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Ensaios de nacionalidade cordialidade cidadania e desterro na obra de Sérgio Buarque de Holanda Essays on Nationality Cordiality Citizenship and Exile in the Works of Sérgio Buarque de Holanda Edgar Salvadori de Decca1 Resumo A questão de quem somos foi levantada no século 19 com a consolidação do Estado nacional no Brasil e permaneceu como nossa indagação mais urgente tornandose a partir dessa época uma verdadeira obsessão da intelectualidade no Brasil Dessa indagação do ser nacional projetamse todos os modelos políticos da intelectualidade brasileira desde o século 19 Este texto observa como a obra de Sérgio Buarque de Holanda enquadrase nessa perspectiva reformulandoa Palavraschave Sérgio Buarque de Holanda Nacionalidade Cordialidade Sérgio Buarque de Holanda um historiador cuja obra origina se na idéia do desterro Surpreendamse porque Sergio ao mesmo tempo em que pensa as raízes da nacionalidade desenraizase Talvez a obra que eu vá analisar mais detidamente nesta conferência seja uma obra de desterro porque Raízes do Brasil obra que nós vamos estar nos referindo é uma obra que foi concebida no exterior Concebida nos anos que Sérgio Buarque viveu na Alemanha Portanto é uma experiência de olhar o Brasil de uma maneira estrangeira Quase que desterrado longe da sua própria terra Depois de muitos anos precisamente na década de cinqüenta esse olhar estrangeiro seria dirigido à Portugal na época dos descobrimentos E esse olhar estrangeiro produziu uma instigante tese de mestrado que está até hoje inédita entre nós No entanto mesmo não sendo matéria dessa conferencia devemos lembrar que esse olhar das fronteiras é marcante 1 Edgar Salvadori de Decca é Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas UNICAMP Edgar Salvadori de Decca 146 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 na obra de Sergio desde Raízes do Brasil debruçandose sobre as fronteiras da Europa Esse olhar como já disse anteriormente é fundamental para a construção de sua tese de mestrado No entanto precisamos insistir em outro ponto porque é o outro caminho de minha pesquisa na historiografia de Sergio a fronteira do Oeste tornou se privilegiada em toda a sua obra destacandose as incursões nas fronteiras na obra Monções Caminhos e Fronteiras e no seu texto póstumo inacabado O Extremo Oeste preparado com carinho pelo historiador amigo de Sergio José Sebastião Witter Entre a primeira concepção de fronteira e a segunda há enormes diferenças A primeira é tributária da obra de Ranke entendida a fronteira como território ponte e a segunda concepção inspirada em Frederick Turner nos sugere a fronteira como lugar da história posto que nelas as culturas estabelecem as suas identidades e diferenças No entanto não tratarei desse assunto nesta conferencia muito embora eu possa voltar ao assunto no momento das questões Sérgio Buarque tem uma trajetória extremamente peculiar do ponto de vista historiográfico Eu gostaria de primeiramente dar um panorama sucinto dos momentos mais marcantes da trajetória intelectual de Sergio Buarque O primeiro momento marcante da obra de Sérgio Buarque é justamente o livro que está sendo objeto da nossa reflexão Raízes do Brasil livro esse escrito e publicado em 1936 mas segundo depoimentos do próprio autor todo ele concebido na Alemanha Na verdade nessa viagem ele deveria ter ido a Moscou para conhecer o primeiro país de experiência comunista na história Sérgio Buarque tinha essa missão a convite de um jornal brasileiro e a sua viagem se frustrou e ele acabou passando quase dois anos na Alemanha aonde ele teria escrito uma obra de quatrocentas páginas texto esse que jamais localizado Apesar do arquivo de Sérgio Buarque pertencer hoje a Unicamp não se tem conhecimento desse texto Mesmo assim muitos biógrafos do autor se referiram a essa suposta obra que ele teria escrito na Europa cujo título seria Uma teoria da América É possível perceber essa teoria da América em Raízes do Brasil O livro é construído por um sistema de oposições que durante todo o tempo relaciona a cultura ibérica nas suas dimensões lusitanas e espanholas Os elementos que Sérgio Buarque tenta encontrar dessa formação histórica da América Latina estariam traduzidos em uma teoria geral com pontos em comum com o que significa essa Europa fronteiriça pós Pirineus que seria a Europa ibérica já quase próxima à África e com a sua ponte para o continente americano Países fronteiriços que um historiador muito caro a Sérgio Buarque de Holanda Leopoldo Hank também pensava neles quando escreveu A formação da Europa Eram esses países fronteiriços da Europa como Portugal Espanha e a Rússia também Sérgio Buarque provavelmente idealizou a obra de Raízes do Brasil Ensaios de nacionalidade cordialidade cidadania e desterro na obra de Sérgio Buarque de Holanda 147 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 originalmente num tema maior que seria Uma teoria da América Essa Teoria da América portanto em 1936 iria se transformar na obra Raízes do Brasil Uma obra de desterro eu diria Uma obra de Sérgio desterrado na Alemanha e que em seguida se nós formos observar a trajetória historiográfica do autor veremos que há uma seqüência de trabalhos quase de caráter etnográfico em que Sérgio Buarque mergulha para dentro desse território de desterro que é o Brasil Livros que são significativos nesse sentido são Raízes do Brasil Monções Caminhos e fronteiras e Extremo Oeste De novo aparecem relações de desterro dentro da própria terra A questão da identidade ou da falta dela aparece em viagens historiográficas voltadas para o território do desterro As idéias dos próprios títulos são sugestiva s Extremo Oeste isto é a fronteira mais longínqua Caminhos e fronteiras dá a idéia de movimento do instável do móvel e do passageiro e a fronteira como uma noção de limite Sérgio Buarque portanto nesse período olha o desterro a partir de dentro Faz uma extrema interiorização da experiência de desterro Permanece durante anos como diretor daquilo que a gente conhece hoje como Museu da Independência do Brasil o Museu do Ipiranga Passado esse período Sérgio Buarque de Holanda nos surpreende com uma tese inédita um texto que jamais foi tornado público e que talvez algum dia com a anuência de sua família todos tenham oportunidade de conhecer Esse texto inédito é contemporâneo a outro texto que é uma cátedra que ele defende na USP em 1958 Visão do paraíso O texto inédito de Sérgio é uma tese de mestrado defendida em uma escola importantíssima de São Paulo que foi criada pelo empresariado industrial paulista em 1933 a Escola Livre de Sociologia e Política Essa escola tinha como projeto educacional a criação de uma liderança moderna em São Paulo voltada para as novas responsabilidades do empresariado perante a modernização do Brasil com o intuito de substituir as elites tradicionais formadas no bacharelismo um traço muito condenado por Sérgio Buarque de Holanda A sua tese de mestrado foi defendida justamente nessa escola criada pelo empresário Roberto Simonsen um dos grandes intelectuais e promotores da industrialização no Brasil Podemos dizer mais uma vez que se trata também de uma tese sobre o desterro A tese se intitula Elementos formadores da sociedade brasileira na época dos descobrimentos Três meses antes de defender a tese Visão do paraíso que também é um livro belíssimo de uma cultura fantástica cuja característica principal é mostrar a percepção que o estrangeiro tinha da América e como ele a idealizou a partir da própria Europa De novo os temas da fronteira do movimento e do desterro parecem são explorados por Sérgio e outra vez são temas que ele retoma com insistência Ao final da Exposição que acompanha esse Seminário o título da última sala é justamente Aventura cidadania e Edgar Salvadori de Decca 148 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 desterro Reunindo justamente esses elementos o aventureiro como um ser em movimento a cidadania que requer uma estabilização e o desterro que talvez seja o lugar da múltipla identidade Na noite de hoje eu vou me dedicar à análise de alguns elementos da obra de estréia de Sergio Buarque de Holanda Raízes do Brasil De todos aqueles autores dos anos 1930 conhecidos como intérpretes do Brasil Sérgio Buarque de Holanda desponta como o mais inventivo e instigante No famoso trio criado por Antonio Candido todos eles são reconhecidos como redescobridores do Brasil autores cuja formação intelectual deram novas interpretações sobre o ser brasileiro No entanto Sérgio Buarque acabou se destacando pela criação de uma tipologia do ser nacional absolutamente original e controversa Falamos dos autores que Antonio Candido se referiu Gilberto Freyre Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque A característica marcante da interpretação do Brasil criada por esses autores foi a utilização original de conceitos sociológicos em oposição aos conceitos raciais tão sobejamente utilizados por pensadores do Brasil até a década de vinte do século passado Sem dúvida essa distinção foi importante pois retirou o substrato de uma ideologia racial que caracterizava as interpretações do ser nacional Esse modelo de interpretação do Brasil baseado em caracteres raciais não era novo tampouco era também a preocupação de se definir quem somos nós Essa questão de quem somos foi levantada no século 19 com a consolidação do Estado nacional no Brasil e permaneceu como nossa indagação mais urgente tornandose a partir dessa época uma verdadeira obsessão da intelectualidade no Brasil Evidentemente a questão tem uma conotação absolutamente política porque ao definir quem somos definimos também os agentes legitimamente reconhecidos para a ação política Não é por acaso que essa questão tenha sido formulada na inauguração do Estado nacional brasileiro e tenha se tornado a indagação maior de toda a tradição intelectual do Brasil Dessa indagação política do ser nacional projetamse todos os modelos políticos da intelectualidade brasileira desde o século 19 Pois bem dizíamos que Sérgio Buarque de Holanda e