a internação pois lhe era inconcebível a idéia de dois paralíticos morarem na mesma casa um olhando para o outro sem poderem se ajudar mutuamente Esta dupla tragédia provocou ansiedade no médico que envidava esforços sobrehumanos para salvar a vida do paciente custasse o que custasse sabendo muito bem que isso contrariava os desejos dele Seus esforços prosseguiram com sucesso mesmo depois de uma oclusão coronária que veio complicar o quadro clínico Enfrentou tudo isso com o mesmo elã com que enfrentara a pneumonia e as infecções Quando o paciente deu sinais de recuperação surgiu a pergunta E agora Ele só podia viver sob cuidados médicos com o ventilador as vinte e quatro horas do dia sem possibilidade de falar ou mover um dedo intelectualmente vivo plenamente consciente de seu estado mas impossibilitado de qualquer ação O médico captava as críticas implícitas a seu intento de salvar esse homem deduzindo a raiva e a frustração do paciente para 31 com ele O que deveria fazer Como se não bastasse já era tarde demais para mudar as coisas Quisera fazer o máximo como profissional para prolongar a vida do paciente e agora que alcançara êxito só obtivera censura cabível ou não e mágoa Decidimos tentar solucionar o conflito na presença do paciente já que era peça importante no jogo Quando expusemos a razão de nossa visita ele mostrouse interessado e visivelmente contente por ter sido incluído prova de que o considerávamos e tratávamos como uma pessoa apesar da impossibilidade de se comunicar Ao apresentar o problema pedi que balançasse a cabeça ou nos desse outro sinal se não quisesse discutir o assunto Seus olhos falaram mais do que as palavras Percebiase que lutava para dizer mais enquanto buscávamos meios que o fizessem tomar parte ativa O médico aliviado por ter partilhado suas dificuldades criou coragem e desinflou o tubo do ventilador por alguns segundos a intervalos curtos permitindo que o paciente dissesse alguma coisa Uma torrente de sentimentos inundou estas entrevistas O paciente revelou que não tinha medo de morrer mas sim de viver que não só simpatizava com o médico mas lhe pedia me ajude a viver agora que tentou salvarme com tanto empenho Paciente e médico ambos sorriam Quando puderam comunicarse a tensão que pairava no ar se esvaneceu Contei os conflitos do médico e o paciente ouviu atento Pergunteilhe de que modo poderíamos ajudálo melhor Dissenos então de seu pânico em não conseguir se comunicar seja falando seja escrevendo seja por outros meios Ficou sumamente grato por aqueles poucos minutos de esforço conjunto e de comunicação que tornaram bem menos dolorosas as semanas seguintes Mais tarde observei com prazer que o paciente até considerava a possibilidade de obter alta e planejava mudarse para a costa leste se pudesse conseguir lá o ventilador e os cuidados de enfermagem 32 Esse talvez seja o exemplo que melhor retrata a situação em que muitos jovens médicos se encontram Aprendem a prolongar a vida mas recebem pouco treinamento ou esclarecimento sobre o que é a vida Aquele paciente julgavase morto dos pés à cabeça e sua tragédia era a consciência plena de seu estado e a incapacidade de mover um dedo sequer Quando o tubo o apertava e machucava não podia nem dizer à esperança é nula que estava a seu lado as vinte e quatro horas do dia mas que não aprendera a se comunicar Em geral somos taxativos em dizer que não há mais nada a fazer e dirigimos nossa atenção mais aos equipamentos do que à expressão facial do paciente que nos pode transmitir coisas mais importantes do que as máquinas mais eficazes Quando o paciente sentia pruridos não era capaz de se mover de se coçar ou de soprar e esta impossibilidade o preocupava a ponto de assumir proporções de pânico que quase o levaram à loucura O fato de fazer regularmente uma visita de cinco minutos fez com que o paciente se acalmasse suportando melhor o incômodo Isso amenizou os conflitos do médico dandolhe um relacionamento melhor isento de culpa e de compaixão Quando notou que estes diálogos diretos e explícitos poderiam transmitir tranqüilidade e alívio continuou por sua conta servindose de nós apenas como meros catalisadores para a continuidade nas conversas Sinceramente acho que esta deveria ser a solução Não acho proveitoso que se chame um psiquiatra sempre que o relacionamento médicopaciente esteja em perigo ou que um médico não se sinta capaz ou não queira discutir problemas importantes com seu paciente Achei um ato de coragem e um sinal de grande maturidade da parte deste jovem médico admitir suas limitações e conflitos e procurar ajuda ao invés de contornar o problema e evitar o paciente Nossa meta não deveria ser dispor de especialistas para pacientes moribundos mas treinar pessoal hospitalar para enfrentar serenamente tais dificuldades e procurar soluções Estou certa de que esse médico não terá tanta perturbação e conflito ao se deparar 33 novamente com uma tragédia como esta Tentará ser médico e prolongar a vida mas levará em consideração também as necessidades do paciente discutindoas francamente com ele O nosso doente que antes de tudo era uma pessoa sentiase inabilitado para suportar a vida justamente por estar impossibilitado de fazer uso das faculdades que lhe restavam Com esforço conjugado muitas dessas faculdades podem ser despertadas se não nos assustarmos vendo alguém sofrer desamparado Talvez eu queira dizer o seguinte podemos ajudálos a morrer tentando ajudálos a viver em vez de deixar que vegetem de forma desumana O início do seminário interdisciplinar sobre a morte e o morrer No outono de 1965 quatro estudantes do Seminário Teológico de Chicago pediram minha colaboração num projeto de pesquisa que estavam desenvolvendo Deviam compilar um trabalho sobre as crises da vida humana e eles eram unânimes em considerar a morte como a maior crise que o homem enfrenta Surgiu a pergunta natural Como fazer pesquisas sobre o morrer se é impossível conseguir os dados Se eles não podem ser comprovados nem se podem fazer experiências Depois de uma pequena reunião decidimos que a melhor forma de se estudar a morte e o morrer era pedir que os pacientes em fase terminal fossem nossos professores Observaríamos os pacientes gravemente enfermos examinaríamos suas reações e necessidades avaliaríamos o comportamento dos que os cercavam e procuraríamos nos aproximar o máximo possível do moribundo Decidimos que entrevistaríamos na semana seguinte um paciente que estivesse às portas da morte Combinamos a hora o lugar e o projeto parecia não apresentar dificuldade alguma Como os estudantes não tinham experiência clínica e nenhum contato anterior com pacientes em fase terminal prevíamos 34 alguma reação emocional por parte deles Eu faria a entrevista enquanto eles ficariam ao redor da cama assistindo e observando Depois nos reuniríamos em minha sala para discutir nossas reações pessoais e as respostas do paciente Acreditávamos que fazendo muitas entrevistas como esta aprenderíamos a captar a alma dos doentes em fase terminal e suas necessidades as quais em contrapartida estávamos prontos para satisfazer na medida do possível Não tínhamos idéias preconcebidas nem havíamos lido artigos ou publicações sobre o assunto de modo que estávamos com a mente aberta para gravar apenas o que captássemos em nós e no paciente Deixamos de estudar propositadamente a cartela clínica do paciente para evitar que isso alterasse ou interferisse em nossas observações Não queríamos ter qualquer informação anterior como por exemplo qual seria a reação dos pacientes No entanto estávamos bem preparados para estudar todos os elementos depois de gravar nossas impressões Achávamos que assim compreenderíamos melhor as necessidades do enfermo e aguçaríamos nossas percepções Finalmente esperávamos que a sensibilidade dos estudantes mais amedrontados fosse atenuada pelas inúmeras comparações entre os doentes terminais de diferentes idades e formações Estávamos satisfeitos como nosso projeto e as dificuldades só surgiriam dias depois Comecei a pedir licença aos médicos dos diversos serviços e setores para entrevistar os pacientes em fase terminal As reações foram as mais variadas desde vagos olhares de descrédito até mudanças bruscas no rumo da conversa O resultado foi que não consegui uma só oportunidade de ao menos me aproximar dos pacientes Alguns médicos protegiam seus pacientes dizendo que estavam doentes demais fracos demais cansados demais ou que eram avessos a conversas outros se recusavam de chofre a tomar parte em tal projeto Em defesa deles devo justificar de algum modo essa atitude pois eu mal começara a trabalhar nesse hospital e nenhum deles 35 tivera ainda oportunidade de me conhecer ou julgar meu estilo e tipo de trabalho Não tinham garantias a não ser por mim de que os pacientes não ficariam traumatizados ou que aqueles que desconheciam a gravidade de sua doença viessem a saber de seu verdadeiro estado Além disso os médicos ignoravam minha experiência pregressa junto a moribundos em outros hospitais Quis dizer isto para mostrar suas reações o mais fielmente possível Esses médicos evitavam ao máximo falar da morte e do morrer protegendo demais seus pacientes de uma experiência traumática com uma médica desconhecida da faculdade que acabara de se juntar às suas fileiras De repente parecia não haver pacientes moribundos neste enorme hospital Meus telefonemas e visitas pessoais aos setores foram inúteis Alguns médicos diziam educadamente que iriam pensar no assunto outros que não queriam expor seus pacientes a esse tipo de entrevista pois isto iria cansálos demais Uma enfermeira numa descrença total indagou zangada se eu sentia prazer em contar a um jovem de vinte anos que ele só tinha uns quinze dias de vida E retirouse sem que eu pudesse explicar algo mais de nossos planos Afinal encontramos um paciente que nos acolheu de braços abertos Convidoume a sentar dando sinais de que estava ansioso para falar Disselhe que não o entrevistaria naquele momento mas que voltaria no dia seguinte com meus estudantes Não me achava em condições psicológicas de ponderar o que ele me dizia Fora tão difícil conseguir um paciente que eu queria ter a participação dos estudantes Não sabia que quando um paciente neste estado diz sentese aqui agora amanhã pode ser tarde demais Quando voltamos no dia seguinte encontramolo reclinado em seu travesseiro sem forças para falar Procurou inutilmente levantar os braços e murmurou Obrigado por terem tentado Morreu menos de uma hora depois guardando para si o que nos queria dizer e o que desejávamos saber tão desesperadamente Foi nossa primeira e mais dolorosa lição mas foi também o início de um seminário 36 que deveria começar como um experimento mas que resultou numa valiosa experiência para muitos Depois deste encontro os estudantes me procuraram na sala Sentíamos necessidade de falar sobre nossa experiência e comunicar nossas reações recíprocas para melhor entendêlas Esta atitude perdura até hoje Tecnicamente pouco mudou a este respeito Continuamos a visitar a cada semana um paciente em fase terminal Pedimos licença para gravar o diálogo deixando o paciente inteiramente à vontade Trans ferimonos do quarto do doente para uma pequena sala de entrevistas onde podemos ser observados e ouvidos pelo auditório sem vêlo O grupo de estudantes de teologia passou de quatro para cinqüenta o que ocasionou a instalação de uma janela de observação Quando tomamos conhecimento de um paciente com disposição para o seminário eu o abordo sozinha ou com um dos estudantes e o médicoresponsável ou com o capelão do hospital ou mesmo com ambos Depois de breve apresentação comunicamos sem rodeios a finalidade e a duração de nossa visita Digo a cada paciente que temos um grupo interdisciplinar do pessoal do hospital ansioso por aprender algo com ele Fazemos então uma pausa aguardando a reação verbal ou nãoverbal do paciente E só começamos depois que ele nos convida a falar Seguese um diálogo típico Doutora Bom dia Sr X Sou a Doutora R e este é o Reverendo N capelão do hospital O senhor está disposto a conversar um pouco Paciente Pois não queiram sentarse Doutora Estamos aqui com um pedido especial O capelão N e eu trabalhamos com um grupo de pessoas que quer aprender mais sobre os pacientes em estado grave ou desenganados Gostaria de saber se o senhor estaria disposto a responder algumas de nossas perguntas Paciente Perguntem primeiro e vejo se posso responder 37 Doutora Como está de saúde Paciente Cheio de metástases Outro paciente poderia dizer Vocês querem mesmo conversar com uma velha que está morrendo Vocês que são jovens e sadios Alguns não são muito acolhedores a princípio Começam queixandose de seu sofrimento de seu desconforto de suas mágoas até falarem de sua agonia Aí dizemos que gostaríamos que outros ouvissem exatamente isso e se não seria incômodo repetir tudo mais tarde Se o paciente estiver de acordo e o médico tiver dado ordem preparamos o doente para que seja conduzido até a sala de entrevistas Poucos são os que podem andar a maioria se locomove em cadeiraderodas alguns têm que ser transportados em macas Quando estão tomando soro ou fazendo transfusões temos o cuidado de transportar tudo para a sala Os parentes não participam embora alguns às vezes tenham sido entrevistados após o diálogo com o paciente Por princípio não queremos que nenhum dos presentes tenha informação anterior sobre o paciente Em geral ao conduzilo para a sala renovamos o propósito da entrevista salientando o seu direito de encerrar a conversa em qualquer momento que julgar necessário Uma vez mais explicamos o motivo do vidro na parede que permite que nos vejam e ouçam sem tirar o momento de privacidade com o doente privacidade essa necessária para dissipar os últimos sinais de temor e preocupação Instalados na sala a conversa flui fácil e rápida começando com informações de caráter geral até atingir revelações muito pessoais como o atestam as entrevistas gravadas algumas das quais transcritas neste livro Após cada entrevista o paciente é levado ao seu quarto e o seminário continua Nenhum paciente fica esperando nos 38 corredores Quando o entrevistador volta à sala de aula discutimos o ocorrido juntamente com os ouvintes no auditório Nossas próprias reações espontâneas vêm à tona sem preocupação de que sejam justas ou irracionais Discutimos as diversas reações tanto as emocionais como as intelectuais Discutimos as diferentes perguntas e abordagens e finalmente buscamos uma compreensão psicodinâmica de sua comuni cação Em seguida estudamos seu potencial e suas fraquezas além dos nossos em contato com esta determinada pessoa e concluímos recomendando certas atitudes na esperança de dar lenitivo aos últimos dias ou semanas do paciente Nenhum dos nossos pacientes morreu durante a entrevista O índice de sobrevivência tem variado de doze horas a alguns meses Dos últimos doentes visitados muitos ainda estão vivos enquanto outros que estavam em estado grave sentiram se melhor e voltaram para casa Alguns dentre estes não tiveram recaída e estão passando bem Ressalto isso pois estamos falando sobre a morte com pacientes que não estão efetivamente morrendo no sentido estrito Discutimos este assunto com muitos deles senão com todos porque é algo com que se defrontaram por causa de uma doença quase sempre fatal podemos interferir a qualquer instante desde o momento do diagnóstico até os instantes que precedem a morte O debate tem muitas vantagens como nos fez descobrir a experiência Tem sido de grande valia para conscientizar os estudantes quanto à urgência de considerar a morte como uma possibilidade real não só para os outros como para si mesmos Provou ser um meio eficaz de insensibilização a qual vem lenta e dolorosamente Muitos estudantes que vieram pela primeira vez desapareceram assim que terminou a entrevista Uns conseguiram agüentar uma sessão inteira mas não foram capazes de transmitir suas opiniões na hora do debate Alguns descarregaram toda sua fúria e mágoa em outros participantes no entrevistador às vezes até nos pacientes O último caso se deu entre um paciente que encarava a morte com aparente calma 39 e serenidade e um estudante seriamente preocupado com o conflito O debate mostrou que o estudante achava que o paciente estava fora da realidade ou que até fingia pois lhe era inconcebível que alguém pudesse enfrentar uma crise dessas com tamanha dignidade Outros participantes foram se identificando com os pacientes sobretudo quando eram da mesma idade e tinham de tratar de tais conflitos durante ou depois do debate Assim que os participantes do grupo começaram a se entrosar e descobrir que nada era tabu as discussões se transformaram numa espécie de terapia de grupo com muitos desabafos sinceros muita ajuda mútua e às vezes com análises e descobertas dolorosas Os pacientes quase nem percebiam o impacto e os efeitos duradouros que estas conversas produziam nos muitos e mais diversos estudantes Dois anos depois de ter sido criado esse seminário passou à categoria de curso na Escola de Medicina e no Seminário de Teologia É freqüentado também por inúmeros médicos visitantes por enfermeiras ajudantes de enfermagem assistentes hospitalares assistentes sociais padres rabinos terapeutas de inalação e ocupação e vez por outra por membros da faculdade Os estudantes de medicina e de teologia que o freqüentam como um curso regular participam também de uma aula teórica ministrada ora pela autora ora pelo capelão do hospital onde são tratadas questões teóricas filosóficas morais éticas e religiosas Todas as entrevistas são gravadas ficando à disposição dos estudantes e professores Ao fim do bimestre cada estudante faz um trabalho sobre um assunto de sua livre escolha Estes trabalhos que variam desde conclusões absolutamente pessoais sobre o conceito e o medo da morte até tratados altamente filosóficos religiosos ou sociológicos sobre a morte e o morrer serão compilados numa publicação futura Para manter o sigilo é feita uma lista de todos os participantes com nomes e identidade alterados em todas as gravações transcritas 40 O seminário nasceu de um grupo informal de quatro estudantes que em dois anos aumentou para cinqüenta pessoas formado por membros de todas as profissões auxiliares No começo levavase uma média de dez horas por semana para que algum médico permitisse uma entrevista com um paciente Hoje em dia é raro irmos em busca de pacientes São os médicos os enfermeiros os assistentes sociais que nos trazem dados Muitas vezes o que é mais encorajador os próprios pacientes que participaram do seminário transmitem sua experiência a outros doentes em fase terminal que nos pedem então para tomar parte seja para nos fazerem um favor seja apenas para serem ouvidos O que nos ensinam os moribundos Contar ou não contar eis a questão Em geral ao falar com médicos capelães de hospital ou enfermeiraschefe ficamos impressionados como se preocupam com o fato de o paciente tolerar a verdade Que verdade é o que pergunto usualmente É sempre difícil encarar um paciente após o diagnóstico de um tumor maligno Alguns médicos são favoráveis a que se diga aos parentes mas escondem a realidade do paciente para evitar uma crise emocional Outros são sensíveis às necessidades de seus pacientes e obtêm êxito ao cientificálos da existência de uma moléstia séria sem lhes tirar a esperança Pessoalmente acho que esta pergunta jamais deveria ter surgido como um verdadeiro conflito A questão não deveria ser devo contar mas como vou dividir isso com meu paciente Tentarei explicar esta atitude nas páginas seguintes Para tanto tenho que detalhar cruamente as várias experiências dos pacientes ao se defrontarem com o conhecimento súbito de seu fim Como salientamos antes o homem não tende a encarar abertamente seu fim de vida na terra só ocasionalmente e com certo temor é que lançará um olhar sobre a possibilidade de sua 41 própria morte Não resta dúvida de que uma dessas ocasiões é a consciência de que sua vida está ameaçada por uma doença O simples fato de um paciente ser informado de que tem câncer já o conscientiza de sua possível morte Dizse freqüentemente que as pessoas relacionam um tumor maligno com doença fatal encarando ambos como sinônimos Basicamente é verdade Pode ser uma bênção ou uma maldição dependendo de como se orientem o paciente e a família nesta situação melindrosa O câncer para muitos ainda é uma moléstia fatal a despeito do número crescente de curas reais ou de remissões significativas Creio que deveríamos criar o hábito de pensar na morte e no morrer de vez em quando antes que tenhamos de nos defrontar com eles na vida Se não fizermos assim o diagnóstico de câncer no seio da família irá nos lembrar brutalmente de nosso próprio fim Portanto pode ser uma bênção aproveitar o tempo da doença para refletir sobre a morte e o morrer em relação a nós mesmos independentemente de o paciente encontrar a morte ou ter a vida prolongada O médico que puder falar sem rodeios com os pacientes sobre o diagnóstico de um tumor maligno não o relacionando necessariamente à morte iminente estará prestando um grande serviço Ao mesmo tempo deve deixar portas abertas à esperança sobretudo quanto ao uso de novos medicamentos novos tratamentos novas técnicas e pesquisas O importante é comunicar ao paciente que nem tudo está perdido que não vai abandonálo por causa de um diagnóstico que é uma batalha que têm de travar juntos paciente família e médico não importando o resultado final Esse doente não temerá isolamento abandono rejeição mas continuará confiante na honestidade de seu médico certo de que se algo houver a ser feito é juntos que o farão Esta aproximação é reconfortante inclusive para a família que não raro se acha demasiado impotente diante de tais situações Todos dependem muito do conforto verbal ou não do médico Sentemse encorajados ao saber que se fará todo o possível senão para prolongar a vida ao menos para aliviar o sofrimento 42 Se uma paciente aparece com um caroço na mama um médico atencioso deve preparála para um eventual tumor maligno e dizerlhe por exemplo que uma biópsia vai revelar a real natureza do tumor Pode falar com antecedência da necessidade de uma cirurgia total caso o tumor seja maligno Esta paciente terá mais tempo de se preparar para a eventualidade de um câncer e por conseguinte para aceitar a cirurgia se necessário Quando a paciente acordar da operação o doutor poderá dizerlhe Sinto muito mas tivemos de fazer uma cirurgia total Se a paciente responder Graças a Deus era benigno poderá acrescentar Gostaria que fosse verdade e sentarse por alguns momentos silenciosamente sem querer sair correndo Durante vários dias a paciente pode fingir não conhecer a verdade Seria desumano um médico forçála a aceitar a realidade quando ela diz claramente não estar pronta ainda para ouvir O fato de ele ter avisado uma vez será suficiente para manter a confiança no médico Mais tarde quando a paciente se sentir mais forte e com coragem de afrontar a eventual confirmação de que sua doença é fatal deve procurar o médico Outra paciente poderá reclamar Que horror quanto tempo ainda tenho de vida doutor O médico pode então explicar o quanto se tem conseguido nos últimos anos com relação ao prolongamento do curto período de vida desses pacientes e falar da possibilidade de uma cirurgia adicional que tem mostrado bons resultados Pode também dizer francamente que ninguém sabe quanto tempo viverá Acho que especificar o número de meses ou anos de vida é a pior conduta com qualquer paciente por mais forte que ele seja De qualquer modo estas informações são inexatas e as exceções constituem a regra portanto não vejo razão alguma para leválas em consideração É raro haver necessidade de informar um chefe de família do pouco tempo de vida que lhe resta para que ponha em ordem seus negócios Nestes casos acho até que um médico compreensivo e cauteloso pode comunicar a seu paciente que é melhor pôr em ordem suas coisas enquanto dispõe de tempo e força em vez de ficar esperando É provável que este paciente 43 capte a mensagem implícita enquanto for capaz de manter acesa a chama da esperança que todo e qualquer paciente deve manter inclusive os que dizem que estão prontos para morrer Nossas entrevistas têm demonstrado que todos os pacientes conservam uma porta aberta à possibilidade de continuarem vivendo e nenhum deles sustentou o tempo todo que não queria viver mais Quando perguntávamos aos nossos pacientes como é que tinham vindo a saber de sua doença mortal observávamos que todos eles haviam tomado conhecimento de uma forma ou de outra ora sendo avisados abertamente ora não mas que dependia em grande parte de o médico dar a notícia de uma maneira que fosse aceita Qual seria esta maneira Como um médico distingue o paciente que quer ouvir a notícia de chofre do que prefere uma longa explicação científica ou do que foge do assunto a todo custo Como fazer quando não conhecemos bem o paciente antes de tomarmos estas decisões A resposta depende de dois fatores O mais importante é a atitude que assumimos e a capacidade de encarar a doença fatal e a morte Se isto constitui um grande problema em nossa vida particular se a morte é encarada como um tabu horrendo medonho jamais chegaremos a afrontála com calma ao ajudar um paciente Falo em morte de propósito mesmo que se tenha apenas de responder se um tumor é maligno ou não O tumor maligno está sempre associado à idéia de morte iminente a uma natureza destrutiva de morte e detona sempre todas as emoções Se não somos capazes de encarar a morte com serenidade como podemos ajudar nossos pacientes Esperamos então que os doentes não nos façam este terrível pedido Despistamos falamos de banalidades do tempo maravilhoso lá fora e se o paciente for sensível fará nosso jogo falando da primavera que virá mesmo sabendo que para ele a primavera não vem Estes médicos quando interpelados dirão que seus pacientes não querem saber a verdade que nunca perguntaram qual era ela e 44 acham que tudo está bem De fato sendo médicos sentemse grandemente aliviados por não terem de enfrentar a verdade desconhecendo totalmente o mais das vezes que foram eles que provocaram esta atitude em seus pacientes Os médicos que não se sentem ainda à vontade mas se mostram avessos a essas discussões podem pedir que o capelão ou o sacerdote conversem com o paciente Pode ser que se sintam melhor transferindo a outrem o pesado encargo o que talvez seja melhor do que ignorar completamente Por outro lado pode ser que fiquem tão ansiosos que dêem ordens expressas para o capelão e o pessoal nada comunicarem ao paciente O grau de franqueza ao dar estas ordens revela a ansiedade dos médicos mais do que gostariam de reconhecer Outros há que não têm quase dificuldade em tratar deste assunto e encontram um número bem menor de pacientes que não desejam falar de sua doença grave Sei por intermédio de muitos pacientes com quem tenho conversado que os médicos que têm necessidade de negála encontram a mesma negação em seus pacientes enquanto aqueles que são capazes de falar sobre a doença terminal encontrarão seus pacientes mais aptos a reconhecêla e enfrentála A necessidade de negação é diretamente proporcional à necessidade de negação por parte do próprio médico Mas isto é somente a metade do problema Descobrimos também que diversos pacientes reagem diferentemente a tais notícias dependendo de sua personalidade do estilo e do modo de vida pregressos As pessoas que de um modo geral se servem da rejeição como principal defesa tendem a valerse dela mais do que outras Pacientes que enfrentaram com mente aberta situações penosas no passado tendem a agir do mesmo modo na presente situação É portanto de grande valia entrosarse com um novo paciente para bem aquilatar suas potencialidades e fraquezas Eis um exemplo disso A Sra A de trinta anos de idade pediunos que fôssemos visitála durante sua internação Era uma senhora baixa obesa pseudoalegre que nos falava sorridente de 45 seu linfoma benigno Já fizera vários tratamentos incluindo cobalto e mostarda nitrogenada que se sabe no hospital serem aplicados em tumores malignos Sentiase familiarizada e inteirada de sua doença após ter lido muito sobre ela De repente ficou chorosa e contou uma história um tanto patética de como o médico lhe falara do linfoma benigno ao receber o resultado da biópsia Linfoma benigno perguntei com uma certa expressão de dúvida na voz aguardando silenciosamente uma resposta Por favor digame se é benigno ou maligno pediu ela começando a contar a história de uma tentativa frustrada de engravidar sem ao menos esperar por minha resposta Durante nove anos esperara ter um filho submeterase a todos os testes possíveis e chegara até a ir a uma agência querendo adotar uma criança Sua intenção foi rejeitada por várias razões primeiro porque estava casada há apenas dois anos e meio segundo talvez por causa de sua instabilidade emocional Não foi capaz de aceitar o fato de não poder sequer adotar uma criança Eila agora no hospital sendo obrigada a assinar uma autorização para tratamento radioterápico onde se lia explicitamente que isto provocava esterilidade tornandoa definitiva e irreversivelmente incapaz de gerar uma criança Isto era inaceitável apesar de ela ter assinado a autorização e ter se submetido aos trabalhos preliminares para o tratamento Seu abdômen fora demarcado e deveria iniciar o tratamento na manhã seguinte Depreendi desta conversa que ela não estava ainda preparada para aceitar a situação Perguntara sobre o tumor maligno mas não esperara a resposta Disserame que não aceitava o fato de não ter filhos apesar de ter aceitado o tratamento radioterápico E continuou falando demorada mente de seu desejo frustrado olhando fixamente para mim a dúvida estampada em seus olhos Disselhe que poderia falar mais de sua incapacidade de encarar a doença e menos na inabilidade de enfrentar a esterilidade Que eu poderia entender que ambas as situações eram difíceis mas 46 não desesperadoras Fui embora prometendo voltar no dia seguinte após o tratamento Indo para a radioterapia ficou confirmado o que já se pensava de sua moléstia maligna mas esperava ainda que o tratamento a curasse Durante as visitas informais subseqüentes quase visitas sociais a conversa girava em torno de crianças e de sua doença Durante essas sessões tornavase cada vez mais chorosa desmanchando sua aparência pseudoalegre Queria descobrir um botão mágico que fizesse desaparecer seus temores livrandoa da pesada opressão no peito Mostravase seriamente preocupada com a nova colega que viria para o quarto preocupada até a morte como dizia porque a doente estava em fase terminal Como naquela ala o pessoal de enfermagem era muito compreensivo comunicou seu medo e acabou sendo companheira de uma mulher jovem e animada que era um grande alívio para ela As enfermeiras aconselharam que chorasse quando tivesse vontade em vez de sorrir o tempo todo conselho que a paciente acatou Tinha o condão de escolher as pessoas com quem falar sobre sua doença e as menos dispostas para ouvir suas conversas sobre bebês O corpo de enfermagem ficava surpreso vendo o conhecimento e a habilidade com que discutia realisticamente seu futuro Um dia depois de alguns encontros proveitosos a paciente perguntou à queimaroupa se eu tinha filhos Respondi que sim ao que ela deu por encerrada a visita dizendose cansada As visitas seguintes foram permeadas de mágoa referências descorteses ao pessoal da enfermagem aos psiquiatras a todos até admitir invejar os jovens e as pessoas saudáveis especialmente a mim que parecia ter tudo Quando percebeu que apesar de ser uma paciente às vezes um tanto difícil ninguém a desprezava compenetrouse da origem de sua raiva transferindoa diretamente contra Deus por permitir que ela morresse tão jovem e tão frustrada Por sorte o capelão do hospital não 47 era um homem rigoroso mas bastante compreensivo e conversava com ela quase nos mesmos moldes que eu até que o sentimento de raiva cedeu lugar a uma depressão e quem sabe a uma aceitação definitiva de seu destino Até hoje a paciente conserva essa dicotomia em relação ao seu problema principal Aos olhos dos outros ela se mostra uma mulher em conflito por causa da esterilidade comigo e com o capelão fala do significado de sua curta existência e da esperança que alimenta com motivos óbvios de prolongála Seu maior temor no momento em que estou escrevendo é a perspectiva de que seu marido venha a se casar com outra mulher capaz de lhe dar filhos mas logo confessa sorrindo Ele não é o Xá do Irã apesar de ser um grande homem Ela não dominou ainda completamente sua inveja pelos que vivem O fato de não precisar reafirmar uma rejeição ou de dirigila para outro problema trágico porém mais aceitável faz com que conviva mais satisfatoriamente com sua doença Outro exemplo de problema do tipo contar ou não contar é o do Sr D Ninguém tinha certeza se ele sabia ou não da natureza de sua doença mas a equipe estava convencida de que o paciente desconhecia a gravidade de seu estado pois não permitia que ninguém se aproximasse dele Jamais perguntava sobre sua saúde e vivia com um ar de desconfiança para com a equipe As enfermeiras eram capazes de apostar que ele jamais aceitaria um convite meu para trocar idéias sobre esse assunto Prevendo dificuldades aproximeime hesitante e perguntei simplesmente Como vai de saúde Cheio de câncer foi a resposta O problema era que ninguém lhe havia dirigido ainda uma pergunta simples e direta Interpretavam seu semblante austero como uma porta fechada De fato a ansiedade deles impedia que descobrissem o quanto o paciente desejava dividir sua dor com outros seres humanos Se uma doença maligna é apresentada como uma doença sem esperança provocando algo como o que adianta nada mais 48 se pode fazer começa um período difícil para o paciente e para quantos o rodeiam O enfermo sentirá um crescente isolamento uma perda de interesse por parte do médico e uma falta de esperança cada vez maior Pode piorar a olhos vistos ou mergulhar numa depressão profunda de onde será difícil emergir a menos que alguém lhe incuta um sentimento de esperança As famílias de tais pacientes podem transmitir sentimentos de pesar e inutilidade de desespero e desânimo nada acrescentando ao bemestar do paciente Ele pode passar o curto espaço de tempo que lhe resta numa depressão mórbida ao invés de tirar proveito para uma experiência enriquecedora o que freqüentemente ocorre quando o médico age como já foi descrito Devo ressaltar que a reação do paciente não depende única e exclusivamente de como o médico lhe conta No entanto é fator importante o modo como uma notícia má é comunicada fator este muitas vezes subestimado a que se deveria dar maior atenção durante o ensino da medicina ou a supervisão de residentes Resumindo acho que a pergunta formulada não deveria ser Conto ao paciente mas sim Como partilhar o que sei com o paciente O médico deveria antes examinar sua atitude pessoal frente à doença maligna e à morte de modo a ser capaz de falar sobre assuntos tão graves sem excessiva ansiedade Deveria prestar atenção nas dicas que lhe dá o paciente possibilitando extrair dele boa disposição para enfrentar a realidade Quanto mais gente envolvida com o paciente souber do diagnóstico do tumor maligno mais cedo ele perceberá o seu verdadeiro estado pois são poucos os atores capazes de conservar no rosto por muito tempo uma máscara aceitável de animação A maioria dos pacientes senão todos acabam descobrindo de um modo ou de outro Percebem quando se dá uma mudança de atenções descobrem pelo jeito diferente com que deles se aproximam pelas vozes baixas por se evitarem comentários pelo rosto choroso de um parente ou pelo modo gentil e sorridente de 49 algum familiar que não consegue disfarçar seus reais sentimentos Os pacientes fingem não saber quando médicos e parentes são incapazes de revelar o verdadeiro estado de saúde e dão graças a Deus quando alguém se decide a contar deixando que mantenham suas defesas durante o tempo que sentirem necessidade Quer se diga claramente ao paciente ou não ele tomará conhecimento de algum modo podendo até perder a confiança em algum médico que lhe contou uma mentira ou deixou de ajudálo a enfrentar a gravidade de sua doença dandolhe tempo de deixar seus negócios em ordem Saber compartilhar uma notícia dolorosa com um paciente é uma arte Quanto mais simples o modo de dar a notícia mais fácil é para o paciente ponderar depois se não quiser ouvila no momento Nossos pacientes apreciaram mais quando receberam a notícia na intimidade de um pequeno quarto do que no corredor de uma clínica movimentada O que mais os confortava era o sentimento de empatia mais forte do que a tragédia imediata da notícia Era a reafirmação de que se faria todo o possível de que não seriam largados de que havia tratamentos válidos de que sempre havia um fio de esperança até mesmo nos casos mais avançados Se se puder comunicar a notícia deste jeito o paciente continuará depositando confiança no médico que disporá de tempo para controlar as diferentes reações facilitando a luta contra esta nova e difícil situação de vida Nas páginas seguintes tentamos resumir o que aprendemos de nossos pacientes moribundos no sentido de lidar com os vários mecanismos durante uma doença incurável 50 III Primeiro estágio negação e isolamento O homem se entrincheira contra si mesmo Tagore Pássaros errantes LXXIX Ao tomar conhecimento da fase terminal de sua doença a maioria dos mais de duzentos pacientes moribundos que entrevistamos reagiu com esta frase Não eu não não pode ser verdade Esta negação inicial era palpável tanto nos pacientes que recebiam diretamente a notícia no começo de suas doenças quanto naqueles a quem não havia sido dita a verdade e ainda naqueles que vinham a saber mais tarde por conta própria Uma de nossas pacientes descreveu um longo e dispendioso ritual como dizia ela para assumir sua negação Estava convicta de que as radiografias haviam sido trocadas pediu que confirmassem o seu relatório clínico pois não poderia ter sido devolvido tão cedo e talvez tivessem marcado com seu nome o relatório de outro paciente Como nada disso foi confirmado pediu imediatamente para deixar o hospital e procurou outro médico na vã esperança de conseguir uma explicação melhor para meus problemas Esta paciente andou de médico em médico obtendo de uns respostas confortadoras de outros a confirmação da suspeita anterior Confirmada ou não reagia sempre do mesmo modo exames e reexames admitindo parcialmente que o primeiro diagnóstico estava correto mas não deixando de dar outras interpretações na esperança de que a primeira conclusão fosse de fato um erro nem perdendo 51 contato com um médico para ajudála a qualquer momento como dizia Esta negação ansiosa proveniente da comunicação de um diagnóstico é muito comum em pacientes que são informados abrupta ou prematuramente por quem não os conhece bem ou por quem informa levianamente para acabar logo com isso sem levar em consideração o preparo do paciente A negação ou pelo menos a negação parcial é usada por quase todos os pacientes ou nos primeiros estágios da doença ou logo após a constatação ou às vezes numa fase posterior Há quem diga Não podemos olhar para o sol o tempo todo não podemos encarar a morte o tempo todo Esses pacientes podem considerar a possibilidade da própria morte durante um certo tempo mas precisam deixar de lado tal pensamento para lutar pela vida Dou grande ênfase a isso porque encaro como uma forma saudável de lidar com a situação dolorosa e desagradável em que muitos desses pacientes são obrigados a viver durante muito tempo A negação funciona como um párachoque depois de notícias inesperadas e chocantes deixando que o paciente se recupere com o tempo mobilizando outras medidas menos radicais Entretanto isso não significa que o mesmo paciente não queira ou não se sinta feliz e aliviado em poder sentarse mais tarde e conversar com alguém sobre sua morte próxima Este diálogo deverá acontecer conforme a conveniência do paciente quando ele e não o interlocutor estiver preparado para enfrentar e deve terminar quando o paciente não puder mais encarar os fatos voltando a assumir sua posição anterior de negação A ocasião em que se dá o diálogo não vem muito ao caso Não raro somos acusados de falar da morte com pacientes em estado grave quando o médico acha muito justamente que não estão morrendo Sou a favor de falar sobre a morte e o morrer com pacientes bem antes que isso ocorra de fato desde que o paciente o queira Um indivíduo saudável e forte pode tratar melhor do assunto e ficar menos espantado com a aproximação da morte estando ainda a quilômetros de 52 distância do que estando às portas como observou com tanta propriedade um nosso paciente Além disso é mais fácil para a família discutir esses assuntos em tempos de relativa saúde e bemestar cuidando da segurança financeira das crianças e dos demais enquanto atua ainda o chefe da casa Adiar este tipo de conversa não beneficia o paciente mas serve para nos pôr na defensiva Comumente a negação é uma defesa temporária sendo logo substituída por uma aceitação parcial A negação assumida nem sempre aumenta a tristeza caso dure até o fim o que ainda considero uma raridade Entre os nossos duzentos pacientes em fase terminal encontrei apenas três que rejeitaram até o último instante a aproximação da morte Duas dessas mulheres falaram brevemente sobre o morrer referindo se a ele apenas como um incômodo inevitável que felizmente acontece durante o sono para acrescentar em seguida espero que venha sem dor Depois destas afirmações retomaram a posição anterior de negação da doença A terceira paciente também uma solteirona de meiaidade adotara a negação durante a maior parte de sua vida Era portadora de um grande e visível tipo de câncer ulcerado da mama mas recusou tratamento até pouco antes de morrer Devotava grande fé na Christian Science apegandose à sua crença até o último dia Apesar de sua negação um lado seu deve ter enfrentado a realidade da doença pois afinal aceitara a hospitalização e pelo menos parte do tratamento que lhe foi oferecido Quando a visitei pouco antes da cirurgia programada referiuse à operação como a extirpação de parte da ferida para sarar mais facilmente Deixou bem claro que só se interessava por detalhes da hospitalização que nada têm a ver com minha ferida As visitas seguintes revelaram que ela evitava toda e qualquer comunicação do pessoal hospitalar que poderia acabar com a sua negação isto é falar sobre o seu câncer adiantado À medida que enfraquecia fazia uma maquiagem cada vez mais grotesca A princípio era discreta com um leve batom vermelho 53 nos lábios e pouco ruge nas faces tornandose aos poucos tão berrante e vermelha que ela mais parecia um palhaço Quanto mais se aproximava o fim mais sua roupa adquiria extravagância e colorido Nos últimos dias evitava olharse no espelho mas continuava a maquiarse exageradamente na tentativa de encobrir sua crescente depressão e a rápida deterioração do olhar Indagada se podíamos fazer alguma coisa por ela respondia Voltem amanhã Não dizia Deixemme em paz ou Não me aborreçam deixando aberta a possibilidade de que amanhã poderia ser o dia em que não teria mais defesas tornando obrigatória a ajuda Suas últimas palavras foram Acho que não agüento mais E morreu menos de uma hora depois A maioria dos pacientes não se serve da negação por muito tempo Podem conversar rapidamente sobre a realidade de seu estado e de repente demonstrar incapacidade de continuar encarando o fato realisticamente Como sabemos então quando um paciente não quer mais enfrentar a situação Ele pode falar sobre assuntos importantes para sua vida pode comunicar idéias fantásticas acerca da morte ou da vida depois da morte uma negação em si só para mudar de assunto minutos mais tarde quase contradizendo o que dissera antes Ouvilo neste momento é comparável a ouvir um paciente que sofre de pequeno malestar nada tão sério que ameace sua vida Aí tentamos entender as dicas e temos certeza de que este é o momento em que o paciente prefere voltarse para coisas mais atraentes e alegres Deixamos então que sonhe com coisas mais felizes ainda que pouco prováveis Tivemos vários pacientes que sonhavam com situações aparentemente impossíveis mas que para nossa surpresa se tornaram realidade O que quero ressaltar é que em todo paciente existe vez por outra a necessidade da negação mais freqüente no começo de uma doença séria do que no fim da vida Posteriormente esta necessidade vai e volta e o ouvinte sensível perspicaz ao notar isso deixa que o paciente faça uso de suas defesas sem se conscientizar de suas contradições Em geral só muito mais 54 tarde é que o paciente lança mão mais do isolamento do que da negação É quando fala de sua morte de sua doença de sua mortalidade e imortalidade como se fossem irmãs gêmeas coexistindo lado a lado encarando assim a morte sem perder as esperanças Em suma a primeira reação do paciente pode ser um estado temporário de choque do qual se recupera gradualmente Quando termina a sensação inicial de torpor e ele se recompõe é comum no homem esta reação Não não pode ser comigo Como somos todos imortais em nosso inconsciente é quase inconcebível reconhecermos que também temos de enfrentar a morte Dependendo de como se diz ao paciente do tempo de que dispõe para se conscientizar gradualmente do inevitável desfecho e de como se preparou durante a vida para lutar em situações de sucesso aos poucos ele se desprenderá de sua negação e se utilizará de mecanismos de defesa menos radicais Constatamos também que muitos de nossos pacientes usaram da negação diante de membros da equipe hospitalar que tinham de empregar esta forma de tática por razões próprias Tais pacientes podem ser exigentes demais ao escolher entre os familiares ou a equipe hospitalar as pessoas com quem possam discutir assuntos ligados à sua doença ou sua morte iminente enquanto fingem melhora aos olhos daqueles que não suportam a idéia do seu passamento É possível que aí esteja a razão da discrepância de opiniões quanto à necessidade de o paciente saber de sua doença mortal A breve descrição do caso da Sra K é um exemplo de uma paciente que fez uso acentuado da negação por um longo período de tempo e ilustra o modo como a tratamos desde a internação até a morte que se deu vários meses depois A Sra K era uma mulher de seus vinte e oito anos de cor branca católica mãe de duas crianças em idade préescolar Foi hospitalizada com uma doença grave no fígado Para mantêla viva eram necessários exames de laboratório diários e um regime muito cuidadoso 55 Soubemos que ela visitara a clínica dois dias antes de ser internada e que lhe haviam dito que não existia mais esperança de recuperação A família informou que a paciente ficara arrasada até que uma vizinha garantiu que sempre havia uma esperança e a aconselhou a visitar um centro onde muitos já haviam sido curados A paciente pediu o parecer do pároco que lhe disse para não participar das sessões de cura No outro dia após a visita à clínica era um sábado a paciente foi ao centro e logo sentiuse maravilhosamente bem No domingo sua sogra a encontrou em transe com as crianças como que abandonadas sem comida sem qualquer cuidado e o marido trabalhando fora Marido e sogra levaramna para o hospital e saíram sem que o médico pudesse falar com eles A paciente solicitou a presença do capelão do hospital para contarlhe uma boa notícia Entrando no quarto foi recebido com euforia Oh padre foi maravilhoso Fui curada Vou mostrar aos médicos que Deus vai me curar Estou bem demais agora E referindose ao conselho do pároco não escondeu sua insatisfação ao dizer até mesmo minha igreja não entende como Deus age A paciente era um problema para os médicos pois não aceitava de modo algum sua doença preocupandose muito com sua alimentação de vez em quando empanturravase a ponto de entrar em estado comatoso outras vezes seguia as prescrições à risca Daí o motivo de uma consulta psiquiátrica Quando a examinamos mostravase animada de modo forçado ria e gargalhava repetindo que estava completamente boa Percorria as alas visitando pacientes e o pessoal da enfermagem tentando arrecadar dinheiro para presentear um médico em quem depositara inteira confiança o que em parte revelava certa conscientização de sua condição atual Continuava sendo um caso difícil de ser tratado pela relutância quanto ao regime e à medicação 56 não se comportando como uma paciente Sua confiança no próprio bemestar era inabalável querendo confirmação a todo instante Conversando com seu marido vimos nele um homem simples e pouco emotivo que acreditava piamente ser melhor sua mulher viver menos tempo mas estando em casa ao lado das crianças do que ter seu sofrimento prolongado com uma longa hospitalização custos sem fim e todos os altos e baixos da doença crônica Não participava dos problemas dela separando nitidamente seus sentimentos do contexto de seus pensamentos Confessou a impossibilidade de ter um ambiente estável em seu lar pois trabalhava à noite deixando as crianças sozinhas durante a semana Ouvindoo e nos colocando em seu lugar pudemos compreender que só poderia enfrentar sua presente situação de forma muito desapegada Fomos incapazes de relatarlhe algumas das necessidades dela na esperança de que sua empatia diminuísse nela o desejo de negação facilitando assim um tratamento mais eficaz Deixou a sala como se tivesse cumprido um dever compulsório incapaz de mudar de atitude Visitamos a Sra K a intervalos regulares Gostava de nossos batepapos que giravam em torno do seu diaadia e de suas necessidades Foi enfraquecendo paulatinamente e durante uns quinze dias só cochilava e segurava minha mão sem falar muito Depois disso foi ficando cada vez mais confusa desorientada imaginando um quarto cheio de flores perfumadas trazidas por seu marido Quando ficou mais lúcida propusemoslhe que fizesse artesanato para que o tempo passasse mais depressa Sozinha no quarto passou a maior parte das últimas semanas de portas fechadas com poucas enfermeiras indo visitála uma vez que não havia muito o que fazer Justificavam esse afastamento com frases como estas Ela está muito confusa para entender e Nem sei o que dizer com as idéias loucas que ela tem 57 Sentindo aumentar o isolamento e a solidão muitas vezes tirava o fone do gancho só para ouvir uma voz Foi obrigada a seguir uma dieta sem proteínas o que a fazia sentir fome e perder muito peso Sentavase na cama segurando pacotinhos de açúcar e dizia Este açúcar vai acabar me matando e quando me sentava a seu lado ela dizia segurando minha mão Suas mãos são tão quentes Espero que esteja perto de mim quando eu sentir mais frio E deu um suspiro significativo Ela e eu sabíamos que a partir daquele momento a negação não tinha mais razão de ser Estava pronta para pensar e falar de sua morte pedindo apenas o conforto de uma companhia e que não sentisse muita fome na fase final Foi só o que falamos ficamos caladas por alguns momentos e quando já ia retirarme fez com que eu prometesse voltar trazendo comigo uma jovem e formidável terapeuta ocupacional que a ajudasse a confeccionar uns objetos de couro para sua família para que se lembrassem dela A equipe hospitalar os médicos as enfermeiras os assistentes sociais os capelães não sabem o que perdem evitando estes pacientes Se estamos interessados no comportamento humano nas adaptações e nas defesas de que os seres humanos lançam mão para enfrentar essas dificuldades não existe melhor lugar para aprender Ficando lado a lado ouvindo retornando mais vezes mesmo que o paciente não tenha vontade de falar no primeiro ou no segundo encontro logo se desenvolve um sentimento de confiança pelo fato de se encontrar ai alguém solícito disponível e assíduo Quando sentem que devem falar abrem a alma e participam sua solidão às vezes com palavras outras com pequenos gestos e comunicações nãoverbais No caso da Sra K nunca tentamos romper sua negação jamais a contradissemos quando nos assegurava seu bemestar Só a aconselhávamos a que tomasse os remédios e continuasse a dieta se quisesse voltar ao convívio das crianças Havia dias em que se empanturrava de comida não 58 permitida sofrendo duas vezes mais nos dias seguintes Isso era inadmissível e o dissemos francamente Era parte da realidade que não poderíamos negar junto a ela De certa forma dissemos implicitamente que estava gravemente enferma Não o dissemos explicitamente porque era óbvio que não estava em condição de aceitar a verdade naquele estágio da doença Só muito mais tarde depois de passar por um estado de letargia comatosa por retraimentos extremos por estados de confusão e desilusão com o amor e o carinho de seu marido expressos nas flores é que criou forças para encarar a realidade de seu estado e pedir comida mais saborosa e companhia nos últimos instantes o que certamente não viria de sua família Rememorando este longo e significativo relacionamento concluo que só foi possível porque a paciente sentiu que respeitávamos ao máximo seu desejo de não aceitar a doença Nunca quisemos julgar qualquer tipo de problema que ela levantasse Claro que para nós era bem mais fácil pois nos colocávamos na posição de visitantes sem responsabilidade pelo equilíbrio de seu regime nem obrigação de estar a seu lado o dia inteiro passando de uma experiência frustrante para outra Continuamos a visitála mesmo quando se mostrava completamente fora de si não se lembrando sequer de nossas fisionomias nem do papel profissional que desempenhávamos Ao longo dos fatos vejo que o trabalho persistente e contínuo do terapeuta que lidou suficientemente com o seu próprio complexo de morte é que ajuda o paciente a vencer a ansiedade e o medo da morte iminente A Sra K pediu em seus últimos dias no hospital a presença de duas pessoas uma a terapeuta com quem mal trocara algumas palavras na época só segurando sua mão de vez em quando e demonstrando cada vez menos preocupação com comida dor ou desconforto A outra a terapeuta ocupacional que a ajudara a esquecer a realidade por algum tempo fazendo que se sentisse uma mulher criativa e produtiva confeccionando objetos que deixaria para sua família pequenos sinais talvez de imortalidade 59 Sirvome deste exemplo para mostrar que nem sempre afirmamos explicitamente que o paciente está de fato em fase terminal Antes de mais nada tentamos descobrir as necessidades dele tentamos nos certificar de suas forças de suas fraquezas e procuramos comunicações abertas ou sutis para avaliar se um paciente quer encarar a realidade em determinado momento Esta paciente excepcional sob muitos aspectos deixou bem claro desde o começo que era essencial a negação para que continuasse equilibrada Embora no hospital muitos a considerassem uma pessoa claramente psicótica os testes demonstraram que permanecia intato seu senso de realidade a despeito das manifestações em contrário Percebemos com isso que ela não podia aceitar a necessidade de sua família de vêla morta o mais cedo possível era incapaz de reconhecer a proximidade de seu fim quando mal começava a curtir seus filhos e agarravase desesperadamente ao apoio dado pelo curandeiro que a convencera de sua excelente saúde Entretanto outra parte dela estava bem consciente de sua doença A paciente não brigava para deixar o hospital aliás acomodouse muito bem lá Cercouse de várias coisas pessoais como se fosse viver ali por longo tempo Nunca deixou o hospital Aceitou também nosso regulamento Comia o que lhe era prescrito com algumas exceções quando exagerava Reconheceu mais tarde que não podia viver com tantas restrições e que o sofrimento era pior do que a morte Podese encarar o fato de comer excessivamente alimentos não recomendados como uma tentativa de suicídio na medida em que teriam levado a um rápido desfecho caso o pessoal do hospital não interviesse com tanto vigor De certa forma esta paciente demonstrou uma oscilação entre a negação quase total de sua doença e a tentativa contínua de provocar a própria morte Rejeitada pela família desconsiderada ou ignorada pelo pessoal do hospital tornouse figura de causar pena cabelos em desalinho sentada à beira da cama desesperadamente só discando o telefone para ouvir um ruído qualquer Encontrou refúgio passageiro na ilusão de 60 beleza flores e carinho que não podia obter na vida real Não tendo uma formação religiosa sólida para ajudála a atravessar a crise foram necessários semanas e meses de companhia o mais das vezes silenciosa para ajudála a aceitar a morte sem suicídio e sem psicose Até nossas reações diante desta jovem mulher foram as mais diversas No começo havia uma descrença total Como podia fingir ser tão saudável quando sua alimentação era cheia de restrições Como podia continuar no hospital submetendo se a todos aqueles testes se estava realmente certa de seu bemestar Logo percebemos que não podia suportar estas perguntas e continuamos tentando conhecêla melhor falando de coisas menos dolorosas O fato de ser jovem e animada de ter filhos ainda pequenos e uma família que não a amparava muito contribuiu em nossas tentativas de ajudála apesar de sua negação renitente Deixamos que negasse o quanto fosse necessário