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A ESCRITA DA HISTÓRIA NOVAS PERSPECTIVAS PETER BURKE ORGANIZADOR A ESCRITA JA HISTÓRIA N O VAS PER SPEC TIV A S FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP Presidente do Conselho C urador José C arlos Souza T rindade DiretorPresiden Ce José C astilh o M arques N eto Editor Executivo Jézio H ernani Bom fim G utierre Conselho Editorial Acadêmico A lberto Ikeda A n ton io C arlos C arrera de Souza A n to n io de Pádua Pithon C yrino B enedito A ntunes Isabel M aria F R Loureiro Lígia M V ettorato T revisan Lourdes A M dos San tos Pinto R aul Borges G uim arães R uben A ldrovandi Tanir R egina de Luca PETER BURKE Org A ESCRITA DA HISTÓRIA NOVAS PERSPECTIVAS Tradução de M agda Lopes 7a R eim pressão í Class Cutter Tombo Data O dio vrr rr C opyright 1991 by Basil Blackw ell Lim ited England T ítu lo original em inglês N ew Perspectives on H istorical W riting C opyright 1992 da tradução brasileira Editora U n esp da Fundação para o D esenvolvim ento da U niversidade Estadual Paulista FUNDUNESP Praça da Sé 108 01001900 S ã o Paulo S P T eL 01132427171 F ax0 1 1 3 2 4 2 7 1 7 2 H om e page wwweditoraunespbr Em ail feu editoraunespbr D ados Internacionais de C atalogação na Publicação CIP C âm ara Brasileira do Livro SP Brasil A Escrita a história novas perspectivas Peter Burke org tradução de Magda Lopes São Paulo Editora da Universidade Estadual Paulista 1992 Biblioteca básica dISBN 8571390274 1 Historiografia 1 Burke Peter II Série 921978 CDD9072 ín dices para catálogo sistem ático 1 Escola dos Annales Historiografia 9072 2 Historiografia 9072 3 Nova história Historiografia 9072 o Editora afiliada V B D R AMOCWÇXOflBaJW m onciiot cmocnuieot Asociaclón de Edltoriales Unlversltarlas de América Latina y el Caribe Associação Brasileira de Editoras Universitárias SUMÁRIO 7 Abertura a nova história seu passado e seu futuro Peter Burke 39 A história vista de baixo Jim Sharpe 63 História das mulheres Joan Scotc 97 História de alémmar Henlc Wesseling 133 Sobre a microhistória Giownni Leví 163 História oral Gun Prins 199 História da leitura Robert Darnton 237 História das imagens Ivan Gaskell 273 História do pensamento político Richard Tuck 291 História do corpo Roy Porter 321 A história dos acontecimentos e o renascimento da narrativa Peter Burke 349 índice remissivo 6 PETER BURKE ABERTURA A NOVA HISTÓRIA SEU PASSADO E SEU FUTURO1 Peter Burke M ais ou menos na última geração o universo dos historiadores se expandiu a uma velocidade vertiginosa2 A história nacional dominante no século dezenove atualmente tem de competir com a história mundial e a história regional antes deixada a cargo de antiquários3 amadores para conseguir atenção H á muitos Docente de História Cultural da Universidade de Catnbridge c M em bro do Emma nuel Collegc 1 C om referência à nomenclatura utilizada neste volume desejo registrar meus agradecimentos iis Profs M aria IJgia Prado e M aria Helena Capelato docentes de H istória da Universidade de São Paulo pelo inestimável auxilio na tradução dos termos específicos quase todos neologismos ou expressões adaptadas da linguagem comum Sua contribuição foi fundamental para a clareza do texto NT 2 Este ensaio deve muito a discussões com Raphael Sam uel durante muitos anos a Gwyn Prins e a várias gerações de estudantes do Em annuel College em Cambridge e m ais recentemente a Nilo O dália e à participante audiência em m inhas conferências na Universidade Estadual de São Paulo em Araraquara em 1989 3 N o século dezessete vários estudiosos posteriormente chamados de antiquários antiquariam começaram a coletar documentos antigos visando a comprovação de fatos históricos A partir dessa atividade o antiquarianismo iniciaram uma contestação à realeza pregando um maior poder ao parlamento o que provocou sua perseguição durante o reinado de Carlos I Contrapunhamse aos historiadores da época que não verificavam a veracidade dos fatos e limitavamse ao relato da história da nobreza NT 8 PETER BURKE cam pos novos freqüentemente patrocinados por publicações es pecializadas A história social por exemplo tornouse independen te da história econômica apenas para se fragmentar como alguma nova nação em demografia histórica história do trabalho história urbana história rural e assim por diante M ais uma vez a história econômica dividiuse em antiga e nova A nova história econômica dos anos 50 e 60 agora de meiaidade se não mais velha é suficientemente conhecida para necessitar aqui de uma discussão4 Tem havido também uma mudança entre os historiadores econômicos de uma preocupação com a produção para uma preocupação com o consumo mudança esta que cria uma dificuldade crescente na separação entre a história econômica e a história social e cultural A história do gerenciamento é um interesse recente mas fica obscura se não se dissolvem as ligações entre a história econômica e a administrativa Outra especialização a história da publicidade abarca a história econômica e a história da comunicação Atualmente a verdadeira identidade da história econômica está ameaçada por uma proposta de controle de um empreendimento jovem mas ambicioso a história do meio am biente às vezes conhecida como ecohistória A história política também está dividida não apenas nas chamadas escolas de grau superior e elementar mas também entre os historiadores preocupados com os centros de governo e aqueles interessados na política em suas raízes O território da política expandiuse no sentido de que os historiadores seguindo teóricos com o Michel Foucault estão cada vez mais inclinados a discutir a luta pelo poder na fábrica na escola ou até mesmo na família Entretanto o preço de tal expansão é um a espécie de crise de identidade Se a política está em toda parte será que há necessidade de história política5 O s historiadores culturais estão diante de um problema similar na medida em que se afastam de um a definição 4 Para um exemplo fam oso e discutível ver RW Fogel e S Engerman Time on the Cross Boston 1974 H á uma avaliação criteriosa da posição atual da história econôm ica em D C Colem an Hístory and the Economic Past O xford 1987 5 J Vincent The Formation of the British Liberal Parfy Londres 1966 A ESCRITA DA HISTÓRIA 9 estreita mas precisa de cultura em termos de arte literatura música etc para uma definição mais antropológica do campo Neste universo que se expande e se fragmenta há uma necessidade crescente de orientação O que é a chamada nova história Q uanto ela é nova E um m odismo temporário ou uma tendência de longo prazo Ela irá ou deverá substituir a história tradicional ou as rivais podenj coexistir pacificamente O presente volume é destinado a responder a essas questões U m exame abrangente das variedades da história contemporânea não deixaria espaço para mais do que uma discussão superficial Por isso tomouse a decisão de concentrar a atenção em alguns movimentos relativamente recentes6 O s ensaios sobre esses movi mentos estâo preocupados pelo menos implicitamente com mui tos dos mesmos problemas fundamentais Pode ser útil confrontar de início esses problemas e situálos no contexto de mudanças de longo prazo na escrita da história O que é a nova história A expressão a nova história é mais bem conhecida na França La nouvelle histoire é o título de uma coleção de ensaios editada pelo renomado medievalista francês Jacques Le Goff Le G off também auxiliou na edição de um a maciça coleção de ensaios de três volumes acerca de novos problemas novas abordagens e novos objetos 7 Nesses casos está claro o que é a nova história é uma história made in France o país da nouvelle vague e do nouveau roman sem mencionar la nouvelle cuisine M ais exatamente é a história associada à chamada École des Annales agrupada em torno da revista Annales économies societés civilisations 6 O utras variedades são examinadas em What is History Todayl J G ardinej Londres 1988 7 J Le G off ed La nouvelle histoire Paris 1978 J Le Goff P N ora ed Faire de Vhistoire Paris 1974 3 v Alguns dos ensaios desta coleção estão disponíveis em inglês J Le Goff P N ora eds Constructing thePast Cam bridge 1985 10 PETER BURKE O qjae é essa nouvelle histoire U m a definição categórica não é fácil o movimento está unido apenas naquilo a que se opõe e as páginas que se seguem irão demonstrar a variedade das novas abordagens E por isso dificil apresentar mais que uma descrição vaga caracterizando a nova história como história total histoire totale ou história estrutural Por isso pode ser o caso de se imitar os teólogos medievais diante do problema de definir Deus e optar por uma via negativa em outras palavras definir a nova história em termos do que ela não é daquilo a que se opõem seus estudiosos A nova história é a história escrita como uma reação deliberada contra o paradigma tradicional aquele termo útil embora im preciso posto em circulação pelo historiador de ciência americano Thom as Kuhn8 Será conveniente descrever este paradigma tradi cional como história rankeana conforme o grande historiador alemão Leopold von Ranke 17951886 embora este estivesse menos limitado por ele que seus seguidores Assim como Marx não era um marxista Ranke não era um rankeano Poderíamos também chamar este paradigma de a visão do senso comum da história não para enaltecêlo mas para assinalar queele tem sido com freqüência com muita freqüência considerado a maneira de se fazer história ao invés de ser percebido como uma dentre várias abordagens possíveis do passado Em prol da simplicidade e da clareza o contraste entre a antiga e a nova história pode ser resumido em seis pontos 1 De acordo com o paradigma tradicional a história diz respeito essencialmente à política N a ousada frase vitoriana de Sir John Seeley Catedrático de História em Cambridge História é a política passada política é a história presente A política foi admitida para ser essencialmente relacionada ao Estado em outras palavras era mais nacional e internacional do que regional N o entanto não incluía a história da Igreja como uma instituição e também o que o teórico militar Karl von Clausewitz definiu como a continuação da 8 T S Kuhn The Structure of Scientific Revolucions N ova York 1961 A ESCRITA DA HISTÓRIA 11 política por outros meios ou seja a guerra Embora outros tipos de história a história da arte por exemplo ou a história da ciência não fossem totalmente excluídos pelo paradigma tradicional eram marginalizados no sentido de serem considerados periféricos aos interesses dos verdadeiros historiadores Por outro lado a nova história começou a se interessar por virtualmente toda a atividade humana Tudo tem um a história como escreveu certa ocasião o cientista JBS Haldane ou seja tudo tem um passado que pode em princípio ser reconstruído e relacionado ao restante do passado9 Daí a expressão história total tão cara aos historiadores dos Armaíes A primeira metade do século testemunhou a ascensão da história das idéias N os últimos trinta anos nos deparamos com várias histórias notáveis de tópicos que anteriormente não se havia pensado possuírem uma história como por exemplo a infância a morte a loucura o clima os odores a sujeira e a limpeza os gestos o corpo como apresen tado por Roy Porter p 291 a feminilidade discutida por Joan Scott p 63 a leitura discutida por Robert Darnton p 199 a fala e até mesmo o silêncio10 O que era previamente considerado imutável é agora encarado como uma construção cultural sujeita a variações tanto no tempo quanto no espaço O relativismo cultural aqui implícito merece ser enfatizado A base filosófica da nova história é a idéia de que a realidade é social ou culturalmente constituída O compartilhar dessa idéia ou sua suposição por muitos historiadores sociais e antropólogos sociais ajuda a explicar a recente convergência entre essas duas discipli nas citadas mais de uma vez nas páginas que se seguem Este 9 JB S H aldane Everthin has a History Londres 1951 10 P Ariès Centuries of ChiIdhood trad de R Baldick Londres 1962 P Ariès The Hour oO u r Death trad de H Weaver Londres 1981 M Foucault Maciness and Civilisation trad de R Howard Londres 1967 E Le Roy Ladurie Times ofFeast Times of Famine trad de B Bray Nova York 1971 A Corbin The Fouland the Fragrant tradução Leamington 1986 G Vigarello Concepts of Cleanliness tradu ção Cam bridge 1988 JC Schmitt ed Gestures publicação especial Historçi and Anthropology 1 1984 R Baum an Let Your Words be Few Cambridge 1984 12 PETER BURKE relativismo também destrói a tradicional distinção entre o que é central e o que é periférico na história 2 Em segundo lugar os historiadores tradicionais pensam na história como essencialmente uma narrativa dos acontecimentos enquanto a nova história está mais preocupada com a análise das estruturas U m a das obras mais famosas da história de nossa época o Mediterranean de Fernand Braudel rejeita a história dos aconte cimentos histoire événementielle como não mais que a espum a nas ondas do mar da história11 Segundo Braudel o que realmente importa são as mudanças econômicas e sociais de longo prazo la longue durée e as mudanças geohistóricas de muito longo prazo Em bora recentemente tenha surgido alguma reação contra este ponto de vista discutido adiante na p 327 e os acontecimentos não sejam mais tão facilmente rejeitados quanto costumavam ser a história das estruturas de vários tipos continua a ser considerada muito seriamente 3 Em terceiro lugar a história tradicional oferece uma visão de cima no sentido de que tem sempre se concentrado nos grandes feitos dos grandes homens estadistas generais ou ocasionalmente eclesiásticos Ao resto da humanidade foi destinado um papel secundário no drama da história A existência dessa regra é revelada pelas reações a sua transgressão Quando o grande escritor russo Alexandre Pushkin estava trabalhando em um relato de uma revolta de camponeses e de seu líder Pugachev o comentário do czar Nicolau foi que tal homem não tem história N os anos 50 quando um historiador britânico escreveu uma tese sobre um movimento popu lar na Revolução Francesa um de seus examinadores perguntoulhe Por que você se preocupa com esses bandidos12 Por outro lado como m ostra im Sharpe p 40 vários no vos historiadores estão preocupados com a história vista de 11 F Braudel The Mediterranean and the Mediterranean World in the Age of Philip U trad de S Reynolds 2 ed Londres 19723 2 v 12 O nom e do examinador era Lewis Namier R C obb The Police and the People O xford 1970 p 81 A ESCRITA DA HISTÓRIA 13 baixo13 em outras palavras com as opiniões das pessoas comuns e com sua experiência da mudança social A história da cultura popular tem recebido bastante atenção O s historiadores da Igreja estão começando a estudar sua história vista tanto de baixo como de cim a14 O s historiadores intelectuais também têm deslocado sua atenção dos grandes livros ou das grandes idéias seu equivalente aos grandes homens para a história das mentalida des coletivas ou para a história dos discursos ou linguagens a linguagem da escolâstica por exemplo ou a linguagem forense cf com o ensaio de Richard Tuck mais adiante na p 27315 4 Em quarto lugar segundo o paradigma tradicional a história deveria ser baseada em documentos U m a das grandes contribui ções de Ranke foi sua exposição das limitações das fontes narrativas vamos chamálas de crônicas e sua ênfase na necessidade de basear a história escrita em registros oficiais emanados do governo e preservados em arquivos O preço dessa contribuição foi a negligência de outros tipos de evidência O período anterior à invenção da escrita foi posto de lado como préhistória Entre tanto o movimento da história vista de baixo por sua vez expôs as limitações desse tipo de documento O s registros oficiais em geral expressam o ponto de vista oficial Para reconstruir as atitudes dos hereges e dos rebeldes tais registros necessitam ser suplemen tados por outros tipos de fonte 13 O ptam os pelas expressões história vista de baixo e história vista de cim a para as originais historyfrom below e history from above para as quais os historiadores franceses utilizam as expressões histoire vue d un haut e histoire vue dun bas Em bora uma tradução literal pareceunos a m ais adequada aos propósitos dos autores qual seja a do estabelecimento da perspectiva do historiador ao narrar a história NT 14 E H oornaert et al História da Igreja no Brasil ensaio de interpretação a partir do povo Petró polis 1977 15 JG A Pocock The Concept o f a Language em The Language of Political Theorji ed A Pagden Cam bridge 1987 Cf D Kelley Horizons o f Intellectual History Journal of the History of Ideas 48 p14369 1987 e W hat is H appening to the History o f Ideas Journal of the History of Ideas Journal of the History of Ideas 51 p 325 1990 14 PETER BURKE De qualquer modo se os historiadores estão mais preocupados que seus antecessores com uma maior variedade de atividades humanas devem examinar uma maior variedade de evidências Algumas dessas evidências são visuais outras orais ver Ivan Gaskell e Gwyn Prins p 237 e 163 respectivamente Há também evidência estatística dados comerciais dados populaçionais dados eleitorais etc O ponto alto da história quantitativa foi provavel mente os anos 50 e 60 quando alguns entusiastas afirmaram que apenas os métodos quantitativos eram confiáveis Houve uma reação contra tais afirmações e de certa forma também contra os métodos mas o interesse em uma história quantitativa mais modesta continua a crescer Na GrãBretanha por exemplo foi fundada em 1987 uma Associação para a História e Computação 5 De acordo com o paradigma tradicional memoravelmente enunciado pelo filósofo e historiador RG Collingwood Q uando um historiador pergunta Por que Brutus apunhalou César ele quer dizer O que Brutus pensou o que fez com que ele decidisse apunhalar César16 Esse modelo de explicação histórica foi criti cado por historiadores mais recentes em vários campos principal mente porque ele falha na avaliação da variedade de questionamen tos dos historiadores com freqüência preocupados tanto com q s movimentos coletivos quanto com as ações individuais tanto com as tendências quanto xom os acontecimentos Por que por exemplo os preços se elevaram na Espanha no século dezesseis O s historiadores econômicos não concordam em sua resposta a essa questão mas suas várias respostas em termos de importações de prata crescimento da população etc estão muito distantes do modelo de Collingwood N o famoso estudo de Fernand Braudel sobre o Mediterrâneo do século dezesseis publi cado pela primeira vez em 1949 apenas a terceira e última parte dedicada à história dos acontecimentos faz perguntas remotamente semelhantes às de Collingwood e mesmo aí o autor apresenta um tipo muito diferente de resposta enfatizando os constrangimentos 16 R G Collingwood The Idea of History Oxford 1946 p 213f A ESCRITA DA HISTÓRIA 15 do seu protagonista o Rei Felipe II e a ausência de influência do rei sobre a história de sua época17 6 Segundo o paradigma tradicional a História é objetiva A tarefa do historiador é apresentar aos leitores os fatos ou como apontou Ranke em uma frase muito citada dizer como eles realmente aconteceram Sua modesta rejeição das intenções filo sóficas foi interpretada pela posteridade como um presunçoso manifesto à história sem tendências viciosas Em um a famosa carta a seu grupo internacional de colaboradores da Cambridge Modem History publicada a partir de 1902 seu editor Lord Acton insistiu com eles que o nosso Waterloo deve ser tal que satisfaça do mesmo modo a franceses e ingleses alemães e holandeses e que os leitores deveriam ser incapazes de dizer onde um colaborador iniciou e outro continuou18 Hoje em dia este ideal é em geral considerado irrealista Por mais que lutemos arduamente para evitar os preconceitos associa dos a cor credo classe ou sexo não podemos evitar olhar o passado de um ponto de vista particular O relativismo cultural obviamente se aplica tanto à própria escrita da história quanto a seus chama dos objetos N ossas mentes não refletem diretamente a realidade Só percebemos o mundo através de uma estrutura de convenções esquemas e estereótipos um entrelaçamento que varia de uma cultura para outra N essa situação nossa percepção dos conflitos é certamente mais realçada por uma apresentação de pontos de vista opostos do que por uma tentativa como a de Acton de articular um consenso N ós nos deslocamos do ideal da Voz da História para aquele da heteroglossia definida como vozes varia das e opostas adiante p 33619 Por isso foi muito apropriado 17 Braudel 1949 18 Citado em Varieties of History ed F Stern Nova York 1956 p 249 19 Tirei a expressão do famoso crítico russo Mikhail Bakhtin em seu Dialogic Imagina tion trad de C Em erson e M Holquist Austin 1981 p xix 49 55 263 273 Cf M de Certeau Heterologies Discourse on the Other trad de B M assum i Minneapo lis 1986 ts FIBRA s i P 16 A j v O y PETER BURKE que este volume tomasse a forma de uma obra coletiva e que seus colaboradores falassem línguas maternas diferentes A história rankeana era o território dos profissionais O século dezenove foi a época em que a história se tornou profissionalizada com seus departamentos nas universidades e suas publicações específicas como a Historische Zeitschrift e a English Historical Review A maior parte dos principais novos historiadores são também profissionais com a notável exceção do falecido Philippe Ariès que gostava de descrever a si próprio como um historiador domingueiro U m a maneira de descrever as realizações do grupo dos Annales é dizer que eles mostraram que a história econômica social e cultural pode atingir exatamente os padrões profissionais estabelecidos por Ranke para a história política Seja como for sua preocupação com toda a abrangência da atividade humana os encoraja a ser interdisciplinares no sentido de aprenderem a colaborar com antropólogos sociais economistas críticos literários psicólogos sociólogos etc O s historiadores de arte literatura e ciência que costumavam buscar seus interesses mais ou menos isolados do corpo principal de historiadores estão agora mantendo com eles um contato mais regular O movimento da históriavistadebaixo também reflete uma nova determinação para considerar mais seriamente as opiniões das pessoas comuns sobre seu próprio passado do que costumavam fazer os historiado res profissionais20 O mesmo acontece com algumas formas de história oral adiante p 163 Neste sentido também a heteroglos sia é essencial à nova história Quanto é nova a nova história Quem inventou ou descobriu a nova história A expressão é às vezes utilizada para os desenvolvimentos ocorridos nos anos 70 e 80 período em que a reação contra o paradigma tradicional 20 V er quase todos os ensaios do History Workshop Journal A ESCRITA DA HISTÓRIA 11 tornouse mundial envolvendo historiadores do Japão da índia ila América Latina e de vários outros lugares O s ensaios deste volume focalizam este período em particular E claro no entanto que muitas das mudanças ocorridas na escrita da história nestas duas décadas são parte de uma tendência mais antiga Para muitas pessoas a nova história está associada a Lucien ebvre e a Marc Bloch que fundaram a revista Annales em 1929 para divulgar sua abordagem e na geração seguinte a Fernand Braudel N a verdade seria difícil negar a importância do movimen to para a renovação da história liderado por esses homens Todavia eles não estavam sozinhos em sua revolta contra os rankeanos N a GrãBretanha dos anos 30 Lewis Namier e RH rawney rejeitaram ambos a narrativa dos acontecimentos para alguns tipos de história estrutural N a Alemanha por volta de 1900 Karl Lamprecht tornouse impopular expressando seu de safio ao paradigma tradicional A desdenhosa expressão histoire cvénementielle história centralizada nos acontecimentos foi in ventada nessa ocasião uma geração antes da época de Braudel Bloch e Febvre21 Expressa as idéias de um grupo de estudio sos concentrados em torno do grande sociólogo francês Emile Durkheim e sua revista Annçe Sociologique publicação que ajudou a inspirar os Annales M esm o a expressão a nova história tem uma história própria O primeiro uso da expressão por mim conhecido data de 1912 quando o estudioso americano James Harvey Robinson publicou um livro com este título O conteúdo correspondia ao título História escreveu Robinson inclui todo traço e vestígio de tudo o que o homem fez ou pensou desde seu primeiro aparecimento sobre a terra Em outras palavras ele acreditava na história total Em relação ao método A Nova História estou novamente citando Robinson vai servirse de todas aquelas descobertas que estão sendo feitas sobre a humanidade pelos antropólogos econo I Cf P Burke The French Histórica Revoíution Cambridge 1990 p 113 18 PETER BURKE mistaspsicólogos e sociólogos22 Este movimento para uma nova história não foi bem sucedido nos Estados U nidos na época mas o entusiasmo americano mais recente pelos Annales tornase mais inteligível se recordarmos essa experiência local N ão há uma boa razão para se parar em 1912 ou mesmo em 1900 Tem sido recentemente argumentado que a substituição de um a história antiga por uma nova mais objetiva e menos literária é um tema recorrente na história da escrita da história23 Tais afirmações foram feitas pela escola de Ranke no século dezenove pelo grande estudioso beneditino Jean Mabillon que formulou novos métodos de crítica da fonte no século dezessete e pelo historiador grego Políbio que denunciou alguns de seus compa nheiros como meros retóricos cento e cinqüenta anos antes do nascimento de Cristo N o primeiro caso pelo menos a reivindi cação da novidade foi consciente Em 1867 o grande historiador holandês Robert Fruin publicou um ensaio chamado A Nova Historiografia uma defesa da história científica rankeana24 Tam bém remontam a um longo percurso as tentativas de escrever uma história mais abrangente que aquela dos aconteci mentos políticos Foi na segunda metade do século dezenove que a história econômica se estabeleceu na Alemanha Em 1860 o estudioso suiço Jacob Burckhardt publicou um estudo de The Civilization of the Renaissance in Italy concentrado na história cultural e descrevendo mais as tendências do que narrando os acontecimentos O s sociólogos do século dezenove como Auguste Comte Herbert Spencer sem mencionar Karl Marx eram extremamente interessados pela história mas desprezavam os historiadores profissionais Estavam interessados nas estruturas 22 JH Robinson The New History Nova York 1912 cf JR Pole The New History and the Sense o f Social Purpose in American H istorical W riting 1973 reeditado em seu Pachs to the American Past N ova York 1979 p 27198 23 L Orr The Revenge o f Literature New Literary History 18 p 122 1986 24 R Fruin De Nieuwe historiographie reeditado em seu Verspreide Geschriften 9 H aia 1904 p 41018 A ESCRITA DA HISTÓRIA 19 não nos acontecimentos e a nova história tem um débito para com eles que freqüentemente não é reconhecido Eles por sua vez têm um débito para com seus antecessores que freqüentemente não reconhecem os historiadores do Ilumi nismo entre eles Voltaire G ibbon apesar da observação que citei antes Robertson Vico M õser e outros N o século dezoito houve um movimento internacional para a escrita de um tipo de história que não estaria confinada aos acontecimentos militares e políticos mas relacionada às leis ao comércio à manière de penser de uma determinada sociedade com seus hábitos e costumes com o espírito da época N a Alemanha em particular houve um vivo interesse pela história mundial25 Estudos da história das mulheres foram publicados pelo escocês W illiam Alexander e por Christoph Meiners professor da Universidade de Gõttingen um centro da nova história social no final do século dezoito26 Assim a história alternativa discutida neste volume tem uma ancestralidade razoavelmente longa ainda que os antepassados pudessem não reconhecer seus descendentes O que é novo não é sua existência mas o fato de seus profissionais serem agora extremamente numerosos e se recusarem a ser marginalizados Problemas de definição o O propósito deste volume não é celebrar a nova história a despeito dos colaboradores concordarem que pelo menos alguns de seus tipos são valiosos realmente necessários mas estabelecer seus pontos fortes e fracos O movimento de mudança surgiu a partir de um a percepção difundida da inadequação do paradigma tradicional Esta percepção da inadequação só pode ser compreen dida se olharmos além do âmbito do historiador para as m udan 25 M Harbsm eier W orld Histories before Domestication Culture and History 5 p 931311989 26 W Alexander The History of Women Londres 1779 C M einers Geschcchte des weiblichen Geschlechts Hanover 17881800 4 v 20 PETER BURKE ças no mundo mais amplo A descolonização e o feminismo por exemplo são dois movimentos que obviamente tiveram grande impacto sobre a escrita histórica recente o que fica bastante claro nos capítulos de autoria de Henk W esseling e Joan Scott N o futuro é provável que o movimento ecológico tenha cada vez mais influência sobre a forma como a história é escrita N a verdade ele sempre inspirou vários estudos A famo sa monografia de Braudel sobre o Mediterrâneo chamou a atenção quando foi pela primeira vez publicada em 1949 pela quantida de de espaço dedicado ao ambiente físico terra e mar montanhas e ilhas Atualmente entretanto o quadro de Braudel parece curiosamente estático porque o autor não considerou de modo sério as maneiras pelas quais o ambiente foi modificado pela presença do homem destruindo florestas por exemplo para construir as galeras que aparecem com tanto destaque nas páginas de The Mediterranean Vários autores têm apresentado uma ecohistória mais dinâmi ca W illiam Cronon escreveu um belo estudo a respeito da Nova Inglaterra colonial focalizado nos efeitos da chegada dos europeus sobre as plantas e as comunidades animais da região observando o desaparecimento de castores e ursos cedros e pinheirosbrancos e a crescente importância dos animais de pasto de origem européia Em um a escala bastante diferente Alfred Crosby discutiu o que ele chama de a expansão biológica da Europa entre 900 e 1900 e o lugar das doenças européias abrindo caminho para o estabe lecimento bemsucedido das NeoEuropas da Nova Inglaterra à Nova Zelândia27 D o mesmo modo por razões internas e externas não é fora de propósito falarse da crise do paradigma tradicional da escrita da história Todavia o novo paradigma também tem seus proble mas problemas de definição problemas de fontes problemas de método problemas de explicação Esses problemas irão reaparecer 27 W C ronon Changes in the Lanei Nova York 1983 AW Crosby Ecological Imperialism Cambridge 1986 A ESCRITA DA HISTÓRIA 21 aos capítulos específicos mas pode ser importante neste momento apresentar uma breve discussão de todos eles O s problemas de definição ocorrem porque os novos historia dores estão avançando em território não familiar C om o normal mente fazem os exploradores de outras culturas eles começam com uma espécie de imagem negativa daquilo que estão procurando A história do Oriente tem sido percebida pelos historiadores ociden tais como o oposto de sua própria história eliminadas as diferenças entre o Extremo Oriente a China e o Japão etc28 Com o observa mais adiante Henk W esseling p 97 a história mundial tem sido com freqüência encarada pelos ocidentais como o estudo das relações entre o Ocidente e o resto ignorando as interações entre a Á sia e a África a Á sia e a América etc Mais uma vez a história vista de baixo foi originalmente conceitualizada como a inversão da história vista de cima com a baixa cultura no lugar da cultura erudita N o decorrer de sua pesquisa contudo os estudiosos tornaramse cada vez mais conscientes dos problemas inerentes a essa dicotomia Por exemplo se a cultura popular é a cultura do povo quem o o povo São todos o pobre as classes subalternas como costumava chamálas o intelectual marxista Antonio Gramsci São os analfabetos ou os incultos N ão podemos presumir que as divisões econômicas políticas e culturais em uma determinada sociedade necessariamente coincidam E o que é educação Apenas o treinamento transmitido em algumas instituições oficiais como escolas ou universidades As pessoas comuns são ignorantes ou simplesmente têm uma educação diferente uma cultura diferente das elites Evidentemente não deveria ser suposto que todas as pessoas comuns têm as mesmas experiências e a importância de distin guir a história das mulheres daquela dos homens é enfatizada por Joan Scott p 63 Em algumas partes do mundo da Itáli ao M H á alguns comentários perspicazes sobre este problem a em E Said Orientaiism Londres 1978 Brasil a história do povo é com freqüência chamada a história do dom inado assim assemelhando as experiências das classes su bordinadas no ocidente àquelas das colonizadas29 N o entanto as diferenças entre essas experiências também necessitam ser discutidas A expressão história vista de baixo parece oferecer uma escapatória a essas dificuldades mas gera problemas próprios Ela muda seu significado em contextos diferentes U m a história polí tica vista de baixo deveria discutir os pontos de vista e as ações de todos que estão excluídos do poder ou deveria lidar com a política em um nível local ou popular U m a história da Igreja vista de baixo deveria encarar a religião do ponto de vista do leigo seja qual for a sua condição social U m a história da medicina vista de baixo deveria se preocupar com os curandeiros em oposição aos médicos ou com as experiências dos pacientes e os diagnósticos de doença30 U m a história militar vista de baixo deveria lidar com o Agincourt ou o W aterloo do soldado comum como fez John Keegan tão memoravelmente ou deveria concentrarse na experiência civil da guerra31 U m a história da educação vista de baixo deveria deslocar se dos ministros e teóricos da educação para os professores comuns como fez Jacques Ozouf por exemplo ou deveria apre sentar as escolas do ponto de vista dos alunos32 U m a história econômica vista de baixo deveria focalizar o pequeno comerciante ou o pequeno consumidor U m a razão para a dificuldade de definir a história da cultura popular é que a noção de cultura é algo ainda mais difícil de precisar que a noção de popular A chamada definição opera house de cultura como arte erudita literatura erudita música erudita etc era restrita mas pelo menos era precisa U m a noção 22 PETER BURKE 29 E D e Decca 1930 o silêncio dos vencidos São Paulo 1981 30 Cf R Porter The Patients View D oing M edicai History from Below Theory and Society 14 p 175981985 31 Sobre os soldados comuns v erj Keegan The Face of Batde Londres 1976 32 J O zouf ed Nous les maitres decole Paris 1967 examina a experiência dos professores de escola elementar c 1914 A ESCRITA DA HISTÓRIA 23 ampla de cultura é central à nova história33 O estado os grupos sociais e até mesmo o sexo ou a sociedade em si são considerados como culturalmente construídos Contudo se utilizamos o termo em um sentido amplo temos pelo menos que nos perguntar o que não deve ser considerado como cultura Outro exemplo de uma nova abordagem que gerou problemas de definição é a história da vida cotidijina Alltagsgeschichte como a chamam os alemães A expressão em si não é nova la vie quotidienne era o título de uma série lançada pelos editores franceses Hachette nos anos 30 O novo é a importância dada à vida cotidiana nos escritos históricos contemporâneos especialmente desde a publicação do famoso estudo de Braudel da civilização material em 196734 Outrora rejeitada como trivial a história da vida cotidiana é encarada agora por alguns historiadores como a única história verdadeira o centro a que tudo o mais deve ser relacionado O cotidiano está também nas encruzilhadas