os seus outros parceiros da década de 1930 enquadramse nessa perspectiva mas reformulandoa Evidentemente suas obras têm conotações políticas evidentes Tanto Sérgio como Freyre e Prado Júnior ao perguntarem quem somos preocuparamse com os destinos da nacionalidade e nesse sentido abriram o debate para novas direções com a expectativa de redefinição da presença dos sujeitos sociais novos na cena brasileira para se pensar a cidadania No entanto antes de mais nada devo adiantar o porquê de minha predileção pela obra de Sérgio Buarque e de qual obra estou me Ensaios de nacionalidade cordialidade cidadania e desterro na obra de Sérgio Buarque de Holanda 149 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 referindo Sérgio surgiu no cenário intelectual brasileiro nos anos 1920 junto com a geração conhecida como modernista Tinha na época não mais do que vinte anos Dirigiu periódicos fez ensaios de crítica literária em defesa de padrões novos e modernos para a cultura brasileira Posicionouse contrário à impostação e ao artificialismo de formas literárias adotadas pelo Parnasianismo e pelo espírito mimético de uma intelectualidade servil aos padrões estéticos vindos da Europa Dizia até que gostaria de abater a tiros os parnasianos na praia de Copacabana Excessos do modernista é claro mas sinal de uma postura intelectual pouco subserviente aos padrões das elites culturais brasileiras Sua impertinência tornouse um obstáculo para a própria permanência no grupo mais radical e desgostoso da vida literária dos anos 1920 abandonou tudo inclusive os seus livros e se dirigiu a um desterro dentro de sua própria pátria em Cachoeiro de Itapemirim do Espírito Santo onde dirigiu um pequeno jornal Por lá ficou até o final dos anos 20 quando foi convidado a viajar para a Europa como correspondente do jornal Diário da Noite com a tarefa de realizar uma viagem cultural e de conhecimento do país sede da primeira revolução comunista da história a União Soviética Para isso deveria ir à Alemanha e estabelecer contatos que o levariam para essa nova aventura cultural Sua estadia na Alemanha iria mudar os rumos da vida de Sérgio Buarque Não só não foi para a União Soviética como acabou se envolvendo com a vida da boemia literária de Berlim tendo a oportunidade de conviver com intelectuais do círculo de Stefan George e assistir a aulas do historiador Meinecke que lhe fez conhecer de perto a obra do sociólogo alemão Max Weber Nesse convívio entre a boemia e a universidade Sérgio começou a elaborar o seu projeto de reinterpretação do Brasil pensando numa nova perspectiva política para a sociedade brasileira Inicialmente sua pretensão foi muito maior do que uma análise do ser nacional Por suas ligações modernistas com a crítica literária latinoamericana Sérgio inicialmente pretendeu escrever um longo ensaio interpretativo intitulado Teoria da América Embora esse ensaio nunca tenha sido encontrado entre os escritos do autor Sérgio alega em algumas entrevistas que chegou ao Brasil no final do ano de 1930 com mais de 400 páginas escritas Verdade ou não pouco importa O certo é que já em 1935 Sérgio Buarque traria a público aquele que seria o núcleo de seu livro mais importante Raízes do Brasil Convidado pela Revista Espelho Sérgio Buarque publica então Corpo e alma do Brasil ensaio de psicologia social Nesse artigo pouco conhecido entre nós Sérgio anuncia pela primeira vez a sua caracterização do Homem Cordial e que depois se consagraria como o conceito mais instigante e polêmico de seu livro de estréia Raízes do Brasil É importante assinalar contudo os passos dessa polêmica em que Sérgio se envolveu Embora muito evidente a sua dívida à Edgar Salvadori de Decca 150 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 sociologia de Max Weber tendo como baliza a constituição do tipo ideal capaz de assumir os elementos marcantes do caráter nacional Contudo são menos evidentes as outras filiações teóricas Por exemplo uma que me interessa particularmente é a presença da filosofia de Nietzsche na caracterização do homem cordial e suas relações com civilidade Sérgio se utiliza de uma citação de Zaratrusta logo no início do capítulo sobre o homem cordial que talvez seja a própria alma do homem cordial vosso mau amor de vós mesmos fez de vosso isolamento um cativeiro Essa é uma frase forte e marcante para a conscientização do homem cordial de Sérgio Mas não vamos nos adiantar demais Essa polêmica rendeu muitas páginas de tinta mas nem sempre agradou a Sérgio Seu maior crítico foi o poeta Cassiano Ricardo que confundiu o conceito de cordialidade com o de bondade coisa absolutamente distinta para Sérgio Buarque e também para críticos literários como Oswald de Andrade que vaticinou que o homem cordial tem no entanto dentro de si a sua própria oposição Ele sabe ser cordial como sabe ser feroz2 Afora esses malentendidos há ainda aqueles que consideram as análises de Sérgio simpáticas ao homem cordial como se o autor estivesse definitivamente seduzido pelo conceito que ele próprio criou Feitos todos os reparos é claro que os intérpretes do Brasil imbuíramse de uma tarefa que eles mesmos consideravam inadiável Isto é procuram subordinar e esta é uma característica dos intérpretes do Brasil a ação política aos imperativos ontológicos do ser nacional Em outras palavras segundo uma tradição já muito brasileira a ação política só seria eficaz se fôssemos capazes de responder quem somos Paradoxalmente essa dependência da política à ontologia do ser nacional retira aquele elemento de indeterminação e de liberdade da própria ação política que para ser uma ação criadora do novo deve se abstrair e até mesmo se desencadear ali onde há a ausência do ser Tendo esse horizonte de preocupações ontológicas para a orientação da política podemos entender melhor esses três grandes intelectuais que se formaram no Brasil dos anos 1920 Não são poucos os intelectuais latinoamericanos que remetem à ação política e também a condicionam numa ontologia do ser nacional Isto porque para a maioria dos intérpretes da nacionalidade o que somos é sempre a projeção de um outro isto é do dominador estrangeiro europeu Sérgio Buarque procura encontrar uma resposta para esse enigma identitário e que de certa forma tornase um obstáculo para a ação política no presente Apesar de ter escrito Raízes do Brasil na década de trinta do século 20 ele entra num debate que já havia se instalado entre a intelectualidade latinoamericana a partir pelo menos do período do modernismo Há outras obras emblemáticas sobre a questão da nacionalidade no continente Ensaios de nacionalidade cordialidade cidadania e desterro na obra de Sérgio Buarque de Holanda 151 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 americano destacandose entre elas pelo menos Os sertões de Euclides da Cunha Facundo de Domingo Sarmiento e também Ariel de Jose Enrique Rodó Contudo a análise de Raízes do Brasil nos remete para um texto ainda mais emblemático para o tratamento da questão da identidade nacional E talvez sob o meu ponto de vista e hoje conversando com o Silviano ele também vê muita familiaridade e aproximação do texto de Raízes do Brasil e o texto de Octávio Paz e que eu passo a transcrever um pequeno trecho dos signos de Signos em rotação de Octávio Paz Ele assim como Sérgio Buarque fala de uma dimensão que é esse estranhamento de signos latinos americanos Diz Octávio Paz muito à semelhança de Sérgio Antes de ter existência própria começamos por ser uma idéia européia A Europa é o fruto de certo modo involuntário da história européia enquanto nós somos a sua criação premeditada Na Europa a realidade precedeu o nome A América pelo contrário começou por ser uma idéia O nome que nos deram nos condenou a ser um mundo novo Terra de eleição do futuro antes de ser a América já sabia como iria ser Mal se transplantou para nossas terras o imigrante europeu já perdia a sua realidade histórica deixava de Ter passado e convertiase em projétil para o futuro Um ser que não tem passado que não tem mais do que futuro é um ser de pouca realidade Americanos homens de pouca realidade homens de pouco peso Nosso nome nos condenava a ser projeto histórico de uma consciência alheia a européia3 Apesar de ser um texto anterior ao de Paz pareceme que o homem cordial de Sérgio Buarque começa a responder esta indagação do escritor mexicano Vejamos portanto a análise de Sérgio Buarque sobre aquele que seria a nossa maior contribuição para a civilização o homem cordial Há ainda uma outra observação no que se refere à obra de Sérgio Buarque Após a publicação de Raízes do Brasil que não é propriamente um livro de história mas uma análise histórica da formação nacional seguida de diagnósticos sociológicos e políticos o autor irá se dedicar quase exclusivamente ao aprofundamento do conhecimento daquele passado no qual o ser nacional se formou e se viu aprisionado Por esse motivo a história para Sérgio não deveria se tornar o apanágio dos poderosos e dos conservadores O passado não poderia se tornar letra morta nas mãos do historiador O historiador deveria reconstituílo para depois superálo não permitindo que o passado viesse a se consagrar como mito e como obstáculo para se pensar e agir no presente Edgar Salvadori de Decca 152 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 Agora podemos nos deter mais demoradamente no homem cordial de Sérgio Buarque Ele próprio nos sugere que essa expressão foi cunhada pelo escritor e poeta Ribeiro Couto ao afirmar que a contribuição brasileira para a civilização será a cordialidade Mas para completar a sugestiva idéia de Couto Sérgio vai buscar na história de nossa formação social a essência desse um ser social que segundo ele está desterrado em sua própria terra Não se trata de um estudo de nosso perfil psicológico entendido como uma entidade fixa e inalterável uma essência sem história Ao contrário apesar de pretender reconhecer a psicologia desse ser cordial Sérgio reconhece o homem cordial como um ser social e produto de nossa formação histórica Portanto um ser que ao mesmo tempo está preso ao passado mas