para sua sobrevivência e ficamos à sua disposição durante o tempo em que esteve internada Quando os funcionários do hospital contribuíam para isolála brigávamos com eles e estabelecemos como norma que a porta ficasse aberta só para encontrála fechada na visita seguinte Depois que nos familiarizamos mais com o caráter particular da paciente passamos a estranhálo menos e a encontrar sentido nas atitudes compreendendo melhor a necessidade que as enfermeiras sentiam de evitála Mais para o fim tornouse um assunto pessoal como um sentimento de ter em comum uma língua estrangeira com alguém incapaz de se comunicar com os outros Não resta dúvida de que nos envolvemos profundamente com essa paciente bem além do envolvimento normal do hospital Analisando as razões de tal envolvimento convém dizer que era uma expressão de nossa frustração diante da incapacidade de fazer com que a família assumisse seu papel junto a esta patética paciente A raiva que tínhamos talvez tenha surgido da vã expectativa de uma visita reconfortante do marido E quem sabe a necessidade de nos querer multiplicar 61 nessas circunstâncias talvez fosse expressão de um desejo inconsciente de que não sejamos rejeitados um dia caso o destino nos reserve algo semelhante Apesar de tudo era uma mulher jovem mãe de dois filhos pequenos Voltando atrás fico a imaginar se eu não estaria um pouco preparada demais para apoiar a negação dela Isso demonstra a necessidade de examinarmos mais de perto nossas reações no trabalho pois elas se refletem no comportamento dos pacientes contribuindo até para seu bemestar ou sua piora Estarmos propensos a olhar honestamente dentro de nós mesmos é uma contribuição para nosso crescimento e maior amadurecimento Para tanto não recomendo nenhum outro trabalho senão o de lidar com pacientes idosos muito doentes ou às vésperas da morte 62 IV Segundo estágio a raiva Interpretamos o mundo erradamente e dizemos que ele nos engana Tagore Pássaros errantes LXXV Não não é verdade isso não pode acontecer comigo Se for esta nossa primeira reação diante de uma notícia catastrófica uma nova reação deve substituíla quando finalmente formos atingidos Pois é é comigo não foi engano Felizmente ou infelizmente são poucos os pacientes capazes de criar um mundo de fazdeconta onde permaneçam dispostos e com saúde até que venham a falecer Quando não é mais possível manter firme o primeiro estágio de negação ele é substituído por sentimentos de raiva de revolta de inveja e de ressentimento Surge lógica uma pergunta Por que eu Dr G um dos nossos pacientes posiciona assim a questão Acho que qualquer um em meu lugar olharia para outra pessoa e diria Pois é por que não poderia ter sido ele e isso já me passou diversas vezes pela cabeça Um ancião a quem conheço desde a infância descia a rua Tinha 82 anos de idade e como dizemos nós os mortais estava no fim da picada Reumático todo torto e sujo era o tipo da pessoa que ninguém gostaria de ser Logo o pensamento me atingiu em cheio Por que não poderia ter sido o velho Jorge em vez de mim Extraído da entrevista com o Dr G Contrastando com o estágio de negação é muito difícil do ponto de vista da família e do pessoal hospitalar lidar com o estágio da raiva Devese isso ao fato de esta raiva se propagar em todas as direções e projetarse no ambiente muitas vezes 63 sem razão plausível Os médicos não prestam não sabem que exames pedir e qual regime prescrever mantêm os pacientes nos hospitais mais do que o necessário ou não respeitam os desejos deles quanto a certos privilégios permitem que acomodem no quarto outro doente mesmo grave quando se paga tanto por um pouco de sossego e privacidade etc Na maioria das vezes as enfermeiras são alvo constante da raiva dos pacientes Tudo o que pegam pegam errado assim que deixam o quarto a campainha toca de novo nem bem se sentam para fazer o relatório para o pessoal do turno seguinte já se acende a luz de chamada quando vão arrumar a cama e fofar os travesseiros são acusadas de jamais deixálos em paz quando são deixados em paz a luz se acende de novo para que elas venham ajeitar a cama com mais conforto As visitas dos familiares são recebidas com pouco entusiasmo e sem expectativa transformandose em penoso encontro A reação dos parentes é de choro e pesar culpa ou humilhação ou então evitam visitas futuras aumentando no paciente a mágoa e a raiva O problema aqui é que poucos se colocam no lugar do paciente e perguntam de onde pode vir esta raiva Talvez ficássemos também com raiva se fossem interrompidas tão prematuramente as atividades de nossa vida se todas as construções que começamos tivessem de ficar inacabadas esperando que outros a terminassem se tivéssemos economizado um dinheiro suado para desfrutar mais tarde de alguns anos de descanso e prazer viajando ou nos dedicando a passatempos prediletos e ao final nos deparássemos com o fato de que isso não é para mim Que faríamos de nossa raiva senão extravasála naqueles que provavelmente desfrutarão de tudo isto Gente que vai e vem atarefada só nos fazendo lembrar que sequer podemos nos sustentar nas pernas Gente que só faz pedir exames desagradáveis e prolonga a internação com todas as limitações restrições e gastos e que volta para casa no fim do dia e goza a vida Gente que nos manda ficar quietos para não ter de recomeçar a transfusão ou a aplicação do soro quando sentimos vontade de pular da cama e fazer qualquer coisa para mostrar que ainda agimos de algum modo 64 A esta altura o paciente sempre se queixa para onde quer que se vire Pode ligar a televisão e ver um grupo de jovens alegres ensaiando passos de dança moderna mas que o irrita profundamente já que seus movimentos são limitados e dolorosos Pode assistir a um filme de banguebangue e ver gente ser morta a sanguefrio sob o olhar indiferente de pessoas que continuam bebendo cerveja E as compara com seus familiares ou com o pessoal do hospital Pode ouvir o noticiário cheio de reportagens de destruição guerra incêndios tragédias tão distantes dele indiferentes à luta e ao estado de um indivíduo que logo será esquecido É quando procura ter certeza de que não está sendo esquecido e levanta a voz e faz exigências e se queixa e reclama atenção talvez como um último brado Não esqueçam que estou vivo Vocês podem ouvir minha voz ainda não estou morto Um paciente que é respeitado e compreendido a quem são dispensados tempo e atenção logo abaixará a voz e diminuirá suas exigências irascíveis Saberá que é um ser humano de valor que necessita de cuidados que deixam atuar nos mais altos níveis possíveis naquilo que ele pode Será ouvido sem necessidade de explosões temperamentais será visitado sem precisar tocar a campainha com tanta insistência porque será um prazer visitálo e não uma obrigação necessária O pior é que talvez não analisemos o motivo da raiva do paciente nós a assumimos em termos pessoais quando na sua origem nada ou pouco tem a ver com as pessoas em quem é descarregada Reagindo pessoalmente a esta raiva a família ou os enfermeiros por sua vez retribuem com uma raiva ainda maior alimentando o comportamento hostil do paciente Podem evitar contato com os pacientes podem encurtar as visitas ou entrar em atritos desnecessários em defesa de sua posição ignorando que muitas vezes o problema é de somenos importância O caso do Sr X é um exemplo de raiva racional provocada pela reação de uma enfermeira Há vários meses praticamente 65 imóvel na cama acabara de receber licença para sair do ventilador durante algumas horas do dia Tivera vida muito ativa e era penoso demais viver com tantas restrições Sabia perfeitamente que seus dias estavam contados Seu maior desejo era que mudassem sempre sua posição estava paralisado até o pescoço Pediu à enfermeira que não levantasse as grades laterais da cama pois deste modo se sentia como num caixão A enfermeira que era particular mas não simpatizava muito com ele concordou em deixálas permanentemente abaixadas Ficava muito irritada quando perturbavam a sua leitura mas sabia que o doente ficaria quieto se atendesse a seu pedido Na minha última visita ao Sr X notei que ele estava furioso quando normalmente se mostrava cheio de dignidade Não cessava de repetir para sua enfermeira Você mentiu para mim encarandoa zangado e descrente Perguntei o motivo de tal desabafo Tentou explicarme que ela levantara as grades laterais da cama quando ele pedira que o erguesse um pouco para ele colocar as pernas para fora mais uma vez A enfermeira interrompeu várias vezes esta explicação para dar a sua versão da história no mesmo tom de raiva e dizia que fora obrigada a levantar as grades laterais para dar apoio conforme as ordens dele Começou uma acalorada discussão ficando patenteada nesta frase a raiva da enfermeira Se tivesse deixado as laterais abaixadas o senhor teria caído da cama e rachado a cabeça no chão Se analisarmos de novo o acontecido tentando entender sem julgar as reações notamos que ela também evitava o paciente sentandose a um canto com seus livros e procurando mantêlo quieto a todo custo Sentiase profundamente constrangida a tomar conta de um doente em fase terminal e nunca o encarava de frente nem tentava dialogar com ele Cumpria seu dever não saía do quarto mas emocionalmente afastavase dele o mais que podia Era a única maneira de essa mulher fazer o seu trabalho Seu desejo era que ele morresse rachando á cabeça no chão e exigia dele que ficasse deitado de costas calado e imóvel como se ele já estivesse num caixão Ficava indignada quando ele pedia para mudar de posição o que para ele era sinal de que ainda estava 66 vivo mas que ela pretendia negar Estava tão aterrorizada pela proximidade da morte que era obrigada a defenderse fugindo ou se isolando Seu desejo de mantêlo quieto e imóvel só reforçava o medo da imobilidade e da morte no paciente Este ficava sem ter com quem conversar só e isolado sem alguém que o compreendesse em sua agonia e crescente raiva Logo no início quando seu último pedido foi recebido com maiores restrições a prisão simbólica com as laterais levantadas sua raiva contida deu lugar a este lamentável incidente Se a enfermeira não se sentisse tão culpada por seus próprios desejos de destruição talvez tivesse sido menos teimosa e radical evitando que o incidente acontecesse e deixando que o doente externasse seus sentimentos e morresse mais tranqüilo algumas horas depois Sirvome destes exemplos para ressaltar a importância de tolerarmos a raiva racional ou não do paciente Desnecessário é dizer que isso só pode ser feito quando não se está tão temeroso portanto não tão esquivo Temos de aprender a ouvir os nossos pacientes e até às vezes a suportar alguma raiva irracional sabendo que o alívio proveniente do fato de têla externado contribuirá para melhor aceitar as horas finais Só poderemos fazer isso quando tivermos enfrentado o medo da morte os nossos desejos de destruição e nos tivermos compenetrado de nossas próprias defesas que podem interferir nos cuidados com o paciente Outro tipo de pacienteproblema é o acostumado a controlar tudo a vida inteira que reage com raiva e fúria ao se ver forçado a abandonar os controles Lembrome do Sr O que foi internado com o mal de Hodgkin causado segundo ele pela má alimentação Homem de negócios rico e bem sucedido jamais tivera problemas com comida nem fora obrigado a fazer qualquer regime para emagrecer Suas conclusões eram absolutamente irreais embora insistisse em que ele e somente ele causara esta fraqueza Continuava com esta negação apesar da radioterapia e de sua inteligência e cultura superiores 67 Afirmava que estava em suas mãos levantarse e sair do hospital no momento em que decidisse comer mais Um dia sua mulher veio ao meu consultório com lágrimas nos olhos Disseme que estava difícil para ela suportar aquilo por mais tempo Ele sempre fora um tirano mantendo controle rígido sobre seus negócios e sua vida familiar Agora que estava no hospital recusavase a transmitir aos outros as transações comerciais a serem feitas Zangavase quando ela o visitava e vociferava quando perguntava como estava ou tentava darlhe algum conselho A Sra O precisava saber como lidar com um homem dominador exigente e meticuloso incapaz de aceitar suas limitações que se recusava a compartilhar alguns fatos obrigatórios Mostramos a ela que seu marido sentia necessidade de se culpar por sua fraqueza que ele tinha de ter as situações sob controle Pensamos que numa fase em que ele perdera o controle da situação ela poderia transmitirlhe a sensação de que ele continuava controlando Não deixou de visitar diariamente seu marido mas telefonava antes para saber qual a hora mais conveniente e a duração da visita Vendo que dependia dele estabelecer a hora e a duração as visitas se tornaram breves mas eram encontros agradáveis Ela parou também de aconselhálo com relação à comida e à freqüência com que deveria levantar se reforçando a atitude com frases como esta Aposto que só você pode decidir quando vai começar a comer isto ou aquilo Ele voltou a comer mas só quando os parentes e as enfermeiras deixaram de mandar que o fizesse A equipe de enfermagem usou da mesma tática permitindo que ele controlasse certos horários para tomar soro mudar a roupa da cama etc e não há surpresa nisso ele escolheu praticamente os mesmos horários de antes sem qualquer sentimento de raiva e má vontade Sua mulher e filha passaram a gostar mais das visitas sentindo menos revolta e culpa por reações para com o marido e pai gravemente enfermo cuja 68 convivência era difícil quando estava são e quase insuportável quando ele começou a perder o controle da situação Para um conselheiro um psiquiatra um capelão ou outro membro da equipe estes pacientes são particularmente difíceis pois o tempo em geral é limitado e muito grande a carga de trabalho Quando finalmente dispomos de um momento livre para visitar pacientes como o Sr O somos recebidos com frases como esta Agora não venham mais tarde É fácil esquecêlos deixálos à margem afinal foram eles que ditaram esta atitude Tiveram sua hora e nosso tempo é limitado Entretanto os pacientes como o Sr O são os mais solitários seja porque são difíceis de lidar seja porque rejeitam de imediato qualquer ajuda só aceitandoa quando lhes é conveniente Nesse particular o rico e o bemsucedido as pessoas muito importantes e dominadoras são talvez as mais pobres nestas circunstâncias pois estão prestes a perder todo o conforto que tinham antes No fundo somos todos iguais mas os Srs O da vida não podem admitir isso Lutam até o fim e não raro perdem a oportunidade de aceitar humildemente a morte como um desenlace inevitável Provocam rejeição e raiva e apesar de tudo são os mais desesperados de todos A entrevista seguinte nos dá um exemplo de raiva num paciente moribundo A irmã I era uma jovem freira que fora novamente hospitalizada com o mal de Hodgkin Tratase da transcrição verbal de uma discussão entre o capelão a paciente e eu durante sua undécima hospitalização A irmã I era uma paciente irascível e exigente hostilizada por muitos dentro e fora do hospital devido a seu comportamento À medida que aumentava sua incapacidade de fazer as coisas o problema se tornava mais crucial especialmente para a equipe de enfermagem Durante a hospitalização acostumouse a ir de quarto em quarto visitando os pacientes gravemente enfermos tentando conhecer suas necessidades Em seguida postavase diante da mesa das enfermeiras exigindo atenção para estes pacientes provocando 69 nelas um ressentimento por esta interferência e comportamento indevidos Ela mesma estava muito doente por isso não a admoestavam pela atitude inaceitável mas demonstravam o ressentimento com visitas cada vez mais breves ao seu quarto evitando contato rareando os encontros As coisas pareciam ir de mal a pior Quando assumimos o caso todos se mostraram aliviados por alguém querer tomar conta da irmã I Perguntamoslhe se queria participar do nosso seminário e tomar parte em nossos debates e conclusões ao que se mostrou solícita em atender A conversa seguinte se deu alguns meses antes de ela morrer Capelão Hoje de manhã discutimos um pouco sobre a finalidade de nossa conversa É do conhecimento de todos que os médicos e as enfermeiras se interessam muito em saber como atender melhor aos doentes gravemente enfermos Não digo que a senhora tenha se tornado parte integrante daqui mas muita gente a conhece Não tínhamos andado nem trinta metros pelo corredor e já quatro pessoas diferentes haviam parado para cumprimentála Paciente Pouco antes de o senhor chegar a arrumadeira que estava encerando o chão abriu a porta só para dizerme Olá Eu nunca a tinha visto antes Achei isso sensacional E acrescentou Eu só queria ver como você era risos não sei por quê Doutora Para ver uma freira no hospital Paciente Talvez para ver uma freira acamada ou porque tivesse me visto ou ouvido minha voz no corredor ou ainda porque quisesse conversar e portanto decidira falar comigo Não sei ao certo mas tive essa impressão Ela só me disse isso Eu só queria dizer olá Doutora Desde quando a senhora está no hospital Dê um resumo dos acontecimentos Paciente Desta vez faz praticamente onze dias 70 Doutora E quando chegou Paciente Segundafeira à noite da outra semana Doutora Mas a senhora já esteve aqui antes Paciente Esta é a décima primeira vez que me interno Doutora Onze internações desde quando Paciente Desde 1962 Doutora A senhora já foi hospitalizada onze vezes desde 1962 Paciente Sim Doutora Sempre por causa da mesma doença Paciente Não O primeiro diagnóstico foi em 1953 Doutora Hum O que diagnosticaram Paciente Mal de Hodgkin Doutora Mal de Hodgkin Paciente Mas este hospital dispõe do aparelho de radiação de alta potência que o nosso não tem E depois na época em que fui internada havia a questão do diagnóstico se fora correto ou não nos anos anteriores Fui ao médico daqui e em cinco minutos confirmouse o que eu tinha isto é o que eu já disse Doutora Mal de Hodgkin Paciente Sim embora outros médicos tenham examinado as radiografias e achado que não seja isso Na última internação eu apresentava erupções pelo corpo todo Não só erupções mas feridas mesmo porque eu coçara as partes irritadas Posso dizer que estava coberta de feridas Sentiame como uma leprosa e eles achavam que eu estava com problemas psicológicos Quando disselhes que portava o mal de Hodgkin pensaram que meu problema psicológico fosse exatamente eu insistir em ter este mal Não sentindo mais os nódulos do passado acreditaram que haviam sido debelados pela radiação e me disseram que agora não tinha mais nada Foi quando 71 eu disse que nada mudara pois sentia os mesmos sintomas de antes Então um deles perguntoume o que eu achava Respondilhe Acho que tudo isto se relaciona com o mal de Hodgkin E ele Você está absolutamente certa Naquele instante ele me devolvia o amorpróprio Percebi ter encontrado alguém que me ajudaria sem tentar me convencer de que eu não estava doente realmente Doutora No sentido Gravação ininteligível Isso era psicossomático Paciente Bem pois é foi uma boa jogada acreditar que o problema era que eu pensava ter o mal de Hodgkin O fato é que não sentiram nenhum caroço no abdômen que um flebograma revela facilmente mas a radiografia ou as apalpações não Foi uma experiência infeliz mas tive de suportála é tudo o que posso dizer Capelão Mas a senhora ficou aliviada Paciente É justamente isso o que quero dizer Fiquei aliviada porque nenhum problema se resolveria enquanto se pensasse que eu estava emocionalmente doente até que provei que minha doença era física Não podia discutir isso com mais ninguém nem ter sossego pois sentia que não acreditavam que estivesse doente Vocês me entendem tinha quase que esconder minhas feridas e lavava o mais que podia as minhas roupas manchadas de sangue Sentiame repelida Estou certa de que esperavam que resolvesse os meus próprios problemas Doutora A senhora é enfermeira profissional Paciente Sim Doutora Onde trabalha Paciente No hospital S T Quando tudo começou eu acabara de ser substituída na Direção do Serviço de Enfermagem Já fizera seis meses do programa de mestrado quando decidiram que retomasse o ensino de Anatomia e Fisiologia Quis recusar pois haviam incluído Química e 72 Física nos cursos e já fazia dez anos que estudara Química e a atual era completamente diferente Mandaramme fazer um curso intensivo de Química Orgânica e eu fui reprovada Era a primeira vez na vida que isso me acontecia Meu pai morreu naquele ano e os negócios estavam indo à falência porque os três irmãos não chegavam a um acordo sobre quem deveria prosseguir os negócios Isso me amargurou bastante porque não imaginava que pudesse existir rivalidade numa família Pediram que vendesse minha parte Fiquei impressionada até em herdar parte dos negócios da família Tudo me fazia acreditar que eu não tinha importância que podia ser substituída no trabalho que devia começar a ensinar uma matéria para a qual não estava preparada Percebi que eram muitos meus problemas psicológicos Esta situação durou durante todo o verão Em dezembro quando senti febre e calafrios e então já começara a lecionar achei tão difícil e me sentia tão doente que tive mesmo de pedir para ir consultar um médico Depois disso nunca mais voltei ao médico Esforçavame ao máximo Precisava ter certeza de que os sintomas fossem tão objetivos e a febre tão alta que não seria necessário convencer ninguém Antes que começassem a cuidar de mim Doutora O que está dizendo é bem diferente do que costumamos ouvir Em geral o paciente prefere rejeitar sua doença Mas a senhora de certa forma teve de provar que estava fisicamente doente Paciente Naquela altura como não havia outra forma de obter cuidados médicos ia chegar ao ponto em que iria precisar deles desesperadamente necessitava sentirme livre para me deitar quando me sentisse arrasada É só disfarçar e ir em frente Doutora A senhora não pode solicitar alguma ajuda uma ajuda profissional quando tem um problema emocional Ou as freiras não podem ter problemas emocionais 73 Paciente Acho que tentavam me tratar sintomaticamente Não negavam aspirina mas eu sentia que nunca chegaria ao âmago da questão se não descobrisse 1 e realmente fui a um psiquiatra Disseme que eu estava emocionalmente doente porque estivera fisicamente doente durante muito tempo Tratou de mim fisicamente Insistiu para que fosse afastada do trabalho e descansasse pelo menos dez horas por dia Deume doses maciças de vitaminas E o clínico geral era o único que me queria tratar psico logicamente O psiquiatra tratou de mim fisicamente Doutora Mundo complicado este não Paciente Pois é E o medo de consultar um psiquiatra Achava que ele ia me causar um problema novo mas não Fez com que parassem de me importunar sentiam uma certa satisfação por me terem levado ao psiquiatra O tiro saiu pela culatra ele cuidou de mim exatamente como eu precisava ser cuidada Capelão Pelo clínico geral Paciente Neste ínterim já me haviam feito o tratamento radioterápico Alguns remédios que ele passara foram suspensos porque achavam que eu estava com colite O radiologista decidiu que a dor no abdômen era devida à colite E assim suspenderam os remédios Fizeram o possível para conseguir melhora mas não me deram o suficiente para acabar aos poucos com os sintomas que é o que eu teria feito Mas não podiam ver os nódulos não podiam sentilos tateavam apenas onde estava a dor Doutora Para resumir um pouco e esclarecer melhor as coisas o que a senhora está dizendo é que no tempo em que foi diagnosticado o seu mal de Hodgkin tinha também uma série de problemas Seu pai morrera quase na mesma época os negócios na família estavam a ponto 1 A paciente estava sendo acusada de fingir doença mas ela mesma estava segura de que a variedade de sintomas que sentia era causada por uma doença física Para se certificar de que tinha razão consultou um psiquiatra que confirmou suas convicções 74 de serem dissolvidos e ainda pediram para a senhora renunciar à sua parte No trabalho fora incumbida de uma função de que não gostava Paciente É isso mesmo Doutora E o prurido que é um sintoma bem conhecido do mal de Hodgkin não era nem considerado como parte de sua doença Achavam que era um problema emocional seu E o clínico geral tratou da senhora como um psiquiatra e o psiquiatra como um clínico geral Paciente Sim e me largaram sozinha Deixaram de tentar cuidar de mim Doutora Por quê Paciente Porque recusei aceitar o diagnóstico deles é ficaram esperando que readquirisse o bom senso Doutora Estou vendo Como encarou o diagnóstico do mal de Hodgkin O que isto significou para a senhora Paciente Bem logo no começo vejam bem eu diagnostiquei assim que senti fui pesquisar nos livros e contei ao médico que me disse que eu não devia pensar logo no pior Mesmo assim quando voltou da cirurgia e me contou não achei que tivesse mais que um ano de vida Embora não me sentindo muito bem tentei esquecer de algum modo e pensei Vou viver enquanto puder Mas desde que todos estes problemas começaram em 1960 nunca mais passei bem Em certas horas do dia me sentia muito mal Agora porém é fato consumado e não me dão mostras de não acreditarem que estava doente Em casa nunca disseram nada Voltei ao médico que suspendera o tratamento radioterápico e tudo o mais o qual nunca disse uma palavra sequer exceto quando surgiram outros caroços época em que ele estava de férias Quando voltou conteilhe tudo Achei que ele era sincero Outros me disseram sarcasticamente que eu jamais tivera o mal de Hodgkin que aqueles caroços eram provavelmente de origem inflamatória Era puro sarcasmo querendo 75 dizer que sabiam mais do que eu Decidimos tudo isto Aquele médico pelo menos era sincero isto é havia esperado todo aquele tempo por algo objetivo O médico daqui me disse para não esquecer que este homem tivera uns cinco casos como este em sua vida com ligeira diferença de um para o outro Realmente é um problema para mim entender tudo isso Portanto ele sempre vai telefonar para cá e perguntar ao médico sobre a dosagem e tudo o mais Tenho medo de que me trate por muito tempo porque não acho que seja o médico certo no sentido de que se não tivesse continuado a vir aqui acho que não estaria mais viva Primeiro porque não oferecemos as mesmas facilidades depois porque ele não conhece bem todos estes medicamentos Ele testa com cada paciente enquanto que aqui já experimentaram com uns cinqüenta antes de mim Doutora O que significa para você ser tão jovem e ter uma doença que lhe pode tirar a vida Talvez até em pouco tempo Paciente Não sou tão jovem assim Tenho quarenta e três anos Espero que considere isto jovem Doutora Espero que você considere isto jovem Risos Capelão Para seu bem ou para o nosso Doutora Para o meu bem Paciente Se antes pensava assim hoje não penso mais Por exemplo quando estive aqui no verão passado vi um garoto de quatorze anos morrer de leucemia Vi morrer uma criança de cinco anos Passei o tempo todo com uma moça de dezenove anos sofrendo muito vivendo frustrada por não poder ir à praia com as amigas Já vivi mais do que eles Não digo que sinto que tudo está cumprido Não quero morrer gosto da vida Não queria dizer mas senti pânico umas duas vezes quando percebi que não havia ninguém por perto ou que ninguém ia aparecer Isto quando sentia dores atrozes Não 76 incomodo as enfermeiras quando se trata de algo que eu mesma possa fazer daí eu deduzir às vezes que não sabem exatamente como estou Isto porque elas não entram e perguntam É claro que poderia usar um coçador para as costas mas como vocês sabem elas não me visitam sistematicamente nem fazem comigo o que costumam fazer com outros pacientes que acham que estão doentes Não posso arranjar um coçador para as costas Tiro o cobertor baixo a cama com a manivela Faço tudo sem ajuda mesmo que tenha de fazer devagar e às vezes até com dores Acho que é bom para mim Por isso elas não fazem acho até que ignoram como estou Passo horas pensando no fim Penso que se começar a sangrar algum dia ou entrar em choque vai ser a mulher da limpeza que vai me encontrar não a equipe de enfermagem Pois elas só entram aqui na hora dos remédios isto é duas vezes por dia a menos que eu peça um comprimido para aliviar a dor Doutora Como você se sente com relação a tudo isto Paciente Hum Doutora Como você se sente com relação a tudo isto Paciente Tudo bem exceto quando as dores eram muitas ou quando não conseguia levantarme e ninguém se oferecia para cuidar de mim Poderia pedir mas não acho que fosse necessário Penso que deveriam ter consciência de como estão seus pacientes Não estou querendo tentar esconder nada mas quando a gente procura fazer o máximo que pode ainda paga um preço por isso Houve várias ocasiões em que me sentia muito mal quando era acometida de diarréia por causa da mostarda nitrogenada ou outra coisa qualquer e jamais veio alguém verificar se eu evacuava ou perguntar quantas vezes me levantara Eu é que tenho de dizer às enfermeiras o que está errado isto é que tivera dez evacuações Ontem à noite soube que a radiografia que tirara de manhã não prestara porque fora feita com 77 excesso de bário Tive de lembrálas de que precisava tomar seis comprimidos para tirar radiografia hoje Estou ciente de tudo isso mas tenho cuidado de mim muitas vezes Pelo menos quando estou na enfermaria elas vêm perguntam e acreditam que sou uma paciente Aqui não sei se eu mesma fui a causa disso mas não me envergonho se o fui Estou contente de ter feito a mim mesma tudo o que estava ao meu alcance mas desisti um par de vezes quando senti dores intensas e ninguém atendia à campainha Desisti inclusive porque pensava que ninguém chegaria a tempo caso acontecesse alguma coisa Achava que se fazem assim comigo fazem também com os outros Antigamente quando ia visitar os outros pacientes era para descobrir o grau de suas doenças então postavame na sala da chefia de enfermagem e dizia que fulano precisava de algum analgésico e estava esperando há meia hora Doutora E as enfermeiras como reagiam Paciente Dependia A meu ver a única que se ressentiu mais foi a do turno da noite Ontem à noite uma paciente entrou no meu quarto e foi deitarse comigo na cama Acontece que eu sabia do caso e como sou enfermeira não me espantei Acendi a luz e fiquei esperando Pois bem aquela senhora saíra de sua cama pulando a proteção lateral Seria bom que tivesse uma correia para prendêla Não contei nada a ninguém Chamei a enfermeira e juntas levamos a paciente de volta para o quarto Na mesma noite outra mulher caiu da cama e como eu estava no quarto perto dela cheguei primeiro Veja cheguei bem antes da enfermeira Uma moça de aproximadamente vinte anos estava morrendo e gemia alto Resultado não pude dormir É norma deste hospital não deixar tomar comprimidos para dormir depois das três horas Não sei por que mas é assim E a gente pensa Se eu tomasse uma dose suave de hidrato de cloral não sentiria tontura amanhã só me ajudaria agora Para eles 78 as normas valem mais do que o fato de poder dormir uma ou duas horas a mais É uma norma daqui As drogas que não causam dependência são tidas na mesma conta como vocês sabem Não se pode tomálas Se o médico prescreve uma codeína e meia cada quatro horas não se pode tomar outra dose até as cinco Isto é não se pode repetir dentro das quatro horas não importa o remédio Quer se trate de droga que crie dependência quer não O conceito não muda O paciente sente dor precisa da droga Não necessariamente nas quatro horas sobretudo se é uma droga que não causa dependência Doutora Está chateada porque não há um pouco mais de atenção pessoal Cuidados pessoais É daí que vêm suas mágoas Paciente Bem não é num plano pessoal É apenas porque não entendem a dor Se tivessem tido alguma Doutora O que mais a preocupa é a dor Paciente Bem preocupome muito com os cancerosos com quem mantive contatos Lamento que tentem evitar que os pacientes se viciem quando estes não viverão o suficiente para tanto Há uma enfermeira na outra sala que até esconde a injeção por trás das costas tentando dissuadilos até o último instante Receia estar contribuindo para alguém se viciar O paciente não vai viver por muito tempo Eles têm direito a isto realmente porque não podem comer nem dormir a gente só existe quando está sofrendo muito Pelo menos com a injeção é possível relaxar viver apreciar as coisas conversar Vivese Mas o fato é que a gente aguarda desesperadamente que alguém seja caridoso e traga algum alívio Capelão A senhora tem sentido isto desde que começou a vir aqui Paciente Tenho Tenho sim Isto é notei isto Pensei que fosse próprio de certos andares por causa do mesmo grupo de 79 enfermeiras que aí trabalha É uma coisa dentro de nós que dá impressão de que não respeitamos mais a dor Capelão Como a senhora explica isto Paciente Acho que estão ocupadas Espero que seja isso mesmo Doutora Como assim Paciente Tenho andado por lá e vejoas conversando e em seguida saindo para descansar Fico furiosa Quando a enfermeira vai descansar e vem a auxiliar nos dizendo que a enfermeira está no andar de baixo com as chaves temos que esperar Quando a verdade era que o doente pedira o remédio antes mesmo que a enfermeira descesse para o café Acho que deveria haver alguém encarregado de dar o analgésico para aliviar as dores evitando que se padecesse mais meia hora antes de aparecer uma pessoa Muitas vezes levam até quarenta e cinco minutos para subirem E não vão logo tratar da gente Antes vão atender ao telefone vão verificar os novos horários e as novas orientações do médico Nunca observam antes se alguém pediu algum analgésico Doutora Para finalizar a senhora se incomodaria se eu mudasse de assunto Queria aproveitar nosso tempo para examinar outros aspectos A senhora concorda Paciente Claro Doutora A senhora disse que viu num quarto uma criança de cinco ou nove anos morrendo Como concebe isto Que fantasias tem sobre um fato assim Que quadro imagina Paciente A senhora está querendo saber como eu aceito isso Doutora É De certa forma já respondeu a esta pergunta A senhora não quer ou não gosta de ficar só No momento de crise provocada por diarréia dor ou qualquer outra coisa a senhora gostaria de ter alguém a seu lado Em outras palavras a senhora não gosta que a deixem 80 sozinha Outra coisa é a dor Tendo de morrer gostaria que fosse sem agonia sem dor e sem solidão Paciente Isto é mais do que verdade Doutora O que mais acha importante O que deveríamos considerar Não só em relação à senhora mas aos outros pacientes Paciente Lembrome de D F que ficava desesperado vendo as paredes nuas de seu quarto muito pouco atraentes A mesma enfermeira que não nos quer dar os remédios trouxe para ele uns bonitos posters da Suíça Colamos todos eles nas paredes Antes de morrer pediu a ela que os entregasse a mim Fui visitálo algumas vezes e sempre falava dos posters demonstrando com isso que significavam muito para ele Assim sendo pedi para a mãe da moça de dezenove anos que ficava com ele diariamente que trouxesse umas cartolinas e fomos pregando nas paredes de todos os quartos Não pedimos licença à supervisora mas usamos um tipo de fita adesiva que não estragava as paredes Acho que ela não gostou muito A meu ver aqui tem muita burocracia Estou certa de que belas paisagens podem lembrar devem lembrar aos outros a vida o viver quiçá Deus De fato posso ver Deus na natureza O que quero dizer é que não nos sentiríamos tão sós se tivéssemos algo que nos fizesse sentir parte da vida Para D F isso significava muito Acho que S que vivia rodeada de flores de visitantes que vinham sempre vêla de suas amigas e recebia muitos telefonemas haveria de ficar bastante aborrecida se se afastassem dela pelo fato de estar gravemente enferma Cada vez que recebia uma visita parecia reviver mesmo sofrendo dores atrozes Não podia conversar com eles como vocês sabem Fico pensando nela Minhas colegas só vêm aqui uma vez por semana às vezes nem isso De modo que a companhia que tenho é dos visitantes ou dos pacientes que visito o que me tem ajudado bastante Quando choro ou me sinto deprimida preciso fazer 81 alguma coisa para não pensar em mim e sentindo dor ou não tenho de desviar a atenção para os outros concentrandome neles Só assim consigo esquecer meus problemas Doutora O que acontece quando a senhora não consegue fazer isso Paciente Então eu sou Então preciso de gente mas ninguém aparece Doutora Pois bem eis uma coisa em que podemos ajudar Paciente É Mas nunca aconteceu Chorando Doutora Mas vai acontecer Essa é uma das metas Capelão Quer dizer que nunca vieram aqui quando a senhora precisava Paciente Só muito pouco Como já disse quando estamos doentes eles se afastam Imaginam que não queremos conversar mesmo quando não podemos responder se eles se sentam à cabeceira sentimos que não estamos sós Quero dizer seriam visitantes comuns Tomara as pessoas vissem isso e mesmo não se tratando de alguém fanático por orações oxalá só rezassem um simples Padrenosso conosco já que não pudemos rezar durante dias porque bastava dizer Padrenosso para todo o resto ficar confuso A gente passa a se lembrar de coisas que têm sentido Ouçam se nada tenho a dar aos outros deixam me de lado Se puder dar aos outros mas há muita gente que nem imagina o quanto preciso Doutora É verdade Conversa confusa Paciente E eu recebo deles quando não estou em estado crítico Recebo muito mas quando a necessidade não é muito grande Doutora Sua necessidade aumenta quando a senhora não se sente capaz de dar 82 Paciente É Cada vez que adoeço preocupome muito com as finanças com o custo da doença com o emprego se é que será meu ainda ao voltar Outras vezes preocupo me com o fato de contrair uma doença crônica e ficar dependente dos outros Vocês sabem cada vez aparece algo diferente de modo que sempre sinto alguma necessidade Doutora O que acontece com sua vida exterior Não sei nada sobre seu passado ou como vive na realidade O que acontece quando não pode trabalhar Quem a sustenta a Igreja o lugar onde trabalha agora ou sua família Paciente Claro que são eles Fiquei hospitalizada três vezes no nosso hospital Certa noite sentia tantas dores que mal podia respirar Desci ao térreo e procurei a enfermeira de plantão que me levou de volta e aplicoume uma injeção Decidiram deixarme na enfermaria Enfermaria das freiras onde só elas podem ficar É um lugar solitário de doer Vejam lá não há televisão nem rádio pois não fazem parte de nossa vida Só quando passam programas educativos é que vemos televisão Imagine sem ninguém nos visitar Preciso destas coisas mas não nos proporcionam Toquei neste assunto com meu médico e pedi que me desse alta assim que a dor passasse e eu pudesse suportar pois sei que psicologicamente preciso das pessoas Se puder ir para meu quarto deitarme vestirme quatro ou cinco vezes por dia descer para o refeitório sinto pelo menos que estou viva Não sinto aquela solidão Mesmo quando tenho de ficar sentada na igreja sem poder rezar porque não me sinto bem fico porque estou com os outros Entende o que quero dizer Doutora Entendo Por que acha a solidão tão horrível Paciente Eu acho Não não acho a solidão horrível porque há ocasiões em que preciso ficar só Não é isto que quero dizer A menos que a relacione com o fato de estar sendo abandonada nesta situação não serei capaz de me ajudar 83 Seria bom se me sentisse autosuficiente sem precisar dos outros Mas eu Não é o fato de morrer só é a tortura que a dor pode causar como se a gente quisesse arrancar os cabelos da cabeça A gente não liga de passar dias sem tomar banho pois isto requer um esforço enorme como se a gente estivesse se tornando menos que um ser humano Capelão Ela gostaria de manter um certo senso de dignidade o mais possível Paciente Pois é E às vezes não consigo sozinha Doutora Sabe a senhora traduz muito bem em palavras tudo aquilo que andamos fazendo anos a fio e tentamos fazer de tudo quanto é jeito Realmente a senhora traduz bem em palavras Paciente A gente ainda quer ser gente Doutora Um ser humano Paciente É Vou contarlhes mais uma coisa no ano passado recebi alta aqui Tive de voltar para casa para o nosso hospital numa cadeira de rodas porque a perna estava quebrada Era uma fratura patológica Todo mundo solícito empurrando aquela cadeira mas me carregavam com uma distração enorme e me levavam para onde queriam e não para onde eu queria ir Nem sempre podia dizer para onde queria ir Preferia sentir dores nos braços e me empurrar até o banheiro a ter de dizer a todo mundo onde queria ir e deixar alguém me esperando do lado de fora do sanitário enquanto eu o usava Entende o que quero dizer Chamavamme de independente etc quando na realidade não era Tinha de manter minha dignidade antes que a destruíssem Acho que não rejeitaria ajuda como fiz quando precisava realmente Mas esta espécie de ajuda que muitos me dão só me traz problemas Sabe como é São gentis e sei que fazem de bom grado mas não posso esperar que descubram Por exemplo há uma irmã que cuida de nós que nos 84 proporciona tudo e se sente rejeitada quando não aceitamos Pois bem eu me sentiria culpada Sei que ela usa um colete nas costas As irmãs de setenta e sete anos que não estão muito bem são designadas para a enfermaria Bem eu me levanto e arrumo a cama em lugar de pedir a uma delas Mas se uma se oferece para arrumar e eu não aceito sentese como se a estivesse rejeitando como enfermeira Assim tenho de cerrar os dentes e esperar que não volte no dia seguinte me dizendo que não dormiu de noite sentindo dores nas costas porque vou me sentir como causadora disso tudo Capelão Hum Ela faz a senhora pagar Paciente É Capelão Posso mudar de assunto Doutora A senhora diz quando começar a ficar cansada está bem Paciente Está bem prossigamos Tenho o dia todo para descansar Capelão Falando de fé a doença afetou a sua Fortaleceu ou enfraqueceu sua fé em Deus Paciente Não digo que a doença a tenha afetado porque jamais pensei nela nestes termos Quis consagrarme a Deus como freira Queria ser médica e partir para as missões Pois bem não fiz nada disso Vejam nunca saí do país Estou doente há muitos anos Agora sei que era eu decidira o que queria fazer por Deus Fui atraída por estas coisas e pensava que eram a vontade Dele Mas é evidente que não são Houve uma espécie de resignação Mesmo se viesse a ficar boa um dia iria querer as mesmas coisas Queria ainda ir e estudar medicina Um médico nas missões é algo formidável bem mais do que uma enfermeira mesmo porque os governos impõem certos limites às freiras Contudo acho que minha fé sofreu os maiores abalos aqui Não por causa da doença mas de um paciente da 85 outra ala Um judeu muito educado Encontramonos na sala de raio X naquele cubículo Estávamos esperando para tirar radiografia De repente ouvi uma voz me dizendo Por que você está tão feliz Olhei para ele e respondi Não estou particularmente feliz só não tenho medo do que pode acontecer se é isto o que o senhor quer dizer Havia um olhar cínico em seu rosto Foi assim que nos encontramos e descobrimos que estávamos em quartos quase em frente um do outro Ele é judeu mas não segue a tradição e tem antipatia pela maioria dos rabinos que encontrou Um dia num batepapo disse que na realidade Deus não existia Que O fabricamos porque precisamos de um Ora jamais pensara nisso mas ele acreditava piamente Penso que era porque não acreditava em outra vida Inclusive nossa enfermeira era uma agnóstica e dizia que talvez houvesse um Deus que começou o mundo Conversavam comigo sobre isto Penso que é sobre isto que vocês querem falar Eles começaram E ela me disse É claro que desde aquela época ele não toma conta do mundo Jamais eu encontrara pessoas assim antes de vir para cá Foi a primeira vez que tive de avaliar minha fé Na realidade digo sempre É lógico que Deus existe Olhem para a natureza e as outras coisas Foi o que sempre me ensinaram Capelão Eles a estavam desafiando Paciente Sim E também pois é também a quem me ensinou Estariam eles mais certos do que quem criou estes pensamentos tolos Falando mais claro descobri que não tinha uma religião Tinha a religião de outrem Foi o que M fez comigo M é o judeu Ele sempre falava sarcasticamente e a enfermeira acrescentava Não sei por que cuido tanto da Igreja Católica Romana quando a odeio tanto Isto é dizia isto quando me dava os remédios Era para me irritar sutilmente Mas para minha sorte M tentava ser reverente E dizia Sobre o que você quer 86 falar Ela Quero falar sobre Barrabás Eu Bem M você não pode falar de Barrabás em vez de Cristo Ela Aliás qual é a diferença Não se zangue irmã Ele tentava ser reverente e respeitoso mas sempre me desafiava Como se tudo fosse uma farsa sabe Doutora A senhora gosta dele Paciente Gosto Ainda gosto Doutora Isto ainda acontece É alguém que ainda está aqui Paciente Não Foi na segunda vez que me internei aqui Mas sempre continuamos amigos Doutora Ainda mantém contato com ele Paciente Esteve aqui outro dia Sim mandoume até um belo ramalhete de flores Foi com o contato que tive com ele que consolidei minha fé Realmente agora é minha própria fé É fé não é uma teoria aprendida de outrem ou melhor não entendo os caminhos de Deus e muitas coisas que acontecem mas acredito que Deus é maior do que eu e quando vejo gente jovem morrer e todos dizerem inclusive os pais Que perda e coisas semelhantes posso entender Digo Deus é amor sabendo agora o que isto significa Não são palavras eu realmente penso assim que Ele sendo amor sabe que aquele é o momento exato na vida daquela pessoa e se tivesse vivido mais ou menos não lhe poderia reservar um período maior de eternidade ou talvez a pessoa fosse punida na eternidade o que seria pior do que agora Pensando em seu amor consigo aceitar as mortes dos jovens e inocentes Doutora A senhora se incomoda se eu lhe fizer algumas perguntas bem pessoais Capelão Só uma só um caso Se ouvi bem a senhora diz que está mais firme na fé mais capacitada para aceitar sua doença agora do que quando ela começou É o que concluo de tudo isto 87 Paciente Não é bem assim Digo isto com relação à minha fé pessoal nada tem a ver com a minha doença Mas não foi a doença foi M testando minha fé mesmo sem querer Doutora Sua fé agora não o que os outros lhe ensinaram Capelão Produto do seu relacionamento com ele Paciente Nasceu aqui Aconteceu aqui exatamente aqui neste hospital Portanto desenvolvia nestes anos e fortalecime nela Agora sei realmente o que fé e confiança significam Antes vivia lutando para entendêlas melhor Mesmo sabendo mais não se altera o fato de que há mais coisas que vejo e de que gosto Digo a M Se Deus não existe nada tenho a perder mas se existe adoroO como Ele merece com todas as minhas forças Antes era o Deus dos outros um autômato o resultado da minha educação etc Eu não estava eu não estava adorando Deus Pensava que estava Acreditemme se alguém me dissesse que eu não acreditava em Deus tomaria isso como insulto Agora porém vejo a diferença Capelão A senhora teria outras perguntas Doutora Tenho mas acho que temos de parar dentro de cinco minutos Talvez possamos continuar na próxima ocasião Paciente Gostaria de repetir uma coisa que uma paciente me disse Não me venha com esta história de dizer que é a vontade de Deus sobre mim Jamais ouvira uma observação assim Tratavase de uma jovem mãe de vinte e sete anos que ia deixar três filhos Detesto quando alguém me diz isto Eu entendo mas quando se vive com esta dor Ninguém finge indiferença quando está sofrendo tanto Nessas ocasiões é bem melhor dizer Você está sofrendo é melhor sentir que alguém entende o que você está passando do que ignorar ou querer acrescentar coisas Quando se está melhor tudo bem Outra coisa as pessoas não devem pronunciar a palavra câncer Parece que ela atrai dor 88 Doutora Como essa há outras palavras também Paciente Para muitos menos para mim Sob vários aspectos acho que tem sido uma doença benéfica lucrei muito com ela encontrei muitos amigos muitas pessoas Não sei se as doenças cardíacas ou o diabetes são mais aceitáveis Olho para o pátio e me contento com o que tenho Não invejo os outros Mas quando se está muito doente não se pensa em nada disto A gente fica esperando para ver se as pessoas vão magoar ou ajudar Doutora Que tipo de menina foi a senhora Quando criança o que a levou a se tornar freira Foi decisão da família Paciente Fui a única a ir para o convento Éramos dez filhos cinco homens e cinco mulheres Não me lembro de não ter querido ser freira Mas sabe estudando um pouco mais de psicologia fico pensando se não foi como transportarme para algum lugar onde pudesse me sobressair Onde eu fosse diferente de minhas irmãs tão bem aceitas pela família Minha mãe e elas eram boas donasdecasa enquanto eu gostava mais de livros e coisas parecidas Contudo o passar dos anos me fez ver que isto não era verdade Às vezes sinto vontade de não ser mais freira porque é difícil demais mas me lembro de que se Deus quis posso aceitar como sendo a vontade Dele Seja como for Ele poderia ter me mostrado outros caminhos anos atrás Inclusive este e continuei pensando Pensei nisto a vida toda pois só isto valia a pena Agora penso que também poderia ter sido uma boa mãe e uma boa esposa Naquela época pensava que ser freira era a única coisa que deveria ou poderia fazer Não fui constrangida agi livremente mas não entendia Tinha treze anos quando fui e só fiz os votos com vinte Quero dizer que tive todo aquele tempo e mais seis anos para me decidir Já faz tempo que fiz os votos perpétuos Como no casamento depende da gente Aceitase ou rejeitase Sabem como é cada um faz o melhor para si Doutora A senhora ainda tem mãe 89 Paciente Tenho sim Doutora Que tipo de mulher ela é Paciente Meus pais emigraram de XY Minha mãe aprendeu a língua sozinha É uma pessoa muito carinhosa Acho que não compreendia muito bem meu pai Ele era um artista e um bom vendedor enquanto ela era retraída e reservada Vejo agora que talvez guardasse um sentimento de insegurança Valorizava muito o fato de ser reservada de modo que ser expansivo em nossa família era meio depreciativo Eu tinha tendência para isso queria sair fazer coisas freqüentar clubes diferentes etc ao passo que minhas irmãs preferiam ficar em casa bordando para maior satisfação de minha mãe Agora me chamam de introvertida Achei isto difícil a vida inteira Doutora Não acho que seja introvertida Paciente Disseramme isso há duas semanas É raro encontrar alguém que converse comigo sobre assuntos menos corriqueiros Há muitas coisas em que estou interessada Nunca tive alguém com quem pudesse trocar idéias Quando a gente descobre isso num grupo e senta se à mesa com um guardalivros mais alguém e muitas de nossas Irmãs que não tiveram a oportunidade de receber a educação que tive tenho a impressão de que eles se ressentem um pouco Diria que pensam que me julgo superior Portanto quando encontro uma pessoa assim simplesmente me calo para não dar margem a que pensem isso A educação faz a gente ficar humilde e não orgulhosa E não vou mudar de linguagem isto é se posso usar uma palavra precisa não troco por outra mais simples Se pensam que é linguagem rebuscada não é Posso falar com simplicidade com uma criança como qualquer um mas não vou mudar meu modo de falar para adaptálo aos outros Houve um tempo em que quis adaptarme isto é ser o que todo mundo queria que eu fosse Agora não quero mais Os outros também têm de aprender a me aceitar Chego quase a exigir isso deles ou 90 espero calmamente que aconteça mas não vou morrer por isso As pessoas se zangam comigo entretanto a zanga se encontra nelas mesmas Não sou necessariamente eu que as deixo zangadas Doutora A senhora está zangada com as pessoas também Paciente É estou mas o que me irritou foi essa pessoa me tachar de introvertida sem se dar ao trabalho de discutir coisas fora da rotina Não está interessada em novidades nem no que acontece durante o dia Em outras palavras nunca se poderia falar com ela sobre a questão dos direitos sociais Doutora De quem a senhora está falando agora Paciente De uma Irmã no convento Doutora Oh Bem que eu gostaria de continuar mas é hora de pararmos Sabe há quanto tempo estamos conversando Paciente Não Acho que uma hora Doutora Mais de uma hora Paciente É acho que sim Este tipo de conversa flui rápido quando nos deixamos absorver Capelão Estou aqui matutando se a senhora não gostaria de nos fazer alguma pergunta Paciente Ficaram chocados comigo Doutora Não Paciente Por causa da minha espontaneidade posso ter destruído a imagem do que Doutora Do que se espera que seja uma freira Paciente Pois é Capelão A senhora me impressionou é o que lhe posso dizer Paciente Mas eu detestaria ferir alguém por causa da minha imagem Doutora Não a senhora não feriu ninguém 91 Paciente Gostaria que vocês não pensassem mal das freiras nem dos médicos nem de quem quer que seja nem das enfermeiras Doutora Acho que não vou pensar mal certo Gostamos de ver a senhora como a senhora é Paciente Às vezes fico imaginando que sou dura com elas Doutora Tenho certeza de que às vezes a senhora é Paciente O que quero dizer é que sendo freira e enfermeira não crio dificuldades para elas lidarem comigo Doutora Estou feliz em ver que não usa uma máscara de freira Que continua a mesma Paciente Mas isso é outra coisa que lhe conto é outro problema comigo No convento nunca pude sair do quarto sem o hábito Aqui poderia achar isto uma barreira no entanto há ocasiões em que saio do quarto de camisola e as Irmãs do convento ficam chocadas Tentaram removerme deste hospital Achavam que não estava me comportando bem permitindo que os outros entrassem no meu quarto quando quisessem Tudo isto era chocante para elas Mas não passava pela cabeça delas darme alguma coisa de que preciso como visitarme mais freqüentemente E olhe que vêm muito mais aqui do que quando estou na enfermaria Lá podia ficar deitada como aliás fiquei dois meses e poucas Irmãs foram me ver Tudo isso eu entendo pois trabalham em ambiente de hospital e querem fugir dele nos dias de folga De alguma forma porém faço saber aos outros que não preciso delas Mesmo pedindo que voltem de novo não tenho lá muita certeza Julgam que tenho muita força que vivo melhor sozinha que elas não são importantes Mesmo assim não posso implorar que venham Capelão Isso destrói o significado da visita delas Paciente Não está direito Não posso implorar aos outros aquilo de que preciso 92 Capelão A senhora nos comunicou isto muito bem com muito acerto É importante a dignidade individual do paciente Não ter de implorar mas também não ser oprimido nem manobrado Doutora Na minha opinião caso possa terminar a entrevista com uma espécie talvez de conselho Não gosto nem da palavra Na minha opinião quando sentimos dor e agonia e a estampamos no rosto como a senhora fica difícil para a enfermeira saber se se precisa dela ou não Acho até que pedir muitas vezes custa mais e não é o mesmo que implorar Percebe Talvez seja mais difícil fazer Paciente Estou com as costas doendo muito agora Vou passar pela enfermaria e pedir um comprimido contra dores Não sei quando vou precisar dele mas o fato de pedir já deveria ser suficiente não Pode não parecer mas que sinto dores sinto Os médicos me dizem sempre que eu deveria me esforçar tentar me sentir bem isto é passar o dia sem sofrer muito porque devo dar duro em algumas aulas quando voltar a trabalhar sentindo ou não sentindo dores Tudo bem mas gosto quando percebem que a gente precisa mesmo se livrar das dores de vez em quando só para relaxar um pouco Esta entrevista mostra claramente as necessidades da paciente Vivia cheia de mágoas e ressentimentos que parecem ter origem na infância Um entre dez filhos sentiase como estranha na família Enquanto as outras irmãs gostavam de ficar bordando e agradando à mãe ela parece ter puxado mais ao pai querendo sair e conhecer lugares o que foi interpretado como não sendo do agrado da mãe Parece ter comprometido seus anseios para ser diferente de suas irmãs ter sua própria identidade e ser a boa menina que a mamãe queria tornandose freira Perto dos trinta anos quando adoeceu e se tornou mais exigente ficou cada vez mais difícil continuar sendo a boa menina Parte de seu ressentimento com as freiras é reflexo do ressentimento com a mãe e as irmãs a falta de aceitação por 93 parte delas uma repetição de seus sentimentos de rejeição As pessoas ao seu redor em lugar de entender a origem de sua mágoa assumiam as dores e começavam a rejeitála mais ainda O modo que encontrou para compensar o crescente isolamento foi visitar outros doentes pedir remédios para eles atender às necessidades deles que na verdade eram as suas ao mesmo tempo que mostrava seu descontentamento e censurava pela falta de cuidados Esta exigência hostil afastou o pessoal da enfermagem o que é compreensível dando a ela uma racionalização mais aceitável de sua própria hostilidade Na entrevista vieram à tona várias de suas necessidades Deixamos que ela fosse ela mesma hostil e exigente sem demonstrarmos preconceitos e ressentimentos pessoais Foi compreendida e não julgada Deixamos que desse rédeas à sua revolta Aliviada deste peso foi capaz de mostrar outra faceta de sua personalidade sobretudo a de uma mulher acolhedora capaz de amar de ver as coisas com profundidade afetuosa É claro que amou o judeu e acreditou nele para descobrir o real significado