de abor dagens recentes na sociologia de Michel de Certeau a Erving Goffman e na filosofia seja ela marxista ou fenomenológica35 O que essas abordagens têm em comum é sua preocupação com o m undo da experiência comum mais do que a sociedade por si só como seu ponto de partida juntamente com uma tentativa de encarar a vida cotidiana como problemática no sentido de mostrar que o comportamento ou os valores que são tacitamen te aceitos em uma sociedade são rejeitados como intrinsecamente absurdos em outra O s historiadores assim como os antropólogos sociais tentam agora pôr a nu as regras latentes da vida cotidiana a poesia do diaadia como a expressou o semiótico russo Juri Lotman e mostrar a seus leitores como ser um pai ou uma filha 33 Lc H unted The N ew Cultural History Bcrkeley 1989 34 F Braudel Civilisation matérielleetcapicalisme Paris 1967 ed revisada Les structures duquotidien Paris 1979 The Structures ofEveryday Life trad de M Kochan Londres 1981 Cf J Kuczynski Geschichte des Alltags des Deutschen Volkes Berlim 19802 v 4 35 M de Certeau Linuention du quotidien Paris 1980 E Goffm an The Presentation of Self in Everyday Life Nova York 1959 H Lefebvre Critique de la vie quotidienne Paris 194681 3 v Cf F Mackie The Status of Everyday Life Londres 1985 24 PETER BURKE umjuiz ou um santo em uma determinada cultura36 Neste ponto a história social e a cultura parecem estar se dissolvendo uma na outra Alguns profissionais definemse como novos historiadores culturais outros como historiadores socioculturais 37 Seja como for o impacto do relativismo cultural sobre o escrito histórico parece inevitável Entretanto como observou o sociólogo Norbert Elias em um importante ensaio a noção do cotidiano é menos precisa e mais complicada do que parece Elias distingue oito significados atuais do termo desde a vida privada até o mundo das pessoas com uns38 O cotidiano inclui ações Braudel o define como o reino da roti na e também atitudes o que poderíamos chamar de hábitos mentais Pode até incluir o ritual E o ritual indicador de ocasiões especiais na vida dos indivíduos e das comunidades é com freqüên cia definido em oposição ao cotidiano Por outro lado os visitantes estrangeiros muitas vezes observam rituais cotidianos na vida de toda sociedade m odos de comer formas de saudação etc que os habitantes locais não encaram de forma alguma como rituais Igualmente difícil de descrever ou analisar é a relação entre as estruturas do cotidiano e a mudança Visto de seu interior o cotidiano parece eterno O desafio para o historiador social é mostrar como ele de fato faz parte da história relacionar a vida cotidiana aos grandes acontecimentos como a Reforma ou a Revolução Francesa ou a tendências de longo prazo como a ocidentalização ou a ascensão do capitalismo O famoso sociólogo M ax W eber criou um termo famoso que pode ser útil aqui rotinização Veralltüglichung literalmente cotidianização U m foco de atenção para os historiadores sociais poderia ser o processo 36 J Lotman The Poetics of Everyday Behaviour in Russian EighteenthCentury Culture em The Semiotics of Russian Cuiture ed Lotman e BA U spenskii Ann Arbor 1984 p 23156 U m a discussão mais am pla do problema de se escrever a história das regras culturais está em P Burke Histórica Anthropology of Early Mociern Italy Cam bridge 1987 p 5f 21 f 37 L Hunt ed The New Cultural History Berkeley 1989 38 N Elias Zum Begriff des Alltags em Materiellen zur Soziologie des Alltags ed K Ham m erich e M Klein Opladen 1978 p 229 A ESCRITA DA HISTÓRIA 25 de interação entre acontecimentos importantes e as tendências por um lado e as estruturas da vida cotidiana por outro Até que ponto por que meios e durante que período a Revolução Francesa ou a Revolução Russa por exemplo penetraram na vida cotidiana dos diferentes grupos sociais até que ponto e com que sucesso eles resistiram Problemas das fontes O s maiores problemas para os novos historiadores no en tanto são certamente aqueles das fontes e dos métodos Já foi sugerido que quando os historiadores começaram a fazer novos tipos de perguntas sobre o passado para escolher novos objetos de pesquisa tiveram de buscar novos tipos de fontes para suplementar os documentos oficiais Alguns se voltaram para a história oral cf p 163 outros à evidência das imagens cf 237 outros à estatística Tam bém se provou possível reler alguns tipos de registros oficiais de novas maneiras O s historiadores da cultura popular por exemplo têm feito grande uso de registros judiciais especialmente os interrogatórios de suspeitos Dois estudos fam osos da história vista de baixo são baseadps em registros de inquisição o Montaillou 1975 de Le Roy Ladurie cf Jim Sharpe p 39 e The Cheese and the Worms 1986 de Ginzburg Todavia todas essas fontes suscitam problemas embaraçosos O s historiadores da cultura popular tentam reconstruir as suposi ções cotidianas comuns tendo como base os registros do que foram acontecimentos extraordinários nas vidas do acusado inter rogatórios e julgamentos Tentam reconstruir o que as pessoas pensavam baseandose naquilo que os acusados que podem não ter sido um grupo típico tinham preparado para dizer na situação incomum para não dizer terriíicante em que se encontravam Por isso é necessário ler os documentos nas entrelinhas N ão há nada de errado em tentar ler nas entrelinhas particularmente quando a 26 O i PETER BURKE tentativa é realizada por historiadores com a sutileza de um Ginzburg ou de um Le Roy Ladurie Seja como for os princípios subjacentes a tal leitura não são sempre claros Só é razoável admitir que retratar o socialmente invisível as mulheres trabalhadoras por exemplo ou ouvir o inarticulado a maioria silenciosa dos mortos entretanto necessá rios como parte da história total é um empreendimento mais arriscado do que em geral é o caso na história tradicional Nem sempre esse é o caso A história política da época de Carlos Magno por exemplo é baseada em fontes pelo menos tão esparsas e nãoconfiáveis quanto à história da cultura popular no século dezesseis39 Boa parte da atenção tem sido dada à evidência oral uma parcela por historiadores da África como Jan Vansina preocupado com a confiabilidade das tradições orais através dos séculos e outra por historiadores contemporâneos como Paul Thom pson recons truindo a experiência da vida na época edwardiana O problema da influência do historiadorentrevistador e da situação da entre vista sobre o depoimento da testemunha tem sido discutido40 Mas é apenas razoável admitir que a crítica das testemunhas orais ainda não atingiu a sofisticação da crítica de um documento que os historiadores têm praticado durante séculos Podese ter alguma idéia da distância percorrida em um quarto de século e da longa distância ainda por percorrer comparandose a primeira edição do estudo de V ansina sobre a tradição oral publicado pela primeira vez em 1961 com a versão completamente reescrita de 198541 A situação é um pouco semelhante no caso de fotografias de imagens e mais comumente da evidência de cultura material U m a obra recente sobre fotografia incluindo cinema desmascarou a presunção de que a câmera é um registro objetivo da realidade 39 Cf P Burke Popular Culture in Early Modem Europe Londres 1978 capítulo 3 40 R Sam uel e P Thom pson ed The Mjitis We Live By Londres 1990 41 P Thom pson The Voice of the Past 1978 ed revista Oxford 1988 J V ansina Oral Tradition trad H M W right Londres 1965 e Oral Tradüion as History M adison 1985 A ESCRITA DA HISTÓRIA 27 enfatizando não apenas a seleção feita por fotógrafos segundo seus interesses crenças valores preconceitos etc mas também seu débito consciente ou inconsciente às convenções pictóricas Se algumas fotografias vitorianas da vida rural parecem paisagens holandesas do século dezessete isso pode muito bem ocorrer porque os fotógrafos conheciam as pinturas e colocavam seus modelos em conformidade com elas para produzirem como expressou Thom as Hardy no subtítulo a Under the Greenwood Tree um a pintura da escola holandesa A ssim como os historiadores os fotógrafos não apresentam reflexos da realidade mas represen tações da realidade Alguns passos importantes foram dados em direção a uma crítica da fonte das imagens fotográficas mas ãí também ainda há um longo caminho a percorrer42 N o caso das imagens pictóricas discutidas mais adiante por Ivan Gaskell o clima de entusiasmo para a decodificação de sua iconografia ou iconologia em meados do século vinte período de virtuoses como Erwin Panofsky e Edgar W ind foi sucedido por um período gelado de relativo ceticismoOs critérios para a interpretação dos significados latentes em particular são na ver dade difíceis de ser form ulados13 O s problemas da iconografia tomamse ainda mais embaraçosos quando os historiadores de outros tópicos tentam utilizar gravuras para seus próprios propósitos como evidência de atitudes religiosas ou políticas E muito fácil discutir em um grupo interpretando uma imagem de Albrecht Dürer por exemplo como um sintoma de uma crise espiritual e depois apresentar a imagem como um argumento para a existência da crise44 42 P Sm ith ed The H istorân and Film Cambridge 1976 A Trachtenberg Album s ofW ar Represencacions 9 p 1321985 JT agg The Burden of Representation Essays on Photographies and Histories Amherst 1988 43 E Panofsky Essays in Iconology N ova York 1939 E W ind Pagan Mysteries in the Renaissance Londres 1958 U m ponto de vista m ais cético é expressado por EH Gom brich Aim s and Límits of Iconology em seu Symbolic Images Londres 1972 p 122 44 C Ginzburg D a Aby W arburg a EH Gom brich Studi medievali 8 p 101565 1966 Sua crítica foi dirigida em particular contra Fritz Saxl Sobre a iconografia para os historiadores das mentalidades ve M Vovelle ed Iconographie et histoire des mentalités Aix 1979 28 PETER BURKE A cultura material é evidentemente o campo de ação tradicional dos arqueólogos que estudam períodos para os quais não existem registros escritos N o entanto não há nenhum bom motivo para se restringir os métodos arqueológicos à préhistória e os arqueó logos têm de fato se movimentado para estudar a Idade Média o início da Revolução Industrial e mais recentemente um a varieda de mais ampla de períodos desde a América colonial até à sociedade de consum o atual45 O s historiadores estão começando a competir com eles se não escavando o passado Versailles e outras construções importantes do início do período moderno felizmente não necessitam de escavação pelo menos prestando mais atenção aos objetos físicos O s argumentos sobre a ascensão do individualismo e da privaci dade no início do período moderno estão agora baseados não somente na evidência da manutenção de um diário mas também em mudanças como a criação de xícaras individuais em lugar de tigelas de uso coletivo e cadeiras em lugar de bancos coletivos e o desenvolvimento de quartos específicos para dormir46 Neste caso entretanto é difícil não imaginar se a cultura material está sendo utilizada para fazer algo mais do que confirmar uma hipótese fundamentada no primeiro caso sobre a evidência literária Pode o arqueólogo do período posterior a 1500 no Ocidente pelo menos aspirar a algo mais O falecido Sir M oses Finley certa vez sugeriu que alguns tipos de documentação tornam a arqueologia mais ou menos desnecessária varrendo a arqueologia industrial para a cesta de lixo em um a única frase47 Seu desafio merece uma resposta séria porém uma avaliação minuciosa do valor da evidência da cultura material para a história pósmedieval ainda permanece por fazer De forma bastante irônica a história da cultura material área que tem atraído grande interesse nos últimos anos é baseada 45 K H udson The Archaeology of the Consumer Society Londres 1983 46 J Deetz In Small Things Forgotten the Archaeology of Early American Life N ova York 1977 47 M I Finley The Use and Abuse of History Londres 1975 p 101 A ESCRITA DA HISTÓRIA 29 menos no estudo dos artefatos em si do que nas fontes literárias O s historiadores preocupados com o que tem sido chamado de vida social dos objetos ou mais exatamente com a vida social dos grupos revelada por seu uso dos objetos confiam profunda mente em evidências tais como descrições de viajantes que nos dizem muito sobre a localização e as funções de determinados objetos ou inventários de propriedades acessíveis à análise por métodos quantitativos48 A m aior e mais controvertida inovação no método na última geração certamente foi o crescimento e a difusão dos métodos quantitativos às vezes ironicamente descritos como uCliometria ou seja a estatística vital da deusa da história E claro que a abordagem é um a das mais antigas entre os historia dores econômicos e os demógrafos históricos O que é ou foi novo foi sua difusão nos anos 60 e 70 para outros tipos de história N os Estados U nidos por exemplo há uma nova história política cujos profissionais fazem contagem de votos sejam eles contados em eleições ou em parlamentos49 N a França a história serial histoire sérielle assim denom inada porque os dados são dispostos em séries através do tempo gradativamen te se estendeu do estudo dos preços nos anos 30 para o estudo i a população nos anos 50 até o chamado terceiro nível da nistória das mentalidades religiosas ou seculares50 U m estudo fam oso da cham ada descristianização da França m oderna m os tra a magnitude de sua evidência a partir dos dados declinantes para a com unhão da Páscoa Outro concentrado na Provença no século dezoito estuda as atitudes modificadas em relação à morte como foram reveladas nas tendências nas formulações de cerca de 30000 testam entos observandose o declínio nas referências 48 A Appadurai ed The Social Life of Things Cam bridge 1986 49 W Aydelotte Quantification in History M ass 1971 A Bogue Clio and the Bitch Goddess Quantification in American Political History Beverly H ills 1983 50 P Chaunu Le quantitatifau 3e niveau 1973 reeditado em sua Histoire quantitatif histoire sérielle Paris 1978 30 PETER BURKE ao tribunal do céu ou em legados para funerais elaborados ou m issas para o morto51 N os últimos anos a estatística auxiliada pelos computadores chegou mesmo a invadir a cidadela da história rankeana os arquivos O s Arquivos Nacionais Americanos por exemplo têm agora uma Divisão de Dados Com putadorizados e os arquivistas estão começando a preocuparse com a conservação e o armazena mento de fitas perfuradas assim como a dos manuscritos Em conseqüência disso os historiadores estão cada vez mais inclinados a encarar os arquiyos anteriores tais como os arquivos da Inqui sição como bancos de dados que podem ser explorados por métodos quantitativos52 A introdução no discurso histórico de grande quantidade de estatística contribuiu para polarizar a profissão em defensores e oponentes Am bos os lados tenderam a exagerar a novidade dos problemas criados pela utilização de dados A estatística pode ser falsificada mas isso também pode ocorrer com os textos A estatística pode ser facilmente mal interpretada mas com os textos pode acontecer o mesmo O s dados computadorizados não são amigáveis mas o mesmo se aplica a muitos manuscritos escritos em caligrafias quase ilegíveis ou a ponto de desintegração O necessário é um a ajuda na discriminação na descoberta dos tipos de estatística mais confiáveis em que extensão utilizálos e para que propósitos A noção da série fundamental para a história serial precisa ser tratada como problemática especialmente quando as mudanças são estudadas a longo prazo Quanto mais extenso o período menos provável que as unidades na série testamentos registros de comunhões na Páscoa ou seja o que for sejam homogêneas M as se elas próprias estão sujeitas a se modificar como podem ser utilizadas como medidas de outras mudanças 51 G Le Bras Etudes de sociologie religieuse Paris 19556 2 v e M Vovelle PieCé baroque et déchristianisation Paris 1973 52 G H enningsen El Banco de datos dei Santo O ficio Boletin de 1 a Real Academia de Historia 174 p 547701977 A ESCRITA DA HISTÓRIA 31 Em outras palavras o requerido como no caso das fotografias e de outras fontes novas já discutidas é uma nova diplomática Esse foi o termo usado pelo estudioso beneditino Jean Mabillon em seu guia para o uso de títulos em um a época final do século dezessete em que o apelo a esse tipo de evidência era novo e despertava a suspeita de historiadores mais tradicionais53 Quem será o M abillon da estatística das fotografias ou da história oral Problemas de explicação Já foi sugerido que a expansão do campo do historiador implica o repensar da explicação histórica uma vez que as tendências culturais e sociais não podem ser analisadas da mesm a maneira que os acontecimentos políticos Elas requerem mais explicação estrutural Quer gostem quer não os historiadores estão tendo de se preocupar com questões que por muito tempo interessaram a sociólogos e a outros cientistas sociais Quem são os verdadeiros agentes na história os indivíduos ou os grupos Será que eles podem resistir com sucesso às pressões das estruturas sociais políticas ou culturais São essas estruturas meramente restrições à liberdade de ação ou permitem aos agentes realizarem mais escolhas54 N os anos 50 e 60 os historiadores econômicos e sociais foram atraídos por m odelos mais ou m enos deterministas de explicação histórica tenham eles dado primazia aos fatores eco nômicos com o os marxistas à geografia como Braudel ou aos movimentos da população como no caso do chamado modelo m althusiano de mudança social H oje em dia entretanto como sugere G iovanni Levi em seu ensaio sobre a microhistória os modelos m ais atraentes são aqueles que enfatizam a liberdade de 53 M abillon De re diplomatica Paris 1681 54 C Lloyd Exfiianation in Social History Oxford 1986 apresenta um exame geral M ais acessível a nãofilósofòs é S Jam es The Content of Sociai Expianation Cam bridge 1984 32 PETER BURKE escolhi das pessoas comuns suas estratégias sua capacidade de explorar as inconsistências ou incoerências dos sistemas sociais e políticos para encontrar brechas através das quais possam se introduzir ou frestas em que consigam sobreviver cf mais adiante na p 133 A expansão do universo histórico também tem tido repercus sões sobre a história política pois também os acontecimentos políticos podem ser explicados de várias maneiras O s historiado res que estudam a Revolução Francesa por exemplo vista de baixo provavelmente dãolhe um tipo muito diferente de explicação do que aqueles que se concentram nos feitos e intenções dos líderes M esm o os estudiosos que se concentram nos líderes às vezes divergem dos modelos tradicionais da explicação histórica invo cando seus motivos inconscientes assim como os conscientes tendo em vista que esses modelos superestimam a importância da conscientização e da racionalidade Por exemplo um grupo de chamados psicohistoriadores a maior parte deles vivendo nos Estados U nidos onde a psicanálise penetrou na cultura mais profundamente do que em qualquer outra parte tentou incorporar os insights de Freud à práticaij histórica Eles vão desde o psicanalista Erik Erikson que causou certa sensação nos anos 50 com seu estudo dos problemas de identidade do Jovem Lutero até o historiador Peter Gay que ao mesmo tempo exalta e pratica a psicohistória Não surpreende muito descobrir q u e sua abordagem despertou controvérsias e eles foram acusados de reducionismo em outras palavras de reduzir as complexidades d e um adulto individual ou de um conflito entre adultos ao relaciona mento de uma criança pequena com seus pais55 Para ilustrar as atuais controvérsias sobre a explicação histórica pode ser útil tomar o exemplo de Hitler O s debates iniciais como aquele entre HR TrevorRoper e AJP Taylor sobre a importância relativa dos objetivos de curto e longo prazo de Hitler presumiam 55 E Erikson Young M an Luther Nova York 1958 P Gay Freud for Historians Nova York 1985 D Stannard Shrinking History Nova York 1980 A ESCRITA tA HISTÓRIA 33 a validade do modelo tradicional de explicação histórica em termos de intenções conscientes M ais recentemente no entanto o debate foi ampliado Em primeiro lugar alguns historiadores como Robert Waite apresentaram interpretações de Hitler em termos de intenções inconscientes e até de psicopatologia enfatizando sua sexualidade anormal o trauma da morte de sua mãe após trata mento com um médico judeu etc5 Outro grupo de historiadores rejeita completamente o que chamam de intencionalismo no sentido de que tratam o proble ma dos motivos ou atuações de Hitler como relativamente margi nal Segundo estes funcionalistas como têm sido chamados eu preferiria o termo historiadoreá1 estruturais para descrevêlos as explicações históricas das políticas do Terceiro Reich necessitam se concentrar nos homens em torno de Hitler na m áquina de governo e no processo de decisão e no nazismo como um movi mento social57 Há também historiadores que combinam as abor dagens estruturais com as psicohistóricas e concentramse na explicação do que havia nos nazistas que os atraía a Hitler58 O que é ao m esm o tempo excitante e confuso no debate a respeito de Hitler com o muitos outros debates históricos nos últimos anos é que ele não é mais conduzido segundo as regras O acordo tradicional sobre o que constitui uma boa explicação histórica foi rompido Será esta um a fase de transição a ser substituída por um novo consenso ou o caminho em que os debates históricos serão conduzidos no futuro Se houver tal consenso a área do que pode ser chamado de psicologia histórica psicologia coletiva provavelmente será de particular importância visto que ela vincula os debates sobre a 56 R G L W aite The Psychopachic God Adolf Hitler Nova York 1977 57 Extraí a distinção entre intencionalistas e funcionalistas d eT M ason Intendon and Explanation em The Fuhrer Scace Myth and Reality ed G Hirschfeld e L Kettenacker Stuttgart 1981 p 2340 M eus agradecimentos a Ian Kershaw por cham ar a m inha atenção para este attigo 8 P Lowenberg The Psychohistorical Origins o f the Nazi Youth Cohort American Historical Review 76 p 14575021971 34 PETER BURKE motivação consciente e inconsciente àqueles sobre as explicações individuais e coletivas E estimulante perceber um interesse cres cente nesta área U m conjunto recente de monografias está centra lizado na história da ambição da raiva da ansiedade do medo da culpa da hipocrisia do amor do orgulho da segurança e de outras emoções Do mesmo modo os problemas de método envolvidos na busca de tais objetos ardilosos de estudo estão longe de ter sido resolvidos59 N a tentativa de evitar o anacronismo psicológico em outras palavras a presunção de que as pessoas no passado pensavam e sentiam exatamente da mesma forma que nós há um perigo de se chegar ao outro extremo e desfamiliarizar tão completamente o passado que ele venha a tornarse ininteligível O s historiadores estão diante de um dilema Se explicarem as diferenças no com portamento social nos diferentes períodos pelas diferenças nas atitudes conscientes ou nas convenções sociais correm o risco da superficialidade Por outro lado se explicarem as diferenças no comportamento pelas diferenças na profunda estrutura do caráter social correm o risco de negar a liberdade e a flexibilidade dos atores individuais no passado U m a maneira possível de se sair da dificuldade é utilizar a noção de hábito de um grupo social particular formulada pelo sociólogo Pierre Bourdieu Por hábito de um grupo Bourdieu entende a propensão de seus membros para selecionar respostas de um repertório cultural particular de acordo com as demandas de uma determinada situação ou de um determinado campo Diferentemente do conceito de regras o hábito tem a grande vantagem de permitir que seus usuários reconheçam a extensão da liberdade individual dentro de certos limites estabelecidos pela cultura60 59 J Delum eau La peuren occident Paris 1978 e Rassureret proteger Paris 1989 PN e CZ Stearns Emotionology American Histórica Revieiv 90 p 81336 1986 CZ e PN Stearns Anger Chicago 1986 T Zeldin France 18481945 Oxford 19737 2 v 60 P Bourdieu Outline of a Tfieory ofPractice trad R Nice Cam bridge 1977 A ESCRITA DA HISTÓRIA 35 Seja como for o problema permanece Em minha opinião os novos historiadores de Edward Thom pson a Roger Chartier foram muito bemsucedidos ao revelar as inadequações das expli cações materialistas e deterministas tradicionais do comportamen to individual e coletivo de curto çrazo e na demonstração de que tanto na vida cotidiana quanto nos momentos de crise o que conta é a cultura61 Por outro lado pouco fizeram para desafiar a importância dos fatores materiais do ambiente físico e de seus recursos de longo prazo Ainda parece útil considerar estes fatores materiais como determinantes da ordem do dia dos problemas aos quais os indivíduos os grupos e metaforicamente falando as culturas tentam se adaptar ou responder Problemas de síntese Embora a expansão do universo do historiador e o diálogo crescente com outras disciplinas desde a geografia até a teoria literária certamente devam ser benvindos esses desenvolvimentos têm seu preço A disciplina da história está atualmente mais fragmentada que nunca O s historiadores econômicos são capazes de falar a linguagem dos economistas os historiadores intelectuais a linguagem dos filósofos e os historiadores sociais os dialetos dos sociólogos e dos antropólogos sociais m as estes grupos de histo riadores estão descobrindo ser cada vez mais difícil falar um com o outro Teremos de suportar esta situação ou há uma esperança de síntese E impossível apresentar mais que uma visão parcial e pessoal do problema A minha própria pode ser resumida em dois pontos opostos mais complementares que contraditórios Em primeiro lugar a proliferação de subdisciplinas é virtualmente inevitável Este movimento não está confinado à história A profissão histórica 61 O argumento está excepcionalmente explícito em G Sider Culture and Class in Anthropalogy and History Cam bridge e Paris 1986 simplesmente oferece um exemplo dentre muitos da crescente divisão do trabalho em nossa sociedade industrial tardia ou pósindustrial A proliferação tem suas vantagens contribui para o conhecimento humano e encoraja métodos mais rigorosos padrões mais profissionais Tanto há custos quanto benefícios mas podemos fazer algo para manter aqueles custos intelectuais os mais baixos possíveis A não comunicação entre as disciplinas ou subdisciplinas não é inevitável N o caso específico da história há alguns sinais anima dores de rapprochement se não de síntese E verdade que no primeiro fluxo de entusiasmo pela história estrutural a história dos acontecimentos esteve muito próxima de ser posta de lado De maneira similar a descoberta da história social foi às vezes associada a um desprezo pela história política uma inversão do preconceito dos historiadores políticos tradicio nais Novos campos como a histófia das mulheres e a história da cultura popular foram às vezes tratados como se fossem indepen dentes ou mesmo opostos da história da cultura erudita e da história dos homens A microhistória e a história da vida cotidiana foram reações contra o estudo de grandes tendências sociais a sociedade sem uma face humana Em todos os casos que citei é possível observarse uma reação contra essa reação uma busca pelo centro O s historiadores da cultura popular estão cada vez mais preocupados em descrever e analisar as mudanças das relações entre o erudito e o popular a intersecção da cultura popular e da cultura das pessoas educadas62 O s historiadores das mulheres têm ampliado seus interesses para incluir as relações entre os gêneros em geral e a construção histórica tanto da masculinidade quanto da feminilidade63 A oposição tradicional entre os acontecimentos e as estruturas está sendo substituída por um interesse por seu interrelacionamento 62 A Gurevich Medieval Popular Culture trad de JM Bak e PA Hollingsworth Cambridge 1988 63 Coletiva editorial W hy G ender and History Gender and History 1 p 16 1989 A ESCRITA DA HISTÓRIA 37 e alguns historiadores estão experimentando formas narrativas de análise ou formas analíticas de narrativa ver adiante p 327 O mais importante de tudo talvez é que a oposição há muito estabelecida entre os historiadores políticos e não políticos está finalmente se dissolvendo A famosa definição de história social de GM Trevelyan como a história com a política posta de lado é atualmente rejeitada por quase todo mundo Em vez disso nos percebemos preocupados com o elemento social na política e com o elemento político na sociedade Por um lado os historiadores políticos não mais se restringem à alta política aos líderes às elites Discutem a geografia e a sociologia das eleições e a república na aldeia 64 Estudam as culturas políticas as suposições sobre política que fazem parte da vida cotidiana mas diferem amplamen te de um período para outro ou de um a região para outra Por outro lado a sociedade e a cultura são agora encaradas como arenas para a tomada de decisões e os historiadores discutem a política da família a política da linguagem ou as maneiras como o ritual pode expressarse ou até em certo sentido criar poder65 O historiador americano Michael Kammen pode bem estar certo em sua sugestão de que o conceito de cultura em seu sentido amplo antropológico pode servir como uma base possível para a reintegração de diferentes abordagens à história66 Ainda estamos a um a longa distância da história total defendida por Braudel N a verdade seria irrealista acreditar que esse objetivo poderia um dia ser alcançado mas alguns passos a mais foram dados em sua direção 64 M Agulhon The Republic in the Village trad de J Lloyd Cambridge 1982 65 M Segalen Lote and Power in the Peasant Family trad de S Matthews Cambridge 1983 O Sm ith The Politics of Language 17 9 1 1 8 1 5 Oxford 1984 D Cannadine e S Price eds Rituais of Royalty Cam bridge 1987 66 M Kam m en Extending the Reach of American Cultural History American Stwtlíes 29 p 1 9 4 2 1 9 8 4 A HISTÓRIA VISTA DE BAIXO Jim Sharpe Em 18 de junho de 1815 houve um a batalha próximo à aldeia belga de Waterloo C om o sabem todos aqueles que estudaram a história britânica o resultado daquela batalha foi que um exército aliado comandado pelo Duque de Wellington com a ajuda tardia mas decisiva das forças prussianas lideradas por Blücher derrotou um exército francês comandado por Napoleão Bonaparte sendo assim decididos os destinos da Europa N os dias que se seguiram à batalha um daqueles que ajudou a determinar o destino de um continente o soldado W illiam Wheeler da 51 Infantaria Britâni ca escreveu várias cartas a sua esposa Os três dias de luta terminaram Estou salvo isto é o que importa Descreverei agora e em toda oportunidade os detalhes do grande aconte cimento ou seja o que pude dele observar A manhã do dia 18 de junho surgiu sobre nós e nos encontrou ensopados de chuva entorpecidos e tremendo de frio Você muitas vezes me censurou por fumar quando eu estava em casa no ano passado mas devo dizerlhe que se eu não tivesse um bom estoque de tabaco nessa noite poderia ter morrido1 Assistentesênior de História da Universidade de York 1 The Letters of Private Wheeler 1 8 0 9 1 8 2 8 ed B H Liddell Hart Londres 1951 p 16872 40 PETER BURKE W heeler prosseguiu fornecendo a sua esposa uma descrição da Batalha de Waterloo a partir do violento final a experiência de suportar o fogo da artilharia francesa seu regimento destruindo um corpo de couraceiros inimigos com uma rajada de tiros o espetáculo de montes de corpos queimados de soldados britânicos nas ruínas do castelo de Hougoumont o dinheiro saqueado de um oficial hussardo francês alvejado por um membro de um destaca mento a cargo de Wheeler O s livros de história nos contam que W ellington venceu a batalha de Waterloo De certa maneira W illiam W heeler e milhares como ele também a venceram Durante as duas últimas décadas vários historiadores traba lhando em uma ampla variedade de períodos países e tipos de história conscientizaramse do potencial para explorar novas pers pectivas do passado proporcionado por fontes como a correspon dência do soldado Wheeler com sua esposa e sentiramse atraídos pela idéia de explorar a história do ponto de vista do soldado raso e não do grande comandante Tradicionalmente a história tem sido encarada desde os tempos clássicos como um relato dos feitos dos grandes O interesse na história social e econômica mais ampla desenvolveuse no século dezenove mas o principal tema da história continuou sendo a revelação das opiniões políticas da elite Havia é claro vários indivíduos que se sentiam infelizes com essa situação e já em 1936 Bertold Brecht em seu poema Perguntas de um Operário que Lê apresentou aquela que provavelmente ainda é a afirmação mais direta da necessidade de uma perspectiva alternativa ao que poderia ser chamado de história da elite 2 Mas provavelmente é justo dizer que um a declaração séria da possibili dade de transformar essa necessidade em ação só surgiu em 1966 quando Edward Thom pson publicou um artigo sobre The History from Below em The Times Literary Supplem en tDaí em diante o 2 Bertold Brecht Poems ed John W illett e Ralph M anheim Londres 1976 p 2523 3 EP Thom pson History from Below The Times Literary Supplement 7 dc abril de 1966 p 27980 Para uma discussão da base para o pensam ento do Thom pson ver Harvey J Kaye The British Marxist Historiam an Introductory Andhsis Cambridge 1984 A ESCRITA DA HISTÓRIA 41 conceito da história vista de baixo entrou na linguagem comum dos historiadores Em 1985 foi publicado um volume de ensaios intitulado History from Below4 enquanto em 1989 uma nova edição de um livro referente à historiografia das Guerras Civis Inglesas e às suas conseqüências denominou um capítulo sobre a obra recente dos radicais do período de History from Below5 Assim durante mais ou menos os últimos vinte anos foi encontrado um rótulo para aquela perspectiva do passado oferecida pelas cartas de W illiam Wheeler Essa perspectiva atraiu de imediato aqueles historiadores an siosos por ampliar os limites de sua disciplina abrir novas áreas de pesquisa e acima de tudo explorar as experiências históricas daqueles homens e mulheres cuja existência é tão freqüentemente ignorada tacitamente aceita ou mencionada apenas de passagem na principal corrente da história M esmo hoje grande parte da história ensinada nas sextas classes e nas universidades da Grã Bretanha e também supõese em instituições similares por toda parte ainda considera a experiência da m assa do povo no passado como inacessível ou sem importância não a considera um proble m a histórico ou no máximo considera as pessoas comuns como um dos problemas com que o governo tinha de lidar 6 O ponto de vista oposto foi vigorosamente apresentado por Edward Thom p son em 1965 no prefácio de um a das principais obras de história inglesa Estou procurando resgatar o pobre descalço o agricultor ultrapassado o tecelão do tear manual obsoleto o artesão utopista e até os seguidores enganados de Joanna Southcott da enorme condescendência da posterida de Suas habilidades e tradições podem terse tornado moribundas Sua hostilidade ao novo industrialismo pode terse tornado retrógrada Seus 4 History from Below Studies in Popular Protest and Popular Ideology ed FrederjckKrantz Oxford 1988 Esta foi a edição inglesa de um a coleção primeiro publicada em Montreal em 1985 5 R C Richardson The Debate on the English Revolution Revisíted Londres 1988 capitulo 10 The Twentieth Century History from Below 6 Thom pson History from Below p 279 42 PETER BURKE ideais comunitários podem terse tomado fantasias Suas conspirações insurrecionais podem terse tornado imprudentes Mas eles viveram nesses períodos de extrema perturbação social e nós não7 Portanto Thom pson não se limitou apenas