também submerso na própria corrente da história No seu presente esse ser encontrase como dizer desterrado Isto é vive o drama desse lugar nenhum de ser uma periferia sem centro Isso porque a máscara que esse ser construiu para si pode estar em vias de esfacelamento pelas mudanças ocorridas em profundidade na sociedade e na história recente do Brasil O próprio Sérgio em certa ocasião chegou a dizer que a polêmica em torno do homem cordial estava desgastada porque estava se acendendo velas para um defunto frio Ora não se trata portanto como pretendeu Cassiano Ricardo de se fazer um juízo moral sobre a cordialidade Ela é algo que se impregna ao ser nacional e que pelo bem ou pelo mal e constitui o elemento mais sólido de nossa formação enquanto ser nacional segundo Sérgio Buarque Uma vez que a cordialidade deita suas raízes na história vejamos como ela foi criada De acordo com a definição de Sérgio o homem cordial seria antes de tudo um ser psicológico completamente avesso à civilidade em tudo que essa tem de formalidade regras e convenções Não é que o homem cordial não tenha esses traços ele os tem somente que de modo espontâneo Segundo Buarque a lhaneza no trato a hospitalidade a generosidade virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam representam com efeito um traço definitivo do caráter brasileiro na medida ao menos que permanece fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano informados no meio rural e patriarcal4 Isto é a máscara da civilidade que o indivíduo moderno constrói para si Como polidez além de espontânea é o instrumento que o retira de sua individualidade projetandoo para o viver social Em resumo o viver em sociedade seria para Sérgio Buarque um subterfúgio do homem cordial ao horror que ele tem de viver consigo mesmo como Nietzsche refere em Zaratrusta Para Sérgio no homem cordial a vida em sociedade é de certo modo uma libertação do verdadeiro pavor que ele sente em viver consigo mesmo em apoiarse sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência5 A cordialidade portanto não cabe juízo ético uma vez que é um elemento constitutivo de um ser e enraizado na historicidade Ensaios de nacionalidade cordialidade cidadania e desterro na obra de Sérgio Buarque de Holanda 153 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 desse ser social Nada mais estranho à cordialidade do que a suposição de que ela é necessariamente boa e que por outro lado seria sinônimo de concórdia e também estaria carregada de sentimentos positivos Segundo Buarque a inimizade pode muito bem ser cordial isto porque assim como a amizade ela também nasce do coração Em suma tanto uma como a outra nascem na espera do íntimo do familiar e do privado e não na esfera pública Ao contrário da inimizade ou da amizade na esfera pública desenvolveríamos o sentido racional de cooperação e assim o custo da constituição da esfera pública seria justamente o recuo dos sentimentos à esfera do privado Neste sistema de oposições entre a formação da esfera pública e o domínio do mundo privado vão se delineando no livro Raízes do Brasil de Sérgio Buarque os traços do homem cordial Em um comentário às críticas de Cassiano Ricardo Sérgio retoma essas questões que valem a pena ser transcritas Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade estranha por um lado a todo o formalismo e convencionalismo social não abrange por outro apenas e obrigatoriamente sentimentos positivos e de concórdia A inimizade pode ser tão cordial como a amizade nisto que uma e outra nascem do coração procedem assim da esfera do íntimo do familiar do privado Pertencem efetivamente para recorrer a termo consagrado pela moderna sociologia ao domínio dos grupos primários cuja unidade segundo observa o próprio elaborador do conceito não é somente de harmonia e de amor A amizade desde que abandona o âmbito circunscrito pelos sentimentos privados ou íntimos passa a ser quando muito benevolência posto que a imprecisão vocabular admita maior extensão ao conceito Assim como a inimizade sendo pública ou política não cordial se chamará mais precisamente hostilidade6 Após essa aguda citação de Sérgio podemos agora abordar outros aspectos do homem cordial As pretensões de Sérgio Buarque de construir uma teoria da América parecem ser muito procedentes quando analisamos a estrutura da obra Raízes do Brasil Toda ela é constituída em um sistema de oposições e a todo o momento da obra há o contraste entre a colonização espanhola e a colonização portuguesa Não que elas acabem dando resultados culturais e societários muito diferentes mas Buarque identifica traços de uma propensão racionalista na dominação espanhola da América principalmente no capítulo em que ele compara o traçado urbano das cidades coloniais percebemos que a atitude racionalista predomina entre os espanhóis ao passo que entre os portugueses o traçado é mais improvisado e se adapta Edgar Salvadori de Decca 154 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 melhor a paisagem e ao meio ambiente Opõese então o ladrilhador e o semeador título do capítulo de Sérgio Buarque Do lado espanhol o esforço na superação e retificação da paisagem agreste ato de vontade humana De outro nas palavras de Sérgio revelase na construção das cidades o espírito do português que foi levado mais pela rotina do que pela razão abstrata Em resumo a cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental não chega a contradizer o quadro da natureza e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem Nenhum rigor nenhum método nenhuma previdência sempre esse significativo abandono que exprime a palavra desleixo palavra que o escritor Aubrey Bell considerou tão tipicamente portuguesa como saudade e que no seu entender implica menos a falta de energia do que a íntima convicção de que não vale a pena7 Absorvido pela idéia de construir uma teoria da América que viesse a explicar os resultados da ocupação européia nos trópicos Sérgio Buarque faz uma afirmação surpreendente e que deixou muitos leitores estrangeiros perplexos Logo no primeiro parágrafo do livro Raízes do Brasil em sua primeira edição o autor diz Todo o estudo compreensivo da sociedade brasileira há de se destacar o fato verdadeiramente fundamental de constituirmos o único esforço bem sucedido e em larga escala de transplantação da cultura européia para uma zona de clima tropical8 Esse ponto de partida irá nortear toda a sua percepção histórica da formação da sociedade brasileira contrastandoa com outras sociedades latinoamericanas Sua tese não deixa de ser polêmica Segundo o autor o sucesso da colonização portuguesa em zonas tropicais deveuse justamente ao caráter mole e brando dessa ocupação isto é à capacidade adaptativa dos portugueses à paisagem tropical Contudo essa compreensão das raízes ibéricas de nacionalidade não fizeram do texto de Sérgio uma bandeira de tradicionalismo e conservadorismo Ao contrário abriu as brechas para a compreensão do sentido antropofágico da cultura nacional no seu nascedouro e que de certo modo se desvirtuou pela adoção de idéias completamente estranhas ao nosso ambiente cultural como foi o caso das elites culturais brasileiras no século 19 Nesse caso Sérgio referese abertamente à afetação de uma elite letrada que se criou no Brasil depois do processo de independência Na adoção de princípios liberais que pouco se enraizavam na nossa sociedade o homem cordial por sua própria preguiça tornouse o bacharel preocupado exclusivamente em exaltar as suas qualidades pessoais Aos poucos no afã de parecer civilizado o homem cordial de Sérgio abandona as suas próprias raízes formadoras e que propiciaram o Ensaios de nacionalidade cordialidade cidadania e desterro na obra de Sérgio Buarque de Holanda 155 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 sucesso da implantação de uma cultura européia nos trópicos adotando as formas artificiais de uma civilidade que lhe é estranha A pertinência do comentário de Sérgio sobre a afetação do homem cordial é importante de ser observada A dignidade e a importância que confere o título de doutor permitem ao indivíduo atravessar a existência com discreta compostura e em alguns casos podem libertálo da necessidade de uma caça incessante aos bens materiais que subjuga e humilha a personalidade O que importa salientar aqui é que a origem da sedução exercida pelas carreiras liberais vinculase estreitamente ao nosso apego quase exclusivo aos valores da personalidade O prestígio da palavra escrita da frase lapidar do pensamento inflexível o horror ao vago ao hesitante ao fluido que obrigam à colaboração ao esforço e por conseguinte a certa dependência e mesmo abdicação da personali dade têm determinado assiduamente a nossa formação espiritual Tudo quanto dispense qualquer trabalho mental aturado e fatigante as idéias claras lúcidas definitivas que favorecem uma espécie de atonia da inteligência parecemnos constituir a verdadeira essência da sabedoria9 Enfim lendo com atenção esses comentários podemos concluir que existem muito poucas análises tão sensíveis ao modo de adoção das idéias liberais em uma cultura permeada pelos valores do personalismo e do patriarcalismo Sérgio Buarque nos dá a perspectiva a partir da qual devemos avaliar o modo como ocorre a importação de idéias em nossa formação social Afinal sem deixar de lado as suas raízes o homem cordial se completou justamente pela adoção de uma máscara de civilidade O horror ao individual ao espírito de cooperação ao trabalho sistemático às condutas reguladas por normas e valores universais conduz o homem cordial ao suprasumo de sua autoimagem isto é ao espírito de bacharelismo modelo acabado da adoção do liberalismo em um ambiente cultural que lhe é estranho Aqui entre nós o liberalismo se transforma num verniz superficial sem peso e profundidade porque atrás da máscara da civilidade encontrase aquele que tem o maior pavor da individualidade o homem cordial Por esse motivo há em nossa percepção de ser nacional uma sensação de desterro de sermos estranhos à nossa própria terra Isso porque o homem cordial aos poucos vai