de sua religião Ele abriulhe as portas para muitas horas de introspecção possibilitando a ela finalmente encontrar uma fé inabalável em Deus Já no fim da entrevista pediu novas oportunidades para conversar mais È manifestou isso sempre meio zangada sob a forma de um pedido de comprimido para dores Continuamos a visitála e ficamos surpresos ao constatar que não fazia mais visitas a outros pacientes desenganados e se mostrava mais acessível para com o pessoal da enfermagem Menos irritadiça passou a ser visitada com mais freqüência pelas enfermeiras que pediram até uma reunião conosco para entendêla melhor Como tudo mudou Numa de minhas últimas visitas olhoume mais uma vez e pediu algo que ninguém me pedira antes que eu lesse para ela um capítulo da Bíblia Nessa época ela se encontrava bastante debilitada e se limitou a inclinar a cabeça dizendome as páginas que devia ler 94 Não gostei deste encargo pois me pareceu um tanto esquisito e meio fora das coisas que me pedem para fazer Se me tivesse pedido para coçarlhe as costas ou esvaziar a comadre ou coisas assim iria me sentir mais à vontade Entretanto lembreime de ter dito que procuraríamos atender às suas necessidades e de certa forma me pareceu mesquinho chamar o capelão já que a necessidade era premente naquele instante Minha preocupação era que minhas colegas podiam entrar e rir de minha nova função mas me senti aliviada porque ninguém apareceu durante a sessão Li os capítulos sem saber realmente o que estava lendo Ela mantinha os olhos fechados e não pude decifrar suas reações Ao terminar pergunteilhe se estava representando pela última vez ou se havia algo mais que eu não entendera Foi a única vez que ouvi sua gargalhada cheia de humor e admiração Respondeume que eram ambas as coisas mas que o objetivo principal era válido Além de ter sido seu último teste sobre minha pessoa foi ao mesmo tempo sua última mensagem para mim da qual ela esperava que me lembrasse depois que fosse embora Dias mais tarde visitoume no consultório para se despedir Estava muito bem vestida Parecia animada quase feliz Não era mais a freira aborrecida que afastava todo mundo mas uma mulher que encontrara um pouco de paz ou até aceitação que voltava para casa onde viria a morrer logo depois Muitos de nós ainda lembramos dela não pelos problemas que nos causou mas pelas lições que nos deu Assim em seus últimos meses de vida conseguiu tornarse o que tanto queria ser uma pessoa diferente das outras não por um aspecto negativo mas por ser aceita e amada 95 V Terceiro estágio barganha O machado do lenhador pediu à árvore que lhe desse um cabo A árvore lho deu Tagore Pássaros errantes LXXI O terceiro estágio o da barganha é o menos conhecido mas igualmente útil ao paciente embora por um tempo muito curto Se no primeiro estágio não conseguimos enfrentar os tristes acontecimentos e nos revoltamos contra Deus e as pessoas talvez possamos ser bemsucedidos na segunda fase entrando em algum tipo de acordo que adie o desfecho inevitável Se Deus decidiu levarme deste mundo e não atendeu a meus apelos cheios de ira talvez seja mais condescendente se eu apelar com calma Estamos acostumados com este tipo de reação porque acontece o mesmo com nossos filhos primeiro exigem depois pedem por favor Podem não aceitar nosso não quando querem passar uma noite em casa de algum amigo Podem se zangar e bater os pés Podem se trancar no quarto e demonstrar sua raiva nos rejeitando por algum tempo Mas sempre terão outros pensamentos Podem pensar em outra forma de abordar o problema Podem se oferecer para executar algum trabalho em casa que em circunstâncias normais jamais conseguiríamos que fizessem E nos dizem então Se eu ficar boazinha a semana toda e lavar a louça toda noite você deixa eu ir Há uma chance remota de que venhamos a aceitar a barganha e a criança venha a conseguir o que antes lhe fora negado O paciente em fase terminal usa do mesmo expediente Graças a experiências anteriores ele sabe que existe uma leve possibilidade de ser recompensado por um bom com portamento e receber um prêmio por serviços especiais Quase 96 sempre almeja um prolongamento da vida ou deseja alguns dias sem dor ou sem males físicos Uma cantora de ópera estava com um processo deformante maligno na mandíbula e no rosto e não podendo mais exibirse no palco pediu para apresentarse só mais uma vez Quando soube que era impossível deu o mais tocante show de toda a sua vida pediu para participar do seminário e falar na frente do auditório mas não por trás da janela de vidro espelhado Diante da classe abriu as cortinas da história de sua vida contando seu sucesso e sua tragédia até que foi chamada por telefone a voltar para seu quarto O médico e o dentista esperavamna para extrair seus dentes e continuar o tratamento radioterápico Ela pediu para cantar uma última vez para nós antes de esconder seu rosto para sempre Outra paciente vivia aflita sentia dores atrozes e não podia voltar para casa porque dependia de injeções que aliviavam suas dores Tinha um filho que planejava se casar como ela queria Estava muito triste porque pensava que talvez não pudesse comparecer nesse grande dia ao casamento de seu filho primogênito e favorito Num esforço conjunto conseguimos ensinarlhe a autohipnose que lhe poderia proporcionar horas de alívio Fizera toda sorte de promessas para viver o tempo necessário para assistir ao casamento Na véspera deixou o hospital como uma dama elegante Vendoa ninguém poderia acreditar na sua real situação Era a pessoa mais feliz do mundo e mostravase radiante Fiquei a imaginar qual seria sua reação quando expirasse o tempo que tanto barganhara Nunca me esquecerei do momento da volta ao hospital Estava exausta abatida e antes que eu pudesse falar alguma coisa foi logo dizendo Não se esqueça que tenho outro filho A barganha na realidade é uma tentativa de adiamento tem que incluir um prêmio oferecido por bom comportamento estabelece também uma meta autoimposta por exemplo um show a mais o casamento de um filho e inclui uma promessa implícita de que o paciente não pedirá outro adiamento caso o primeiro seja concedido Nenhum de nossos pacientes cumpriu as promessas Em outras palavras são como crianças que 97 dizem Nunca mais brigo com minha irmã se vocês deixarem eu ir É desnecessário dizer que o menino vai brigar de novo com a irmã como a cantora de ópera tentará apresentarse mais uma vez Não podendo viver sem shows futuros deixou o hospital antes que se lhe extraíssem os dentes A paciente descrita por último só queria nos ver novamente se admitíssemos o fato de que tinha outro filho a cujo casamento queria assistir A maioria das barganhas são feitas com Deus são mantidas geralmente em segredo ditas nas entrelinhas ou no confessionário do capelão Nas entrevistas particulares sem auditório ficamos impressionados com o número dos que prometiam uma vida dedicada a Deus ou uma vida a serviço da igreja em troca de um pouco mais de tempo de vida Muitos pacientes prometiam também doar partes de seu corpo ou seu corpo inteiro à ciência caso os médicos usassem seus conhecimentos científicos para prolongarlhes a vida Psicologicamente as promessas podem estar associadas a uma culpa recôndita Portanto seria bom se as observações feitas por esses pacientes não fossem menosprezadas pela equipe hospitalar Ao considerar essas atitudes um capelão ou um médico dedicados podem muito bem querer descobrir se o paciente está sentindo culpa por não ter freqüentado a igreja com mais assiduidade ou se existem desejos hostis mais profundos e inconscientes que aceleraram tais culpas É por esse motivo que achamos de grande valia uma abordagem interdisciplinar no cuidado com nosso paciente pois freqüentemente o capelão era o primeiro a ouvir estes assuntos Continuávamos o tratamento até que o paciente se sentisse aliviado de temores irracionais ou do desejo de punição causado por culpa excessiva que as novas barganhas e as promessas não cumpridas haviam imposto quando a meta escolhida já fora superada 98 VI Quarto estágio Depressão O mundo corre sobre as cordas do coração sofredor compondo a música da tristeza Tagore Pássaros errantes XLIV Quando o paciente em fase terminal não pode mais negar sua doença quando é forçado a submeterse a mais uma cirurgia ou hospitalização quando começa a apresentar novos sintomas e tornase mais debilitado e mais magro não pode mais esconder a doença Seu alheamento ou estoicismo sua revolta e raiva cederão lugar a um sentimento de grande perda Esta perda pode apresentar muitas facetas uma mulher com um câncer da mama pode reagir à perda de sua imagem uma mulher com um câncer do útero pode sentir que não é mais mulher Nossa cantora de ópera reagiu com choque desalento e a mais profunda depressão à necessidade de uma cirurgia facial e extração dos dentes Mas esta é apenas uma dentre muitas perdas que tais pacientes têm de suportar Encargos financeiros vêm juntarse ao tratamento e hospitalização delongados pequenas extravagâncias no princí pio tornadas necessidades mais tarde não podem ser supri midas O custo elevado desses tratamentos e hospitalizações tem obrigado muitos pacientes a venderem suas únicas posses a não manterem a casa que construíram para a velhice a não mandarem um filho para a faculdade e quem sabe a não realizarem muitos sonhos Pode ser até que venham a perder o emprego devido ao excesso de faltas ou à impossibilidade de poderem exercer suas funções Mães e esposas podem ser obrigadas a trabalhar fora privando as crianças da atenção que recebiam anteriormente 99 Quando são as mães que adoecem os filhos pequenos talvez tenham que ser levados para casas de parentes aumentando a tristeza e o sentimento de culpa das pacientes Todos estes fatores de depressão são bastante conhecidos de todos os que tratam dos pacientes O que no entanto não esquecemos é a aflição inicial a que o paciente em fase terminal é obrigado a se submeter para se preparar para quando tiver que deixar este mundo Se eu tentasse diferenciar estes dois tipos de depressões classificaria a primeira como uma depressão reativa e a segunda como uma depressão preparatória A primeira é de natureza diferente e deve ser tratada diversamente da segunda Uma pessoa compreensiva não terá dificuldade em detectar a causa da depressão e em se aliviar um pouco da culpa ou da vergonha irreais que freqüentemente acompanham a depressão Uma mulher que se mostra preocupada por não se sentir mais mulher pode ser elogiada por alguma característica essencial mente feminina pode ser tranqüilizada porque continua mulher tanto quanto antes da operação A prótese da mama tem colaborado muito para a autoafirmação de pacientes com câncer da mama A assistente social o médico ou o capelão podem discutir com o marido da paciente sobre como poder ajudar no sentido de proporcionar maior auxílio e apoio para que a paciente se sinta autoconfiante As assistentes sociais e os capelães podem auxiliar muito nesta fase ajudando na reorga nização do lar sobretudo quando há crianças ou pessoas idosas solitárias que necessitam de cuidados especiais É impres sionante como acaba rapidamente a depressão de um paciente quando estes problemas vitais são cuidados A entrevista da Sra X no capítulo X é um bom exemplo de uma mulher profundamente deprimida que se sentia incapaz de conviver com a própria doença e morte iminente porque havia muitas pessoas que precisavam de cuidados e aparentemente não havia quem as ajudasse Perdera a capacidade de exercer seus antigos misteres e não havia ninguém que pudesse substituíla O segundo tipo de depressão ao invés de se dar com uma perda passada leva em conta perdas iminentes Nossa primeira 100 reação para com as pessoas que estão tristes é tentar animálas dizer que não encarem os fatos a ferro e fogo Procuramos encorajálas a olhar o lado risonho da vida as coisas positivas e coloridas que as circundam Geralmente isto é conseqüência de nossas próprias necessidades de nossa incapacidade de suportar por muito tempo uma fisionomia amuada Esta forma de abordagem pode ser útil quando se trata do primeiro tipo de depressão em pacientes em fase terminal O que ajuda uma mãe nesse estado é saber que as crianças estão brincando felizes no jardim do vizinho e que ficam lá enquanto o pai trabalha Pode ajudar também saber que continuam rindo brincando indo a festinhas que os boletins continuam com boas notas etc expressões de que continuam fazendo as coisas apesar da ausência da mãe Quando a depressão é um instrumento na preparação da perda iminente de todos os objetos amados para facilitar o estado de aceitação o encorajamento e a confiança não têm razão de ser O paciente não deveria ser encorajado a olhar o lado risonho das coisas pois isto significaria que ele não deveria contemplar sua morte iminente Dizerlhe para não ficar triste seria contraproducente pois todos nós ficamos profundamente tristes quando perdemos um ser amado O paciente está prestes a perder tudo e todos a quem ama Se deixarmos que exteriorize seu pesar aceitará mais facilmente a situação e ficará agradecido aos que puderem estar com ele neste estado de depressão sem repetir constantemente que não fique triste Este segundo tipo de depressão geralmente é silencioso em contraposição ao primeiro que requer muita conversa e até intervenções ativas por parte dos outros em muitos assuntos e o paciente tem muito para comunicar No pesar preparatório há pouca ou nenhuma necessidade de palavras É mais um sentimento que se exprime mutuamente traduzido em geral por um toque carinhoso de mão um afago nos cabelos ou apenas por um silencioso sentarse ao lado É esta a hora em que o paciente pode pedir para rezar em que começa a se ocupar com coisas que estão à sua frente e não com as que ficaram para trás É a hora em que a interferência excessiva de visitantes que 101 tentam animálos retarda sua preparação emocional em vez de incentivála O exemplo do Sr H ilustrará o estágio de depressão que piorou devido à falta de conhecimento e compreensão de suas necessidades por parte das pessoas que o circundavam sobretudo dos parentes mais próximos Com este exemplo mostramos ambos os tipos de depressão pois o Sr H demonstra remorsos por suas falhas no tempo em que tinha saúde pelas oportunidades perdidas quando havia tempo para estar com a família e pesar pela incapacidade de fazer mais por eles Sua depressão caminhava paralela a uma fraqueza sempre maior e a uma inépcia para atuar como homem e provedor do lar A perspectiva de um tratamento adicional promissor não lhe trouxe ânimo algum As entrevistas revelaram tendência para se desapegar desta vida Ficava triste por se ver forçado a lutar pela vida quando estava pronto a se preparar para a morte Esta discrepância entre o desejo e a disposição do paciente e a expectativa de quantos o cercam é que causa neles maior pesar e maior perturbação Se os membros das profissões auxiliares estivessem mais a par da discrepância ou do conflito entre o paciente e o seu ambiente poderiam participar sua experiência às famílias dos pacientes e ser de grande ajuda para todos eles Deveriam saber que este tipo de depressão é necessário e benéfico se o paciente tiver que morrer num estágio de aceitação e paz Só os que conseguiram superar suas angústias e ansiedades são capazes de alcançar este estágio Se esta confiança pudesse ser dividida com seus familiares seria evitada muita angústia A seguir transcrevo a primeira entrevista com o Sr H Paciente Preciso falar muito alto Doutora Não assim está bem A gente diz se não conseguir ouvilo Você fala na altura que puder e pelo tempo que quiser Você me disse que se for mantido em bom estado 102 psicológico teremos um bom papo pois estuda comunicações Paciente É que fisicamente estou tonto e cansado Doutora O que você entende por manter em bom estado psicológico Paciente É possível sentirse fisicamente bem para falar mesmo não estando Basta ter uma espécie de incentivo psicológico Assim a gente se sente muito bem como quando se recebe uma boa notícia ou algo semelhante foi isso o que quis dizer Doutora Na realidade o que você quer dizer é que deseja falar de coisas boas e não de coisas ruins Paciente Diz que nós queremos Doutora É isso o que está dizendo Paciente Não de jeito nenhum Capelão Acho que ele estava só dizendo que quer um pouco de apoio moral Doutora Pois é É natural Paciente O fato é que se eu ficar sentado aqui por mais de cinco minutos tenho uma sensação de desmaio porque estou sentado Tenho me sentido muito cansado e estado muito pouco fora da cama Doutora Está bem então por que não entramos diretamente no assunto Paciente Ótimo Doutora Não sabemos praticamente nada sobre você O que estamos tentando saber dos pacientes é como conversar com eles na qualidade de seres humanos sem ter que examinar primeiro a ficha toda Assim só para começar poderia darnos um resumo sua idade sua profissão e o tempo que está no hospital Paciente Faz mais ou menos duas semanas que estou aqui e sou engenheiro químico profissional Sou formado em 103 engenharia química e além disso freqüento cursos de comunicação na universidade Doutora Gravação ruim Paciente Não foi bem assim porque quando eu estava fazen do engenharia química havia um curso de comunicações que se encerrou na época em que terminei engenharia Doutora Sei Capelão O que fez com que você se interessasse por comunicações Fazia parte de seu trabalho como engenheiro químico ou era interesse pessoal Paciente Interesse próprio Doutora O que o trouxe ao hospital desta vez É a primeira vez que fica num hospital Paciente Neste é a primeira vez Doutora O que o trouxe aqui Paciente Bem é que precisava de um tratamento melhor para meu câncer Fiz uma operação em abril Doutora Abril deste ano Paciente em outro hospital Doutora Este ano Então seu diagnóstico foi câncer Paciente E sem nenhum outro diagnóstico pedi internação neste hospital e consegui Doutora Estou percebendo Como você recebeu esta notícia Foi em abril que lhe disseram que estava com câncer Paciente Foi Doutora Como recebeu a notícia como lhe contaram Paciente Bem naturalmente foi um choque Doutora Hum Pessoas diferentes reagem diferentemente a choques Paciente Bem foi um choque maior do que o normal porque não me deram nenhuma esperança Doutora Nenhuma 104 Paciente Nenhuma O próprio médico me disse que seu pai se submetera à mesma cirurgia no mesmo hospital com o mesmo cirurgião e morrera um ano e meio depois com a mesma idade sem ter conseguido recuperarse E tudo o que eu poderia fazer era esperar pelo amargo fim Doutora Isto é cruel demais A gente fica até pensando se esse médico não fez isso por causa do que aconteceu na família dele Paciente Pois é o resultado final foi cruel mas a causa foi ter sentido realmente na pele Doutora É compreensível mas não desculpável não acha Paciente Sim Capelão Como você reagiu quando ele fez isto quando lhe contou Paciente É claro que me senti arrasado fiquei em casa descansando como ele mandara sem fazer quase nada Mas até que fiz muito saí bastante visitei os amigos etc etc Mas quando cheguei aqui descobri que havia alguma esperança para meu estado e que não era desesperador Percebi então que agira mal que fizera exercícios demais Se tivesse sabido naquela ocasião estaria agora em excelente forma Doutora Quer dizer que agora se culpa por ter exagerado Paciente Não não estou dizendo isso Eu não sabia de nada Nenhum dos dois tem culpa Não culpo o médico pelo que sofreu nem me culpo pelo fato de não saber Doutora Antes de ir para aquele hospital suspeitava de alguma coisa Quais eram os sintomas Sentia dores desconfiava que houvesse algo de seriamente errado Paciente Bem sentiame cada vez mais depauperado mas um dia tive um problema grave no intestino e fui submetido a uma colostomia Foi a única operação que fiz Doutora O que eu queria saber mesmo é se o senhor estava preparado para este choque Teve alguma suspeita 105 Paciente Nenhuma Doutora Nenhuma O senhor se sentia bem Até quando sentiu que era sadio Paciente Até me internar no hospital Doutora E por que se internou no hospital Paciente Só para que o médico pudesse me examinar porque estava tendo muita prisão de ventre e diarréia alternadamente Doutora Hum Na verdade o que quer dizer é que não estava preparado Paciente Totalmente despreparado Não só me internaram no hospital poucas horas depois de ter chegado ao consultório mas me operaram uma semana depois mais ou menos Doutora Então havia urgência E então fizeram a colostomia Paciente Fizeram Doutora Isso também é difícil de aceitar não Paciente Como Doutora Isto é difícil de aceitar Paciente Oh não A colostomia é fácil Doutora Fácil de aceitar Paciente A idéia era que fosse apenas uma parte da coisa Em outras palavras supõese que a colostomia revele toda espécie de coisas mas o que revelou não estava certo aparentemente Doutora Como tudo se tona relativo hein Eu achava que a colostomia provocasse muita dor mas quando a questão é de vida e morte então dos males o menor Paciente Certo Não é nada quando é para se continuar vivo Doutora Pois é Depois desta notícia o senhor deve ter ficado pensando como vai ser quando morrer quanto tempo ainda vai viver Como é que um homem do seu tipo enfrenta estes problemas 106 Paciente De fato eram tantos os dissabores pessoais na quele período que não representavam muito para mim É isso aí Doutora Jura Capelão Dissabores pessoais Paciente Uma série deles durante um certo tempo Capelão Está disposto a falar sobre isso Paciente Pois não tudo bem Doutora Quer dizer que sofreu muitas perdas pessoais Paciente Sofri Meus pais e meu irmão morreram Morreu também minha filha de vinte e oito anos deixando duas crianças pequenas que ficaram sob nossos cuidados durante três anos até dezembro último Este foi o maior choque de todos porque a morte dela nos vinha constantemente à lembrança Capelão A presença das crianças em casa De que ela morreu Paciente Morreu na Pérsia devido ao rigor do clima Capelão No tempo em que estava fora do país Paciente Quarenta e cinco graus à sombra quase o ano todo Capelão Estava longe de casa então Paciente Ela não era do tipo de suportar vida rigorosa Doutora O senhor tem outros filhos Ou era filha única Paciente Não não temos mais três Doutora Mais três E como estão passando Paciente Bem Doutora Estão bem Sabe o que não entendo O senhor é um homem de meiaidade ainda não sei a sua idade e em geral a essa altura a pessoa já perdeu os pais Naturalmente a dor de perder uma filha é bem maior pois perder um filho é sempre mais doloroso Por que diz 107 que devido a tantas perdas sua vida parecia tão insignificante Paciente Não posso responder Doutora É paradoxal não Se sua vida fosse insignificante seria muito fácil perdêla não Está vendo o que não entendo Capelão Estou matutando aqui se foi isso mesmo que ele quis dizer É isto que o senhor está tentando comunicar Não tenho muita certeza Ouvi o senhor dizer que a noticia do câncer foi um choque diferente dadas as perdas que teve Paciente Não não quis dizer isso Digo que além do câncer tive esses outros choques Contudo estava só tentando pensar numa pequena idéia que tinha que era importante Você levantou a questão de por que eu estaria mais interessado na morte do que na vida uma vez que tinha mais três filhos Doutora Lembrei isto mais para vermos também o lado bom Paciente Não sei se vocês concordam mas estes choques quando vêm não causam só impacto no pai mas se refletem na família inteira certo Doutora É verdade Capelão Sua mulher então deve ter passado maus bocados também Paciente Minha mulher e os filhos todos os filhos E lá estava eu digamos vivendo num necrotério Doutora Por algum tempo sim Conversa confusa Paciente A coisa ia para a frente e eu a encarava como um caso de pesar insolúvel Doutora Na realidade o que está dizendo é que havia tanta dor que é muito difícil haver mais agora Paciente É isso mesmo 108 Doutora Como podemos ajudálo Quem pode ajudálo Há alguém que possa ajudar nessa situação Paciente Acho que sim Doutora Ininteligível Alguém ajudou o senhor Paciente Nunca pedi ajuda a ninguém a não ser a vocês Doutora Alguém conversou com o senhor como estamos fazendo Paciente Não Capelão E sobre as outras perdas Quando sua filha morreu houve alguém com quem pudesse conversar Ou com quem sua mulher tivesse conversado Foi algo que os dois ficaram sofrendo calados Trocaram idéias mutuamente Paciente Não muito Capelão O senhor agüentou calado Doutora Sua mulher continua abalada ainda hoje como naquela ocasião Ou já se recuperou um pouco de tudo isso Paciente Nunca se pode dizer Doutora É uma mulher de difícil comunicação Paciente Ela não toca neste assunto mas se comunica bem é professora Doutora Que tipo de mulher ela é Paciente É uma mulher encorpada bemhumorada o tipo de que é aplaudida de pé no começo de cada período e ganha um presente de valor no fim do ano Doutora Isto quer dizer muito o senhor sabe Capelão Mulheres assim são raras Paciente Pois é Doutora Sim Paciente Faz tudo por mim e pela família 109 Doutora Pelo jeito parece ser uma pessoa que conversaria sobre tudo isso com um empurrãozinho Paciente É a senhora acha isso não é Doutora O senhor teme falar sobre esse assunto ou é ela que evita Paciente Repita por favor Doutora Qual dos dois evita esta conversa Paciente Pois bem Conversamos realmente algumas vezes Como resposta ela foi para o exterior cuidar das crianças Assim fez durante dois anos no verão inclusive no verão passado Naturalmente nosso genro pagou as despesas Os netos estiveram conosco até dezembro e depois voltaram Então ela foi para lá passar as férias de dezembro e foi de novo no verão passar um mês Ia ficar dois mas por minha causa ficou só um porque foi no período de minha convalescença Capelão Fico imaginando sua vontade de conversar sobre seu estado quando a mente dela estava tomada por outro problema agravado pela responsabilidade dos netos Isso influenciou de algum modo seu desejo de compartilhar Por outro lado o senhor sentiu que não deveria dizer nada para não sobrecarregar sua esposa com mais problemas Houve algum sentimento deste tipo Paciente Há outros problemas entre nós Embora seja uma dessas pessoas muito responsáveis como já disse antes considerame um homem que nunca trabalhou bem Doutora Como assim Paciente Eu não ganhava o suficiente Com quatro filhos era assim que ela se sentia Acha que devo ser como o genro sabe E também que sou responsável por não ter educado convenientemente nosso filho mais novo por ele ter um traço hereditário marcante Vive me culpando até agora Doutora Culpa o senhor por isso 110 Paciente Culpame por isso Doutora O que é que ele faz Paciente Estava na Fuzilaria Naval mas foi dispensado Doutora E agora Paciente Acho que está procurando emprego como contínuo Capelão E os outros dois filhos Paciente Ela me culpa também pela lentidão do segundo filho na escola Acha que se alguém desse uma mãozinha ele seria o primeiro da classe Como eu disse ela é um dínamo de energia Espero que mais cedo ou mais tarde perceba que ele não seria capaz É só uma questão de hereditariedade O primeiro vai regularmente bem está prestes a se formar em eletrônica porque ela o está ajudando Capelão Só porque ela o está ajudando Paciente Não é bem assim Ele é brilhante é o único que brilha além da irmã Capelão O senhor falou também em hereditariedade De quem acha que provém a falha O senhor deu a impressão de que vem do senhor Ou é sua mulher quem insinua isso Paciente Não sei se ela chega a tanto nem sei se pensa que é hereditariedade Ela acha que não é só uma questão de eu chegar a trabalhar bastante Eu deveria fazer aquilo no tempo livre além de ganhar mais dinheiro que tem sido o tema de nossas vidas Ela me ajudará no que for necessário mas sempre vai me culpar por eu não fazer minha parte Eu deveria ganhar no mínimo quinze mil dólares por ano Doutora Estou sentindo que o que o senhor quer realmente dizer é que sua esposa por ser muito ativa e enérgica pretende de certo modo que o senhor e os filhos sejam do mesmo jeito Paciente É isso mesmo 111 Doutora E não admite muito que não seja igual a ela Paciente Exatamente Doutora Isto é ativo e enérgico Então diz Veja meu genro Ganha um dinheirão Provavelmente ele é muito ativo e enérgico Paciente Não só o genro mas todos os conhecidos dela Doutora Acho que isso tem influência no paciente porque quando adoece e fica mais fraco Paciente Como Doutora Quando o senhor adoece e fica mais fraco tornase menos ativo e enérgico e ganha menos Paciente De fato um dia disselhe isso Quando cheguei aos 40 e definhava um pouco disse entre meus botões Puxa cara se o negócio está assim agora imagine como será mais tarde com ela ficando cada vez mais ativa Doutora Será terrível não Paciente Porque ela está cada vez mais ativa Doutora O que em outras palavras significa que vai ser muito pior para o senhor Ela não tolera ninguém em cadeiras de roda não é Paciente É extremamente intolerante com quem não brilha muito Doutora Mesmo fisicamente fraco o senhor é capaz de ser brilhante e sabe disso Paciente Sei Doutora Mas ela não tolera quem é fisicamente incapaz de fazer as coisas Paciente É Doutora Porque o senhor sempre pode ser brilhante Paciente Bem quando dizemos brilhante queremos dizer fazer as coisas com brilhantismo Isso é o que ela quer 112 Capelão Ouvi o senhor falar em bemsucedido Paciente Bemsucedido é isso mesmo Doutora Compreendo Capelão Que não se tenha só capacidade mas que essa capacidade sirva para alguma coisa Ocorreme agora que com esse tipo de coisa acontecendo fica descartada qualquer ocasião para o senhor de falar sobre si e suas dores Paciente Exatamente isso é válido também para os filhos Capelão Isso me interessa Paciente Definitivamente sinto que nossos filhos são oprimidos pelas exigências excessivas da mãe Além de ser professora por exemplo é exímia costureira É capaz de cortar e fazer um terno em apenas um fim de semana E garanto que fica mais bonito do que os temos de duzentos e cinqüenta dólares que se vêem por aí Doutora Mas como o senhor se sente em meio a tudo isso Paciente Sinto que o fato de ela ser formidável não pesa muito na balança pois não sei como vocês diriam eu a admiro como um ídolo sabem Não pesaria muito se ela não insistisse tanto em que eu fosse igual a ela Doutora Então como o senhor pode suportar sua doença Paciente Esse é o ponto principal realmente Doutora É justamente o que estamos tentando descobrir o modo como poder ajudálo Paciente Realmente esse é o ponto principal Porque se a gente tem uma doença sofre carrega um mal incurável mas existe alguém que vive ao lado da gente e enfrenta todos os aspectos da dor a gente sabe a gente diz bem não sei como viver com o drama da morte de nossa filha etc e a resposta vem logo Mantenha a cabeça erguida pensamento positivo De fato ela é entusiasta do pensamento positivo 113 Capelão Continuase indo em frente sem parar para pensar Paciente Correto Doutora Mas o senhor está disposto a pensar e falar sobre isso O senhor deveria falar disso tem que ter alguém com quem conversar Paciente Minha mulher interrompe no meio da frase Com ela não há condição de manter um batepapo sobre qualquer destes assuntos Capelão Deduzo que o senhor tem muita fé dentro de si Paciente Pensei muito comigo mesmo como resolver estes problemas A realidade é que trabalho bastante exatamente como ela quer Sempre fui sempre fui um aluno muito brilhante Na universidade meu conceito era A e B em todas as matérias Capelão Ouço o senhor dizer que tem tanta capacidade mas reconhece que o trabalho árduo não vai resolver esta espécie de conflitos que a vida lhe criou até agora O senhor fez uma distinção entre pensar na vida e pensar na morte lembrase Doutora O senhor nunca pensa na morte Paciente Penso O que ia dizer sobre isso Capelão Estava apenas conjecturando sobre aquilo que o senhor pensava da vida em relação à morte e viceversa Paciente Pois é temos que admitir isto nunca pensei na morte como uma coisa em si mas tenho pensado na inutilidade da vida nestas circunstâncias Capelão Na inutilidade Paciente Isto é se eu morresse amanhã minha mulher continuaria perfeitamente normal Doutora Como se nada tivesse acontecido Paciente É o que acho Ela não sentiria falta 114 Capelão Do mesmo jeito que se portou com as outras mortes Ou um pouco diferente Paciente Depois da morte de minha filha cuidou dos filhos dela Mas se eu não deixasse filhos sua vida não mudaria de jeito nenhum Capelão O fato de lhe terem dado alguma esperança é o que lhe dá forças para justificar um dos motivos de ter vindo para cá Disseramlhe que podem fazer algo pelo senhor e estão fazendo O que calou fundo em seu desejo de viver Apesar da inutilidade de seus sentimentos existe algo em seu íntimo que despertou alegria e desejo de continuar É fé Paciente Mais do que outra coisa diria que é uma espécie de esperança cega O grupo da igreja que freqüento temme apoiado bastante Trabalho na Igreja Presbiteriana há muitos e muitos anos Depois o fato de fazer um pouco do que minha mulher não gostava como cantar no coral ensinar na escola dominical etc O fato de ter sido capaz de fazer algumas coisas como essas que eu sabia serem úteis à comunidade trabalho este que me ajudou Contudo cada minuto de trabalho nesse sentido foi considerado inútil já que não contribuía para ganhar muito dinheiro Doutora Isto no conceito dela E no seu foi útil Paciente Acho que foi útil muito útil Doutora Está vendo O que acho mais importante é que o senhor ainda possui um senso de valor É por isso que acho que a esperança tem significado para o senhor O senhor ainda quer viver Não quer mesmo morrer quer Por isso veio para este hospital Paciente Correto Doutora O que a morte significa para o senhor É uma pergunta difícil mas talvez possa respondêla Paciente O que a morte significa para mim 115 Doutora O que a morte significa para o senhor Paciente A morte Significa encerrar uma atividade válida No meu caso entendo por válido algo bem diferente de minha mulher Não me refiro a atividades produtoras de dinheiro Capelão O senhor se refere a cantar no coral e a ensinar na escola dominical Estar com as pessoas coisas desse tipo Doutora É Paciente Sempre atuei no trabalho comunitário nas mais diversas atividades A única coisa que torna a vida inútil agora é o fato de me ver pelo prisma do outro médico como não sendo mais capaz de retornar a estas coisas Doutora E o que o senhor está fazendo aqui agora Paciente Hein Doutora O que o senhor está fazendo aqui agora Paciente O que estou fazendo neste momento é trocar pontos de vista que poderiam ajudar Doutora Uma atividade válida Pode ser de ajuda para o senhor e certamente é para nós Capelão Atividade válida para o senhor não para sua mulher Doutora É risada É por isso que eu queria esclarecer este ponto O que o senhor está querendo dizer realmente é que vale a pena viver desde que se possa ser de alguma valia e fazer algo de útil Paciente Mas é muito bom também ter alguém que reconheça Se é alguém a quem se ama Doutora Acredita mesmo que ninguém mais gosta do senhor Paciente Não acredito que minha mulher goste Capelão Achei que ele se referia a isso Doutora Sim E com relação aos filhos Paciente Acho que gostam de mim Mas a esposa é a principal coisa vocês sabem é a mulher de um homem Sobretudo 116 se ele a admira muito Ela é tão adorável Porque é cheia de uma energia irradiante Capelão Isso sempre foi patente em seu casamento Ou notase mais depois desta sua fase de perda e de dor Paciente Não há diferença Na realidade tem sido melhor depois das perdas e dores Agora por exemplo ela tem sido muito compreensiva comigo já faz algum tempo Aliás desde que entrei no hospital mas sempre foi daquele jeito Quando eu adoecia ou coisa parecida ela ficava realmente boa comigo por um certo período mas ao mesmo tempo não podia fugir ao fato de considerar que estava lá um pamonha que não ganhava dinheiro nenhum Capelão Como o senhor vê as coisas que lhe têm acontecido na vida O senhor já falou em ir à igreja Como considera as coisas que lhe aconteceram Quanto à sua atitude perante a vida o que outros chamariam fé na vida Deus desempenha algum papel nisto Paciente Claro Bem em primeiro lugar como cristão Cristo atua como um mediador É muito simples Quando conservo na mente esta visão as coisas se resolvem muito bem Fico aliviado de meus encontro soluções para problemas que envolvem os outros Capelão O que o senhor quer dizer realmente é que existe a necessidade de um mediador entre o senhor e sua mulher ao nomear Cristo como um mediador em outros problemas seus Já pensou nisso em relação à sua mulher e ao relacionamento de vocês Paciente Já mas infelizmente ou não minha mulher é dinâmica demais Capelão Ouvindo o senhor entendo que sua mulher é tão dinâmica e ativa que não há lugar para um Deus atuante na vida dela Não haveria lugar para um mediador Paciente É o que acontece no caso dela 117 Doutora O senhor acha que ela aceitaria conversar conosco Paciente Acho que sim Doutora Se o senhor pedir a ela Tudo bem Paciente Minha mulher jamais pensaria em ir a um psiquiatra especialmente comigo Doutora Hum O que a apavora tanto nos psiquiatras Paciente Exatamente as coisas sobre que estamos falando Acho que ela procura encobrilas Doutora Bem vejamos se essa entrevista sai Poderia ajudar bastante Se o senhor não se importar aparecemos de vez em quando certo Paciente A senhora disse que vão aparecer Doutora E visitar você Paciente No meu quarto Doutora e capelão Sim Paciente Vou embora sábado que vem Doutora Ah é Então não temos muito tempo Capelão Sempre que voltar à clínica o senhor vem visitar a doutora não Paciente Tenho minhas dúvidas mas pode ser É uma viagem muito longa Capelão Ah sei Doutora Bem se este é o nosso último encontro talvez tenha algumas perguntas que queira fazer Paciente Considero uma das maiores vantagens desta entrevista o fato de surgir uma série de perguntas em que não tinha pensado Doutora Também nos ajudou Paciente Acho que a doutora me fez ótimas sugestões e o senhor também Mas de uma coisa estou certo não vou ficar curado a menos que tenha uma melhora radical 118 Doutora Isto o assusta Paciente Assusta Doutora Não noto medo algum no senhor Paciente Não não me amedrontaria por dois motivos Primeiro por me ter dedicado muito à religião que se firmou no fato de eu têla transmitido a outras pessoas Doutora Portanto pode dizer de si mesmo que é um homem que não teme a morte e que simplesmente a aceitará quando vier Paciente Pois é não temo a morte mas de certo modo temo a possibilidade de continuar minhas atividades anteriores Porque como a senhora vê gostava menos de engenharia do que de tratar com as pessoas Capelão Aí surgiu seu interesse pela comunicação Paciente Em parte sim Capelão O que me impressiona não é a ausência de medo mas a preocupação o senso de mágoa diante do relacionamento com sua mulher Paciente A vida toda lamentei não me poder comunicar com ela Na verdade posso até dizer que se quisesse traduzir em termos matemáticos acredito que noventa por cento de meu estudo de comunicação foram gastos na tentativa de chegar a um acordo com minha mulher Doutora Tentando comunicarse com ela não Nunca teve ajuda profissional para isso Sabe tenho um pressentimento de que se poderia ainda fazer alguma coisa nesse sentido Capelão É por isso que o encontro de amanhã é tão importante Doutora Pois é Assim não me sentiria tão inútil isso não é irrecuperável sabe O senhor ainda tem tempo para fazer isso Paciente Uma vez que estou vivo há esperança para a vida 119 Doutora Certo Paciente Mas a vida não é o tudo no mundo O tipo de vida o motivo porque você a vive Capelão Foi bom ter vindo visitálo Gostaria de vêlo de novo hoje à noite antes de eu ir para casa Paciente Gostaria muito Ah o paciente reluta em ir embora Vocês iam me perguntar alguma coisa e se esqueceram Doutora Eu Paciente É Doutora Que foi que esqueci Paciente Percebi pelo que disseram que a senhora era responsável não só por este seminário mas Bem vamos deixar de lado o que é de sua responsabilidade Alguém estava interessado na relação entre a religião e a psiquiatria Doutora Começo a entender Veja muitos têm conceitos diferentes sobre o que estamos fazendo aqui O que mais me interessa é conversar com os doentes ou com os pacientes desenganados Conseguir entendêlos um pouco mais Ensinar ao pessoal do hospital como melhor ajudálos e a melhor maneira de ensinar é ter como professor o próprio paciente Capelão O senhor queria fazer perguntas relacionadas com religião Paciente Queria Por exemplo quando acontece de se sentir mal a maioria dos pacientes não vai em busca de um psiquiatra mas de um capelão Doutora É verdade Paciente Muito bem Alguém me perguntou antes não sei se foram vocês ou outra pessoa como me sinto em relação ao trabalho dos capelães Fiquei estupefato quando precisei de um capelão no meio da noite e descobri que 120 não havia nenhum de plantão Acho isto simplesmente inacreditável Quando é que mais se precisa de um capelão É sobretudo à noite podem crer É quando a gente se vê de luvas de boxe enfrentando a si mesmo É nessa hora que mais se precisa de um capelão Na maioria das vezes depois da meianoite Doutora Nas primeiras horas da madrugada Paciente Se fosse mostrado num diagrama o ponto alto seria lá pelas três da manhã Deveria ser assim você tocaria a campainha a enfermeira viria e você diria que gostaria de falar com um capelão Ele apareceria em cinco minutos e se teria condição de Doutora De se comunicar de verdade Paciente É Doutora É uma pergunta que o senhor gostaria que lhe tivéssemos feito se está contente com o trabalho do capelão Fiz esta pergunta talvez de modo indireto quando quis saber se alguém o tinha ajudado se alguém tinha sido útil a você O senhor não falou em capelão Paciente Esse problema está na própria igreja saber quando alguém precisa de um ministro Doutora Sim Paciente Geralmente precisase dele às três da manhã Doutora Bem o capelão N pode responder porque na noite passada ficou acordado o tempo inteiro atendendo aos pacientes Capelão Não me sinto tão culpado quanto deveria só dormi duas horas na noite passada Sou capaz de entendêlo apesar de achar que se têm dito muito mais coisas a respeito do que se sente Paciente Acho que nenhuma outra coisa deveria ter precedência sobre esta Capelão Preocupação típica de quem busca ajuda 121 Paciente Claro o ministro presbiteriano que casou meus pais era desse tipo de homem Nada o feria Encontreio com noventa e cinco anos com a audição boa como sempre a vista boa como sempre o aperto de mão como o de um homem de vinte anos Capelão Isto é símbolo também de algumas decepções que o senhor teve Doutora Também faz parte do seminário descobrir essas coisas para podermos ser mais eficientes Paciente Tudo bem No caso dos ministros acredito que haja menos chance de um encontro quando se precisa deles do que no caso de um psiquiatra o que é peculiar pois supomos que um ministro não seja remunerado ao passo que o psiquiatra supomos que só atenda por uma certa quantia Portanto temos aí um cidadão que ganha dinheiro durante o dia à noite à hora que quiser bastando apenas um acordo para que atenda também de noite Agora tente arrancar um ministro da cama durante a noite Capelão Está me parecendo que sofreu decepções com religiosos Paciente O atual pastor lá da igreja é muito bom mas o problema é que vive rodeado de um bando de filhos Pelo menos quatro Quando é que ele pode sair E me falam de jovens que estudam no seminário etc Não são muitos Na verdade foi um tanto difícil conseguir alguns para o trabalho de educação cristã Mas acho que se a igreja fosse operante não teria dificuldade em arrebanhar jovens Capelão Temos muitas coisas para conversar que não fazem parte deste seminário Vamos nos reunir a qualquer hora e fazer uma revisão da igreja Concordo em parte com o que diz Doutora Tudo bem mas estou satisfeita por ele ter trazido isto à baila aqui Esta parte é importante Como ia o serviço de enfermagem 122 Paciente Aqui Doutora Sim Paciente Praticamente todas as noites em que precisei de um capelão era porque durante o dia tivera que lidar com um tipo errado de enfermeira Aqui há algumas enfermeiras eficientes mas tratam do paciente de modo errado De fato meu colega de quarto observou que a gente ficaria curado duas vezes mais depressa se não existisse aquela enfermeira Ela briga o tempo todo sabe lá o que é isso A gente pede Me ajude a comer por causa da úlcera e dos problemas de fígado etc e tal Ela responde Estamos ocupadas demais comer depende de você Se quiser comer coma se não quiser não coma Há outra que é muito boazinha e ajuda a gente mas não sorri nunca Para uma pessoa como eu que geralmente está sorrindo e tem como característica a boa vontade é meio triste olhar para ela Ela vem toda noite mas não dá nem um sorriso Doutora Como está seu colega de quarto Paciente Não tenho tido oportunidade de conversar com ele desde que começou o tratamento respiratório Por outro lado imagino que esteja indo muito bem pois ele não tem tantos distúrbios diferentes como eu Doutora Reparou que no começo desta entrevista o senhor estipulou cinco ou dez minutos alegando que ficaria can sadíssimo Pode continuar sentado confortavelmente Paciente Pois é acontece que estou bem Doutora Sabe quanto tempo faz que estamos conversando Uma hora Paciente Nunca pensei que pudesse agüentar uma hora Capelão Estamos preocupados em não cansálo demais Doutora Sim acho realmente que deveríamos parar agora Paciente Acho que já falamos sobre muitas coisas Capelão Virei vêlo à hora do jantar antes de ir embora 123 Paciente Ah às seis horas Capelão Entre cinco e meia e seis horas mais ou menos Paciente Ótimo assim o senhor pode me ajudar a comer pois a enfermeira é bem ruim Capelão Certo Doutora Gratos por ter vindo Gostamos muito A entrevista com o Sr H é um bom exemplo do que chamamos de entrevista de portaaberta O pessoal do hospital o considerava um homem sisudo e nãocomunicativo e o seu palpite era que ele não concordaria em conversar conosco Foi logo advertindo no começo da sessão que teria um colapso se ficasse sentado mais do que cinco minutos entretanto após uma hora inteira de conversa relutava em ir embora mostrandose bemdisposto física e emocionalmente Sua preocupação eram as perdas pessoais sendo a mais séria a morte da filha longe de casa Contudo o que mais o magoava era a perda da esperança Foi o que contou primeiro falando de como o médico lhe comunicara a doença não me deram nenhuma esperança O médico me disse que seu pai se submetera à mesma intervenção cirúrgica no mesmo hospital com o mesmo cirurgião e morrera um ano e meio depois com a mesma idade sem ter conseguido recuperarse E tudo o que eu poderia fazer era esperar pelo amargo fim O Sr H não desistiu e internouse em outro hospital onde lhe deram esperança Mais adiante expressa outro sentimento de falta de esperança isto é a impossibilidade de ver sua mulher compartilhar alguns de seus interesses e valores da vida Sempre fizera com que se sentisse um fracassado culpado pela falta de aproveitamento dos filhos por não trazer bastante dinheiro para casa Ele sabia muito bem que era tarde demais para satisfazer os anseios e as expectativas dela À medida que se sentia mais fraco e incapaz de trabalhar rememorando sua vida 124 passada conscientizavase ainda mais da discrepância entre os seus valores e os dela O abismo parecia tão profundo que a comunicação se tornara quase impossível Tudo isto aconteceu a esse homem durante o luto pela morte da filha que reavivou a tristeza sentida pela morte dos pais Pelo que falou sentimos que foi tanto o sofrimento que não podia acrescentar mais tristeza deixando suspenso um diálogo que talvez lhe proporcionasse uma sensação de paz Havia um sentimento de orgulho em toda essa depressão um sentimento digno apesar da falta de reconhecimento de sua família Deste modo não nos era possível ajudar apenas desejar servir de instrumento numa conversa final entre ele e a mulher Finalmente entendemos por que a equipe hospitalar ignorava até que ponto o Sr H estava ciente de sua doença É que ele não pensava tanto no câncer quanto na revisão do significado de sua vida buscando meios para dividila com a pessoa mais importante sua mulher Sua profunda depressão não se devia à doença incurável mas a não ter terminado o luto pela morte de seus pais e filha Quando já existe muita dor não se sente tanto quando uma dor nova atinge um corpo sadio Entretanto sentíamos que aquela dor poderia ser aplacada se encontrássemos meios de comunicar tudo isto à Sra H Na manhã seguinte tivemos um encontro com ela Era uma mulher forte potente sadia enérgica como ele havia descrito Confirmou quase tintim por tintim o que ele havia dito um dia antes A vida continuará a mesma quando ele deixar de existir Ele era fraco não podia nem cortar a grama porque seria capaz de desmaiar Os homens da fazenda eram um tipo bem diferente musculosos e fortes Trabalhavam de sol a sol e ele não se interessava nem em ganhar dinheiro Sim ela sabia que ele teria pouco tempo de vida mas não podia leválo para casa Planejava internálo numa clínica particular onde fria visitálo Dizia tudo isso num tom de mulher ocupada atarefada com muitas outras coisas e que não podia ser perturbada Naquele instante acho que perdi a paciência ou compreendi a falta de 125 esperança do Sr H mas repeti com minhas próprias palavras a essência do que ele dissera Resumi brevemente que o Sr H não preenchera as expectativas dela que realmente não era muito bom em muitas coisas e que não seria pranteado quando morresse Repassando a vida dele poderíamos perguntar se havia nela algo que o fizesse lembrado De repente ela me fitou e com a voz cheia de sentimento quase gritou O que é que a senhora quer dizer Ele foi o homem mais honesto e mais fiel do mundo Ficamos mais alguns minutos e contei alguma coisa que ouvíramos na entrevista A Sra H admitiu que jamais tinha pensado nele nestes termos e se dispôs a dar um voto de confiança às qualidades dele Voltamos juntas ao quarto do paciente e ela mesma transmitiu o que conversáramos no consultório Jamais esquecerei o rosto pálido do paciente afundado no travesseiro o olhar interrogativo a expressão de admiração como a perguntar se conseguíramos dizer tudo Então seus olhos brilharam ouvindo sua mulher dizer e eu disse a ela que você era o homem mais honesto e mais fiel do mundo difícil de se encontrar hoje em dia E que voltando para casa vamos passar pela igreja e apanhar algum trabalho que tem tanto significado para você Servirá para distrailo nos próximos dias Havia certo calor autêntico em sua voz ao falar com ele e preparálo para deixar o hospital Jamais a esquecerei enquanto viver disseme quando deixei o quarto Sabíamos ambos que não seria por longo tempo mas a essa altura isso pouco importava 126 VII Quinto estágio Aceitação Já posso partir Que meus irmãos se despeçam de mim Saudações a todos vocês começo minha partida Devolvo aqui as chaves da porta e abro mão dos meus direitos na casa Palavras de bondade é o que peço a você por último Estivemos juntos tanto tempo mas recebi mais do que pude dar Eis que o dia clareou e a lâmpada que iluminava o meu canto escuro se apagou A ordem chegou e estou pronto para minha viagem Tagore Gitanjali XCIII Um paciente que tiver tido o tempo necessário isto é que não tiver tido uma morte súbita e inesperada e tiver recebido alguma ajuda para superar tudo conforme descrevemos anteriormente atingirá um estágio em que não mais sentirá depressão nem raiva quanto a seu destino Terá podido externar seus sentimentos sua inveja pelos vivos e sadios e sua raiva por aqueles que não são obrigados a enfrentar a morte tão cedo Terá lamentado a perda iminente de pessoas e lugares queridos e contemplará seu fim próximo com um certo grau de tranqüila expectativa Estará cansado e bastante fraco na maioria dos casos Sentirá também necessidade de cochilar de dormir com freqüência e a intervalos curtos diferente da necessidade de dormir durante a fase da depressão Não é um sono de fuga nem um instante de descanso para aliviar a dor 127 um incômodo ou um prurido É uma necessidade gradual e crescente de aumentar as horas de sono como um recémnascido mas em sentido inverso Não é um desânimo resignado e sem esperança um senso de o que adianta ou não agüento mais lutar embora se ouçam também estas frases Indicam também o começo do fim da luta mas estas últimas não significam aceitação Não se confunda aceitação com um estágio de felicidade É quase uma fuga de sentimentos É como se a dor tivesse esvanecido a luta tivesse cessado e fosse chegado o momento do repouso derradeiro antes da longa viagem no dizer de um paciente É também o período em que a família geralmente carece de ajuda compreensão e apoio mais do que o próprio paciente À medida que ele às vésperas da morte encontra uma certa paz e aceitação seu círculo de interesse diminui E deseja que o deixem só ou pelo menos que não o perturbem com notícias e problemas do mundo exterior Os visitantes quase sempre São indesejados e o paciente já não sente mais vontade de conversar com eles Geralmente pede que seja limitado o número de pessoas e prefere visitas curtas É o período em que se desliga a televisão Nossas conversas então passam de verbais a nãoverbais O paciente já indica com um gesto de mão que nos sentemos um pouco É provável que só segure nossa mão num pedido velado de que fiquemos em silêncio Para quem não se perturba diante de quem está prestes a morrer estes momentos de silêncio podem encerrar as comunicações mais significativas Podemos juntos ouvir o canto de um pássaro lá fora Nossa presença pode até ser uma garantia de que vamos ficar por perto até o fim Quando já estiverem sendo providenciadas as coisas mais importantes podemos simplesmente deixar que saiba que tudo está bem sem precisar dizer alguma coisa É só uma questão de tempo até fechar os olhos para sempre Isto podelhe dar certeza quando não puder mais falar de que não foi abandonado e um leve aperto de mão um olhar um recostar no travesseiro podem dizer mais do que muitas palavras proferidas 128 Uma visita à noitinha pode ser ótima para um encontro deste tipo pois tanto para o visitante como para o paciente é o final do dia É a hora em que o serviço do hospital não vem interromper estes momentos nem a faxineira aparece para esfregar o chão Estes breves momentos íntimos podem coroar o dia ao final das rondas médicas quando ninguém mais o perturba Não passam de breves momentosmas para o paciente é reconfortante sentir que não foi esquecido quando nada mais pode ser feito por ele É gratificante inclusive para o visitante pois isto vem mostrar que a morte não é uma coisa horrível medonha que tantos querem evitar Há alguns pacientes que lutam até o fim que se debatem e se agarram à esperança tomando impossível atingir este estágio de aceitação Chega o dia em que dizem Não posso resistir mais Quando deixam de lutar a luta acaba Em outras palavras quanto mais se debatem para driblar a morte inevitável quanto mais tentam negála mais difícil será alcançar o estágio final de aceitação com paz e dignidade A família e a equipe hospitalar podem achar que esses pacientes são resistentes e fortes e encorajálos na luta pela vida até o fim deixando transparecer que aceitar o próprio fim é uma entrega covarde uma decepção ou pior ainda uma rejeição da família Como saber então quando um paciente está se entregando cedo demais quando sentimos que um pouco de esforço de sua parte aliado à ajuda médica poderia darlhe possibilidade de viver um pouco mais Como distinguir esta entrega do estágio de aceitação quando geralmente nosso desejo de prolongar a vida contrasta com o desejo dele de descansar e morrer em paz Se não somos capazes de distinguir entre estes dois estágios fazemos mais mal do que bem a nossos pacientes e nos sentiremos frustrados em nossos esforços além de fazermos de sua morte uma última e penosa experiência O caso da Sra W que mostramos a seguir resume brevemente o que acontece quando não se distingue uma coisa da outra 129 A Sra W cinqüenta e oito anos de idade casada foi hospitalizada com um tumor maligno no abdômen que lhe causava dores atrozes Ela tinha conseguido enfrentar sua grave doença com coragem e denodo Raramente se queixava e procurava fazer sozinha o maior número de tarefas Recusava qualquer ajuda ao perceber que podia fazer sozinha e o pessoal do hospital e seus familiares ficavam impressionados com seu bom humor e seu jeito de enfrentar a morte iminente com serenidade Logo depois de sua última internação no hospital entrou de repente em depressão A equipe hospitalar ficou confusa com esta mudança e solicitou a presença de um psiquiatra Quando a procuramos não estava no quarto nem a encontramos mais tarde quando voltamos para uma segunda visita Finalmente fomos encontrála no corredor fora da sala de raio X deitada numa maca cheia de dores e sem conforto algum Ficamos logo sabendo que ela deveria submeterse a duas séries demoradas de radiografia mas que deveria aguardar os que estavam na frente Mostravase aflita por causa de uma ferida que tinha nas costas não havia comido nem bebido