a identificar o problema geral da reconstrução da experiência de um grupo de pessoas com uns Percebeu também a necessidade de tentar compreender o povo no passado tão distante no tempo quanto o historiador moderno é capaz à luz de sua própria experiência e de suas próprias reações a essa experiência Meu objetivo neste ensaio será explorar o máximo possível com referência ao que poderia ser considerado um número con sistente das obraschaves publicadas parte do potencial e dos problemas inerentes à escrita da história vista de baixo Assim fazendo entrarei em contato com dois temas bem diferentes se bem que em grande medida emaranhados O primeiro deles é introduzir o leitor na absoluta diversidade de temática produzida pelo trabalho sobre o que poderia ser descrito em termos amplos como uma história vista de baixo Ele se estende desde a recons trução das experiências dos pastores medievais dos Pireneus até àquelas dos primeiros trabalhadores industriais de certa idade cujas reminiscências formam o principal elemento da história oral O segundo é isolar algumas das questões evidenciais conceituais e ideológicas suscitadas pelo estudo da história vista de baixo A idéia de uma tal abordagem da história é muito sedutora mas como tão freqüentemente acontece os problemas envolvidos no estudo do passado rapidamente tornamse mais complexos do que podem parecer à primeira vista A perspectiva de se escrever a história vista de baixo resgatando as experiências passadas da m assa da população seja da total negligência dos historiadores ou da enorme condescendência da posteridade de Thom pson é portanto uma perspectiva atraente M as como sugerimos a tentativa de estudar a história dessa maneira envolve muitas dificuldades A primeira gira em torno da 7 EP Thom pson The Malcing of the English Working Class Londres 1965 p 1213 A ESCRITA DA HISTÓRIA 43 evidência Temse apenas que ler o estudo de Thom pson sobre os anos formadores da classe trabalhadora inglesa para compreender que sejam quais forem as críticas que possam ser feitas à sua interpretação da questão pouca dúvida existe de que ela seja baseada em um a quantidade de material de fonte maciçamente ampla e rica Em geral entretanto quanto mais para trás vão os historiadores buscando reconstruir a experiência das classes so ciais inferiores mais restrita se torna a variedade de fontes à sua disposição C om o veremos um excelente trabalho tem sido feito com relação aos materiais que realmente persistem para os tempos primitivos mas o problema é real os diários as memórias e os manifestos políticos a partir dos quais podem ser reconstruídas as vidas e as aspirações das classes sociais inferiores são escassos antes do final do século dezoito com exceção de alguns poucos períodos como as décadas de 1640 e 1650 na Inglaterra Em segundo lugar há vários problemas de conceituação O nde exatamente o baixo deve ser alocado e o que seria feito com a história vista de baixo um a vez escrita As complicações inerentes à questão de se precisar que história vem de baixo estão finamente ilustradas em uma das áreas de crescimento da história social nos últimos anos o estudo da cultura popular no início da Europa moderna Tanto quanto posso perceber além de encarála como uma espécie de categoria residual nenhum historiador chegou ainda a uma definição completamente abrangente do que era na verdade a cultura popular naquele período8 A principal razão disso é que o povo mesm o há tanto tempo atrás como no século dezesseis compunha um grupo muito variado dividido por estratificação econômica culturas profissio nais e sexo Tais considerações invalidam qualquer idéia simplista 8 Ver por exemplo a discussão em Peter Burke Popular Cuíture in Early Modem Europe Londres 1978 p 2364 e Barry Reay Introduction Popular Culture in Early M odem England em Popular Culture in SeventeenthCentury England ed B Reay Londres 1985 44 PETER BURKE do que o baixô poderia significar na maior parte dos contextos históricos9 E igualmente importante a questão do significado mais amplo ou dos propósitos de uma abordagem da história vista de baixo O s problemas ficam talvez mais bem ilustrados tomandose por referência o trabalho dos historiadores que escrevem dentro da tradição marxista ou dentro da tradição da história britânica do trabalho É óbvio que a contribuição dos historiadores marxistas aqui e em qualquer outra parte tem sido enorme na verdade um filósofo marxista declarou que todos aqueles que escrevem a história vista de baixo assim o fazem na sombra da conceituação marxista da história10 Embora tais afirmações possam parecer um tanto hiperbólicas a dívida do historiador social para com as idéias de M arx e para com os historiadores marxistas deve ser reconhe cida e certamente não é minha intenção juntarme à tendência atualmente em m oda de depreciar uma das mais ricas tradições intelectuais do mundo Ainda que pudesse parecer que os histo riadores marxistas antes de outros escritores que escrevem a partir de tradições diferentes sugerirem a amplitude da temática que o historiador social poderia estudar tenham tendido a restringir o estudo da história vista de baixo àqueles episódios e movimentos em que as m assas se engajaram na atividade política manifesta ou em áreas familiares de desenvolvimento econômico Embora ele fosse transcender tais limitações este foi em grande extensão o ponto de partida do ensaio de Thom pson de 1966 A fundamen tação histórica para tal linha de pensamento foi descrita mais 9 U m a maneira de contornar este problem a é examinar a experiência de diferentes setores das classes inferiores às vezes através do estudo de caso isolado Para duas obras que utilizam esta abordagem am bas constituindo importantes contribuições à história vista de baixo ver Natalie Zemon Davis Society and Culture in Earíy Modem France Londres 1975 e David Sabean Power in the Blood Popular Culture and Víllage Discourse in Early Moáem Germany Cam bridge 1984 10 Alex Callinicos The Revolutionary Ideas of Karl Marx Londres 1983 p 89 Ao contrário poderia ser observado que não há razão por que a abordagem marxista não pudesse produzir um a história vista de baixo bastante efetiva ver os comentá rios de Perry Anderson Lineages of the Absolutist State Londres 1979 p 11 A ESCRITA DA HISTÓRIA 45 recentemente por Eric Hobsbawm Hobsbawm declarou que a possibilidade do que ele chama de história das pessoas com uns só se tornou realmente aparente mais ou menos em torno de 1789 A história das pessoas comuns como um campo especial de estudo escreveu ele tem início com a história dos movimentos de m assa no século dezoito Para o marxista ou mais comumente o socialista o interesse na história das pessoas comuns desenvol veuse com o crescimento do movimento trabalhista Com o ele prosseguiu para observar essa tendência impôs algumas luzes bastante eficazes para os historiadores socialistas 11 Algo da natureza dessas luzes foi sugerido em um livro de Richard Hoggart publicado em 1957 The Uses of Literacy que poderia bem ter recebido o subtítulo de The Breaking of the English Working Class Discutindo diferentes abordagens no estudo da classe trabalhadora Hoggart pediu cuidado aos leitores das histó rias dos movimentos da classe trabalhadora Com o muitos outros Hoggart se afasta de muitas dessas histórias com a impressão de que seus autores supervalorizam o lugar da atividade política na vida da classe trabalhadora que nem sempre têm uma noção adequada da rotina diária dessa vida 12 Em 1966 Thom pson observou uma mudança das preocupações mais antigas dos histo riadores do trabalho com as instituições do trabalho e com os líderes e a ideologia aceitos embora também tenha observado que esse processo estava tendendo a subtrair da história do trabalho parte de sua coerência13 Hobsbawm escrevendo à luz da subse qüente ampliação da história do trabalho conseguiu fazer comen tários mais centralizados neste ponto O problema era como sugeriu Hobsbawm que os historiadores do movimento trabalhis ta marxistas ou não estudaram não exatamente as pessoas comuns mas as pessoas comuns que poderiam ser consideradas 11 E Hobsbawm History from Below Som e Reflections1 em History from Below ed Krantz p 15 12 Richard Hoggart The Uses of Literacy Aspects of WorkingClass Life uith Special Reerence to Publications and Entertainments Harm ondsworth 1958 p 15 13 Thom pson History from Below p 280 46 PETER BURKE os ancestrais do movimento não os trabalhadores como tais porém mais como cartistas sindicalistas militantes trabalhistas A história do movimento trabalhista e de outros desenvolvimentos institucionalizados declarou ele não deveria substituir a história das pessoas comuns em si 14 Outra limitação que a corrente principal da história do trabalho cria para a história vista de baixo é aquela de uma restrição no período O s leitores do ensaio inicial de Thom pson e da posterior contribuição de Hobsbawm poderiam facilmente ter ficado apesar das intenções dos autores com a impressão de que a história vista de baixo só pode ser escrita para os períodos da Revolução Francesa em diante Hobsbawm como observamos acreditava que foi o desenvolvimento dos movimentos de m assa no final do século dezoito que primeiro alertou os estudiosos para a possibilidade de se escrever a história vista de baixo e prosseguiu declarando que a Revolução Francesa especialmente desdeque o jacobinismo foi revitalizado pelo socialismo e o Iluminismo pelo marxismo tem sido o campo de prova para esse tipo de história Indagando um pouco mais adiante por que tanta história moderna popular emergiu do estudo da Revolução Francesa Hobsbawm citou a ação conjunta da m assa populacional e os arquivos criados por uma vasta e diligente burocracia que documentava os atos das pessoas comuns e depois passou a classificar e preencher seus registros em beneficio do historiador Esta documentação pro porcionava um rico filão para a pesquisa posterior e era também segundo Hobsbawm perfeitamente legível ao contrário das cali grafias intrincadas dos séculos dezesseis e dezessete 15 Entretanto a história vista de baixo não tem sido meramente escrita a respeito da história política familiar moderna por histo 14 Hobsbawn Som e Reflections p 15 15 Ibid p 16 A pesar do ceticismo que se poderia experimentar sobre a singularidade da contribuição de historiadores da Revolução Francesapermanece claro que as obras baseadas naquele período deram um a substancial contribuição ao cânone da história vista de baixo desde estudos pioneiros como Georges Lefebvre Les Paysans du Nord Paris 1924 e The Great Fear of 1789 Paris 1932 trad ingl Nova York 1973 até a obra m ais recente de Richard C obb A ESCRITA DA HISTÓRIA 47 ríadores incapazes de enfrentar os desafios paleográficos N a v erdade embora o conceito da história vista de baixo tenha sido essencialmente desenvolvido por historiadores marxistas ingleses que escreviam dentro dos limites cronológicos tradicionais da história britânica do trabalho talvez o livro que utiliza essa perspectiva no passado a criar maior impacto tenha sido escrito por um estudioso francês que tomou como sua temática uma comunidade medieval camponesa dos Pireneus M ontaillou de Emmanuel Le Roy Ladurie pela primeira vez publicado na França em 1975 despertou maior atenção foi mais vendido e teve maior alcance de leitores que a maior parte das obras de história medie val16 Evidentemente ele tem suscitado alguma crítica no interior da comunidade erudita e várias questões foram levantadas sobre a metodologia de Le Roy Ladurie e a abordagem por ele utilizada de suas fontes17 O s historiadores que trabalham com a visão de baixo devem é claro ser tão rigorosos nessas questões quanto em quaisquer outras mas M ontaillou se situa como um a espécie de marco na escrita da história vista dessa perspectiva C om o observou seu autor embora haja muitos estudos históricos relacionados às comunidades camponesas há muito pouco material disponível que possa ser considerado o testemunho direto dos próprios cam poneses 18 Le Roy Ladurie contornou esse problema baseando seu livro nos registros inquisitoriais produzidos por Jacques Four nier Bispo de Poitiers durante sua investigação da heresia entre 1318 e 1325 Sejam quais forem seus inconvenientes M ontaillou não apenas demonstrou que a história vista de baixo poderia atrair o público leitor em geral mas também que alguns tipos de registro oficial poderiam ser utilizados para explorar o mundo mental e material das gerações passadas 16 Publicado em inglês como Montaillou Cathars and Catholics in a French Village 12941324 Londres 1978 17 Ver por exemplo L E Boyle Montaillou Revisited Mentalité and M ethodalogy in Pathways to Medieval Peasants ed JA Raftis Toronto 1981 e R Rosaldo From the D oor o f his Tent the Fieldworker and the Inquisitor em Writing Culture the Poetics and Politics of Ethnography ed J Clifford e G M arcus Berkeley 1986 18 Le Roy Ladurie Montaillou p vi 48 PETER BURKE Na verdade os historiadores sociais e econômicos estão em pregando cada vez mais tipos de documentação cuja real utilidade como evidência histórica repousa no fato de que seus compiladores não estavam deliberada e conscientemente registrando para a posteridade Supõese que muitos desses compiladores ficariam surpresos e talvez preocupados com o uso que os historiadores recentes fizeram dos casos judiciais registros paroquiais testamen tos e transações de terras feudais que registraram Tal evidência pode ser empregada adequadamente para explorar ações e idéias explícitas ou suposições implícitas e também para propiciar uma base quantitativa às experiências do passado Com o observou Edward Thom pson A s p e sso a s pagavam im p o sto s as listas d e im p o sto s são ap ro p riad as n ão p elo s h istoriad o res d a taxação m as p o r d em ó g rafo s h istóricos A s p e sso a s p agavam dízim os o s in ven tários são ap ro p riad o s co m o evidência p elo s d em ó g rafo s h istóricos A s p esso a s eram arren datárias co n su eaid in á rias o u enfiteutas seus títulos d e p o sse eram in scritos e co n stavam d o s registros d a corte feudal essa s fon tes essen ciais são exaustivam en te inter rogad as p elos h istoriad ores n ão som en te em b u sca d e n ova evidência m as em u m d iálogo em qu e eles p ro p õ em n ovas p erg u n tas19 Pelo que sugere esta citação tais materiais são muito variados Ocasionalmente como ocorre com os materiais em que Montaillou foi baseado permitem que o historiador consiga chegar tão próxi mo às palavras das pessoas quanto consegue o gravador do historiador oral A história oral tem sido muito usada pelos historiadores que tentam estudar a experiência das pessoas co muns embora é claro não haja razão por si só evidente do motivo pelo qual o historiador oral não deva gravar as memórias das duquesas dos plutocratas e dos bispos da mesma forma que dos 19 EP Thom pson The Poverty ofTheory and Other Essays Londres 1978 p 21920 Para um a discussão m ais am pla dos tipos de registros sobre os quais os historiadores da Inglaterra poderiam basear a história vista de baixo ver Alan Macfarlane Sarah H arrison e Charles Jardine Reconstructing Historical Communicies Cam bridge 1977 A ESCRITA DA HISTÓRIA 49 mineiros e dos operários fabris20 M as o historiador oral tem problemas óbvios ao tratar com pessoas que morreram antes de serem gravadas ou cuja memória foi perdida por seus sucessores e o tipo de testemunho direto que pode obter é negado aos historiadores dos períodos mais antigos Ao contrário como sugerimos existem fontes que permitem aos historiadores de tais períodos chegarem mais perto das experiências das pessoas das classes inferiores Le Roy Ladurie utilizou uma fonte desse tipo o registro de Jacques Fournier Outro trabalho que mostra como este tipo de registro legal poderia ser empregado por um tipo bem diferente de história vista de baixo foi publicado em 1976 a edição italiana de The Cheese and the Worms de Cario Ginzburg21 O objetivo de Ginzburg não era reconstruir a mentalidade e o modo de viver de um a comunidade camponesa mas antes explorar o mundo inte lectual e espiritual de um moleiro chamado Domenico Scandella apelidado de Menocchio nascido em 1532 que viveu em Friuli no nordeste da Itália Menocchio teve complicações com a Inqui sição foi afinal executado provavelmente em 1600 e a volumosa documentação que se refere ao seu caso permitiu que Ginzburg reconstruísse grande parte de seu sistema religioso O livro em si é uma realização notável o prefácio de Ginzburg apresenta uma proveitosa discussão dos problemas conceituais e metodológicos da reconstrução da cultura das classes subalternas no mundo préindustrial Ele foi particularmente insistente para o fato de um a fonte não ser objetiva para aquele tema nem um inventário o é não significar que ela seja inútil Em suma mesmo a 20 Algum as im pressões do tipo de áreas temáticas cobertas pelos historiadores orais podem ser obtidas através da leitura dos registros regulares do trabalho em andam en to contidos em Oral History the Journal of the Oral History Society que é publicado desde 1972 21 Publicado em inglês traduzido por Anne e John Tedeschi como The Cheese and the Worms the Cosmos of a SixteenthCentury Miller Londres 1980 O utra obra de Ginzburg The Night Battles Witchcraft and Agrarian Cults in the Sixteenth and Seventeenth Centuries Londres 1983 ed italiana 1966 tam bém dem onstra como os registros inquisitoriais podem ser usados para esclarecer as crenças populares 50 PETER BURKE documentaçãoescassa dispersa e obscura pode ter um bom uso22 e o estudo dos indivíduos nesse tipo de profundidade é tão valioso quanto as abordagens coletivas mais familiares à história social Resta o problema é claro da representatividade de tais indivíduos m as os estudos de caso desse tipo tratados de forma adequada podem ser imensamente esclarecedores Mas em seus esforços para estudar a história vista de baixo os historiadores utilizaram outros tipos de documentação oficial ou semioficial além de uma fonte rica isolada U m exemplo disso é Barbara A Hanawalt que fez um uso extensivo de um a das grandes fontes negligenciadas da história social inglesa a inquirição do coroner23 na reconstrução da vida familiar cam ponesa medieval24 Hanawalt declara que esses registros estão isentos das tendências encontradas nos registros das cortes reais eclesiásticas ou feudais além de apontar voltando a um tema anterior que os detalhes da vida material e das atividades familiares neles assinalados são incidentais ao principal propósito dos registros daí a improbabi lidade de serem distorcidos C om o é tão freqüente quando se trata de registros oficiais eles têm sua maior utilidade quando emprega dos para propósitos que seus compiladores jamais sonharam Com binadas com outras formas de documentação Hanawalt usou as inquirições para compor um quadro do ambiente material da economia familiar das etapas no ciclo de vida nos padrões de educação dos filhos e de outros aspectos da vida cotidiana dos camponeses medievais Em certo sentido seu trabalho demonstra um a estratégia alternativa àquela seguida por Le Roy Ladurie e Ginzburg o exame minucioso de um vasto corpo de documenta ção em vez da construção de um estudo de caso baseado em uma 22 Ginzburg The Cheese and the Worms p xvii 23 Oficial de justiça anglosaxão cargo criado no fim do século XII com parte das atribuições do xerife e cujas funções estão atualmente limitadas à investigação da causa das mortes violentas não naturais ou misteriosas N T 24 Barbara A Hanawalt The Ties that Bound Peasant Families in Medieval England Nova York e O xford 1986 Para um a apresentação mais breve dos objetivos de Hanawalt ver seu artigo Seeking the Flesh and Blood o f M anorial Fam ilies Journal of Medieval History 14 p 3 3 4 5 1988 A ESCRITA DA HISTÓRIA 51 lonte excepcionalmente rica M as o resultado final é um a demons ração de como mais uma forma de documentação oficial pode ser usada para construir a história vista de baixo Esta ampliação do alcance cronológico da história vista de baixo assim como o movimento em direção a um âmbito mais amplo das preocupações históricas do que as ações políticas e os movimentos políticos das m assas levou a uma busca de outros modelos além daqueles proporcionados pelo marxismo tradicio nal ou pelo velho estilo da história do trabalho A necessidade de se manter um diálogo com os estudiosos marxistas é essencial mas permanece claro que até a aplicação para o mundo préindustrial de um conceito marxista básico como aquele é problemática ao mesmo tempo em que é difícil imaginarse uma linha distintamente marxista em um processo de difamação em Yorkshire no século dezesseis ou em uma fraude em Wiltshire no século dezessete Infelizmente a busca de um modelo alternativo admitidamente ainda em seus escassos primórdios até agora alcançou muito pouco sucesso Muitos historiadores especialmente na Europa continental foram inspirados pela escola francesa dos Annales25 Sem dúvida muitos dos vários trabalhos produzidos por escritores que operam dentro da tradição dos Annales não apenas aprofun daram nosso conhecimento do passado mas também proporcio naram incríveis reflexões metodológicas demonstrando o uso inovador que pode ser feito das formas familiares de documentação e o m odo como novas questões sobre o passado podem ser formuladas Além disso a clarificação dos annalistas do conceito de mentalité comprovouse de grande valor para os historiadores que tentaram reconstruir o m undo mental das pessoas das classes inferiores Entretanto eu gostaria de afirmar que a maior contri buição da abordagem dos Annales tem sido a demonstração de como compor o contexto dentro do qual poderia ser escrita a história vista de baixo Por exemplo o conhecimento de um a queda 25 A m elhot introdução para a obra dessa escola é TraianStoianavitch FrencK Historical Method the Annales Paradigm Ithaca e Londres 1976 52 PETER BURKE nos preços dos grãos em um a determinada sociedade durante um dado período ajuda a compor o pano de fundo essencial para a compreensão da experiência do pobre tal evidência quantificada no entanto pode não ser toda a história Outros buscaram modelos na sociologia e na antropologia Aí também em mãos competentes e sensíveis os ganhos têm sido grandes embora mesmo nessas mãos alguns problemas ainda permaneçam enquanto em outras ocorreram alguns desastres Poderia ser argumentado que a sociologia é de maior relevância para os historiadores da sociedade industrial enquanto algumas de suas suposições nem sempre têm sido muito facilmente aplicá veis ao tipo de microestudo da preferência dos profissionais da história vista de baixo26 A antropologia tem atraído muitos histo riadores que estudam tópicos medievais e do início do modernis mo embora aqui também o resultado tenha apresentado alguns problemas27 Algumas dessas questões são esclarecidas pelo traba lho de Alan Macfarlane sobre as acusações de bruxaria na Essex de Tudor e Stuart28 Macfarlane decidiu escrever o que poderia ser descrito como uma história da bruxaria vista de baixo A interpre tação elitista do tema foi anteriormente apresentada pór Hugh TrevorRoper que em seu próprio estudo da bruxaria na Europa no início da era moderna declarou sua falta de interesse em meras crenças em bruxarias aquelas credulidades aldeãs elementares que os antropólogos descobrem em todas as épocas e em todos os 26 Para discussões gerais do relacionamento entre as duas disciplinas ver Peter Burke Sociology and History Londres 1980 e Philip Abram s Historical Sociology Shepton Mallet 1982 27 Duas exposições clássicas da importância dos possíveis elos entre a história e a antropologia são EE EvansPritchard Anthropology and History Manchester 1961 e Keith Thom as History and Anthropology Past and Present 24 p 324 1963 Para um a visão m ais cética ver EP Thom pson Anthropology and the Discipline o f Historical Context Midland History 3 n 1 p 4156 primavera de 1972 28 Alan Macfarlane Witchcraft in Tudor and Stuart England A Regional ancí Comfarative Study Londres 1970 A obra de Macfarlane deveria ser lida em conjunto com Keith Thom as Religion and the Decline of Magic Studies in Popular Beliefs in Sixteenth and SeventeenthCentury England Londres 1971 trabalho abrangente que também deduz consideráveis reflexões da antropologia A ESCRITA DA HISTÓRIA 53 lugares 29 Macfarlane ao contrário imergiu ele próprio nas me iis crenças em bruxarias e produziu um livro que se constituiu m i um importante aprofundamento de nossa compreensão do issunto U m dos elementos mais notáveis em seu projeto foi a aplicação de estudos antropológicos ao material histórico O resul tado foi um aprofundamento de nossas reflexões na função da 1 iruxaria no interior da sociedade da aldeia e a percepção do quanto is acusações de bruxaria eram geradas na maior parte das vezes por um conjunto razoavelmente padronizado de tensões interpessoais Mas a abordagem antropológica ajudou pouco aos leitores na compreensão daquelas dimensões mais amplas do tópico e que são exteriores à comunidade da aldeia por que foi aprovada uma lei no parlamento permitindo a perseguição da bruxaria maléfica em 1563 e por que outra legislação tornando impossível a perseguição legal da bruxaria foi aprovada em 1736 A abordagem micro histórica utilizada preferencialmente pelos modelos antropológicos pode facilmente obscurecer o problema mais geral do lugar onde o poder está concentrado na sociedade como um todo e da natureza de sua operação Por trás de toda a nossa discussão ocultouse uma questão fundamental a história vista de baixo constitui uma abordagem da história ou um tipo distinto de história O ponto pode ser enfocado de ambas as direções Com o abordagem a história vista de baixo preenche comprovadamente duas funções importantes A primeira é servir como um corretivo à história da elite para mostrar que a batalha de W aterloo envolveu tanto o soldado Wheeler quanto o Duque de Wellington ou que o desenvolvimento econômico da GrãBretanha que estava em plena atividade em 1815 envolveu o que Thom pson descreveu como a pobre e sangrenta infantaria da Revolução Industrial sem cujo trabalho e perícia ela teria permanecido um a hipótese não testada 30 A segunda é que oferecendo esta abordagem alternativa a história vista de baixo 29 H R TrevorRoper The European WitchCraze of the Sixteenth and Seventeenth Centuries Harmondsworth 1967 p 9 30 Thom pson History from Below p 280 54 PETER BURKE abre a possibilidade de uma síntese mais rica da compreensão histórica de um a fusão da história da experiência do cotidiano das pessoas com a temática dos tipos mais tradicionais de história Inversamente poderia ser argumentado que a temática da história vista de baixo os problemas de sua documentação e possivelmen te a orientação política de muitos de seus profissionais criam um tipo distinto de história Em certo sentido é claro é difícil estabelecerse uma divisão precisa entre um tipo de história e uma abordagem à disciplina em geral a história econômica a história intelectual a história política a história militar etc têm uma eficácia mínima quando confinadas em caixas hermeticamente fechadas Qualquer tipo de história se beneficia de uma abertura no pensamento do historiador que a está escrevendo Poderia parecer então que a história vista de baixo tem sua maior eficácia quando está situada dentro de um contexto Assim no primeiro número de uma revista destinada em grande medida a este tipo de história o editorial coletivo do History Workshop Journal declarou que nosso socialismo determina nossa preocu pação com as pessoas comuns no passado com sua vida seu trabalho seu pensamento e sua individualidade assim como com o contexto e com as causas determinantes de sua experiência de classe e prosseguiu determina igualmente a atenção que deve m os prestar ao capitalismo31 Com o nossos sentimentos nos recordam a expressão história vista de baixo implica que há algo acima para ser relacionado Esta suposição por sua vez presume que a história das pessoas com uns mesmo quando estão envol vidos aspectos explicitamente políticos de sua experiência passada não pode ser dissociada das considerações mais amplas da estru tura social e do poder social Esta conclusão por sua vez leva ao problema de como a história vista de baixo deve ser ajustada a concepções mais amplas da história Ignorar este ponto ao se tratar da história vista de baixo ou de qualquer tipo de história social é arriscar a emergência de uma intensa fragmentação da escrita da 31 Editorial History Workshop 1 p 3 1971 A ESCRITA DA HISTÓRIA 55 111stória talvez m esm o de algum tipo de antiquarianism o moderno O s perigos foram bem apontados em 1979 por Tony udt N ão é necessário que compartilhemos inteiramente da posição de Judt para simpatizar com a sua preocupação de que não há lugar para a ideologia política na maior parte da história social moderna não mais do que havia na sociologia da qual esta ultima derivou a história social como indiquei anteriormente oi transformada em um a espécie de antropologia cultural retros pectiva 32 O tipo de história vista de baixo introduz outra questão aquela da ampliação da audiência do historiador profissional de permitir um acesso mais amplo à história de um padrão profis sional do que aquele normalmente permitido pelos nobres acadêmicos profissionais e seus alunos Em seu artigo de 1966 Thom pson observou que Tawney e outros historiadores de sua geração tinham um relacionamento incomumente amplo e participante com um público externo aos campos da academia e obviamente lamentou que isso não fosse uma prática comum aos profissionais mais recentes33 Esta questão foi levantada mais recentemente por alguém que trabalha em uma posição ideológi ca bastante diferente daquela de Thom pson David Cannadine Constatando a maciça expansão da história como um a disciplina universitária na GrãBretanha do pósguerra Cannadine comen tou que grande parte desta nova versão profissional da história britânica foi completamente afastada da grande audiência leiga cuja satisfação de sua curiosidade sobre o passado nacional foi um dia a principal função da história Um resultado paradoxal deste período de expansão sem prece dentes foi que cada vez mais os historiadores acadêmicos estavam cada vez 32 Tony Judt A Clow n in Regai Purple Social History and the H istorian History Workshop 7 p 87 1979 33 Thom pson History from Below p 279 56 PETER BURKE mais escreveftdo uma história acadêmica que cada vez menos pessoas realmente lia m 34 U m dos principais objetivos daqueles que escrevem a história vista de baixo particularmente daqueles que trabalham com uma postura socialista ou de história do trabalho era tentar remediar esta situação ampliando seu público e possivelmente proporcio nando uma versão do povo daquela nova síntese de nossa história nacional cujo fim Cannadine lamentava A medida que seus esforços não foram bemsucedidos e a história da elite ainda parece estar muito ao gosto público o próprio Hobsbawm admitiu seu engano na leitura variada de biografias de figuras políticas proemi nentes35 M esmo assim a idéia do acesso ampliado a um conhecimento de nosso passado através da história vista de baixo ainda é atrativa Entretanto permanece o perigo de se cair em algo como a fragmentação do conhecimento histórico e a despolitização da história que tanto contrariaram Ju d t O interesse popular na história vista de baixo como qualquer pessoa que teve de lidar com questões sobre tais tópicos nos encontros da Associação Histórica irá saber está freqüentemente restrito ao que poderia ser chamado de uma visão porãosótão da sociedade do passado sendo este problema exacerbado por alguns aspectos do que atualmente estamos nos acostumando a descrever como história pública Tal visão é a tomada de consciência de que as pessoas fizeram coisas diferentes e então implicitamente estranhas no passado e que muitas delas sofreram privações materiais e supor 34 David Cannadine British History Past Present and Future Past and Present 116 p 177 1987 O trabalho de Cannadine inspirou Com m ents de autoria de PR C oss W illiam Lam onte Neil Evans Past and Present 119 p 171203 1988 O s pontos de vista de Lamont especialmente aqueles expressos nas páginas 180193 sugerem um a abordagem da história vista de baixo para uma nova história nacional enquanto Evans na p 197 declara explicitamente que a história britânica precisa ser m oldada através de um a visão de baixo e transformarse gradualmente em uma compreensão do estado 35 Hobsbawn Som e Reflections p 13 A ESCRITA DA HISTÓRIA 57 taram sofrimentos o que nos permite comparar os dissabores do passado com nossas atuais condições mais amenas M as há pouca tentativa de se levarem os temas adiante ou de se abordarem os problemas históricos em um nível bem mais elevado que a anedota ou a experiência local isolada M çsm o aqueles com uma visão mais desenvolvida do passado do povo não escaparam daquelas acusa ções de antiquarianismo que os historiadores acadêmicos gos tam tanto de lançar sobre seus companheiros menos bem aqui nhoados conceituai e ideologicamente Por isso Roderick Floud criticando a posição de um grupo com idéias muito nitidamente definidas sobre a importância da história do povo pôde declarar que às vezes na verdade o estilo de um Grupo de Trabalho de História tendeu para o antiquarianismo da esquerda para a reunião e publicação de coisas sem importância da vida da classe trabalhadora 36 Embora não se possa simpatizar com o sentido total do argumento de Floud pouca dúvida pode haver de que ele chamou a atenção para um problema genuíno U m a possível resposta a essa crítica é evidentemente que até que algum antiquarianismo de esquerda tenha permitido a construção de um conjunto sólido de material importante até mesm o através da reunião e publicação de coisas sem importância pouca esperança pode haver de se desenvolver uma síntese madura ou uma visão significativa mais ampla U m a segunda resposta e talvez mais válida poderia ser que estudos de caso isolados ou outros estudos similares se contextualizados poderiam conduzir a algo mais significativo que o antiquarianismo Sob circunstân cias apropriadas o estudo de Cario Ginzburg sobre Domenico Scandella pareceria fornecer um bom exemplo o escritor da história vista de baixo pode se beneficiar muito do uso daquilo que os antropólogos poderiam chamar de descrição densa37 O proble ma intelectual que uma técnica desse tipo suscita será familiar aos 36 Roderick Floud Quantitative History and Peoples History History Workshop 17 p 116 1 9 8 4 37 V er Clifford Geertz The Interfjretation of Cultures Nova York 1973 capítulo 1 Thick Description Toward an Ineerpretative T h eory of Culture 58 PETER BURKE historiadoreá sociais o de situar um acontecimento social dentro de seu contexto cultural pleno de forma a ele poder ser estudado mais em um nível analítico que apenas em um nível descritivo Mas obviamente este processo pode ser revertido e uma vez que foi estabelecido um domínio da sociedade em questão o aconteci mento social ou individual isolados como foi o caso do único mas bem documentado moleiro de Friuli podem ser usados para proporcionar uma base para uma compreensão mais profunda daquela sociedade O historiador não necessita adotar o conceito semiótico de cultura defendido por antropólogos como Clifford Geertz para apreciar a utilidade potencial desta técnica E o problema básico a que Geertz se refere aquele do quanto estamos aptos a compreender as pessoas culturalmente diferentes de nós e do quanto estamos aptos a traduzir um a realidade cultural para as idealizações eruditas de livros artigos ou conferências certamen te é familiar ao estudante da história vista de baixo Esperase que as páginas precedentes