escondendo as suas raízes por detrás da máscara de polidez e civilidade Essa percepção de Sérgio Buarque foi muito bem apreciada por um amigo o crítico literário e escritor Sérgio Miliet Tecendo comentários sobre o homem cordial Miliet observa Edgar Salvadori de Decca 156 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 Essa mentalidade prática que se manifesta desde os primeiros e melhor se evidencia com o correr do tempo tanto na organização das estatísticas da colônia precisas e conduzidas em vista do aproveitamento econômico e sociológico dos dados como nas cartas dos missionários essa mentalidade que dá Camões um narrador e não Cervantes um sonhador é que faz o Brasil o milagre sulamericano Foi o que Sérgio Buarque soube compreender não sendo ele próprio afetado pela adesão aos formalismos10 Há nas análises de Sérgio Buarque sobre a cordialidade muitas sutilezas e que nem sempre foram percebidas pelos seus críticos O exemplo mais conhecido foi o da polêmica criada por Cassiano Ricardo Tal como ele outros críticos como Dante Moreira interpretaram o conceito de homem cordial associado à idéia de bondade No entanto o homem cordial faz da vida social um prolongamento de sua intimidade e por esse motivo podemos observar fenômenos de comoção de massas na história brasileira recente que não passam de manifestações coletivas de sentimentos privados Esse é um ponto importantíssimo da análise de Sérgio em que ele diz que a vida social e a esfera pública são coisas absolutamente distintas Um exemplo muito conhecido por nós foi a comoção dos brasileiros pela morte do piloto Airton Senna Mais do que nenhum outro ídolo Senna foi acalentado no recanto dos lares no íntimo e a emoção de suas conquistas transformouse em assunto doméstico e familiar deste povo endomingado que parece viver sempre num domingo Todas as emoções e sentimentos com relação ao ídolo pertenceram às manhãs de domingo na esfera da intimidade inclusive sua própria morte Afinal o ídolo das pistas acabou morrendo na sala de visitas de milhares de famílias brasileiras Aquelas manifestações coletivas e de grande impacto emocional durante o enterro do ídolo longe de se transformarem em ações públicas de consolidação da cidadania e da democracia foram vividas exclusivamente como momentos para extravasar sentimentos íntimos reprimidos confinados na esfera do privado Nesse caso não houve uma experiência de consolidação de uma esfera pública propriamente política Ora um exemplo como esse tem implicações profundas em nossa cultura Esse acontecimento aponta para o cálculo que devemos fazer para a instituição de uma ordem democrática entre nós Sérgio Buarque faz um cálculo muito importante Qual é o custo que nós temos ao abandonar o traço da cordialidade O custo de se viver em sociedade alheio a si mesmo tão ao gosto do homem cordial é muito grande e a sua preservação também se torna excessivamente alta Ao contrário de outras culturas nas quais prevalece o princípio Ensaios de nacionalidade cordialidade cidadania e desterro na obra de Sérgio Buarque de Holanda 157 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 da individualidade e a esfera pública pode ser mantida a um custo relativamente pequeno no nosso caso o custo de se abrir mão de viver no social é extremamente alto por isso que é difícil de constituir uma esfera pública entre nós Enfim não vale a pena o sacrifício em nome de uma maior ampliação da esfera pública e dos direitos da cidadania O homem cordial não quer entrar na esfera pública como indivíduo Muito pelo contrário no viver em sociedade ele pode justamente fugir do horror da individualidade A percepção histórica do homem cordial é nesse sentido dialética e nos orienta para a compreensão do porquê do sucesso da aventura portuguesa nos trópicos Mas ao mesmo tempo aponta os limites dessa aventura Sem os condicionantes psicológicos da cultura portuguesa projetada nos trópicos teria sido impossível a formação histórica do Brasil O aventureirismo a rotina a falta de imaginação capaz de projetar a nós mesmos para mundos utópicos artificiais fez com que uma cultura estrangeira se adaptasse ao novo ambiente Mas nesse sucesso está também o nosso fracasso porque ele impediu a criação entre nós de uma esfera pública ampla e democrática Ao contrário o homem cordial acabou favorecendo a criação de um estatismo que subtrai as energias da nossa frágil cidadania Na medida em que desvendamos o universo de reflexão de Sérgio Buarque vamos também revelando a sua vigorosa capacidade de apreensão do passado e da história Esse aspecto é muito importante em sua obra porque a história para ele não é um conhecimento encerrado na observação do passado mas uma apreensão das possibilidades da mudança social Por isso até os títulos de seus livros sugerem mudanças Caminhos e fronteiras Extremo Oeste etc Assim devemos encarar a sua percepção do homem cordial não como um dado imutável e irreversível de nossa formação mas como sistema de referências em permanente mudança em movimento e em transformação A percepção aguda da cordialidade não a congela não a isola mas situase no que ele chamaria de corrente móvel dos acontecimentos O trabalho de compreensão histórica do passado é justamente o oposto do sentimentalismo Aliás diria Sérgio Buarque Estamos aqui nos antípodas do sentimentalismo que este sim é naturalmente uma coisa ou uma época queremola com exclusividade e ciúme contra as outras coisas e contra outras épocas Por isso repito que o sentimentalismo é o que há de mais avesso ao senso do passado Não é próprio do historiador mas do mau antiquário O próprio do historiador não está em querer ver e enaltecer o passado no presente ou viceversa mas em reconhecer e estimar as formas diferentes que se sucedem através dos tempos11 Edgar Salvadori de Decca 158 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 Por se tratar de um historiador apegado aos sentidos da mudança sua análise da cordialidade em vez de fechar os nossos horizontes para novas opções abre um leque de reflexões de caráter alternativo fluido incerto mas rico em sugestões Na perspectiva assumida por Sérgio Buarque alinhamse os redescobridores do Brasil aos quais nos referimos no início desse artigo Não são pensamentos para serem cristalizados e isolados em sua historicidade Muito ao contrário esses autores abrem justamente o diálogo entre o passado e o presente não permitindo que os coloquemos em um pedestal perene como o próprio Sérgio Buarque dizia Uns mais do que outros descortinaram a cena da história brasileira fazendo surgir nuanças e vozes até então legadas pelo discurso dos historiadores Sérgio Buarque mostrouse atento aos novos modos de apreensão do passado e poderemos até acrescentar que as vozes resgatadas do silêncio nada mais seriam do que a reverberação no presente de uma nova esfera pública em vias de constituição Aqui o presente e passado poderiam se tocar e o homem cordial com o seu fundo afetivo personalista rotineiro estaria dando lugar para o cidadão de uma nova democracia brasileira Assim ao mesmo tempo em que novos sujeitos são resgatados do silêncio do passado no presente também a esfera pública renasce com novas demandas nova diversidade e também outra perplexidade Assim segundo Sérgio é dessas opiniões que se faz a história em grande parte e a história do Brasil em quase tudo Para estudar o passado de um povo de uma instituição de uma classe não basta aceitar fazer falar a multidão imensa dos figurantes mudos que enchem o panorama da história e são muitas vezes mais interessantes e mais importantes que os outros os que apenas escrevem a história12 Ao final desse percurso pelos meandros da cordialidade nos perguntamos uma outra vez quem somos e vamos concluindo pela escolha de uma postura política menos dependente de uma ontologia do ser nacional A obra de Sérgio Buarque nos serve de orientação Apesar de envolvido na questão da essência da nacionalidade Buarque não a petrificou e tampouco a tornou um obstáculo para a liberdade da ação política Aquilo que se espera da liberdade da ação política é que também se projete sobre ela um passado que não se tornou um pedestal perene mas que recriado pelo presente incite a mudança Talvez tenhamos que ficar atentos para as tentações do fraseado demagógico dos formalismos e das soluções abstratas e milagrosas tão comuns à cultura brasileira Por esse motivo a obra Raízes do Brasil termina com um parágrafo que pode ser uma advertência há um demônio pérfido e pretensioso que se ocupa em obscurecer aos nossos Ensaios de nacionalidade cordialidade cidadania e desterro na obra de Sérgio Buarque de Holanda 159 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 olhos estas verdades singelas Inspirados por ele os homens se vêem diversos do que são e criam novas preferências e repugnâncias É raro que sejam boas13 Abstract The question of Who Are We was raised in the nineteenth century with the consolidation of the national state in Brazil and it has remained our most urgent question becoming since that time a genuine obsession for Brazilian intellectuals Indeed from this quest to be national all the political ideas and models put forth by Brazilian intellectuals since the nineteenth century have emerged This text examines how the works of Sergio Buarge de Holanda fit into this perspective reformulating it Keyword Sérgio Buarque de Holanda Nationality Cordiality N o t as 2 Revista do Brasil n 6 1987 p 43 3 PAZ Octávio Signos em rotação Rio de Janeiro Perspectiva 1990 p 127 4 Raízes do Brasil 1997p 146 5 Corpo e alma do Brasil ensaio de psicologia social In Revista Espelho 1935 Republicado na Revista do Brasil n 6 p 34 1987 6 Raízes do Brasil p 205 7 Op cit p 110 8 Raízes do Brasil Livraria José Olympo 1936 p 3 9 Raízes do Brasil p 157158 10 Revista do Brasil n 6 p 98 1987 11 O senso do passado In Revista do Brasil n 6 p 82 1987 12 Introdução às memórias de Thomas Davatz In Maria Odila Dias Sérgio Buarque de Holanda São Paulo Ática 1985 p 173174 13 Raízes do Brasil p 188 Artigo recebido em 3 de agosto de 2006 e aprovado em 7 de novembro de 2006