nada desde as últimas horas e o pior de tudo precisava ir urgentemente ao banheiro Contou tudo isso em voz bem baixa dizendo que se sentia zonza de tanta dor Oferecime para levála ao banheiro mais próximo Olhoume e respondeu com um leve sorriso nos lábios pela primeira vez Não obrigada estou descalça prefiro esperar até voltar para o quarto Lá posso ir sozinha Foi uma observação rápida que nos revelou uma das necessidades da paciente cuidar de si mesma tanto quanto possível manter a dignidade e a independência sempre que pudesse Estava exasperada por terem testado sua paciência a ponto de estar prestes a gritar alto em público a evacuar num corredor a gritar na frente de estranhos que só cumpriam seu dever 130 Dias mais tarde quando conversávamos em circunstâncias mais favoráveis era visível que se cansava cada vez mais e estava pronta para morrer Falou rapidamente sobre seus filhos seu marido que seriam capazes de continuar sem ela Sentia fortemente porque sua vida sobretudo seu casamento fora muito boa e cheia de sentido não havendo muito que pudesse ainda fazer Pediu que a deixassem morrer em paz quis ficar só desejando mesmo que seu marido não se envolvesse tanto Disse que o único motivo que a mantinha viva era o fato de seu marido não conseguir aceitar que ela morresse Chegava a ficar zangada com ele por não encarar os fatos e por agarrarse tão desesperadamente a algo que ela estava desejosa e pronta para abandonar Interpretei para ela como sendo um desejo de desligarse deste mundo e ela balançou a cabeça agradecida quando a deixei só Nesse ínterim a equipe médicocirúrgica havia feito uma reunião com o marido da paciente sem que nem ela nem eu soubéssemos Enquanto os cirurgiões acreditavam que a vida dela poderia ser prolongada graças a outra intervenção cirúrgica o marido implorava que fizessem tudo ao alcance para atrasar o relógio Perder a esposa era inaceitável para ele Não podia compreender que ela não sentia mais necessidade de ficar com ele A necessidade dela de se desligar de tornar a morte mais fácil era por ele interpretada como uma rejeição que ia além de sua compreensão Não havia ninguém lá para explicar que aquele era um processo natural até um progresso um indício talvez de que um moribundo encontrara a paz e se preparava para enfrentar a morte sozinho A equipe decidiu operar a paciente na semana seguinte Quando ela foi informada destes planos enfraqueceu a olhos vistos Passava quase a noite toda pedindo o dobro da medicação para suas dores Cada vez que ia tomar injeção pedia um remédio contra dor Tornouse intranqüila e ansiosa sempre buscando ajuda Não era mais a paciente de 131 alguns dias atrás a digna senhora que não podia ir ao banheiro porque estava sem chinelos Estas mudanças de comportamento deviam alertarnos São comunicações de nossos pacientes que tentam dizer alguma coisa Nem sempre é possível para uma paciente recusar abertamente uma operação para prolongar a vida diante de um marido desesperado e suplicante e de filhos que esperam que a mãe fique em casa por mais algum tempo Enfim não deveríamos menosprezar que o paciente guarde uma tênue esperança de cura diante da morte iminente Como já salientamos não está na natureza humana aceitar a morte sem deixar uma porta aberta para uma esperança qualquer Portanto não basta ouvir somente as comunicações verbais abertas de nossos pacientes A Sra W mostrara claramente que desejava que a deixassem em paz Sentiuse muito mais intranqüila e cheia de dor depois que lhe informaram sobre a cirurgia programada Sua ansiedade aumentava à medida que se aproximava o dia da operação Não tínhamos autoridade para cancelar a operação O que fizemos foi apenas comunicar nossa total reserva e certeza de que a paciente não suportaria tal operação A Sra W não teve força suficiente para recusar a cirurgia nem morreu antes ou durante a intervenção Contudo ficou totalmente psicótica ao chegar à sala de operação manifestando idéias de perseguição gritando e continuando assim até ser levada de volta para o quarto minutos antes de a operação ser realizada Ela estava completamente fora de si tendo alucinações visuais e idéias paranóicas Parecia amedrontada desnorteada e proferia palavras sem nexo Mesmo assim com todo esse comportamento psicótico havia um certo grau impressionante de consciência e lógica Assim que chegou ao quarto pediu para me ver Quando entrei no quarto no dia seguinte ela olhou para o marido atônito e disse Converse com este homem e faça com que ele 132 entenda Virou então as costas para nós mostrando claramente a necessidade de querer ficar só Eu já tivera um primeiro contato com seu marido que ali estava sem palavras Não podia entender o comportamento maluco de sua esposa que sempre fora uma senhora honrada Para ele era difícil suportar o rápido agravamento da doença física da mulher mas não podia compreender sobre o que seria nosso louco diálogo Disse com lágrimas nos olhos que estava completamente confuso com essa mudança brusca que seu casamento fora de uma felicidade ímpar que era absolutamente inaceitável a doença fatal de sua mulher Nutria esperanças de que a operação faria com que voltassem a estar juntinhos como sempre durante os muitos anos de seu feliz casamento O desapego da mulher o preocupava e mais ainda o seu comportamento psicótico Ficou em silêncio quando lhe perguntei se as necessidades da paciente estavam acima das dele Aos poucos foi percebendo que jamais dera ouvidos às necessidades dela pois não passava pela sua cabeça que pudessem ser diferentes das suas Não podia compreender como um paciente chega a um ponto em que a morte nada mais é do que um grande alívio e que se torna mais fácil morrer quando se é ajudado a desapegarse de todos os relacionamentos importantes de sua vida Tivemos uma conversa demorada À medida que falávamos as coisas iam pouco a pouco se esclarecendo entrando nos eixos Contou inúmeros casos como a confirmar que ela tentara comunicar suas necessidades as quais ele não ouvia por estarem em oposição às suas Ao sair da sala o Sr W apresentava um rosto desanuviado e não quis que o acompanhasse ao quarto da paciente Sentiase mais forte para falar com franqueza com sua mulher sobre o desfecho de sua doença e parecia quase contente de que a operação tivesse sido cancelada graças à resistência dela como ele chamou Foi essa a sua reação diante da psicose 133 dela Meu Deus ela é capaz de ser mais forte do que nós todos Ela nos enganou mesmo Deixou claro que não queria ser operada Talvez a psicose tenha sido a válvula de escape para não morrer sem estar preparada Alguns dias mais tarde a Sra W confirmou que não se consideraria pronta para morrer se não soubesse que o marido a deixaria partir Ela queria que ele sentisse como ela em vez de fingir sempre que vou ficar boa Seu marido tentara permitir que ela tocasse no assunto embora lhe fosse penoso e ele falhasse muitas vezes como quando se agarrava à esperança do tratamento radioterápico ou tentava pressionála a voltar para casa prometendo contratar uma enfermeira particular para cuidar dela Nas duas semanas seguintes vinha conversar de vez em quando sobre sua mulher seus anseios inclusive sobre sua eventual morte Finalmente acabou aceitando o fato de que ela ficaria cada vez mais fraca e menos capaz de tomar parte em muitas coisas antes tão cheias de sentido em suas vidas Logo que a operação foi definitivamente cancelada e seu marido admitiu a morte iminente compartilhando isso com ela recuperouse de sua breve fase psicótica Passou a sentir menos dores e reassumiu seu papel de senhora distinta continuando a fazer tudo o que sua condição física permitia A equipe técnica tornouse cada vez mais sensível às manifestações mais sutis respondendo com tato tendo sempre em mente a necessidade básica da paciente viver com dignidade até o fim A Sra W simbolizava a maioria de nossos pacientes moribundos embora tenha sido a única que eu visse valerse de uma fase psicótica tão aguda Estou certa de que foi uma defesa uma tentativa desesperada de evitar a operação que iria prolongar sua vida operação que chegou tarde demais Como dissemos antes descobrimos que os pacientes que melhor reagem são aqueles que foram encorajados a extravasar 134 suas raivas a chorar durante o pesar preparatório a comunicar seus temores e fantasias a quem puder sentarse e ouvilos em silêncio Deveríamos tomar consciência do enorme trabalho em alcançar este estágio de aceitação levando a uma separação gradativa decatexia onde não há mais diálogo Descobrimos dois meios mais fáceis de atingir este objetivo Um tipo de paciente chegará a ela através de pouca ou nenhuma ajuda dos circunstantes a não ser uma compreensão silenciosa sem qualquer interferência É o paciente mais velho que se sente no fim da vida que trabalhou que sofreu que educou os filhos e cumpriu seu dever Foi alcançado o objetivo de sua vida e goza de certa satisfação ao recordar dos seus dias de labor Outros menos afortunados podem alcançar idêntico estado de mente e corpo quando dispõem de tempo suficiente para se prepararem para morrer Vão precisar de mais ajuda e compreensão por parte de quem os circunda à medida que se esforçam para atravessar os estágios anteriormente descritos Temos visto a maioria de nossos paciente morrer no estágio de aceitação sem medo e desespero Talvez se compare melhor com o que Bettelheim descreve sobre a primeira infância De fato foi uma idade em que nada nos era pedido e tudo o que queríamos nos era dado A psicanálise vê a primeira infância como um período de passividade uma idade de narcisismo primário quando vivenciamos o eu como sendo tudo Assim quando chegarmos ao fim de nossos dias tendo trabalhado sofrido nos doado e nos divertido voltaremos ao estágio por onde começamos e se fecha o ciclo da vida As duas entrevistas seguintes são exemplos de marido e mulher que buscam o estágio de aceitação Dr G dentista pai de um filho de vinte e quatro anos era um homem profundamente religioso No capítulo IV sobre a raiva servimonos do exemplo dele quando surgiu a pergunta por que eu Foi quando se lembrou do velho George e se perguntou por que não tomavam a vida daquele homem em vez 135 da sua À parte o quadro de aceitação presente durante a entrevista vêse também um aspecto de esperança Conscientemente sabia bem de seu estado e como profissional logo percebeu que teria chance remota de continuar trabalhando Mesmo assim até pouco antes da entrevista não estava disposto ou não se sentia capaz de encarar o fato de fechar seu consultório Mantinha uma recepcionista para receber os clientes e agarravase à esperança de que Deus repetiria o incidente que acontecera com ele durante os anos de guerra em que escapou sem ser atingido de um tiro a curta distância Ser alvejado a uma distância de seis metros e não ser atingido é uma demonstração de que existe um outro poder além do fato de você ser um indivíduo que se defende bem Doutora Podenos dizer há quanto tempo está no hospital e as razões que o trouxeram para cá Paciente Pois não Como vocês provavelmente devem saber sou dentista e exerço a profissão há muitos anos Em fins de junho senti uma dor súbita que não julguei anormal fiz radiografia imediatamente e fui operado pela primeira vez no dia 7 de julho Doutora De 1966 Paciente De 1966 Foi quando me dei conta de que havia noventa por cento de possibilidade de que fosse um tumor maligno mas foi uma consideração superficial de minha parte já que era a primeira experiência e a primeira vez que sentia uma dor Superei bem a operação convalesci admiravelmente mas tive um bloqueio intestinal subseqüente tendo que me submeter a uma nova cirurgia no dia 14 de setembro Desde 27 de outubro não estava satisfeito com minha recuperação Minha mulher entrou em contato com um médico daqui e viemos para cá Estou em constante tratamento desde aquela data Eis em resumo meu período de hospitalização 136 Doutora Em que ponto da doença você soube realmente o que tinha Paciente Na realidade soube que poderia ser um tumor maligno logo que vi as radiografias pois um tumor nesta região especifica tem noventa por cento de possibilidade de ser maligno Mas como eu disse não julguei que pudesse ser tão grave e eu estava passando bem O médico não me falou sobre a gravidade do meu estado mas comunicou à família assim que saiu da sala de operação Pouco tempo depois fui com meu filho a uma cidade vizinha Sempre fomos uma família muito unida começamos a conversar sobre o meu estado geral quando ele me perguntou Mamãe lhe disse alguma vez o que você realmente tem Respondilhe que não Sei que foi uma dor profunda para ele mas me contou que ao fazerem a primeira operação constataram que não só era um tumor maligno como também metastático e cobria todos os órgãos do corpo A sorte era que não afetara nem o fígado nem o baço Aos dez anos de idade meu filho tinha começado a conhecer Deus e desde essa época temos trocado experiências nesse sentido Cresceu e foi para a faculdade mas foi esta experiência que fez com queamadurecesse muito Doutora Qual a idade dele agora Paciente Vai completar vinte e quatro anos no domingo que vem Percebi seu grau de maturidade depois da nossa conversa Doutora Como você reagiu ouvindo isso pela boca de seu filho Paciente Bem para ser franco eu já desconfiava mais ou menos disso porque já tinha notado diversas coisas Não sou tão leigo no assunto Há vinte anos sou membro de um hospital e faço parte da equipe portanto entendo dessas coisas Naquela ocasião meu filho me disse também que o cirurgiãoassistente dissera à minha 137 mulher que eu viveria de quatro a quatorze meses Eu não senti nada Vivo em paz comigo mesmo desde que descobri isso Não tive um período sequer de depressão Suponho que em meu lugar a maioria das pessoas apontaria para os outros e diria Por que isto não aconteceu com ele Foi o que me passou pela cabeça diversas vezes mas só em rápidas pinceladas Lembrome de uma vez que fomos ao consultório buscar a correspondência e vimos um homem que eu conhecia desde pequeno descendo a rua Tem oitenta e dois anos e já deu o que tinha que dar como costumamos dizer Tem reumatismo é aleijado e sujo o tipo da pessoa que ninguém gostaria de ser O pensamento bateu forte Por que foi acontecer logo comigo e não com o velho George Mas não chegou a ser um pensamento profundo Possivelmente foi a única coisa em que pensei Antevejo o meu encontro com Deus mas ao mesmo tempo gostaria de ficar na terra o máximo possível O que sinto mais profundamente é ter que me separar da família Doutora Quantos filhos o senhor tem Paciente Só um Doutora Filho único Paciente Como eu disse temos sido uma família muito unida Doutora Sendo tão unidos e você por ser dentista estando quase certo de que era um câncer ao ver as radiografias por que não conversou com sua esposa ou com seu filho Paciente Não sei ao certo Só sei que minha mulher e meu filho esperavam que fosse uma cirurgia extensa e esperávamos um resultado satisfatório após um período curto de dores Já não ligava muito em procurálos É compreensível que minha mulher tenha ficado arrasada ao saber da verdade Meu filho aí entra a sua maturidade foi um baluarte de força naquele período Mas minha mulher e eu temos conversado francamente sobre o 138 assunto e estamos em busca de tratamento porque sinto que Deus pode me curar Ele é capaz Qualquer que seja o método de cura eu aceitarei Não sabemos o que a medicina vai fazer nem sabemos de onde vêm suas descobertas O que é que faz com que uma pessoa arranque uma raiz do chão e afirme que pode ser útil no tratamento disso ou daquilo como já aconteceu Em todos os nossos hospitais encontramos agora pequenas coisas se desenvolvendo em larga escala porque acham que têm relação direta com a pesquisa sobre o câncer Como se chegaria a esta conclusão A meu ver é um mistério e um milagre e acho que isto vem de Deus Capelão Pelo que deduzo a fé tem muito sentido para você não só durante a doença mas também antes Paciente É verdade Há dez anos atrás cheguei ao conhecimento vivo de Nosso Senhor Jesus Cristo através de um estudo das Sagradas Escrituras que não concluí No que me toca ficou patente a descoberta de que eu era um pecador Não tinha percebido isso ainda porque sou e sempre fui uma pessoa de bem Doutora O que o levou a isso há dez anos atrás Paciente Vai ainda mais longe Quando estive no exterior conheci um capelão que conversava muito sobre os fatos acontecidos na guerra como o que se deu comigo Não acredito que alguém possa ser alvejado mais de uma vez escapar ileso e não perceber que existe alguma coisa a seu lado sobretudo quando o atirador se encontra a alguns passos de você Como digo sempre fui um bom sujeito nunca blasfemei nem disse palavrão nunca bebi nem fumei nem liguei para nada disso Não paquerei as mulheres isto é não em demasia e sempre fui um rapaz muito bom Portanto não poderia imaginar que fosse um pecador até o momento em que o capelão programou um encontro Havia cerca de três mil pessoas No encerramento não me lembro bem agora que oração ele fez só sei que pediu que se aproximassem os que 139 queriam se dedicar a Deus Não sei por que me aproximei o fato é que senti um chamado Depois analisei minha decisão sentiame mais ou menos como quando tinha seis anos época em que pensava que o mundo iria desabrochar cheio de beleza e tudo iria mudar Na manhã em que completei seis anos minha mãe me encontrou diante de um espelho de uns três metros quadrados que tínhamos na sala e disse Feliz aniversário Bobby E perguntou O que você está fazendo Respondi que estava me olhando no espelho O que é que você vê Estou com seis anos mas pareço o mesmo sintome o mesmo e graças a Deus sou o mesmo Mas quando cresceu minha experiência descobri que não era o mesmo que já não suportava mais certas coisas que suportava antes Doutora Por exemplo Paciente Por exemplo perceber de repente no relacionamento com as pessoas que encontramos uma coisa que os homens de negócios fazem com certa freqüência que muitos contatos estão sendo feitos em bares Antes de um encontro profissional muitos homens vão ao bar do motel ou do hotel sentamse bebem e fazem amigos Não ligava muito para isso Não bebia mas não chegava a me chatear Mais tarde porém comecei a me aborrecer porque não acreditava naquilo E quase não podia aceitar Eu já não fazia as coisas de antes Foi quando percebi que estava diferente Doutora Tudo isso o ajudou agora que tem que lidar com sua própria morte e sua doença fatal Paciente Ajudou e muito Como disse tenho estado em absoluta paz comigo mesmo desde que acordei da anestesia depois da operação Não podia gozar de maior paz Doutora Não tem medo Paciente Honestamente não posso dizer que tenho medo 140 Doutora Dr G você é um homem singular Raramente encontramos homens que encaram a própria morte sem nenhum medo Paciente É que espero entrar no reino de Deus quando morrer Doutora Por outro lado conserva ainda alguma esperança de cura ou de uma nova descoberta médica não Paciente Certo Doutora Acho que é isto que estava dizendo antes Paciente A Bíblia promete cura se pedirmos ao Senhor Roguei ao Senhor e fiz uma promessa Por outro lado quero que se faça a Sua Vontade Isto acima de tudo acima de minha própria opinião Doutora Você mudou alguma coisa no seu diaadia desde que soube do seu câncer Algo mudou em sua vida Paciente Com relação a atividades Vou sair do hospital daqui a uns 15 dias e não sei o que vai acontecer Tenho vivido mais ou menos no hospital dia após dia Como você conhece a rotina do hospital sabe como são as coisas Capelão Se ouvi bem o que disse antes sinto que algo me soa familiar O que diz é o que Cristo disse antes de ir para a cruz Não a minha mas a Tua Vontade seja feita Paciente Não tinha pensado nisso Capelão É o sentido do que você disse Desejou esperançoso que se possível não fosse a sua hora entretanto submeteu esse desejo a outro mais profundo ou seja que se fizesse a vontade de Deus Paciente Sei que tenho muito pouco tempo de vida talvez alguns anos com o tratamento que estou fazendo agora talvez alguns meses É lógico ninguém garante que vai voltar para casa à noite Doutora Tem alguma idéia concreta de como será 141 Paciente Não Sei que tudo já foi providenciado É o que nos garantem as Sagradas Escrituras e nisto deposito minhas esperanças Capelão Acho que devemos parar por aqui Faz pouco tempo que você conseguiu se levantar Talvez só mais alguns minutos Paciente Estou me sentindo bem Capelão Está Eu disse à doutora que não nos demoraríamos com você Doutora Deixamos que decida e nos avise quando sentir o mais leve cansaço Como se sente com esta conversa franca sobre um assunto tão temível Paciente Bem eu não acho que seja tão temível assim Depois que o Reverendo I e o Reverendo N saíram daqui esta manhã tive tempo para pensar Nada me afetou sobretudo se almejo ser útil a alguém que esteja enfrentando a mesma situação e não esteja tendo a mesma fé que tenho Doutora Na sua opinião o que podemos auferir das entrevistas a pacientes moribundos e desenganados que possa contribuir para melhor ajudálos a enfrentar a situação sobretudo os que não têm a sorte de ser como você Porque você tem fé e está claro que isto o ajuda muito Paciente É algo que tenho analisado bastante desde que adoeci Sou do tipo que quer saber o prognóstico completo enquanto há outros que ao descobrirem uma doença mortal ficam completamente arrasados O que fazer ao abordar um paciente só a experiência pode dizer Doutora Esta é uma das razões por que entrevistamos os pacientes aqui com a equipe de enfermagem e o pessoal do hospital Podemos observar cada paciente e selecionar os que querem falar mesmo e os que preferem não tocar no assunto 142 Paciente Acho que as primeiras visitas deveriam ser neutras até vocês descobrirem a profundidade com que o paciente se conhece suas experiências sua religião e sua fé Capelão Vejo que a Dra R se referiu a você como sendo um homem de sorte mas acho que você quer dizer que desta experiência surgem coisas importantes como por exemplo o relacionamento com seu filho situado num plano diferente e o fato de reconhecer que o crescimento proveio disto tudo Paciente É também achava que tínhamos sorte Ia justamente comentar isto porque não sinto que esta área específica seja uma questão de sorte O fato de reconhecer Deus como Salvador é algo que suplanta a sorte É uma experiência maravilhosa muito profunda que nos prepara para as vicissitudes da vida e as provações que temos que enfrentar Todos temos que enfrentar provações ou doenças Isto nos prepara para aceitálas porque como disse antes ser alvejado a uma distância de seis metros e escapar ileso é uma demonstração de que existe um outro poder além do fato de você ser uma pessoa que se defende bem Sempre ouvimos dizer que não existem ateus nas trincheiras e é verdade Lá vemos os homens se aproximarem de Deus Quando a vida deles corre perigo não só nas trincheiras mas quando sofrem um acidente grave e de repente percebem que estão acidentados chamam automaticamente pelo nome de Deus Não é uma questão de sorte É uma questão de procurar e achar o que Deus nos reserva Doutora Não mencionei a palavra sorte casualmente mas como uma possibilidade que se concretiza como algo feliz e venturoso Paciente É entendo É uma experiência feliz sim É maravilhoso poder sentir esta experiência durante um período de doença como este quando há pessoas que 143 rezam por você e você sente isso É uma tremenda ajuda para mim aliás tem sido Capelão Interessante fiz esta observação à Dra R logo que viemos para o seminário não só você sentiu que as pessoas se lembravam de você mas sua mulher foi capaz de transmitir alguma força aos que tinham parentes moribundos aqui rezando por eles Paciente Há uma outra coisa que ia mencionar Minha mulher mudou muito neste período Ficou muito mais forte Dependia muito de mim Como provavelmente já perceberam sou uma pessoa muito independente e assumo minhas responsabilidades à medida que elas vão surgindo Portanto ela não teve oportunidade de fazer muitas das coisas que algumas mulheres fazem como tomar conta dos negócios da família o que a tornou muito dependente Mas mudou muito Agora ela é mais profunda mais forte Doutora Você acha que ajudaria se conversássemos um pouco com ela ou isto seria demais Paciente Não acho que iriam magoála Ela é cristã sabe e sempre soube desde criança que Deus é seu Salvador A propósito quando criança foi curada de uma vista os especialistas iam mandála para o hospital em Saint Louis para ablação de um olho ulcerado Foi curada milagrosamente e nesta cura arrastou outras pessoas inclusive um médico ao conhecimento de Deus É metodista convicta mas este foi o elemento que cimentou sua fé Tinha mais ou menos dez anos de idade mas a experiência com este médico foi o elemento de consolidação em sua vida Doutora Sofreu alguma provação mais forte antes da doença ou uma tristeza muito grande nos dias de juventude para comparar que sofreu na ocasião com o que sofre hoje Paciente Não Tenho sempre me analisado e fico pensando como cheguei a este ponto Só sei que foi mediante a 144 ajuda de Deus porque nunca passei por uma prova extrema a não ser o perigo que corri combatendo na Segunda Grande Guerra Mundial Foi minha primeira provação e a primeira vez na vida em que enfrentei realmente a morte sabia que a estava enfrentando para onde quer que me voltasse Doutora Acho que devemos parar Quem sabe poderemos voltar de vez em quando Paciente Gostaria muito Doutora Muito obrigada por você ter vindo Paciente Gostei muito de ter vindo A esposa do Dr G veio visitálo no momento em que o levávamos para a sala de entrevistas O capelão que a conhecia de visitas anteriores explicou rapidamente o que íamos fazer Ela ficou interessada e a convidamos para juntarse a nós mais tarde Enquanto entrevistávamos seu marido ficou esperando no quarto ao lado e só entrou quando ele foi levado de volta ao seu quarto Por isso teve pouco tempo para refletir e formular pensamentos Em geral procuramos dar tempo suficiente entre a entrevista e o convite para dar liberdade de escolha ao entrevistado Doutora Está se sentindo colhida de surpresa por vir visitar o marido e acabar entrando para uma entrevista como esta Conversou com o capelão sobre o nosso seminário Sra G Mais ou menos Doutora Como reagiu à notícia da súbita e grave doença de seu marido Sra G Bem devo dizerlhe que a princípio fiquei muito chocada Doutora Até aquele verão ele era um homem saudável Sra G Era sim 145 Doutora Nunca andou muito doente nem se lamentando nada Sra G Apenas se queixando de algumas dores Doutora E então Sra G Fomos ao médico que sugeriu o raio X Então fizeram a cirurgia Até então não me havia compenetrado da gravidade do caso Doutora Quem lhe contou a notícia e como lhe comuni caram Sra G Nosso médico é um amigo muito chegado a nós Antes de meu marido entrar na sala de operação esse médico me chamou e disse que poderia ser um tumor maligno Não é possível foi o que exclamei E acrescentou Pois é estou alertandoa Portanto estava um pouco preparada mas quando me disseram que era mais sério não aquilatei que estávamos recebendo más notícias Não tivemos sorte disse o médico Foi a primeira frase de que me lembro Fiquei muito abalada pensando que ele não iria durar muito Três ou quatro meses foi o que me disse um dos médicos Quanto tempo a gente leva para entender tudo isso Então a primeira coisa que fiz foi rezar Rezei enquanto ele estava na mesa de operação Fiz uma prece um tanto egoísta para que não se tratasse de um tumor maligno É lógico o ser humano é assim Queremos que seja à nossa maneira Enquanto não coloquei tudo nas mãos de Deus não senti a paz de que tanto precisava O dia da operação foi horrível e aquela noite parecia não ter fim Mas encontrei a paz que me deu coragem Encontrei muitas passagens na Bíblia que me deram forças Em casa temos um altar de família Devo dizer que antes de isso acontecer encontramos uma frase em Isaías 33 3 que decoramos e repetimos sempre Vem a mim eu te ouvirei e te mostrarei grandes e poderosas coisas que desconhecias Doutora Isto foi antes de saberem da noticia 146 Sra G Duas semanas antes mais ou menos Esse versículo me tocou e fiquei repetindo E outras passagens no livro de João que me tocaram bastante Se pedirdes qualquer coisa em Meu nome eu vola darei Eu queria que se fizesse a vontade de Deus mas só me encontrei por estes meios Consegui ir em frente porque temos sido muito fervorosos e temos um filho Nessa ocasião meu filho morava fora na universidade Os universitários estão sempre ocupados com muitas coisas mas ele veio até mim e procuramos ajuda literalmente nas Escrituras Ele fazia preces maravilhosas comigo e o pessoal de nossa igreja era bastante amigo Vinham visitarnos e liam passagens confortadoras na Bíblia passagens que já lera tantas vezes mas que não tinham para mim o sentido que têm agora Capelão A esta altura elas parecem ganhar força e quase traduzem seus sentimentos Sra G Toda vez que abria a Bíblia encontrava alguma frase que parecia ter sido escrita para mim Cheguei a pensar que talvez pudesse auferir algum bem de tudo aquilo Foi como encarei a situação e hoje encontro forças diariamente para enfrentála Meu marido tem uma fé muito grande e quando soube do seu estado me disse O que é que você faria se lhe dissesse que só tem de quatro a quatorze meses de vida Coloquei tudo nas mãos de Deus e confio Nele Logicamente queria que se fizesse por meu marido tudo o que estivesse ao alcance da medicina Nossos médicos disseram que nada mais havia a fazer Cheguei a sugerir cobalto algum tipo de raio X ou o tratamento radioterápico etc Não aconselharam disseram apenas que era um caso fatal Meu marido não é também do tipo que desiste facilmente De modo que quando conversei com ele lembreilhe que ele conhecia a Deus que a única forma pela qual Deus age é através do homem e Ele inspira os médicos Foi o que lemos num artigo de uma revista que um vizinho nos trouxe Nem 147 consultei meu marido simplesmente entrei em contato com o médico do hospital Doutora Havia um artigo Sra G Havia numa revista Pensei Eles estão tendo sucesso Sei que não há cura mas estão sendo bemsucedidos Vou falar com eles Escrevi uma carta mandei por entrega rápida e o médico a recebeu no sábado de manhã Sua secretária não estava por isso foi ele quem ligou Sua carta me despertou muito interesse foi muito esclarecedora mas preciso de um relatório minucioso Veja se consegue com seu médico e mandeo como enviou a carta A senhora pôs ontem no correio e já recebi hoje de manhã Foi o que fiz Não demorou e ele telefonou Estão remodelando este setor Assim que conseguir um leito chamo a senhora E acrescentou Não lhe posso fazer muitas promessas mas não acredito muito nesse enfoque fatalista Fiquei radiante Havia alguma coisa a mais que poderíamos fazer ao invés de ficar sentados e esperar como haviam dito os médicos Então tudo pareceu caminhar a passos largos Viemos de ambulância Devo dizerlhes que na noite em que o examinaram não nos deram muita esperança Fomos quase tentados a dar meiavolta e voltar para casa Rezei de novo Naquela noite deixei o hospital e fui para a casa dos meus pais sem saber o que me esperava no dia seguinte Deixaram que decidíssemos continuar ou não o tratamento Fui rezei de novo e resolvi vamos tentar tudo o que for possível E pensei Esta decisão é do meu marido não minha Quando voltei ao hospital na manhã seguinte ele já tomara a decisão Vou em frente Disseram que perderia de 20 a 30 quilos fora os que já tinha perdido com as operações Realmente eu não sabia o que fazer Não me espantei muito porque sabia que não havia outro jeito Depois que começaram o tratamento ele piorou bastante Mas como eu disse não nos haviam feito promessas havia apenas um fio de esperança de que 148 o tratamento pudesse ajudar a involuir o tumor desobstruindo o intestino Por sorte a obstrução intestinal era parcial Perdi a coragem várias vezes durante todo esse tempo mas sempre conversava com outros pacientes aqui no hospital que tinham estado bem doentes Agora penso Aqui estou eu a encorajálos e vejo como muitas vezes as coisas parecem pretas do nosso lado Mas continuo firme continuo no mesmo caminho Sei que as pesquisas avançam neste setor e sei também que a Bíblia diz que para Deus nada é impossível Doutora Embora aceite o destino ainda tem esperanças de que aconteça alguma coisa Sra G Exatamente Doutora Você fala no plural nós nós fizemos operação nós decidimos ir em frente é como se você e ele estivessem realmente sintonizados a fazer as coisas juntos Sra G Na realidade se não é para ele ficar bom se chegou a sua hora acho que está nas mãos de Deus Doutora Qual a idade dele Sra G Completou cinqüenta anos no dia em que chegou aqui Doutora No dia em que veio para o hospital Capelão A senhora diria que esta experiência uniu ainda mais a família Sra G Claro que nos uniu mais Quando nada tem havido uma dependência maior de Deus Julgamos ser muito autosuficientes mas em horas como esta descobrimos que não se é tanto Aprendi a defender e a viver cada dia e parar de programar Temos o hoje mas não podemos ter o amanhã E se a doença for fatal para meu marido tudo deve estar nas mãos de Deus Oxalá alguém possa ter mais esperança ou força em Deus através de nossa experiência 149 Capelão A senhora tem tido um bom relacionamento com o pessoal do hospital Sei que tem um ótimo relacionamento com os outros pacientes pois temos conversado bastante com eles na tentativa de ajudar seus familiares Senteime lá e fiquei ouvindo alguns Lembreime do que a senhora me dissera há pouco ao contar que se descobriu conversando com otimismo com os outros Tem sido assim com as pessoas de fora Que tipo de apoio tem recebido do pessoal do hospital O que é que um membro da família sente a esta altura com relação a alguém tão próximo da morte como é o caso do seu marido Sra G Bem como sou também enfermeira tenho conversado muito com elas Tenho encontrado algumas cristãs fervorosas que dizem que a fé em Deus influi muito assim como o esforço e a persistência De modo geral não tenho tido dificuldade de conversar com elas que são sempre tão francas tão abertas qualidades que aprecio muito Acredito que os membros da família ficam menos confusos se os fatos forem contados e explicados mesmo quando a esperança é nula Acho que as pessoas aceitam mais Realmente acho o hospital muito bom acho que formam uma excelente equipe Capelão Esta verdade a senhora diz pela senhora e também pelo que observou de outras famílias que estiveram aqui Sra G Sim Capelão Elas querem saber Sra G Querem Muitas famílias dizem que aqui todos são maravilhosos e que se eles não sabem ninguém mais sabe Noto que as pessoas saem às varandas ensolaradas e conversam com diversos visitantes Dizem que este é um lugar maravilhoso Estão plenamente satisfeitos Doutora Alguma coisa que poderíamos melhorar Sra G Todos poderíamos melhorar Percebi que há falta de enfermeiras Às vezes os chamados não são atendidos 150 quando deveriam ser mas de um modo geral acho que isso é comum em todo lugar É só uma carência uma falta mas em relação a trinta anos atrás quando eu era enfermeira mudou muito Os doentes em estado mais grave são alvo de muita atenção embora não havendo enfermeiras especializadas Doutora Alguma pergunta Quem contou a seu marido que ele estava muito doente Sra G Fui eu que contei primeiro Doutora Como e quando contou Sra G Três dias depois da primeira cirurgia no hospital No caminho para o hospital meu marido disse Se for maligno não pestaneje Foi o termo que usou E respondi Não vou pestanejar mas não será maligno No terceiro dia porém nosso amigo médico saiu de férias Isto foi em julho aí eu contei Ele só olhou para mim e eu disse Acho que quer saber o que fizeram com você não Claro ninguém me disse nada Eles tiraram quarenta centímetros do seu sigmóide Quarenta centímetros Quer dizer que ligaram o tecido são Não acrescentei mais nada até chegarmos em casa Deixei passar três semanas depois da operação e u dia sentados a só m s na sala conteilhe o resto E ele me disse Pois é o que nos resta fazer devemos fazer o melhor É essa a atitude dele Nos dois meses seguintes voltou a trabalhar no consultório Tiramos férias Meu filho teve uma folga na faculdade e fomos todos para o Estes Park Divertimonos bastante e ele até jogou golfe Doutora No Colorado Sra G Sim Meu filho nasceu no Colorado Meu marido fora transferido para lá a serviço do governo Gostamos muito daquela região onde passávamos as férias quase todo ano Aquele período que passamos juntos só nos deu alegria porque de fato aproveitamos o máximo Uma semana depois de ter reassumido o trabalho surgiu esta 151 obstrução intestinal com novo crescimento do tumor operado Doutora Ele fechou o consultório de vez Sra G Não só por cinco semanas Voltou para casa depois da primeira cirurgia e o reabriu depois das férias Faz só uma semana que esteve lá trabalhou dezesseis dias após a operação de 7 de julho Doutora O que está acontecendo com o consultório agora Sra G Está fechado A recepcionista só anota os recados Todos querem saber quando ele volta Então nós eu anunciei a venda e gostaríamos de vendêlo Além do mais é um período muito ruim do ano Tenho um interessado que vem vêlo este mês Meu marido tem passado tão mal que o colocaram na lista dos doentes em estado critico Eu não poderia ir embora mas tenho tanta coisa para fazer em casa Meu filho é que tem ido e vindo Doutora O que ele está estudando Sra G Agora já terminou Começou no prédental mudou depois e agora está tomando conta das coisas em casa Na escola sempre foi muito seguro mas depois que o pai piorou a direção da escola o dispensou por alguns meses de modo que está tentando decidir o que fazer Doutora Acho que é hora de pararmos Tem alguma pergunta Sra G Vocês estão fazendo tudo isso para ver se melhoram as coisas Doutora Pois é há uma infinidade de motivos O principal é captar dos próprios pacientes gravemente enfermos o que estão sentindo Quais os temores as fantasias que tipo de solidão experimentam e como compreendêlos e ajudálos Cada paciente que entrevistamos aqui apresenta diferentes tipos de problemas e conflitos Vez ou outra gostamos de encontrar familiares saber como estão enfrentando a situação e como o pessoal do hospital pode ajudálos 152 Sra G Ouço muitas pessoas dizerem que não sabem como agüento Ora sei bem o quanto Deus age na vida de uma pessoa e sempre senti isso Passei pelo treinamento de enfermeiras e sempre tive sorte de encontrar bons cristãos Ouço e leio sobre assuntos variados até sobre artistas de cinema Se eles têm fé e acreditam em Deus já é alguma coisa em que se basear É exatamente isso que penso acho que um casamento feliz se baseia nisso A esposa do Dr G é um bom exemplo de como uma família unida reage diante de uma notícia inesperada da existência de um tumor maligno Sua primeira reação é choque seguida logo de uma negação Não não pode ser verdade Então ela tenta reencontrar o rumo neste tumulto e acha conforto nas Escrituras eterna fonte de inspiração para essa família Apesar da aparente aceitação mantém firme a esperança as pesquisas progridem e reza por um milagre Ao mesmo tempo que esta mudança no seio da família aprofundou as experiências religiosas deu também tempo de se tornar mais autosuficiente e independente A característica marcante desta dupla entrevista talvez esteja nas duas versões diferentes sobre como o paciente veio a saber Isto é bem característico e deve ser bem compreendido se não quisermos tomar as coisas pelo seu valor aparente O Dr G explica que seu filho tinha amadurecido e finalmente enfrentado a responsabilidade de partilhar a má notícia com ele É óbvio que está orgulhoso de seu filho de vêlo homem crescido e maduro capaz de assumir responsabilidades quando tiver que deixar sua mulher um tanto dependente Por outro lado a Sra G insiste em afirmar que foi ela que teve a coragem e a força para contar ao marido o resultado da operação sem creditar ao filho esta difícil tarefa Como se contradisse mais tarde em diversas ocasiões parece difícil que sua versão seja a verdadeira Entretanto o desejo de ter contado ao marido revela também alguma coisa de suas necessidades Quer ser forte capaz de enfrentar a situação e discutir sobre o 153 assunto Quer ser aquela que divide o bom e o ruim com o marido que busca conforto e forças nas Escrituras para aceitar o que quer que aconteça É mais fácil que uma família seja ajudada por um médico seguro de si que diga que será feito todo o possível bem como por um pastor acessível que visite o paciente e a família o mais que puder utilizando os mesmos recursos que a família sempre utilizou 154 VIII Esperança Em desesperada esperança vou e busco por ela em cada canto de meu quarto não a encontro Minha casa é pequena e jamais será recuperado o que dela uma vez se foi Mas Tua mansão é infinita o meu Deus e procurando por ela cheguei à Tua porta Quedome sob o pálio dourado de Teu céu vespertino e ergo os olhos ansiosos para Tua face Cheguei ao limiar da eternidade de onde nada pode sumir nem esperança nem felicidade nem visão de um rosto por trás das lágrimas Oh Mergulha minha vida vazia no oceano imergea na mais profunda plenitude Deixame sentir uma vez só aquele doce toque perdido na imensidão do Universo Tagore Gitanjali LXXXVII Até aqui discutimos os diferentes estágios por que as pessoas passam ao se defrontarem com notícias trágicas mecanismos de defesa em termos psiquiátricos mecanismos de luta para enfrentar situações extremamente difíceis Tais estágios terão duração variável um substituirá o outro ou se encontrarão às vezes lado a lado A única coisa que geralmente persiste em todos estes estágios é a esperança Assim foi com as crianças dos Acampamentos L 318 e L 417 no campo de concentração de Terezin que mantiveram acesa a chama da 155 esperança embora somente 100 das 15000 crianças com menos de quinze anos tenham saído de lá com vida O sol formou um veio de ouro Tão gracioso que meu corpo dói Acima o céu brilha num azul intenso Convicto sorri por algum engano O mundo cobrese de flores e parece sorrir Quero voar mas para onde a que altura Se as coisas podem florescer por entre arames farpados Por que não eu Não morrerei Anônimo 1944 Numa tarde ensolarada Ouvindo nossos pacientes em fase terminal o que sempre nos impressionou foi que até mesmo os mais conformados os mais realistas deixavam aberta a possibilidade de alguma cura de que fosse descoberto um novo produto ou de que tivesse êxito um projeto recente de pesquisa como disse o Sr J sua entrevista encontrase neste capítulo O que os sustenta através dos dias das semanas ou dos meses de sofrimento é este fio de esperança É a sensação de que tudo deve ter algum sentido que pode compensar caso suportem por mais algum tempo É a esperança que de vez em quando se insinua de que tudo isto não passe de um pesadelo irreal de que acorde uma manhã com a notícia de que os médicos estão prontos para tentar um novo medicamento que parece promissor e que vão testar nele de que talvez seja o escolhido o paciente especial como foi o paciente do primeiro transplante de coração que deve terse sentido como sendo o escolhido para desempenhar um papel especial na vida Isto proporciona aos doentes em fase terminal um senso de missão especial que os ajuda a erguer o ânimo e faz com que se submetam a exames e mais exames quando tudo se toma penoso de certo modo para uns é uma racionalização de seus sofrimentos para outros continua sendo uma forma de negação temporária mas necessária 156 Não importa que nome tenha descobrimos que todos os nossos pacientes conservaram essa sensação que serviu de conforto cru ocasiões especialmente difíceis Demonstravam a maior confiança nos médicos que vislumbravam esta esperança real ou não e apreciavam quando apresentavam uma esperança apesar das más previsões Isto não significa que os médicos devam contarlhes mentiras significa apenas que fazemos nossa a esperança deles de que aconteça algo inesperado que possibilite uma recuperação e vivam mais do que o previsto Quando um paciente não dá mais sinal de esperança geralmente é prenúncio de morte iminente É possível que diga Doutor acho que cheguei ao fim ou Acho que chegou a hora ou então que assuma a atitude daquele paciente que sempre acreditou num milagre e nos recebeu um dia com estas palavras Acho que o milagre é isso estou pronto e agora não tenho mais medo Todos estes pacientes morreram no intervalo de vinte e quatro horas Mantínhamos com eles uma esperança firme que não lhes era imposta quando finalmente desistiam sem desespero mas num estágio de aceitação final Vimos que os conflitos relacionados com a esperança provinham de duas fontes principais A primeira e mais dolorosa era a substituição da esperança pela desesperança tanto por parte da equipe hospitalar quanto por parte da família quando a esperança ainda era fundamental para o paciente A segunda fonte de angústia provinha da incapacidade da família para aceitar o estágio final de um paciente Agarravamse à esperança com unhas e dentes quando o próprio paciente já se preparava para morrer mas sentia que a família não era capaz de aceitar este fato conforme ilustram os casos da Sra W e do Sr H O que acontece com o paciente que apresenta uma síndrome pseudoterminal isto é que foi desenganado pelos médicos mas apresentou uma melhora sensível após um tratamento adequado De um modo ou de outro estes pacientes foram dados como perdidos Pode ser que tenham dito que nada mais resta a fazer por eles ou pode ser que tenham sido 157 mandados de volta para casa numa antecipação não expressa de sua morte iminente Quando são tratados com todos os meios disponíveis serão capazes de achar que sua recuperação foi um milagre uma nova chance na vida ou um tempo extra que não pedi dependendo da forma de atuação e comunicação anteriores A mensagem relevante do Dr Bell V Bibliogr in fine é proporcionar a cada um a oportunidade de um tratamento o mais eficiente possível sem considerar o paciente gravemente enfermo como estando em fase terminal desistindo assim de salválo Gostaria de acrescentar que não devemos desistir de nenhum paciente esteja ou não em fase terminal Quem está fora do alcance da ajuda médica merece maiores cuidados do que aqueles que ainda podem esperar Desistir de um paciente pode fazer com que ele se entregue nesse caso qualquer ajuda médica posterior poderia chegar tarde demais não encontrando o paciente em condições ou com o espírito pronto para tentar mais uma vez Muito mais importante é dizer Ao que me consta fiz todo o possível para ajudálo mas vou continuar tratando dele o melhor que puder Este paciente guardará um fio de esperança e continuará vendo em seu médico um amigo que ficará a seu lado até o fim Não se sentirá abandonado nem desprezado quando o médico o considerar fora de qualquer possibilidade de cura De um modo ou de outro a maioria de nossos pacientes teve uma recuperação Muitos deles abandonaram a esperança de emitir suas opiniões a quem quer que fosse Outros se sentiram desolados e isolados outros ainda se sentiram frustrados por não serem levados em consideração nas decisões importantes Aproximadamente a metade de nossos pacientes foi mandada de volta para casa ou encaminhada a outras clínicas sendo readmitida mais tarde Todos eles demonstraram satisfação ao discutir conosco seus pontos de vista sobre a gravidade de suas doenças e suas esperanças Não encaravam as discussões sobre a morte e o morrer como prematuras ou contraindicadas diante de uma recuperação Muitos desses pacientes falaram do 158 prazer e do conforto ao voltar para casa depois de resolvidas suas inquietações antes de receberem alta Vários deles solicitaram um encontro com os familiares em nossa presença a fim de tirarem as máscaras e gozarem juntos ao máximo a convivência das últimas semanas Muito ajudaria se as pessoas conversassem sobre a morte e o morrer como parte intrínseca da vida do mesmo modo como não temem falar quando alguém espera um bebê Se agissem assim com mais freqüência não precisaríamos nos perguntar se devemos tocar nestes problemas com o paciente ou se deveríamos esperar pela última internação Como não somos infalíveis e nunca estamos certos de quando será a última internação é possível que isso seja mais uma racionalização que nos ajuda a fugir do problema Vários pacientes se mostraram deprimidos e morbidamente trancados em si mesmos até falarmos com eles sobre a fase terminal de sua doença Seus espíritos se iluminaram recomeçaram a comer e alguns até obtiveram alta para surpresa de seus familiares e da equipe médica Estou convicta de que prejudicamos mais evitando tocar no assunto do que aproveitando e encontrando tempo para sentar à cabeceira ouvir e compartilhar Digo encontrar tempo porque os pacientes não diferem de nós quando temos nossos momentos em que desejamos desabafar o que nos oprime ou desejamos voltar o pensamento para coisas mais animadoras quer sejam reais ou não Caso o paciente saiba que encontraremos um tempinho disponível quando ele sentir vontade de falar e quando formos capazes de decifrar o que diz nas entrelinhas constataremos que a maioria deles realmente quer dividir suas preocupações com outro ser humano reagindo nestes diálogos com alívio e uma esperança maior Se este livro não tiver outra finalidade senão sensibilizar os familiares do paciente em fase terminal e a equipe hospitalar para as comunicações implícitas dos moribundos terá atingido sua meta Se na qualidade de membros de profissões auxiliares 159 pudermos ajudar o paciente e sua família a entrarem em sintonia com suas necessidades recíprocas e chegarem juntos a uma aceitação de uma realidade inexorável evitaremos muita agonia e sofrimentos desnecessários por parte do moribundo e mais ainda por parte da família que fica A entrevista do Sr J constitui um exemplo do estágio de raiva e revela o fenômeno da esperança sempre presente muitas vezes de modo disfarçado O Sr J era um preto com seus cinqüenta e três anos que foi hospitalizado com mycosis fungoides doença maligna da pele que ele descreve com detalhes no decorrer de nossa entrevista Essa doença obrigouo a recorrer ao seguro de invalidez e se caracteriza por estados de recaídas e recuperações Um dia antes do nosso seminário fui visitálo e o encontrei solitário e desejoso de conversar Contou em rápidas pinceladas de modo vivo e dramático os vários aspectos dessa doença desagradável Quase não me deixava ir embora e me puxava de volta várias vezes Contrastando com aquele encontro não programado demonstrava aborrecimento e raiva durante as sessões por trás do espelho No dia anterior à sessão começara a discutir sobre a morte e o morrer mas na sessão dizia Não penso em morrer penso em viver É importante saber nos cuidados com os pacientes em fase terminal que há dias horas minutos em que desejam falar sobre determinados assuntos Como o Sr J um dia antes podem contar espontaneamente sua filosofia de vida e morte induzindonos a considerálos pacientes ideais para uma sessãomodelo Nossa tendência é ignorar que o mesmo paciente no dia seguinte poderá só querer conversar sobre aspectos risonhos da vida São desejos que devem ser respeitados Mas não nos ativemos a isto durante a entrevista porque procuramos retomar alguns tópicos importantes que ele levantara um dia antes Devo dizer que esta técnica é perigosa sobretudo quando uma entrevista faz parte de um programa de ensino Numa 160 entrevista perguntas e respostas jamais deveriam ser forçadas em proveito dos estudantes A pessoa deveria vir sempre em primeiro lugar e as vontades do paciente deveriam ser sempre respeitadas mesmo se isto significasse ter uma classe de cinqüenta alunos e nenhum paciente para entrevistar Doutora Sr J a título de apresentação há quanto tempo no hospital Paciente Desta vez desde o dia 4 de abril deste ano Doutora Quantos anos tem Paciente Cinqüenta e três Doutora Já ouviu falar do que fazemos neste seminário Paciente Já É a senhora que me faz as perguntas Doutora É Paciente Tudo bem Pode prosseguir quando quiser Doutora Gostaria de ter um perfil melhor do senhor uma vez o conheço muito pouco Paciente Pois não Doutora o senhor sempre foi um homem saudável casado trabalhador Paciente Isso mesmo três filhos Doutora Três filhos Quando adoeceu Paciente Bem fui considerado inválido em 1963 mas acho que foi por volta de 1948 que senti esta doença pela primeira vez Tudo começou com pequenas erupções no lado esquerdo do peito e sob a omoplata direita A princípio nada havia de extraordinário naquilo Usava pomadas comuns loção de calamina vaselina e outros produtos semelhantes adquiridos nas farmácias Não incomodavam muito Mas aos poucos diria por volta de 1955 estava tomada a parte inferior do meu corpo embora em pequenas proporções Criouse uma 161 escamação um ressecamento que me obrigava a usar grande quantidade de ungüentos oleosos para manter a pele úmida dentro de um relativo bemestar Continuei trabalhando Naquela época cheguei a ter dois empregos porque minha filha ia entrar na faculdade e eu queria garantir o término de seus estudos Por volta de 1957 a situação piorara tanto que comecei a consultar diversos médicos Estive sob os cuidados do Dr X durante uns três meses mas não obtive nenhum progresso As consultas eram relativamente baratas mas as receitas nos consumiam de 15 a 18 dólares por semana Quando se está criando uma família de três filhos com um salário de empregado não se pode controlar uma situação destas mesmo com dois empregos Fui então a uma clínica onde fizeram um exame superficial que não me satisfez Não me preocupei em voltar lá Fiquei indo daqui para ali sentindome cada vez pior até que em 1962 o Dr Y me internou no hospital P Fiquei internado umas cinco semanas e a verdade é que nada aconteceu Saí de lá e voltei para a primeira clínica Finalmente em março de 1963 internaramme aqui neste hospital Eu estava num estado tão deplorável que me aposentaram por invalidez Doutora Isto foi em 1963 Paciente Em 1963 Doutora O senhor tinha idéia de que tipo de doença era a sua Paciente Sabia que era mycosis fungoides e todo mundo sabia disso também Doutora Quanto tempo faz que soube do nome da doença Paciente Já suspeitava há tempo mas foi a biópsia que confirmou Doutora Faz muito tempo Paciente Não faz muito não alguns meses antes que fosse feito o diagnóstico atual Mas quando se fica desse jeito a gente lê tudo o que cai nas mãos E ouve tudo também e 162 aprende o nome de diversas doenças Pelo que li a mycosis fungoides se encaixava bem no meu caso o que foi confirmado mais tarde Eu estava completamente arrasado Meus tornozelos começaram a inchar eu vivia transpirando constantemente e me sentia infeliz demais Doutora Você estava completamente arrasado e também se sentia infeliz demais É isso mesmo Paciente Claro Sentiame muito infeliz coçando todo criando escaras transpirando o tornozelo doendo um ser humano completa total e absolutamente desgraçado É lógico que tudo isso deixa a gente ressentido Vocês podem imaginar por que isso acontece comigo Então a gente cai em si e pergunta Você não é melhor do que os outros por que não poderia ter acontecido com você É uma espécie de reconciliação consigo mesmo pois a gente começa a olhar a pele de todo mundo que encontra E observa se não existe alguma mancha algum sinal de dermatite já que o fato de constatar se os outros têm manchas ou sofrem de alguma doença parecida passa a ser o único interesse na vida da gente Sei que as pessoas também olham para a gente pelo nosso aspecto bem diferente Doutora Porque é um tipo de doença visível Paciente É um tipo visível de enfermidade Doutora O que esta moléstia representa para você O que significa para você a mycosis fungoides Paciente Significa que até agora não curaram ninguém Houve alguma diminuição durante algum tempo ou por tempo indeterminado Para mim significa que alguém em algum lugar vai pesquisar Há vários cérebros privilegiados trabalhando nesta pesquisa Podem descobrir algum meio de cura talvez até trabalhando em outra coisa Significa que cerro os dentes e vou em frente dia após dia na esperança de que uma certa manhã me sentarei à beira da cama e ouvirei o médico dizer Quero 163 lhe aplicar esta injeção Será algo como uma vacina ou coisa semelhante que fará a doença desaparecer em poucos dias Doutora Algo que funcione Paciente Poderei voltar ao trabalho Gosto do meu trabalho porque conquistei a posição de supervisor Doutora O que é que o senhor fazia Paciente Na realidade era chefe geral da principal agência de correio daqui Esforceime para chegar à chefia geral Havia sete ou oito agentes que me prestavam contas toda noite Ocupavame mais com os processos do que com a simples ajuda Tinha boas perspectivas de progresso pois conhecia meu trabalho e gostava dele Não lamentava o tempo que passava trabalhando Em casa ajudava sempre minha mulher quando as crianças acordavam Esperávamos que crescessem e pensávamos em desfrutar das coisas sobre as quais tínhamos lido e ouvido falar Doutora Por exemplo Paciente Viajar um pouco Nunca tiramos férias Nossa primeira filha foi uma criança prematura e durante muito tempo