tenham pelo menos convencido o leitor de que a escrita da história vista de baixo é um projeto que se comprovou extraordinariamente frutífero Atraiu a atenção de historiadores que estão trabalhando em várias socieda des passadas tanto geograficamente variadas quanto cronologica mente estendendose dos séculos treze ao vinte Esses historiadores são oriundos de vários países e de várias tradições intelectuais e posições ideológicas Ao escrever a história vista de baixo esses historiadores buscaram socorro de formas tão variadas quanto a quantificação com a ajuda do computador e da teoria antropoló gica e seus achados apareceram em formatos tão diferentes quanto o artigo erudito técnico e o livro bestseller Chegou o momento de se tirarem algumas conclusões gerais sobre os trabalhadores que operaram neste canto frutífero embora confuso do vinhedo de Clio Está pelo menos claro que vários historiadores foram bem sucedidos na superação dos obstáculos não insignificantes que impedem a prática da história vista de baixo M ais especificamente vários estudiosos reconheceram a necessidade de dar um salto A ESCRITA DA HISTÓRIA 59 conceituai para aumentar sua compreensão das pessoas das classes inferiores nas sociedades passadas e tiveram então de prosseguir para realizar com sucesso aquela proeza de ginástica intelectual Edward Thom pson Cario Ginzburg Emmanuel Le Roy Ladurie e outros partindo de pontos diferentes e tendo em vista objetivos históricos diferentes foram todos capazes de demonstrar como a imaginação pode interagir com aerudição para ampliar nossa visão do passado Além disso o trabalho desses e de outros historiadores mostrou como a imaginação histórica pode ser aplicada não somente para estruturar novas conceituações sobre a temática da história mas também para questionar de outra forma os documen tos e fazer coisas diferentes com eles Há duas ou três décadas atrás muitos historiadores teriam negado a possibilidade com base em evidências de se escrever uma história séria sobre vários temas que agora são familiares crime cultura popular religião popular a família camponesa Desde medievalistas tentando reconstruir a vida das comunidades históricas até historiadores orais registrando e descrevendo a vida das primeiras gerações no século vinte os historiadores que trabalham com esta visão de baixo mostraram como o uso imaginativo do material da fonte pode esclarecer muitas áreas da história que de outra forma poderia se supor estarem mortas e condenadas a permanecer na escuridão Mas a importância da história vista de baixo é mais profunda do que apenas propiciar aos historiadores uma oportunidade para mostrar que eles podem ser imaginativos e inovadores Ela propor ciona também um meio para reintegrar sua história aos grupos sociais que podem ter pensado têla perdido ou que nem tinham conhecimento da existência de sua história Com o já observamos a colocação inicial da história vista de baixo na história da Revolução Francesa ou na história do movimento trabalhista britânico causa aqui alguns problemas embora permaneça verda deiro que o trabalho sobre a m assa populacional no séculotdezoito ou a classe trabalhadora do século dezenove tenha proporcionado alguns dos mais significativos exemplos de como a história inopi nada de setores da população pode ser descoberta O s propósitos 60 PETER BURKE da história sãô variados mas um deles é prover aqueles que a escrevem ou a lêem de um sentido de identidade de um sentido de sua origem Em um nível mais amplo este pode tomar a forma do papel da história embora fazendo parte da cultura nacional na formação de uma identidade nacional A história vista de baixo pode desempenhar um papel importante neste processo recordan donos que nossa identidade não foi estruturada apenas por monarcas primeirosministros ou generais Este ponto tem outras implicações Em um livro sobre a história de um grupo que era inegavelmente de baixo os escravos negros nos Estados U nidos no período préGuerra Civil Eugene D Genovese declarou que o seu principal objetivo era explorar a questão da nacionalidade da identidade que seguiu furtivamente a história afroamericana desde seus primórdios coloniais 38 Mais uma vez como por exemplo no trabalho de Thom pson sobre a classe trabalhadora inglesa o uso da história para auxiliar a autoidentificação é fundamental M as poderia ser observado que o livro de Genovese tem o subtítulo de O M undo que os Escravos Construíram Para Genovese os seres humanos que formavam sua temática embora sem dúvida socialmente inferiores foram capazes de construir um mundo para si por isso eram atores históricos criaram história muito mais do que foram apenas um problema que contribuiu para envolver políticos e soldados brancos em um a guerra civil e que os políticos brancos iam finalmente resolver A maior parte daqueles que escreveram a história vista de baixo aceitariam em um sentido amplo a opinião de que um dos resultados de terem seguido essa abordagem tem sido demonstrar que os membros das classes inferiores foram agentes cujas ações afetaram o mundo às vezes limitado em que eles viviam Voltamos à argumentação de Edward Thom pson de que as pessoas comuns não eram apenas um dos problemas com que o governo tinha de lidar Mas lamentavelmente temos de admitir que embora o con ceito tenha estado conosco por mais de duas décadas a história 38 Eugene D Genovese Roll Jordan Roll the World the Slaves Made Londres 1975 p xv A ESCRITA DA HISTÓRIA 61 vista de baixo até agora causou comparativamente pouco impacto na história da corrente principal ou na alteração das perspectivas dos historiadores da corrente principal Encarando o problema por um de seus níveis básicos os compêndios de iniciação à história têm pouco a dizer sobre o assunto A maior parte dos estudantes que deseja descobrir de que trata a história ou como ela deve ser feita ainda se volta ou é dirigida pára o que é atualmente uma obra absolutamente obsoleta What is History de EH Carr Lá encon trarão uma visão bastante limitada do que poderia ser a resposta a essa intrigante pergunta Em particular descobrirão que Carr não tem a imaginação aberta em relação à temática da história que historiadores posteriores demonstraram e que Braudel e outros escritores da tradição inicial dos Annales já haviam estabelecido antes de ele ter escrito o seu livro Por isso sua declaração de que A travessia de C ésar daquele pequeno riacho o Rubicão é um fato histórico enquanto a travessia do Rubicão por milhares de pessoas antes ou depois dele não interessa absolutamente a ninguém sugere que a história do transporte da migração e da mobilidade geográfica não lhe ocorreram Similarmente seus problemas de aceitação da morte a pontapés de um vendedor de pão de gengibre em Stalybridge W akes em 1850 como um fato histórico insinuase que o vendedor de pão de gengibre pode ter tido um a visão mais clara do tema demonstra que ele não havia considerado a história do crime como um tema39 Se um a obra for escrita para substituir a de C arr como um compêndio de iniciação à história é óbvio que seu autor à luz da história vista de baixo e dos desenvolvimentos recentes mais amplos da história social necessariamente terá um a visão mais ampla do passado Por conseguinte nosso ponto final deve ser que por mais valiosa que a história vista de baixo possa ser no auxílio ao estabelecimento da identidade das classes inferiores devet ser retirada do gueto ou da aldeia de camponeses das ruas da classe 39 EH Carr What is History Harm ondsworth 1961 p 1112 62 PETER BURKE i trabalhador dos bairros miseráveis ou dos altos edifícios e usada para criticar redefinir e consolidar a corrente principal da história Aqueles que escrevem a história vista de baixo não apenas propor cionaram um campo de trabalho que nos permite conhecer mais sobre o passado também tornaram claro que existe muito mais que grande parte de seus segredos que poderiam ser conhecidos ainda estão encobertos por evidências inexploradas Desse modo a história vista de baixo mantém sua aura subversiva Há um perigo distante de que ela como ocorreu com a escola dos Annales possa se tornar uma nova ortodoxia mas no momento ainda faz troça da corrente principal Certamente existirão historiadores tanto acadêmicos quanto populares que planejarão escrever livros que implícita ou explicitamente neguem a possibilidade de uma recria ção histórica significativa das vidas das m assas mas seus motivos para agir assim serão cada vez mais duvidosos A história vista de baixo ajuda a convencer aqueles de nósnascidos sem colheres de prata em nossas bocas de que temos um passado de que viemos de algum lugar Mas também com o passar dos anos vai desem penhar um importante papel ajudando a corrigir e a ampliar aquela história política da corrente principal que é ainda o cânone aceito nos estudos históricos britânicos HISTÓRIA DAS MULHERES Joan Scott A história que se pode escrever dos estudos sobre as mulheres pertence também ao movimento não é uma metalinguagem e irá atuar tanto como um momento conservador quanto como um momento subversivo não há uma interpretação teoricamente neutra da história dos estudos sobre as mulheres A história terá aí um papel atuante1 Jacques Derrida 1984 A história das mulheres apareceu como um campo definível principalmente nas duas últimas décadas Apesar das enormes diferenças nos recursos para ela alocados em sua representação e em seu lugar no currículo na posição a ela concedida pelas universidades e pelas associações disciplinares parece não haver mais dúvida de que a história das mulheres é uma prática estabe lecida em muitas partes do mundo Embora a situação dos Estados Unidos seja única pelo fato de a história das mulheres ter atingido Professora de Ciências Sociais no Instituto de Estudos Avançados em Princenton 1 W om en in the Beehive A seminar with Jacques Derrida transcrito do seminário com Derrida prom ovido pelo Centro Pembroke para o Ensino e a Pesquisa em SubjectsObjects Primavera de 1984 p 17 64 PETER BURKE uma presenea visível e influente na academia há evidência clara em artigos e livros na autoidentificação dos historiadores que se pode encontrar em conferências internacionais e nas redes infor mais que transmitem as notícias do mundo intelectual da participação internacional no movimento da história das mulheres Utilizo o termo movimento deliberadamente para distin guir o fenômeno atual dos esforços anteriormente disseminados por alguns indivíduos para escrever no passado sobre as mulheres para sugerir algo da qualidade dinâmica envolvida nos intercâm bios no nível nacional e nos interdisciplinares pelos historiadores das mulheres e ainda para evocar as associações com a política A conexão entre a história das mulheres e a política é ao m esmo tempo óbvia e complexa Em uma das narrativas convencionais das origens deste campo a política feminista é o ponto de partida Esses relatos situam a origem do campo na década de 60 quando as ativistas feministas reivindicavam uma história que estabelecesse heroínas prova da atuação das mulheres e também explicações sobre a opressão e inspiração para a ação Foi dito que as feministas acadêmicas responderam ao chamado de sua história e dirigiram sua erudição para uma atividade política mais ampla no início houve uma conexão direta entre política e intelectualidade M ais tarde em algum momento entre a metade e o final da década de 70 continua o relato a história das mulheres afastouse da política Am pliou seu campo de questionamentos documentando todos os aspectos da vida das mulheres no passado e dessa forma adquiriu um a energia própria O acúmulo de monografias e artigos o surgimento de controvérsias internas e o avanço de diálogos interpretativos e ainda a emergência de autoridades intelectuais reconhecidas foram os indicadores familiares de um novo campo de estudo legitimado em parte ao que parecia por sua grande distância da luta política Finalmente assim prossegue a trajetória o desvio para o gênero2 na década de 80 foi um rompimento definitivo com a política e propiciou a este campo conseguir o seu 2 Gênero aqui como divisão natural dos sexos N T A ESCRITA DA HISTÓRIA 65 próprio espaço pois gênero é um termo aparentemente neutro desprovido de propósito ideológico imediato A emergência da história das mulheres como um campo de estudo envolve nesta interpretação uma evolução do feminismo para as mulheres e daí para o gênero ou seja da política para a história especializada e daí para a análise Certamente esta narrativa tfem variações significativas depen dendo de quem a relata Em algumas versões a evolução é encarada positivamente como um resgate da história tanto de princípios políticos de interesses estreitos quanto de um enfoque demasiado exclusivo sobre as mulheres ou de suposições filosoficamente ingênuas Em outras a interpretação é negativa a retirada para a academia para não falar do desvio para o gênero e para a teoria sendo encarada como um sinal de despolitização O que ocorre com o feminismo quando o movimento das mulheres está morto perguntou recentemente Elaine Showalter Tornase estudos so bre as mulheres apenas outra disciplina acadêmica3 Entretanto apesar das diferentes valências colocadas no relato a trajetória em si é compartilhada por muitas feministas e seus críticos como se fosse incontestavelmente o m odo como as coisas aconteceram Gostaria de argumentar que a narrativa necessita de alguma reflexão crítica não apenas por não ser tão simples mas também porque representa mal a história da história das mulheres e seu relacionamento tanto com a política quanto com a disciplina da história A história deste campo não requer somente uma narrativa linear mas um relato mais complexo que leve em conta ao mesmo tempo a posição variável das mulheres na história o movimento feminista e a disciplina da história Embora a história das mulheres esteja certamente associada à emergência do feminismo este não desapareceu seja como uma presença na academia ou na sociedade em geral ainda que os termos de sua organização e de sua existência tenham mudado Muitos daqueles que usam o termo gênero na 3 Citado em Karen W inlder W om ens Studics After Two Decades Debates over Politics New Directions for Research The Chromcle of Higher Educacion 28 de setembro de 1988 p A6 66 PETER BURKE verdade se denQminam historiadores feministas Isso não é somen te um a subm issão política mas também uma perspectiva teórica que os leva a encarar o sexo como um modo melhor de conceituar a política Muitos daqueles que escrevem a história das mulheres consideramse envolvidos em um esforço altamente político para desafiar a autoridade dominante na profissão e na universidade e para mudar o m odo como a história é escrita E grande parte da atual história das mulheres mesmo quando opera com conceitos de gênero está voltada para as preocupações contemporâneas da política feminista entre eles nos Estados U nidos atualmente o bemestar o cuidado dos filhos e o direito ao aborto N a verdade há uma razão importante para se argumentar que os desenvolvi mentos na história das mulheres estão fortemente relacionados à força crescente e à legitimidade do feminismo como um movimen to político4 como também para insistir que está aumentando a distância entre o trabalho acadêmico e o político Mas tomarse a história das mulheres simplesmente como um reflexo do cresci mento da política feminista externa à academia também é falho Mais do que postular uma simples correlação precisamos pensar sobre este campo como um estudo dinâmico na política da produção de conhecimento A palavra política é usada atualmente em vários sentidos Primeiro em sua definição mais típica ela pode significar a atividade dirigida paraou em governos ou outras autoridades poderosas atividade essa que envolve um apelo à identidade coletiva à mobilização de recursos à avaliação estratégica e à m anobra tática Segundo a palavra política é também utilizada para se referir às relações de poder mais gerais e às estratégias visadas para mantêlas ou contestálas5 Terceiro a palavra política é 4 Nancy Fraser e Linda N icholson Social Criticism W ithout Philosophy manuscrito inédito 1987 p 29 5 Politics in the profound sense as the ensemble o f hum an relations in their real social structure in their ability to construct the world Roland Barthes Mythologies Paris 1957 p 230 V er também Michel Foucauk The History ofSexuality v I An íntroduction N ova York 1980 p 92102 A ESCRITA DA HISTÓRIA 67 aplicada ainda mais amplamente a práticas que reproduzem ou desafiam o que é às vezes rotulado de ideologia aqueles sistemas de convicção e prática que estabelecem as identidades individuais e coletivas que formam as relações entre indivíduos e coletividades e seu mundo e que são encaradas como naturais normativas ou autoevidentes6 Essas definições correspondem a diferentes tipos de ação e diferentes esferas de atividade mas a minha utilização da palavra política para caracterizar tudo isso sugere que os limites de definição e es paço são indistintos e que inevitavelmente qualquer utilização tem múltiplas ressonâncias A narrativa da história das mulheres que eu desejo fazer depende dessas múltiplas ressonâncias é sempre uma narrativa política Profissionalismo versus política O feminismo tem sido nas últimas décadas um movimento internacional mas possui características particulares regionais e nacionais Pareceme útil focalizar os detalhes do caso que melhor eu conheço o dos Estados U nidos para fazer algumas observa ções gerais N os Estados U nidos O feminismo ressurgiu nos anos 60 estimulado em parte pelo movimento dos Direitos Civis e pelas políticas do governo destinadas a estabelecer o potencial feminino para ir ao encontro da expansão econômica através da sociedade incluindo as profissões e a academia M oldou seu apelo e sua autojustificativa nos termos da retórica prevalecente de igualdade N o processo o feminismo assumiu e criou uma identidade coletiva de mulheres indivíduos do sexo feminino com um interesse compartilhado no fim da subordinação da invisibilidade e da 6 Gayatri Chakravorty Spivak The Politics o f Interpretation em W JT Mitchell The Politics of Interpretation Chicago 1983 p 34766 Mary Poovey tUneven Deveofments The Ideological WorkofGender in midVictorian England Chicago 1988 V er tam bém ideologia no glossário de Louis Althusser e Etienne Balibar Reading Capital trad de Ben Brewster Londres 1979 p 314 68 PETER BURKE impotência criando igualdade e ganhando um controle sobre seus corpos e sobre suas vidas Em 1961 por ordem de Esther Peterson dirigente da Divisão de Mulheres do Departamento de Trabalho o presidente Kennedy estabeleceu uma Com issão sobre a Condição da Mulher Seu relatório em 1963 documentou o fato de que eram negados às mulheres americanas iguais direitos e oportunidades e recomen dou a criação de cinqüenta comissões estaduais Em 1964 quando a Com issão para Oportunidades Iguais de Emprego Equal Em ployment Opportunity Com m ission EEOC foi estabelecida pelo Ato dos Direitos Civis a discriminação sexual foi incluída em sua jurisdição acrescentada por um legislador hostil para desacreditar o sétimo direito do Ato Em 1966 delegados do terceiro encontro da Conferência Nacional das Com issões Estaduais sobre a Condi ção da Mulher votaram uma resolução que pressionava a EEOC para fazer valer a proibição contra a discriminação sexual tão seriamente quanto ela o fez contra a discriminação racial As mulheres que apresentaram a emenda derrotada encontraramse então para decidir sua próxima ação e formaram a Organização Nacional das M ulheres7 Mais ou menos na mesm a época as jovens do grupo Estudantes por um a Sociedade Democrática e do Movimento dos Direitos Civis começaram a articular seus agravos exigindo reconhecimento de seu papel de mulheres como partici pantes ativos e iguais nos movimentos políticos para a mudança social8 N o reino da política tradicional as mulheres tornaramse um grupo identificável pela primeira vez desde o movimento sufragista na virada do século Durante os anos 60 também as faculdades as escolas de graduação e as fundações começaram a estimular as mulheres a obterem PhDs oferecendo bolsas de estudo e um considerável apoio financeiro E claro comentou um autor que as mulheres 7 Jo Freeman W om en on the Move Roots o f Revolt em Alice S Rossi e Ann Calderwood ed Academic Women on the Move Nova York 1973 p 137 Ver também os ensaios de Alice Rossi e Kay Klotzburger no m esm o volume 8 Sara Evans Personal Politics N ova York 1979 A ESCRITA DA HISTÓRIA 69 constituem um a importante força latente para as faculdades e as universidades carentes de bons professores e pesquisadores9 Em bora autores tão diversos quanto diretores de faculdades e acadêmicos feministas reconhecessem que tinha havido precon ceitos contra as mulheres nas profissões intelectualizadas eles tendiam a concordar que os obstáculos cairiam por terra se as mulheres buscassem uma formação de nivel superior10 É interes sante à luz das discussões teóricas subseqüentes que a atuação das mulheres foi aqui presumida como opção espontânea atores racionais as mulheres eram chamadas para se inserirem em profissões que previamente as havia excluído ou subutilizado N o espaçaaberto pelo recrutamento de mulheres o feminismo logo apareceu para reivindicar mais recursos para as mulheres e para denunciar a persistência da desigualdade As feministas na academia declaravam que os preconceitos contra as mulheres não haviam desaparecido ainda que elas tivessem credenciais acadêmi cas ou profissionais e se organizaram para exigir uma totalidade de direitos aos quais suas qualificações presumivelmente lhes davam direito N as associações das disciplinas acadêmicas as mulheres formavam facções para pressionar suas exigências Essas incluíam maior representação nas associações e nas reuniões de intelectuais atenção às diferenças salariais entre homens e mulhe res e um fim à discriminação nos contratos nos títulos e nas promoções A nova identidade coletiva das mulheres na academia anunciava uma experiência compartilhada de discriminação basea da na diferenciação sexual e também admitia que as historiadoras com o um grupo tinham necessidades e interesses particulares que não poderiam ser subordinados à categoria geral dos historiadores Sugerindo que as historiadoras eram diferentes dos historiadores 9 Citação de Barnaby Keeney Reitora da Brown University Pembroke Alumnae 27 n 4 p 1 outubro de 1962 10 Keeney Ibid p 89 Jessie Bernard Academic Women Cleveland 1966 Lucille A ddison Pollard Women on College and University Faculties A Historical Survey and a Study of the ir present Academic Status Nova Yorjc 1977 Ver especialmente a p 296 70 PETER BURKE e que seu sexo influenciava suas oportunidades profissionais as feministas disputavam os termos universais e unitários que em geral designavam os profissionais e lançavam a acusação de que eles haviam politizado previamente organizações nãopolíticas Em 1969 o recémformado Com itê de Coordenação de M u lheres na Profissão Histórica apresentou no encontro profissional da Associação Histórica Americana AHA resoluções dirigidas a melhorar a condição das mulheres o que ocorreu dentro de uma atmosfera tensa e altamente carregada Normalmente destinada a discussões de leis secundárias e política organizacional o papel não a política da associação esses encontros eram em geral um modelo de boa camaradagem e decoro As discordâncias quando ocorriam poderiam ser atribuídas às diferenças de opinião pessoal preferência ou mesmo de persuasão política à prioridade institu cional ou regional mas nenhuma delas era fundamental nenhuma delas a plataforma de um interesse identificável em desacordo com o todo Por seu tom sua prontidão para a luta e sua exigência em representar uma entidade coletiva a quem sistematicamente foram negados os seus direitos as mulheres romperam as normas de conduta e desafiaram as implicações de trabalho comosem pre N a verdade acusaram que o trabalho como sempre era em si uma forma de política pois ignorava e assim perpetuava a sistemática exclusão em termos de gênero e raça de profissionais qualificados O ataque ao poder entrincheirado teve pelo menos dois resultados obteve concessões da AHA sob a forma de um comitê ad hoc para averiguar as questões levantadas um comitê que publicou um relatório em 1970 reconhecendo a condição inferior das mulheres e recomendando várias medidas puniti vas incluindo a criação de um comitê permanente sobre as mulheres e resultou na crítica da conduta das mulheres como nãoprofissional A oposição entre profissionalismo e política não é uma oposição natural mas parte da autodefinição da profissão como uma prática especializada baseada na posse compartilhada de extensivo conhecimento adquirido através da educação Há dois A ESCRITA DA HISTÓRIA 71 aspectos distintos mas em geral inseparáveis da definição de uma profissão U m deles envolve a natureza do conhecimento produzi do neste caso do que se considera como história O outro envolve as funções de barreira que estabelecem e reforçam os padrões mantidos pelos membros da profissão neste caso os historiadores Para os historiadores profissioYiais do século vinte a história é o conhecimento do passado obtido por meio de investigação desin teressada e imparcial o interesse e a parcialidade são a antítese do profissionalismo e universalmente disponível para quem quer que tenha dom inado os procedimentos científicos requeridos11 O acesso repousa então neste domínio cuja possessão se supõe evidente àqueles que já são profissionais e que por si só podem julgar O dom ínio não pode ser uma questão de estratégia ou de poder mas apenas de educação e treinamento A qualidade de membro na profissão histórica confere responsabilidade aos indi víduos que se tornam os guardiães daquele conhecimento que é o seu campo de ação especial A guarda e o domínio são portanto a base para a autonomia e para o poder de determinar o que conta com o conhecimento e quem o possui E além disso é claro as profissões e as organizações profissio nais são estruturadas hierarquicamente os estilos e padrões domi nantes operam para incluir alguns e excluir outros da qualidade de membros O dom ínio e a excelência podem ambos explici tar julgamentos de capacidade e desculpas implícitas para tendên cias viciosas na verdade os julgamentos de capacidade estão com freqüência entrelaçados com avaliações de uma identidade social do indivíduo que são irrelevantes à competência profissional12 C om o separar esses julgamentos e realmente se eles podem ser afinal separados são questões não apenas de estratégia mas de 11 Peter Novick That Noble Dream The Objectivity Question and the American Historical Profession N ova York 1988 12 Sobre a questão do acesso ver Mary G Dietz Context is Ali Fem infsm and Theories o f Citizenship Jill K Conway Politics Pedagogy and G ender e Joan W Scott History and Difference todos em Daedalus outono de 1987 p 124 13752 93118 respectivamente 72 PETER BURKE epistem ologiaA oposição entre política e profissionalism o conseguiu pouco a pouco obscurecer a questão epistemológica N a AHA as mulheres os negros os judeus os católicos e os nãocavalheiros foram sistematicamente subrepresentados durante anos13 Esta situação era periodicamente observada e protestada alguns historiadores combinaram esforços para remediar a discri minação mas os termos e o estilo de protesto eram diferentes daqueles utilizados após 1969 N os primeiros tempos seja se recusando a comparecer a uma convenção marcada em um hotel segregacionista seja insistindo para que as mulheres fossem incluí das nos encontros profissionais os historiadores que participavam do protesto alegavam que a discriminação baseada em raça reli gião etnia ou sexo prejudicava o reconhecimento de historiadores qualificados Aceitando o conceito do que a profissão deveria ser argumentavam que a política não tinh espaço ali sua ação declaravam estava direcionada à realização dos verdadeiros ideais profissionais Em contraste a implicação dos protestos de 1969 e posteriores era que as profissões eram organizações políticas nos múltiplos significados da palavra política apesar do decoro de seus membros e apenas a ação coletiva poderia modificar as relações de poder prevalecentes Durante os anos 70 as mulheres da AHA e de outras associações profissionais uniram suas lutas locais por reconhecimento e representação às campanhas nacionais das mu lheres especialmente àquela para a Emenda dos Direitos Iguais à Constituição Equal Rights Am endm ent ERA e insistiram em que as associações profissionais como um todo tomassem uma posição nessas questões nacionais Rejeitavam a sugestão de que a ERA fosse irrelevante para as questões da AHA argumentando que ciência não era neutralidade mas cumplicidade com discrimina ção N o interior das organizações noções sagradas como excelên cia intelectual e qualidade da mente foram investidas por tantas capas de tratamento discriminatório que deveriam ser substituídas 13 Howard K Beale The Professional H istorian H isT h eoryand His Practice Pacific Historical Revieiv 22 p 235 agosto de 1953 A ESCRITA DA HISTÓRIA 73 por medidas quantitativas de ação afirmativa O s padrões profis sionais de imparcialidade e desinteresse estavam sendo derrubados por interesses particulares ou assim parecia àqueles que manti nham a visão normativa N o entanto outra maneira de ver o problema é tratar o desafio das mulheres como um a questão de redefinição profissio nal pois a presença de mulheres organizadas contestava a noção de que a profissão da história fosse um corpo unitário Insistindo em que havia um a identidade de historiadoras em desacordo com aquela dos hom ens e sugerindo também que a raça separava os historiadores brancos dos negros as feministas questionavam se algum dia poderia haver avaliações imparciais do saber sugerin do que elas não eram mais que a atitude hegemônica de um ponto de vista interessado Elas não puseram de lado os padrões profis sionais na verdade continuaram a defender a necessidade da educação e de julgamentos de qualidade instituindo entre outras coisas concursos para trabalhos de valor sobre a história das mulheres Embora certamente se possa citar evidência de tenden ciosidade entre os historiadores das mulheres isso não caracteri zava o campo como um todo nem era ou é algo peculiar às feministas E mesmo o tendencioso não defendia a distorção deliberada dos fatos ou á supressão da informação em prol da causa14 A maior parte dos historiadores das mulheres não 14 Esta questão surgiu de várias maneiras diferentes mais recentemente em conexão com o caso da Sears N o decorrer de um processo de discriminação de sexo movido contra a cadeia de lojas Sears Roebuck and Com pany duas historiadoras das mulheres Rosalind Rosenberg e Alice KesslerHarris testemunharam em lados opostos O caso provocou um a enorme controvérsia entre os historiadores a respeito das implicações políticas da história das mulheres e dos comprometimentos políticos das historiadoras feministas Houve acusações de má fé de am bos os lados mas as acusações m ais recentes e bem mais contundentes de Sanford Levinson e Thom as Haskell em defesa de Rosenberg insistem em que KesslerHarris distorceu delibera damente a história no interesse da política enquanto Rosenberg defendeu bravamen te a verdade A oposição entre política e verdade ideologia e história compõe a estrutura de seu ensaio e lhe proporciona seu tom aparentemente objetivo e desapaixonado enquanto lhes permite passàr por cima de todas as difíceis dificul dades epistemológicas que o caso levantou e isso eles apontam na nota de rodapé n 136 V er Academ ic Freedom and Expert W ifnessing Historians and the Sears C ase Texas Law Review 667 p 30131 outubro de 1988 Sobre o caso da Sears 74 PETER BURKE rejeitava a questão do saber e do conhecimento que é a base fundamental de uma profissão N a verdade aceitavam as leis da academia e buscavam reconhecimento como intelectuais Empre gavam as regras de linguagem exatidão evidência e investigação que tornavam possível a comunicação entre os historiadores15 E no processo buscavam e adquiriam posição como profissionais no campo da história Ao mesmo tempo no entanto desafiavam e subvertiam aquelas regras questionando a constituição da discipli na e as condições de sua produção de conhecimento16 Sua presença contestava a natureza e os efeitos de um corpo uniforme e inviolável de padrões profissionais e de uma única figura o homem branco para representar o historiador De fato as historiadoras feministas insistiram em que não havia oposição entre profissionalism o e política introduzin do um conjunto de questões profundamente perturbadoras sobre as hierarquias as bases e as hipóteses que governavam o em preendimento histórico Q ue padrões que definições de profis sionalism o estão em voga Q ue consenso representam Com o se chegou ao consenso Q ue outros pontos de vista foram excluídos ou suprimidos Q ue perspectiva determina o que se considera como sendo uma boa história ou para aquela questão como história C ase Texas Law Review 667 p 30131 outubro de 1988 Sobre o caso da Sears vet tam bém Ruth M ilkm an W om en s History and the Sears C ase Feminist Studies 12 p 375400 verão de 1986 e Joan W Scott The Sears C ase em Scott Gender and the Politics of History Nova York 1988 p 16777 15 Ellen Somekawa e Elizabeth A Smith Theorizing the W riting o f History or I cant think why it should be so dull for a great deal o f it m ust be invention Journal of Social History 221 p 14961 outono de 1988 16 Sobre o potencial da história das mulheres para transformar a história ver A nn Gordon M ari Jo Buhle e Nancy Schrom Dye The Problem ofW om ens History em Berenice Carroll ed Liberating Womens History Urbana 1976 Natalie Zemon Davis W om ens History in Transition The European C ase Feminist Studies 3 p 83103 1976 Joan Kelly Women History and Theory Chicago University of Chicago Press 1984 Carl Degler W hat the W om ens M ovem ent has done to American History Soundings 64 p 419 inverno de 1981 A ESCRITA DA HISTÓRIA 75 História versus ideologia A emergência da história das mulheres como um campode estudo acompanhou as campanhas feministas para a melhoria das condições profissionais e envolveu a expansão dos limites da história M as esta não foi uma operação direta ou linear não foi simplesmente uma questão de adicionar algo que estava anterior mente faltando Em vez disso há uma incômoda ambigüidade inerente ao projeto da história das mulheres pois ela é ao mesmo tempo um suplemento inócuo à história estabelecida e um deslo camento radical dessa história Este gume duplo é visível em muitas declarações feitas pelos proponentes do novo campo no início dos anos 70 mas foi mais bem expresso por Virginia W oolf em 1929 Em A Room of Ones O um W oolf abordou a questão da história das mulheres como muitos de seus contemporâneos fizeram no período que se seguiu à concessão do direito de voto às mulheres na Inglaterra e nos Estados U n idos17 Ela divaga sobre as inadequações da história existente uma história que necessita ser reescrita diz ela porque freqüentemente parece um pouco estranho como se fosse irreal desequilibrado ou seja Carente insuficiente incompleto A pa rentemente se afastando da reescrita da história ela apresenta como tentativa o que parece ser outra solução Por q u e não acrescentar um suplemento à história chamandoo é claro por algum nome discreto de forma que as mulheres pudessem ali aparecer sem impropriedade A invocação de W oolf de um suplemento parece apresentar um compromisso mas não o é O delicado sarcasmo de seus comentários sobre um nome discreto e a necessidade de propriedade sugere um projeto complicado ela o chama de am bicioso além da