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Ensaios de nacionalidade cordialidade cidadania e desterro na obra de Sérgio Buarque de Holanda Essays on Nationality Cordiality Citizenship and Exile in the Works of Sérgio Buarque de Holanda Edgar Salvadori de Decca1 Resumo A questão de quem somos foi levantada no século 19 com a consolidação do Estado nacional no Brasil e permaneceu como nossa indagação mais urgente tornandose a partir dessa época uma verdadeira obsessão da intelectualidade no Brasil Dessa indagação do ser nacional projetamse todos os modelos políticos da intelectualidade brasileira desde o século 19 Este texto observa como a obra de Sérgio Buarque de Holanda enquadrase nessa perspectiva reformulandoa Palavraschave Sérgio Buarque de Holanda Nacionalidade Cordialidade Sérgio Buarque de Holanda um historiador cuja obra origina se na idéia do desterro Surpreendamse porque Sergio ao mesmo tempo em que pensa as raízes da nacionalidade desenraizase Talvez a obra que eu vá analisar mais detidamente nesta conferência seja uma obra de desterro porque Raízes do Brasil obra que nós vamos estar nos referindo é uma obra que foi concebida no exterior Concebida nos anos que Sérgio Buarque viveu na Alemanha Portanto é uma experiência de olhar o Brasil de uma maneira estrangeira Quase que desterrado longe da sua própria terra Depois de muitos anos precisamente na década de cinqüenta esse olhar estrangeiro seria dirigido à Portugal na época dos descobrimentos E esse olhar estrangeiro produziu uma instigante tese de mestrado que está até hoje inédita entre nós No entanto mesmo não sendo matéria dessa conferencia devemos lembrar que esse olhar das fronteiras é marcante 1 Edgar Salvadori de Decca é Professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas UNICAMP Edgar Salvadori de Decca 146 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 na obra de Sergio desde Raízes do Brasil debruçandose sobre as fronteiras da Europa Esse olhar como já disse anteriormente é fundamental para a construção de sua tese de mestrado No entanto precisamos insistir em outro ponto porque é o outro caminho de minha pesquisa na historiografia de Sergio a fronteira do Oeste tornou se privilegiada em toda a sua obra destacandose as incursões nas fronteiras na obra Monções Caminhos e Fronteiras e no seu texto póstumo inacabado O Extremo Oeste preparado com carinho pelo historiador amigo de Sergio José Sebastião Witter Entre a primeira concepção de fronteira e a segunda há enormes diferenças A primeira é tributária da obra de Ranke entendida a fronteira como território ponte e a segunda concepção inspirada em Frederick Turner nos sugere a fronteira como lugar da história posto que nelas as culturas estabelecem as suas identidades e diferenças No entanto não tratarei desse assunto nesta conferencia muito embora eu possa voltar ao assunto no momento das questões Sérgio Buarque tem uma trajetória extremamente peculiar do ponto de vista historiográfico Eu gostaria de primeiramente dar um panorama sucinto dos momentos mais marcantes da trajetória intelectual de Sergio Buarque O primeiro momento marcante da obra de Sérgio Buarque é justamente o livro que está sendo objeto da nossa reflexão Raízes do Brasil livro esse escrito e publicado em 1936 mas segundo depoimentos do próprio autor todo ele concebido na Alemanha Na verdade nessa viagem ele deveria ter ido a Moscou para conhecer o primeiro país de experiência comunista na história Sérgio Buarque tinha essa missão a convite de um jornal brasileiro e a sua viagem se frustrou e ele acabou passando quase dois anos na Alemanha aonde ele teria escrito uma obra de quatrocentas páginas texto esse que jamais localizado Apesar do arquivo de Sérgio Buarque pertencer hoje a Unicamp não se tem conhecimento desse texto Mesmo assim muitos biógrafos do autor se referiram a essa suposta obra que ele teria escrito na Europa cujo título seria Uma teoria da América É possível perceber essa teoria da América em Raízes do Brasil O livro é construído por um sistema de oposições que durante todo o tempo relaciona a cultura ibérica nas suas dimensões lusitanas e espanholas Os elementos que Sérgio Buarque tenta encontrar dessa formação histórica da América Latina estariam traduzidos em uma teoria geral com pontos em comum com o que significa essa Europa fronteiriça pós Pirineus que seria a Europa ibérica já quase próxima à África e com a sua ponte para o continente americano Países fronteiriços que um historiador muito caro a Sérgio Buarque de Holanda Leopoldo Hank também pensava neles quando escreveu A formação da Europa Eram esses países fronteiriços da Europa como Portugal Espanha e a Rússia também Sérgio Buarque provavelmente idealizou a obra de Raízes do Brasil Ensaios de nacionalidade cordialidade cidadania e desterro na obra de Sérgio Buarque de Holanda 147 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 originalmente num tema maior que seria Uma teoria da América Essa Teoria da América portanto em 1936 iria se transformar na obra Raízes do Brasil Uma obra de desterro eu diria Uma obra de Sérgio desterrado na Alemanha e que em seguida se nós formos observar a trajetória historiográfica do autor veremos que há uma seqüência de trabalhos quase de caráter etnográfico em que Sérgio Buarque mergulha para dentro desse território de desterro que é o Brasil Livros que são significativos nesse sentido são Raízes do Brasil Monções Caminhos e fronteiras e Extremo Oeste De novo aparecem relações de desterro dentro da própria terra A questão da identidade ou da falta dela aparece em viagens historiográficas voltadas para o território do desterro As idéias dos próprios títulos são sugestiva s Extremo Oeste isto é a fronteira mais longínqua Caminhos e fronteiras dá a idéia de movimento do instável do móvel e do passageiro e a fronteira como uma noção de limite Sérgio Buarque portanto nesse período olha o desterro a partir de dentro Faz uma extrema interiorização da experiência de desterro Permanece durante anos como diretor daquilo que a gente conhece hoje como Museu da Independência do Brasil o Museu do Ipiranga Passado esse período Sérgio Buarque de Holanda nos surpreende com uma tese inédita um texto que jamais foi tornado público e que talvez algum dia com a anuência de sua família todos tenham oportunidade de conhecer Esse texto inédito é contemporâneo a outro texto que é uma cátedra que ele defende na USP em 1958 Visão do paraíso O texto inédito de Sérgio é uma tese de mestrado defendida em uma escola importantíssima de São Paulo que foi criada pelo empresariado industrial paulista em 1933 a Escola Livre de Sociologia e Política Essa escola tinha como projeto educacional a criação de uma liderança moderna em São Paulo voltada para as novas responsabilidades do empresariado perante a modernização do Brasil com o intuito de substituir as elites tradicionais formadas no bacharelismo um traço muito condenado por Sérgio Buarque de Holanda A sua tese de mestrado foi defendida justamente nessa escola criada pelo empresário Roberto Simonsen um dos grandes intelectuais e promotores da industrialização no Brasil Podemos dizer mais uma vez que se trata também de uma tese sobre o desterro A tese se intitula Elementos formadores da sociedade brasileira na época dos descobrimentos Três meses antes de defender a tese Visão do paraíso que também é um livro belíssimo de uma cultura fantástica cuja característica principal é mostrar a percepção que o estrangeiro tinha da América e como ele a idealizou a partir da própria Europa De novo os temas da fronteira do movimento e do desterro parecem são explorados por Sérgio e outra vez são temas que ele retoma com insistência Ao final da Exposição que acompanha esse Seminário o título da última sala é justamente Aventura cidadania e Edgar Salvadori de Decca 148 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 desterro Reunindo justamente esses elementos o aventureiro como um ser em movimento a cidadania que requer uma estabilização e o desterro que talvez seja o lugar da múltipla identidade Na noite de hoje eu vou me dedicar à análise de alguns elementos da obra de estréia de Sergio Buarque de Holanda Raízes do Brasil De todos aqueles autores dos anos 1930 conhecidos como intérpretes do Brasil Sérgio Buarque de Holanda desponta como o mais inventivo e instigante No famoso trio criado por Antonio Candido todos eles são reconhecidos como redescobridores do Brasil autores cuja formação intelectual deram novas interpretações sobre o ser brasileiro No entanto Sérgio Buarque acabou se destacando pela criação de uma tipologia do ser nacional absolutamente original e controversa Falamos dos autores que Antonio Candido se referiu Gilberto Freyre Caio Prado Júnior e Sérgio Buarque A característica marcante da interpretação do Brasil criada por esses autores foi a utilização original de conceitos sociológicos em oposição aos conceitos raciais tão sobejamente utilizados por pensadores do Brasil até a década de vinte do século passado Sem dúvida essa distinção foi importante pois retirou o substrato de uma ideologia racial que caracterizava as interpretações do ser nacional Esse modelo de interpretação do Brasil baseado em caracteres raciais não era novo tampouco era também a preocupação de se definir quem somos nós Essa questão de quem somos foi levantada no século 19 com a consolidação do Estado nacional no Brasil e permaneceu como nossa indagação mais urgente tornandose a partir dessa época uma verdadeira obsessão da intelectualidade no Brasil Evidentemente a questão tem uma conotação absolutamente política porque ao definir quem somos definimos também os agentes legitimamente reconhecidos para a ação política Não é por acaso que essa questão tenha sido formulada na inauguração do Estado nacional brasileiro e tenha se tornado a indagação maior de toda a tradição intelectual do Brasil Dessa indagação política do ser nacional projetamse todos os modelos políticos da intelectualidade brasileira desde o século 19 Pois bem dizíamos que Sérgio Buarque de Holanda e os seus