ficou morrenãomorre Quando veio para casa já tinha sessenta e um dias Ainda guardo um pacote de recibos do hospital A conta dela era de dois dólares por semana e naquela época não ganhava mais do que dezessete dólares semanalmente Costumava descer do trem levar correndo duas garrafas do leite da minha mulher até o hospital pegar duas garrafas vazias voltar à estação e ir para o emprego na cidade Lá trabalhava o dia inteiro e levava para casa as duas garrafas vazias Minha mulher tinha leite suficiente para todos os prematuros daquele berçário Nós os mantínhamos muito bem alimentados e isto significa para mim que conseguimos superar todas as dificuldades Em breve seria enquadrado numa faixa salarial em que não precisaria economizar 164 centavo por centavo Talvez pudéssemos pensar numas férias programadas em vez de ficar sem ir a lugar nenhum pois este ou aquele filho precisava de dentista ou disso ou daquilo Era tudo para mim significava alguns anos de vida mais ou menos tranqüilos Doutora Depois de uma vida longa árdua cheia de dificuldades Paciente Pois é muitas pessoas passam por dificuldades piores e mais duras do que as minhas Nunca considerei isso um esforço supremo Trabalhei numa fundição forjando peças Trabalhava feito um condenado Meus colegas diziam à minha mulher que eu trabalhava demais Ela caía em cima de mim e eu me justificava dizendo que era uma questão de ciúme que quando se trabalha com outros homens musculosos não se quer que os outros tenham mais músculos do que a gente mas eu tinha porque quando ia trabalhar trabalhava mesmo Sempre que havia alguma melhora de categoria eu ganhava De fato chamaramme ao escritório um dia e me disseram que quando fossem promover um preto a chefe eu seria o escolhido Fiquei eufórico por um instante mas quando saí pensei Eles disseram quando e isto tanto pode ser agora como no ano 2000 Fiquei tão desanimado que trabalhei abatido por um bom tempo Mas naquela época nada era pesado para mim Tinha muita força muita juventude e acreditava que podia fazer tudo Doutora Digame uma coisa Sr J como o senhor se sente agora que não é mais tão jovem e talvez não possa mais fazer tudo Talvez não haja um médico com a sonhada injeção talvez não haja cura Paciente É verdade A gente aprende a aceitar essas coisas A gente primeiro tem o pressentimento de que nunca mais vai ficar bom Doutora Que efeito isto produz no senhor Paciente Abala a gente Tentase não pensar nestas coisas 165 Doutora O senhor sempre pensou nisso Paciente Lógico Há muitas noites em que não durmo bem Penso em milhares de coisas durante a noite Mas não fico remoendo muito Tive uma infância feliz e minha mãe ainda está viva Vem sempre aqui me visitar Sempre posso remoer as idéias a recordar algum fato passado Costumávamos pegar o calhambeque e viajar por aí Passeamos um bocado naquela época em que havia poucas estradas asfaltadas e as outras eram de terra batida Íamos a algum lugar atolávamos o carro na lama até as rodas e tínhamos que empurrálo ou puxálo Por isso acho que tive uma infância bem feliz meus pais eram muito bacanas Não havia caras emburradas nem ânimos exaltados em nossa casa Era uma vida agradável Penso nessas coisas e me convenço de que sou um sujeito abençoado porque há outros no mundo que só possuem miséria Olho em volta e vejo que tenho tido uma série de dias premiados como se costuma dizer Doutora O que você está realmente dizendo é que tem tido uma vida plena Mas isso toma a morte mais fácil Paciente Não penso em morrer Penso em viver Sabe de uma coisa Quando meus filhos estavam crescendo costumava dizer a eles e repetiria agora que fizessem o melhor possível independente das circunstâncias e dizia inúmeras vezes que mesmo assim iriam sair perdendo Dizia que não se esquecessem de que nesta vida deveriam ter sorte Era uma expressão que eu usava Sempre me considerei um cara de sorte Quando olho para trás penso naqueles rapazes que cresceram comigo e que agora estão na cadeia em várias prisões ou lugares semelhantes Tive as mesmas chances que eles mas não me perdi Sempre pulei fora quando estavam prestes a fazer algo que não era certo Tive muitas brigas por causa disso pois me achavam medroso Mas é melhor ter medo dessas coisas e lutar pelo que se acredita do que dar um chute e dizer Bem vamos lá 166 Porque mais cedo ou mais tarde invariavelmente a gente se envolve em alguma coisa que pode meter você numa vida de onde não pode retroceder Dizem que a gente pode sair das dificuldades mas ficase fichado e qualquer coisa que aconteça na vizinhança não importa a idade que se tenha pegam a gente e querem saber onde estava nesta ou naquela noite Sempre tive a sorte de ficar livre de tudo isso Portanto quando examino tudo devo reconhecer que tenho tido sorte e projeto isso no futuro Ainda tenho um pouco de sorte Tenho passado por maus bocados porém mais cedo ou mais tarde a coisa tem de se equilibrar e chegará o dia em que sairei daqui e as pessoas nem me reconhecerão Doutora Isto evita que o senhor se desespere Paciente Nada evita que a gente se desespere Não importa o equilíbrio que se tenha somos passíveis de desespero Mas direi que isto evita que eu sucumba A gente se desespera Chegase a um ponto em que não se consegue dormir e em seguida temse de lutar Quanto mais se luta pior fica pois pode tornarse uma batalha física A gente sua tanto como se estivesse fazendo um esforço físico mas é tudo mental Doutora Como o senhor luta A religião o ajuda Certas pessoas o ajudam Paciente Não me considero um homem particularmente religioso Doutora O que lhe dá forças para agir assim há vinte anos Já faz vinte anos não Paciente É Acho que as fontes de força vêm de ângulos tão diferentes que seria difícil dizer Minha mãe tem uma fé constante e profunda Se eu fizesse qualquer esforço que não um esforço total nesse sentido creio que a desapontaria Portanto posso dizer que é com a ajuda de minha mãe Minha mulher tem uma fé profunda portanto é também com a ajuda dela Minhas irmãs também têm me 167 ajudado parece que são sempre as mulheres na família as mais religiosas e as mais sinceras em suas orações Para mim a maioria das pessoas que rezam está pedindo alguma coisa Sempre fui muito orgulhoso para pedir Penso que talvez seja por isso que não consigo colocar um sentimento pleno no que digo aqui Não posso expandir todos os meus sentimentos ao longo destas linhas Doutora Sua formação religiosa é católica ou protestante Paciente Agora sou católico convertime Meus pais eram um batista e o outro metodista Davamse bem Doutora Como se tornou católico Paciente Combinava mais com a idéia que eu tinha da religião Doutora Quando aconteceu essa mudança Paciente Quando as crianças eram pequenas Freqüentavam escolas católicas Creio que foi no começo da década de 1950 Doutora Teve alguma ligação com sua doença Paciente Não porque na época a pele não me incomodava muito Pensava que assim que me equilibrasse melhor e fosse ao médico iria sumir entendeu Doutora Ah Paciente Mas isso nunca aconteceu Doutora Sua mulher é católica Paciente É converteuse na mesma época que eu Doutora Ontem o senhor me contou alguma coisa Não sei se quer tocar no assunto outra vez Acho que seria útil Quando lhe perguntei como suportava tudo isso o senhor me deu toda a escala de possibilidades de como o homem pode se tornar por exemplo acabar com tudo pensar em suicídio e me disse por que não faria isso Falou também de uma abordagem meio fatalista Pode repetir novamente 168 Paciente O que eu disse foi o que um médico me disse uma vez Eu não suportaria não sei como você agüenta Eu me mataria Doutora Foi um médico que lhe disse isso Paciente Foi Então respondi que estava fora de cogitação matarme pois sou covarde demais para tanto Isto elimina uma possibilidade em que não devo mais pensar Finalmente liberto minha mente de obstáculos à medida que sigo em frente de modo que tenho cada vez menos em que pensar Aboli a idéia de matarme pelo processo de eliminar a morte Cheguei à conclusão de que estou aqui agora Tanto posso virar a cara para a parede como posso chorar Ou então tentar extrair da vida todo prazer e divertimento possíveis dada a minha situação Posso assistir a um bom programa de televisão ou ouvir uma palestra interessante e depois de poucos minutos posso não me dar mais conta da coceira e do desconforto Chamo de bênção a todas essas pequenas coisas e imagino que se puder juntar muitas dessas bênçãos qualquer dia serão uma só que se estenderá até o infinito e todo dia será um dia bom Assim não me preocupo muito Quando começo a ficar deprimido procuro me distrair ou tento dormir porque no fim das contas dormir é o melhor remédio que já se inventou Às vezes nem durmo apenas fico deitado quieto A gente aprende a aceitar essas coisas que mais se pode fazer Podese pular gritar esbravejar bater a cabeça na parede mas depois de fazer tudo isso a coceira e a depressão não arredam o pé Doutora Parece que a coceira é o pior da doença O senhor sente alguma dor Paciente Até agora a coceira tem sido o pior mas justamente na ponta dos meus pés há uma chaga o que torna uma tortura colocar qualquer peso em cima deles Diria que até agora a coceira a secura e as escaras têm sido meu maior problema Tenho uma guerra pessoal contra essas escaras Chega a ser engraçado Fico com a cama coberta 169 de crostas dou uma escovadela assim e em geral qualquer tipo sai fácil Mas essas escaras ficam pulando para cima e para baixo no mesmo lugar como se tivessem garras chegando a exigir um esforço danado Doutora Para livrarse delas Paciente Para livrarme delas sim porque lutam até o fim Fico exausto olho e lá estão elas Cheguei até a pensar num pequeno aspirador para ficar limpo Ficar limpo passa a ser uma obsessão porque tomar um banho e se besuntar todo logo depois não dá para se sentir limpo A gente sente logo que precisa de outro banho Podese passar a vida inteira entrando e saindo do banheiro Doutora Quem tem sido mais prestativo neste problema desde que o senhor chegou ao hospital Paciente Mais prestativo Não se pode destacar ninguém aqui todos se antecipam às minhas necessidades e ajudam Fazem um monte de coisas em que nem havia pensado Uma das moças notou que meus dedos eram uma chaga só e que eu tinha dificuldade de acender um cigarro Ouvia dizer às outras Sempre que vierem aqui verifiquem se ele não quer um cigarro Isso é simplesmente incrível Doutora Elas cuidam bem realmente Paciente É uma sensação maravilhosa mas as pessoas gostam de mim em qualquer lugar onde estive em toda a minha vida Fico profundamente agradecido por isto Humildemente agradecido Acho que nunca me preocupei em ser benfeitor mas posso apontar várias pessoas nesta cidade a quem ajudei em vários empregos Nem mesmo sei por que mas sempre foi característica minha deixar as pessoas mentalmente à vontade Faço o possível para ajudar uma pessoa a se encontrar e muitos deles contam aos outros que os ajudei Justamente por isso todo mundo que conheci me ajudou também Acho que não tenho nenhum inimigo no mundo Não conheço ninguém que me deseje qualquer mal Um colega do colégio esteve 170 aqui há alguns anos Conversamos sobre os dias em que estudávamos juntos Lembramonos dos dormitórios de quando alguém sugeria bagunçar o quarto de um determinado fulano a qualquer hora do dia A gente descia e expulsava o fulano do quarto Brincadeira brutal mas sadia Ele contava ao filho como costumávamos tirálos e amarrálos feito feixes de lenha Nós dois éramos bastante fortes e do tipo durão De fato juntávamos todos no corredor e nenhum jamais bagunçou o nosso quarto Tínhamos um colega de quarto que era da equipe de corrida e corria os cem metros rasos Antes que os cinco caras entrassem no quarto passava pela porta e corria escada abaixo uns oitenta metros Quando escapulia ninguém conseguia pegálo Só voltava tarde na hora de dormir quando já tínhamos limpado e arrumado tudo Doutora Essa é uma daquelas bênçãos a que se refere Paciente Olho para trás e penso nas tolices que fizemos Uma noite o quarto estava frio e apareceram alguns colegas Apostamos quem suportaria mais o frio cada um confiando em si mesmo Decidimos abrir a janela Não havia aquecimento algum com 20C abaixo de zero lá fora Lembrome de que estava com um gorro de lã dois pijamas um roupão e dois pares de meia Acho que todos fizeram o mesmo Mas quando nós acordamos naquela manhã tudo até os copos era gelo sólido Quando a gente tocava as paredes grudava porque estava tudo gelado Levamos quatro dias para descongelar o quarto e aquecêlo Fazíamos tolices deste tipo Muitas vezes alguém me olha me vê rindo sozinho e pensa que fiquei louco que endoidei de vez Mas é que estou me lembrando de algum caso destes Ontem a senhora me perguntou o que os médicos e as enfermeiras podiam fazer para melhor ajudar os pacientes Depende muito do paciente Depende muito do seu estado Quando se está mal não se quer ser molestado A gente quer ficar 171 deitado quieto sem ninguém examinando nem tirando pressão sangüínea nem medindo temperatura É o seguinte parece que toda vez que a gente consegue relaxar um pouco alguém entra por algum motivo Acho que os médicos e as enfermeiras deveriam incomodar o menos possível Porque assim que a gente se sente melhor levanta a cabeça e se interessa pelas coisas É o momento certo para entrarem e começarem aos poucos a reanimar o paciente e encorajálo Doutora Será que as pessoas muito doentes não se sentem mais amedrontadas e infelizes quando são deixadas sozinhas Paciente Não acho Não é uma questão de deixálas sozinhas não quis dizer isolar estas pessoas Refirome a quando a gente está repousando tranqüilamente e vem alguém afofar os travesseiros sem ninguém pedir A cabeça está apoiada confortavelmente Mas como querem fazer o melhor a gente tolera Ou quando alguém entra oferecendo um copo de água Ora se quisesse água teria pedido mesmo assim põem água no copo Fazem isso com a melhor das intenções tentando proporcionar o maior conforto Entretanto se nos esquecessem em determinadas circunstâncias a gente se sentiria melhor Doutora O senhor gostaria de ficar só agora Paciente Não não muito Na semana passada Doutora Digo agora nesta entrevista Está ficando muito cansado Paciente Cansado sim De qualquer forma não tenho nada para fazer a não ser ir para o quarto e descansar É que não vejo muito interesse em nos prolongarmos mais porque depois de um certo tempo a gente se repete muito Doutora Ontem o senhor estava interessado nisto Paciente Bem tinha razão para estar interessado Se me tivesse visto há uma semana a senhora não sentiria 172 vontade de me entrevistar pois eu dizia tudo pela metade com meios pensamentos Não saberia nem meu próprio nome mas melhorei muito Capelão Como se sente em relação ao que aconteceu nesta última semana É mais um ponto ao qual você chama de bênção Paciente Espero que seja assim Isto evolui em ciclos como uma roda imensa ela gira e com o novo medicamento que me aplicaram espero que sejam atenuadas estas diferentes sensações Espero sentirme muito bem ou muito mal no começo Passei pela fase ruim agora terei uma fase boa Vou me sentir muito bem pois é assim que acontece Mesmo que não tome remédio algum mesmo deixando as coisas andarem Doutora Então está entrando no ciclo bom agora não Paciente Acho que sim Doutora Agora vamos leválo de volta ao quarto Paciente Eu gostaria Doutora Obrigada por ter vindo Paciente Realmente não há de quê O Sr J a quem vinte anos de doença e sofrimento haviam transformado numa espécie de filósofo apresenta muitos sinais de ira disfarçada O que está querendo dizer realmente nesta entrevista é o seguinte Tenho sido tão bom por que eu Descreve como era forte e vigoroso nos tempos de juventude como suportava o frio e as privações como cuidava dos filhos e da família como trabalhava arduamente e nunca se deixava tentar pelos maus elementos Depois de todo esse esforço seus filhos crescidos esperava dispor de alguns anos para viajar tirar férias saborear os frutos do seu labor De modo mais ou menos franco sabe que são vãs suas esperanças Agora gasta todas as suas energias para se manter sensato para lutar contra 173 a coceira o desconforto e a dor que descreve com tanta propriedade Reexamina essa luta e vai eliminando ponto por ponto os pensamentos que lhe perpassam a mente O suicídio está fora de cogitação bem como uma aposentadoria compensadora O seu campo de possibilidades diminui à medida que progride a doença Suas expectativas e exigências se tornam menores e finalmente aceita o fato de ter de viver entre uma recuperação e outra Quando se sente muito mal prefere que o deixem só recolhese e tenta dormir Quando melhora deixa transparecer que está pronto para conversar de novo e se torna mais sociável A gente tem de ter sorte significa que continua esperando que haja nova recuperação Nem desiste de esperar que seja descoberta alguma cura que seja produzido um novo medicamento a tempo ainda de aliviálo dos sofrimentos Manteve viva essa esperança até o último dia 174 IX A família do paciente O pai voltou do funeral Por trás da janela seu filho de sete anos olhos arregalados amuleto dourado pendurado no pescoço mergulhado em pensamentos difíceis demais para sua idade O pai pegouo nos braços e o menino perguntou Onde está mamãe No céu respondeu o pai apontando para o azul imenso O menino ergueu os olhos e se quedou a contemplar o céu em silêncio Sua mente confusa lançou um brado na noite Onde está o céu Não ouviu resposta E as estrelas pareciam lágrimas ardentes daquela escuridão taciturna Tagore O fugitivo Parte II XXI Mudanças no lar e efeitos sobre a família Se não levarmos devidamente em conta a família do paciente em fase terminal não poderemos ajudálo com eficácia No período da doença os familiares desempenham papel preponderante e suas reações muito contribuem para a própria reação do paciente Por exemplo a doença grave de um marido e conseqüente hospitalização pode causar mudanças radicais no lar às quais a esposa é obrigada a se adaptar Pode sentirse ameaçada pela perda de segurança e por não poder mais depender do marido Terá de assumir muitas funções antes desempenhadas por ele e ajustar seu horário às novas 175 exigências desconhecidas e aumentadas Pode subitamente verse envolvida em assuntos de negócios e questões financeiras o que antes evitava fazer Se entram em jogo visitas ao hospital é necessário providenciar condução e alguém que tome conta das crianças na sua ausência Pode haver mudanças sutis ou dramáticas na família e na atmosfera do lar provocando também reações nas crianças aumentando assim os encargos e a responsabilidade da mãe De repente ela se vê cara a cara ao menos temporariamente diante da realidade de ser uma mãe solitária Aos transtornos e preocupações com o marido acrescidos da responsabilidade e do trabalho vêm se juntar uma solidão maior e com freqüência um ressentimento A esperada ajuda de parentes e amigos pode não ser imediata ou assumir formas que vão de desconcertantes a inaceitáveis para a esposa Os conselhos dos vizinhos poderão ser rejeitados pois podem aumentar os encargos em vez de diminuílos Por outro lado pode ser de grande valia uma vizinha compreensiva que não vá somente saber das últimas notícias mas vá aliviar a amiga de algumas tarefas como preparar uma refeição ligeira levar as crianças para brincar etc Tomemos como exemplo a entrevista da Sra S O senso de perda que sente um marido talvez seja maior se ele for menos flexível ou se não estiver acostumado a lidar com coisas relacionadas aos filhos à escola aos deveres depois das aulas às refeições e às roupas Este senso de perda pode surgir tão logo a esposa fique acamada ou quando for obrigada a diminuir suas atividades Pode haver uma inversão de funções mais difícil de ser aceita pelo homem do que pela mulher Em vez de ser servido pode ter de vir a servir Em vez de descansar um pouco após um dia árduo de trabalho pode se ver obrigado a tomar conta da mulher enquanto ela assiste à televisão sentada na poltrona dele Conscientemente ou não pode ressentirse de tais mudanças apesar de entender bem a situação Por que ela achou de adoecer logo agora que mal comecei este novo 176 projeto disse um homem certa vez Este tipo de reação é freqüente e compreensível quando encarado sob o ponto de vista de nosso inconsciente Reage com a esposa da mesma forma que a criança reagiria com a ausência da mãe Em geral temos tendências a ignorar o quanto de criança existe em nós Tais maridos podem receber ajuda quando têm chance de extravasar seus sentimentos por exemplo podem encontrar quem os substitua uma noite por semana para ir jogar boliche e se divertir sem sentimentos de culpa ou desabafar um pouco coisa que dificilmente se pode fazer tendo uma pessoa muito doente em casa Acho cruel exigir a presença constante de qualquer um dos membros da família Assim como temos de renovar o ar dos pulmões as pessoas têm de recarregar suas baterias fora do quarto do doente e de vez em quando viver uma vida normal Não podemos ser eficientes com a constante presença da doença Tenho ouvido muitos pacientes se queixarem de que o pessoal da família continuava viajando nos fins de semana ou indo a teatros e cinemas Culpavam os familiares por se divertirem enquanto alguém em casa estava à beira da morte Creio que tanto para o paciente como para a família faz mais sentido ver que a doença não desequilibrou totalmente o lar nem privou os familiares de momentos de lazer ao contrário a doença pode permitir que o lar se adapte e se transforme gradativamente preparandose para quando o doente não mais estiver presente Como o paciente em fase terminal não pode encarar a morte o tempo todo o membro da família não pode nem deve excluir todas as outras interações para ficar exclusivamente ao lado do paciente Às vezes ele também sente necessidade de rejeitar ou fugir às realidades tristes para encarálas melhor quando sua presença se fizer mais necessária As necessidades da família variarão desde o princípio da doença e continuarão de formas diversas até muito tempo depois da morte É por isso que os membros da família devem dosar suas energias e não se esgotar a ponto de entrar em colapso quando forem mais necessários Um amigo 177 compreensivo pode contribuir muito para ajudálos a manter o equilíbrio entre ser útil ao paciente e respeitar suas próprias necessidades Problemas de comunicação Em geral quem recebe a notícia sobre a gravidade de uma doença é a esposa ou o marido Cabe a eles a decisão de compartilhar a enfermidade com o doente ou encontrar o momento para contar a ele e aos outros membros da família Geralmente cabe a eles também decidir como e quando informar aos filhos tarefa sem dúvida mais árdua ainda sobretudo em se tratando de crianças pequenas Saber enfrentar esses dias ou semanas cruciais depende muito da estrutura e união de uma família da habilidade de se comunicar e da existência de verdadeiros amigos Uma pessoa fora do convívio familiar sem maiores envolvimentos emocionais pode ser muito útil ouvindo as preocupações da família suas aspirações e necessidades Ela pode orientar quanto a assuntos legais pode ajudar a preparar o testamento e tomar as devidas providências temporária ou definitivamente quanto às crianças que ficarão órfãs Afora os assuntos práticos a família sempre necessita de um mediador como ficou provado na entrevista do Sr H no capítulo VI Os problemas do moribundo chegam ao fim mas começam e continuam os da família Muitos desses problemas podem ser contornados se forem discutidos antes que o membro da família venha a falecer Infelizmente a tendência é ocultarmos do paciente nossos sentimentos tentarmos manter um sorriso nos lábios ou uma alegria falsa no rosto passível de sumir mais cedo ou mais tarde Entrevistamos um marido que estava para morrer e ele nos disse Sei que tenho muito pouco tempo de vida mas não contem isso à minha mulher porque ela não suportaria isto Quando conversamos com sua mulher num encontro casual ela repetiu praticamente as mesmas palavras Ambos 178 sabiam mas nenhum deles tinha coragem de comunicar isto ao outro e já tinham trinta anos de casados Quem os convenceu a dizer o que sabiam foi o jovem capelão quando esteve no quarto a convite do paciente Ambos ficaram aliviados por não ter de prosseguir com este jogo falso e começaram a fazer os preparativos os quais nenhum dos dois seria capaz de fazer sozinho Mais tarde ambos riam desta infantilidade como a chamaram e faziam conjecturas sobre quem teria sabido primeiro e o tempo que levariam se enganando sem a ajuda de terceiros Acho que o moribundo também pode ajudar seus familiares fazendo com que encarem sua morte E pode ajudar de várias formas Uma delas é participar naturalmente seus pensamentos e sentimentos aos membros da família incentivandoos a proceder assim também Se ele for capaz de enfrentar a dor e mostrar com seu próprio exemplo como é possível morrer tranqüilamente os familiares se lembrarão de sua força e suportarão com mais dignidade a própria tristeza A culpa talvez seja a companheira mais dolorosa da morte Quando uma doença é diagnosticada como potencialmente fatal não é raro os familiares se perguntarem se devem se culpar por isto Se ao menos o tivesse mandado antes a um médico ou Eu deveria ter notado a mudança mais cedo encorajandoo a buscar ajuda logo são frases que ouvimos com freqüência da boca das mulheres de pacientes em fase terminal É desnecessário dizer que um amigo da família um médico da família ou mesmo um capelão podem ajudar muito uma mulher assim aliviandoa dessa censura sem fundamento fazendoa ver que fez todo o possível para conseguir ajuda Entretanto dizer apenas Não se sinta culpada porque você não é culpada não é o suficiente Em geral podemos descobrir a razão mais profunda desse sentimento de culpa ouvindo essas esposas com cuidado e atenção Quase sempre os parentes se culpam devido a ressentimentos verdadeiros para com o falecido Quem num momento de raiva já não desejou que alguém desaparecesse sumisse do mapa se danasse O senhor com quem fizemos a 179 entrevista no capítulo XII exemplifica bem esta passagem Tinha boas razões para estar com raiva da mulher que o deixou e foi morar com um irmão que para ele era nazista Por sua vez esse paciente era judeu Sua mulher o deixou e criou o único filho como cristão Ela morreu estando ele ausente motivo também para culpála Infelizmente nunca houve uma ocasião para que pudessem desabafar toda essa raiva contida e o homem foi se abalando pela tristeza e pela culpa a ponto de adoecer seriamente Uma alta percentagem de viúvos e viúvas examinados nas clínicas ou por médicos particulares apresentam sintomas somáticos resultantes da incapacidade de superar os sentimentos de culpa e pesar Se antes da morte do cônjuge tivessem sido ajudados a superar as diferenças entre eles metade da batalha teria sido ganha É compreensível que as pessoas relutem em falar abertamente sobre a morte e o morrer sobretudo se de repente a morte se torna algo pessoal que nos atinge e de certa forma bate à nossa porta As poucas pessoas que experimentaram a crise da morte iminente descobriram que a comunicação só é difícil na primeira vez tornandose mais simples à medida que cresce a experiência Em vez de aumentar a alienação e o isolamento o casal acaba se comunicando de modo significativo e profundo descobrindo uma aproximação e compreensão que só o sofrimento pode propiciar Outro exemplo da falta de comunicação entre o moribundo e a família é o exemplo da Sra F A Sra F era uma mulher negra doente em fase terminal e fortemente debilitada que jazia imóvel no leito havia semanas Olhar para seu corpo de pele escura contrastando com os lençóis brancos da cama lembravame com certa repulsa raízes de árvores Devido à doença deformante era difícil definir o contorno do corpo ou mesmo das feições Sua filha que vivera com ela a vida inteira ficava sentada a 180 seu lado igualmente imóvel e sem proferir palavra Foram as enfermeiras que nos pediram que intercedêssemos não por causa da paciente mas por causa da filha com quem estavam muito preocupadas e com razão Mostraram que a cada semana que passava ficava mais tempo junto ao leito da mãe Já não trabalhava mais e praticamente passava dia e noite em silêncio à cabeceira da mãe moribunda As enfermeiras talvez não se preocupassem tanto se não tivessem notado uma dicotomia singular entre a presença cada vez mais constante e a completa falta de comunicação A doente sofrera um choque recente e não podia falar nem mover qualquer membro presumindose que sua mente não funcionasse mais A filha só ficava sentada em silêncio sem jamais dirigir uma palavra à mãe sem jamais esboçar um gesto de carinho ou afeição a não ser sua presença muda Entramos no quarto para pedir à filha uma moça de seus quase quarenta anos e solteira que viesse conversar um pouco conosco Esperávamos compreender a razão de sua presença constante que significava também um desapego crescente do mundo exterior As enfermeiras estavam preocupadas com a reação que ela teria após a morte da mãe mas achavam que tanto quanto a mãe seria incapaz de falar embora por razões diferentes Não sei o que me levou a me dirigir à mãe antes de deixar o quarto com a filha Talvez sentisse que estava lhe devendo uma visita ou quem sabe fosse um velho costume meu de manter meus pacientes a par do que ia acontecendo Disse lhe que estávamos levando sua filha por alguns momentos pois estávamos preocupados com ela por estar só A paciente olhou para mim e eu compreendi duas coisas primeiro que ela estava absolutamente ciente do que acontecia a seu redor apesar da aparente incapacidade de falar segundo lição inesquecível jamais classificar alguém na categoria de vegetal mesmo que pareça não reagir a muitos estímulos 181 Tivemos uma conversa demorada com a filha que tinha abandonado o emprego as poucas amizades e quase o apartamento para passar o maior tempo possível com a mãe agonizante Não pensara ainda no que aconteceria se a mãe viesse a morrer Sentiase na obrigação de ficar quase dia e noite no quarto do hospital não tendo dormido nas últimas semanas mais do que três horas por noite Ela começou a imaginar se não se estaria cansando para não ter de pensar Tinha medo de se afastar do quarto e a mãe morrer neste ínterim Nunca tocara neste assunto com a mãe apesar de ela estar doente há muito tempo e em condições de conversar até há pouco tempo No final da entrevista a filha já deixava transparecer alguns sentimentos de culpa ambivalência e ressentimento não só por ter vivido uma vida isolada como talvez mais por ter sido abandonada Nós a encorajamos a externar seus sentimentos mais amiúde a voltar a trabalhar por meio período para ter alguma ocupação fora do quarto da doente e nos pusemos à disposição para quando precisasse de alguém com quem conversar Voltando ao quarto da doente participei de novo a conversa que tivemos Pedi que aprovasse a visita da filha só numa parte do dia Olhounos diretamente nos olhos e com um suspiro de alívio fechouos novamente Uma enfermeira que assistia a este encontro ficou grandemente surpreendida com esta reação e ficou muito contente por ter visto esta cena pois toda a equipe se afeiçoara muito à paciente e ninguém se sentia bem vendo a sua silenciosa agonia e a incapacidade de se expressar da filha Esta encontrou um trabalho de meio período e dava notícias à mãe para alegria da equipe Suas visitas não mais carregadas de ambivalência nem sentimentos de obrigação e ressentimento eram agora cheias de sentido Voltou a conversar com outras pessoas dentro e fora do hospital fazendo algumas amizades novas antes da morte da mãe que se deu alguns dias mais tarde num clima de bastante paz 182 O Sr Y outro homem de quem sempre nos lembraremos foi o espelho da agonia do desespero e da solidão do velho prestes a perder a esposa após muitas décadas de feliz casamento O Sr Y era um senhor de idade um tanto desfigurado fazendeiro curtido pelas intempéries que jamais pusera os pés numa cidade grande Durante a vida toda lavrara a terra vira o gado dar cria e educara os filhos que moravam em cantos diferentes do país Ele e a mulher viviam sozinhos nos últimos anos e como ele mesmo disse tinham se acostumado um ao outro Nenhum se imaginava vivendo sem o outro No final de 1967 sua mulher adoeceu gravemente e o médico recomendou que recorresse aos médicos da capital O Sr Y relutou um pouco mas como a esposa definhava a olhos vistos levoua para o grande hospital onde foi colocada na unidade de terapia intensiva Qualquer um que tivesse visto esta unidade notaria a diferença da vida ali comparada a uma pequena enfermaria improvisada numa fazenda Todos os leitos estão ocupados por pacientes gravemente enfermos desde recémnascidos até anciãos moribundos Todos os leitos estão cercados pelos mais modernos equipamentos que o agricultor jamais vira frascos pendendo de suportes bombas de sucção o tiquetaque de um monitor e uma equipe médica sempre atarefada mantendo o equipamento em funcionamento e observando atentamente para detectar sinais de alarme Há muito barulho uma atmosfera de urgência e decisões imediatas gente indo e vindo e nenhum cantinho para um velho agricultor que jamais vira uma cidade grande O Sr Y insistiu em ficar com a esposa mas lhe disseram taxativamente que só podia ficar cinco minutos de hora em hora durante os quais olhava para o rosto lívido 183 tentando segurar a mão dela murmurando palavras de desespero até que vinham dizer com firmeza e insistência Por favor saia seu tempo se esgotou Um dos nossos estudantes descobriu o Sr Y indo e vindo pelo corredor parecendo terrivelmente desesperado alma perdida num imenso hospital Levouo então ao nosso seminário e ele contou um pouco de sua agonia ficando aliviado por ter alguém com quem conversar Alugara um quarto na Casa Internacional uma casa cheia de estudantes muitos dos quais voltavam para enfrentar um novo trimestre Disseramlhe que deveria mudarse logo para dar lugar aos estudantes que chegavam O lugar não era longe do hospital mas o velho percorria a distância dezena de vezes Não havia lugar para ele nenhum ser humano com quem conversar nem sequer a certeza de um quarto disponível no caso de sua mulher durar mais alguns dias Depois havia a idéia impertinente de que podia de fato perder a mulher e ter de voltar para casa sem ela Quanto mais o ouvíamos mais se revoltava com o hospital sobretudo com as enfermeiras pela crueldade em só deixar que visse sua mulher por cinco minutos a cada hora Sentia que era um estorvo para elas apesar de serem breves aqueles momentos Aquilo era jeito de se despedir da mulher que o seguiu durante quase cinqüenta anos Como explicar a um velhinho que é assim que funciona a unidade de terapia intensiva que existem regras e leis administrativas que regulam as horas de visita e que visitantes demais nesta unidade são intoleráveis se não para o paciente ao menos para a sensibilidade do equipamento Certamente não o teria ajudado dizer Tudo bem o senhor amou sua esposa viveram juntos na fazenda durante tantos anos por que não deixou que morresse lá Provavelmente responderia que ele e a mulher eram um só como a árvore com suas raízes e um não poderia viver sem o outro O grande hospital prometia prolongar a vida dela e ele o velho homem da fazenda prontificavase a se 184 aventurar num lugar como aquele preso ao fio de esperança que lhe ofereciam Pouco poderíamos fazer por ele exceto ajudálo a encontrar acomodações mais seguras dentro de suas possibilidades financeiras informar seus filhos de sua solidão e da necessidade da presença deles Conversamos também com a equipe de enfermagem Não conseguimos obter um período mais prolongado de visita mas ao menos conseguimos que fosse mais bem aceito durante os curtos instantes em que lhe era permitido ver a esposa Desnecessário dizer que estes incidentes acontecem todos os dias em qualquer hospital grande Precisariam ser tomadas maiores providências quanto à acomodação dos familiares dos pacientes dessas unidades de terapia Deveria haver salas contíguas onde os parentes pudessem sentarse descansar comer compartilhar a solidão e talvez se consolar mutuamente nos intermináveis períodos de espera Os assistentes sociais e os capelães precisariam estar disponíveis com o tempo suficiente para cada um e os médicos e as enfermeiras deveriam visitar estas salas com freqüência pondose à disposição para solucionar problemas Como estão as coisas agora os parentes são relegados à solidão Passam horas esperando nos corredores nos bares nas imediações do hospital andando ao léu para lá e para cá Podem fazer tentativas tímidas na esperança de ver um médico ou quando conseguem falar com alguma enfermeira só conseguem saber que o médico está ocupado na sala de cirurgia ou noutro lugar qualquer Como há um número cada vez maior de responsáveis pelo bemestar de cada paciente ninguém conhece o paciente muito bem nem o paciente sabe o nome de seu médico Não é raro acontecer que encaminhem os parentes de uma pessoa a outra indo eles parar na sala de algum capelão não mais esperando obter respostas quanto ao paciente mas na expectativa de encontrar algum consolo e compreensão para sua própria agonia 185 Alguns parentes prestariam maior serviço ao paciente e à equipe hospitalar se fizessem visitas mais curtas e com menor freqüência Lembrome de uma mãe que não permitia a ninguém cuidar de seu filho de vinte e dois anos a quem tratava como a um bebê Embora o jovem fosse capaz de prover suas próprias necessidades ela o lavava insistia em escovar os dentes dele e até o limpava após a evacuação O paciente ficava irritado e zangado sempre que ela estava por perto As enfermeiras se assustavam e a apreciavam cada vez menos A assistente social tentou em vão conversar com ela e foi despachada com as mais ríspidas expressões O que faz com que uma mãe se torne superprotetora e de modo tão hostil Procuramos compreendêla e encontrar meios e formas de diminuir sua assistência que era inoportuna e incômoda tanto para o paciente como para as enfermeiras Depois de discutir o problema com a equipe hospitalar percebemos que poderíamos estar projetando nossos anseios em relação ao paciente e que ele de fato contribuía e até propiciava esse comportamento da mãe Era previsto que ficasse mais algumas semanas no hospital para tratamento quando então voltaria para casa por algum tempo e seria provavelmente readmitido depois Será que lhe prestamos algum serviço interferindo em seu relacionamento com a mãe por mais prejudicial que nos parecesse Será que não agimos movidos principalmente pela irritação contra essa supermãe que fazia as enfermeiras se sentirem mães desnaturadas desencadeando assim novas fantasias de querer socorrer Quando nos compenetramos disso reagimos com menos ressentimento para com a mãe mas também tratamos o jovem como adulto fazendoo ver que dependia dele pôr limites caso o comportamento da mãe se tornasse incômodo demais Não sei se isto surtiu algum efeito pois ele foi embora logo depois Entretanto acho válido mencionar esse exemplo uma vez que salienta a necessidade de não nos deixarmos levar por nossos próprios sentimentos quanto ao que é bom e certo para uma determinada pessoa Pode ser que aquele homem só 186 pudesse suportar sua doença regressando temporariamente ao nível de criança e que a mãe sentisse consolo em poder suprir estas necessidades Não creio que acontecesse isso no presente caso pois eram visíveis o ressentimento e a intolerância dele quando a mãe estava presente mas fazia pouquíssimo esforço para contêla embora impusesse limites aos outros familiares e ao pessoal do hospital Lidando com a realidade de doenças em fase terminal na família Os membros da família experimentam diferentes estágios de adaptação semelhantes aos descritos com referência aos nossos pacientes A princípio muitos deles não podem acreditar que seja verdade Pode ser que neguem o fato de quê haja tal doença na família ou comecem a andar de médico em médico na vã esperança de ouvir que houve erro no diagnóstico Podem procurar ajuda e tentar certificarse junto a quiromantes e curandeiros de que não é verdade Podem programar viagens caras a clínicas famosas e médicos de renome só encarando aos poucos a realidade que pode mudar drasticamente o curso de suas vidas Portanto a família sofre certas mudanças dependendo muito da atitude do paciente do conhecimento e da habilidade com que se comunica o fato Se são capazes de compartilhar suas preocupações comuns podem logo tratar dos assuntos importantes sob menos pressões de tempo e emoções Se cada um tenta manter segredo em relação ao outro criarão uma barreira artificial entre si que dificultará qualquer preparação para o pesar futuro tanto do paciente quanto de sua família O resultado final será muito mais dramático do que para aqueles que podem às vezes conversar e chorar juntos No momento em que o paciente atravessa um estágio de raiva os parentes próximos sentem a mesma reação emocional Primeiro ficam com raiva do médico que examinou o doente e não apresentou logo o diagnóstico depois do médico que os informou da triste realidade Podem dirigir sua fúria contra o 187 pessoal do hospital que jamais cuida o bastante não importando a eficiência dos cuidados Há muito de inveja nesta reação pois os familiares geralmente se sentem frustrados não podendo estar com o paciente e cuidar dele Há também muita culpa e um desejo de recuperar as oportunidades perdidas no passado Quanto mais pudermos ajudar os parentes a extravasar estas emoções antes da morte de um ente querido mais reconfortados se sentirão os familiares Quando a raiva o ressentimento e a culpa se apresentam a família entra numa fase de pesar preparatório igual ao do moribundo Quanto mais desabafar este pesar antes da morte mais a suportará depois Freqüentemente ouvimos parentes dizerem com orgulho que sempre tentaram manter um sorriso nos lábios na frente do paciente mas que um dia não puderam continuar mantendo as aparências Poucos percebem que as emoções genuínas de um familiar são muito mais fáceis de se aceitar do que uma máscara enganadora através da qual o paciente enxerga de qualquer jeito e que para ele tem mais o sentido de falsidade do que de solidariedade numa situação triste Se os membros de uma família podem juntos compartilhar estas emoções enfrentarão aos poucos a realidade da separação iminente e chegarão juntos a aceitála O período da fase final quando o paciente se desprende paulatinamente de seu mundo inclusive da família talvez seja o de desgosto mais profundo Não compreendem que o moribundo que encontrou paz e aceitação de sua morte tem de se separar passo a passo de seu ambiente inclusive das pessoas mais queridas Como poderia estar preparado para morrer se continuasse mantendo relacionamentos cheios de sentido e que são tantos na vida de um homem Quando o paciente pede para ser visitado só por poucos amigos depois só por seus filhos e finalmente só por sua esposa devese entender que esta é a maneira de ele se desapegar gradualmente Não raro os parentes mais próximos interpretam mal este fato como sendo rejeição e temos encontrado diversos maridos e esposas que reagiram 188 dramaticamente a este desapego normal e salutar Se conseguirmos fazer com que entendam que só os pacientes que aceitaram a morte são capazes de se desapegar lentamente e em paz estaremos prestando uma grande ajuda Seria para eles uma fonte de conforto e consolo e não de ressentimento e pesar Durante esse período a família é que precisa de maior apoio não tanto o paciente Não quero concluir com isto que o paciente deva ser deixado só Sempre devemos estar a seu dispor mas em geral um paciente que chegou ao estágio de aceitação e decatexia pouco exige em termos de relacionamento interpessoal Se não for explicado à família o sentido deste desligamento podem surgir problemas como os descritos no caso da Sra W capítulo VII Sob o ponto de vista da família a morte mais trágica excluindo a das crianças talvez seja a das pessoas idosas Se as gerações viveram juntas ou separadas cada uma tem a necessidade e o direito de viver sua própria vida de ter sua privacidade de ter atendidas as necessidades peculiares à sua geração Os velhos raciocinando em termos de nosso sistema econômico já viveram o tempo de serem úteis e por outro lado adquiriram o direito de viver a vida em paz e com dignidade Enquanto forem autosuficientes e saudáveis de corpo e mente tudo isso é perfeitamente possível Entretanto temos visto homens e mulheres idosos que ficaram inválidos física e emocionalmente sendo necessária uma soma considerável de dinheiro para mantêlos condignamente ao nível que a família deseja Então a família se depara com uma decisão difícil isto é juntar todo o dinheiro disponível inclusive empréstimos e economias guardadas para a aposentadoria a fim de arcar com estes últimos cuidados A tragédia destes velhos porém é que todo o dinheiro juntado e muitas vezes o sacrifício financeiro não acarretam melhora alguma em seu estado mantendo apenas um nível mínimo de existência Se advêm complicações médicas as despesas são múltiplas e a família geralmente almeja uma morte rápida e sem dor mas é raro que deixe transparecer abertamente este desejo É óbvio que desejos deste tipo despertam sentimentos de culpa 189 Lembrome de uma velhinha que esteve hospitalizada por várias semanas e cujo tratamento requeria cuidados de enfermagem caros e prolongados num hospital particular Todos esperavam que ela morresse logo mas continuava em condição inalterada dia após dia Sua filha estava num dilema ou a mandava para uma casa de saúde ou a mantinha no hospital onde aparentemente a mãe queria ficar Seu genro mostravase zangado por ela ter usado todas as economias de sua vida inteira e brigava constantemente com a esposa que se sentia muito culpada para tirála do hospital Quando fui visitar a velhinha ela parecia assustada e esgotada Pergunteilhe simplesmente de que tinha tanto medo Olhou para mim e finalmente deixou sair o que fora incapaz de comunicar antes tendo constatado ela mesma que seus temores eram infundados Temia ser devorada viva pelos vermes Enquanto eu recuperava o fôlego e tentava entender o significado real daquela afirmação sua filha deixou escapar a frase Se é isto que a está impedindo de morrer podemos cremála querendo dizer naturalmente que a cremação evitaria qualquer contato com os vermes da terra Nessa frase estava contida toda a sua raiva recalcada Fiquei sozinha um pouco com a anciã Conversamos calmamente sobre as fobias de toda a sua vida e seu medo da morte simbolizado no medo dos vermes como se ela pudesse sentilos após a morte Foi grande o seu alívio em ter contado isto e disse que compreendia a raiva da filha Encorajeia a falar destes sentimentos com a filha de modo que esta não viesse a sentir remorsos pela explosão da raiva Quando encontrei a filha do lado de fora do quarto conteilhe que sua mãe a compreendia Juntaramse as duas finalmente para falar destas preocupações terminando nos preparativos para o funeral ou seja a cremação Em vez de permanecerem sentadas em silêncio e com mágoa conversaram consolandose mutuamente A mãe morreu no dia seguinte Se eu não tivesse visto o ar sereno de seu rosto no último dia poderia ficar imaginando que a explosão da raiva da filha fora a causa de sua morte 190 Outro aspecto geralmente não levado em conta é o tipo de doença fatal que o paciente tem Há certa expectativa em torno do câncer como há certos quadros associados a doenças cardíacas A primeira doença é vista como uma moléstia que se arrasta e provoca dores enquanto a segunda pode surgir de repente sem dor mas fulminante Creio que há uma grande diferença entre a morte lenta de um ente querido com tempo suficiente para que ambos os lados se preparem para a dor final e um telefonema apreensivo Aconteceu está tudo acabado É mais fácil falar sobre a morte e o morrer com um paciente portador de câncer do que com um cardíaco já que este nos preocupa pois podemos assustálo causando um enfarte isto é sua morte Os parentes de um canceroso portanto são mais maleáveis para discutir um esperado fim do que a família de um doente do coração cujo fim pode chegar a qualquer momento ou ser apressado por uma discussão qualquer pelo menos na opinião de muitos familiares com quem temos conversado Lembrome da mãe de um jovem do Colorado que não permitia que seu filho fizesse exercício algum nem o mais leve apesar da recomendação contrária dos médicos Em conversa essa mãe dizia coisas assim Se ele se exceder pode cair morto em cima de mim como se esperasse do filho um ato hostil contra ela Não se apercebia de sua própria hostilidade mesmo depois de nos ter confessado seu profundo pesar por ter um filho tão fraco o qual estava sempre associado a seu ineficiente e fracassado marido Levamos meses ouvindo essa mãe com paciência e atenção antes que pudesse expressar alguns de seus desejos destrutivos para com seu filho Para ela o filho era a causa de sua vida sócioprofissional limitada fazendo dela uma ineficiente tanto quanto o marido São situações familiares complicadas onde um indivíduo doente se torna ainda mais deficiente devido a conflitos de parentes Se aprendermos a tratar estes parentes com compaixão e compreensão em vez de críticas e reprovações ajudaremos também o paciente a aceitar suas limitações mais fácil e condignamente 191 O exemplo do Sr P que damos a seguir revela as dificuldades do paciente quando este espera se separar mas a família não aceita a realidade contribuindo para aumentar seus conflitos Nosso objetivo deve ser sempre ajudar o paciente e sua família a enfrentar juntos a crise de modo que aceitem simultaneamente a realidade final O Sr P era um homem de seus cinqüenta e poucos anos mas que aparentava quinze anos a mais Os médicos achavam que era remota a possibilidade de ele reagir ao tratamento não só por causa do estado avançado do câncer e do marasmo mas sobretudo por causa de sua falta de espírito de luta Cinco anos antes desta hospitalização já fora extraído o estômago canceroso do Sr P A princípio aceitou muito bem a doença e vivia esperançoso Aos poucos foi emagrecendo e definhando tornandose cada vez mais deprimido até voltar para o hospital Foi quando uma radiografia do tórax constatou tumores metastáticos nos pulmões Quando o visitei não havia sido informado ainda do resultado da biópsia Levantouse a questão se seria oportuno o tratamento radioterápico ou uma cirurgia dadas as condições de fraqueza em que se encontrava o paciente Nossa entrevista se deu em duas etapas Na primeira visita pretendia me apresentar e dizerlhe que eu estava disponível caso ele quisesse falar da gravidade de sua doença e dos problemas que podia acarretar Fomos interrompidos por um telefonema e eu deixei o quarto pedindo que pensasse no assunto E o informei da hora da minha próxima visita No dia seguinte fui recebida de braços abertos pelo Sr P que me apontou a cadeira convidandome a sentar Apesar de termos sido interrompidos várias vezes para trocar o soro dar a medicação e medir o pulso e a pressão do paciente ficamos juntos por mais de uma hora O Sr P sentia liberdade para dissipar as nuvens como ele disse 192 Não havia defesa nem fuga em sua conversa Era um homem que tinha as horas contadas que não podia perder seu tempo precioso e que parecia ávido para comunicar suas preocupações e mágoas a alguém disposto a ouvir No dia anterior dissera esta frase Quero dormir dormir dormir e não acordar Hoje repetiu o mesmo mas acrescentou um porém Olhei para ele com ar interrogativo e me disse com voz fraca que sua esposa tinha vindo visitálo e estava convencida de que ele se recuperaria Ela o aguardava em casa para cuidar do jardim e das flores Lembrouo também da promessa que fizera de aposentarse logo e mudarse talvez para o Arizona onde poderiam passar mais alguns anos agradáveis Falou com muito calor e afeto de sua filha de vinte e um anos que viera visitálo numa folga da faculdade e que ficara chocada ao vêlo em tal estado Contava tudo com uma ponta de culpa por desapontar a família não vivendo o tanto que esperavam Mencionei isso a ele e concordou Contou todas as suas mágoas Passara os primeiros anos do seu casamento acumulando bens materiais para a família na tentativa de darlhes uma boa casa o que o obrigava a passar a maior parte do seu tempo longe de casa e da família Quando soube que estava com câncer procurara ficar com eles o mais possível mas parecia tarde demais Sua filha vivia longe na escola e tinha seus próprios amigos Quando era pequena e precisava dele estava ocupado demais ganhando dinheiro Falando de seu estado atual disse O sono é o único alívio Cada despertar é uma angústia angústia pura Não existe alívio Começo a invejar dois homens que vi serem executados Senteime frente a frente com o primeiro Não senti nada Agora acho que foi um cara de sorte Mereceu morrer Não sentiu angústia tudo foi rápido sem dor E aqui estou eu na cama dia após dia hora após hora agonizando 193 O que preocupava o Sr P não era tanto a aflição as dores físicas mas a tortura do remorso por não ter preenchido as expectativas da família por ter sido um fracasso Uma necessidade permanente de dormir dormir dormir e um fluxo contínuo de esperança vindo dos circunstantes o atormentavam Vêm as enfermeiras e dizem que tenho de comer senão fico fraco vêm os médicos e me falam de um tratamento novo que começaram e esperam que fique contente vem minha mulher e me fala do trabalho que me espera ao sair daqui vem minha filha e olha para mim como a dizer que tenho de ficar bom Como um homem pode morrer em paz desse jeito Depois sorriu por um instante e disse Vou fazer este tratamento e volto para casa mais uma vez Vou retornar ao trabalho no dia seguinte e ganhar um pouco mais de dinheiro O seguro paga a educação de minha filha mas ela ainda precisa de um pai por enquanto Mas a senhora sabe sei que não posso fazer isso Talvez tenham de aprender a encarar a situação Acho que seria bem mais fácil morrer O Sr P assim como a Sra W capítulo VII mostraram como é difícil para os pacientes encarar a morte iminente e prematura quando a família não está preparada para deixálos partir e aberta ou veladamente impede que se desatem os laços que os ligam à terra O marido da Sra W ficava a seu lado relembrando o casamento feliz que não deveria ter fim e implorando que os médicos fizessem todo o humanamente possível para impedir que ela morresse A esposa do Sr P lembravao das promessas e das obrigações não cumpridas transmitindolhe assim as necessidades dela sobretudo a de têlo ainda por muitos anos Não posso dizer que os cônjuges fizessem uso da negação Eles sabiam da realidade do estado de seus respectivos companheiros Ambos graças à sua própria necessidade fugiam desta realidade Enfrentavamna quando conversavam com pessoas de fora mas a negavam diante dos pacientes quando eram justamente estes que precisavam ouvir da boca deles que 194 sabiam da seriedade do caso e eram capazes de aceitar essa realidade Ignorando isto todo despertar é angústia pura como disse o Sr P Nossa entrevista foi encerrada com um gesto de esperança de que as pessoas mais importantes ao seu redor aprendessem a encarar a realidade da sua morte ao invés de manifestar esperança num prolongamento de sua vida Este homem estava preparado para se separar deste mundo Estava pronto para entrar no estágio final quando o fim é mais promissor e não há mais força suficiente para viver É discutível se em tais circunstâncias é apropriado um esforço supremo dos médicos É possível dar a muitos pacientes um suplemento de vida através de uma quantidade considerável de soros transfu sões vitaminas medicação revitalizante e antidepressiva bem como psicoterapia e tratamento de sintomas Tenho ouvido mais queixas do que aprovações ao ganho de tempo Digo e repito que estou convencida de que um paciente tem o direito de morrer em paz e dignamente Não deveríamos usálo para satisfazer nossas próprias necessidades quando seus anseios se opõem aos nossos Refiro me a pacientes que têm doenças físicas mas que estão com saúde e são suficientemente capazes de tomar suas próprias decisões Seus desejos e opiniões deveriam ser respeitados eles mesmos deveriam ser ouvidos e consultados Se seus anseios são contrários às nossas crenças e convicções no que tange a cirurgias futuras ou tratamentos deveríamos falar abertamente deste conflito e deixar que o paciente tome a decisão Entre os muitos pacientes em fase terminal que entrevistei até agora não constatei nenhum comportamento irracional ou pedidos inaceitáveis incluindo também duas mulheres psicóticas de quem falamos anteriormente que prosseguiram com o tratamento apesar de uma delas negar absolutamente sua doença A família depois que se deu a morte 195 Morto o paciente acho cruel e inoportuno falar do amor de Deus Quando perdemos alguém sobretudo quando tivemos muito pouco tempo para nos preparar ficamos com raiva zangados desesperados deveriam deixar que extravasássemos estas sensações Em geral os familiares preferem ficar sozinhos logo que dão permissão para fazer autópsia Amargos sentidos ou apenas sedados andam pelos