minha coragem que mesmo quando ela tenta circunscrever as dificuldades evoca implicações contraditórias18 17 Entre essas estavam Ivy Pinchbeck Women Workers and the Industrial Revolution 17501850 Londres 1930 e Mary Beard On Understanding Women Nova York 1931 e America Through Womens Eyes N ova York 1934 18 Virginia W oolf A Room ofO nes O um Nova York 1929 p 47 PETER BURKE A s mulhereg estão ao mesmo tempo adicionadas à história e provocam sua reescrita elas proporcionam algo extra e são neces sárias à complementação são supérfluas e indispensáveis O uso que W oolf faz do termo suplemento recorda a análise de Jacques Derrida o que me auxilia a analisar o relacionamento da história das mulheres com a história No projeto de descons trução da metafísica ocidental Derrida apontou certos indicado res que resistem e desorganizam as oposições binárias sem chegarem a constituir um terceiro termo ou uma resolução dialética São dilacerados devido a sua indefinição implicam simultaneamente significados contraditórios que são impossíveis até de serem classificados separadamente O suplemento é uma dessas indefinições N a França como na Inglaterra ele significa tanto uma adição quanto um a substituição E algo adicionado extra supérfluo acima e além do que já está inteiramente presente é também uma substituição para o que está ausente incompleto carente por isso requerendo complementação ou integralidade O suplemento não é algo a mais ou a menos nem algo externo ou o complemento a algo interno nem também um acidente ou um a essência 19 Ele é nas palavras de Barbara Johnson supér fluo e necessário perigoso e redentor Tanto como significante quanto como significado não é possível precisar a distinção entre excesso e falta compensação e corrupção20 Eu gostaria de dizer que pensando em termos da lógica contraditória do suplemento podemos analisar a ambigüidade da história das mulheres e sua força política potencialmente crítica uma força que desafia e desestabiliza as premissas disciplinares estabelecidas mas sem oferecer um a síntese ou uma resolução fácil O desconforto subjacente a tal desestabilização conduziu não apenas à resistência por parte dos historiadores tradicionais mas 19 Jacques Derrida Posicions trad de Alan Bass Chicago 1981 p 43 V et tam bém Derrida O f Grammatology trad de Gayatri Chakravorty Spivak Baltimore 1974 p 14164 20 Barbara Johnson introdução a sua tradução de Disseminations de Derrida Chicago 1981 p xiií A ESCRITA DA HISTÓRIA 77 também a um desejo de resolução por parte dos historiadores das mulheres Entretanto não há resolução simples mas apenas a possibilidade de constante atenção aos contextos e significados no interior dos quais são formuladas as estratégias políticas subversi vas É dentro desse tipo de estrutura analítica que podemos melhor compreender os contextos sobre poder e conhecimento que carac terizam a emergência deste campo A maior parte da história das mulheres tem buscado de alguma forma incluir as mulheres como objetos de estudo sujeitos da história Tem tomado como axiomátíca a idéia de que o ser hum ano universal poderia incluir as mulheres e proporcionar evidência e interpretações sobre as várias ações e experiências das mulheres no passado Entretanto desde que na moderna historio grafia ocidental o sujeito tem sido incorporado com muito mais freqüência como um homem branco a história das mulheres inevitavelmente se confronta com o dilema da diferença assim denominado pela jurista teórica americana Martha Minow21 Este dilema se apresenta porque a diferença é construída através da verdadeira estrutura da nossa linguagem que embute pontos de comparação não estabelecidos no interior de categorias que ocul tam sua perspectiva e implicam erroneamente um ajustamento natural com o m undo 22 O universal implica uma comparação com o específico ou o particular homens brancos com outros que não são brancos ou não são homens homens com mulheres Mas essas comparações são mais freqüentemente estabelecidas e com preendidas como categorias naturais entidades separadas do que como termos relacionais Por isso reivindicar a importância das mulheres na história significa necessariamente ir contra as defi nições de história e seus agentes já estabelecidos como verda deiros ou pelo menos como reflexões acuradas sobre o que aconteceu ou teve importância no passado E isso é lutar contra 21 M artha Minow The Suprem e C ourt 1986 Term Foreword justice Engendered Harvard Law Review 101 n 1 p 995 novembro dç 1987 22 Ibid p 13 78 PETER BURKE padrões consolidados por comparações nunca estabelecidas por pontos de vistá jamais expressos como tais23 A história das mulheres sugerindo que ela faz uma modificação da história investiga o modo como o significado daquele termo geral foi estabelecido Questiona a prioridade relativa dada à história do hom em em oposição à história da mulher expon do a hierarquia implícita em muitos relatos históricos Ê mais fundamentalmente desafia tanto a competência de qualquer rei vindicação da história de fazer um relato completo quanto à perfeição e à presença intrínseca do objeto da história o Homem universal Embora todos os historiadores das mulheres não apre sentem diretamente estas questões seu trabalho implicaas Atra vés de que processos as ações dos homens vieram a ser conside radas uma norma representativa da história hum ana em geral e as ações das mulheres foram subestimadas subordinadas ou consignadas a uma arena particularizada menos importante Que comparações não estabelecidas estão implícitas em termos como história e o historiador Que perspectiva estabelece os hom ens como atores históricos primários Qual é o efeito sobre as práticas estabelecidas da história de se olhar os acontecimentos e as ações pelo lado de outros sujeitos as mulheres por exemplo Qual o relacionamento entre o historiador e os sujeitos sobre os quais eleela escreve Michel de Certeau vê o problema da seguinte forma O fato de a particularidade do lugar onde o discurso é produzido ser relevante ficará naturalmente mais evidente quando o discurso historiográ fico tratar das questões que focalizam o sujeitoprodutor da história a história das mulheres dos negros dos judeus das minorias culturais etc Nesses campos podese é claro sustentar que a condição pessoal do autor é indiferente em relação à objetividade do trabalho dele ou dela ou que somente ele ou ela autoriza ou invalida o discurso se ele ou ela faz parte ou não dele Mas esta discussão requer o que tem sido dissimulado por 23 Sobre a questão das representações da história ver Gayatri Chakravorty Spivak Can the Subaltern Speak em Cary N elson e Lawrence Grossberg Marxism and the Interpretation of Culture Urbana 1988 p 271313 A ESCRITA DA HISTÓRIA 79 uma epistemologia a saber o impacto das relações sujeitoasujeito mulhe res e homens negros e brancos etc sobre a utilização de técnicas aparentemente neutras e na organização de discursos que são talvez igualmente científicos Por exemplo partindose do fato da diferenciação dos sexos devese concluir que uma mulher produz uma historiografia diferente daquela do homem E claro que eu não respondo a essa questão mas afirmo que essa pergunta coloca em questão o lugar do sujeito e requer um tratamento diferente da epistemologia que construiu a verdade do trabalho baseandose na irrelevância do narrador24 O que De Certeau aí enfatiza não é que apenas as mulheres possam escrever a história das mulheres mas que a história das mulheres traz à luz as questões de domínio e de objetividade sobre as quais as normas disciplinares são edificadas A solicitação supos tamente modésta de que a história seja suplementada com informa ção sobre as mulheres sugere não apenas que a história como está é incompleta mas também que o domínio que os historiadores têm do passado é necessariamente parcial E o que é mais perturbador abre à sondagem da crítica a verdadeira natureza da história como uma epistemologia centralizada no sujeito25 N a maioria das vezes a discussão dessas questões filosóficas desconcertantes tem sido deslocada para outro tipo de terreno O s chamados historiadores tradicionais defenderam seu poder como guardiães da disciplina e por implicação seu domínio da história invocando uma oposição entre história que o conhecimento obteve através da inquisição neutra e ideologia conhecimento distorcido por considerações de interesse Por sua própria natureza a ideologia é descrita como contaminadora e por isso desqualifica o trabalho intelectual O rótulo ideológico proporciona às opi niões dissidentes um a idéia de inaceitabilidade e dá às opiniões predominantes uma condição de lei indiscutível ou verdade26 24 Michel de Certeau History Science and Fiction em Hecerologies Discourse on the Other M inneapolis 1986 p 21718 25 Mary Hawkesworth Knower Knowing Know n Signs primavera de 1989 p 533557 26 O sucesso ideológico é alcançado quando apenas as opiniões dissidentes são consideradas como ideologias a opinião predom inante é a verdade M artha Minow Justice Engendered Harvard Law Review 101 p 67 novembro de 1987 80 PETER BURKE Norm an Ham pson jamais admitiria que sua caracterização pejorativa de tim livro sobre as mulheres como história uterina implicasse para ele um contraste com a história fálica em sua opinião o contraste era com a história real E o ataque gratuito de Richard C obb a Simone de Beauvoir em um a crítica do mesmo livro sugeria que as feministas não podiam ser boas historiadoras O s dez mandamentos de Lawrence Stone para a história das mulheres foram muito mais adiante da aceitação do campo como um todo mas enfatizavam os perigos da evidência distorcida para apoiar a ideologia feminista moderna como se o significado da evidência fosse inequívoco e de forma alguma apresentasse proble mas quanto à posição ponto de vista e interpretações dos historia dores Com uma rejeição similar a essas questões Robert Finley acusou Natalie Davis de desprezar a soberania das fontes e transgredir o tribunal dos documentos com o propósito de promover uma leitura feminista da vida de Martin Guerre27 Dificilmente podese dizer que as tentativas das feministas para expor as tendências machistas ou a ideologia masculinista incorporadas na escrita da história tenham com freqüência sido ridicularizadas ou rejeitadas como expressões de ideologia28 Relações de poder desiguais no interior da disciplina tornam as acusações de ideologia perigosas para aqueles que buscam posição profissional e legitimidade disciplinar Isso e as regras de formação disciplinar inicialmente desencorajou muitos historiado 27 N orm an H am pson The Big Store London Review of Books p 18 21 de janeiro 3 de fevereiro de 1982 Richard C obb The Discreet Charm o f the Bourgeoisie New York Review of Books p 59 17 de dezembro de 1981 Lawrence Stone Only W om en New York Review of Books p 217 11 de abril de 1985 Robert Finlay The Refashioning o f Martin Guerre e Natalie Zemon Davis O n the Lam e am bos em American Historical Review 933 p 55371 e 572603 respectivamente junho de 1988 28 A intratabilidade do liberalismo ocidental para fazer justiça às lutas baseadas em gênero e raça m ostra algo que as feministas têm de conhecer bem a resistência do indivíduo liberal do Homem às intimações de deficiência especialmente quando essas intimações são em si m esm as expressas por meio do gênero Elizabeth W eed Introdução a Corning to Terms Feminism Theory Politics Nova York 1988 p 6 da transcrição datilografada A ESCRITA DA HISTÓRIA 81 ics das mulheres de confrontar as implicações epistemológicas mais radicais de seu trabalho em vez disso enfatizaram as mulhe res como um sujeito histórico adicional e não seu desafio aos pressupostos metodológicos da disciplina Naquele momento buscávamos aparecer como cidadãs respeitadoras da lei não como agentes de subversão Ao defender novos cursos sobre as mulhe res diante de um comitê curricular universitário em 1975 argu mentei como exemplo que a história das mulheres era um a área recente de pesquisa assim como os estudos da região ou as relações internacionais29 Em parte esse foi um artifício tático uma jogada política que tentava em um contexto específico separar os estudos das mulheres daqueles intimamente associados ao movimento feminista Em parte resultou da crença de que o acúmulo de bastante informação sobre as mulheres no passado inevitavelmen te atingiria sua integração na históriapadrão Este último motivo foi estimulado pela emergência da história social com seu foco nas identidades coletivas de uma ampla variedade de grupos sociais A existência do campo relativamente novo da história social proporcionou um importante veículo para a história das mulheres a associação de um novo tópico com um novo conjunto de abordagens enfatizou a reivindicação da importância ou pelo menos a legitimidade do estudo das mulheres Apelando para algumas préconcepções disciplinares sobre a análise científica desinteressada ele não obstante pluralizou os objetos da investi gação histórica admitindo a grupos sociais como camponeses operários professores e escravos uma condição de sujeitos históri cos Nesse contexto os historiadores das mulheres poderiam apontar para a realidade da experiência vivida pelas mulheres e presumir seu interesse inerente e sua importância Colocaram as mulheres em organizações políticas e em locais de trabalho e introduziram novas arenas e instituições famílias e cuidados com 29 Testem unho de Joan Scott para a Universidade da Carolina do Norte Com itê de Currículo de Chapei Hill maio de 1975 citado em Pamela Dean Women on the Hill A History of Women at the University of North Carolina Chapei Hill 1987 p 23 82 PETER BURKE a casa como dignos de estudo Parte da história das mulheres buscava demonstrar a similaridade da atuação das mulheres e dos homens e parte enfatizava a diferença das mulheres ambas as abordagens consideravam as mulheres como uma categoria social fixa uma entidade separada um fenômeno conhecido eram pessoas biologicamente femininas que se moviam dentro e fora de contextos e papéis diferentes cuja experiência mudava mas cuja essência como mulher não se alterava30 Assim os historiadores sociais eu dentre eles documentaram os efeitos da industrialização sobre as mulheres um grupo cuja identidade comum nós pressupomos Questionávamos menos freqüente mente naquela época sobre a variabilidade histórica do próprio termo mulheres como ele se alterou como no decorrer da industrialização por exemplo a designação de mulheres trabalha doras como uma categoria separada de trabalhadores criou novas percepções sociais do que significava ser uma mulher31 Outros voltaramse para a cultura das mulheres como o produto tangível da experiência social e histórica das mulheres e eles 30 N ão quero dizer que se deva subestim ar a variedade de abordagens à história das mulheres e as diferentes posições interpretativas e teóricas assum idas Dentro da história das mulheres haviahá muita divergência entre as marxistasfeministas feministas liberais aquelas que usam os enfoques de várias escolas psicanalistas etc Meu objetivo aqui não é criticar a variedade m as indicar alguns dos cam pos comuns entre todas elas a preocupação com a mulher como um sujeito com a identidade das mulheres assim como o relacionamento do cam po como um todo com a disciplina da história Já critiquei em outro momento a diversidade V er Joan W Scott W om ens History The M odem Period Past and Present 101 p 14157 1983 e Gender A Useful Category o f Historical Analysis American Historical Review 915 p 105375 dezembro de 1986 31 Para as histórias do trabalho das mulheres ver Louise A Tilly e Joan W Scott Women Work and Family Nova York 1978 1987 Alice KesslerHarris Out to Work A History of WageEarning Women in the United States N ova York 1982 Thom as D ublin Women at Work The Transformation of Work and Communiry in Lowell Massachusetts 182660 Nova York 1979 Sally Alexander W om en s W ork in NineteenthCentury London A Study o f the Years 182950 em Juliet Mitchell e A nn Oakley eds The Rights and Wrongs of Women Londres 1976 Patricia A Cooper Once a Cigar Malcer Men Women and Work Culture in American Cigar Factories 19 0 0 1 9 1 9 Urbana 1987 A ESCRITA DA HISTÓRIA 83 também tenderam a supor que as mulheres eram uma categoria homogênea32 C om o resultado a categoria mulheres assumiu uma existência como entidade social separada de seu relacionamen to conceituai historicamente situado com a categoria hom ens33 A história das mulheres passoti menos tempo documentando a vitimização das mulheres e mais tempo afirmando a distinção da cultura das mulheres criando assim uma tradição histórica a que as feministas poderiam apelar como exemplos de atividade das mulheres para provar sua capacidade de fazer história34 A documentação da realidade histórica das mulheres ecoou e contribuiu para o discurso da identidade coletiva que tornou possível o movimento das mulheres nos anos 70 Esse discurso produziu uma experiência feminina compartilhada que embora levasse em conta as diferenças sociais enfatizava o denominador comum da sexualidade e as necessidades e interesses a ela vincu lados O aumento da consciência acarretou a descoberta da ver dadeira identidade das mulheres a queda das viseiras a obtenção de autonomia de individualidade e por isso de emancipação O movimento das mulheres pressupôs a existência das mulheres a m o uma categoria social separada definível cujos membros necessitam apenas ser mobilizados ao invés de se ver uma coleção de pessoas biologicamente similares cuja identidade estava em processo de ser criada pelo movimento A história das mulheres i onfirmou assim a realidade da categoria mulheres sua existên i ia anterior ao movimento contemporâneo suas necessidades 12 Linda Kerber Separate Spheres Female W orlds W om ans Place The Rhetoric of W om ens History Journal of American History 751 p 939 junho de 1988 15 Isto não significa que os historiadores das mulheres não escrevessem sobre as mulheres em relação aos hom ens como esposas mães filhas empregadas pacientes etc Significa que eles tendiam a pôr de lado a questão principal que as m ulheres não possuem um a definição intrínseca mas apenas um a definição contextual que é sempre contestada em sua idealização e atualização e que não pode ser elaborada exceto por meio do contraste em geral com os hom ens Sobre isso ver Denise Riley Am 1 that name Feminism and the Category of women in History Londres e M inneapolis 1988 t1 Ver por exemplo o sim pósio sobre W om ens Gulture e política em Feminist Studies 6 p 26641980 84 PETER BURKE inerentes setis interesses e suas características dandolhe uma história A emergência da história das mulheres ficou então entrelaçada com a emergência da categoria das mulheres como uma identi dade política e esta foi acompanhada por uma análise que atribuía a opressão das mulheres e sua falta de visibilidade histórica à tendenciosidade masculina C om o as mulheres os hom ens julgaramse um grupo de interesse homogêneo cuja resistência às exigências de igualdade foi atribuída a um desejo intencional de proteger o poder e os recursos que sua dominância lhes propor cionava A atenção à diversidade à classe à raça e à cultura produziu variações sobre o tema do patriarcado mas não obstante fixou a oposição hom em m ulher Menos atenção foi dada às bases conceituais de patriarcado às maneiras como a diferença sexual foi transformada em conhecimento cultural do que aos efeitos dos sistemas da dominância masculina sobre as mulheres e à resistên cia das mulheres a eles O antagonismo homem versus mulher foi um foco central da política e da história e isso teve vários efeitos tornou possível uma mobilização política importante e dissemina da ao mesmo tempo que implicitamente afirmava a natureza essencial da oposição binária macho versus fêmea A ambigüidade da história das mulheres parecia estar resolvida por essa oposição direta entre dois grupos de interesse separadamente constituídos e conflitantes Paradoxalmente embora esse tipo de conflito fosse um anátema àqueles que concebiam as profissões como comunidades unificadas ele foi aceitável como uma caracterização da história Isso ocorreu em parte porque o próprio campo em si estava se modificando seus focos se deslocando suas ortodoxias reinantes desafiadas e substituí das N a verdade poderia ser dito que a história das mulheres atingiu uma certa legitimidade como um empreendimento histórico quan do afirmou a natureza e a experiência separadas das mulheres e assim consolidou a identidade coletiva das mulheres Isso teve o duplo efeito de assegurar um local para a história das mulheres na disciplina e afirmando sua diferença da história A história das A ESCRITA DA HISTÓRIA 85 mulheres foi tolerada em parte porque a pressão de historiadoras 0 estudantes feministas tornoua digna de ser tolerada por plura listas liberais que estavam desejando obter credenciais para ò interesse histórico de muitos tópicos mas permaneceu fora das preocupações dominantes da disciplina seu desafio subversivo aparentemente contido em uma esfera separada Política versus teoria A aparente restrição e segregação da história das mulheres 1 amais foi completa mas no final dos anos 70 começou a ser obviamente minada por várias tensões algumas delas no interior da disciplina outras no movimento político Essas combinaram para desafiar a viabilidade da categoria das mulheres e introdu ziram a diferença como um problema a ser analisado O foco na diferença tornou explícita parte da ambigüidade que sempre esteve implícita na história das mulheres apontando para os significados inerentemente relacionados das categorias de gênero Trouxe à luz questões sobre os elos entre o poder e o conhecimento e dem ons trou as interconexões entre ateoria e a política O objetivo dos historiadores das mulheres mesmo quando estabeleceram a identidade separada das mulheres era integrar as mulheres à história E o impulso para a integração prosseguiu com verbas do governo e fundações privadas nos anos 70 e início dos 80 Essas agências estavam não apenas interessadas na história mas também na luz que os estudos históricos poderiam lançar sobre a política contemporânea a respeito das mulheres A inte gração presumia não somente que as mulheres poderiam ser acomo dadas nas histórias estabelecidas mas que sua presença era requerida para corrigir a história Aqui estavam em ação as implicações contraditórias da condição suplementar da história das mulheres A história das mulheres com suas compilações de dados sobre as mulheres no passado com sua insistência em que as periodiza ções aceitas não funcionavam quando as rfiulheres eram levadas 86 PETER BURKE em conta com ua evidência de que as mulheres influenciavam os acontecimentos e tomavam parte na vida pública com sua insistência de que a vida privada tinha uma dimensão pública política implicava uma insuficiência fundamental o sujeito da história não era uma figura universal e os historiadores que escreviam como se ele o fosse não podiam mais reivindicar estar contando toda a história O projeto de integração tomou essas implicações explícitas Tom ada com grande entusiasmo e otimismo a integração se comprovou difícil de ser atingida Parecia mais uma resistência dos historiadores do que uma simples tendência ou preconceito embora isso certamente fizesse parte do problema35 Sem dúvida os próprios historiadores das mulheres acharam difícil inscrever as mulheres na história e a tarefa de reescrever a história exigia reconceituações que eles não estavam inicialmente preparados ou treinados para realizar Era necessário um m odo de pensar sobre a diferença e como sua construção definiria as relações entre os indivíduos e os grupos sociais G ênero foi o termo usado para teorizar a questão da diferença sexual N os Estados U nidos o termo é extraído tanto da gramática com suas implicações sobre as convenções ou regras feitas pelo homem do uso da lingüística quanto dos estudos de sociologia dos papéis sociais designados às mulheres e aos homens Embora os usos sociológicos de gênero possam incorporar tônicas fun cionalistas ou essencialistas as feministas escolheram enfatizar as conotações sociais de gênero em contraste com as conotações físicas de sexo36 Tam bém enfatizaram o aspecto relacionado do gênero 35 Susan Hardy A ikenetal TryingTransform ations Curriculum Integration and the Problem o f Resistance Signs 122 p 25575 inverno de 1987 V er também sobre a m esm a questão M argaret L Anderson Changing the Curriculum in Higher Education p 22254 36 Ver Gail Rubin The Traffic in W om en Notes on the Political Economy o f Sex em Rayna R Reiter ed Touards an Anthropology ofW omen Nova York 1975 Ver também Joan W Scott Gender A Useful Category o f Historical Analysis American Historical Revieiv 91 5 dezembro de 1986 e D onna Haraway Geschlecty Gender Genre Sexualpolitik eines W ortes em Vieíe One überall Feminismus in Bewegung Festschrift für Frigga Haug ed Kornelia Hauser Berlim 1987 p 22 4 1 A ESCRITA DA HISTÓRIA 87 não se pode conceber mulheres exceto se elas forem definidas em iclação aos homens nem homens exceto quando eles forem diferenciados das mulheres Além disso uma vez que o gênero foi lefinido como relativo aos contextos social e cultural foi possível pensar em termos de diferentes sistemas de gênero e nas relações daqueles com outras categorias como raça classe ou etnia assim como em levar em conta a mudança A categoria de gênero usada primeiro para analisar as diferen ças entre os sexos foi estendida à questão das diferenças dentro da diferença A política de identidade dos anos 80 trouxe à tona alegações múltiplas que desafiaram o significado unitário da cate goria das mulheres N a verdade o termo mulheres dificilmente poderia ser usadb sem modificação mulheres de cor mulheres judias mulheres lésbicas mulheres trabalhadoras pobres mães solteiras foram apenas algumas das categorias introduzidas Todas desafiavam a hegemonia heterossexual da classe média branca do termo mulheres argumentando que as diferenças fundamentais da experiência tornaram impossível reivindicar uma identidade isolada37 A fragmentação de uma idéia universal de mulheres por raça etnia classe e sexualidade estava associada a diferenças 37 Teresa de Lauretis Fem inist StudiesCritical Studies IssuesTerm s and Contexts Cherrie Moraga From a Long Line ofV endidas Chicanas and Fèm inism Biddy M artin e C handra Taopade Mohanty Fem inist Politics W hats Hom e G ot to Do with Ití todos em Teresa de Lauretis ed Feminist StudiesCritical Studies Bloom ington 1986 p 119173190191212 respectivamente V ertam bém The Com bahee River Collective A Black Fem inist Statement em Gloria T Hull Patricia Bell Scott e Barbara Sm ith eds But Some of Us are Brave Black Womens Studies N ova Iorque 1982 Barbara Sm ith ed Home Girls A Black Womens Antholog N ova Iorque 1983 Ver também Barbara Sm ith Toward a Black Feminist Criticism Deborah E McDowell New Directions for Black Fem inist Criticism Bonnie Zimmerman W hat has Never Been A n Overview o f Lesbian Feminist Criticism todos em Elaine Showalter ed The New Feminist Literary Criticism Essays on Women Literature Tfieorj Nova Iorque 1985 p 168224 Nancy Hofirnan W hite W om en Black W om en Inventing an Adequate Pedagogy Womens S tu d ie s Neuisletter 5 p 214 primavera de 1977 Michele W allace A Black F em iru V s Search for Sisterhood Village Voice 28 de julho de 1975 p 7 Teresa de Lauretis Displacing Hegemoníc Discourses Reflections on Fem inist Theory in the 1980s Inscriptions n 3 4 p 12741 1988 88 PETER BURKE políticas sérias no interior do movimento das mulheres sobre questões qúe variavam desde a Palestina até à pornografia38 As diferenças cada vez mais visíveis e veementes entre as mulheres questionavam a possibilidade de uma política unificada e sugeriam que os interesses das mulheres não eram autoevidentes mas uma questão de disputa e de discussão De fato todas as exigências de reconhecimento das experiências e das histórias de diversos tipos de mulheres representam a lógica da suplementação desta vez em relação à categoria universal das mulheres o bastante para qualquer história geral das mulheres e para a competência de qualquer historiador das mulheres cobrir todo o campo A questão das diferenças dentro da diferença trouxe à tona um debate sobre o modo e a conveniência de se articular o gênero como uma categoria de análise Um a dessas articulações servese do trabalho nas ciências sociais sobre os sistemas ou estruturas do gênero presume uma oposição fixa entre os homens e as mulheres e identidades ou papéis separadas para os sexos que operam consistentemente em todas as esferas da vida social Também presume uma correlação direta entre as categorias sociais masculina e feminina e as identidades de sujeito dos homens e das mulheres e atribui sua variação a outras características sociais estabelecidas como classe ou raça Am plia o foco da história das mulheres cuidando dos relacionamentos machofêmea e de questões sobre como o gênero é percebido que processos são esses que estabele cem as instituições geradas e das diferenças que a raça a classe a etnia e a sexualidade produziram nas experiências históricas das 38 Algum as das rupturas ocorreram em seguida à derrota da Em enda dos Direitos Civis Equal Rights Am endm ent ERA à Constituição Americana uma cam panha que promoveu uma frente unida entre vários grupos de feministas Evidentemente a cam panha em si da ERA m ostrou como eram profundas as diferenças entre as feministas e os antifeministas e pôs em dúvida qualquer idéia de solidariedade fem inina inerente Algum as das diferenças foram atribuídas à consciência falsa m as não inteiramente Sobre a cam panha da ERA ver Mary Francês Berry Why ERA Faãed Bloomington 1986 Jane M ansbridge Why We Lost the ERA Chicago 1986 D onald G Mathews e Jane Shorron de Hart Era and the Politics of Cultural Conflict North Carolina N ova York 1989 A ESCRITA DA HISTÓRIA 89 mulheres A abordagem da ciência social ao gênero pluralizou a categoria das mulheres e produziu um conjunto brilhante de histórias e de identidades coletivas mas também esbarrou em um conjunto aparentemente intratável de problemas que se seguiram ao reconhecimento das diferenças entre as mulheres Se há tantas diferenças de classe raça etnia e sexualidade o que constitui o campo comum em que as feministas podem organizar uma ação coletiva coerente Q ual é o elo conceituai para a história das mulheres ou para os cursos de estudos das mulheres entre o que parece ser um a proliferação infinitade diferentes histórias de mulheres Os dois problemas estão ligados será que há uma identidade comum para as mulheres e será que há uma história delas que possam os escrever Algumas feministas tentaram abordar essas questões analisan do o gênero com as abordagens literárias e filosóficas que por mais diversas que sejam estão conjuntamente agrupadas sob a rubrica do pósestruturalismo Aqui a ênfase se afasta da documentação da oposição binária macho versus fêmea para questionar como ela é estabelecida da suposição de uma identidade preexistente das mulheres para investigar o processo de sua construção do estabelecimento de um significado inerente para as categoriasomo hom ens e mulheres para analisar como seu significado é assegurado Essa análise assume a significação como seu objeto examinando as práticas e os contextos dentro dos quais os signifi cados da diferença sexual são produzidos Freqüentemente usa a teoria psicanalítica particularmente as leituras lacanianas de Freud para discutir a complexidade e a instabilidade de quaisquer identificações de sujeito A masculinidade e a feminilidade são encaradas como posições de sujeito não necessariamente restritas a machos ou fêmeas biológicos39 M ais importante foram as maneiras como as feministas se apropriaram do pósestruturalismo para pensar sobre a diferença 39 V erJudithB uder GenderTrouble Fèminism and the Subversion ofldentity Nova York 1989 90 PETER BURKE A diferença está no âmago das teorias lingüísticas de significação Dizse que todos os significados são produzidos diferencialmente através de contrastes e de oposições e hierarquicamente através da designação de primazia a um termo e de subordinação a outro A interconexão do relacionamento assimétrico é importante de ser considerada porque sugere que a mudança é mais que uma questão de ajustamento dos recursos sociais para um grupo subor dinado mais que uma questão de justiça distributiva Se a definição do Homem permanece na subordinação da Mulher então uma modificação na condição da Mulher requer e provoca uma modificação em nossa compreensão do Homem um simples pluralismo cumulativo não funciona A ameaça radical colocada pela história das mulheres situase exatamente neste tipo de desafio à história estabelecida as mulheres não podem ser adicionadas sem uma remodelação fundamental dos termos padrões e suposi ções daquilo que passou para a históriaobjetiva neutra e universal no passado porque essa visão da história incluía em sua própria definição de si mesma a exclusão das mulheres Aqueles que se dedicam ao ensino do pósestruturalismo afirmam que o poder deve ser compreendido em termos dos processos discursivos que produzem diferença C om o é produzido legitimado e disseminado o conhecimento da diferença C om o as identidades são construídas e em que termos As historiadoras feministas encontram respostas para essas questões em particular exemplos contextuais mas elas não produzem simplesmente nar rativas separadas O campo comum politica e academicamente é um campo de preferência das feministas onde elas produzem análises da diferença e organizam resistência contra a exclusão dominação ou marginalidade que são os efeitos dos sistemas de diferenciação Diferentemente da abordagem da ciência social que aceita tacitamente a identidade e a experiência das mulheres a abordagem pósestruturalista relativiza a identidade e a priva de suas bases em uma experiência essencializada ambos elementos cruciais na maior parte das definições padronizadas de política para a mobi A ESCRITA DA HISTÓRIA 91 I ização dos movimentos políticos Problematizando os conceitos de identidade e experiência as feministas que utilizam a análise pósestruturalista apresentaram interpretações dinâmicas do gêne ro que enfatizam a luta a contradição ideológica e as complexidades das relações de poder em mutação De muitas maneiras seu trabalho insiste em maior variabilidade histórica e especificidade contextual para os termos do próprio gênero do que o faz o trabalho daqueles que se baseiam em conceituações científicas sociais M as o trabalho influenciado pelo pósestruturalismo esbar ra em alguns dos mesmos problemas encontrados por aqueles que preferem as abordagens científicas sociais Com o declarou Denise Riley se a categoria das mulheres e assim a identidade e a experiência das mulheres são instáveis porque são historicamente variáveis quais são os campos para a mobilização política Com o escrever uma história coerente das mulheres sem uma idéia determinada e compartilhada do que são as mulheres Riley responde corretamente a meu ver que é possível pensarse e organizarse a política com categorias instáveis o que na verdade sempre tem sido feito mas exatamente como fazêlo é algo que necessita de discussão Ironicamente entretanto mais que o reconhecimento da similaridade dos dilemas confrontados pelas historiadoras do sexo feminino nos anos 80 os dilemas causados por nossa necessidade de pensar a política em novos termos desenvolveuse um debate polarizado sobre a utilidade do pós estruturalismo para o feminismo que é engastado em um contexto entre a teoria e a política As feministas hostis ao pósestruturalismo generalizaram sua crítica como uma denúncia da teoria e o rotularam como abstrato