outros parceiros da década de 1930 enquadramse nessa perspectiva mas reformulandoa Evidentemente suas obras têm conotações políticas evidentes Tanto Sérgio como Freyre e Prado Júnior ao perguntarem quem somos preocuparamse com os destinos da nacionalidade e nesse sentido abriram o debate para novas direções com a expectativa de redefinição da presença dos sujeitos sociais novos na cena brasileira para se pensar a cidadania No entanto antes de mais nada devo adiantar o porquê de minha predileção pela obra de Sérgio Buarque e de qual obra estou me Ensaios de nacionalidade cordialidade cidadania e desterro na obra de Sérgio Buarque de Holanda 149 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 referindo Sérgio surgiu no cenário intelectual brasileiro nos anos 1920 junto com a geração conhecida como modernista Tinha na época não mais do que vinte anos Dirigiu periódicos fez ensaios de crítica literária em defesa de padrões novos e modernos para a cultura brasileira Posicionouse contrário à impostação e ao artificialismo de formas literárias adotadas pelo Parnasianismo e pelo espírito mimético de uma intelectualidade servil aos padrões estéticos vindos da Europa Dizia até que gostaria de abater a tiros os parnasianos na praia de Copacabana Excessos do modernista é claro mas sinal de uma postura intelectual pouco subserviente aos padrões das elites culturais brasileiras Sua impertinência tornouse um obstáculo para a própria permanência no grupo mais radical e desgostoso da vida literária dos anos 1920 abandonou tudo inclusive os seus livros e se dirigiu a um desterro dentro de sua própria pátria em Cachoeiro de Itapemirim do Espírito Santo onde dirigiu um pequeno jornal Por lá ficou até o final dos anos 20 quando foi convidado a viajar para a Europa como correspondente do jornal Diário da Noite com a tarefa de realizar uma viagem cultural e de conhecimento do país sede da primeira revolução comunista da história a União Soviética Para isso deveria ir à Alemanha e estabelecer contatos que o levariam para essa nova aventura cultural Sua estadia na Alemanha iria mudar os rumos da vida de Sérgio Buarque Não só não foi para a União Soviética como acabou se envolvendo com a vida da boemia literária de Berlim tendo a oportunidade de conviver com intelectuais do círculo de Stefan George e assistir a aulas do historiador Meinecke que lhe fez conhecer de perto a obra do sociólogo alemão Max Weber Nesse convívio entre a boemia e a universidade Sérgio começou a elaborar o seu projeto de reinterpretação do Brasil pensando numa nova perspectiva política para a sociedade brasileira Inicialmente sua pretensão foi muito maior do que uma análise do ser nacional Por suas ligações modernistas com a crítica literária latinoamericana Sérgio inicialmente pretendeu escrever um longo ensaio interpretativo intitulado Teoria da América Embora esse ensaio nunca tenha sido encontrado entre os escritos do autor Sérgio alega em algumas entrevistas que chegou ao Brasil no final do ano de 1930 com mais de 400 páginas escritas Verdade ou não pouco importa O certo é que já em 1935 Sérgio Buarque traria a público aquele que seria o núcleo de seu livro mais importante Raízes do Brasil Convidado pela Revista Espelho Sérgio Buarque publica então Corpo e alma do Brasil ensaio de psicologia social Nesse artigo pouco conhecido entre nós Sérgio anuncia pela primeira vez a sua caracterização do Homem Cordial e que depois se consagraria como o conceito mais instigante e polêmico de seu livro de estréia Raízes do Brasil É importante assinalar contudo os passos dessa polêmica em que Sérgio se envolveu Embora muito evidente a sua dívida à Edgar Salvadori de Decca 150 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 sociologia de Max Weber tendo como baliza a constituição do tipo ideal capaz de assumir os elementos marcantes do caráter nacional Contudo são menos evidentes as outras filiações teóricas Por exemplo uma que me interessa particularmente é a presença da filosofia de Nietzsche na caracterização do homem cordial e suas relações com civilidade Sérgio se utiliza de uma citação de Zaratrusta logo no início do capítulo sobre o homem cordial que talvez seja a própria alma do homem cordial vosso mau amor de vós mesmos fez de vosso isolamento um cativeiro Essa é uma frase forte e marcante para a conscientização do homem cordial de Sérgio Mas não vamos nos adiantar demais Essa polêmica rendeu muitas páginas de tinta mas nem sempre agradou a Sérgio Seu maior crítico foi o poeta Cassiano Ricardo que confundiu o conceito de cordialidade com o de bondade coisa absolutamente distinta para Sérgio Buarque e também para críticos literários como Oswald de Andrade que vaticinou que o homem cordial tem no entanto dentro de si a sua própria oposição Ele sabe ser cordial como sabe ser feroz2 Afora esses malentendidos há ainda aqueles que consideram as análises de Sérgio simpáticas ao homem cordial como se o autor estivesse definitivamente seduzido pelo conceito que ele próprio criou Feitos todos os reparos é claro que os intérpretes do Brasil imbuíramse de uma tarefa que eles mesmos consideravam inadiável Isto é procuram subordinar e esta é uma característica dos intérpretes do Brasil a ação política aos imperativos ontológicos do ser nacional Em outras palavras segundo uma tradição já muito brasileira a ação política só seria eficaz se fôssemos capazes de responder quem somos Paradoxalmente essa dependência da política à ontologia do ser nacional retira aquele elemento de indeterminação e de liberdade da própria ação política que para ser uma ação criadora do novo deve se abstrair e até mesmo se desencadear ali onde há a ausência do ser Tendo esse horizonte de preocupações ontológicas para a orientação da política podemos entender melhor esses três grandes intelectuais que se formaram no Brasil dos anos 1920 Não são poucos os intelectuais latinoamericanos que remetem à ação política e também a condicionam numa ontologia do ser nacional Isto porque para a maioria dos intérpretes da nacionalidade o que somos é sempre a projeção de um outro isto é do dominador estrangeiro europeu Sérgio Buarque procura encontrar uma resposta para esse enigma identitário e que de certa forma tornase um obstáculo para a ação política no presente Apesar de ter escrito Raízes do Brasil na década de trinta do século 20 ele entra num debate que já havia se instalado entre a intelectualidade latinoamericana a partir pelo menos do período do modernismo Há outras obras emblemáticas sobre a questão da nacionalidade no continente Ensaios de nacionalidade cordialidade cidadania e desterro na obra de Sérgio Buarque de Holanda 151 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 americano destacandose entre elas pelo menos Os sertões de Euclides da Cunha Facundo de Domingo Sarmiento e também Ariel de Jose Enrique Rodó Contudo a análise de Raízes do Brasil nos remete para um texto ainda mais emblemático para o tratamento da questão da identidade nacional E talvez sob o meu ponto de vista e hoje conversando com o Silviano ele também vê muita familiaridade e aproximação do texto de Raízes do Brasil e o texto de Octávio Paz e que eu passo a transcrever um pequeno trecho dos signos de Signos em rotação de Octávio Paz Ele assim como Sérgio Buarque fala de uma dimensão que é esse estranhamento de signos latinos americanos Diz Octávio Paz muito à semelhança de Sérgio Antes de ter existência própria começamos por ser uma idéia européia A Europa é o fruto de certo modo involuntário da história européia enquanto nós somos a sua criação premeditada Na Europa a realidade precedeu o nome A América pelo contrário começou por ser uma idéia O nome que nos deram nos condenou a ser um mundo novo Terra de eleição do futuro antes de ser a América já sabia como iria ser Mal se transplantou para nossas terras o imigrante europeu já perdia a sua realidade histórica deixava de Ter passado e convertiase em projétil para o futuro Um ser que não tem passado que não tem mais do que futuro é um ser de pouca realidade Americanos homens de pouca realidade homens de pouco peso Nosso nome nos condenava a ser projeto histórico de uma consciência alheia a européia3 Apesar de ser um texto anterior ao de Paz pareceme que o homem cordial de Sérgio Buarque começa a responder esta indagação do escritor mexicano Vejamos portanto a análise de Sérgio Buarque sobre aquele que seria a nossa maior contribuição para a civilização o homem cordial Há ainda uma outra observação no que se refere à obra de Sérgio Buarque Após a publicação de Raízes do Brasil que não é propriamente um livro de história mas uma análise histórica da formação nacional seguida de diagnósticos sociológicos e políticos o autor irá se dedicar quase exclusivamente ao aprofundamento do conhecimento daquele passado no qual o ser nacional se formou e se viu aprisionado Por esse motivo a história para Sérgio não deveria se tornar o apanágio dos poderosos e dos conservadores O passado não poderia se tornar letra morta nas mãos do historiador O historiador deveria reconstituílo para depois superálo não permitindo que o passado viesse a se consagrar como mito e como obstáculo para se pensar e agir no presente Edgar Salvadori de Decca 152 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 Agora podemos nos deter mais demoradamente no homem cordial de Sérgio Buarque Ele próprio nos sugere que essa expressão foi cunhada pelo escritor e poeta Ribeiro Couto ao afirmar que a contribuição brasileira para a civilização será a cordialidade Mas para completar a sugestiva idéia de Couto Sérgio vai buscar na história de nossa formação social a essência desse um ser social que segundo ele está desterrado em sua própria terra Não se trata de um estudo de nosso perfil psicológico entendido como uma entidade fixa e inalterável uma essência sem história Ao contrário apesar de pretender reconhecer a psicologia desse ser cordial Sérgio reconhece o homem cordial como um ser social e produto de nossa formação histórica Portanto um ser que ao mesmo tempo está preso ao passado mas também