corredores do hospital incapazes muitas vezes de enfrentar a brutal realidade Os primeiros dias poucos aliás são preenchidos com trabalho intenso arrumações visitas de parentes O vazio se faz sentir após o funeral quando os parentes se retiram É nesta ocasião que os familiares se sentiriam gratos se houvesse alguém com quem pudessem conversar especialmente sê esse alguém tiver tido contato recente com o falecido podendo assim contar fatos pitorescos dos bons momentos vividos antes de ele morrer Isto ajuda o parente a superar o choque e o pesar preparandoo para uma aceitação gradual Muitos parentes se preocupam com memórias e ficam ruminando fantasias chegando muitas vezes a falar com o falecido como se este ainda estivesse vivo Além de se isolar dos vivos tornam mais difícil encarar a realidade da morte da pessoa Entretanto para alguns esta é a única forma de aceitar a perda e seria cruel demais censurálos ou colocálos frente a frente todo dia com a inaceitável realidade Seria mais válido compreender esta necessidade e ajudálos a quebrar os grilhões afastandoos aos poucos deste isolamento Constatei este tipo de comportamento em viúvas completamente despreparadas que perderam os maridos ainda jovens É o que acontece freqüentemente em tempo de guerra em que a morte de jovens se dá em lugares distantes embora eu ache que a guerra é sempre um alerta para os familiares de um provável não retorno Portanto estão mais preparados para uma morte assim do que por exemplo para a morte repentina de um jovem por uma doença súbita de evolução rápida Uma última palavra deve ser dita sobre as crianças São sempre as esquecidas Não que ninguém se importe o mais das 196 vezes se dá exatamente o contrário embora poucas sejam as pessoas que se sentem à vontade para falar com uma criança sobre a morte As crianças têm conceitos diferentes sobre a morte dignos de serem levados em consideração para que se possa conversar com elas e entender o que dizem Até os três anos uma criança só se preocupa com a separação seguida mais tarde pelo temor da mutilação É nesta idade que a criança começa a se movimentar a fazer os primeiros contatos com o mundo a fazer os passeios de velocípede na calçada É nesta atmosfera que pode presenciar o primeiro bicho de estimação ser atropelado por um carro ou um belo pássaro ser devorado por um gato Mutilação significa isto para ela pois está na idade em que se preocupa com a integridade de seu corpo e se sente ameaçada por qualquer coisa que possa destruílo Conforme foi explicado no capítulo I a morte não é um fato permanente para a criança de três a cinco anos É tão temporária como enterrar o bulbo de uma flor no chão e aguardar que brote na primavera Depois dos cinco anos a morte geralmente é vista como um homem um esqueleto que vem buscar as pessoas É atribuída ainda a uma intervenção externa Por volta dos nove ou dez anos começa a surgir a concepção realista isto é a morte como um processo biológico permanente As crianças têm reações diferentes diante da morte de um dos pais passando de um isolamento e de um afastamento silencioso a um pranto convulso que chama a atenção substituindo um objeto necessitado e amado Como as crianças não sabem ainda distinguir entre o desejo e a ação como explicamos no capítulo I podem sentir muito remorso e culpa Podem sentirse responsáveis por terem matado os pais daí nascendo o temor de um castigo horrível como represália Por outro lado podem aceitar a separação com relativa calma e proferir frases como esta Ela vai voltar nas próximas férias ou colocar secretamente uma maçã do lado de fora para se certificar de que ela tenha o que comer na viagem temporária Se 197 os adultos já perturbados durante este período não compreenderem essas crianças e as repreenderem e corrigirem elas podem reprimir no íntimo sua maneira de manifestar o pesar o que pode muitas vezes ser fonte de distúrbios emocionais futuros Com o adolescente as coisas não diferem muito do adulto Naturalmente a adolescência já é um período difícil em si mesmo Se a ele se acrescenta a perda de um dos pais tornase muito para um jovem suportar Devemos ouvilos e deixar que exteriorizem seus sentimentos não importa se de culpa ira ou simples tristeza A solução para o pesar e a ira O que estou querendo recomendar novamente aqui é o seguinte deixem o parente falar chorar ou gritar se necessário Deixem que participe converse mas fiquem à disposição É longo o período de luto que tem pela frente quando tiverem sido resolvidos os problemas com o falecido E necessita de ajuda e assistência desde a confirmação de um chamado mau diagnóstico até os meses posteriores à morte de um membro da família Naturalmente não entendo por ajuda apenas conselhos profissionais de qualquer espécie aliás muitos não precisam nem suportam isso Mas necessitam de um ser humano de um amigo médico enfermeira capelão pouco importa A assistente social talvez seja a mais próxima se ajudou a conseguir uma enfermaria e se a família quiser discutir o problema da permanência do parente naquele local que pode ser inclusive uma fonte de sentimentos de culpa por não ter ficado com ele em casa Não é raro essas famílias visitarem outros velhinhos na mesma enfermaria e continuarem cuidando de alguém quem sabe como uma negação parcial ou simplesmente para compensar todas as oportunidades perdidas com os mais velhos de casa Não importa a razão fundamental o fato é que devemos 198 tentar compreender as necessidades deles e ajudar os parentes numa orientação construtiva para diminuir a culpa a vergonha ou o medo do castigo A ajuda mais significativa que podemos dar a qualquer parente criança ou adulto é partilhar seus sentimentos antes que a morte chegue deixando que enfrente estes sentimentos racionais ou não Se tolerarmos a raiva deles quer seja dirigida a nós ou ao falecido ou contra Deus teremos ajudado a darem passos largos na aceitação sem culpa Se os incriminarmos por não reprimirem estes pensamentos pouco aceitos socialmente seremos culpados por prolongarmos o pesar a vergonha e o sentimento de culpa deles que resultam freqüentemente em abalo da saúde física e emocional 199 X Algumas entrevistas com pacientes em fase terminal Oh morte teu servo bate à minha porta Ele cruzou o mar desconhecido e trouxe ao meu lar o teu chamado A noite é como breu e meu coração treme de medo mesmo assim tomarei da lâmpada abrirei os portões e farei vénia em sinal de boasvindas É o teu mensageiro que está à minha porta Eu o venerarei de mãos postas e com lágrimas nos olhos Eu o venerarei colocando a seus pés o tesouro do meu coração Ele retornará com a missão cumprida deixando uma sombra escura na manhã do meu dia e em meu lar desolado só permanecerá o meu desamparado ser última oferta de mim para ti Tagore Gitanjali LXXXVI Nos capítulos anteriores tentamos delinear as razões das dificuldades crescentes dos pacientes ao comunicar suas necessidades quando acometidos de doenças graves e talvez fatais Resumimos algumas das conclusões a que chegamos e procuramos descrever os métodos usados para descobrir até que ponto o paciente sabe de seu estado quais são os seus problemas preocupações e desejos Acho válido acrescentar aqui como exemplo entrevistas colhidas ao acaso que nos dão um quadro mais elucidativo da variedade das respostas e das reações que o paciente e o entrevistador revelaram Digase de passagem que o paciente quase nunca conhecia o entrevistador 200 e se encontravam antes apenas por alguns minutos para preparar a entrevista Selecionei uma entrevista de um paciente que estava sendo visitado por sua mãe a qual se ofereceu para ficar conosco e responder também às perguntas Acho que é uma demonstração clara de como os diferentes membros de uma família lidam com a doença em fase terminal e de como às vezes ambos conservam lembranças bem diversas de um mesmo aconteci mento A cada entrevista seguese um breve resumo referente a afirmações feitas em capítulos anteriores Estas entrevistas originais falarão por si mesmas Deixamos propositadamente que ficassem sem correção e sem cortes a fim de demonstrar os momentos em que percebemos comunicações explícitas ou implícitas de um paciente e outros momentos em que não reagimos da melhor maneira A parte que escapa ao leitor é a experiência que cada um obteve durante os diálogos as inú meras comunicações nãoverbais que surgem constantemente entre o paciente e o médico o médico e o capelão ou o paciente e o capelão os suspiros os olhos marejados de lágrimas os sorrisos os gestos com as mãos o olhar vazio os relances atônitos ou as mãos estendidas todas comunicações de peso que em geral vão além das palavras Embora as entrevistas abaixo com poucas exceções tenham sido um primeiro encontro mantido com estes pacientes na maioria dos casos esse não foi o único encontro Todos os pacientes foram visitados tantas vezes quanto era aconselhável até morrerem Muitos tiveram alta e voltaram para casa uns morreram lá outros foram hospitalizados de novo mais tarde Quando estavam em casa pediam para ser convocados de vez em quando ou chamavam um dos entrevistadores para manter contato Acontecia vez por outra de um parente vir fazer uma visita informal em nosso consultório para se inteirar do comportamento de um determinado paciente e procurar ajuda e compreensão ou para reviver conosco alguns momentos quando o paciente já não existia Procurávamos ser tão 201 acessíveis com eles como com o paciente durante e depois da hospitalização As entrevistas que se seguem podem ser estudadas do ponto de vista do papel que os parentes desempenham durante estes momentos difíceis O marido da Sra S a abandonara só tendo sido informado indiretamente pelos dois filhos menores da doença fatal da esposa Foi um vizinho e amigo que assumiu a função mais importante durante sua enfermidade apesar de ela esperar que o marido e a segunda mulher tomassem conta das crianças após sua morte A moça de dezessete anos revela a coragem de uma jovem ao enfrentar esta crise À sua entrevista seguese outra com sua mãe Ambas falam por si A Sra C sentiase incapaz de encarar a própria morte por causa das inúmeras obrigações que tinha para com a família Eis aqui novamente um bom exemplo da importância do aconselhamento familiar quando o paciente tem que cuidar de doentes dependentes ou velhos A Sra L que fora os olhos de seu marido deficiente visual valese dessa função para provar que ainda pode agir e ambos lançam mão da negação parcial em tempo de crise A Sra S é protestante quarenta e oito anos mãe de dois meninos que criou sozinha Queria conversar com alguém e por isso a convidamos para vir ao nosso seminário Estava relutante e ao mesmo tempo um pouco ansiosa para vir mas sentiu muito alívio depois do seminário No trajeto para a sala de entrevista conversou casualmente sobre seus dois filhos e parecia óbvio que eram sua maior preocupação durante a hospitalização Doutora Sra S não conhecemos nada a seu respeito a não ser o pouco que conversamos minutos atrás Quantos anos tem 202 Paciente Pois é domingo completo quarenta e oito anos Doutora Domingo que vem Não posso esquecer É a segunda vez que se interna Quando foi a primeira Paciente Em abril Doutora Qual o motivo de ter vindo Paciente Este tumor na mama Doutora Que tipo de tumor Paciente Não sei dizer com precisão Não conheço bem a doença para distinguir um tipo do outro Doutora O que a senhora acha que é O que lhe disseram que tem Paciente Bem quando fui ao hospital fizeram uma biópsia Dois dias depois o médico da família veio e disse que os resultados haviam chegado e que o tumor era maligno Na realidade não sei de que tipo era Doutora Mas lhe disseram que era maligno Paciente Foi Doutora Quando se deu isso Paciente Deve ter sido lá pelo fim de março Doutora Deste ano Quer dizer que até este ano gozava de saúde Paciente Não não Tenho um caso de tuberculose sob controle Assim de vez em quando passo meses no sanatório Doutora Sei Onde no Colorado Em que sanatório esteve Paciente Em Illinois Doutora Portanto a senhora sempre esteve doente na vida Paciente Sim Doutora Está mais ou menos acostumada com os hospitais Paciente Não Acho que a gente nunca se acostuma 203 Doutora E então como esta doença começou O que a trouxe ao hospital Pode nos contar sobre o começo desta doença Paciente Começou com um pequeno inchaço Era mais ou menos como uma verruga Bem aqui Começou a crescer e a doer e ah acho que não sou diferente de ninguém não queria ir ao médico e ficar mostrando a mama até que me dei conta de que estava ficando cada vez pior então tive de consultar alguém Há poucos meses o velho médico da família havia falecido Não sabia a quem me dirigir Naturalmente bem não tenho marido fui casada durante vinte e dois anos mas ele resolveu ficar com outra de quem gostava Portanto fiquei sozinha com os meninos sentindo que eles precisavam de mim Acho que esta é uma das razões para pensar que se fosse algo de muito grave Bem continuei repetindo que não podia ser Tinha que ficar em casa com os meninos Foi este o motivo principal para eu procurar um médico Quando fui o caroço estava tão grande e doía tanto que não podia mais suportar O médico disse que não podia fazer nada no consultório e que eu teria de ir para o hospital Fui internada quatro ou cinco dias depois sendo constatado um tumor também num dos ovários Doutora Tudo foi descoberto ao mesmo tempo Paciente Foi Penso que o médico pretendia fazer alguma coisa nesse sentido também enquanto eu estava lá A biópsia revelou que o tumor era maligno e naturalmente ele nada mais podia fazer Foi quando me disse que eu teria de decidir para onde queria ir pois ali nada mais podia ser feito Doutora Isto é para qual hospital Paciente Sim Doutora Então escolheu este hospital Paciente Foi 204 Doutora Como é que escolheu Paciente Temos um amigo que foi internado aqui uma vez Conheçoo por causa do seguro ele não falou muito do hospital dos médicos e das enfermeiras Disse apenas que os médicos são especialistas e que se é muito bem tratado Doutora A senhora acha Paciente Acho Doutora Fico curiosa em saber como se sentiu quando lhe disseram que o tumor era maligno Como recebeu a notícia depois de adiar adiar e ouvir a verdade Ou ouvir a realidade isto é além de sua necessidade de ficar em casa e tomar conta dos filhos Como recebeu a notícia quando finalmente foi obrigada a ouvila Paciente Quando a ouvi pela primeira vez fiquei arrasada Doutora Como Paciente Emocionalmente Doutora Deprimida chorando Paciente É Sempre pensei que nunca teria uma coisa dessas Então quando percebi que era grave pensei É algo que devo aceitar ficar arrasada não resolve nada e acho que quanto mais cedo visitar alguém que me ajude melhor será Doutora Chegou a participar a seus filhos Paciente Sim participei a ambos Isto é não sei realmente o quanto podem entender Sinto que sabem que se trata de algo muito sério mas não sei até que ponto Capelão E o restante da família Participou a mais alguém Há outras pessoas Paciente Tenho uma pessoa um amigo com quem tive uma ligação durante uns cinco anos É uma excelente pessoa e tem sido muito bom para mim Inclusive para os meninos isto é toda vez que precisei me afastar dos garotos foi 205 ele quem tomou conta deles providenciando alguém para preparar o jantar e ficar com eles Isto é que não ficassem completamente sozinhos à mercê deles mesmos É claro que o mais velho é bastante responsável mas ainda é menor de idade não completou vinte e um anos Capelão A senhora se sente mais tranqüila com alguém lá Paciente Sim Tenho também uma vizinha É como um duplex ela mora na outra metade da casa Está sempre entrando e saindo de minha casa e me ajudou nos afazeres domésticos durante os dois meses em que estive em casa Tomava conta de mim sabe me dava banho e preparava alguma coisa para comer É uma pessoa maravilhosa muito religiosa fervorosa e tem feito muitíssimo por mim Doutora Que fé ela professa Paciente Não sei exatamente qual igreja freqüenta Capelão Protestante Paciente Sim Capelão A senhora tem outros familiares ou Paciente Tenho um irmão que mora aqui Capelão Mas ele não é tão chegado como Paciente Não temos sido muito não Pelo pouco tempo que conheço aquela amiga ela é realmente a pessoa mais próxima que tenho Posso me abrir com ela e ela comigo e isto me faz sentir melhor Doutora Hum A senhora é uma pessoa de sorte Paciente Ela é maravilhosa Jamais conheci alguém assim Quase todo dia recebo um cartão ou uma carta dela Pode parecer tolice pode parecer sério mas fico aguardando notícias dela Doutora É alguém que se preocupa Paciente É 206 Doutora Quanto tempo faz que seu marido a deixou Paciente Em setembro de 1959 Doutora 1959 Foi quando você teve tuberculose Paciente A primeira vez foi em 1946 Perdi minha filhinha de dois anos e meio Naquela época meu marido trabalhava para o governo Ela estava muito doente e a levamos a um especialista no hospital Ah O pior é que não podia vêla enquanto ela estava lá Entrou em coma e não voltou mais Perguntaram se eu concordava em fazer autópsia respondi que sim na esperança de que pudesse ser útil a alguém algum dia Fizeram a autópsia e constataram que tivera tuberculose miliar Quando meu marido voltou para o serviço meu pai veio morar comigo Aí então todos nós fizemos um exame geral Meu pai tinha uma grande caverna no pulmão e eu estava com pequenos problemas Naquela época fomos internados os dois no hospital Fiquei lá uns três meses e a única prescrição era repousar e tomar injeções Não precisei fazer nenhuma operação Aí nos anos que se seguiram estive lá antes e depois do nascimento de cada um dos meus filhos Não voltei mais como paciente desde que o mais novo nasceu em 1953 Doutora A menina foi primogênita Paciente Foi Doutora É a única filha que teve Deve ter sido duro não Como se recuperou disso Paciente Foi duríssimo Doutora O que lhe deu forças Paciente Provavelmente a oração mais do que qualquer coisa Nós éramos digo ela era tudo o que eu tinha naquela ocasião Fazia apenas três meses que meu marido tinha partido Ela era bem a verdade é que eu vivia só para ela sabe Não julgava que pudesse aceitar mas consegui 207 Doutora Desde que seu marido se foi é para os meninos que a senhora vive Paciente É Doutora Isso deve ser muito duro Fora a religião e as orações o que mais a ajuda a não esmorecer sempre que se sente triste ou deprimida por causa da doença Paciente Acho que as orações estão em primeiro lugar Doutora Já pensou ou conversou com alguém sobre como vai ser se a senhora morrer desta doença ou não pensa nessas coisas Paciente Bem não tenho pensado muito não A não ser esta senhora amiga minha que conversa comigo sobre a gravidade da doença e coisas assim Fora ela não tenho conversado com mais ninguém Capelão Seu pároco vem vêla ou a senhora freqüenta a igreja Paciente Freqüentava antes mas há meses que não me sinto bem mesmo antes de vir para cá Eu não era freqüentadora assídua mas Capelão O pároco vem vêla Paciente O padre foi me ver quando eu estava no hospital lá na minha terra antes de vir para cá Ficou de ir me ver novamente antes que me internasse mas de repente decidi vir para cá Portanto não conseguiu me ver mais Fazia duas ou três semanas que eu estava aqui quando o Padre D veio me ver Capelão Mas antes de tudo sua fé era alimentada por suas próprias convicções já que não teve meios de falar com ninguém na igreja Paciente Não tive Capelão Mas sua amiga desempenhou este papel 208 Doutora A senhora deu a impressão de que essa amizade é relativamente recente Faz pouco tempo que se mudou para esse duplex ou foi ela quem chegou primeiro Paciente Faz mais ou menos um ano e meio que a conheci Doutora Só Isso é maravilhoso Como se entrosaram tanto em tão pouco tempo Paciente Não sei É bem difícil de explicar Conversando ela me disse que sempre quisera ter uma irmã e eu lhe disse o mesmo Conteilhe que só tinha um irmão e ela me disse Acho que nos descobrimos mutuamente agora você tem uma irmã e eu também O simples fato de vêla andando pelo quarto faz a gente sentir que é um lar Doutora Nunca teve uma irmã Paciente Não Só meu irmão e eu Doutora A senhora só teve um irmão Como eram seus pais Paciente Meu pai e minha mãe se divorciaram quando éramos muito pequenos Doutora Com que idade Paciente Eu estava com dois anos e meio e meu irmão três e meio mais ou menos Fomos criados por um tio e uma tia Doutora Como eram eles Paciente Eram maravilhosos com a gente Doutora Quem são seus pais verdadeiros Paciente Minha mãe ainda vive e mora aqui na cidade Meu pai morreu não muito depois de sua doença e internação no sanatório Doutora Seu pai morreu de tuberculose Paciente Foi Doutora Certo Com qual dos dois a senhora se dava melhor Paciente Na verdade meus tios eram meus pais Isto é estivemos com eles desde tenra idade Eles nunca 209 deixaram de nos dizer que eram nossos tios mas sempre foram como pais para nós Doutora Não mentiram para a senhora foram muito honestos quanto a isso Paciente Não tem dúvida Capelão Eles vivem ainda Paciente Não Meu tio morreu há muitos anos Minha tia ainda vive e está com oitenta e cinco anos Capelão Ela sabe de sua doença Paciente Sabe Capelão Está sempre em contato com ela Paciente Estou sim Isto é ela não sai muito e não goza de muita saúde No ano passado teve artrite da coluna e ficou hospitalizada por muito tempo Não sabia se ela viveria ou não depois daquela doença Mas se recuperou e está muito bem agora Tem sua casinha própria mora sozinha e cuida de si mesma não é maravilhoso Doutora Oitenta e quatro anos Paciente Oitenta e cinco Doutora Como é que a senhora vive Estava trabalhando Paciente Trabalhava meio período até o dia de vir para cá Doutora Em abril Paciente É mas meu marido nos dá uma pensão semanal Doutora Entendo Quer dizer que a senhora não depende de ter de trabalhar Paciente Não Doutora Seu marido ainda mantém contato com a senhora Paciente Pois é ele vem ver os filhos sempre que deseja e deseja sempre Toda vida achei que dependia dele querer vêlos Mora na mesma cidade que eu Doutora Hum Ele casouse novamente 210 Paciente Casouse Casouse de novo mais ou menos um ano depois que se foi Doutora Ele sabe que a senhora está doente Paciente Sabe sim Doutora Até que ponto Paciente Não sei precisamente talvez só o tanto que os meninos lhe contaram Doutora A senhora não fala com ele Paciente Não Doutora Então não o tem visto pessoalmente Paciente Não para conversar Não tenho não Doutora Quais as partes do corpo que estão tomadas agora pela doença Paciente Este tumor aqui e esta mancha no fígado Depois tive este grande tumor na perna que roeu a maior parte do osso por isso tiveram que colocar esse pino em minha perna Doutora Em que mês foi Paciente Em julho Tenho ainda aquele tumor no ovário em observação apesar de terem de descobrir onde é que começou Doutora É eles sabem que se propagou por diferentes lugares agora mas não sabem onde o primeiro começou É assim Qual é o aspecto em que a doença mais a afeta Até que ponto interfere em sua vida normal e nas suas atividades Por exemplo a senhora não pode andar pode Paciente Não só de muletas Doutora Pode andar pela casa de muletas Paciente Posso mas não consigo cozinhar e fazer a limpeza da casa Doutora O que mais a doença lhe causa 211 Paciente Para dizer a verdade não sei Doutora Pensei ter ouvido a senhora dizer que sentia muitas dores Paciente Pois sinto Doutora Então ainda sente muitas dores Paciente Hum Penso que depois de tantos meses a gente aprende a viver com elas isto é quando ficam intensas demais que a gente não agüenta pedese um remédio Mas nunca liguei para tomar remédio Doutora A senhora me dá impressão de ser uma pessoa que agüenta firme antes de dizer alguma coisa Haja vista que esperou muito tempo e viu o tumor crescer antes de procurar um médico Paciente Esse sempre foi o meu maior problema Doutora A senhora é uma pessoa difícil com as enfermeiras Quando precisa de alguma coisa pede Sabe que tipo de paciente é Paciente Seria melhor perguntar isso a elas Brincando Capelão Isso é fácil mas estamos interessados no que a senhora sente Paciente Não sei Eu eu acho que posso conviver com qualquer pessoa Doutora Ah Também acho que sim mas talvez não peça o suficiente Paciente Não peço além do que devo pedir Doutora Como assim Paciente Não sei ao certo Isto é as pessoas são diferentes Veja sempre fui feliz enquanto podia cuidar de mim limpar minha casa e fazer as coisas para meus filhos O que mais me incomoda é sentir que alguém precisa cuidar de mim agora Para mim é muito difícil aceitar isso Doutora Qual é o pior de tudo ficar cada vez mais doente ou não poder se doar aos outros 212 Paciente O segundo Doutora Como poderia doarse aos outros não estando bem fisicamente Paciente Podemos nos lembrar deles em nossas orações Doutora Em outras palavras é o que a senhora faz aqui agora Paciente É Doutora Acha que isto vai ajudar algum outro paciente Paciente Vai Acho que vai Espero que ajude Doutora Na sua opinião como poderíamos ajudar Como é o morrer para a senhora Que sentido tem Paciente Não tenho medo de morrer Doutora Não Paciente Não Doutora Não há nenhuma conotação ruim Paciente Não quero dizer isso Naturalmente todo mundo quer viver o máximo possível Doutora Naturalmente Paciente Mas não teria medo de morrer Doutora Como conciliar isto Capelão É o que eu admirei não estamos comunicando nada senão que as pessoas têm problemas realmente Pensa no que vai acontecer se vier a morrer Já pensou nisso A senhora disse que conversou com sua amiga Paciente Foi Conversamos sobre isso sim Capelão Poderia nos transmitir alguns desses sentimentos Paciente É um tanto difícil para mim o senhor sabe Capelão É mais fácil falar com ela sobre isso do que com qualquer outra pessoa Paciente Com outra pessoa que você não conheça 213 Capelão Poderia lhe fazer uma pergunta relacionada a quanto sua doença a afetou e esta é a segunda doença pois a senhora já teve tuberculose a senhora perdeu sua filha quanto estas experiências afetaram sua atitude com respeito à vida e a seus pensamentos religiosos Paciente Acho que me aproximei mais de Deus Capelão De que modo Sentindo que Ele poderia ajudar ou Paciente Pois é Sinto apenas que me coloquei em Suas mãos Dependeria Dele eu ficar boa novamente levar uma vida normal Capelão A senhora mencionou a dificuldade de depender dos outros mas é capaz de encontrar muito auxílio nesta sua amiga É difícil depender de Deus Paciente Não Capelão Ele é mais como essa sua amiga não Paciente É Doutora Mas se entendi bem sua amiga tem as mesmas necessidades que a senhora Ela também sente falta de uma irmã portanto é um dar e receber não somente receber Paciente Ela teve tristezas e pesares na vida talvez isso a tivesse aproximado de mim Doutora Ela é uma mulher solitária Paciente Ela pode compreender É casada nunca teve filhos adora crianças mas nunca teve as suas Adora as crianças dos outros Ela e o marido trabalhavam no Lar das Crianças eram os pais do Lar Tinham sempre crianças ao redor deles o tempo todo e sempre foram muito bons com meus meninos também Doutora Quem cuidará deles se a senhora ficar muito tempo no hospital ou morrer Paciente Pois é se me acontecer alguma coisa acho natural que o pai cuide deles É o lugar dele 214 Doutora Como você se sente em relação a isso Paciente Acho que seria a melhor coisa Doutora Para os meninos Paciente Não sei se seria o melhor para os meninos mas Doutora Eles se dão com a segunda mulher do pai Quem seria realmente a substituta da mãe deles Paciente Na realidade ela não se interessa por eles Doutora Em que sentido Paciente Não sei se ela guarda rancor dos meninos ou se não sei não Mas penso que no fundo o pai ama os garotos acho que sempre os amou Se for preciso creio que faria tudo por eles Capelão A diferença de idade de um para o outro é grande não O mais novo tem treze anos Paciente Treze Está na 6ª série Doutora Um tem treze e o outro dezoito não Paciente O mais velho terminou o 2 grau no ano passado Fez dezoito anos em setembro e teve que se alistar no serviço militar o que não o deixou muito contente e nem a mim Não penso nisso isto é tento não pensar mas penso Doutora Sobretudo em situações como esta acho muito difícil não pensar O hospital de um modo geral e em particular as pessoas de seu andar têm sido prestativas na medida do possível ou você sugere alguma coisa para melhorar o atendimento a pacientes como a senhora que tenho certeza têm uma série de problemas de conflitos de preocupações e não se abrem facilmente Paciente Acho chego mesmo a sentir isso gostaria que os médicos pudessem esclarecer um pouco mais Imagino isto é ainda me sinto como se estivesse nas trevas até saber o que tenho exatamente É possível que haja quem queira saber do grau de sua doença e quem não queira Gostaria de saber se terei pouco tempo de vida 215 Doutora A senhora perguntou ao médico Paciente Não Os médicos estão sempre com tanta pressa Doutora Da próxima vez puxe um deles e pergunte Paciente Sei que o tempo deles é precioso Portanto não quero Capelão Não difere muito do que ela nos disse sobre seus relacionamentos Ela não impõe nada a ninguém e tomar o tempo de outrem significa uma imposição a menos que se sinta à vontade com a outra pessoa Doutora A menos que o tumor cresça tanto e fique tão insuportável a dor e que a senhora não agüente mais certo De que médico gostaria de ouvir a explicação A senhora tem vários médicos Com qual deles se dá melhor Paciente Confio muito no Dr Q Quando ele entra no quarto sinto que me fará bem qualquer coisa que disser Doutora Talvez ele esteja esperando uma brecha para a senhora perguntar Paciente Sempre me senti assim em relação a ele Doutora Acha possível que esteja esperando uma dica para a senhora perguntar Paciente Bem não sei Não Provavelmente me dirá o que achar necessário Doutora Mas não é suficiente para a senhora Capelão Ela diz isto no sentido de querer saber mais Quando disse se tivesse pouco tempo de vida fiquei na dúvida se era isto o que preocupava você É assim que está formulando o problema Doutora Sra S o que considera pouco tempo de vida Isso é bastante relativo Paciente Oh não sei Diria seis meses ou um ano 216 Capelão Em outras situações a senhora se sentiria igualmente tão interessada em saber Esse foi o exemplo que deu Paciente Seja o que for que eu tenha gostaria de saber Acho que há pessoas a quem se pode contar e há outras a quem não se pode Doutora O que mudaria Paciente Não sei Talvez tentasse apenas aproveitar um pouco mais os dias se Doutora A senhora sabe que nenhum médico poderá lhe dizer o tempo exato Não se sabe Alguns médicos porém calculam bem e dão uma estimativa aproximada Alguns pacientes entram numa depressão terrível e não conseguem aproveitar um só dia depois disso O que é que a senhora acha Paciente Não me incomodaria Doutora Mas a senhora compreende por que alguns médicos têm receio Paciente Compreendo Há pessoas que poderiam saltar da janela ou fazer uma cena dramática Doutora É algumas pessoas são assim Mas a senhora aparentemente vem martelando isso há muito tempo porque sabe onde tem os pés Acho que deveria dizer ao médico conversar com ele Simplesmente deixe a passagem livre e veja até onde pode chegar Paciente Talvez ele ache que não devo saber exatamente o que tenho isto é que Capelão A senhora descobriria Doutora A gente tem sempre que perguntar para obter a resposta Paciente Sabe tinha muita confiança no primeiro médico que conheci quando vim para cá a primeira vez para fazer os primeiros exames Isso desde o primeiro dia que o vi 217 Capelão Eis aí uma confiança plena Doutora O que é muito importante Paciente Acontece que a gente chega em casa tem o médico da família e se sente muito ligada a ele Doutora E a senhora o perdeu também Paciente Foi duro demais porque era um homem maravilhoso Tinha tudo para continuar vivendo Tinha menos de sessenta anos E como vocês sabem é claro a vida de um médico não é nada fácil Certamente não se cuidava muito como devia Seus pacientes vinham em primeiro lugar Doutora Como a senhora Seus filhos vinham em primeiro lugar Paciente Sempre vieram Doutora E foi difícil agora A senhora veio para a entrevista com uma certa dose de cautela Paciente Pois é realmente não estava muito entusiasmada para vir Doutora Eu sei Paciente Mas então pensei melhor simplesmente decidi que devia Capelão Como se sente agora Paciente Feliz por ter vindo Doutora Não foi tão horrível assim foi A senhora disse que não sabe falar muito bem mas acho que fez um belo trabalho Capelão Concordo Gostaria de saber se não teria alguma pergunta a fazer aproveitando aquela deixa de que os médicos estão sempre muito apressados para permitir que os pacientes façam perguntas Temos tempo de sobra se quiser perguntar sobre a entrevista ou qualquer outra coisa 218 Paciente Pois é quando vocês vieram e me explicaram sobre a entrevista não entendi muito bem o que seria para que serviria qual a idéia principal etc Capelão A conferência já respondeu pelo menos em parte Paciente Em parte sim Doutora Veja bem o que estamos tentando fazer é saber através dos pacientes como conversar com pessoas absolutamente estranhas que não encontramos antes nem conhecemos de forma alguma é tentar chegar a conhecer um paciente razoavelmente bem e ver que tipo de necessidades e anseios ele tem Depois procurar atender a estes anseios como aprendi muito com a senhora agora que sabe muito bem qual é a sua doença sabe que é grave e sabe que já se espalhou em diversos lugares Não creio que alguém possa lhe dizer quanto tempo ainda vai viver Estão tentando um novo regime que talvez não tenham testado ainda com outros pacientes mas depositam muita esperança nele Sei que é um regime bem ruim para a senhora Acho que todos estão fazendo o melhor que podem para conseguir Paciente Se acham que vai me ajudar quero tentar Doutora Acham É por isso que lhe deram Mas o que a senhora quer dizer é que gostaria de ter um tempo disponível e conversar com o médico não Mesmo que ele não possa lhe dar todas as respostas claras e precisas Aliás acho que ninguém pode Mas só conversar um pouco não é Aquilo que a senhora fazia com o médico da família e que estamos tentando fazer aqui Paciente Não estou tão nervosa como pensava aliás sinto me até bem à vontade Capelão Achei que ia se sentir bem aqui Paciente No começo quando vim estava bastante agitada Capelão A senhora comentou isso 219 Doutora Agora vamos levála de volta Aparecemos de vez em quando está bem Paciente Assim espero Doutora Gratos por ter vindo Em resumo aqui está um exemplo típico de uma paciente que teve muitas perdas na vida que precisava dividir suas preocupações com alguém e que se sentiu aliviada em falar de seus sentimentos com quem se interessou por ela A Sra S tinha dois anos e meio quando seus pais se divorciaram e foi criada por parentes Sua única filha morreu de tuberculose com dois anos e meio no tempo em que seu marido servia o governo e ninguém mais lhe era tão chegado quanto a menina Logo depois perdeu seu pai no sanatório onde também precisou ficar internada por causa da tuberculose Depois de vinte e dois anos de casamento seu marido a abandonou com dois filhos pequenos por outra mulher O médico da família em quem depositava uma confiança ilimitada morreu quando mais precisava dele isto é quando notou um caroço suspeito que mais tarde descobriu ser maligno Criando os filhos sozinha adiou o tratamento até que a dor se tornou insuportável e a doença já se espalhara pelo corpo No meio de toda esta miséria e solidão sempre encontrou alguns amigos fiéis com quem pôde dividir seus anseios Também eles eram substitutos como os tios eram substitutos de seus verdadeiros pais como o namorado substituiu o marido a vizinha a irmã que nunca teve Com esta última o relacionamento era mais profundo pois ela se tornou uma mãe substituta para a paciente e para as crianças quando a doença se complicou Essa prestação de serviço veio preencher uma de suas lacunas e foi realizada com grande sensibilidade sem intromissão A assistente social desempenhou um papel preponderante nos cuidados com esta paciente mais tarde inclusive seu médico informado de que ela queria tratar com ele de assuntos mais pessoais 220 A entrevista seguinte é de uma moça de dezessete anos com anemia aplástica que pediu para ser entrevistada na presença dos estudantes Logo em seguida fezse uma entrevista com sua mãe seguida de um debate entre estudantes de medicina médicos internos e a equipe de enfermagem que atendia a ala da moça Doutora Estou querendo aliviar você portanto nos diga quando estiver muito cansada ou sentindo dores Quer contar ao grupo há quanto tempo está doente e quando foi que a doença começou Paciente Bem simplesmente apareceu em mim Doutora E como apareceu Paciente Estávamos num encontro da igreja na pequena cidade em que vivíamos onde eu participava das reuniões Tínhamos ido jantar na escola peguei meu prato e me sentei Comecei a tremer a sentir calafrios a ficar gelada com uma dor aguda no lado esquerdo Então me levaram para a casa do pastor e me puseram na cama A dor continuava aumentando e eu ficava cada vez mais fria Aí o pastor chamou o médico da família que diagnosticou crise de apendicite Levaramme para o hospital e a dor parecia passar como se fosse desaparecendo por si mesma Fizeram uma série de exames e constataram que não era apendicite Mandaramme de volta para casa com o resto do pessoal Tudo correu bem por algumas semanas e voltei à escola Estudante O que você achava que tinha Paciente Não sabia de nada Continuei indo à escola por uns quinze dias até que um dia adoeci de verdade e rolei pelas escadas Sentiame muito fraca e desfalecendo Chamaram o médico de casa que achou que eu estava anêmica Levoume para o hospital onde tomei três frascos de sangue Foi quando comecei a sentir estas dores aqui Eram fortes e pensaram que talvez fosse o 221 baço Quiseram extraílo Tiraram uma porção de radiografias e tentaram tudo Continuava tendo muitos problemas e não sabiam mais o que fazer O Dr Y foi consultado e vim para cá fazer um exame geral Internaramme no hospital fizeram uma porção de testes e descobriram que era portadora de anemia aplástica Estudante Quando foi isso Paciente Em meados de maio Doutora Qual o sentido disto para você Paciente Eu também queria saber o que era pois estava perdendo muitas aulas A dor era forte e sabem como é eu queria descobrir o que era Assim fiquei dez dias no hospital fazendo toda espécie de exames então me disseram o que eu tinha e que não era tão terrível assim Não tinham a mínima idéia da causa da minha doença Doutora Disseramlhe que não era terrível Paciente Disseram a meus pais que me perguntaram se queria saber de tudo Disselhes que sim e me contaram Estudante Como você recebeu isso Paciente No começo não sabia mas aos poucos fui me convencendo de que era desígnio de Deus que adoecesse porque tudo acontecera de repente e eu jamais tivera qualquer coisa antes Convencime de que era desígnio de Deus que adoecesse e ficasse aos Seus cuidados Ele tomaria conta de mim e eu não teria com que me preocupar Quero crer que o que me conservou viva foi saber de tudo Estudante Alguma vez ficou deprimida com isso Paciente Não Estudante Acha que outros ficariam Paciente Alguém poderia de fato ficar deprimido Sinto mas não tenho certeza absoluta que todos aqueles que ficam doentes sentemse assim de vez em quando 222 Estudante Gostaria que não fossem seus pais que lhe tivessem contado mas sim os médicos que fossem eles que viessem até você Paciente Não Prefiro que tenham sido meus pais Acho que foi bom que eles me tivessem contado mas teria gostado muito que os médicos também me tivessem participado2 Estudante Você acha que as pessoas que a atendem os médicos as enfermeiras têm evitado tocar no assunto Paciente Eles nunca me dizem nada sabe Só e unicamente meus pais Eles teriam de me contar Estudante Você acha que seus sentimentos mudaram pensando na conseqüência da doença desde que ouviu falar nela pela primeira vez Paciente Não ainda sinto do mesmo jeito Estudante Pensou muito nela Paciente Pensei sim Estudante E seus sentimentos não mudaram Paciente Não superei o problema mas agora não conseguem mais encontrar minhas veias Recebo tantas coisas como essa junto com todos estes outros problemas que a única coisa é conservar a fé Estudante Acha que sua fé se fortaleceu mais durante este tempo Paciente Acho sim Estudante Acha que teria mudado neste aspecto A fé é o fator mais importante que a ajuda a superar tudo Paciente Não sei Dizem que talvez não supere mas se Ele quiser que eu fique boa ficarei 2 Aqui ela deixa transparecer a ambivalência em receber a notícia dos pais e não do médico 223 Estudante Sua personalidade mudou Você notou mudanças a cada dia Paciente Sim porque me relaciono com mais pessoas embora já fizesse isto antes Saio por aí visitando e ajudando alguns pacientes Relacionome bem com os colegas de quarto assim tenho alguém com quem conversar Sabe quando se está deprimida sempre ajuda conversar com alguém Doutora Você fica deprimida com freqüência Antes havia duas pacientes no quarto agora você está sozinha Paciente Penso que é porque estava exausta Já faz uma semana que não saio Doutora Está ficando cansada Digame quando ficar muito cansada e a gente termina a entrevista Paciente Não de forma alguma Estudante Notou mudança em sua família em seus amigos no comportamento deles com você Paciente Fiquei muito mais chegada à minha família A gente se dá bem meu irmão e eu éramos muito unidos quando pequenos Vocês sabem que ele tem dezoito anos e eu dezessete com quatorze meses de diferença Minha irmã e eu então éramos sempre muito unidas Portanto agora eles e meus pais são muito mais unidos Posso conversar mais com eles e eles ah é apenas a sensação de uma união maior Estudante O relacionamento com seus pais está enriquecido mais profundo Paciente Ah sim E com os amigos também Estudante É como um apoio na doença Paciente É Acho que não a suportaria se não fossem minha família e meus amigos Estudante Querem ajudála de qualquer jeito E você Você também os ajuda de algum modo 224 Paciente Bem eu tento Sempre que eles vêm tento fazer com que se sintam em casa que voltem para casa se sentindo melhor etc Estudante Sentese muito deprimida quando está só Paciente Sim entro um pouco em pânico porque gosto das pessoas gosto de estar rodeada de gente enfim de estar com alguém Não sei quando estou só todos os problemas vêm à tona Às vezes fico mais deprimida quando não tenho com quem conversar Estudante Você sente alguma coisa em particular quando está só algo que lhe dá medo por estar só Paciente Não sinto apenas que não há ninguém comigo ninguém com quem possa conversar Doutora Que tipo de garota você era antes de ficar doente Saía muito ou gostava de ficar sozinha Paciente Saía muito Gosto de esporte de conhecer lugares de ir a jogos e a uma porção de reuniões Doutora Já ficou só durante algum tempo antes de adoecer Paciente Não Estudante Se pudesse voltar atrás preferiria que seus pais tivessem esperado para lhe contar Paciente Não estou contente por ter sabido no começo Isto é prefiro saber logo no início saber que vou morrer saber que eles podem me olhar de frente Estudante O que é que você tem de encarar Qual a sua concepção de morte Paciente Acho que deve ser maravilhosa porque se vai para casa a outra morada perto de Deus Não tenho medo de morrer Doutora Você tem uma imagem visual desta outra morada considerando que todos nós fantasiamos sobre isto embora nunca toquemos no assunto Quer falar nisso 225 Paciente Penso simplesmente que deve ser como uma reunião onde estão todos uma reunião bem agradável onde há um certo alguém alguém muito especial Algo que faz tudo ficar diferente Doutora O que mais pode dizer como se sente com relação a isso Paciente Poderia dizer que se tem uma sensação maravilhosa sem mais anseios apenas ficar lá sem nunca mais ficar só Doutora Tudo no seu lugar Paciente Isso mesmo tudo no seu lugar Doutora Sem necessidade de comer para ficar forte Paciente Não não penso assim Haverá uma força interior Doutora Não haverá necessidade de todas estas coisas terrenas Paciente Pois é Doutora Entendo De onde você tirou essa força toda essa coragem para enfrentar a doença desde o começo Você sabe que muitas pessoas têm uma religião mas muito poucas delas enfrentam assim na hora como você Sempre foi assim Paciente Ahn ahn Doutora Nunca teve um sentimento hostil mais profundo Paciente Nunca Doutora Nem ficou com raiva das pessoas sadias Paciente Nunca acho que sempre me dei bem com meus pais porque eles foram missionários em S durante dois anos Doutora Sei Paciente Ambos foram excelentes colaboradores na igreja Criaram os filhos num lar cristão e isso tem ajudado muito 226 Doutora Você acha que nós médicos deveríamos falar com as pessoas que sofrem de um mal incurável sobre ó futuro delas Se você tivesse como missão ensinarnos alguma coisa o que nos ensinaria quanto ao que devemos fazer pelos outros Paciente Bem os médicos vêm aqui examinam a gente e perguntam Como é que está hoje ou coisa parecida numa farsa total Uma coisa que deixa a gente magoada por estar doente é o fato de que nunca conversam com a gente Ou então vêm aqui como se fôssemos diferentes A maioria dos que conheço faz isso Entram falam um pouco perguntam como estou e me examinam Falam de meu cabelo que estou com uma aparência melhor Só fazem isso falam comigo e perguntam como me sinto Alguns chegam a explicar o que podem É difícil para eles porque sou menor de idade e acham que não devem contar nada a mim mas a meus pais É muito importante conversar com um paciente porque se os médicos transmitem essa sensação de frieza a gente treme de medo quando vêm com esta expressão fria e calculista Quando vêm com um pouco de calor humano aí sim a visita tem um sentido Doutora Você teve uma sensação desagradável de malestar vindo aqui conversar sobre essas coisas Paciente Não não me incomodo de falar nisso Estudante Como é que as enfermeiras tratam deste problema Paciente Muitas delas têm sido realmente maravilhosas e conversam bastante Conheço bem quase todas Doutora Acha que as enfermeiras de certo modo têm mais tato do que os médicos Paciente Acho porque estão mais presentes e são mais atuantes do que os médicos Doutora Hum simplesmente se sentem menos constrangidas Paciente Tenho certeza 227 Estudante Posso perguntar se já faleceu alguém na sua família depois que você cresceu Paciente Meu tio irmão de papai Fui a seu enterro Estudante Como se sentiu Paciente Não sei bem Ele parecia engraçado diferente Mas era a primeira pessoa que via morta Doutora Você tinha quantos anos Paciente Uns doze ou treze Doutora Você disse que ele parecia engraçado e deu uma risadinha Paciente Pois é ele parecia diferente sabe suas mãos não tinham cor e pareciam tão imóveis Depois minha avó morreu mas eu não estava presente Meu avô morreu nos braços de minha mãe mas eu também não estava Só passei por lá Minha tia morreu há pouco tempo mas não pude ir ao enterro porque já estava doente Doutora Acontece de formas e meios diferentes não é Paciente É Ele era o meu tio predileto Na verdade não se deve chorar quando as pessoas morrem pois a gente sabe que elas vão para o céu e dá uma certa sensação de felicidade saber que irão para o paraíso Doutora Alguma dessas pessoas chegou a conversar com você sobre isto Paciente Um amigo meu muito íntimo que faleceu há mais ou menos um mês Eu e a mulher dele fomos juntas ao enterro Para mim isto pesou na balança pois ele fora maravilhoso comigo e fizera muito por mim quando adoeci Fazia a gente se sentir muito à vontade Doutora Em síntese o que você quer dizer é que se deve ser um pouco mais compreensivo arranjar um pouco mais de tempo para conversar com os pacientes 228 Seguese a entrevista com a mãe desta jovem Conversamos com ela imediatamente após a entrevista com a filha Doutora São muito poucos os pais que vêm conversar conosco sobre a doença grave de seus filhos Essa iniciativa é bem pouco comum Mãe Fui eu que pedi Doutora Conversamos com sua filha sobre como se sente e como encara a morte Ficamos impressionados com sua calma com a ausência de ansiedade desde que não fique sozinha Mãe Ela falou muito hoje Doutora Falou Mãe Hoje está sofrendo dores demais e se sente muito mal Doutora Falou bastante muito mais do que de manhã Mãe Estava com medo de que ela viesse aqui e não dissesse uma palavra Doutora Não vamos roubar muito do seu tempo mas agradeceria que deixasse os médicos jovens fazerem algumas perguntas Estudante Como a senhora reagiu quando soube que a doença de sua filha era incurável Mãe Bem muito bem Estudante E seu marido Mãe Meu marido não estava comigo nessa hora e me senti um pouco mal pela maneira como vim a saber Sabíamos apenas que ela estava doente mas isso era tudo Acontece que quando vim visitála naquele dia fui procurar saber como ela estava O médico me disse Ela não está nada bem Tenho más notícias para a senhora Ele se dirigiu comigo para uma das salas e continuou muito secamente Ela está com anemia aplástica e não vai ficar boa 229 Ignoramos a causa da doença desconhecemos sua cura e nada pode ser feito Daí eu disse Posso fazer uma pergunta E ele Se quiser Eu disse Quanto tempo de vida ela tem doutor talvez um ano Não de maneira nenhuma Então eu disse Ainda bem Isto foi tudo Em seguida fiz uma série de outras perguntas Doutora Isto se deu em maio do ano passado Mãe Foi 26 de maio E ele continuou Há muita gente que contrai esta doença de que até agora só se sabe ser incurável Sua filha terá de aceitar isto E saiu Tive uma dificuldade enorme para encontrar o caminho de volta ao pavilhão onde ela estava e acho que me perdi pelos corredores tentando voltar Fiquei em pânico pensando o tempo todo que ela não iria mais viver Toda confusa não sabia como ir ter com ela Tentei me reequilibrar A princípio tive medo de entrar e dizer que ela estava muito doente porque poderia começar a chorar Procurei me preparar antes de ir falar com ela Foi chocante o modo como o fato me foi apresentado agravado pelo fato de eu estar sozinha Se ao menos o médico me tivesse feito sentar creio que teria aceitado melhor Estudante Como a senhora gostaria exatamente que ele lhe tivesse contado Mãe Que tivesse esperado meu marido vinha sempre comigo e aquela era a primeira vez que eu estava só Se nos tivesse chamado a ambos e nos tivesse dito por exemplo que ela tinha uma doença incurável poderia têlo feito com franqueza mas com um pouco de compaixão sem ser tão desumano como foi dizendo A senhora não é a única no mundo Doutora É uma situação com que me deparo muitas vezes e sei que magoa A senhora já imaginou que esse homem poderia também ter dificuldades em lidar com seus sentimentos em situações assim Mãe Já pensei mas mesmo assim magoa muito 230 Doutora Muitas vezes a única forma que encontram para comunicar tais notícias é assim de um modo frio isento de emoção Mãe A senhora tem razão também Um médico não pode se emocionar com essas coisas e provavelmente nem deva Contudo acho que existem formas melhores Estudante Seus sentimentos para com sua filha mudaram Mãe Não agradeço a Deus cada dia que passo com ela mas espero e rezo para que haja muitos outros embora saiba que nada é certo Ela foi criada com a idéia de que a morte pode ser uma coisa bela e não há nada com que se preocupar Sei que ela a enfrentará com bravura quando vier Só a vi chorar e fraquejar uma vez quando me disse Mãe a senhora parece preocupada não se aflija não tenho medo Deus está esperando por mim e cuidará de mim portanto não temo nada Depois disse Tenho um pouco de medo a senhora está preocupada Respondi Não acho que todo mundo está mas não desanime Se sentir vontade de chorar chore como todo mundo Ao que ela respondeu Não não há motivo nenhum para chorar Resumindo ela aceitou e nós aceitamos também Doutora Já faz uns dez meses não Mãe Sim Doutora Há pouco tempo deram apenas vinte e quatro horas Mãe Na última quintafeira o médico disse que seria muito se ela vivesse de doze a vinte e quatro horas Ele queria ministrar a ela uma dose de morfina para aliviar a dor Perguntamos se poderíamos pensar um pouco no assunto e ele replicou Não vejo por que não devam aceitar já que é para passar a dor E saiu Então decidimos que séria melhor deixar que aplicassem a morfina Pedimos ao médico de plantão que informasse a ele que concordávamos Nunca mais o vimos e nem aplicaram a injeção Há dias em que passa bem há dias em que passa 231 realmente mal apresentando aos poucos novos sintomas e precisando de tudo aquilo que outros pacientes já me alertaram que poderia ocorrer Doutora Outros pacientes de onde Mãe Minha mãe é de P onde há duzentos pacientes assim e ela aprendeu muito sobre eles Disse que ficam tão sensíveis ao se aproximar o fim que ao simples toque sentem muitas dores no corpo todo Disse também que os ossos se quebram só de erguêlos Minha filha não comeu nada a semana inteira e tudo isso começa a acontecer Até o dia primeiro de março procurava as enfermeiras de lá para cá pelo corredor ajudavaas levava água para os outros pacientes e procurava animálos Doutora Portanto este último mês foi o pior Estudante Isto mudou seu relacionamento com os outros filhos Mãe Não Eles discutiam o tempo todo Quando ela brigava dizia Deixa eu pôr uns panos quentes Eles ainda discutem um pouco não mais do que o normal e nunca se odiaram sorrisos mas têm sido bons filhos Estudante E eles como é que se comportam em relação a ela Mãe Não a mimam de propósito Tratamna do mesmo jeito que antes Isso é bom porque faz com que ela não sinta pena de si mesma Conversam naturalmente Se aparece outra coisa para fazer dizem Sábado que vem não venho visitála mas virei durante a semana Você me entende né E ela Claro divirtase Ela se acostumou com a idéia mas eles cada vez que vêm sabem que ela provavelmente não voltará para casa Deixamos sempre anotado onde poderemos ser encontrados quando for preciso entrar em contato um com o outro Doutora A senhora conversa com os outros filhos sobre este provável desfecho Mãe Claro 232 Doutora Aberta e francamente Mãe Sim Somos uma família religiosa Fazemos nossas orações todas as manhãs rezamos antes de eles irem para a escola e acho que isto tem nos ajudado muito Como são jovens têm sempre algum lugar onde ir algo para fazer Nem sempre podemos nos reunir sentar um pouco discutir os problemas etc mas eles aproveitam este tempo de manhã para tratar de problemas familiares Repassamos tudo nesses dez ou quinze minutos e isso nos mantém unidos Temos conversado bastante sobre o assunto e nossa filha até já fez alguns preparativos para seu funeral Doutora Quer entrar em detalhes Mãe Também falamos nessas coisas Em nossa comunidade há uma criança que nasceu cega Deve ter uns seis meses agora e um dia no hospital minha filha me disse Mãe gostaria de doar meus olhos a ela quando morrer Respondi Vamos ver o que se pode fazer não sei se aceitariam Você sabe que devemos discutir essas coisas sempre devemos eu e seu pai podemos estar viajando e nos acontecer algo e vocês ficarem sozinhos Ela disse É sim devemos deixar tudo acertado Eu e a senhora agora vamos facilitar a tarefa dos outros Vamos escrever o que gostaríamos que fosse feito e perguntar o que gostariam que se fizesse E foi abrindo caminho e dizendo Vou começar e depois a senhora me diz Só fiz anotar o que ela disse deixando tudo mais fácil Mas ela sempre procura facilitar a vida dos outros Estudante A senhora suspeitou de alguma coisa antes que lhe dissessem que poderia ser uma doença incurável A senhora disse que seu marido sempre estava a seu lado mas naquele dia calhou de estar só Houve alguma razão particular para ele não estar junto com a senhora 233 Mãe Tenho ido ao hospital o mais que posso mas nesse dia ele estava doente Em geral ele tem mais tempo do que eu por isso é que quase sempre estava comigo Estudante Sua filha nos disse que ele foi missionário em S e que a senhora e ele trabalham ativamente na paróquia Este é um dos motivos da base religiosa profunda Qual a natureza do trabalho missionário dele Por que não continuou Mãe Ele era mórmon Os mórmons sempre lhe deram um recurso financeiro sempre o beneficiaram Logo que nos casamos fui sozinha à igreja durante mais ou menos um ano Depois ele começou a ir comigo e continuou indo todo domingo comigo e as crianças durante dezessete anos Há quatro ou cinco anos converteuse para nossa igreja onde tem trabalhado e tem ficado nela todo esse tempo Estudante Estava aqui imaginando sua filha tem uma doença de que não se conhece nem a causa nem a cura já sentiram alguma vez uma espécie de sentimento irracional de culpa Mãe Sentimos Muitas vezes chegamos à conclusão de que nunca demos vitaminas a eles O médico da família dizia que eles não precisavam mas eu achava que talvez precisassem daí procurei saber o motivo Ela sofreu um acidente por isso dizem que isto poderia ser a causa que um ferimento no osso pode causar esta doença Mas os médicos daqui disseram que não que teria de ser mais recente Ela tem sentido muitas dores mas tem suportado muito bem Sempre pedimos Seja feita a Sua vontade achando que se Ele quiser levála para Si levará se não fará um