elitista e machista Em contraposição insistiram em que sua posição é concreta prática e feminista e por isso politicamente correta Tudo o que for teórico a respeito do feminismo é redeno minado de política nesta oposição porque de acordo cpm um relato recente suas introjeções vêm direto da própria reflexão de nós mesmas ou seja da experiência das mulheres das contradi ções que sentimos entre as diferentes maneiras em que fomos 92 PETER BURKE representadas até para nós mesmas das injustiças que temos há tanto tempo suportado em nossas situações40 Colocando o problema em termos de uma oposição binária intratável esta formulação afasta a possibilidade de considerar a utilidade de várias abordagens teóricas à história feminista e à política feminista assim como a possibilidade de conceber a teoria e a política como intrincadamente ligadas Creio que a oposição entre teoria e política é uma oposição falsa que busca silenciar os debates que devemos realizar sobre que teoria é mais útil para o feminismo para tornar apenas um a teoria aceitável como política Na linguagem daqueles que utilizam esta dicotomia política realmente significa uma boa teoria e teoria significa uma má política41 A boa teoria encara as mulheres e sua experiência como os fatos autoevidentes que são a origem da identidade e da ação coletivas Com efeito em uma mudança que é o inverso da reação da história à história das mulheres aqueles que usam essa oposição estabelecem a política como a posição normativa para alguns sendo o teste ético da validade do feminismo e da história das mulheres E os historiadores das mulheres que rejeitam a teoria em nome da políticâ estão curiosamente aliados àqueles historiadores tradicionais que consi deram o pósestruturalismo e consideravam a história das mulhe res uma antítese aos princípios de sua disciplina42 Em ambos os 40 Judith Newton History as Usual Fem ninism and th eN ew H istoricism Cultural Critique 9 p 93 1988 41 A oposição entre teoria e politica sugere também um a oposição entre idealismo e materialismo que desvirtua as questões filosóficas atualmente em voga Sobre a invalidade da oposição ídealism om aterialism o ver Joan Scott A Reply to Criti cism International Labor and Working Class History 32 p 3945 outono de 1987 A oposição teoria versus politica também se refere indiretamente à questão da atuação hum ana muito enfatizada atualmente pelos historiadores A teoria pós estiuturalista não nega que as pessoas atuam ou que têm algum controle sobre suas ações antes critica a teoria individual liberal que presume que os indivíduos são totalmente autônom os racionais e autogerados A questão não ê a atuação per se m as os limites da teoria liberal da atuação 42 A ironia é notável O s historiadores das mulheres que aceitaram as idéias de universalidade da disciplina acrescentando a categoria universal das m ulheres à já existente dos hom ens e do dom ínio presum indo que os historiadores podem A ESCRITA DA HISTÓRIA 93 casos esses historiadores estão defendendo o conceito da expe riência recusandose a problematizálo opondo teoria e polí tica removem a experiência da sondagem da crítica e a prote gem como o campo de origem e sem problemas da política e da explicação histórica43 Todavia o conceito da experiência temse tornado problemáti co para os historiadores e necessita ser criticamente discutido N ão somente o pósestruturalismo questionou se a experiência tem uma posição externa à convenção lingüística ou construção cultural mas o trabalho dos historiadores das mulheres também pluralizou e complicou os caminhos que os historiadores usaram convencio nalmente para a experiência Além disso e mais importante para m inha argumentação aqui o mundo diferente do movimento político feminista nos anos 80 tom ou impossível uma única definição da experiência das mulheres Com o tem sempre ocorri do as questões colocadas para a teoria são questões sobre política há um a experiência das mulheres que transcenda os limites de classe e raça C om o as diferenças de raça ou etnia afetam a experiência das mulheres e as definições das necessidades e interesses femininos em tom o dos quais podemos nos organizar ou sobre os quais podemos escrever Com o podemôs determinar o que aquela experiência é ou foi no passado Sem algum caminho para pensar teoricamente sobre a experiência os histo riadores não podem responder a essas questões sem algum caminho para pensar teoricamente sobre o relacionamento da história das mulheres com a história os efeitos potencialmente críticos e desestabilizantes do feminismo serão muito facilmente perdidos e renunciaremos à oportunidade de transformar radical alcançar um conhecimento desinteressado ou completo do passado não obstante caracterizam sua posição com o política termo que indica seu relacionamento subversivo com a disciplina Creio que este é m ais um exemplo da lógica do suplemento os historiadores das mulheres seja qual for sua posição epístemológica não estão nem inteiramente dentro nem inteiramente fora da profissão da história 43 V er John Toews Intellectual History After the Linguistic T u m The Autonomy of M eaning and the Irreducibility o f Experience American Historical Review 92 p 879907 outubro de 1987 94 PETER BURKE mente o cenhecimento que constitui a história e a política que praticamos O pósestruturalismo não deixa de ter seus dilemas para as historiadoras feministas Creio que aquelas que insistem em que o pósestruturalismo não pode lidar com a realidade ou que seu foco nos textos exclui as estruturas sociais não compreendeu o ponto principal da teoria M as creio que ele não proporciona respostas prontas para os historiadores para alguns dos proble mas que levanta como invocar a experiência sem implicitamen te sancionar conceitos essencializados identidades ahistóricas como descrever a atuação humana enquanto reconhece suas determinações lingüísticas e culturais como incorporar a fantasia e o inconsciente em estudos de comportamento social como reconhecer diferenças e elaborar processos de diferenciação do foco da análise política sem terminar com relatos múltiplos e desconectados ou com categorias protegidas como classe ou o oprim ido como reconhecer a parcialidade da história de vida de alguém na verdade de todas as histórias de vida e ainda contála com autoridade e convicção Estes são problemas não resolvidos pondose de lado a teoria ou declarandoa uma antítese à política antes de tudo requerem um a discussão continuada e simultânea discussão que é ao mesm o tempo teórica e política pois no fim eles são os problem as de todos aqueles que escrevem a história das mulheres seja qual for a sua abordagem São problemas comuns porque seguem a lógica da suplemen tação que caracteriza a história das mulheres e que lhe proporcio nou sua força crítica A medida que as historiadoras feministas resolveram produzir um novo conhecimento elas necessariamente questionaram a adequação não apenas da substância da história existente mas também de suas bases conceituais e premissas epistemológicas N isso encontraram aliados entre os historiadores e outros estudiosos de hum anidades e nas ciências sociais que estão discutindo entre si questões de causalidade e explicação atuação e determinação M as as feministas em sua m aior parte A ESCRITA DA HISTORIA 95 não têm sido consideradas parceiras plenas nesses debates44 Mesmo nesses discursos críticos sua posição permanece suplementar ao mesmo tempo um exemplo particular de um fenômeno geral e um comentário radical da insuficiência de seus termos e práticas A posição suplementar é uma indeterminação recorrente e uma deses tabilização potencial Requer atenção constante aos relacionamentos de poder uma certa vigilância diante das tentativas de implementar uma ou outra de suas posições contraditórias O s historiadores das mulheres constantemente se deparam protestando contra as tentati vas de relegálos a posições que são meramente estranhas também resistem aos argumentos que põem de lado o que eles fazem como sendo tão diferente que não pode ser qualificado de história Suas vidas profissionais e seu trabalho são por isso necessariamente políticos N o final não há jeito de se evitar a política as relações de poder os sistemas de convicção e prática do conhecimento e dos processos que o produzem por essa razão a história das mulheres é um campo inevitavelmente político Neste ensaio utilizeime das operações da lógica do suplemento para que me facilitassem a compreensão e a análise da natureza inerentemente política do campo da história das mulheres final mente eu diria que é tal teoria que pode nos iluminar a política de nossa prática45 44 U m exemplo desse desprezo pelas contribuições feministas para os debates historio gráficos pode ser encontrado no fórum especial sobre história e teofia crítica em American Historical Review 94 junho de 1989 N enhum dos artigos reconhece o impacto que a história feminista ou a história afroamericana ou a história gay e lésbica tem tido sobre as questões epistemológicas confrontadas pela disciplina V er David Harlan Intellectual History and the Return o f Literature David Hollinger The Retum ofth e Prodigal The Persistence o f Historical Knowing e Alan Megill Recounting the Pasfc Descriptiori Explanation and Narrative in Historiography p 581609 61021 e 62753 respectivamente 45 Gostaria de agradecer a Cliflòtd Geertz por ter colocado algumas das questões que levaram à elaboração deste ensaio e também por seus esclarecedores comentários sobre uma primeira versão realizada Donald Scott auxilioume na articulação de muitos pontos cruciais e Elizabeth Weed apresentou inestimáveis sugestões críticas Também apreciei os comen tários e conselhos de Judith Buder Laura Engelstein Susan Hardíng Ruth Leys e Mary Louise Roberts A s críticas de Hilda Romer Tania Urum e Karin Widerberg provocaram desafios difíceis que melhoraram e reforçaram o argumento Estou grata por elas Biblioteca FIBRA HISTÓRIA DE ALÉMMAR Henk Wesseling Esta contribuição é sobre a história de alémmar tema interes sante mas de modo algum fácil Pois o que é história de alémmar Falando estritamente não há uma definição adequada para ela ou m elhor o que ela é depende de onde se está D a perspectiva britânica por exemplo praticam ente toda a história é história de além m ar incluindo parte da própria história do Reino U nido Parafraseando uma expressão francesa bem conhecida a história de todo m undo é história de alémmar para alguém de fora Obviam ente não é isso o que temos em mente quando utilizamos o term o então o que é U m a solução prática para este problem a pode ser encontrado examinandose os conteúdos de publicações que apresentam este term o em seu título A Revue française d histoire doutremer publicada pela sociedade de mesmo nom e é essencialm ente um a publicação dedicada à história européia e particularmente a francesa da expansão ultramarina e da form ação das possessões francesas Isso não é surpreendente pois seu nom e original era Revue dhistoire des colonies D o m esm o m odo as Académies de sciences doutremer francesas e belgas costumavarti ser Professor de História da Universidade de Leiden e Diretor do Instituto de H istória d a Expansão Européia 98 PETER BURKE conhecidas como as Académies des sciences coloniales A série de língua alemã Beitràge zur Kolonialund Uberseegeschichte combina os dois termos O s britânicos são bastante afortunados por terem sua commonwealth motivo pelo qual há um Journal of Imperial and Commonwealth History uma combinação muito mais elegante do que História Imperial e História de AlémMar N a Holanda o Instituto Colonial Real trocou seu nome para Instituto Tropical Real mas de certo modo a história tropical não foi aceita N ão é difícil compreender o que estava ocorrendo aqui Após 1945 o termo colonial tornouse cada vez mais sem atrativos e os institutos que queriam continuar sua existência tiveram de encontrar nomes diferentes de preferência mais neutros Entre tanto não era simplesmente uma questão de trocar nomes Houve também um a mudança de abordagem e de interesse A história de alémmar desenvolveuse em um campo de estudo muito mais amplo do que costumava ser a história colonial Trata não somente dos sistemas coloniais e do encontro entre europeus e não euro peus em geral mas também da história econômica social política e cultural dos povos não europeus E precisamente aí que surge o problema porque não apenas teoricamente mas também na prática real a história de alémmar desenvolveuse em um a questão tão vasta que se tornou impossível de ser identificável E claro que há alguns elementos que proporcionam uma certa coesão ao campo Em primeiro lugar o historiador de alémmar trata nor malmente com dois tipos de fontes por um lado as fontes européias em sua maior parte arquivísticas e por outro as nãoeuropéias escritas ou como freqüentemente é o caso na história africana não escritas Devido à ausência das fontes tradi cionais é necessária a assistência de outras disciplinas daí o papel de disciplinas como arqueologia lingüística e antropologia na história de alémmar Por isso a história de alémmar tende a ser interdisciplinar A parte isso o historiador de alémmar deve também se familiarizar com outras civilizações além da sua própria Isso geralmente supõe uma educação mais ampla e um pouco A ESCRITA DA HISTÓRIA 99 diferente do que em geral ocorre assim como uma exigência maior de habilidades lingüísticas Por essa razão os historiadores de alémmar são com freqüência encontrados em departamentos orientalistas ou africanistas pelo menos na Europa a situação nos Estados U nidos é diferente Bm esm o quando estão alocados em departamentos de história os historiadores de alémmar sentem a necessidade de colaborar com outros especialistas da m esm a área com o lingüistas antropólogos ou historiadores de arte Isso não acontece com os historiadores da Europa U m especialista em história da França em geral não vai trabalhar em um depar tamento de estudos franceses nem se sentirá estimulado a comparecer aconferências sobre estudos franceses C om o é típico para os historiadores de alémmar aprenderem sobre civilizações outras além da sua própria têm de colaborar com outras disciplinas para atingir uma compreensão melhor daquela civili zação ou sociedade particular M as também têm de se manter em contato com outros historiadores para compreender o que está acontecendo em sua própria disciplina A tensão entre a aborda gem da área e a abordagem disciplinar é um fenômeno bastante conhecido Há outra razão por que historicamente falando há uma certa unidade no campo da história de alémmar A maior parte do m undo ultramarino pertencia anteriormente ao m undo colonial e agora supõese fazer parte do Terceiro M undo Por isso em alguns círculos está em uso a expressão história do Terceiro M undo1 M as a idéia real de um Terceiro M undo está agora se desinte grando e não mais reflete a realidade Retrospectivamente parece até estranho que países como a índia e a Indonésia pudessem formar um m undo com o Sudão e com Mali pela única razão de terem sido todas excolônias e sejam ainda relativamente pobres Por isso equiparar a história de alémmar com a história do Terceiro M undo não parece uma boa idéia sobretudo porque a 1 Ver por exemplo M M órner e T Svensson ed The History of the Third World in Nordic Research Gõteborg 1986 100 PETER BURKE história dos Estados Unidos pertence à história de alémmar e na verdade à história colonial mas não à história do Terceiro Mundo Pode ser levantada a questão se a história de alémmar um a vez que ela suponha a inclusão da história de todo o m undo exterior à Europa ou ao O cidente é afinal um objeto de estudo Esse problem a é resultado do sucesso da história de alémmar após a Segunda G uerra M undial quando a ascensão da história de alémmar deveuse até certo ponto a um a reação à antiga história colonial U m grande acúm ulo de material teve de ser organizado e foi dado um grande salto para frente As novas nações reivindicavam seu próprio passado nacional O s povos sem história finalmente encontravam um a e os resul tados desse m ovimento foram im pressionantes A história de alémmar tornouse tão vasta e tão variada que não pode mais ser considerada como um cam po específico da história Para sobreviver a história de alémmar vai necessitar de alguma forma de reconceituação Antes de discutir isso devemos traçar um breve esboço da história do sujeito A história da história de alémmar um a visão geral De uma forma ou de outra a história tem sido praticada na maioria das civilizações N a Indonésia as crônicas ou babads remontam há muito tempo atrás O s hindus na índia têm pouco interesse em história mas os maometanos têm um grande interesse em uma idéia mais consistente de cronologia embora eles também só façam crônicas dos acontecimentos N o Japão e na China foi desenvolvida um a historiografia comparável à história européia tradicional que em sua forma científica moderna só foi desenvol vida no Ocidente no século dezenove E caracterizada pelo chama do método histórico cronologia filologia crítica de texto her menêutica e também por um tipo particular de pensamento histórico A consciência da singularidade dos acontecimentos a A ESCRITA DA HISTÓRIA 101 noção de desenvolvimento e sucessão através dos tempos mas também a noção de que cada período tem um caráter específico com seus próprios valores e padrões são características deste A escola histórica germânica desempenhou um papel importante nesse desenvolvimento motivo pelo qual alguns dos conceitos históricos mais famosos são ainda mais bem conhecidos em sua forma germânica Historismus Verstehen Zeitgeíst A interpretação histórica que resultou disso foi extremamente eurocêntrica A Welgeschichte realmente veio a se tornar a história européia pois na estrutura da história geral os povos nãoeuropeus não desempenham nenhum papel Eram considerados povos sem história Hegel ou povos de imobilização eterna Ranke À parte as civilizações antigas tradicionais eles só vinham à luz no m om ento em que se submetiam ou eram conquistados pelos europeus Isso não significa que não houvesse nenhum interesse em outras civilizações além das ocidentais pois esse existiu sob a forma do que é conhecido como estudos orientais O que im pulsionou estes estudos foi por um lado a Bíblia e a lingüís tica por outro o colonialismo Depois do Renascimento muitas universidades européias não apenas criaram cadeiras de grego e latim mas também de hebreu e árabe M ais tarde departamentos de estudos do Oriente M édio eou Árabes em anaram dessas disciplinas A lingüística comparada e histórica assunto popular no século dezenove estimulou o estudo do sânscrito que por sua vez deu origem a cadeiras e institutos para o estudo da civilização indiana U m estímulo ainda mais importante veio do colonialismo O treinamento dos criados civis coloniais tornouse um a parte da educação universitária no século dezenove Cursos de línguas e administração colonial podiam ser encontrados ao lado de cursos de história imperial ou colonial Embora focalizassem primaria mente o ponto de vista europeu esses cursos também prestavam alguma atenção aos povos de alémmâr E interessante observar que já em 1897 um comitê de seleção para uma cadeira de história das índias Holandesas deu preferência a um candidato porque ele 102 PETER BURKE conseguia também ver as coisas do ponto de vista nativo2 À parte os próprios súditos coloniais outros povos de alémmar tornaram se objetos de estudo N a Holanda por exemplo os chineses eram estudados devido à importante comunidade chinesa nas índias Orientais os japoneses devido ao perigo amarelo e os islâmicos devido ao perigo do fanatismo muçulmano O resultado disso foi o surgimento de dois grupos de historiadores um pequeno grupo em departamentos de estudos orientais que estudavam outras civilizações por direito próprio e outro muito maior que ensinava a própria história ou seja a história da Europa e de suas colônias A inda que situados dentro da mesma universidade raramente os dois grupos colaboravam entre si A situação modificouse radicalmente após 1945 em parte por razões externas em parte por razões internas A s razões externas eram óbvias a descolonização o declínio da Europa a emergência de novos superpoderes Tudo isso levou a um repensar do papel da Europa na história mundial e a um questionamento da aborda gem eurocêntrica O declínio da Europa tornouse um tema de estudo tão importante quanto sua ascensão O historiador holan dês Jan Romein proclamou o fim da Era Européia e o início do Século Asiático3 M as além das razões políticas e ideológicas houve tam bém desenvolvim entos internos modificações na m aneira com o a história era estudada O período pósguerra testemu nhou a ascensão da história social e econômica O s historia dores tornaramse m enos interessados na história política e militar e m ais interessados em questões com o civilização mate rial mentalités vida cotidiana o hom em com um etc N esse aspecto pelo menos até o século dezoito a história européia não era tão diferente da história nãoeuropéia Sob o impacto da escola dos Annales a história tornouse m enos teleológica 2 Ver C Fasseur Leiden and Empire University and Colonial Office 18251925 em W Otterspeer ed Leiden Oriental Connections 18501940 Leiden 1989 p 187203 3 J Rom ein Aera van Europa Leiden 1954 e De eeuw van Aziê Leiden 1956 A ESCRITA DA HISTÓRIA 103 menos wfiiggisfi4 A estrutura substituiu a evolução como a preo cupação central A continuidade tornouse tão importante quanto a mudança e por isso a oposição entre a Europa mudança e a Ásia continuidade tornouse menos relevante N essa abordagem o estadonação não era mais ít unidade central da análise histórica e portanto a oposição entre terramãe e colônia era menos importante A nova abordagem era mais em termos de aldeias cidades regiões grupos sociais Isso tornou menos acentuado o antagonismo entre as abordagens colonialista e nacionalista e tam bém ocorreram mudanças práticas Houve uma crescente influência por parte dos historiadores americanos pois seus departamentos de história sempre haviam sido menos paroquiais que os europeus e eles desempenhavam um papel cada vez maior na história asiática e africana Além disso as próprias excolônias desenvolveram seus próprios departamentos de história Certamente durante um longo período os historiadores ocidentais ainda dominaram o campo pois eram mais bem formados e tinham um acesso mais fácil a impor tantes domínios nos arquivos europeus As elites nativas estavam mais interessadas em outros campos do que na história A tarefa de desenvolver a economia e construir a nação era mais urgente e mais compensadora do que aquela de escrever a história Daí resultou uma situação curiosa Por um lado o impacto da Europa no conceito da própria história tornouse ainda mais forte que antes Historiadores da Á sia e da África freqüentemente iam para a Europa para estudar história ou pelo menos para concluir sua educação Trabalhavam em arquivos ocidentais e se valiam dos modelos ocidentais para aprender como a história deveria ser estudada e escrita Assim como os japoneses após a revolução Meiji eles aprenderam a história a partir do ponto de vista ocidental5 Em sua própria civilização não encontravam referên 4 Relativo aos tvhigs m em bros de um partido político da GrãBretanha qu í depois da revolução de 1688 pretendia subordinar o poder da C oroa ao do Parlamento no século X IX foi sucedido pelo Partido Liberal NT 5 L Blussé Japanese Historiography and European Sources em PC Emmer e H L W esseling ed Reappraisals in Overseas History Leiden 1979 p 193222 104 PETER BURKE cias Por outro lado sua interpretação era evidentemente muito diferente e às vezes fortemente antiocidental As nações jovens necessitavam de um passado usável e usável significava nacio nalístico e anticolonial6 Assim a questão não era apenas de historiografia colonialista versus historiografia nacionalista Dizia respeito ao lugar do Ocidente na história do mundo em gèral O s próprios historiadores europeus também questionaram a aborda gem eurocêntrica à história de alémmar U m novo impulso para este debate surgiu a partir da discussão sobre as origens do subdesenvolvimento causado pelo desapontamento com a mudan ça póscolonial O otimismo original sobre um novo futuro bri lhante agora que o colonialismo havia terminado desapareceu quando ficou claro que os problemas econômicos e sociais das excolônias não eram temporários mas antes permanentes ou estruturais O otimismo liberal foi substituído pelo pessimismo radical para parafrasear a adequada formulação de A G Hopkins7 N essa época a oposição não era aquela de colonialismo versus nacionalismo mas de esquerda versus direita A crítica neomarxista do colonialismo tornouse muito influente no próprio mundo ocidental Assim o desenvolvimento da história de alémmar após 1945 foi um processo dialético Primeiro houve um movimento de emancipação na historiografia não ocidental que resultou em uma significativa explosão de pesquisa e produção histórica na Á sia e na África O s países nãoeuropeus descobriram seu próprio passa do e apresentaram sua própria interpretação dele mas foi exata mente então que o problema da história de alémmar se manifestou sob uma nova forma Hoje em dia todo mundo aceita que os africanos e os asiáticos possuem sua própria história tão rica e interessante quanto a da Europa A questão entretanto é se 6 Ver T O Ranger Towards a Usable African Past em C Fyfe ed African Studies Since 1945 a Tribute to Basil Davidson Londres 1976 p 1729 7 Ver A G H opkins European Expansion into W est Africa a Historiographical Survey o f English Language Publications since 1945 em Em mer and W esseling Reappraisals p 56 A ESCRITA DA HISTÓRIA 105 podemos nos deter aqui e simplesmente considerar a história mundial como a som a de um grande número de histórias regionais autônomas A maioria dos historiadores concordaria que devería mos tentar prosseguir e estudar como de um m odo ou de outro essas várias civilizações tornaramse interligadas como a situação mundial atual chegou onde está O verdadeiro desafio da história de alémmar é apresentar um aform a moderna da história mundial Esse é um objetivo ambicioso mas como disse Fernand Braudel precisamos de historiadores ambiciosos8 O primeiro esboço disso pode talvez ser encontrado na nova história da expansão européia desenvolvida mais ou menos nas últimas três décadas Antes de examinála devemos observar primeiro o desenvolvimento espeta cular da história asiática e africana no mesmo período9 História asiática e africana Tanto na índia quanto na Indonésia a história em sua forma científica moderna foi introduzida pelo poder colonial N a índia a fundação da Sociedade Asiática de Bengali em 1784 pode ser considerada o ponto de partida A historiografia britânica oficial da índia era altamente anglocêntrica Com o certa vez Nehru observou sobre os britânicos Para eles a verdadeira história começa com a chegada dos ingleses na índia tudo o que houve antes é em uma espécie de trajetória mística uma preparação para sua divina consum ação 10 Entretanto logo começou a se desen volver um interesse nos estudos históricos no novo ambiente intelectual indiano Em meados do século dezenove como uma 8 F Braudel La Méditerranée et le monde méditerranéen à 1époque de Philippe II 3 ed 2 v Paris 1976 v I p 17 9 Tanto por razões práticas quanto teóricas deixaremos de lado a história das Américas e do Caribe N o que diz respeito à Ásia vam os nos restringir às duas excolônias européias onde a emancipação de um a historiografia nacional foi mais impressio nante ou seja a índia e a Indonésia 10 J Nehru The Discovery oíndio Londres 1956 p 28 106 PETER BURKE reação à abordagem muito condescendente dos historiadores colo niais os historiadores indianos desenvolveram sua própria histo riografia e no final do século a ascensão do movimento naciona lista proporcionoulhe um forte impulso de forma que nos anos 20 e 30 já existia aí um grupo considerável de historiadores profissionais O s nomes bastante conhecidos de estudiosos como RK Mookerjii e RC M ajumdar atestam isso Portanto quando ocorreu a independência em 1947 a historiografia profissional indiana já ocupava uma posição forte A transferência do poder em si também estimulou a escrita da história tendo havido uma demanda por textos populares e livros didáticos O governo estimulou o estudo do passado recente e particularmente do movimento nacionalista Em 1952 o Ministério da Educação ordenou a compilação de uma história do movimento libertador indiano e RC Majumdar foi nomeado diretor do projeto As conclusões de Majumdar foram muito diferentes daquelas que o governo esperava mas mesmo assim ele publicou a sua interpreta ção Esta derrubada do mito nacionalista foi uma indicação clara do alto padrão de profissionalismo alcançado pelos historiadores india nos Embora os historiadores britânicos ainda ocupem um papel de liderança senão o papel de liderança na história indiana os próprios historiadores indianos tornaramse cada vez mais impor tantes A Cambridge Economic History of índia assim como a New Cambridge History of Índia são demonstrações convincentes disso Na Indonésia o desenvolvimento foi um pouco diferente Em comparação com a índia havia menos pessoas treinadas em universidades de modo geral e praticamente não houve nenhum historiador profissional durante o período colonial O movimento nacionalista também foi mais fraco do que na índia e os intelec tuais nacionalistas expressavam sua sensibilidade mais na literatura do que em trabalhos intelectuais Assim praticamente não houve historiadores indonésios profissionais antes da independência O 11 V er S Ray índia After Independence Journal of Contemporary History 2 p 125421967 A ESCRITA DA HISTÓRIA 107 governo da República estimulou o estudo do passado mas de uma perspectiva política clara as pressões ideológicas eram fortes Em 1957 teve lugar o primeiro congresso nacional de historiadores Tornouse clara a escassez de pesquisa realizada mas daí em diante a história foise desenvolvendo como uma disciplina intelectual A principal figura nessa área era Sartono Kartodirdjo que introduziu um a nova forma de história inspirada na ciência social que cuida especialmente da história rural12 Nesse meio tempo foi a história indonésia que provocou um interessante debate sobre a nova abordagem asiacêntrica à história asiática John Bastin em sua conferência inaugural em Kuala Lumpur em 1959 sobre The Study of Modem Southeast Asian History estirftulou muito essa discussão13 mas a questão em si já havia surgido muito antes Foi introduzida por JC van Leur na dissertação sobre o início do comércio asiático publicada em 193414 Van Leur que morreu muito jovem aos trinta e quatro anos na Batalha do M ar de Java teria uma duradoura influência sobre a história indonésia e na verdade sobre a história asiática em geral A originalidade de seu trabalho está em duas coisas o abandono do ponto de vista eurocêntrico e a aplicação de categorias sociológicas Ele reagiu contra a abordagem exclusivamente colo nial que constituía uma perspectiva distorcida e ignorou várias áreas de realidade histórica A maior parte dos historiadores escreveu ele enxerga o mundo asiático através dos olhos do governante holandês do convés do navio da muralha da fortaleza da alta galeria da câmara do comércio 15 12 H A J Klooster Indonesiérs schrijven hun geschiedenis De ontuikkeling van de lndone sische geschiedbeoefening in cheorie en praktijk 19001980 Leiden 1985 13 Bastin The Study of Modem SoutheasC Asian History Kuala Lumpur 1959 Ver também The Western Elsment in Modem Southeast Asian History Kuala Lumpur 1963 14 JC V an Leur Eenige bescHouwingen betreffende den ouden AjiatiscKen hantlel M iddelburg 1934 U m a tradução desta obra assim como de seus outros escritos pode ser encontrada em JC Van Leur Indonesian Trade and Society Essays in Asian Social and Economic History H aiaBandung 1955 15 V an Leur Trade and Society p 162 108 PETER BURKE Entretanto a crítica de Van Leur é ao mesmo tempo mais geral e mais fundamental Ele questiona a periodização da história e o local onde nela está repartida a Ásia Por exemplo em um artigo bastante conhecido ele examina por que rótulos de período como o século dezoito eram aplicados à história indonésia Conclui que não havia razão para isso pois nenhuma das grandes mudan ças que tipificam a história européia desse período pode ser esboçada no passado indonésio Até 1800 ela simplesmente faz parte da Á sia16 Isso nos conduz à segunda característica principal da aborda gem histórica de Van Leur ou seja a aplicação dos conceitos da sociologia particularmente aqueles de M ax W eber U sando o conceito de W eber do tipo ideal por exemplo aqueles de cultura cam ponesa estados burocráticos patrimoniais comércio am bulante ele tenta descrever a história asiática como parte da história universal mas com seu caráter próprio Desse modo é possível se fazer justiça às peculiaridades das várias culturas sem envolvêlas em um conjunto de categorias muito abstratas e mui to gerais ou discutilas como simplesmente exóticas e incompreen síveis A questão do papel da Europa na história asiática foi eviden temente de vital importância para a historiografia pósindependên cia Nesse aspecto podemos distingüir duas escolas a minimalista e a sentimentalista A escola minimalista minimiza o papel do fator ocidental na história asiática afirmando que este virtualmente não existiu enquanto a escola sentimentalista maximiza os crimes e os delitos do Ocidente Embora logicamente falando as duas escolas pareçam ser contraditórias elas podem às vezes estar ambas fundamentadas na obra de um mesmo estudioso por exemplo o sociólogo holandês W F W ertheim ou o historiador indiano KM Panikkar17 Assim o debate não ficava inteiramente claro e os 16 Ibid p 26889 17 KM Panikkar A Survey of Indian History Londres 1947 W F W ertheim Asian History and the W estern Historian Rejoinder to Professor Bastin Bijdragen tot de T aal Land en Volkenkunde 119 p 14960 1963 A ESCRITA DA HISTÓRIA 109 próprios conceitos eram ambíguos M as as duas questões Foi boa ou má a influência ocidental e Seu impacto foi grande ou pequeno são ainda intensivamente debatidas hoje em dia o que é compreensível Elas são tão vitais para nossa interpretação do passado quanto para n ossa compreensão do presente como veremos mais adiante N o século dezenove a abordagem européia à história asiática tornouse cada vez mais dominada pelos sentimentos de superio ridade européia e por uma convicção do atraso asiático Isso no entanto foi apenas um fenômeno bastante recente pois os histo riadores europeus tradicionalmente demonstraram um grande respeito pelais antigas civilizações da Ásia Foi muito diferente da atitude européia para com a África que foi sempre considerada um continente ahistórico e o povo africano um povo sem civilização e por isso sem história A mais famosa formulação desta opinião pode ser encontrada nas conferências de Jena proferidas por Hegel em 18301 e publicadas como a Pkylosophy of History Nesta obra ele escreveu Neste ponto deixamos a África para não mais a mencionarmos Pois ela não é parte histórica do M undo não tem movimento ou desenvolvimento para m ostrar O que compreen demos apropriadamente por África é o Espírito NãoHistórico Subdesenvolvido ainda envolvido nas condições da simples natu reza que só tem de ser apresentada aqui como situada no limiar da história do M undo 18 Evidentemente Hegel teve uma grande influência sobre Karl M arx e os escritos marxistas clássicos refletem a mesm a linha de pensamento U m eco tardio disso pode ser encontrado na obra do historiador marxista húngaro da África Endre Sik que