submerso na própria corrente da história No seu presente esse ser encontrase como dizer desterrado Isto é vive o drama desse lugar nenhum de ser uma periferia sem centro Isso porque a máscara que esse ser construiu para si pode estar em vias de esfacelamento pelas mudanças ocorridas em profundidade na sociedade e na história recente do Brasil O próprio Sérgio em certa ocasião chegou a dizer que a polêmica em torno do homem cordial estava desgastada porque estava se acendendo velas para um defunto frio Ora não se trata portanto como pretendeu Cassiano Ricardo de se fazer um juízo moral sobre a cordialidade Ela é algo que se impregna ao ser nacional e que pelo bem ou pelo mal e constitui o elemento mais sólido de nossa formação enquanto ser nacional segundo Sérgio Buarque Uma vez que a cordialidade deita suas raízes na história vejamos como ela foi criada De acordo com a definição de Sérgio o homem cordial seria antes de tudo um ser psicológico completamente avesso à civilidade em tudo que essa tem de formalidade regras e convenções Não é que o homem cordial não tenha esses traços ele os tem somente que de modo espontâneo Segundo Buarque a lhaneza no trato a hospitalidade a generosidade virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam representam com efeito um traço definitivo do caráter brasileiro na medida ao menos que permanece fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano informados no meio rural e patriarcal4 Isto é a máscara da civilidade que o indivíduo moderno constrói para si Como polidez além de espontânea é o instrumento que o retira de sua individualidade projetandoo para o viver social Em resumo o viver em sociedade seria para Sérgio Buarque um subterfúgio do homem cordial ao horror que ele tem de viver consigo mesmo como Nietzsche refere em Zaratrusta Para Sérgio no homem cordial a vida em sociedade é de certo modo uma libertação do verdadeiro pavor que ele sente em viver consigo mesmo em apoiarse sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência5 A cordialidade portanto não cabe juízo ético uma vez que é um elemento constitutivo de um ser e enraizado na historicidade Ensaios de nacionalidade cordialidade cidadania e desterro na obra de Sérgio Buarque de Holanda 153 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 desse ser social Nada mais estranho à cordialidade do que a suposição de que ela é necessariamente boa e que por outro lado seria sinônimo de concórdia e também estaria carregada de sentimentos positivos Segundo Buarque a inimizade pode muito bem ser cordial isto porque assim como a amizade ela também nasce do coração Em suma tanto uma como a outra nascem na espera do íntimo do familiar e do privado e não na esfera pública Ao contrário da inimizade ou da amizade na esfera pública desenvolveríamos o sentido racional de cooperação e assim o custo da constituição da esfera pública seria justamente o recuo dos sentimentos à esfera do privado Neste sistema de oposições entre a formação da esfera pública e o domínio do mundo privado vão se delineando no livro Raízes do Brasil de Sérgio Buarque os traços do homem cordial Em um comentário às críticas de Cassiano Ricardo Sérgio retoma essas questões que valem a pena ser transcritas Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade estranha por um lado a todo o formalismo e convencionalismo social não abrange por outro apenas e obrigatoriamente sentimentos positivos e de concórdia A inimizade pode ser tão cordial como a amizade nisto que uma e outra nascem do coração procedem assim da esfera do íntimo do familiar do privado Pertencem efetivamente para recorrer a termo consagrado pela moderna sociologia ao domínio dos grupos primários cuja unidade segundo observa o próprio elaborador do conceito não é somente de harmonia e de amor A amizade desde que abandona o âmbito circunscrito pelos sentimentos privados ou íntimos passa a ser quando muito benevolência posto que a imprecisão vocabular admita maior extensão ao conceito Assim como a inimizade sendo pública ou política não cordial se chamará mais precisamente hostilidade6 Após essa aguda citação de Sérgio podemos agora abordar outros aspectos do homem cordial As pretensões de Sérgio Buarque de construir uma teoria da América parecem ser muito procedentes quando analisamos a estrutura da obra Raízes do Brasil Toda ela é constituída em um sistema de oposições e a todo o momento da obra há o contraste entre a colonização espanhola e a colonização portuguesa Não que elas acabem dando resultados culturais e societários muito diferentes mas Buarque identifica traços de uma propensão racionalista na dominação espanhola da América principalmente no capítulo em que ele compara o traçado urbano das cidades coloniais percebemos que a atitude racionalista predomina entre os espanhóis ao passo que entre os portugueses o traçado é mais improvisado e se adapta Edgar Salvadori de Decca 154 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 melhor a paisagem e ao meio ambiente Opõese então o ladrilhador e o semeador título do capítulo de Sérgio Buarque Do lado espanhol o esforço na superação e retificação da paisagem agreste ato de vontade humana De outro nas palavras de Sérgio revelase na construção das cidades o espírito do português que foi levado mais pela rotina do que pela razão abstrata Em resumo a cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental não chega a contradizer o quadro da natureza e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem Nenhum rigor nenhum método nenhuma previdência sempre esse significativo abandono que exprime a palavra desleixo palavra que o escritor Aubrey Bell considerou tão tipicamente portuguesa como saudade e que no seu entender implica menos a falta de energia do que a íntima convicção de que não vale a pena7 Absorvido pela idéia de construir uma teoria da América que viesse a explicar os resultados da ocupação européia nos trópicos Sérgio Buarque faz uma afirmação surpreendente e que deixou muitos leitores estrangeiros perplexos Logo no primeiro parágrafo do livro Raízes do Brasil em sua primeira edição o autor diz Todo o estudo compreensivo da sociedade brasileira há de se destacar o fato verdadeiramente fundamental de constituirmos o único esforço bem sucedido e em larga escala de transplantação da cultura européia para uma zona de clima tropical8 Esse ponto de partida irá nortear toda a sua percepção histórica da formação da sociedade brasileira contrastandoa com outras sociedades latinoamericanas Sua tese não deixa de ser polêmica Segundo o autor o sucesso da colonização portuguesa em zonas tropicais deveuse justamente ao caráter mole e brando dessa ocupação isto é à capacidade adaptativa dos portugueses à paisagem tropical Contudo essa compreensão das raízes ibéricas de nacionalidade não fizeram do texto de Sérgio uma bandeira de tradicionalismo e conservadorismo Ao contrário abriu as brechas para a compreensão do sentido antropofágico da cultura nacional no seu nascedouro e que de certo modo se desvirtuou pela adoção de idéias completamente estranhas ao nosso ambiente cultural como foi o caso das elites culturais brasileiras no século 19 Nesse caso Sérgio referese abertamente à afetação de uma elite letrada que se criou no Brasil depois do processo de independência Na adoção de princípios liberais que pouco se enraizavam na nossa sociedade o homem cordial por sua própria preguiça tornouse o bacharel preocupado exclusivamente em exaltar as suas qualidades pessoais Aos poucos no afã de parecer civilizado o homem cordial de Sérgio abandona as suas próprias raízes formadoras e que propiciaram o Ensaios de nacionalidade cordialidade cidadania e desterro na obra de Sérgio Buarque de Holanda 155 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 sucesso da implantação de uma cultura européia nos trópicos adotando as formas artificiais de uma civilidade que lhe é estranha A pertinência do comentário de Sérgio sobre a afetação do homem cordial é importante de ser observada A dignidade e a importância que confere o título de doutor permitem ao indivíduo atravessar a existência com discreta compostura e em alguns casos podem libertálo da necessidade de uma caça incessante aos bens materiais que subjuga e humilha a personalidade O que importa salientar aqui é que a origem da sedução exercida pelas carreiras liberais vinculase estreitamente ao nosso apego quase exclusivo aos valores da personalidade O prestígio da palavra escrita da frase lapidar do pensamento inflexível o horror ao vago ao hesitante ao fluido que obrigam à colaboração ao esforço e por conseguinte a certa dependência e mesmo abdicação da personali dade têm determinado assiduamente a nossa formação espiritual Tudo quanto dispense qualquer trabalho mental aturado e fatigante as idéias claras lúcidas definitivas que favorecem uma espécie de atonia da inteligência parecemnos constituir a verdadeira essência da sabedoria9 Enfim lendo com atenção esses comentários podemos concluir que existem muito poucas análises tão sensíveis ao modo de adoção das idéias liberais em uma cultura permeada pelos valores do personalismo e do patriarcalismo Sérgio Buarque nos dá a perspectiva a partir da qual devemos avaliar o modo como ocorre a importação de idéias em nossa formação social Afinal sem deixar de lado as suas raízes o homem cordial se completou justamente pela adoção de uma máscara de civilidade O horror ao individual ao espírito de cooperação ao trabalho sistemático às condutas reguladas por normas e valores universais conduz o homem cordial ao suprasumo de sua autoimagem isto é ao espírito de bacharelismo modelo acabado da adoção do liberalismo em um ambiente cultural que lhe é estranho Aqui entre nós o liberalismo se transforma num verniz superficial sem peso e profundidade porque atrás da máscara da civilidade encontrase aquele que tem o maior pavor da individualidade o homem cordial Por esse motivo há em nossa percepção de ser nacional uma sensação de desterro de sermos estranhos à nossa própria terra Isso porque o homem cordial aos poucos vai escondendo