milagre Quase já desistimos de um milagre embora nos digam para nunca desistir Sabemos que o melhor será feito E quando perguntamos a ela mas isto é um outro assunto Bem disseram para nunca comentar com ela Minha filha amadureceu muito neste último ano e tem estado com todo tipo de mulher desde aquela que 234 tentou o suicídio até as que contam seus problemas com o marido ou o problema de ter filhos Não há nada que ela não saiba nem pessoas com quem não tenha entrado em contato Ela tem agüentado muita coisa Tem muito que agüentar A única coisa de que ela não gosta é de gente querendo esconder coisas dela Quer saber de tudo Por isso contamos Quando estava se sentindo muito mal na semana passada pensamos que tivesse chegado o fim O doutor nos dizia isso no corredor mas ela perguntou logo O que foi que ele disse vou morrer agora E respondi Bem não temos certeza Ele disse que você está muito mal O que é que ele quer me dar Nunca disse o que era e respondi É um analgésico É droga não quero ser drogada Mas vai aliviar a dor Não prefiro agüentar Não quero ficar viciada Você não vai ficar Ao que ela retrucou Mamãe estou surpresa com a senhora E nunca desistiu continua firme na esperança de ficar boa Doutora Quer dar a entrevista por encerrada Só temos mais alguns minutos Quer contar ao grupo como a senhora se sente quanto ao tratamento que o hospital lhe tem dispensado na qualidade de mãe de uma filha à beira da morte Naturalmente seu desejo é ficar com ela o máximo possível Aqui ajudaramna muito Mãe Bem no outro hospital foi muito bom Eram muito cordiais aqui estão sempre muito atarefados e o serviço não é lá essas coisas Quando estou aqui demonstram que estou sempre atrapalhando sobretudo o médico residente e o interno Estou sempre no meio do caminho Cheguei até a me esconder no corredor tentando passar despercebida por eles Sintome como uma ladra entrando e saindo porque me olham como que dizendo Você de novo por aqui Passam roçando por mim e nem falam É como se estivesse invadindo um campo alheio como se não devesse estar aqui Mas quero ficar pela única razão de que foi minha filha que pediu e nunca 235 havia pedido antes Procuro não atrapalhar Na realidade sem querer ser convencida acho que ajudei um bocado Eles sentem falta de mãodeobra o fato é que nas duas ou três primeiras noites em que minha filha estava bem mal não sei como teria se arranjado pois as enfermeiras a evitavam e a uma senhora de idade que estava no mesmo quarto Essa senhora teve um ataque cardíaco e não podia sequer usar a comadre Várias noites eu é que tive de colocar para ela Minha filha vomitava e precisava ser lavada e limpa mas as enfermeiras não queriam saber Alguém precisava ajudar Estudante Onde a senhora dorme Mãe Numa cadeira Na primeira noite não me deram travesseiro nem cobertor nada Uma paciente que não usava travesseiro insistiu para que eu o aceitasse e me cobri com meu casaco No dia seguinte trouxe um cobertor de casa Acho que não devia contar mas de vez em quando um zelador sorrisos me traz uma xícara de café Doutora Bom para ele Mãe Sinto que não devia dizer tudo isso mas tenho de desabafar Doutora Essas coisas devem ser discutidas É importante pensar nelas discutilas sem fazer rodeios dizendo que tudo está ótimo Mãe Pois é como eu estava dizendo a atitude dos médicos e das enfermeiras influi muito nos pacientes e na família Doutora Espero que tenha tido experiências positivas também Mãe Há uma moça que trabalha no período noturno Ultimamente têm desaparecido coisas e muitos pacientes já reclamaram sem que nada tenha sido feito Ela continua no emprego e agora os pacientes ficam acordados durante a noite esperando que ela entre no 236 quarto porque temem que seus pertences sejam roubados Quando ela vem é extremamente grosseira e mesquinha Uma noite destas apareceu um rapaz negro alto e simpático dizendo Boa noite Estou aqui para tornar a sua noite mais agradável e de fato tudo o que fez foi espetacular Durante a noite inteira atendeu sempre que tocava a campainha Foi simplesmente maravilhoso Na manhã seguinte os pacientes do quarto estavam cem por cento melhores alegrando o dia Doutora Obrigada Sra M Mãe Espero não ter falado demais Em seguida transcrevemos a entrevista com a Sra C que temia não poder enfrentar sua própria morte por causa da pressão das obrigações familiares Doutora A senhora disse que passam muitas coisas pela sua cabeça quando está sozinha na cama pensando Foi por isso que nos oferecemos para ficar aqui a seu lado e ouvir Uma de suas maiores preocupações são os filhos não Paciente É minha maior preocupação é minha filha pequena Tenho também três garotos Doutora Já estão crescidos Paciente Já mas as crianças têm um certo receio quando os pais estão gravemente doentes sobretudo a mãe A senhora sabe que estas coisas marcam muito na infância Fico imaginando o que pode acontecer com a menina crescendo nesse meio Quando crescer é capaz de ficar remoendo todas estas coisas Doutora Que espécie de coisas Paciente Primeiro o fato de a mãe ter ficado inativa Agora mais do que antes tanto na escola como na paróquia Preocupome bastante com quem fica cuidando de minha 237 família estou mais receosa do que quando estava em casa mesmo quando não podia fazer nada estando lá Muitos amigos nem sabem pois ninguém gosta de falar nisso Daí resolvi contar aos outros pois achava que as pessoas deveriam saber Fico pensando se agi bem se a menina tão pequena deveria saber agora ou mais tarde Doutora Como foi que a senhora contou Paciente Bem as crianças são muito objetivas nas perguntas que fazem Fui muito franca no modo como respondi a elas Mas agi com sensibilidade Sempre nutri um sentimento de esperança Esperança de que pudessem descobrir qualquer coisa nova algum dia e que chegasse também a mim Eu não sentia medo e acho que ela também não deve sentir Se a doença chegasse ao ponto de não haver mais esperança de eu não poder mais me locomover tendo de viver sem nenhum conforto ainda assim não sentiria medo de continuar Espero que as atividades na escola dominical a ajudem a se desenvolver e amadurecer Oxalá tivesse certeza de que ela iria em frente sem fazer disso uma tragédia Jamais jamais quis que ela encarasse desta forma Justamente porque não encaro assim é que falei com ela Tentei muitas vezes mostrarme animada e ela sempre acha que vão me curar que vou me recuperar aqui Doutora É certo que a senhora ainda tem esperança mas a sua família tem mais É isto que está querendo dizer Talvez seja a diferença de conscientização que dificulta mais Paciente Ninguém sabe quanto tempo ainda vai durar Sempre me agarrei à esperança mas atualmente meu ânimo está quase a zero Os médicos não me revelaram nada Não me disseram nada do que acharam na operação Mas qualquer um saberia mesmo sem contar Meu peso caiu como nunca Meu apetite diminuiu muito Dizem que tenho uma infecção ainda não localizada Quando se tem leucemia a pior coisa que pode acontecer é uma infecção em fase aguda 238 Doutora Ontem quando vim visitála a senhora estava um pouco chateada Tinha feito uma radiografia do cólon e seu aspecto era de quem ouvira algumas verdades Paciente Pois é Veja não são as grandes coisas que pesam quando a gente está doente e muito fraca São as pequenas Por que razão não podem conversar comigo Por que não podem me comunicar antes de tomarem certas atitudes Por que não permitem que se vá ao banheiro antes de nos arrancarem do quarto como se fôssemos um objeto e não uma pessoa Doutora O que foi mesmo que a chateou tanto ontem de manhã Paciente É um assunto muito pessoal mas vou lhe contar Por que não fornecem um pijama a mais quando se vai fazer radiografia do cólon Quando a gente termina fica num estado absolutamente deplorável Então a gente é obrigada a se sentar numa cadeira sem a mínima vontade Quando se levanta só aparece aquela pasta branca causando uma situação embaraçosa São tão maravilhosos comigo lá em cima no quarto mas quando me mandam para o raio X sintome como se fosse um número ou uma coisa Fazem coisas estranhas com a gente e é muito desagradável voltar naquele estado Acho que não deveria acontecer mas parece que acontece sempre Deviam contar antes como era Eu estava muito fraca e cansada A enfermeira que me trouxe de volta pensou que eu pudesse caminhar e eu disse Bem se você acha que posso caminhar vou tentar Depois de tirar todas as chapas de subir e descer da mesa sentiame tão fraca e cansada que achava que não chegaria ao quarto Doutora Isso deve ter lhe causado raiva e decepção não Paciente Não me zango à toa A última vez que me lembro de ter ficado zangada foi quando meu filho mais velho saiu no horário em que meu marido estava trabalhando Não 239 havia como trancar a casa e naturalmente não me sentia segura de ir dormir com a porta aberta Moramos numa esquina onde há um poste de luz mas eu não conseguia pegar no sono enquanto não soubesse que a casa estava trancada Já dissera isto a meu filho e ele que sempre avisa a hora que vai chegar não avisou naquela noite Doutora Seu filho mais velho é uma criançaproblema não é Ontem a senhora disse rapidamente que ele é emocio nalmente perturbado e também retardado não foi Paciente Isso mesmo Esteve internado num hospital muni cipal durante quatro anos Doutora E está em casa agora Paciente Está Doutora A senhora acha que ele requer uma vigilância maior por isso se preocupa com a pouca vigilância sobre ele como se preocupou com a casa aberta aquela noite Paciente É isso sim Sinto que sou a responsável a única responsável e posso fazer tão pouco agora Doutora O que vai fazer quando não puder mais ser responsável Paciente Talvez isto abra um pouco mais os olhos dele já que não consegue entender as coisas Tem excelentes qualidades mas precisa de ajuda Nunca poderia se manter por si mesmo Doutora Quem o ajudaria Paciente Al está o problema Doutora A senhora pode sondar Há alguém em sua casa que poderia ajudar Paciente Claro enquanto meu marido viver poderá tomar conta dele Mas é um transtorno pois ele fica muitas horas longe de casa trabalhando Há também os avós mesmo assim sinto que não é ainda satisfatório Doutora São os pais de quem 240 Paciente O pai de meu marido e minha mãe Doutora Gozam de boa saúde Paciente Não eles não têm boa saúde Minha mãe sofre do mal de Parkinson e meu sogro é cardíaco Doutora Tudo isso além das preocupações com sua filha de doze anos Seu filho mais velho é um problema sua mãe sofre do mal de Parkinson e provavelmente começa a tremer quando tenta ajudar alguém seu sogro tem problema cardíaco e a senhora não está bem Alguém deveria ficar em casa para cuidar de todas essas pessoas Acho que é isso o que mais a preocupa Paciente Certo Tentamos fazer amigos na esperança de que alguém possa cuidar da situação Vivemos o diaadia Cada dia parece cuidar de si mesmo mas quanto a olhar para o futuro só fazemos castelos no ar Além do mais minha doença Nunca sabemos se devemos ser sábios e aceitar a situação calmamente dia após dia ou se devemos provocar uma mudança drástica Doutora Mudança Paciente Sim Havia uma época em que meu marido dizia É preciso fazer uma mudança Os velhos teriam de ir embora Um deles ficaria com minha irmã o outro iria para uma casa de saúde É preciso aprender a ser frio e colocar a família num asilo Até o médico da família acha que deveríamos colocar o menino numa clínica Ainda assim não posso aceitar estas coisas Finalmente fui até eles e disse Se vocês forem posso piorar portanto fiquem E se algum dia tiver de ser se não der certo vocês simplesmente irão Se vocês forem embora será pior No começo fui eu que os aconselhei a virem Doutora A senhora se sentiria culpada se eles fossem para uma casa de saúde Paciente Não se chegasse ao ponto de ser perigoso para eles subir e descer escadas ou acho que está ficando perigoso para minha mãe mexer com o fogão agora 241 Doutora A senhora está tão acostumada a cuidar dos outros que deve ser duro ter de ser cuidada por alguém Paciente É um problema Tenho uma mãe que tenta me ajudar uma mãe que está mais interessada em seus filhos do que em qualquer outra coisa no mundo No entanto isso nem sempre é o melhor pois acho que deveria ter outros interesses Ela tem se dedicado inteiramente à família A vida dela é costurar e fazer pequenas coisas para minha irmã que mora do lado Fico contente com isso porque minha filha pode ir lá E fico muito feliz tendo minha irmã morando do lado Assim minha mãe vai para lá o que é bom também para ela pois quebra um pouco a monotonia Doutora É bom para todo mundo Sra C a senhora pode falar um pouco mais de si A senhora disse que se sente muito fraca ultimamente e que perdeu muito peso Quando está na cama deitada sozinha em que é que pensa o que é que a conforta mais Paciente Pois bem vindo de um tipo de família como a minha e a do meu marido sabíamos que se casássemos teríamos de buscar uma força externa além de nós mesmos Ele era chefe dos escoteiros Seus pais tinham problemas conjugais e acabaram se separando O casamento com minha mãe foi o segundo casamento de meu pai e ele já tinha três filhos Casarase antes com uma jovem garçonete e não dera certo Foi um caso doloroso estas crianças sendo distribuídas pelas casas Não vieram morar com minha mãe quando ele se casou com ela Meu pai era muito temperamental muito tenso e estava sempre malhumorado Imagino agora como passei por essa situação E então morando por ali meu marido e eu nos conhecemos na igreja Casamos Sabíamos que teríamos de buscar uma força fora de nós se quiséssemos manter o casamento Sempre pensamos assim Sempre participamos dos trabalhos da igreja e comecei a ensinar na escola dominical com a idade de dezesseis anos 242 Precisavam de ajuda na creche fui e gostei Lecionei até ter os dois meninos mais velhos Gostava do trabalho fazia conferências na igreja contando o que ela significava para mim o que meu Deus significava para mim Portanto penso que não se deve jogar fora tudo isso quando as coisas acontecem Continuase acreditando pois o que tiver de acontecer acontecerá Doutora Tudo isso a ajuda agora também Paciente Sim Quando converso com meu marido sabemos ambos que sentimos a mesma coisa Como disse ao Capelão C devemos ser tolerantes com quem conversa conosco sobre isso Disselhe também que nosso amor hoje decorridos vinte e nove anos de casamento é tão forte como quando nos casamos É algo que me diz muito Com todos os nossos problemas conseguimos vencer estes anos Ele é um homem maravilhoso realmente maravilhoso Doutora A senhora enfrentou as dificuldades com coragem mas acho que a pior deve ter sido a do seu filho não Paciente Fizemos o melhor que pudemos Não creio que seja simplesmente uma questão de oportunidade para um pai Acontece que não se sabe como lidar com um problema desses No começo a gente não sabe das coisas e pensa que é teimosia Doutora Que idade ele tinha quando a senhora notou que ele apresentava problemas Paciente Tudo fica muito óbvio por exemplo não consegue andar de velocípede nem fazer as coisas típicas de uma criança A realidade porém é que uma mãe não quer aceitar isto procurando sempre interpretar diferentemente no começo Doutora Quanto tempo a senhora levou Paciente Um bocado de tempo De fato quando ele foi para a escola para o jardimdeinfância já causava problemas 243 para a professora Punha freqüentemente coisas na boca para chamar atenção Ela começou a me mandar recados e fiquei sabendo que havia algum problema com ele Doutora Assim a senhora acabou aceitando os fatos passo a passo como fez com o diagnóstico da leucemia Quais as pessoas que mais a ajudaram com seus problemas diários no hospital Paciente Uma grande ajuda é encontrar uma enfermeira que transmita fé Ontem quando desci para a sala de raio X sentime como se fosse um número não havia ninguém que se incomodasse sobretudo na segunda vez Já era tarde e o pessoal estava emburrado por terem mandado uma paciente àquela hora Assim andavam inquietos por todo lado Quando cheguei sabia que a auxiliar iria me deixar naquela cadeira de rodas e desapareceria Eu iria ficar lá sentada até aparecer alguém Mas uma das moças em serviço disse a ela que não deveria fazer aquilo que deveria entrar dizer que eu já estava lá e esperar que me atendessem Pelo visto não estava nada satisfeita tendo de levar uma paciente tão tarde Já estavam fechando e os técnicos já iam embora O bom humor das enfermeiras ajudaria muito numa situação como esta Doutora O que a senhora acha das pessoas sem fé Paciente Encontroas por aqui também inclusive entre os pacientes Da outra vez havia um senhor que quando soube o que eu tinha disse Não posso entender nada é justo neste mundo Por que a senhora tem leucemia se nunca fumou nunca bebeu e nunca fez extravagâncias Eu já sou velho fiz muitas coisas que não deveria ter feito Não faz diferença Ninguém nos assegura que nunca teremos problemas Até Nosso Senhor teve de enfrentar problemas terríveis e é Ele quem nos ensina Estou tentando seguiLo Doutora Pensa algumas vezes na morte Paciente Se penso nela 244 Doutora Sim Paciente Penso sim De vez em quando penso na morte só não gosto da idéia de todo o mundo vir me ver por causa do aspecto horrível com que fico Por que isso tem de acontecer Por que não resumem tudo a uma simples cerimônia fúnebre Sabe talvez pareça estranho mas não gosto muito da idéia de funerais Sinto repulsa meu corpo naquele caixão Doutora Não sei se entendi bem Paciente Não gosto de deixar as pessoas tristes como por exemplo meus filhos com este tipo de coisas durante dois ou três dias Já pensei muito nisso mas não fiz nada ainda Um dia meu marido me perguntou se deveríamos analisar fatos como doar os olhos doar nossos corpos Não fizemos isso naquele dia nem agora pois é uma daquelas coisas que a gente fica adiando sabe Doutora A senhora já conversou com alguém sobre isso Uma espécie de preparação para qualquer época em que aquele dia chegar Paciente Como disse ao Capelão C acho que existe uma necessidade de as pessoas se apoiarem em alguém conversar com o capelão obter respostas Doutora E ele lhe dá as respostas Paciente Se sê compreende o Cristianismo creio que chegan do na minha idade a gente deveria estar suficientemente madura para saber que é possível obter respostas por si mesma graças ao tempo em que se fica só Na doença a gente está só porque o pessoal não pode ficar junto o tempo todo Não se pode ter o capelão ali do lado nem o marido nem as pessoas Meu marido é o tipo de pessoa que ficaria comigo o máximo possível Doutora Então ter pessoas a seu lado é um auxílio Paciente Claro sobretudo determinadas pessoas 245 Doutora Quem são essas determinadas pessoas A senhora mencionou o capelão o seu marido Paciente Sim Gosto que o pastor de minha igreja me venha visitar Havia uma amiga minha mais ou menos da minha idade e que é uma cristã fervorosa Ela perdeu a vista e ficou vários meses no hospital de cama Aceitou isso muito bem É o tipo de pessoa que está sempre fazendo alguma coisa por alguém Se há doentes ela os visita ou junta roupas usadas para os pobres etc Outro dia escreveume uma carta linda citando o Salmo 139 foi um prazer recebêla Dizia assim Quero que saiba que é uma das minhas melhores amigas Portanto olhar para uma pessoa assim faz a gente feliz É aquela pequena coisa que nos traz felicidade Em geral acho que todos aqui são muito amáveis mas estou meio cansada de ouvir o pessoal sofrendo nos quartos Ouço e fico pensando Será que não podem fazer nada por essa gente Já faz tempo que isto acontece a gente ouve os gritos e fica com medo de que as pessoas estejam sozinhas Não se tem o direito de ir ao quarto delas e conversar a gente só ouve sabe Esse tipo de coisa me incomoda Na primeira vez que estive aqui não pude dormir muito bem e pensava Assim não pode continuar você tem de dormir Dormi bem mas ouvi dois pacientes gritando aquela noite É algo que espero nunca fazer Tive uma prima mais velha do que eu que morreu de câncer não faz muito tempo Era uma pessoa maravilhosa Aleijada de nascença superava isso muito bem Ficou vários meses internada no hospital mas nunca gritou Fui visitála pela última vez uma semana antes de ela morrer Ela era uma inspiração autêntica Era mesmo ficava mais preocupada comigo pela longa viagem que fazia para vêla do que com ela própria Doutora O tipo de mulher que a senhora gostaria de ser não Paciente Pois é ela me ajudou Espero poder ajudar também 246 Doutora Tenho certeza de que pode É o que está fazendo aqui hoje Paciente Tem mais uma coisa que me preocupa nunca se sabe quando se entra num estado de inconsciência e como se vai reagir As reações são diferentes Acho que é importante confiar no médico que ele possa ficar a seu lado Doutor E é ocupado demais de modo que não se pode conversar muito com ele Não se podem levantar muitos problemas familiares com ele a menos que se pergunte embora eu sempre tenha sentido que estas coisas dão sentido à minha saúde Vocês sabem que os problemas psicológicos influenciam muito a saúde Capelão Foi o que deixou transparecer outro dia ao afirmar que as tensões da família e outros problemas poderiam ter afetado também sua saúde Paciente É verdade No Natal nosso filho passou muito mal e o pai teve de leválo de volta ao hospital Ele prontificouse a ir dizendo que faria as malas quando voltasse da igreja Mas mudou de idéia ao chegar ao hospital e quis voltar para casa Meu marido contou que o filho queria voltar e ele o trouxe Geralmente quando ele vem para casa fica andando pra lá e pra cá Às vezes fica tão inquieto que nem se senta Doutora Quantos anos ele tem Paciente Vinte e dois Se a gente se sente disposta a enfrentar a situação e fazer alguma coisa tudo bem mas é horrível quando não conseguimos ajudálo ou responder às suas perguntas é difícil até conversar com ele Não faz muito tempo tentei explicar o que havia acontecido quando ele nasceu e ele parecia entender Você tem uma doença eu também tenho uma doença e você passa por momentos difíceis Sei que às vezes é muito difícil e árduo para você De fato admiro você porque consegue sair destes momentos difíceis e ficar calmo e assim por diante 247 Acho que ele luta muito também mas existe de fato um problema mental e a gente nunca sabe bem como agir Capelão É muita tensão para a senhora Tenho certeza de que isso cansa bastante Paciente Tem razão Não há dúvida de que é o meu maior problema Doutora A primeira esposa de seu pai tinha crianças pequenas que foram distribuídas Agora a senhora está no mesmo dilema o que poderá acontecer aos seus filhos Paciente Meu maior conflito é como poder mantêlos unidos como evitar mandálos para várias instituições Mas pressinto que vai dar certo Se uma pessoa é obrigada a ficar de cama o problema é bem diferente Pode ser que eu fique acamada de novo e diga a meu marido e isso se resolverá por si mesmo com o passar dos anos mas ainda não aconteceu Meu sogro teve um ataque cardíaco muito sério e realmente não esperávamos que se recuperasse tão bem Foi surpreendente Ele é feliz mas me pergunto se não seria ainda mais feliz junto com outros velhinhos da mesma idade Doutora Então poderia mandálo para um asilo Paciente Sim Não seria tão duro como ele pensa que é Mas ele se sente mais orgulhoso junto do filho e da nora Foi criado na cidade e nela ficou a vida toda Capelão Qual a idade dele Paciente Oitenta e um anos Doutora Ele tem oitenta e um anos e sua mãe setenta e seis Sra C acho que temos de encerrar porque prometi não ir além dos quarenta e cinco minutos Ontem a senhora disse que ninguém havia conversado sobre como seus problemas familiares a afetam e a suas reflexões sobre a morte Acha que os médicos as enfermeiras ou o pessoal do hospital deveriam fazer isso se o paciente desejasse 248 Paciente É útil muito útil Doutora Quem deveria fazêlo Paciente Bem se se tem sorte de encontrar aquele médico especial São poucos os que progridem e continuam se interessando por este lado da vida sabe Muitos deles se interessam unicamente pelo lado médico do paciente Dr M é muito compreensivo Já veio me ver duas vezes desde que estou aqui e gostei muito Doutora Por que há tanta relutância Paciente É a mesma coisa em outros setores hoje em dia Por que não há mais gente fazendo mais coisas que deveriam ser feitas Doutora Acho que deveríamos parar não Há alguma pergunta que gostaria de nos fazer Sra C De qualquer modo vamos nos encontrar novamente Paciente Não Só espero encontrar mais e mais pessoas e falar com elas destas coisas que carecem de ajuda Meu filho não é o único Há muitas pessoas no mundo e a gente procura encontrar quem se interesse pelo caso de modo que se possa fazer alguma coisa por ele A Sra C é parecida com a Sra S uma mulher de meia idade cuja morte é evidente no meio de uma vida de responsabilidades cuidando de muitas pessoas que dependem dela o sogro de oitenta e um anos que sofrera um ataque cardíaco recentemente a mãe com setenta e seis sofrendo do mal de Parkinson a filha de doze anos que ainda precisa da mãe e que pode vir a amadurecer depressa demais como a paciente teme o filho inválido com vinte e dois anos que vive entrando e saindo de hospitais estaduais com quem se preocupa e tem receio Seu pai deixou três crianças pequenas do casamento anterior e a paciente fica transtornada tendo de deixar também todos estes dependentes justo agora quando mais precisam dela 249 É compreensível que todos estes encargos familiares difi cultem enormemente uma morte tranqüila enquanto não forem discutidos estes problemas e encontradas soluções Se esta paciente não tem oportunidade de partilhar suas preocupações fica zangada e deprimida Sua raiva talvez se extravase mais indignandose contra a equipe hospitalar que acha que ela pode caminhar até a sala de raio X que não liga para suas necessidades que está mais preocupada com que o dia acabe logo do que com uma paciente cansada e fraca que gosta de ser útil o mais possível dentro dos limites e que gosta de manter sua dignidade apesar das circunstâncias desagradáveis Descreve melhor talvez a necessidade de pessoas perceptivas e compreensivas e sua influência sobre os que sofrem e dá o exemplo permitindo que os velhos fiquem em casa tendo vida ativa o máximo possível em vez de mandálos para uma casa de repouso Inclusive seu filho cuja presença é quase intolerável mas que prefere ficar em casa a voltar para o hospital é autorizado a ficar e participar o mais que puder Em todo este esforço para cuidar de todos do melhor modo possível transmite também a ânsia de que a deixem continuar em casa trabalhando enquanto puder Mesmo se tiver de ficar na cama sua presença ali deveria ser tolerada Este seminário talvez tenha contribuído para que realizasse este seu último pensamento este seu desejo de encontrar sempre mais pessoas e fazer com que se conheçam as necessidades do doente A Sra C era uma paciente que desejava participar e agradecida aceitava ajuda em contraposição à Sra L que aceitou o convite mas foi incapaz de transmitir seus anseios a não ser bem mais tarde pouco antes de sua morte quando nos pediu para visitála A Sra C continuava a fazer o máximo possível de coisas até que se resolveu a situação de seu filho emocionalmente perturbado O marido compreensivo e a religião lhe deram alento e forças para suportar as semanas de sofrimento Seu último desejo o de não ser vista feia no caixão foi aceito pelo marido que sabia que ela sempre se preocupava muito com os 250 outros Acho que este medo de aparecer feia também se traduz em suas preocupações ouvindo os pacientes gritarem alto talvez perdendo a dignidade ou quando teme perder a consciência e diz Nunca se sabe quando se entra num estado de inconsciência como se vai reagir É importante confiar no médico que ele fique a seu lado Dr E é ocupado demais de modo que não se pode conversar muito com ele Não me parece tanto uma preocupação pelos outros como o medo de perder o controle de si de cometer um ato indigno quando os problemas familiares a sobrecarregarem e lhe faltarem as forças Numa visita seguinte reconheceu que às vezes tinha vontade de gritar Por favor tomem conta vocês não posso mais me preocupar com todo mundo Foi um alívio quando o capelão e a assistente social decidiram intervir para que o psiquiatra estudasse a possibilidade de uma colocação para seu filho doente Só depois que todos esses assuntos foram devidamente atendidos é que a Sra C sentiuse em paz e deixou de se preocupar com sua aparência no caixão A imagem parecer tão horrível deu lugar a um quadro de paz repouso e dignidade que coincidiram com sua decatexia e aceitação final A entrevista da Sra L falará por si mesma Nós a incluímos aqui porque ela é o protótipo da paciente que nos deixa muito frustrados pois oscila entre a vontade de aceitar ajuda e a negação de qualquer necessidade de ajuda É importante que não queiramos impor nossos préstimos a tais pacientes mas que fiquemos à disposição deles para quando precisarem Doutora Sra L há quanto tempo está no hospital Paciente Cheguei no dia 6 de agosto Doutora Não é a primeira vez é Paciente Não não é Creio que está por perto de vinte vezes Doutora Quando foi a primeira vez 251 Paciente Foi quando tive meu primeiro filho em 1933 Mas em 1955 vim fazer uma cirurgia Doutora Que cirurgia Paciente Adrenalectomia Doutora Por que fez adrenalectomia Paciente Porque tinha um tumor maligno na base da coluna Doutora Em 1955 Paciente Sim Doutora Quer dizer que já faz onze anos que tem esse tumor Paciente Não Faz mais de onze Fiz ablação de uma mama em 1951 Em 1954 fiz da outra em 1955 fiz a adrenalectomia e ablação dos ovários Doutora Quantos anos a senhora tem agora Paciente Cinqüenta e quatro quase cinqüenta e cinco Doutora Cinqüenta e quatro Quer dizer que está doente desde 1951 pelo que a senhora sabe Paciente Correto Doutora Pode nos contar como é que tudo começou Paciente Foi no dia de uma pequena reunião de família em 1951 quando recebíamos todos os parentes de meu marido que moravam fora da cidade Subi para tomar um banho e notei um caroço no alto da mama Chamei minha cunhada e perguntei se deveria ser alguma coisa para se preocupar É telefone para um médico e marque uma consulta disse ela Isto foi numa sextafeira Na terçafeira seguinte fui ao médico e já na quarta fui tirar radiografias no hospital Foi quando me disseram que era maligno No começo da semana seguinte fizeram a ablação de uma mama Doutora Como recebeu a notícia Quantos anos tinha mais ou menos 252 Paciente Mais ou menos trinta bem perto dos quarenta anos Não sei por que mas todos pensavam que ia ficar desesperada Não entendiam minha calma De fato levei até na gozação Minha cunhada brigou comigo quando descobri o caroço e disse que era maligno Encarei o fato tranqüilamente mas foi pior com meu filho mais velho Doutora Qual a idade dele Paciente Tinha quase dezessete anos Ficou em casa até depois de eu ser operada Então se alistou no exército porque temia que eu ficasse o tempo todo acamada ou que acontecesse alguma coisa Fora disso nada me perturbou A única coisa que me incomodava eram os tratamentos radioterápicos a que tive de me submeter depois Doutora Que idade tinham as outras crianças Parece que havia mais Paciente Tenho outro filho com vinte e oito anos Doutora Agora Paciente Agora Na ocasião estava no curso primário Doutora Quer dizer que tem dois filhos Paciente Dois rapazes Doutora Seu filho estava realmente com medo de que a senhora morresse Paciente Acho que sim Doutora E por isso partiu Paciente Partiu Doutora Como ele encarou o fato mais tarde Paciente Brincando com ele digo que sofre de hospital fobia pois não consegue vir ao hospital e me ver de cama Na única vez que esteve aqui eu estava tomando uma transfusão de sangue De vez em quando seu pai 253 pedia para levar para casa alguma coisa ou então trazerme algo pesado demais para ele carregar Doutora Como lhe disseram que tinha câncer Paciente Muito bruscamente Doutora Foi melhor assim ou não Paciente Não me incomodei Não sei como outros receberiam a notícia mas eu viria a saber logo esta é a minha versão Acho que a suscetibilidade aumenta quando notamos que todos começam a dispensar uma atenção exagerada e logo imaginamos que há algo de errado É o que eu acho Doutora De qualquer forma a senhora suspeitaria Paciente Creio que sim Doutora Isso foi em 1951 e agora estamos em 1966 Nesse período a senhora esteve hospitalizada por vinte vezes mais ou menos Paciente Diria que sim Doutora O que a senhora acha que pode nos ensinar Paciente Risos Não sei ainda tenho muito que aprender Doutora Quais as suas condições físicas agora Vejo que está usando um colete ortopédico Tem problemas de coluna Paciente Sim Tive uma fusão de vértebra em junho passado no dia 15 e me disseram que devo usar colete permanentemente Agora mesmo estou tendo problemas com a perna direita Mas com a ajuda dos bons médicos aqui do hospital Bem eles vão encontrar a solução para mim também Sentia uma dormência Deixei de exercitar a perna e tinha a sensação de um formigamento Ontem desapareceu tudo Agora posso mover a perna livremente e sinto voltar ao normal Doutora Teve alguma recidiva do tumor maligno 254 Paciente Não não tive Disseramme que não era para me preocupar pois agora está sob controle Doutora Quanto tempo faz que está assim Paciente Acho que desde a adrenalectomia É claro que não sei muito Se os médicos me dizem que as notícias são boas acredito Doutora A senhora gosta de ouvir isso Paciente Toda vez que saio por essa porta digo para meu marido que é a última vez que venho para o hospital que não volto mais Quando saí no último dia 7 de maio foi ele que disse Mas não durou muito Voltei no dia 6 de agosto Doutora A senhora tem um rosto sorridente mas no fundo há muito pesar e tristeza Paciente Acho que às vezes a gente fica desse jeito Doutora Como a senhora encara os fatos tendo um câncer tendo sido hospitalizada por vinte vezes tendo amputado ambas as mamas e feito a ablação das supra renais Paciente E as fusões de vértebras Doutora Fusões de vértebras como encara tudo isso Onde adquire forças o que a preocupa Paciente Não sei acho que é a fé em Deus e a ajuda dos médicos Doutora Qual delas vem em primeiro lugar Paciente Deus Capelão Falamos sobre isso antes e embora tenha esta fé que a sustenta há momentos em que se sente infeliz Paciente Ah sim Capelão É algo difícil de se evitar os momentos de depressão 255 Paciente É Sinto mais depressão quando fico sozinha durante algum tempo Começo a pensar no passado embora ache que não adianta ficar deitada pensando nisso Tudo ficou para trás Deveria pensar mais no futuro Quando vim pela primeira vez sabendo que seria operada de câncer deixei os dois meninos em casa mas rezei para que me salvassem só para eu poder criálos Doutora Agora estão grandes não Portanto deu certo Paciente chorando Paciente É tudo o que eu preciso desculpeme preciso chorar um pouco Doutora Está bem Gostaria de saber por que falou em evitar a depressão Por que deveria evitála Capelão Bem usei uma palavra inadequada Sra L e eu conversamos bastante sobre como encarar a depressão Realmente não se trata de evitar É para ser enfrentada e dominada Paciente Às vezes não posso evitar chorar Sinto muito Doutora Não se preocupe vá em frente Paciente É mesmo Doutora É acho que evitar só dificulta as coisas não Paciente Não acho sabe Penso que a gente se sente pior quando se entrega esse é o meu ponto de vista Qualquer um que esteja na minha situação esse tempo todo deveria agradecer pelo que já teve no passado Tantas coisas que outros não tiveram a oportunidade de ter Doutora Estaria se referindo ao tempo extra Paciente Sim por uma razão Já testemunhei essa experiência em minha própria família nos últimos meses Sinto que tive muita sorte por estas coisas não terem acontecido comigo Capelão Referese à experiência do seu cunhado Paciente Sim 256 Capelão Ele morreu aqui Paciente Foi no dia 5 de maio Doutora Que experiência foi essa Paciente Bem ele não ficou doente por muito tempo e não teve a chance de durar tanto quanto eu Não posso dizer que fosse velho Tinha uma doença que se tivesse sido cuidada desde o início Acho que foi pura negligência da parte dele mas não durou muito Doutora Quantos anos ele tinha Paciente Sessenta e três Doutora O que ele tinha Paciente Câncer Doutora Ele não ligou muito ou o que aconteceu Paciente Fazia seis meses que estava doente e todos lhe diziam que ele deveria procurar um médico ir a algum lugar cuidarse enfim Não ligou até que não pôde mais cuidar de si Então decidiu vir aqui e pedir auxílio Ele e a esposa ficaram transtornados porque não iriam conseguir salvar a vida dele como salvaram a minha Como disse ele esperou até não poder ficar mais de pé Doutora Esse tempo extra é um tipo especial de tempo Diferente dos outros Paciente Não não posso dizer que seja diferente Não posso dizer isso porque sinto que minha vida é tão normal quanto a da senhora e a do capelão Não sinto que esteja fazendo uso de um tempo emprestado tampouco que tenha de fazer render mais este tempo que resta Imagino que meu tempo seja igual ao seu Doutora Algumas pessoas têm a sensação de que estão vivendo mais intensamente Paciente Não Doutora Sabe isso não é válido para todos não acha 257 Paciente Sei que não Sei que todos temos a hora de ir e a minha ainda não chegou é isso Doutora De algum modo a senhora pensou ou tentou pensar que está na hora de começar a se preparar para morrer Paciente Não Continuo apenas no diaadia como antes Doutora Ah a senhora nem se indaga como é e o que significa Paciente Não nunca pensei nisso Doutora Acha que se deveria pensar já que temos que morrer um dia Paciente Pois é nunca me passou pela cabeça pensar em me preparar para morrer Acho que quando chegar a hora algo dentro de nós nos dirá Não acho que já esteja pronta Ainda tenho muito tempo Doutora É ninguém sabe Paciente Não mas o que quero dizer é que consegui criar os dois meninos E vou ajudar a criar os netos também Doutora Tem netos Paciente Tenho sete Doutora Então está esperando que cresçam Paciente Esperando que cresçam e esperando ver meus bisnetos Doutora Qual o seu maior apoio quando está no hospital Paciente Ficaria com os médicos o tempo todo se pudesse Capelão Acho que conheço a resposta para isso a senhora olha sempre para o futuro para uma meta que deseja alcançar A senhora repete sempre que tudo o que quer é ir para casa e fazer as coisas Paciente Está certo Quero andar novamente e tenho certeza de que vou conseguir como há muitos anos É uma determinação 258 Doutora A que atribui o fato de não esmorecer De não desistir Paciente O único que me resta em casa agora é o meu marido que é mais criança do que todas as crianças juntas É diabético teve a vista afetada de modo que não enxerga muito bem Temos pensão de invalidez Doutora O que é que ele pode fazer Paciente Não pode fazer muito Sua visão é fraca Não consegue ver os semáforos na rua A última vez que estive no hospital ele estava conversando com a Sra S que se sentou na beira da cama e perguntou se ele podia vêla Respondeu que sim mas não nitidamente pelo que pude concluir que sua vista é fraca Enxerga as manchetes do jornal mas precisa de uma lupa para as letras de tamanho médio e não consegue ler as menores Doutora Quem cuida de quem em casa Paciente Bem fizemos um trato quando saí do hospital em outubro passado de que eu seria seus olhos e ele seria os meus pés esse é o nosso plano Doutora É muito bom E como tem funcionado Paciente Tem funcionado muito bem Se ele vira alguma coisa na mesa acidentalmente faço o mesmo de propósito de modo que não pense que fez aquilo por causa da vista Se acontece alguma coisa se ele tropeça etc digo que também acontece comigo muitas vezes e com dois bons olhos para que não fique deprimido por causa disso Capelão Ele se sente mal algumas vezes Paciente Às vezes fica preocupado Doutora Ele nunca pensou em recorrer a um cão treinado a algum exercício para se locomover melhor ou qualquer outra coisa Paciente Temos uma arrumadeira que faz parte do Exército da Salvação Ela disse que iria ver o que poderia fazer para ajudálo 259 Doutora A Casa dos Cegos pode avaliar as necessidades dele e treinálo para melhor se movimentar ou até dar uma bengala se necessário Paciente Isso seria ótimo Doutora Parece que em casa vocês são unha e carne cada um fazendo o que o outro não pode fazer Portanto quando a senhora está no hospital deve ficar bastante preocupada com ele pensando como estará se arranjando Paciente É verdade fico sim Doutora Como ele está se saindo Paciente Meus filhos o levam para jantar Três vezes por semana vem a arrumadeira para limpar a casa e passar a roupa que ele lava Procuro não desencorajálo em nada do que tem feito Noto que falha em muitas coisas mas digo que está bom que continue fazendo e deixo que ele se encarregue das coisas Doutora É com se o incentivasse continuamente para fazêlo sentirse bem Paciente É o que tento fazer Doutora Age assim também consigo Paciente Não costumo me queixar de meu estado Quando ele me pergunta como estou digo sempre que me sinto ótima até chegar ao ponto em que sou obrigada a dizer que tenho de voltar para o hospital e então marcam nova internação Só aí ele fica sabendo Doutora Por quê Ele já lhe pediu para fazer isso antes Paciente Não fiz por mim mesma Tive uma amiga que pôs na cabeça que estava muito doente Acabou numa cadeiraderodas Desde então decidi que só reclamaria quando estivesse realmente mal Foi uma lição que aprendi com ela que passou por todos os médicos da cidade tentando convencêlos de que tinha esclerose 260 múltipla Os médicos não conseguiam achar nada de errado nela Hoje está numa cadeira de rodas sem poder andar Se está realmente doente não sei mas já faz uns dezessete anos que vive assim Doutora Mas esse é o outro extremo Paciente É mas me refiro ao fato de ela se queixar continuamente Tenho uma cunhada que reclama até das unhas quando tem de depilar as pernas Não suporto esse queixume constante das duas É por isso que decidi só me queixar quando não agüentar mais Doutora Havia alguém como a senhora na sua família Seus pais eram assim corajosos Paciente Minha mãe morreu em 1949 e ela só soube duas vezes que estava realmente doente A última vez foi quando teve leucemia e morreu De meu pai não me lembro muito Sei apenas que teve gripe durante a epidemia de 1918 vindo a falecer Portanto não posso dizer muita coisa sobre ele Doutora Então queixarse está em relação direta com morrer porque ambos só se queixaram ao morrer Paciente E isso aí é isso mesmo Doutora Mas a senhora sabe há muitas pessoas que confessam suas dores seus males e não morrem Paciente Sei disso Tenho aquela cunhada que o capelão também conhece Capelão Outro aspecto sobre a hospitalização da Sra L é que ela é freqüentemente admirada pelos outros pacientes Por isso sentese como uma consoladora dos outros Paciente Não sei Capelão Às vezes me pergunto se a senhora não gostaria de ter alguém com quem conversar que pudesse confortála em vez de ser sempre um apoio para os outros 261 Paciente Não acho que preciso de consolo capelão Não quero piedade para nada porque não acho que deveriam ter pena de mim Sinto que não existe nada tão ruim que justifique a pena A única coisa que me causa dó são os médicos pouco experientes que tenho Doutora Dó deles Não deveria sentir dó deles porque eles também não querem que tenham dó deles querem Paciente Sei que não mas puxa quando eles entram nos quartos só ouvem lamentações e queixas dos outros Aposto que gostariam realmente era de fugir para algum lugar As enfermeiras também Doutora Às vezes fogem Paciente Pois bem não os culpo por isso Doutora A senhora diz que coopera com eles Alguma vez deixou de dar alguma informação para não ter de procurálos Paciente Não não Digo a eles exatamente o que sinto pois é o único meio de eles poderem executar seu trabalho Como é que podem curar alguém se não se conta o que anda errado Doutora Tem algumas sensações de malestar físico Paciente Sintome maravilhosamente bem mas é claro que gostaria de poder fazer tudo o que quero Doutora O que gostaria de fazer Paciente Levantar e ir direto para casa a pé Doutora E o que mais Paciente Bem não sei o que faria quando chegasse lá Provavelmente iria para a cama Risadas Mas sintome muito bem No momento não sinto nenhuma dor e nenhum malestar Doutora Está assim desde ontem 262 Paciente Tive aquela sensação de formigamento nas pernas até ontem mas desapareceu Não incomodava muito mas fiquei um pouco preocupada em casa porque nas duas últimas semanas não podia caminhar tão bem como antes Sei que tentava ir em frente É provável que eu não chegasse ao ponto onde cheguei se não tivesse pedido e aceitado ajuda logo no início Mas sempre penso que no dia seguinte vai ser melhor Doutora Então espera um pouco e torce para que o mal desapareça Paciente Fico esperando para ver até onde dá quando não agüento mais chamo Doutora É forçada a encarar o problema Paciente Sou forçada a encarar os fatos Doutora Como vai ser quando estiver no fim de seus dias Vai continuar agindo da mesma maneira Paciente Esperarei até chegar esse dia Assim pretendo Cuidei de minha mãe antes de ela ser hospitalizada vi que aceitou como veio Doutora Ela sabia Paciente Não sabia que tinha leucemia Doutora Não Paciente Os médicos me recomendaram que não lhe contasse Doutora O que acha disso Tem alguma opinião formada Paciente Não gostava que ela não soubesse porque contava aos médicos coisas não relacionadas com sua doença sem colaborar com eles Por exemplo dizia que sentia dores na vesícula e eles tratavam da vesícula passando uma medicação que não faria bem nas condições dela Doutora Por que acha que eles não disseram nada a ela Paciente Não sei não tenho a mínima idéia Perguntei ao médico quando ele me contou o que aconteceria se ela soubesse e ele me respondeu que não deveria saber 263 Doutora Quantos anos a senhora tinha na ocasião Paciente Já estava casada Devia ter mais ou menos trinta e sete anos Doutora Mas a senhora fez o que o médico mandou Paciente Fiz o que o médico mandou Doutora De modo que ela morreu realmente sem saber e sem falar nesse assunto Paciente Exatamente Doutora Então é muito difícil saber como ela encarava o fato Paciente Isso mesmo Doutora Na sua opinião o que é mais fácil para um paciente Paciente Acho que isso é muito pessoal Quanto a mim estou satisfeita em saber o que tenho Doutora Ah E seu pai Paciente Meu pai sabia o que tinha ele estava com gripe espanhola Já vi diversos pacientes que não sabiam o que tinham O capelão conhece a última Ela estava a par mas não sabia que iria morrer Era a Sra J Ela travava uma verdadeira batalha e estava certa de que iria para casa com o marido Sua família escondeu a gravidade de seu estado e ela não suspeitou de nada o tempo todo Talvez essa forma de desenlace tenha sido o melhor para ela Não sei Acho que depende da pessoa Os médicos deveriam saber a melhor forma de lidar com isso Acho que eles podem julgar melhor uma pessoa quanto ao fato de receber essa notícia Doutora Quer dizer que eles também agem num plano individual Paciente Acho que sim Doutora Mas não se pode generalizar Concordamos que não podemos fazer isso O que estamos tentando fazer aqui é justamente isso olhar para cada indivíduo na tentativa 264 de aprender como ajudar este determinado indivíduo Acho que a senhora é o tipo de pessoa tenaz que faria o humanamente impossível até o último dia Paciente E vou fazer Doutora E então quando tiver de enfrentar vai enfrentar Sua fé tem contribuído muito para que continue sorrindo apesar de tudo Paciente Espero que sim Doutora Qual é a sua igreja Paciente Luterana Doutora O que mais a ajuda na religião Paciente Não sei não posso falar com precisão Senti muito consolo conversando com o capelão e cheguei até a pedir uma ligação para falar com ele Doutora O que é que a senhora faz quando se sente realmente triste solitária sem ninguém a seu lado Paciente Também não sei Qualquer coisa que me venha à cabeça Doutora Por exemplo Paciente Alguns meses atrás liguei o televisor num show beneficente e fiquei indiferente Só isso Concentrarme em outra coisa qualquer chamar minha nora para conversar com ela e as crianças Doutora Ao telefone Paciente Sim e procuro estar sempre ocupada Doutora Fazendo coisas Paciente Coisas que me façam desligar de mim Vez por outra chamo o capelão só para um pequeno apoio moral Na realidade não converso sobre o meu estado com ninguém Minha nora pensa que quando a chamo é porque estou triste ou deprimida Então passa o telefone a uma 265 das crianças ou me conta alguma coisa que elas fizeram e logo tudo passa Doutora Admiro sua coragem em vir dar esta entrevista Sabe por quê Paciente Não Doutora Toda semana temos um paciente com quem fazemos a mesma coisa Mas estou percebendo agora que a senhora é uma pessoa que não quer realmente tocar nesse assunto mas sabia que iríamos falar sobre isso Ainda mais estava ansiosa para vir Paciente Pois é se posso ajudar alguém de algum modo estou pronta Como eu disse sintome tão saudável quanto a senhora e o capelão com relação ao meu estado físico Não estou doente Doutora Acho formidável que a Sra L se tenha prontificado a vir aqui A senhora deseja ser útil e nos ajudou Paciente Espero que sim Se puder ajudar a mais alguém fico bem satisfeita mesmo não podendo sair e fazer alguma coisa Bem vou ficar por aqui ainda muito tempo Talvez dê mais algumas entrevistas Rindo A Sra L aceitou nosso convite para partilhar algumas de suas preocupações Entretanto revelou uma estranha discre pância entre enfrentar sua doença e negála Só conseguimos entender um pouco desta dicotomia depois desta entrevista Prontificouse em vir ao seminário não porque quisesse falar sobre a doença ou a morte mas para ser de alguma utilidade enquanto estava presa ao leito impedida de sair Enquanto puder fazer as coisas viverei disse ela a certa altura Consola outros pacientes mas se ressente realmente de não poder se encostar nos ombros de alguém Chama o capelão para uma confissão particular e confidencial quase secreta mas na entrevista só admite superficialmente sentimentos de depressão ocasional e necessidade de conversar Ela termina a 266 entrevista dizendo que é tão saudável quanto nós o que significa Já levantei um pouco o véu agora vou cobrir o rosto de novo Ficou evidente nesta entrevista que queixarse era sinônimo de morrer Seus pais jamais se queixaram e só admitiram que estavam doentes pouco antes de morrer A Sra L tem de fazer as coisas e se manter ocupada se quiser viver Tem de ser os olhos de seu marido que enxerga pouco e ajudálo a negar a perda gradual de sua visão Quando ele faz algo errado por causa de sua visão limitada logo ela provoca um acidente semelhante para demonstrar que o que aconteceu nada tem a ver com a doença dele Quando está deprimida tem vontade de conversar com alguém mas não de se queixar Pessoas que se lastimam ficam numa cadeiraderodas durante dezessete anos É compreensível que uma doença progressiva com todas as suas implicações seja difícil de suportar quando um paciente está convicto de que o fato de se lamentar acarreta necessariamente ficar permanentemente paralítico ou morrer Os parentes desta paciente a ajudavam deixando que telefonasse e conversasse sobre outras coisas trazendo um televisor para o quarto para que se distraísse ou estimulandoa mais tarde para que fizesse trabalhos de artesanato dando lhe a sensação de que ainda trabalhava Quando são destacados os aspectos pedagógicos de uma entrevista como esta uma paciente como a Sra L pode comunicar muitas mágoas sem sentir que será tachada de lamurienta 267 XI Reações ao seminário sobre a morte e o morrer A tempestade da noite passada coroou com uma paz dourada esta manhã Tagore Pássaros errantes CCXCIII Reações da equipe hospitalar Como foi dito anteriormente o pessoal da equipe hospitalar reagiu tenazmente ao nosso seminário às vezes até com demonstrações públicas de hostilidade No começo era quase Impossível à equipe de atendimento consentir em entrevistar um dos pacientes Os residentes eram mais difíceis de abordar do que os internos e estes eram mais resistentes do que os externos ou os estudantes de medicina Parecia que quanto maior a experiência do médico menor era a vontade de aceitar este tipo de trabalho Outros autores já estudaram a atitude do médico perante a morte e o paciente moribundo Não aprofundamos as razões particulares desta resistência mas as percebemos muitas vezes Notamos também mudança na atitude quando o seminário se impunha e o médico responsável ouvia as opiniões dos colegas e de alguns pacientes que tomavam parte Os estudantes e os capelães do hospital contribuíram enormemente para que a equipe se familiarizasse cada vez mais com nosso trabalho mas destacamos as enfermeiras que foram talvez as assistentes mais prestativas Pode não ser coincidência mas Cicely Saunders uma das médicas mais conhecidas pelo seu absoluto cuidado em tratar os 268 doentes moribundos começou como enfermeira Hoje é a médica que cuida dos pacientes em fase terminal de uma organização hospitalar criada especialmente para eles Ela confirmou que a maioria dos pacientes está a par de sua morte próxima quer tenham sido informados quer não Não tem receio de discutir este assunto com eles e como não há necessidade de negação é pouco provável que o encontre em seus pacientes Se não querem falar sobre isso ela certamente respeita as reticências deles Diz ser importante o médico se sentar e ouvir É quando a maioria dos pacientes aproveita a oportunidade é mais freqüente do que se imagina para contar que já sabiam do que estava acontecendo quase desaparecendo no final os sentimentos de medo e rancor O mais importante ainda diz ela é que a equipe que escolheu este tipo de trabalho deveria ter meditado profundamente sobre ele e encontrado satisfação num campo que não o das atividades e objetivos do hospital Se eles próprios acreditam e gostam de fato deste trabalho ajudarão ao paciente mais com atos do que com palavras Hinton ficou igualmente impressionado com a profundidade a consciência e a coragem que os pacientes em fase terminal demonstraram diante da morte recebida quase sempre com tranqüilidade Escolhi estes dois exemplos por achar que eles tanto refletem a atitude dos autores como falam das reações de seus pacientes Em nossa equipe encontramos dois subgrupos de médicos capazes de ouvir e conversar calmamente sobre o câncer a morte iminente ou o diagnóstico de uma doença considerada fatal Eram os mais jovens na profissão médica que já tinham sofrido pela morte de um ente querido e superado esta perda ou já haviam freqüentado o seminário por vários meses o outro subgrupo era formado por médicos mais velhos da geração passada crescidos num ambiente que não usava tantos mecanismos de defesa nem tantos eufemismos e enfrentavam a morte como uma realidade havia ainda médicos treinados para cuidar dos pacientes em fase terminal Tinham sido treinados na 269 velha escola do humanitarismo e eram agora médicos de renome no mundo mais científico da medicina São os médicos que falam a seus pacientes sobre a gravidade de suas doenças sem lhes tirar toda a esperança Estes médicos têm sido úteis e prestativos tanto para seus pacientes quanto para o nosso seminário Tivemos pouco contato com eles pois constituem uma exceção seus pacientes são bem tratados e é raro que requeiram nossa atenção Aproximadamente nove entre dez médicos reagiram com má vontade com implicância com demonstrações públicas ou veladas de hostilidade quando pedíamos permissão para conversar com um de seus pacientes Enquanto uns se valiam da precária saúde física ou emocional do paciente para justificar sua relutância outros negavam friamente ter pacientes em fase terminal sob seus cuidados Alguns se zangavam quando seus pacientes queriam conversar conosco refletindo quase a inabilidade deles para lidar com seus doentes Eram poucos os que recusavam secamente mas a grande maioria considerava estar fazendo um favor especial ao autorizar finalmente uma entrevista A situação foi mudando aos poucos e chegaram até a pedir que fôssemos visitar alguns de seus pacientes A Sra P é um exemplo da agitação que um seminário deste pode causar entre os médicos Estava muito transtornada devido aos vários aspectos de sua hospitalização Sentia uma grande necessidade de expressar suas ansiedades e tentava desesperadamente descobrir quem era o seu médico Acontece que ela havia sido internada em fins de junho justamente quando se faz um rodízio geral na equipe Mal conhecia um grupo logo este era substituído por outro grupo de médicos jovens Um dos recémchegados que já havia participado do seminário notou seu desalento mas não podia lhe dispensar atenção porque estava atarefado tentando conhecer seus novos supervisores sua nova ala e suas novas obrigações Quando o abordei com o pedido para entrevistar a Sra P ele logo consentiu Algumas horas depois do seminário seu novo supervisor um residente encostoume na parede de um 270 corredor movimentado e me repreendeu em altos brados por ter visitado aquela senhora e ainda acrescentou É o quarto paciente nesta ala que a senhora tira de meus cuidados Não sentiu o mínimo embaraço em se queixar