escreveu em 1966 Antes do seu encontro com os europeus a maioria dos povos africanos ainda vivia uma vida primitiva bárbara muitos deles até mesmo no nível mais baixo do barbarismo Alguns deles viviam em completo ou quase completo isolamento os contatos se é que ocorriam com outras pessoas 18 G W F Hegel The Philosophy of History Nova York 1944 p 99 110 PETER BURKE eram apenaS conflitos esparsos com povos vizinhos O Estado tomado no verdadeiro sentido da palavra era uma noção desconhecida para a maior parte dos povos africanos uma vez que também não existiam classes Ou melhor ambos já existiam mas apenas em embrião Por isso é irrealístico falarse de sua história no sentido científico da palavra antes do surgimento dos invasores europeus19 N ão há dúvida de que tais opiniões não eram de forma alguma um m onopólio dos historiadores marxistas Apenas um ano antes do aparecimento do livro de Sik o catedrático de História M oderna de Oxford H R TrevorRoper comparou as histórias da GrãBre tanha e da África descrevendo a última como sendo pouco mais que as rotações sem sentido de tribos bárbaras em locais pitores cos mas irrelevantes do globo20 Com o as coisas mudaram em vinte anos Ninguém em seu juízo perfeito poderia mais afirmar que a história africana não existe nem mesmo em Oxford O desenvolvimento da história africana tem sido espetacular Talvez tenha sido o campo mais vivo dinâmico e inovador da história desde a emergência da nova história social e econômica nas décadas de 20 e 30 Podese dizer que o Journal of African History foi a publicação mais inovadora desde a fundação dos Annales N a verdade os dois desenvolvimen tos são de certo modo comparáveis O s historiadores sociais como aqueles dos Annales e outros começaram a se fazer perguntas que jamais haviam feito antes e que não haviam sido mencionadas nas fontes tradicionais Novas fontes tiveram de ser descobertas e novas técnicas desenvolvidas para reexaminar as velhas fontes sob uma nova luz A mesma situação ocorre com a história africana As fontes são escassas pelo menos as tradicionais Por razões culturais os africanos produziram menos material escrito sobre história africana que os europeus e por razões climáticas pouco desse material chegou até nossas mãos Isto significa que a maioria das fontes é exógena Elas provêm de estrangeiros sejam eles viajantes 19 E Sik The History of Black Africa 2 v Budapest 1966 v I p 17 20 H TrevorRoper The Rise of Christian Europe Londres 1965 p 9 A ESCRITA DA HISTÓRIA 111 gregos romanos ou árabes geógrafos comerciantes ou adminis tradores europeus Tecnicamente falando a maior parte da história africana é pré ou protohistória ou etnohistória como tem sido às vezes chamada21 A absoluta escassez de fcfntes proporcionou um enorme estí mulo ao desenvolvimento de novas técnicas e métodos O passado tinha de ser interrogado por outros meios M ais uma vez é relevante a comparação com os Annales e sua nouvelle histoire Em ambos os casos têm sido aplicadas a arqueologia a cartografia a lingüística e a onomástica A antropologia também desempenhou um papel importante na história africana N a verdade a distinção entre o antropólogo e o historiador não é de forma alguma muito aguda A mais famosa das técnicas desenvolvidas para promover novas fontes para a história africana foi é claro o estudo da tradição oral Neste caso a publicação de Jan Vansina De la tradition orale Essai de méthode historique em 1961 marcou época Rapidamente traduzida para o inglês Oral tradition 1965 o livro teve um tremendo impacto sobre a história africana22 N o meio termo entre o ingênuo e o cético Vansina desenvolveu um método para a utilização da tradição oral de um m odo crítico assim propiciando o seu emprego em escritos históricos sérios V ansina dividiu a tradição oral em cinco categorias formulários poesia inventários narrativas comentários cada uma com várias subdivisões Decla rava que a história oral não deveria ser aceita tacitamente só devendo ser utilizada após uma verificação crítica prestandose atenção ao impacto da importância social dos valores culturais e da personalidade dos escritores Deveria também tanto quanto possível ser colocada em confronto com outras fontes como por exemplo achados arqueológicos ou documentos escritos Alguns historiadores e antropólogos eram mais céticos a respeito da 21 H Brunschwig U n fauxproblèm e 1ethnohistoire AnnalesESC 20 p 291300 1965 22 J V ansina De la tradition orale Essai de méthode historique Tervueren 1961 Tradução inglesa Oral Tradition A Study in Historical Methodology Londres 1965 112 PETER BURKE tradição oral e acreditavam com o devido respeito a Vansina que ele superestimava suas possibilidades mas é inegável que sua obra e suas idéias influenciaram enormemente a história africana23 Sejam quais forem as possibilidades oferecidas pela tradição oral e por outras fontes não ortodoxas permanece o fato de que no que se refere a documentos escritos a África é bastante carente Evidentemente é verdade que isso também ocorre para alguns períodos da história européia para os quais os documentos são também muito escassos assim como para a América précolombia na a Austrália précookiana etc e por isso a história africana é excepcional mas não única Do mesmo modo parece impossível uma comparação entre a historiografia da África e aquela da Europa Podem ser estudados desenvolvimentos de longo prazo mas uma história estritamente factual ou événementiel é com freqüência impossível N o momento está também em voga a abordagem estrutural ou de longo prazo na história européia mas isso é uma questão de escolha N a África a história estrutural não é uma escolha mas a única possibilidade N ão se é seduzido por ela mas condenado a ela24 Nas últimas décadas surgiram vários historiadores africanos no fórum internacional e seu papel tornase cada vez mais proeminente D a mesm a forma devese reconhecer que o grande salto para diante na história africana é em grande parte devido a historiadores europeus e americanos especialmente os britâni cos O Journal of African History cujo primeiro número apareceu em 1960 foi como disse Terence Ranger um com binado de manifesto alvará programa e vitrina para o cam po25 O semi nário de Roland Oliver na Escola de Londres de Estudos Orientais e Africanos foi cham ado de a primeira proclamação no m undo para a apresentação da nova obra sobre o passado da 23 Em algumas de suas últimas obras o próprio V ansina parece m ais cético que antes V er P Salm on lntroduction à Vhistoire de 1Afrique Bruxelas 1986 126f 24 Ver H Brunschwig U ne histoire de 1Afrique noire estelle possible em Mélanges en 1honneur de Fernand Braudel 2 v Toulouse 1973 v I p 7587 25 V e rT Ranger Usable Past p 17 A ESCRITA DA HISTÓRIA 113 África26 Short History ofAfrica de Oliver e Fage vendeu mais de um milhão de exemplares e foi provavelmente o livro mais influente publicado sobre a história africana O s historiadores franceses também desempenharam um papel importante ainda que maiS modesto Em 1961 Henri Bruns chwig exaluno de Marc Bloch e Lucien Febvre em Estrasburgo foi convidado por Fernand Braudel para apresentar a história africana na École de Hautes Etudes Seu seminário tornouse um local de encontro para estudiosos franceses e africanos Yves Person autor de uma história monumental e inovadora de Samori e Catherine CoqueryVidrovitch não apenas escreveram eles mes mos livros importantes mas também levaram o tema à Universi dade de Paris27 Outras universidades Abc Bordeaux também ofereceram cursos e seminários sobre história africana além de um grande número de estudantes africanos ter apresentado disserta ções de doutorado nas universidades francesas A contribuição das universidades americanas foi significativa particularmente aquela das três principais escolas de Yale UCLA e acima de tudo M adison W isconsin Aqueles historiadores americanos que desempenharam um papel de liderança na segun da e terceira gerações dfe historiadores africanos foram em sua maioria alunos de Curtin e V ansina em M adison N o momento importantes escolas de história existem também em várias univer sidades da própria África Nigéria Kenya Zaire O período de domínio europeu está claramente superado Retrospectivamente grande parte do debate sobre as possibili dades e impossibilidades da história africana e asiática parece frívolo não somente devido ao decréscimo na sensação da supe rioridade européia mas também às mudanças no estudo da própria história O antagonismo colonialista versus nacionalista faz sentido 26 The Blackwell Dictionary of Historians Oxford 1988 p 308 sv O liver R 27 C CoqueryVidrovitch Le Congo au temps des grandes comfagnies concessionnaires Paris 1972 Y Person Samori une Révolution dyula 3 v Dakar 1 9681970 1976 Ver sobre isso também H Brunschwig French Historiography Since 1945 Concerning Black África em Em m er and W esseling Reappraisals p 8497 114 PETER BURKE na estruturada história política mas em outros campos da história encontramos uma abordagem diferente A história social é estuda da a nível da aldeia da região do grupo étnico A história cultural é analisada em uma escala muito mais ampla que aquela do estadonação Conceitos como civilização hindu ou javanesa ou o mundo do Islão são importantes aqui A história econômica trabalha com grandes unidades como o Oceano Indico o Sudeste da Á sia ou mesmo a economia mundial Neste tipo de abordagem a oposição colonial versus anticolonial não faz muito sentido Será que isto significa que o impacto do colonialismo sobre a história de alémmar está superado e que as atitudes ocidentais e não ocidentais encontraram um completo equilíbrio N ão neces sariamente pois em dois aspectos ainda existe um domínio ocidental Em primeiro lugar como resultado da expansão colo nial grande quantidade de livros documentos e outros materiais sobre o mundo de alémmar tem sido levado para a Europa e está agora disponível em arquivos e bibliotecas europeus Isso significa que para estudar seu próprio passado os historiadores nãoeuro peus terão de continuar a ir à Europa Em segundo lugar e também em grande parte como conseqüência do colonialismo no mundo ocidental uma grande tradição foi fundamentada no campo de estudos não ocidentais em que ele ainda desempenha um papel preponderante Por outro lado praticamente não há historiadores africanos ou asiáticos que estudem a história e a sociedade européia Desde que o Ocidente tem seus orientalistas mas o Oriente não possui ocidentalistas não pode haver um real equilíbrio Para contrabalançar podese dizer que o desenvolvimento da história africana e asiática foi um fenômeno natural e necessário Mas também nos deixa com um problema Embora seja verdade que a história africana e asiática é em grande parte autônoma é também verdade que desde cerca de 1500 a história da África e da Á sia tornouse relacionada àquela da Europa A história asiática é muito mais que uma extensão da história da Europa mas também não pode ficar completamente isolada da história européia O desenvolvimento central da história moderna é a crescente inter A ESCRITA DA HISTÓRIA 115 relação e o entrelaçamento de várias civilizações e economias anteriormente isoladas Isso resultou no sistema mundial moder no Wallerstein e na civilização da modernidade Eisenstadt que possuím os hoje Não se pode compreender este processo considerando apenas partes isoladas da história pois isso seria deixar escapar o tema central da história mundial moderna A história mundial não pode ser considerada idêntica à história européia ou ocidental nem pode ser concebida como uma série de desenvolvimentos isolados Enfrentar este problema é a preo cupação central da história da expansão européia como ela se desenvolveu no período pósdescolonização Expansão e reação O estudo da expansão européia foi também influenciado por fatores externos e internos A queda rápida dos impérios coloniais por exemplo levou ao questionamento de sua prévia estabilidade aparente A ascensão do império americano um império sem colônias estimulou um repensar de ambas as técnicas informal e formal do imperialismo A emergência da China levou a uma reavaliação das possibilidades científicas e navais do país e assim a novas questões sobre as diferenças entre a expansão chinesa e o início da expansão européia 0 Por outro lado os fatores internos mudaram a natureza tam bém dos estudos de expansão e também se manifestando nesse campo a tendência geral em prol da história social e econômica A s questões sobre monetarização transporte marítimo ouro e prata os lucros do império etc eram colocadas de uma nova maneira e estas poderiam com freqüência ser respondidas com a ajuda de um computador28 A história social tornouse um assunto 28 U m informe útil sobre esta questão é T Lindblad Com puter Applications in Expansion History A Survey Second Bulletin of the ESF Network on the History of European Expansion Suplemento de itinerário 12 p 261 1988 116 PETER BURKE em m oda e isso estimulou o estudo da migração do tráfico de escravos das relações raciais da urbanização e das mentalitês A ciência política influenciou a história política sugerindo o estudo de tópicos como tomada de decisões opinião pública o papel de grupos de interesse especial etc Embora no nível teórico tenha sido questionada a distinção tradicional entre uma primeira e uma segunda fase de expansão na prática real a divisão do trabalho entre os modernistas e os estudantes de história contemporânea é ainda muito visível Tra dicionalmente no início da expansão moderna a ênfase está colocada sobre as grandes descobertas os navios e a navegação as companhias e o comércio a migração os sistemas de plantação e as sociedades escravagistas Charles Boxer e JH Parry escreveram livros bem sucedidos buscando apresentar uma visão geral dos impérios marítimos29 A série de Minnesota sobre a história da Europe and the World in the Age of Expansion também lançou uma série de livros sobre esses tópicos Em muitos desses campos novas abordagens foram apresentadas novas perguntas colocadas e no vas técnicas aplicadas Glam ann Steensgaard e Chaudhuri publi caram estudos pioneiros sobre as Com panhias das índias Curtin realizou um trabalho desbravador sobre o tráfico de escravos Chaunu sobre o mundo adântico Bailyn sobre a migração e muitos mais poderiam e deveriam ser m encionados30 Muitas das questões aqui discutidas estão intimamente relacionadas a tópicos 29 C R Boxer The Portuguese Seaborne Empire 14181825 N ova York 1969 CR Boxer The Dutch Seaborne Empire 1 6 0 0 1 8 0 0 Londres 1965 JH Parry The Spanish Seaborne Empire Nova York 1966 30 K G lam ann DutchAsiatic Trade 16 2 0 1 7 4 0 2 ed Haia 1980 N Steensgaard The Asian Trade Revolution of the 1 7th Century The East Índia Companies and the Decline otle Caravan Trade ChicagoLondres 1974 K N Chaudhuri The Trading World ofA sia and the English East índia Comxmy 16601 760 Cam bridge 1978 P Curtin The Atlantic Slave Trade a Census M adison W is 1969 P e H Chaunu Séville et lAtlantique 1 5 0 4 1 6 5 0 12 v Paris 195660 B Bailyn Voyagers to the West Emigration from Britain to America on the Eve ofthe Revolution Londres 1987 U m a síntese recente é G V Scammell The First Imperial Age European Overseas Expansion c14001715 Londres 1989 A ESCRITA DA HISTÓRIA 117 ile debate importantes na história européia tais como as teorias sobre as origens do capitalismo as Fases I e 11 a depressão geral ilo século dezenove a revolução dos preços etc Entretanto deveria ser reconhecido que não foi oferecida nenhuma teoria geral da expansão européia Embora na história da expansão dos séculos dezenove e vinte o debate fosse dominado pelo conceito do imperialismo não havia tal coisa nos estudos iniciais de expansão pelo menos até Immanuel Wallerstein apresentar sua teoria sobre o moderno sistema mundial Sistema mundial de Wallerstein Immanuel Wallerstein cientista social da Universidade de Colum bia estudou inicialmente a descolonização africana e os problemas de desenvolvimento Sua maneira de pensar sobre esses tópicos foi influenciada pela dependência e pelas teorias de subde senvolvimento N o entanto Wallerstein voltouse para a história porque acredita que esses problemas de desenvolvimento só po dem ser inteiramente compreendidos em seu contexto global e sob um a perspectiva histórica O trabalho histórico com o qual ele está mais familiarizado é aquele do grupo dos Annales particularmente o de Fernand Braudel Há na verdade um a forte similaridade entre as idéias de Wallerstein e a estrutura conceituai do terceiro volume da obra de Braudel sobre Material Civilization Economy and Capitalism31 Até agora a principal publicação de Wallerstein é um planejado estudo de quatro volumes do que ele denomina de The Modem World Sustem O primeiro volume publicado em 1974 apresentou a estrutura analítica do projeto32 Foi um a fonte de 31 F Braudel Civilisation matérielle économie et capitalisme X V eXVIIIe siècle Paris 1979 32 I W allerstein The Modem World System Capitalist Agriculture and the Origins of the European World System Capitalist Agriculture and the Origins of the European WorldEconomy in the Sixteenth Century NovaYork 1574 118 PETER BURKE inspiração para muitos outros estudiosos e levou a um interessante debate sobre as origens da expansão européia e do capitalismo Wallerstein declara que a economia mundial atual remonta ao final do século quinze Aí encontramos os primórdios de um sistema mundial que se desenvolveu inteiramente nos séculos dezesseis e dezessete e já estava maduro antes da Revolução Industrial O ponto crítico sistêmico pode ser localizado na resolução da crise do feudalismo que ocorreu aproximadamente entre 1450 e 1550 N o período 15501650 todos os mecanismos básicos do sistema mundial capitalista estavam no devido lugar Em vista disso a Revolução Industrial de cerca de 1760 a 1830 não pode mais ser considerada como um ponto crítico importante na história da economia mundial capitalista Segundo Wallerstein o sistema mundial é caracterizado por uma ordem econômica internacional euma divisão internacional do trabalho Consiste de um âmago uma semiperiferia e uma periferia cuja determinação de posição muda através do tempo regiões podem ascender ao âmago ou descer à periferia A história moderna é na verdade a história da integração contínua de cada vez mais partes do mundo neste sistema mundial O sistema mundial opera de maneira tal que faz com que o centro receba os lucros assim explodindo a periferia Isso é realizado pelo comércio internacional considerado um jogo de som a zero os lucros de uma parte são iguais às perdas da outra O s lucros do comérció internacional tornaram possível a Revolução Industrial que por sua vez só confirmou a existência de relações desiguais e reforçou o desenvolvimento do subdesenvolvimento A obra de Wallerstein foi bem recebida pelos cientistas sociais mas mais criticamente pelos historiadores que em particular criticaram a grande ênfase que o modelo coloca no comércio internacional Alguns argumentaram que as economias préindus triais não eram capazes de produzir um superávit significativo a ponto de tornar possível um comércio internacional Antes dos navios a vapor as disponibilidades de transporte eram muito limitadas Por volta de 1600 o conjunto das frotas mercantes dos A ESCRITA DA HISTÓRIA 119 Estados europeus possuía apenas a tonelagem de um ou dois cerca de 1800 de sete ou oito estados dos supertanques de hoje33 M esm o nas nações comerciais par excellence com o a GrãBretanha e a República Holandesa o comércio de exportação representava um a porcentagem muito pequena do produto na cional bruto e a exportação para a periferia era apenas uma pequena porcentagem do comércio ultramarino total34 O capital acumulado na GrãBretanha como conseqüência do comércio ultramarino não pode ter representado mais de 15 dos gastos brutos durante a Revolução Industrial35 Falando de m odo geral os efeitos da expansão européia sobre as regiões ultramarinas foi apenas regional Tanto na índia produtos têxteis quanto na Indonésia colheitas de grãos apenas regiões limitadas foram afetadas pela dem anda européia N o que tange à África o comércio de produtos era muito limitado Muito mais importante era o tráfico de escravos no Atlântico Entretanto a pesquisa recente tende a minimizar as conseqüências demográficas de longo prazo desse tráfico N as Américas e no Caribe o impacto da expansão européia foi o mais dramático não tanto devido ao comércio mas por causa do declínio demográfico da população original U m ponto interessante da teoria de W allerstein é seu questionam ento do verdadeiro conceito de um a Revolução Industrial e assim da distinção entre colonialism o préindus trial e industrial Essa distinção foi um argumento central na teoria clássica do im perialism o teoria que tem dom inado a historiografia da expansão européia do final do século dezenove e do século vinte 33 V er J de Vries The Economy of Europe in an Age of Crisis 16001 750 Cambridge 1976 p 1923 34 V er R Floud e D M cCloskey ed The Economic History of Britain since 1 700 2 v Cam bridge 1981 v I p 8792 35 V er P 0 Brien European Economic Development The Contribution o f the Periphery Economic History Review 35 p 9 1982 120 PETER BURKE Imperialismo Embora a palavra imperialismo exista desde a década de 1860 o imperialismo como conceito histórico só teve início com a publicação de Imperialism a Study de JA Hobson em 190236 Para explicar o imperialismo Hobson declarou que em conse qüência do sistema capitalista a economia britânica sofria de subconsumo Isso significava que o capital excedente não poderia ser lucrativamente investido na própria Inglaterra Por isso em suas famosas palavras os capitalistas estavam buscando mercados estrangeiros e investimentos estrangeiros para adquirir os bens e o capital que eles não podiam vender ou utilizar internamente 37 Assim nasceu a teoria do imperialismo capitalista A teoria de H obson foi logo absorvida adaptada e tornada mais sofisticada pelos pensadores marxistas em especial os alemães como Karl Hilferding e Rosa Luxemburg Assim fazendo esses autores também modificaram o argumento de Hobson Enquanto para H obson a evasão do capital era uma conseqüência típica mas não necessária do capitalismo para os marxistas o imperialismo tornouse algo inevitável A fórmula mais famosa vai ser encontrada em Lênin que em 1919 denominou o imperialismo de o mais alto estágio do capitalismo Embora as diferenças entre Hobson e Lênin sejam evidentes logo virou lugarcomum a referência às teses de HobsonLênin N a verdade esta se tornou uma expli cação padronizada do imperialismo europeu durante os anos 20 e 30 Somente nos anos 60 foi reaberta a discussão geral sobre o imperialismo A descolonização assim como a ascensão do im pério econômico americano tem claramente muito a ver com isso Em 1961 os historiadores britânicos J Gallagher e R Robin son publicaram o livro que iria ser o reexame mais influente do 36 JA H obson Imperialism a Study Londres 1902 37 Ibid p 85 A ESCRITA DA HISTÓRIA 121 imperialismo britânico Africa and the Victorians38 U m ano antes Henri Brunschwig havia publicado Mythes et réalités de Uimpérialis me colonial français 18711914 ensaio que estabeleceu a tônica para todos os estudos posteriores sobre o imperialismo francês39 Seguiramse novas interpretações do imperialismo belga alemão italiano português e finalmente do holandês Poderíamos falar de uma revolução historiográfiGa cujas conclusões podem ser aqui resumidas apenas muito brevemente para os dois poderes mais importantes envolvidos Gallagher e Robinson prosseguindo na m esm a linha que haviam desenvolvido em seu artigo The Imperialism of Free Trade40 declararam que o chamado período imperialista 1880 1914 só era diferente do período médio vitoriano de comércio livre a ele precedente e supostamente antiimperialista em seus meios não em seus fins os vitorianos dessa época podiam atuar sem medidas políticas O s últimos vitorianos tiveram de formalizar seu império Esta formalização foi induzida por crises locais e situações de fronteira que criaram vácuos políticos que tiveram de ser preenchidos pelos britânicos Suas ações tinham um motivo estratégico e não econômico e sua política era essencialmente defensiva e relutante Em resumo Gallagher e Robinson demoli ram o conceito de um período imperialista e também a explicação econômica tradicionalmente a ele relacionada Embora suas conclusões fossem em alguns aspectos similares a revisão de Brunschwig do imperialismo francês foi bem diferente Brunschwig aceitava que no caso da França houve um período imperialista definido ou seja mais ou menos entre 1880 e 1914 Isso na verdade dificilmente poderia ser negado M as embora ele fosse tradicional nesse aspecto era revolucionário na interpretação 38 R Robinson Gallagher com A Denny Africa and the Victorians the Official Mind of Imperialism Londres 1961 39 H Brunschwig Mythes et réalités de 1impérialismecolonialfrançais 18711914 Paris 1960 40 R Robinson e J Gallagher The Imperialism o f Free Trade Economic History Review 6 p 115 1953 122 PETER BURKE do fenômeno Depois de um cuidadoso exame dos interesses econômicos dos colonialistas franceses assim como do quadro do equilíbrio econômico do imperialismo francês chegou à conclusão de que explicálo em termos econômicos seria um mito O império não compensava não havia elos entre protecionismo e imperialis mo e os imperialistas franceses não possuíam motivos ou interes ses econômicos Conseqüentemente devia haver uma explicação diferente Segundo Brunschwig esta seria encontrada na época de ascensão do nacionalismo na Terceira República profundamente afetada pela derrota de 1870 Assim como aquele de Gallagher e Robinson seu livro é basicamente uma refutação da teoria econô mica do imperialismo O s livros acima mencionados aboliram a explicação simples e tradicional do imperialismo em termos das necessidades econômi cas embora não apresentassem uma análise dos aspectos econô micos do imperialismo Para tentar resolver esta imensa questão não apenas é preciso resolver um grande número de problemas teóricos e metodológicos mas também coletar e analisar uma enorme quantidade de dados M ais uma vez o computador torna isso possível Dois historiadores americanos L Davis e R Hutten back muito adequadamente vinculados ao Instituto de Tecnologia da Califórnia fizeram exatamente isso para a questão do imperia lismo britânico Reuniram um a enorme quantidade de dados e os analisaram através de métodos muito sofisticados Seu livro Mam mon and the Pursuit of Empire41 parece apresentar a resposta definitiva à velha e famosa interrogação O império compensava A resposta é um pouco desapontadora Não Depois de 1880 os índices de lucro inicialmente altos sobre os investimentos colo niais caíram abaixo dos retornos comparáveis de outros destinos alémmar ou mesmo da própria GrãBretanha Assim Hobson e Lênin estavam errados a respeito da relação entre o capital exce dente e a urgência de expansão alémmar As colônias dependentes 41 LA Davis e RA Huttenback M ammon and the Pursuit of Empire the Political Econom of Britisk Imperialism 18601912 Cam bridge 1986 A ESCRITA DA HISTÓRIA 123 não eram recipientes importantes do capital de Londres N ão pode haver dúvida de que esta não é toda a resposta pois Davis e Huttenback também declaram que para alguns capitalistas esses investimentos estavam longe de ser limitados42 N a França sob a influência dos argumentos de Brunschwig m esm o os autores marxistas aceitaram sua visão de que os aspectos econômicos do imperalismo francês eram negligenciáveis Em uma tentativa de resgatar a interpretação marxista declararam que o imperialismo francês podia ser encontrado em qualquer parte na Rússia no Império Otom ano etc Este exercício dialético resultou na conclusão de que o colonialismo francês não era imperialista e o imperialismo francês não era colonial43 Para encontrar uma resposta mais empírica para a questão de economia e império a Professora Catherine CoqueryVidrovitch tomou a iniciativa de compor um banco de dados do comércio colonial francês 1880 1960 Seu colega parisiense Jacques Marseille foi o primeiro a fazer um uso extensivo dessa rica documentação para sua disserta ção Empire colonial et capitalisme français histoire dun divorce44 A conclusão de Marseille é de que houve um rompimento na relação entre capitalismo e colonialismo No período inicial 18801930 a indústria francesa precisava do escoadouro do mercado colonial protegido e o casamento do colonialismo com o capitalismo teve um resultado feliz N o segundo período 193060 o protecionismo tornouse um obstáculo para a modernização industrial intensa mente necessária O divórcio foi inevitável Mas a descolonização já estava a caminho O fim do Império em 1960 foi uma bênção para o capitalismo Assim foi para a Europa mas qual foi o impacto do imperia lismo no mundo de alémmar Esse é um tema complicado sobre o qual prossegue um apaixonado debate desde que a questão foi 42 V er também os artigos de PJ Cain e A G H opkins sobre esta questão em Edbnomic History Review 33 p 463901980 39 p 5015251986 e 40 p 1261987 43 V er J Bouvier e R Girault ed LImpérialisme français davant 1914 ParisHaia 1976 44 Marseille Emfire colonial et capitalisme rançais Kistoire dun divorce Paris 1984 124 PETER BURKE levantada Há poucas coisas sobre as quais os debatedores concor dam mas um feto é inegável o verdadeiro impacto do Ocidente sobre os territórios de alémmar ocorreu depois da Revolução Industrial Quais foram os efeitos disso E claro que o colonialismo foi organizado de maneira a promover os interesses do poder colonial E claro que isso implicou ônus de vários tipos para os povos colonizados Entretanto além do domínio das verdades básicas como essas há uma vasta zona de problemas que não podem ser respondidos de forma simples Há o fenômeno bem estabelecido da desindustrialização especialmente no caso da indústria têxtil indiana Há também o problema da especialização em colheitas de grãos Por outro lado há desenvolvimentos de longo prazo que resultaram de investimento na infraestrutura mineração estradas portos na melhoria da administração da educação da saúde Traçar um quadro do equilíbrio econômico do colonialismo é extremamente difícil N ão somente devido à falta de dados mas também devido a problemas teóricos Se é inaceitável como foi convincentemente demonstrado pela pesquisa moderna a explicação simples de que o imperialismo foi o resultado do capitalismo permanece a questão Qual foi a razão Por que houve afinal uma época de imperialismo No que diz respeito à GrãBretanha a resposta a esta questão é fornecida também por Gallagher e Robinson Eles declararam que não havia nenhuma O próprio conceito de uma época de imperialismo 18801914 é uma falácia Considerar esse período como o zênite do imperialismo britânico é interpretar mal sua verdadeira nature za O número crescente de áreas vermelhas no mapa mundial durante as décadas de 1880 e 1890 parece sugerir que o poder da GrãBretanha estava aumentando Entretanto na realidade esta não era um a indicação de força mas de fraqueza A GrãBretanha era mais poderosa no início do século dezenove quando regida por meios informais do que nos últimos anos de domínio político formal45 45 Robinson e Gallagher Imperialism o f Free Trade ver nota 40 A ESCRITA DA HISTÓRIA 125 O conceito de império informal é muito atraente e muito inspirador porque explica um grande número de importantes fenômenos Tam bém proporciona um significado muito mais ampío ao termo imperialismo Neste tipo de análise o imperialis m o existe em diferentes períodos e em diferentes formas A tarefa do historiador é explicar a transição de uma forma para outra N o argumento de Gallagher e Robinson as razões disso não serão encontradas com os políticos da Europa que de qualquer modo preferiam o império informal mas em situações que se alteram no alémmar O imperialismo é considerado um sistema de cola boração entre as forças européias e as nãoeuropéias As formas em mutação do imperialismoresultam de mudanças em termos de colaboração46 E óbvio que em um a análise desse tipo a descolo nização também perde muito de sua importância como um ponto crítico Se existe um imperialismo informal antes do Império logicamente pode também haver um imperialismo informal depois do Império47 Aqui o debate sobre o imperialismo está relacionado com aqueles sobre descolonização e subdesenvolvimento A descolonização e o período posterior Só recentemente a descolonização tomouse um tema de análise e debate histórico E evidente que muita coisa já havia sido escrita a respeito mas tudo isso foi muito em caráter événementiel e escrito sob uma perspectiva claramente ideológica A mesma canção foi cantada em toda parte O s povos colonizados queriam se tom ar independentes Depois da Segunda Guerra Mundial eles lutaram contra seus opressores e rejeitaram o jugo do domínio colonial Durante um longo tempo pareceu que nada mais impor 46 R Robinson NonEuropean Foundations o f European Imperialism Sketch for a Theory o f Collaboration em R Owen e B Sutdiffe ed Studies in the Theory of Imperialism Londres 1972 p 11740 47 V er W J M om m sen e J Osterham m el ed Imperialism and Ater Continuities and Discontinuities Londres 1986 126 PETER BURKE tava Recentemente foram publicados vários estudos coletivos e comparativos que oferecem novas interpretações e colocam novas questões A descolonização está finalmente emergindo mais como um tema de análise histórica do que como um ato de Deus ou o resultado das leis da natureza48 A s questões discutidas são basicamente muito simples Porque a descolonização ocorreu naquele momento e por que assumiu aquelas várias formas A descolonização não é mais exclusivamente descrita como a história dos atos de líderes políticos em um curto período de tempo 194762 Seus aspectos de longo prazo estru turais e conjunturais também têm de ser levados em conta A análise das várias formas de descolonização centralizase em torno das três forças que estavam em atividade o poder colonial a situação na colônia e o fator internacional A interação dessas forças decidiu as formas mas não o resultado do processo porque apesar das diferenças o resultado foi sempre o mesmo a independência Mas mais uma vez surge aqui uma questão O que realmente significa a independência Será que o fim do Império foi também o fim do imperialismo ou sua continuação por meios diferentes Aqui a questão da descolonização está relacionada a outro tópico a teoria da dependência A teoria da dependência foi apresentada pela primeira vez pelo economista argentino Raul Prebish em 1947 e posteriormente desenvolvida nos anos 60 por estudiosos latinoamericanos e por norteamericanos interessados na América Latina A teoria nasceu da observação da permanência dos problemas da América Latina pobreza desigualdade favelas dívidas externas a dominação do capital estrangeiro em uma palavra dependência A teoria da dependência declara que essa situação não é o resultado de uma falta de desenvolvimento mas do subdesenvolvimento Originária de estudos latinoamericanos a teoria foi mais tarde organizada e elaborada até se tornar uma teoria universal aplicável não somente 48 Ver H L W esseling Towards a History ofDecolonization Itinerário 11 p 94106 A ESCRITA DA HISTÓRIA 127 1 América Latina mas a todo o Terceiro M undo O Terceiro M undo é encarado como a periferia de um sistema econômico mundial em que o centro ou seja o Ocidente está acumulando os lucros e mantendo a periferia em uma situação de permanente dependência Portanto o subdesenvolvimento não é uma situação mas um processo O Terceiro M undo não é subdesenvolvido mas está sendo subdesenvolvido pelo Ocidente André Gunder Frank apresentou sua formulação