as suas raízes por detrás da máscara de polidez e civilidade Essa percepção de Sérgio Buarque foi muito bem apreciada por um amigo o crítico literário e escritor Sérgio Miliet Tecendo comentários sobre o homem cordial Miliet observa Edgar Salvadori de Decca 156 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 Essa mentalidade prática que se manifesta desde os primeiros e melhor se evidencia com o correr do tempo tanto na organização das estatísticas da colônia precisas e conduzidas em vista do aproveitamento econômico e sociológico dos dados como nas cartas dos missionários essa mentalidade que dá Camões um narrador e não Cervantes um sonhador é que faz o Brasil o milagre sulamericano Foi o que Sérgio Buarque soube compreender não sendo ele próprio afetado pela adesão aos formalismos10 Há nas análises de Sérgio Buarque sobre a cordialidade muitas sutilezas e que nem sempre foram percebidas pelos seus críticos O exemplo mais conhecido foi o da polêmica criada por Cassiano Ricardo Tal como ele outros críticos como Dante Moreira interpretaram o conceito de homem cordial associado à idéia de bondade No entanto o homem cordial faz da vida social um prolongamento de sua intimidade e por esse motivo podemos observar fenômenos de comoção de massas na história brasileira recente que não passam de manifestações coletivas de sentimentos privados Esse é um ponto importantíssimo da análise de Sérgio em que ele diz que a vida social e a esfera pública são coisas absolutamente distintas Um exemplo muito conhecido por nós foi a comoção dos brasileiros pela morte do piloto Airton Senna Mais do que nenhum outro ídolo Senna foi acalentado no recanto dos lares no íntimo e a emoção de suas conquistas transformouse em assunto doméstico e familiar deste povo endomingado que parece viver sempre num domingo Todas as emoções e sentimentos com relação ao ídolo pertenceram às manhãs de domingo na esfera da intimidade inclusive sua própria morte Afinal o ídolo das pistas acabou morrendo na sala de visitas de milhares de famílias brasileiras Aquelas manifestações coletivas e de grande impacto emocional durante o enterro do ídolo longe de se transformarem em ações públicas de consolidação da cidadania e da democracia foram vividas exclusivamente como momentos para extravasar sentimentos íntimos reprimidos confinados na esfera do privado Nesse caso não houve uma experiência de consolidação de uma esfera pública propriamente política Ora um exemplo como esse tem implicações profundas em nossa cultura Esse acontecimento aponta para o cálculo que devemos fazer para a instituição de uma ordem democrática entre nós Sérgio Buarque faz um cálculo muito importante Qual é o custo que nós temos ao abandonar o traço da cordialidade O custo de se viver em sociedade alheio a si mesmo tão ao gosto do homem cordial é muito grande e a sua preservação também se torna excessivamente alta Ao contrário de outras culturas nas quais prevalece o princípio Ensaios de nacionalidade cordialidade cidadania e desterro na obra de Sérgio Buarque de Holanda 157 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 da individualidade e a esfera pública pode ser mantida a um custo relativamente pequeno no nosso caso o custo de se abrir mão de viver no social é extremamente alto por isso que é difícil de constituir uma esfera pública entre nós Enfim não vale a pena o sacrifício em nome de uma maior ampliação da esfera pública e dos direitos da cidadania O homem cordial não quer entrar na esfera pública como indivíduo Muito pelo contrário no viver em sociedade ele pode justamente fugir do horror da individualidade A percepção histórica do homem cordial é nesse sentido dialética e nos orienta para a compreensão do porquê do sucesso da aventura portuguesa nos trópicos Mas ao mesmo tempo aponta os limites dessa aventura Sem os condicionantes psicológicos da cultura portuguesa projetada nos trópicos teria sido impossível a formação histórica do Brasil O aventureirismo a rotina a falta de imaginação capaz de projetar a nós mesmos para mundos utópicos artificiais fez com que uma cultura estrangeira se adaptasse ao novo ambiente Mas nesse sucesso está também o nosso fracasso porque ele impediu a criação entre nós de uma esfera pública ampla e democrática Ao contrário o homem cordial acabou favorecendo a criação de um estatismo que subtrai as energias da nossa frágil cidadania Na medida em que desvendamos o universo de reflexão de Sérgio Buarque vamos também revelando a sua vigorosa capacidade de apreensão do passado e da história Esse aspecto é muito importante em sua obra porque a história para ele não é um conhecimento encerrado na observação do passado mas uma apreensão das possibilidades da mudança social Por isso até os títulos de seus livros sugerem mudanças Caminhos e fronteiras Extremo Oeste etc Assim devemos encarar a sua percepção do homem cordial não como um dado imutável e irreversível de nossa formação mas como sistema de referências em permanente mudança em movimento e em transformação A percepção aguda da cordialidade não a congela não a isola mas situase no que ele chamaria de corrente móvel dos acontecimentos O trabalho de compreensão histórica do passado é justamente o oposto do sentimentalismo Aliás diria Sérgio Buarque Estamos aqui nos antípodas do sentimentalismo que este sim é naturalmente uma coisa ou uma época queremola com exclusividade e ciúme contra as outras coisas e contra outras épocas Por isso repito que o sentimentalismo é o que há de mais avesso ao senso do passado Não é próprio do historiador mas do mau antiquário O próprio do historiador não está em querer ver e enaltecer o passado no presente ou viceversa mas em reconhecer e estimar as formas diferentes que se sucedem através dos tempos11 Edgar Salvadori de Decca 158 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 Por se tratar de um historiador apegado aos sentidos da mudança sua análise da cordialidade em vez de fechar os nossos horizontes para novas opções abre um leque de reflexões de caráter alternativo fluido incerto mas rico em sugestões Na perspectiva assumida por Sérgio Buarque alinhamse os redescobridores do Brasil aos quais nos referimos no início desse artigo Não são pensamentos para serem cristalizados e isolados em sua historicidade Muito ao contrário esses autores abrem justamente o diálogo entre o passado e o presente não permitindo que os coloquemos em um pedestal perene como o próprio Sérgio Buarque dizia Uns mais do que outros descortinaram a cena da história brasileira fazendo surgir nuanças e vozes até então legadas pelo discurso dos historiadores Sérgio Buarque mostrouse atento aos novos modos de apreensão do passado e poderemos até acrescentar que as vozes resgatadas do silêncio nada mais seriam do que a reverberação no presente de uma nova esfera pública em vias de constituição Aqui o presente e passado poderiam se tocar e o homem cordial com o seu fundo afetivo personalista rotineiro estaria dando lugar para o cidadão de uma nova democracia brasileira Assim ao mesmo tempo em que novos sujeitos são resgatados do silêncio do passado no presente também a esfera pública renasce com novas demandas nova diversidade e também outra perplexidade Assim segundo Sérgio é dessas opiniões que se faz a história em grande parte e a história do Brasil em quase tudo Para estudar o passado de um povo de uma instituição de uma classe não basta aceitar fazer falar a multidão imensa dos figurantes mudos que enchem o panorama da história e são muitas vezes mais interessantes e mais importantes que os outros os que apenas escrevem a história12 Ao final desse percurso pelos meandros da cordialidade nos perguntamos uma outra vez quem somos e vamos concluindo pela escolha de uma postura política menos dependente de uma ontologia do ser nacional A obra de Sérgio Buarque nos serve de orientação Apesar de envolvido na questão da essência da nacionalidade Buarque não a petrificou e tampouco a tornou um obstáculo para a liberdade da ação política Aquilo que se espera da liberdade da ação política é que também se projete sobre ela um passado que não se tornou um pedestal perene mas que recriado pelo presente incite a mudança Talvez tenhamos que ficar atentos para as tentações do fraseado demagógico dos formalismos e das soluções abstratas e milagrosas tão comuns à cultura brasileira Por esse motivo a obra Raízes do Brasil termina com um parágrafo que pode ser uma advertência há um demônio pérfido e pretensioso que se ocupa em obscurecer aos nossos Ensaios de nacionalidade cordialidade cidadania e desterro na obra de Sérgio Buarque de Holanda 159 Locus revista de história Juiz de Fora v 12 n 1 p 145159 2006 olhos estas verdades singelas Inspirados por ele os homens se vêem diversos do que são e criam novas preferências e repugnâncias É raro que sejam boas13 Abstract The question of Who Are We was raised in the nineteenth century with the consolidation of the national state in Brazil and it has remained our most urgent question becoming since that time a genuine obsession for Brazilian intellectuals Indeed from this quest to be national all the political ideas and models put forth by Brazilian intellectuals since the nineteenth century have emerged This text examines how the works of Sergio Buarge de Holanda fit into this perspective reformulating it Keyword Sérgio Buarque de Holanda Nationality Cordiality N o t as 2 Revista do Brasil n 6 1987 p 43 3 PAZ Octávio Signos em rotação Rio de Janeiro Perspectiva 1990 p 127 4 Raízes do Brasil 1997p 146 5 Corpo e alma do Brasil ensaio de psicologia social In Revista Espelho 1935 Republicado na Revista do Brasil n 6 p 34 1987 6 Raízes do Brasil p 205 7 Op cit p 110 8 Raízes do Brasil Livraria José Olympo 1936 p 3 9 Raízes do Brasil p 157158 10 Revista do Brasil n 6 p 98 1987 11 O senso do passado In Revista do Brasil n 6 p 82 1987 12 Introdução às memórias de Thomas Davatz In Maria Odila Dias Sérgio Buarque de Holanda São Paulo Ática 1985 p 173174 13 Raízes do Brasil p 188 Artigo recebido em 3 de agosto de 2006 e aprovado em 7 de novembro de 2006