alto e bom som na frente de visitantes e pacientes nem se preocupou por se dirigir com tamanho desrespeito a um membro superior da faculdade Estava bastante preocupado com as conseqüências e zangado com o fato de que outros membros de sua equipe dessem logo permissão sem antes consultálo Não compreendia por que tantos pacientes seus tinham dificuldades em aceitar a doença nem entendia por que sua equipe evitava perguntarlhe as coisas nem compreendia por que era impossível que os pacientes falassem de suas preocupações Mais tarde o mesmo médico disse aos internos que daí para a frente estavam proibidos de conversar com os pacientes sobre a gravidade de suas doenças e de deixar que estes conversassem conosco Na mesma ocasião falou do respeito e da admiração que tinha pelo seminário e pelo trabalho que fazíamos junto aos doentes em fase terminal mas não queria tomar parte nem ele nem seus pacientes entre os quais havia muitos com doenças incuráveis Outro médico me telefonou no momento em que eu entrava no consultório após uma entrevista particularmente comovente Havia uma meia dúzia de sacerdotes e supervisores de enfermagem no consultório quando uma voz estridente vociferou ao telefone coisas assim Como tem a ousadia de falar com a Sra K sobre a morte quando ela nem sabe do grau de sua doença e ainda tem chance de voltar para casa Quando finalmente recuperei o equilíbrio expliqueilhe o porquê da entrevista dizendo sobretudo que esta senhora pedira para conversar com alguém não envolvido diretamente com o seu tratamento Queria participar a alguém do hospital que sabia que seus dias estavam contados mas não se achava preparada para aceitar isso plenamente Feznos prometer que seu médico o que estava comigo ao telefone lhe daria um sinal quando seu fim estivesse próximo não escondendo o fato até que fosse 271 tarde demais Depositava inteira confiança nele mas ficava sem jeito de lhe dizer que estava ciente da gravidade de seu estado Quando este médico tomou conhecimento do que realmente estávamos fazendo absolutamente o oposto do que ele supunha ficou mais curioso e menos zangado e concordou finalmente em ouvir a gravação da entrevista com a Sra K que nada mais era do que um apelo que ela lhe dirigia Não poderá haver melhor lição para os religiosos do que ver aquela interrupção brusca de um médico zangado que mostrava os efeitos desordenados provocados pelo seminário No início de meu trabalho com os pacientes moribundos observei que o pessoal da equipe hospitalar sentia uma necessidade desesperada de negar que houvesse pacientes em fase terminal sob sua responsabilidade Certa vez passei horas em outro hospital procurando um paciente que pudesse ser entrevistado e me disseram no fim que não havia ninguém com doença fatal e em condições de falar Nas minhas andanças pelos corredores vi um senhor idoso lendo um jornal com a seguinte manchete Velhos soldados nunca morrem Parecia gravemente enfermo e lhe perguntei se hão se assustava lendo sobre aquilo Olhou para mim com raiva e asco dizendo que eu deveria ser como um daqueles médicos que só sabem cuidar de pacientes que estão bem mas quando se trata de morrer batem assustados em retirada Descobri o meu homem Falei com ele do meu seminário sobre a morte e o morrer 3 e da minha vontade de entrevistar alguém na frente dos estudantes para ensinálos a não fugirem destes pacientes Aceitou prontamente e nos deu uma das entrevistas mais inesquecíveis a que pude assistir Em geral os médicos se mostram relutantes em nos acompanhar neste trabalho e quando aderem é por recomendação dos outros ou porque já tomaram parte no seminário Os que participaram têm contribuído muito e tendo 3 Costumava realizar estes seminários como uma introdução à psiquiatria antes de iniciar o trabalho descrito no presente livro 272 participado uma vez continuam a vir aprofundandose cada vez mais É preciso coragem e humildade para participar de um seminário freqüentado por enfermeiras estudantes e assistentes sociais com quem trabalham normalmente expondose talvez a ouvir uma opinião franca quanto ao papel que desempenham na realidade ou na fantasia de seus pacientes Naturalmente aqueles que têm medo de saber como os outros os vêem relutarão em comparecer a este tipo de reunião pois tocamos em assuntos tidos como tabu não comentados publicamente nem com os pacientes nem com a equipe hospitalar Os que vieram aos seminários ficaram sempre admirados com o que puderam aprender com os pacientes com as opiniões e observações dos outros acabando por achar que constituem uma ótima ocasião de aprendizado trazendo compreensão e coragem para prosseguirem no trabalho Com os médicos o primeiro passo é sempre o mais difícil Quando abrem as portas e constatam o que realmente estamos fazendo em vez de especular sobre o que poderíamos estar fazendo ou participam de um seminário então é quase certo que vão em frente Fizemos mais de duzentas entrevistas num período de quase três anos Durante esse tempo recebemos médicos de todas as partes do mundo e dos quatro cantos dos Estados Unidos que participavam dos seminários ao passar por Chicago mas só dois membros do corpo docente da faculdade de nossa universidade nos honraram com a sua presença Acho que é mais fácil falar da morte e do morrer quando se trata de pacientes que não são seus e observálos como espectadores e não como participantes ativos do drama A equipe de enfermagem era mais dividida em suas reações No começo fomos recebidos com a mesma indiferença e quase sempre com observações mordazes Algumas enfermeiras se referiam a nós como a urubus e deixavam bem claro que não tinha cabimento nossa presença naquela ala Entretanto havia outras que nos acolhiam com alívio e satisfação Por inúmeros motivos Guardavam mágoa de certos médicos pela maneira 273 como comunicavam a seus pacientes a gravidade da doença Zangavamse com eles porque contornavam o problema e deixavam os pacientes completamente alheios durante as visitas Ficavam com raiva por causa do despropósito de testes que pediam para não ter de perder tempo com aqueles doentes Sentiamse impotentes diante da morte e quando percebiam que os médicos tinham esses mesmos sentimentos aumentava mais ainda o rancor Jogavam a culpa neles por não quererem reconhecer que nada mais podia ser feito por determinado paciente embora continuassem solicitando testes só para mostrar que estava sendo feita alguma coisa Preocupavamse com o desconforto e a falta de organização que atingiam os familiares destes pacientes e naturalmente sentiam mais dificuldade em evitálos do que os médicos Sua empatia e envolvimento com os pacientes tornavamse maiores mas também aumentavam suas frustrações e limitações Muitas enfermeiras percebiam uma grande falta de treinamento nesta área e sabiam muito pouco sobre o seu papel diante dessas crises Reconheciam seus conflitos com mais facilidade do que os médicos e se esforçavam ao máximo para freqüentar mesmo que fosse uma parte do seminário enquanto outras colegas cuidavam da ala O comportamento delas mudou muito mais rápido do que o dos médicos e nos debates abriamse sem reserva quando descobriam que a franqueza e a honestidade valiam mais do que as palavras amáveis socialmente esperadas referentes à sua atitude perante os pacientes os familiares ou os membros da equipe de tratamento Quando um dos médicos confessou que uma paciente o comovera quase até as lágrimas as enfermeiras admitiram logo que evitavam também entrar no quarto dela para não se deparar com o quadro do filhinho no berço Eram capazes de externar com facilidade suas reais preocupações seus conflitos e mecanismos de defesa quando suas afirmações serviam mais para esclarecer determinada situação conflitante do que para julgálas Sentiamse igualmente livres para apoiar um médico que tivera a coragem 274 de ouvir a opinião de um paciente sobre ele e logo aprenderam a reconhecer quando um médico ou mesmo elas se colocavam na defensiva Havia uma ala no hospital onde parecia que os pacientes em fase terminal ficavam sozinhos a maior parte do tempo A supervisora de enfermagem marcou uma reunião com suas colaboradoras para esclarecer problemas específicos Reunimonos numa pequena sala de conferências e foi perguntado a cada enfermeira qual seria o seu papel diante de um paciente em fase terminal Uma enfermeira mais velha quebrou o gelo deixando transparecer seu desaponto pela perda de tempo com estes pacientes Observou que a falta de enfermeiras era uma realidade e que era um verdadeiro absurdo perder tempo precioso com quem não pode mais receber ajuda Outra mais jovem acrescentou que sempre se sentia muito mal quando estas pessoas morrem nos meus braços Outra ficava especialmente aborrecida quando estes pacientes morrem nos meus braços na presença de outros membros da família ou quando acabo de ajeitar os travesseiros No meio de doze enfermeiras só uma achava que os moribundos também precisavam dos cuidados delas e mesmo que não pudessem fazer muito podiam pelo menos proporcionar um certo conforto físico A reunião inteira foi uma expressão corajosa da aversão por este tipo de trabalho misturada a um sentimento de raiva como se estes pacientes estivessem cometendo uma indignidade contra elas morrendo em seus braços Estas enfermeiras conseguiram entender as razões de seus sentimentos e agora talvez possam ver em seus doentes em fase terminal seres humanos que sofrem e necessitam mais dos cuidados e atenções do que os colegas de quarto em melhor estado de saúde Esta atitude foi mudando aos poucos Muitas assumiram o papel que costumávamos ter no seminário Agora muitas respondem sem embaraço às perguntas que os pacientes lhes fazem sobre o futuro deles Já não têm grandes receios em passar o tempo com um paciente em fase terminal e não hesitam 275 em vir ter conosco e discutir sobre seus problemas com uma pessoa particularmente difícil ou sobre as dificuldades de relacionamento Às vezes vêm junto com parentes ou vão com eles até a sala do capelão outras vezes organizam encontros de enfermeiras para debater aspectos diversos do cuidado geral com o paciente Elas têm sido estudantes e ao mesmo tempo professoras para nós tendo contribuído muito com o nosso seminário Deve ser dado o maior crédito à equipe de adminis tradores e supervisores que apoiou o seminário desde o prin cípio e até providenciou a substituição de elementos naqueles setores que participavam das entrevistas e das discussões As assistentes sociais os terapeutas ocupacionais os terapeutas de inalação embora em número menor deram igualmente sua contribuição fazendo do seminário um verdadeiro laboratório interdisciplinar Surgiram voluntários que visitavam os pacientes fazendo às vezes de leitores junto àqueles que nem conseguiam abrir um livro Os terapeutas ocupacionais ajudaram muitos pacientes com pequenos trabalhos artesanais como uma maneira de mostrar que eles ainda podem fazer alguma coisa De toda a equipe envolvida neste projeto foram as assistentes sociais as que demonstraram uma leve apreensão em lidar com crises Talvez seja porque a assistente social está tão empenhada em tomar conta dos vivos que na realidade não tem nada a ver com os que estão morrendo Em geral preocupase mais com o cuidado às crianças ou com o aspecto financeiro deste cuidado ou talvez com casas de repouso e por fim mas não menos importante com os conflitos dos parentes Assim sendo a morte pode ser menos ameaçadora para ela do que para os membros das profissões auxiliares que lidam diretamente com o paciente em fase terminal cujo cuidado termina quando ele morre Um livro sobre o estudo interdisciplinar do cuidado com os doentes em fase terminal não estaria completo sem uma palavra sobre o desempenho do capelão do hospital Freqüentemente é o único que é chamado quando um paciente está em crise 276 quando está morrendo quando a família reluta em aceitar a notícia ou quando a equipe de tratamento o elege como mediador Durante o primeiro ano desenvolvi este trabalho sem a assistência de religiosos Mas a presença deles mudou muito o seminário O primeiro ano foi incrivelmente difícil por várias razões Nem meu trabalho nem eu éramos conhecidos e assim encontramos muita resistência e relutância compreensíveis aliás além das dificuldades inerentes a essa empreitada Não tinha recursos nem conhecia bem a equipe para saber de quem me aproximar e a quem evitar Foram necessárias centenas de quilômetros de caminhada pelo hospital e entre erros e tentativas descobri de forma bastante difícil quem era acessível e quem não era Se não fosse pela surpreendente adesão dos pacientes teria desistido há muito tempo No fim de uma busca infrutífera fui parar uma noite na sala do capelão exausta frustrada e em busca de ajuda Ele me confiou então os problemas que já tinha tido com esses pacientes suas próprias frustrações e sua necessidade de ajuda Daí para a frente juntamos nossas forças O capelão dispunha de uma lista de pacientes desenganados fez um contato prévio com muitos pacientes gravemente enfermos e assim a busca terminou transformandose numa questão de escolher os mais necessitados Entre os muitos capelães pastores rabinos e sacerdotes que freqüentaram o seminário poucos foram os que fugiram do assunto ou demonstraram a hostilidade ou a ira incontida de outros membros das profissões auxiliares Entretanto fiquei admirada ao ver o número de clérigos que se conformavam em se servir de um livro de orações ou de um capítulo da Bíblia como único meio de comunicação com os pacientes deixando de sentir as necessidades deles e se expondo a ouvir perguntas que não seriam capazes de responder ou talvez nem quisessem Muitos deles já tinham visitado inúmeras pessoas gravemente enfermas mas foi no seminário que começaram pela primeira vez a tratar de fato da questão da vida e da morte Preocupavamse muito em providenciar cerimônias fúnebres 277 em ver o que fariam antes e depois dos funerais mas tinham muitas dificuldades em lidar de fato com o moribundo Como desculpa para não se comunicar realmente com os pacientes em fase terminal valiamse freqüentemente das ordens do médico Não contem ou da presença permanente de um membro da família Foi no decurso de repetidos encontros que começaram a compreender a própria relutância em enfrentar seus conflitos e por que usavam a Bíblia e se serviam da presença dos parentes e das ordens médicas como desculpa ou racionalização para justificar seu nãoenvolvimento A mudança de atitude mais tocante e que serve de exemplo talvez seja a de um dos nossos estudantes de teologia que freqüentara regularmente as aulas e que parecia profundamente imerso neste trabalho Uma tarde ele veio ao meu consultório pedindo uma conversa a sós Contoume que ele havia passado uma semana de agonia diante da perspectiva de sua própria morte Vinha sofrendo de um aumento anormal das glândulas linfáticas e por isso foi pedida uma biópsia para constatar a existência ou não de um câncer Na sessão seguinte do seminário contou ao grupo como passara os estágios de choque desânimo e descrença os dias de raiva depressão e esperança alternados por uma grande ansiedade e medo Comparou suas tentativas para controlar a crise com a dignidade e o orgulho estampados em nossos pacientes Falou do conforto que era a compreensão de sua esposa e da reação dos filhos que ouviram parte de sua conversa com ela Conseguiu tocar neste assunto com muita objetividade e fez compreender a diferença entre ser observador e sentir na própria pele Este homem jamais usará palavras vazias ao encontrar um paciente em fase terminal Sua atitude não mudou por causa do seminário mas porque teve de enfrentar a perspectiva da própria morte justamente quando acabava de aprender a lidar com a morte iminente de quem estava sob seus cuidados Aprendemos com o pessoal do hospital que é enorme a resistência a este tipo de tarefa que a raiva e a hostilidade 278 declaradas são às vezes difíceis de serem aceitas mas são atitudes que podem ser mudadas À medida que o grupo compreendia as razões de suas defesas e aprendia a vencer os conflitos analisandoos aumentava sua contribuição tanto para o bemestar do paciente como para o amadurecimento e a compreensão dos outros participantes Onde o obstáculo e o medo são grandes grande é também a necessidade Talvez seja por essa razão que o fruto de nosso trabalho tem melhor sabor agora pois exigiu labuta árdua para cavar o solo e muito cuidado para plantar Reações dos estudantes A maioria dos nossos estudantes entrou no curso sem saber o que esperar exatamente ou porque ouvira dos outros alguns aspectos que lhe interessavam Muitos deles achavam que deviam encarar pacientes reais antes de assumir a responsabilidade de cuidar deles Sabiam que as entrevistas seriam conduzidas por trás de um espelho falso funcionando quase como um processo para acostumarse aos poucos antes de terem de enfrentar concretamente um paciente Muitos estudantes viemos a saber depois nos debates se inscreveram devido a algum conflito não resolvido com relação à morte de um ente querido ou ambivalente enquanto outros vieram porque queriam aprender técnicas de entrevista Muitos disseram ter vindo para aprender mais sobre os complexos problemas do morrer entretanto poucos sabiam realmente ò que significava o seminário Houve um estudante que veio para a primeira entrevista cheio de autoconfiança mas abandonou a sala antes de a sessão terminar Muitos estudantes tiveram de fazer esforços redobrados para poder participar tanto da entrevista como do debate chegando a ficar chocados quando um paciente pedia que a sessão fosse realizada no auditório e não por trás do espelho 279 Passavamse três ou mais sessões para que se sentissem à vontade para discutir diante do grupo suas próprias reações e sentimentos e muitos iam até tarde da noite nesses debates Havia um estudante que sempre escolhia um pequeno detalhe da entrevista para provocar discussão no grupo mas os outros participantes desconfiaram de que essa talvez fosse a forma de ele se esquivar do cerne do assunto ou seja a morte iminente do paciente Outros só conseguiam falar de problemas técnicos médicos e administrativos ficando sem graça quando a assistente social falava da agonia de um jovem marido e seus filhos pequenos Quando uma enfermeira questionou o racionalismo de certos procedimentos e testes os estudantes de medicina prontamente acharam que ela se referia ao médico orientador e partiram em sua defesa Outro estudante de medicina ficava imaginando se reagiria do mesmo modo caso o paciente fosse seu pai e só houvesse ele para dar as ordens Os estudantes das várias disciplinas logo começaram a perceber que são enormes os problemas que alguns médicos enfrentam e começaram a avaliar melhor tanto o papel do paciente como os conflitos e responsabilidades dos diferentes membros da unidade de tratamento Começaram cedo a experimentar um respeito crescente pelos deveres mútuos dando possibilidade ao grupo de transmitir seus problemas num nível interdisciplinar A partir de sentimentos de desesperança impotência ou puro medo desenvolveram um senso de domínio grupai dos problemas com uma convicção cada vez maior em seu desempenho neste psicodrama Cada um era forçado a lidar com problemas graves cada um tinha de se envolver do contrário seria acusado de ser relutante por alguém do grupo Assim cada um a seu modo tentava analisar sua própria atitude perante a morte e aos poucos individualmente e em grupo iam se familiarizando com ela Cada componente do grupo passava pelo mesmo processo doloroso mas compensador por isso exatamente como na terapia de grupo onde a solução do problema de um pode ajudar o outro tornouse fácil para os membros enfrentarem individualmente seus próprios conflitos e 280 aprenderam a lidar melhor com eles Franqueza honestidade e aceitação tornaram possível vivenciar a contribuição de cada membro para este grupo Reações dos pacientes Ao contrário da equipe hospitalar os pacientes foram favoráveis e responderam de modo surpreendentemente positivo às nossas visitas Menos de 2 dos pacientes consultados se recusaram sem mais nem menos a comparecer ao seminário só um entre mais de duzentos deixou de falar da gravidade de seu estado dos problemas decorrentes de sua enfermidade fatal e do temor da morte Este tipo de paciente foi descrito com mais detalhe no capítulo III sobre a negação Todos os outros pacientes acolheram bem a possibilidade de conversar com alguém que se interessasse por eles Muitos deles de uma forma ou de outra testaramnos primeiro para se certificarem de que estávamos realmente querendo falar sobre os últimos momentos ou os cuidados finais A maioria dos pacientes sentiuse bem com esta ruptura de seus mecanismos de defesa mostrandose aliviados por não terem de brincar de conversar superficialmente quando no íntimo estavam perturbados por temores fundamentados ou não No primeiro dia muitos reagiram como se tivéssemos aberto uma comporta botaram para fora todos os seus ressentimentos passando a reagir aliviados após esse encontro Alguns pacientes adiavam o encontro mas nos chamavam no dia seguinte ou na semana seguinte para conversarmos um pouco É bom lembrar àqueles que estão tentando realizar este tipo de trabalho que uma rejeição por parte de um destes pacientes não implica que ele esteja dizendo que não quer falar Significa apenas que não está preparado ainda para se abrir e partilhar algumas de suas preocupações Se após esta recusa as visitas não forem proteladas mas redobradas o paciente dará a dica de quando estará propenso a falar Sabendo que há pessoas 281 dispostas a ouvir os pacientes as chamarão no momento oportuno Muitos destes pacientes confessaram mais tarde que admiravam nossa paciência e nos contaram a luta interior que travaram antes de traduzila em palavras Haverá muitos pacientes que jamais mencionarão as palavras morte ou morrer mas falarão delas disfarçadamente o tempo todo Um terapeuta observador pode esclarecer as dúvidas ou preocupações destes pacientes sem usar as palavras proibidas e ainda ser de grande ajuda Demos numerosos exemplos ao descrever a Sra A e a Sra K nos capítulos II e III Se nos indagarmos o que é que existe de tão útil ou de tão significativo para que um número tão elevado de pacientes em fase terminal queira compartilhar conosco desta experiência temos de nos deter nas respostas que nos dão ao perguntarmos as razões de sua aceitação Muitos pacientes se sentem completamente sem esperanças inúteis incapazes de encontrar qualquer significado em suas vidas durante este estágio Ficam à espera das visitas dos médicos ou do resultado de uma radiografia ou da enfermeira que vem trazer a medicação e seus dias e noites parecem monótonos e intermináveis Então em meio a esta monotonia que se arrasta aparece um visitante interessado que os conforta que procura saber as reações a força a esperança e as frustrações que têm Alguém que puxa de fato uma cadeira e se senta Alguém que não fala com eufemismos mas vai direto ao assunto numa linguagem simples e clara falando das coisas que povoam a mente deles coisas que são reprimidas de vez em quando mas vêm sempre à tona de novo Alguém que chega e quebra a monotonia a solidão o vazio a angustiante espera O aspecto mais importante para o paciente talvez seja a sensação de que seus relatos podem ser importantes e trazer ao menos algum sentido para os outros Há como um sentimento de prestação de serviço quando pressente que não é mais de utilidade alguma para ninguém Mais de um paciente afirmou Quero ser útil de algum modo a alguém Talvez doando meus 282 olhos ou meus rins mas o que se faz aqui parece ser bem melhor já que posso fazer algo enquanto ainda estou vivo Alguns pacientes serviramse do seminário para testar suas próprias forças de modo particular Rezavam por nós confes savam sua fé em Deus e sua pronta aceitação da vontade Dele apesar do medo estampado no rosto Outros que possuíam uma fé genuína capaz de fazer que aceitassem o fim de sua vida ficavam orgulhosos por estarem com um grupo de jovens na esperança de que pudesse ser transmitido um pouco dessa fé Nossa cantora de ópera com câncer no rosto pediu para participar de nossa aula como se fosse sua última apresentação um último pedido para cantar antes de voltar para a ala onde já estava sendo esperada para extrair os dentes antes do tratamento radioterápico O que estou tentando dizer é que a resposta foi unanimemente positiva as motivações e as razões é que foram diferentes Alguns pacientes podem ter desejado não atender ao nosso apelo mas ficavam preocupados com que esta recusa pudesse afetar o cuidado dispensado a eles no futuro Uma percentagem certamente muito mais alta serviuse do seminário para transmitir sua raiva e revolta contra o hospital a equipe a família ou d mundo em geral por seu isolamento Viver de tempo emprestado esperar em vão pelas visitas dos médicos agarrarse às horas de visita olhar pela janela esperar que uma enfermeira disponha de algum tempo livre para um papinho eis como muitos pacientes em fase terminal passam seu tempo Causa então surpresa que uma paciente fique intrigada quando vê um visitante estranho chegar querendo falar com ela sobre seus sentimentos e reações a este estado de coisas Quem quer se sentar e discorrer sobre alguns dos temores fantasias e desejos que ela cultiva naquelas horas solitárias Talvez baste o que este seminário oferece aos pacientes um pouco de atenção um pouco de terapia ocupacional uma quebra da monotonia das coisas um pouco de colorido na brancura das paredes do hospital De repente se vêem numa cadeiraderodas vestidos com alguém pergun 283 tando se suas respostas podem ser gravadas certos de que um grupo de pessoas interessadas os está observando Talvez seja esta atenção que ajuda e traz um pouco de sol de sentido quem sabe de esperança à vida do paciente em fase terminal É provável que a prova cabal da aceitação e apreço do paciente por este tipo de trabalho esteja no fato de todos eles nos terem recebido com alegria durante o resto de sua hospitalização período em que o diálogo continuava A maioria dos pacientes que recebiam alta mantinhamse em contato telefônico por iniciativa própria quando havia crises ou acontecimentos importantes A Sra W me chamou para comunicar sua grande sensação de alívio quando os doutores K e P foram visitála em casa e confirmaram seu bom estado de saúde Seu desejo de nos comunicar a boa nova talvez seja um sinal da aproximação e da intimidade deste relacionamento tão informal mas cheio de significado Disse ela Se estivesse no meu leito de morte e visse qualquer um deles tenho certeza de que morreria sorrindo Isto mostra o quanto estes relacionamentos podem se tornar significativos e como pequenas demonstrações de cuidado podem se transformar nas comunicações mais importantes Foi assim também que o Sr E descreveu o Dr B Ficava tão desesperado com a falta de cuidadas humanos que estava prestes a pedir para sair Os internos vinham me furar as veias o dia inteiro Não se importavam que a cama estivesse desfeita e o pijama amarrotado Um dia o Dr B veia e antes que eu percebesse já estava retirando a agulha Eu nem sentira a picada dada a suavidade com que aplicou a injeção Colocou um esparadrapo no local o que nunca haviam feito antes e me ensinou como retirálo sem doer O Sr E jovem pai de três filhos pequenos portador de leucemia aguda disse que esta foi a coisa mais significativa que tinha lhe acontecido durante toda a sua internação Freqüentemente os pacientes reagem com uma admiração quase exagerada por quem cuida deles e lhes dedica um pouco de tempo Ficam privados de tais gentilezas num mundo 284 atarefado de números e aparelhos e não é de estranhar que um toque leve de humanidade provoque uma reação tão positiva Numa época de incertezas da bomba de hidrogênio de grandes massas e correrias uma pequenina doação pessoal pode ainda ser muito significativa A doação é de ambos as lados do paciente sob a forma de ajuda de inspiração e de encorajamento que podem proporcionar a outras nas mesmas condições de nós sob a forma de cuidado de tempo e desejo de comunicar aos outros o que eles nos ensinaram no fim de suas vidas O último motivo de uma reação favorável por parte dos pa cientes pode ser a necessidade que o moribundo sente de deixar algo atrás de si de fazer uma pequena doação de criar talvez uma ilusão de imortalidade E demonstramos nossa satisfação por dividirem conosco seus pensamentos sabre este tabu dizendolhes que cabe a eles nos ensinarem cabe a eles ajudarem os que virão depois criandose assim uma idéia de que algo viverá após sua morte Uma idéia um seminário em que suas sugestões suas fantasias e seus pensamentos continuem vivos sejam debatidos tornemse um pouco imortais Estabeleceuse uma comunicação pela paciente moribundo que procura se separar dos relacionamentos humanos e enfrentar a última separação com o menor número possível de laços mas que entretanto é incapaz de fazêlo sem a ajuda de alguém que divida com ele alguns destes conflitos Estamos falando sobre a morte objeto de repressão social de um modo franco sem complicações abrindo assim a porta para uma gama ampla de discussões permitindo uma negação total se necessário ou uma conversa aberta sobre os temores e preocupações do paciente se ele assim o desejar Não se servir da negação e usar termos morte e morrer talvez seja a comunicação mais bem aceita por muitos de nossos pacientes Se procurarmos resumir brevemente o que estes pacientes nos ensinaram há um fato que a meu ver se destaca mais 285 todos eles estão cientes da gravidade de seu estado quer tenham sido informados ou não Nem sempre dizem que sabem a seu médico ou a parente próximo A razão disto é que é sempre doloroso falar desta realidade sendo que o paciente capta e aceita com prazer no momento qualquer mensagem explícita ou implícita para não se tocar no assunto Entretanto chegou uma hora em que todos os nossos pacientes sentiram necessidade de transmitir seus anseios de tirar a máscara de enfrentar a realidade e de cuidar de assuntos vitais enquanto ainda havia tempo Receberam com satisfação uma quebra de suas defesas acataram nosso desejo de conversar com eles sobre sua morte próxima e suas obrigações pendentes Queriam dividir com uma pessoa compreensiva alguns de seus sentimentos sobretudo os de raiva revolta inveja culpa e isolamento Mostraram claramente que se serviam da negação quando o médico ou o membro da família esperavam negação por dependerem deles e sentirem necessidade de manter um relacionamento Os pacientes não se incomodavam tanto quando o pessoal do hospital deixava de colocálos diante dos fatos diretamente mas se ressentiam muito quando eram tratados como crianças sem serem levados em consideração quando havia importantes decisões a serem tomadas Todos eles detectavam uma mudança na atitude e comportamento quando o resultado do diagnóstico era câncer e se conscientizavam da gravidade de seu estado graças à mudança de comportamento daqueles que os circundavam Em outras palavras quando não lhe diziam explicitamente o paciente vinha a saber de algum modo ou através das mensagens implícitas ou da mudança de comportamento dos parentes ou da equipe hospitalar Aqueles a quem era contado explicitamente eram quase unânimes em agradecer a oportunidade exceto quando a notícia era transmitida cruamente muitas vezes até nos corredores sem uma preparação prévia sem serem seguidos de perto ou então de uma maneira que eliminava qualquer perspectiva de esperança 286 Todos os nossos pacientes reagiram quase do mesmo modo com relação às más notícias o que é típico não só em casos de doença fatal mas parece ser uma reação humana a pressões fortes e inesperadas isto é com choque e descrença Muitos de nossos pacientes fizeram uso da negação que podia durar de alguns segundos até muitos meses como o atestam algumas entrevistas aqui relatadas Esta negação nunca é uma negação total Depois dela predominaram a raiva e a revolta manifestadas dos modos mais diversos como uma inveja dos que podiam viver e agir Esta raiva era parcialmente justificada e reforçada pelas reações da equipe e da família raiva quase irracional muitas vezes e por uma repetição de experiências pregressas como mostra o exemplo da Irmã I Quando os circunstantes conseguiam suportar esta raiva sem assumila pessoalmente ajudavam o paciente a alcançar o estágio temporário de barganha seguido pela depressão trampolim para a aceitação final O diagrama apresentado adiante mostra que um estágio não substitui o outro mas podem coexistir lado a lado às vezes até se justapondo Muitos pacientes atingiram a aceitação final sem nenhuma intervenção exterior outros necessitaram de assistência para superar os diferentes estágios e morrer dignamente em paz Qualquer que fosse o estágio da doença quaisquer que fossem os mecanismos de aceitação usados todos os nossos pacientes mantiveram até o último instante alguma forma de esperança Aqueles que foram informados do diagnóstico fatal sem perspectiva de saída sem um vislumbre de esperança reagiram da pior maneira possível e jamais se reconciliaram totalmente com a pessoa que lhes dera a notícia de modo tão cruel No que tange a nossos pacientes todos guardaram alguma esperança e é bom que nos lembremos disto Esta esperança pode vir sob a forma de uma descoberta nova um novo achado em pesquisa de laboratório ou sob a forma de uma nova droga ou soro pode vir como um milagre de Deus ou pela constatação de que a radiografia ou o quadro clínico pertence a outro paciente Pode vir sob a forma de um alívio que se deu naturalmente como o Sr J descreve com tanta eloqüência no 288 capítulo IX mas é esta esperança que se deve manter sempre não importa sob que forma Embora nossos pacientes gostassem muito de dividir suas preocupações conosco e falassem livremente sobre a morte e o morrer deixavam perceber também quando queriam mudar de assunto quando queriam falar novamente de coisas mais animadoras Todos eles reconheciam que era bom falar de seus sentimentos mas também sentiam necessidade de escolher o tempo e a duração Conflitos anteriores e mecanismos de defesa nos permitem predizer até certo ponto quais os mecanismos que um paciente usará por mais tempo nos momentos de crise Em geral pessoas simples com menos educação sofisticação laços sociais e obrigações profissionais parecem de certa forma ter menos dificuldade de enfrentar a crise final do que as pessoas ricas que perdem muito mais em termos de bens de conforto e número de relacionamentos interpessoais Parece que as pessoas que passaram uma vida de privações sofrimentos e trabalho árduo que criaram seus filhos e foram recompensadas em seu labor mostraram maior tranqüilidade em aceitar a morte com paz e dignidade quando comparadas com as que passaram a vida controlando ambiciosamente o mundo que as cercava acumulando bens materiais e um número enorme de relacionamentos sociais mas poucos relacionamentos interpessoais significativos que lhes fossem úteis no fim da vida Descrevemos este aspecto mais pormenorizadamente ao citar um exemplo no capítulo IV sobre a raiva Os pacientes que tinham religião pareciam diferir pouco dos que não a tinham É difícil estabelecer a diferença pois não ficou definido claramente o que caracteriza uma pessoa com religião Entretanto podemos dizer que encontramos bem poucas pessoas realmente religiosas possuidoras de fé profunda A essas a fé ajudou e são comparáveis aos poucos pacientes completamente ateus A maioria dos pacientes era um meiotermo com alguma forma de crença religiosa mas não tão forte que os libertasse de conflitos e medos 289 Quando nossos pacientes atingiam o estágio de aceitação e decatexia finais a interferência exterior era vista como um grande distúrbio e esta impediu que alguns pacientes morressem em paz e dignamente Este estágio é sinal de morte próxima e nos possibilitou prevêla em alguns pacientes em quem não havia sinal algum ou só um breve aceno sob o ponto de vista médico de que a morte se aproximava O paciente reage a um sistema sinalizador intrínseco que o avisa de sua morte iminente Podemos captar estas dicas sem conhecer exatamente quais os sinais psicofisiológicos que o paciente recebe Quando lhe perguntamos é capaz de provar sua certeza muitas vezes através de um pedido para que fiquemos a seu lado naquela hora já que sabe que amanhã será tarde demais Devemos ficar particularmente atentos quando nossos pacientes insistem deste modo pois podemos perder a única chance de ouvilos enquanto ainda há tempo Nosso seminário interdisciplinar sobre o estudo dos pacientes em fase terminal tornouse uma abordagem didática aperfeiçoada e bem aceita freqüentado semanalmente por mais de cinqüenta pessoas de diferentes formações disciplinas e interesses As salas de aula talvez sejam das poucas em que o pessoal do hospital se reúne informalmente para debater sob ângulos diferentes as necessidades dos pacientes e o cuidado que exigem Apesar do número sempre crescente de estudantes o seminário às vezes parece uma sessão de terapia de grupo onde os participantes falam francamente de suas reações e fantasias no confronto com o paciente aprendendo assim alguma coisa sobre o próprio comportamento e as próprias motivações Estudantes de medicina e teologia recebem um certificado acadêmico por este curso e têm escrito trabalhos de fôlego sobre o assunto Em suma tornouse parte do currículo de muitos estudantes que no início de suas carreiras se deparam com pacientes em fase terminal e se preparam para cuidar deles com menos receios quando estiverem sob sua responsabilidade Especialistas e profissionais mais antigos têm visitado o 290 seminário trazendo a contribuição de sua experiência prática fora dos hospitais Enfermeiras assistentes sociais administradoras e terapeutas ocupacionais têm contribuído para o diálogo interdisciplinar e uma disciplina ensina às outras alguma coisa sobre os encargos e esforços profissionais Criou se uma mútua compreensão e uma maior consideração tanto pelo intercâmbio de responsabilidades divididas quanto principalmente pela aceitação mútua da expressão franca de nossas reações medos e fantasias Se um médico admite perante os outros que sentiu arrepios ao ouvir determinado paciente então sua enfermeira pode ficar mais à vontade para confessar suas sensações mais íntimas sobre a situação Uma paciente traduziu com mais eloqüência esta mudança de ambiente Numa hospitalização anterior ela nos chamou para falar da mágoa e da raiva que sentia pelo isolamento e pela solidão a que a relegaram numa determinada ala Tivera uma recaída inesperada e veio nos visitar pela segunda vez quando da nova hospitalização Foi para um quarto da mesma ala antes e quis voltar ao seminário para nos confessar sua surpresa ao encontrar um ambiente completamente mudado Imagine só disse ela que agora uma enfermeira entra em meu quarto sem nenhuma pressa e pergunta se eu gostaria de conversar um pouco Não dispomos de prova alguma de que tenham sido o seminário e uma tranqüilidade maior das enfermeiras que ope raram tal transformação mas constatamos também mudanças nesta ala específica corroboradas pelas boas referências de médicos enfermeiras e demais pacientes em fase terminal Contudo talvez a mudança mais palpável seja o fato de sermos consultados pelos próprios membros das equipes sinal de uma maior tomada de consciência de seus conflitos que podem interferir num trabalho mais cuidadoso com o paciente Ultimamente temos recebido solicitações inclusive de pacientes em fase terminal e seus familiares fora do âmbito hospitalar para que exerçam pequenas atividades na organização do seminário dando assim um sentido novo à vida deles e de outros em situação idêntica 291 Em lugar de sociedades dedicadas à criogenia talvez devamos criar associações que tratem dos problemas da morte e do morrer incentivando os diálogos sobre este assunto e ajudando as pessoas a viverem sem medo até que a morte chegue Um estudante escreveu em um trabalho que o fato de falarmos muito pouco da morte em si mesma talvez fosse o aspecto mais surpreendente deste seminário Foi Montaigne quem disse que a morte é apenas um instante quando o morrer termina Aprendemos que a morte em si não é um problema para o paciente mas o medo de morrer nasce do sentimento de desesperança de desamparo e isolamento que a acompanha Aqueles que freqüentaram o seminário e se concentraram nestas coisas externaram livremente seus sentimentos e concluíram que algo pode ser feito não só encarar os pacientes com menos ansiedade mas sentirse bem diante da perspectiva da própria morte 292 XII Terapia com os doentes em fase terminal A morte pertence à vida como pertence o nascimento O caminhar tanto está em levantar o pé como em pousálo no chão Tagore Pássaros errantes CCXVII Como vimos está claro que o paciente em fase terminal tem necessidades muito especiais que podem ser atendidas se tivermos tempo para nos sentar ouvir e descobrir quais são Contudo o mais importante talvez seja deixarmos perceber que estamos prontos e dispostos a partilhar algumas de suas preocupações O trabalho com o paciente moribundo requer uma certa maturidade que só vem com a experiência Temos de examinar detalhadamente nossa posição diante da morte e do morrer antes de nos sentarmos tranqüilos e sem ansiedade ao lado de um paciente em fase terminal A entrevista de abertura é um encontro entre duas pessoas que podem se comunicar sem medo e sem ansiedade O terapeuta médico capelão ou quem quer que assuma este papel tentará através de palavras ou ações fazer com que o paciente sinta que não vai sair correndo se forem mencionados os termos câncer ou morrer O paciente entenderá essa dica e se abrirá ou fará com que o entrevistador perceba que a mensagem o agrada embora não seja o momento certo O paciente deixará que essa pessoa perceba quando ele estiver disposto a transmitir seus anseios e o terapeuta o assegurará de que voltará no momento oportuno Muitos de nossos pacientes não 293 tiveram mais do que esta entrevista inicial Às vezes agarravamse à vida por causa de algum assunto pendente preocupavamse com uma irmã retardada porque não haviam encontrado quem pudesse cuidar dela caso morressem ou não tinham conseguido arranjar quem pudesse tomar conta das crianças e precisavam comunicar a alguém esta preocupação Alguns tinham sentimentos de culpa por algum pecado real ou imaginário e se sentiam bastante aliviados quando lhes oferecíamos a oportunidade de confessálo sobretudo na presença de um capelão Todos estes pacientes sentiamse melhor depois das confissões ou depois que se tomavam providências quanto ao cuidado de terceiros e geralmente morriam logo após ter sido resolvido o assunto pendente É raro que um temor injustificado seja obstáculo para um paciente morrer como por exemplo no caso da mulher que tinha muito medo de morrer porque não concebia a idéia de ser devorada pelos vermes capítulo IX Tinha verdadeira fobia pelos vermes e ao mesmo tempo sabia bem que isto não passava de um absurdo Ela mesma achava que isto era uma grande tolice mas se sentia incapaz de dizer aos familiares que já haviam gasto todas as economias com as diversas hospitalizações Depois de uma entrevista esta senhora idosa foi capaz de nos confessar seus temores e sua filha a ajudou nos preparativos para a cremação Foi uma paciente que morreu também logo depois da oportunidade de comunicar seu medo É impressionante como uma sessão pode aliviar um paciente de uma carga pesada e sempre nos perguntamos por que é tão difícil para a equipe hospitalar e para a família perceberem as necessidades do paciente quando geralmente bastaria apenas uma pergunta sincera e franca Embora o Sr E não fosse um paciente em fase terminal usaremos seu caso para dar um exemplo típico de uma entrevista de abertura E pertinente porque o Sr E apresentouse como moribundo em conseqüência de conflitos 294 não resolvidos acelerados pelo falecimento de um indivíduo potencialmente morto O sr E era um judeu de oitenta e três anos de idade e foi internado num hospital particular com anorexia constipação e perda excessiva de peso Queixavase de dores abdominais insuportáveis e seu aspecto era de cansaço e abatimento Seu estado geral era de depressão e chorava facilmente O resultado de um exame médico rigoroso foi negativo e por isso o residente pediu a opinião dos psiquiatras Foi entrevistado numa sessão diagnósticoterapêutica na presença de vários estudantes Não se sentindo embaraçado com esta companhia foi muito fácil falar sobre seus problemas pessoais Contou que estava bem até quatro meses antes de sua internação quando de repente tornouse um homem velho doente e solitário Interrogado mais tarde revelou que perdera uma cunhada algumas semanas antes que começasse a se queixar e sua apática mulher morrera subitamente estando ele de férias fora da cidade duas semanas antes que seus males se manifestassem Estava com raiva de seus parentes que não vinham vê lo quando os esperava Reclamava do serviço de enfermagem e em geral mostravase descontente com os cuidados que recebia de quem quer que fosse Estava certo de que seus parentes viriam imediatamente se lhes pudesse prometer uns bons milhares de dólares quando eu morrer Falou detalhadamente de um alojamento onde vivia com outras pessoas idosas e de uma viagem de férias para a qual todos haviam sido convidados Era patente que sua raiva se relacionava com o fato de ser pobre e ser pobre queria dizer obrigação de fazer a viagem pois estava programada para todos portanto ele não tinha escolha Ficou claro mais tarde que ele se culpava por estar fora de casa quando a mulher foi hospitalizada e tentava transferir sua culpa para os organizadores da viagem de férias 295 Quando lhe perguntamos se não se sentia abandonado pela esposa e era incapaz de admitir que tinha raiva dela despejou uma avalanche de sentimentos amargos onde transparecia a incapacidade de entender por que ela o abandonara para ficar com um irmão que ele chamava de nazista por que criara seu único filho como se não fosse judeu e finalmente por que o deixara só quando mais precisava dela Sentindose extremamente culpado e envergonhado por estes sentimentos negativos para com a falecida transferiaos para os parentes e a equipe hospitalar Convencerase de que deveria ser punido por todos estes maus pensamentos e suportar muita dor e sofrimento para aliviar a culpa Dissemoslhe simplesmente que compreendíamos aqueles sentimentos confusos aliás muito humanos que qualquer um pode ter Perguntamos também à queimaroupa se ele não poderia descobrir alguma forma de raiva contra a exesposa e nos dizer nas futuras visitas Respondeu Se esta dor não sumir terei de saltar pela janela ao que revidamos Talvez o que lhe causa dor sejam todos aqueles sentimentos de ira e frustração recalcados Arranqueos de si sem se envergonhar e suas dores provavelmente desaparecerão É claro que foi embora mais confuso porém pediu para que o visitássemos novamente O residente que o acompanhou até o quarto ficou impressionado de ver como ele ficou largado na cadeira Reiterou o que disséramos na entrevista fazendo ver que as reações dele eram normais Depois disso o Sr E endireitouse e voltou para o quarto numa posição mais ereta Ao visitálo no dia seguinte soubemos que mal permanecera no quarto Passara a maior parte do dia em contatos sociais visitando a lanchonete saboreando suas refeições Sua dor e sua constipação tinham desaparecido Depois de duas evacuações na noite da entrevista sentiuse melhor do que nunca e fez planos de reassumir algumas de suas atividades pregressas quando recebesse alta 296 No dia da alta sorriu e contou alguns dos melhores dias que passara com sua esposa Falou também na mudança de atitude perante o pessoal do hospital a quem dei tanto trabalho e perante seus parentes sobretudo seu filho a quem chamou para se conhecerem melhor porque ambos podemos nos sentir um pouco solitários de vez em quando Reafirmamos que estaríamos ao seu dispor caso tivesse mais problemas físicos ou emocionais e ele respondeu sorrindo que havia aprendido uma boa lição e podia agora encarar a morte com serenidade O exemplo do Sr E mostra como estas entrevistas podem ser benéficas para quem não está doente de fato mas por causa da idade ou simplesmente porque não é capaz de superar o falecimento de um indivíduo potencialmente morto sofre muito e pensa que a aflição física ou emocional é um meio de aliviar sentimentos de culpa por desejos reprimidos e hostis por pessoas falecidas Este senhor não tinha tanto medo da morte mas temia morrer antes que tivesse pago por estes desejos de destruição para com alguém que morrera sem lhe ter dado chance de se retratar por isto Sofria dores atrozes como um meio de dirimir seu medo de punição e transferia muito de sua hostilidade e raiva contra a equipe do hospital e os parentes sem ter consciência plena das razões de tanto ressentimento É surpreendente como uma simples entrevista pode revelar muitos dados iguais a estes como algumas frases elucidativas confirmando que estes sentimentos de amor e ódio são humanos e compreensíveis e não exigem um preço absurdo podem aliviar tantos sintomas somáticos Para os pacientes que não têm um problema único e simples para resolver é útil a terapia de curta duração que não requer necessariamente a intervenção de um psiquiatra mas de uma pessoa compreensiva que disponha de tempo para se sentar e ouvir Estou pensando em pacientes como a Irmã I que visitamos em muitas ocasiões e que recebia tratamento através 297 de nós e de outros pacientes Estes são os pacientes que têm a ventura de dispor de tempo para superar alguns de seus conflitos enquanto estão doentes que podem chegar a uma compreensão mais profunda e talvez a uma apreciação maior das coisas que ainda têm para desfrutar Estas sessões de terapia como as sessões rápidas de psicoterapia com pacientes em fase terminal são irregulares na freqüência e na duração São programadas individualmente dependendo do estado físico do paciente da capacidade e da disposição de falar num determinado momento Geralmente incluem visitas curtas de poucos minutos para cientificálos de nossa presença mesmo nas ocasiões em que não desejam conversar Continuam com maior freqüência quando o paciente está em piores condições e com mais dores assumindo mais a forma de uma companhia silenciosa do que de uma comunicação verbal Freqüentemente nos indagamos se não seria aconselhável uma terapia de grupo com uma turma selecionada de pacientes em fase terminal já que muitas vezes partilham da mesma solidão e do mesmo isolamento Os que trabalham em alas onde há pacientes em fase terminal conhecem muito bem as interações que ocorrem entre os pacientes e as frases úteis que um paciente gravemente enfermo diz a outro Sempre nos admiramos de como nossas experiências no seminário passam de um paciente desenganado para outro recebemos até dados informativos sobre um paciente fornecidos por outro Temos observado sentados no saguão do hospital pacientes que foram entrevistados no seminário e continuaram suas sessões informais como membros de uma fraternidade Até agora deixamos este intercâmbio a critério dos pacientes mas atualmente estamos examinando suas motivações para um encontro mais formal já que este parece ser o desejo de pelo menos um pequeno grupo de nossos pacientes Nele estão incluídos os pacientes que têm doenças crônicas e que são forçados a muitas hospitalizações que já se conhecem há muito tempo e que além de sofrerem do mesmo mal guardam as mesmas recordações de hospitalizações anteriores Ficamos impressionados com a sua reação quase alegre quando um dos 298 colegas morre o que é apenas uma confirmação da certeza inconsciente que têm de que acontece com você mas não comigo Talvez seja também um fator que contribui para que tantos pacientes e seus familiares como a Sra G capítulo VII sintam tanta satisfação em visitar outros pacientes talvez em estado mais grave A Irmã I se servia destas visitas para expressar hostilidade sobretudo para arrancar dos pacientes quais as necessidades deles e provar às enfermeiras que elas não eram eficientes capítulo IV Ajudandoos como enfermeira ela poderia não só negar temporariamente sua própria incapacidade de agir como também externar sua raiva daqueles que gozavam de saúde e que não eram capazes de atender o doente com mais eficiência Ter pacientes assim num esquema de terapia de grupo seria de grande ajuda para que entendessem seu comportamento e ao mesmo tempo ajudaria a equipe de enfermagem no sentido de se tornar mais atenta às necessidades deles A Sra F é outra paciente a ser lembrada por ter começado uma terapia de grupo informal entre ela e alguns pacientes jovens gravemente enfermos hospitalizados com leucemia ou com a doença de Hodgkin de que ela sofria há mais de vinte anos Durante os últimos anos ela tivera uma média de seis hospitalizações por ano o que contribuiu para uma completa aceitação de sua doença Um dia foi internada uma jovem de dezenove anos de idade Ann amedrontada com sua doença e a seqüela incapaz de dividir este medo com quem quer que fosse Seus pais tinham se recusado a tocar no assunto então a Sra F tornouse sua conselheira extraoficial Falou de seus filhos de seu marido e da casa de que cuidara durante tantos anos apesar das várias hospitalizações dando ensejo para que Ann finalmente contasse suas preocupações e lhe fizesse perguntas importantes Quando Ann saiu do hospital mandou outra jovem para a Sra F criandose assim uma reação em cadeia de dados informativos bem semelhante à terapia de grupo em que um paciente toma o lugar do outro O grupo raramente excedia de duas ou três pessoas e se mantinha unido enquanto os membros estavam no hospital 299 O silêncio que vai além das palavras Há um momento na vida do paciente em que a dor cessa em que a mente entra num estado de torpor em que a necessidade de alimentação tornase mínima em que a consciência do meio ambiente quase que desaparece na escuridão É o período em que os parentes andam para lá e para cá nos corredores dos hospitais atormentados pela expectativa sem saber se podem sair para cuidar da vida ou se devem ficar por ali esperando o instante da morte É o momento em que é tarde demais para palavras em que os parentes gritam mais alto por socorro com ou sem palavras É tarde demais para intervenções médicas que são duras demais quando acontecem apesar da boa intenção mas é também cedo demais para uma separação final do agonizante É o momento mais difícil para um parente próximo pois ele também deseja que tudo passe que tudo termine ou agarrase desesperadamente a alguma coisa que está prestes a perder para sempre É o momento da terapia do silêncio para com o paciente e de disponibilidade para com os parentes O médico a enfermeira a assistente social ou o capelão podem ser de grande valia nestes momentos finais se souberem entender os conflitos da família nesta hora e ajudar a escolher uma pessoa mais tranqüila para ficar ao lado do agonizante pessoa que se torna de fato o terapeuta do paciente Os que se sentem abatidos demais podem receber assistência sendo aliviados de sua culpa ou assegurados de que alguém ficará com o moribundo até o desenlace Podem então voltar para casa sabendo que o paciente não morrerá sozinho sem se sentirem culpados ou envergonhados por se terem esquivado deste momento para muitos tão difícil de enfrentar Aqueles que tiverem a força e o amor para ficar ao lado de um paciente moribundo com o silêncio que vai além das palavras saberão que tal momento não é assustador nem doloroso mas um cessar em paz do funcionamento do corpo Observar a morte em paz de um ser humano faznos lembrar uma estrela cadente É uma entre milhões de luzes do céu 300 imenso que cintila ainda por um breve momento para desaparecer para sempre na noite sem fim Ser terapeuta de um paciente que agoniza é nos conscientizar da singularidade de cada indivíduo neste oceano imenso da humanidade É uma tomada de consciência de nossa finitude de nosso limitado período de vida Poucos dentre nós vivem além dos setenta anos ainda assim nesse curto espaço de tempo muitos dentre nós criam e vivem uma biografia única e nós mesmos tecemos a trama da história humana 301 Cintilante é a água em uma bacia escura é a água no oceano A pequena verdade tem palavras que são claras a grande verdade tem grande silêncio Tagore Pássaros errantes CLXXVI 302 Bibliografia Abrams R D and Finesinger J E Guilt Reactions in Patients with Cancer Cancer Vol VI 1953 pp 474482 Aldrich C Knight The Dying Patients Grief Journal of the American Medical Association Vol 184 N 5 May 4 1963 pp 329331 Alexander G H An Unexplained Death Coexistent with Death Wishes Psychosomatic Medicine Vol V 1943 p 188 Alexander Irving E and Alderstein Arthur M Affective Responses to the Concept of Death in a Population of Children and Early Adolescents in Death and Identity ed Robert Fulton New York John Wiley Sons Inc 1965 Allport Gordon The Individual and His Religion New York The Macmillan Company 1950 Anderson George Christian Death and Responsibility 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