mais interessante o desenvolvimento do subdesenvolvimento 49 A teoria da dependência foi logo aplicada a várias partes do Terceiro M undo particularmente à África Samir Am in escreveu extensivamente sobre a questão e Walter Rodney publicou seu famoso livro sobre o problema com o título sugestivo Hovu Europe Underdeveloped Africa50 O problema com a teoria é que explicar o subdesenvolvimento particular da África é tornar o continente dependente de influências estrangeiras durante a maior parte de sua história Esta linha de pensamento era um pouco contraditória à tendência principal que desenvolvia a história africana no mesmo período salientando a autonomia da história africana O s africanos não eram mais encarados como meras vítimas da expansão euro péia mas em grande parte como donos de seu próprio destino Enquanto os neomarxistas abraçavam a teoria da dependência os historiadores e antropólogos marxistas clássicos enfatizavam a autonomia da história africana e tentavam mesmo descobrir um m odo de produção africano51 Tanto a teoria da dependência quanto o conceito de império informal foram de grande valor heurístico porque questionaram 49 A G Frank The Development o f Underdevelopm ent em RI Rhodes ed Imperialism and Underdevelopment a Reader Nova York e Londres 1960 p 516 V er sobre isso L Blussé HL W esseling e G D W inius ed History and Underde velopment Leiden e Paris 1980 50 W Rodney How Europe Underdeveloped Africa Londres 1972 51 H á um a vasta literatura sobre este tema Para um a breve introdução ver A G H opkins ClioAntics A Horoscope for African Economic History em Fyfe African Studies p 3 1 4 8 128 PETER BURKE algumas dashipóteses fundamentais da história de alémmar e assim mudaram nossa interpretação O próprio conceito de uma época de imperialismo com um início e um fim nítidos pode ser derrubado pelo menos no que diz respeito à GrãBretanha O zênite do Império Britânico está agora às vezes colocado no século dezoito com seu declínio já se iniciando no dezenove Não surpreende a questão colocada Por que o Império Britânico durou tanto52 O perigo de conceitos e teorias como esses é que seu significado é superestimado e eles se tornam a nova ortodoxia E um corretivo útil às interpretações existentes relativizar a impor tância de pontos críticos como o início do imperialismo ou a transferência de poder mas não devemos também subestimar sua importância histórica A perda e finalmente a recuperação da independência política são cesuras históricas suficientemente im portantes e não é conveniente deixar que sua importância histórica concreta desapareça em algum conceito mais abstrato de depen dência Aqui nos defrontamos com outro problema com conceitos como este eles são formulados de uma maneira tão abstrata que cobrem todos os tipos de dominação A mais recente contribuição de Ronald Robinson à teoria do imperialismo a teoria excêntri ca com ou sem império sofre deste mal Nesta seu último modelo o imperialismo é concebido em termos do jogo dos mercados econômico e político internacionais em que os graus de monopólio e competição nos negócios nos níveis mundial metro politano e local decidem sua necessidade e lucratividade 53 Esta é provavelmente uma descrição correta mas também uma descrição muito abstrata do imperialismo A assimetria do poder e as mudanças nas formas de colaboração podem ser encontradas através de toda a história Talvez seja mais conveniente ficar um pouco mais próximo do processo histórico concreto e dar inteira atenção aos aspectos específicos e singulares da expansão européia 52 PM Kennedy W hy Did the British Em pire Last So Long em PM Kennedy Strategy and Diplomacy 18701945 Eight studies Londres 1983 p 197218 53 R Robinson The Excentric Idea o f Imperialism W ith or W ithout Em pire em M om m sen and Osterhammel Imperialism and After p 26789 A ESCRITA DA HISTÓRIA 129 Isso nos traz de volta à questão com que começamos O que é história de alémmar ou preferivelmente O que será ela no futuro Conclusão Em 1979 quando PC Emmer e eu publicamos um volume de ensaios intitulado Reappraisals in Overseas History também tivemos de fazer a nós mesmos a pergunta O que é história de alémmar Concluím os então que é um conceito muito mais amplo do que a história da expansão européia pois trata não apenas dos encontros entre europeus e nãoeuropeus mas também dos sistemas econômicos sociais políticos e culturais dos próprios nãoeuropeus54 Isso é verdade C om o observamos nesta contri buição há de fato duas formas diferentes e claramente distintas de história de alémmar a história autônoma da Ásia e da África e a história da expansão européia M as como também observamos esta situação não é satisfatória Se há histórias autônomas da África da Ásia da América da Austrália etc não há motivo para se jogar todas essas histórias na cesta de lixo pela única razão de elas não serem européias e chamar isso de história de alémmar A razão de ter acontecido isso foi que depois de 1945 a história de alémmar teve de encontrar um novo foco e os historiadores coloniais e seus alunos voltaramse para a própria história asiática e africana Foi pouco antes desses campos provarem seu direito de existência Nesse meio tempo o termo história de alémmar serviu como uma cobertura neutra e por isso conveniente para suas atividades Esta forma de história de alémmar pode por isso ser considerada como um movimento de emancipação Pode ser comparada com a emergência da história das mulheres ou da história dos negros ou em um período anterior com a história das classes trabalha 54 PC Em m er e H L W esseling W hat is Overseas History em Emmer e W esseling Reappraisals p 3 130 PETER BURKE doras dos camponeses etc Assim que a emancipação se conclui o tema muda o seu caráter Do ponto de vista do historiador profissional ele continua a existir como uma especialização um campo especial de interesse mas para o público tornase parte da história geral Esse é claramente também o caso da história africana e asiática Elas provaram seu direito de existência assim como a história européia ou americana A ssim sendo este ramo particular da história de alémmar está prestes a se desintegrar na história africana ou asiática etc M as isso também tem um outro lado Assim como parte mas não toda a história européia pode ser entendida como história autônoma o mesmo acontece com o mundo de alémmar Durante mais ou menos os últimos cinco séculos as histórias de várias partes do mundo tornaramse interligadas e várias civilizações influenciaram uma à outra Este é o outro tópico da história de alémmar e a importância deste aspecto da história moderna está cada vez mais evidente Sob esse aspecto a história de alémmar ganhou um lugar distinto no campo da história moderna não como uma disciplina especial ou uma subdisciplina mas como uma forma particular de história mundial N o momento parece que há duas abordagens duas maneiras de se tratar o problema da história mundial U m a delas pode talvez ser rotulada de macrossociologia histórica Este tipo de história é caracterizado por uma abordagem de ciência social Destaca um fenônemo ou tópico social específico assim como a formação a revolução ou a ditadura e o analisa em vários contextos históricos Desse m odo podese distinguir similaridades e dissimilaridades entre por exemplo acontecimentos na Europa do século dezesseis e na China do século vinte O objetivo do jogo é aprender mais sobre o processo histórico em geral55 A outra abordagem é mais tradicional na medida em que tenta distinguir um certo padrão no desenvolvimento da história moderna e considera a escrita da 55 Ver T Skocpol e M Som er The U ses o f Com patative History in M actosocial Inquiry Comparative Studies in SocieCy and History 22 p 17497 1980 A ESCRITA DA HISTÓRIA 131 história como a descrição de processos e acontecimentos históricos concretos A história é também estudada de um modo comparati vo mas dentro da estrutura de desenvolvimentos cronológicos Há mais interesse nas diferenças entre vários desenvolvimentos e a singularidade de alguns acontecimentos do que em suas similari dades A estrutura conceituai é aquela da unificação do mundo como uma conseqüência da expansão da Europa e da ascensão do Ocidente56 Am bas as abordagens são caracterizadas por um forte desejo de transcender os limites tradicionais os pontos de vista provincianos e as tendências viciosas nacionalistas N o fim elas têm o mesmo objetivo ou seja tornar a disciplina ocidental específica da história aplicável à história mundial Isso é necessário porque nossa civilização é a primeira a ter por seu passado o passado do mundo nossa história é a primeira a ser a história do m undo Essas palavras foram escritas por Huizinga há mais de meio século atrás57 O desafio de se extrair em suas conseqüências é algo que ainda hoje estamos enfrentando 56 Próximo a W allerstein Eric R W olf Europe and the People Without History Berkeley 1982 e P Curtin C ross Cultural Trade in World History Cam bridge 1985 assim como W M cNeill The Rise of the West a History of the Human Community Chicago 1963 são relevantes para esta questão 57 H uiiinga A Definition o f the Concept o f History em R Klibansky and HJ Paton ed Philosophy and History Oxford 1936 p 8 SOBRE A MICROHISTÓRIA Giovanni Levi U m a dúvida sem um fim não é nem mesm o uma dúvida L Wittgenstein 1969 N ão é por acaso que o debate sobre a microhistória não tem sido baseado em textos ou em manifestos teóricos A microhistória é essencialmente uma prática historiográfica em que suas referên cias teóricas são variadas e em certo sentido ecléticas O método está de fato relacionado em primeiro lugar e antes de mais nada aos procedimentos reais detalhados que constituem o trabalho do historiador e assim a microhistória não pode ser definida em relação às microdimensões de seu objeto de estudo Por isso o leitor pode talvez se surpreender pela natureza um tanto teórica deste artigo N a verdade muitos historiadores que aderem à microhistória têmse envolvido em contínuos intercâmbios com as ciências sociais e estabelecido teorias historiográficas sem con tudo sentir qualquer necessidade de se referirem a qualquer sistema coerente de conceitos ou princípios próprios A micro Professor de História da Universidade de Veneza 134 PETER BURKE t história assim como todo trabalho experimental não tem um corpo de ortodoxia estabelecida para dele se servir A ampla diversidade de material produzido demonstra claramente o quanto é limitada avariedade de elementos comuns Entretanto em minha opinião estes poucos elementos comuns como ocorre na micro história são cruciais e são eles que vou tentar examinar aqui Há algumas características distintas na microhistória que derivam daquele período nos anos 70 quando se iniciou um debate político e cultural mais geral Não há nada particularmente incomum nisso pois os anos 70 e 80 foram em quase todo o mundo anos de crise para a crença otimista prevalecente de que o mundo seria rápida e radicalmente transformado em linhas revolucionárias Naquela época muitas das esperanças e mitologias que antes haviam orientado uma parte importante do debate cultural incluindo o domínio da historiografia estavam se com provando não tanto inválidas mas inadequadas diante das impre visíveis conseqüências dos acontecimentos políticos e das realida des sociais acontecimentos e realidades que estavam longe de estar em conformidade com os modelos otimistas propostos pelos grandes sistemas marxista ou funcionalista Ainda estamos vivendo as fases dramáticas iniciais deste processo e os historiadores têm sido forçados a colocar novas questões sobre suas próprias meto dologias e interpretações Além de tudo a suposição do automatis mo da mudança foi corroída mais especificamente o que tem sido posto em dúvida é a idéia de uma progressão regular apesar de uma série de estágios uniformes e previsíveis em que se imaginava que os agentes sociais se alinhavam conforme as solidariedades e os conflitos em algum determinado sentido naturais e inevitáveis O aparato conceituai com que os cientistas sociais de todas as convicções interpretavam a mudança atual ou passada foi sobrecar regado por um a carga de positivismo herdado O s prognósticos de comportamento social estavam se comprovando demonstravel mente errôneos e esta falência dos sistemas e paradigmas existentes requeria não tanto a construção de uma nova teoria social geral mas uma completa revisão dos instrumentos de pesquisa atuais A ESCRITA DA HISTÓRIA 135 Por mais banal e simplista que esta colocação possa parecer esta percepção da crise é tão geral que apenas a mais simples menção pareceria necessária Havia contudo várias reações possíveis para a crise e a microhistória em si nada tnais é que uma gama de possíveis respostas que enfatizam a redefinição de conceitos e uma análise aprofundada dos instrumentos e métodos existentes Ao mesmo tempo têm havido outras soluções propostas absolutamente mais drásticas que com freqüência desviam para um relativismo deses perado para o neoidealismo ou mesmo para o retorno a uma filosofia repleta de irracionalidade Aqueles historiadores que aderiram à microhistória1 em geral tinham suas raízes no marxismo em uma orientação política para a esquerda e em um secularismo radical com pouca inclinação para a metafísica Apesar do fato dessas características estarem manifes tadas de m odos amplos e diversos acredito que serviram para ancorar firmemente esses historiadores à idéia de que a pesquisa histórica não é uma atividade puramente retórica e estética eu trabalho tem sempre se centralizado na busca de uma descrição mais realista do comportamento humano empregando um modelo de ação e conflito do comportamento do homem no mundo que reconhece sua relativa liberdade além mas não fora das limitações dos sistemas normativos prescritivos e opres sivos Assim toda ação social é vista como o resultado de uma constante negociação manipulação escolhas e decisões do indiví duo diante de um a realidade normativa que embora difusa não obstante oferece muitas possibilidades de interpretações e liberda des pessoais A questão é portanto como definir as margens por mais estreitas que possam ser da liberdade garantida a um indivíduo pelas brechas e contradições dos sistemas normativos que o governam Em outras palavras um a investigação da extensão 1 A obra centralizada em torno de duas publicações a série Microstorie publicada por Einaudi em Turim a partir de 1981 e em partea revista Quademi Storici publicada pelo II M ulino de Bolonha 136 PETER BURKE e da natureza da vontade livre dentro da estrutura geral da sociedade humana Neste tipo de investigação o historiador não está sim plesmente preocupado com a interpretação dos significados mas antes em definir as ambigüidades do mundo simbólico a plurali dade das possíveis interpretações desse mundo e a luta que ocorre em torno dos recursos simbólicos e também dos recursos materiais Assim a microhistória possuía uma posição muito específica dentro da chamada nova história Não era simplesmente uma questão de corrigir aqueles aspectos da historiografia acadêmica que pareciam não mais funcionar Era mais importante refutar o relativismo o irracionalismo e a redução do trabalho do historiador a uma atividade puramente retórica que interprete os textos e não os próprios acontecimentos Segundo Wittgenstein U m a dúvida sem um fim não é sequer uma dúvida2 O problema está em seachar uma maneira de reconhecer os limites do conhecimento e também da razão en quanto ao mesmo tempo se constrói uma historiografia capaz de organizar e explicar o mundo do passado Por isso o principal conflito não é entre a nova história e a história tradicional mas antes do significado da história encarada como uma prática inter pretativa3 A microhistória como um a prática é essencialmente baseada na redução da escala da observação em uma análise microscópica e em um estudo intensivo do material documental Essa defini ção já suscita possíveis ambigüidades não é simplesmente uma questão de chamar a atenção para as causas e os efeitos do fato de 2 L W ittgenstein On Çertainty Oxford 1969 parágrafo 625 3 Por isso discordo da posição assum ida por Joan Scott History in Crisis The O thers Side ofthe Story em American Historical Review 94 p 680921989 que considera positivo todo o trabalho histórico de vanguarda Seu artigo termina evocando uma frase de renovação sem qualquer perspectiva Se as muitas histórias diferentes do passado baseadas em experiências históricas diferentes são na verdade inconciliá veis será que não existe o m enor m odo de se pensar coerente e sistematicamente sobre o passado Essas questões têm resposta m as somente se aceitamos a noção de que a própria história é um a disciplina em mutação p 6912 M as que resposta existe além das inquirições criativas A ESCRITA DA HISTÓRIA 137 dimensões diferentes coexistirem em cada sistema social em outraS palavras o problema de descrever vastas estruturas sociais comple xas sem perder a visão da escala do espaço social de cada indivíduo e a partir daí do povo e de sua situação na vida Não é por isso uma questão de conceituar sridéia de escala como um fator inerente em todos os sistemas sociais e como uma característica importante dos contextos de interação scfcial incluindo diferentes dimensões quantitativas e espaciais Este problema tem sido amplamente discutido entre antropólogos que tôm apresentado o conceito de escala exatamente nesta perspectiva a escala como um objeto de análise que serve para medir as dimensões no campo dos relacio namentos Para Fredrik Barth por exemplo que organizou um seminário fundamental sobre o tema o problema é o de nossa capacidade para descrever diferentes combinações da escala em diferentes organizações sociais empíricas para medir o papel que desempenham nos diferentes setores das vidas que elas m oldam 4 Para a microhistória a redução da escala é um procedimento analítico que pode ser aplicado em qualquer lugar independente mente das dimensões do objeto analisado Desejo por um instante encarar mais de perto este problema pois a idéia da escala ser um objeto de estudo é uma fonte de má interpretação para muitas pessoas em discussões sobre a micro história Freqüentemente se supõe por exemplo que as comuni dades locais possam ser adequadamente estudadas como objetos de sistemas de pequena escala mas que as escalas maiores deveriam ser usadas para revelar as conexões entre as comunidades dentro de uma região entre as regiões dentro de um país e assim por diante Sem dúvida fica imediatamente óbvio que mesmo a ação aparentemente mais insignificante como por exemplo a de alguém sair para comprar um pão realmente envolve o sistema bem mais amplo dos mercados de grão de todo o mundo E apenas uma distorção paradoxal e significativa da perspectiva sugeriria que a vida comercial de uma aldeia não tem interesse além de seu 4 F Barth ed Scale and Social Organfeatíon O slo Bergen Trom so 1978 p 273 138 PETER BURKE significado em uma escala local U m exemplo desse tipo de perspectiva pode ser vislumbrado em uma divertida investida de Franco Venturi contra os estudos de comunidade e em particular contra a microhistória5 Estudar as crônicas de uma aldeia o que é feito com enorme freqüência hoje em dia é algo completamente sem sentido O dever do historiador é estudar as origens daquelas idéias que moldam nossas vidas não escrever novelas Basta eu citar um exemplo há muita conversa atualmente sobre a necessidade de retorno ao mercado Quem inventou o mercado Os homens do século dezoito E na Itália quem se preocupava com isso Os pensadores do Iluminismo Genovese e Verri É importante situar firme mente no centro de nossos estudos as raízes de nossa vida moderna Seria possível replicar isso parafraseando Geertz O s historia dores não estudam as aldeias eles estudam em aldeias6 Naturalmente a descrição de combinações de escala diferentes embora congruentes é importante no fenômeno social ainda que apenas como um meio de atribuir dimensões internas ao objeto de análise Entretanto é autoevidente e até banal afirmar que as dimensões particulares do objeto de análise não refletem necessa riamente a escala distintiva do problema colocado A idéia de que a escala tem sua própria existência na realidade é aceita até por aqueles que consideram que a microanálise só opera através do exemplo ou seja como um processo analítico simplificado a seleção de um ponto específico da vida real a partir do qual se exemplificam conceitos gerais em vez de funcionar como um ponto de partida para um movimento mais amplo em direção à generalização O que as dimensões dos m undos sociais de diferen tes categorias de pessoas e de diferentes campos estruturados de relacionamentos demonstram é a natureza precisa da escala que opera na realidade Nesse sentido portanto a segmentação de 5 F Venturi Lumi di Venezia La Stampa Turim 27 de janeiro de 1990 6 O texto completo diz O s antropólogos não estudam as aldeias tribos cidades vizinhanças eles estudam em aldeias Ver C Geertz The Interpretation of Cultures Nova York 1973 p 22 A ESCRITA DA HISTÓRIA 139 sociedades complexas é delineada sem se recorrer a suposições e estruturas consideradas a priori mas esta abordagem é capaz apenas de construir uma generalização que é mais metafórica que dem ons trada generalização esta baseada somente na analogia Pareceme em outras palavras que deferíamos discutir o problema da escala não só como aquele da escala da realidade observada mas também como um a questão de um a escala variável de observação para propósitos experimentais E natural e correto que a irredutibilidade das pessoas individuais às regras dos sistemas de grande escala tivesse situado o problema da escala no âmago do debate Em oposição a um funcionalismo supersimples é importante enfatizar o papel das contradições sociais na geração da mudança social em outras palavras enfatizar o valor explanatório das discrepâncias entre as restrições que emanam dos vários sistemas normativos ou seja entre as normas do estado e da família e do fato de que além disso um indivíduo tem um conjunto diferente de relacionamen tos que determina suas reações à estrutura normativa e suas escolhas com respeito a ela Embora a escala como uma característica inerente da realidade certamente não seja um elemento estranho no debate da micro história ela é sem dúvida tangencial7 porque o problema real está na decisão de reduzir a escala de observação para propósitos experimentaisO princípio unificador de toda pesquisa microhis tórica é a crença em que a observação microscópica revelará fatores previamente não observados Alguns exemplos desse procedimen to intensivo são a reinterpretação do caso contra Galileu como uma defesa das noções aristotélicas de substância e da Eucaristia contra um atomismo que teria tornado impossível a transformação de vinho e pão em sangue e carne8 o enfoque sobre um único qua dro e a identificação de quem ele representa como um meio de 7 G Levi U n problema di scala em Dieci interventi di Storia Sociale Turim 1981 p 7581 8 P Redondi Galileo eretico Turim 1983 U m a tradução de Raymond Rosenthal foi publicada em Londres em 1988 com o Galileo Heretic 140 PETER BURKE investigação do mundo cultural de Piero delia Francesca9 o estudo das estratégias matrimoniais consangüíneas em uma pequena aldeia na região de Com o para revelar o universo mental dos camponeses do século dezessete10 a introdução do tear mecânico observada em uma pequena aldeia têxtil para explicar o tema geral da inovação seus ritmos e efeitos11 o estudo das transações de terra de uma aldeia para descobrir as regras sociais do intercâmbio comercial que operam em um mercado que além disso teve de ser despersonalizado12 Examinemos brevemente o último exemplo Tem havido muita discussão com respeito à comercialização da terra e é uma crença amplamente considerada que a precocidade e a freqüência das transações de terra ocorridas em muitos países da Europa Ocidental e na América colonial indicam a presença precoce do capitalismo e do individualismo Dois elementos evitaram uma avaliação mais adequada deste fenômeno Em primeiro lugar muitas interpretações têm sido baseadas em dados agregados abordagem que tom ou impossível examinar os fatos concretos das próprias transações Em segundo os historiadores foram induzidos a erro por sua própria mentalidade mercantil moderna que os levou a interpretar as quantidades maciças de transações monetá rias de terra que encontraram em documentos notariais contem porâneos como evidência da existência de um mercado autoregu lador Curiosamente ninguém observou ou deu importância ao fato de que os preços envolvidos eram extremamente variáveis 9 C Ginzburg Indaginisu Piero II battesimo II ciclo di Arezzo Laflagellazionedi Urbino Turim 1981 U m a tradução de Martin Ryle e Kate Soper foi publicada em Londres em 1985 como The Enigma of Piero Piero delia Francesca The Baptism The Arezzo Cycle The Flagellation 10 R Merzario II paese stretto strategie matrimoniali nella diocesi di Como secoli XVI XVIII Turim 1981 11 F Ramella Terra e telai sistemi di parentela e manifattura nel Biellese dellOttocento Turim 1984 12 G Levi UEredità immateriale carriera di um esorcista nel Piemonte dei Seicento Turim 1985 traduzido por Linda Cochrane como Inheriting Power the Story of an Exorcisc Chicago e Londres 1988 A ESCRITA DA HISTÓRIA 141 mesmo considerandose as qualidades diferentes da terra Assim os preços da terra e o mercado geral normalmente estavam relacionados à suposição inquestionável de que as forças de mercado eram impessoais Apenas reduzindose a escala de obser vação a um a área extremamente localizada foi possível observar que o preço da terra variava segundo o relacionamento de paren tesco entre as partes contratuais Tam bém foi possível mostrar que eram imputados preços variáveis a terras de igual dimensão e qualidade Desse modo tornouse possível estabelecer que se estava observando um mercado complexo em que os relacionamentos sociais e pessoais desempenhavam um papel determinante no estabelecimento do nível de preço do prazo de pagamento e das formas pelas quais a terra trocava de mãos Esse exemplo pareceme particularmente revelador da maneira como a microhistória pro cede de m odo geral O s fenômenos previamente considerados como bastante descritos e compreendidos assumem significados completamente novos quando se altera a escala de observação E então possível utilizar esses resultados para extrair uma generaliza ção mais ampla embora as observações iniciais tenham sido feitas dentro de dimensões relativamente estreitas e mais como experi mentos do que como exemplos Apesar de ter suas raízes no interior do círculo de pesquisa histórica muitas das características da microhistória demonstram os laços próximos que ligam a história à antropologia particular mente aquela descrição densa que Clifford Geertz encara como a perspectiva adequada do trabalho antropológico13 Em vez de se iniciar com uma série de observações e tentativas para impor sobre elas uma teoria do tipo legal esta perspectiva parte de um conjunto de sinais significativos e tenta ajustálos em um a estrutura inteligí vel A descrição densa serve portanto para registrar por escrito uma série de acontecimentos ou fatos significativos que de outra forma seriam imperceptíveis mas que podem ser interpretado por sua 13 C Geertz Thick Description Toward an Itjterpretive Theory o f Culture em Geertz Interpretation of Cultures p 331 142 PETER BURKE inserção no contexto ou seja no fluxo do discurso social Essa abordagem é bemsucedida na utilização da análise microscópica dos acontecimentos mais insignificantes como um meio de se chegar a conclusões de mais amplo alcance Este segundo Geertz é o procedimento adotado pelo etnólogo cujos objetivos são ao mesmo tempo extremamente ambiciosos e muito modestos Ambiciosos no sentido de que a autoridade do etnólogo para interpretar o material é praticamente ilimitada e a interpretação é em grande parte a essência do trabalho etnográfi co O s escritos antropológicos são trabalhos imaginativos em que a habilidade do autor é medida por sua capacidade de nos colocar em contato com as vidas dos forasteiros e de fixar os acontecimen tos ou o discurso social de forma a nos permitir examinálos claramente O poder do intérprete tornouse portanto infinito imensurável não suscetível de falsificação14 Inevitavelmente fo ram introduzidos elementos que são difíceis de ser racionalmente avaliados variando desde um a espécie de fria empatia até uma habilidade comunicativa literária O perigo do relativismo é acentuado mais que minimizado pelo pequeno espaço destinado à teoria Para Geertz é proveitosa a busca de leis e conceitos gerais pois a cultura é composta de uma trama de significados cuja análise não é uma ciência experimental tateando leis universais mas uma ciência interpretativa em busca de significado Qual é então o papel da teoria Geertz nega que a abordagem interpretativa deva renunciar explicitamente às formu lações teóricas Entretanto ele imediatamente prossegue dizendo que os termos em que tais formulações podem ser moldados são se não inteiramente inexistentes muito próximos disso Há várias características de interpretação cultural que tornam seu desenvolvimento teórico mais difícil que o usual p 24 Em primeiro lugar está a necessidade da teoria ficar bem mais próxima ao campo do que tende a ser o caso em ciências mais aptas a se entregarem à abstração imaginativa p 24 As 14 Clifford O n Ethnographic Authority Representations 1 p 12239 1983 A ESCRITA DA HISTÓRIA 143 formulações teóricas pairam tão baixo sobre as interpretações que governam que não fazem muito sentido ou despertam muito interesse se delas separadas p 25 Assim as teorias são legitima das mas de pouca utilidade porque a tarefa essencial da teoria aqui edificada não é codificai regularidades abstratas mas tornar possivel a descrição densa não para generalizar os casos cruzados mas para generalizar dentro de seu interior p 26 Algo similar está se passando em relação à inferência clínica não é uma questão de se ajustar os casos observados a uma lei existente mas antes de se trabalhar a partir de sinais significativos que no caso da etnologia são atos simbólicos que foram organizados em uma estrutura inteligível para permitir que a análise do discurso social extraia a nãoaparente importância das coisas Por isso não é uma questão de se elaborar em instrumentos teóricos capazes de gerar previsões mas de se organizar uma estrutura teórica capaz de continuar a produzir interpretações defensáveis como fenôme nos sociais novos vindo à to n a Idéias teóricas não são totalmente criadas de novo em cada estudo elas são adotadas a partir de outros estudos relacionados e refinadas no processo aplicadas a novos problemas interpretativos p 267 N ossa tarefa dupla é descobrir as estruturas conceituais que inspiram nossos atos indi viduais ditos do discurso social e construir um sistema de análise em cujos termos o que é genérico àquelas estruturas o que lhes pertence por elas serem o que são fará contraste com os outros determinantes do comportamento humano N a etnografia a fun ção da teoria é promover um vocabulário onde o que a ação simbólica tem a dizer sobre si mesma ou seja sobre o papel da cultura na vida humana possa ser expresso Assim a teoria é um repertório de conceitos e sistemas de conceitos muito gerais elaborados no interior da academia que se agita no corpo de um a etnografia de descrição densa na esperança de transformar ocorrências simples em cientificamente eloqüentes p 28 Por isso os conceitos são instrumentos frios tomados da bagagem da ciência acadêmica eles são úteis na interpretação mas é apenas nessa função que adquirem realidade concreta e especificidade As 144 PETER BURKE teorias não se originam da interpretação A teoria só tem um pequeno papel como subalterna para desempenhar em relação ao papel muito maior do intérprete O s sistemas dos conceitos gerais pertencentes à linguagem acadêmica são inseridos no corpo vivo da descrição densa na esperança de dar expressão científica a acontecimentos simples não para criar novos conceitos e siste mas teóricos abstratos Portanto a única importância da teoria geral é um a parte da construção de um repertório sempre em expansão do material densamente descrito tornado inteligível através de sua contextualização que servirá para ampliar o universo do discurso humano Pareceme que a antropologia interpretativa e a microhistória têm tanto em comum quanto têm a história e a antropologia em geral Não obstante eu quero aqui ressaltar duas diferenças impor tantes uma derivada do uso tradicionalmente mais intenso da pesquisa intensiva em pequena escala e a outra derivada de um aspecto que tentarei explicar em seguida e que posso definir como uma espécie de limitação autoimposta presente no pensamento de Geertz Essas duas diferenças dizem respeito a trabalhos ha prática da racionalidade humana e à legitimidade de se fazerem generalizações nas ciências sociais Examinemos primeiro a maneira diferente como é encarada a racionalidade U m a vez que nega a possibilidade de uma análise específica de processos cognitivos a antropologia interpretativa presume a racionalidade como um ponto de partida como algo impossível de ser descrito fora da ação humana fora do compor tamento humano visto tanto como uma ação significativa e simbólica quanto além da interpretação Até esse ponto podemos estar de acordo Entretanto Geertz extrai dessas considerações conclusões extremas A única coisa que podemos fazer é primeiro tentar procurar conhecer e depois tornar explícitos através da descrição densa os prováveis significados das ações Aqueles que concordam com essa abordagem não acreditam que seja necessário questionar as limitações as possibilidades e a mensurabilidade da própria racionalidade De preferência quaisquer restrições ou A ESCRITA DA HISTÓRIA 145 limites inerentes são presumidos como determinados pelo jogo infinito de interpretações essencialmente sem valor variando entre idealismo e relativismo em vez de estabelecidos pelos padrões de alguma concepção definida da racionalidade humana Podese prosseguir e afirmar que a concepção de Geertz é revelada por algumas características que ele extraiu de Heidegger15 em particular a rejeição da possibilidade de explicação total e a tentativa de construir uma hermenêutica da escuta ou seja escutar a linguagem poética em outras palavras a linguagem apreendida no esforço de inventar novos significados16 N a verdade segundo Geertz o homem não pode formular sistemas mentais sem recorrer à orientação de modelos de emoção públicos e simbólicos pois esses modelos são os elementos essenciais com que ele percebe o mundo Além disso esses modelos simbólicos não podem ser encontrados em toda a fala humana pois a fala em geral degenerou em um simples meio de comunicação Geertz como Heidegger considera esses modelos simbólicos na linguagem quintessencial da poesia que representa a mais alta expressão da experiência hum ana da realidade Geertz especificamente se refere à linguagem do mito do ritual e da arte Para compor nossas mentes devemos saber como nos sentimos a respeito das coisas e para saber como nos sentimos a respeito das coisas precisamos das imagens públicas do sentimento que apenas o ritual o mito e a arte podem proporcionar17 A posição clara e lúcida de Geertz é que o repertório infinito das possibilidades simbólicas das mentes huma nas nos permite abordar a realidade por uma série de passos infinitamente pequenos sem no entanto jamais atingila Essa opinião é consistente com a teoria antihegeliana de Heidegger de que o conhecimento do indivíduo não deve dissolver a existência 15 M Heidegger Hokwege Frankfurt 1950 traduzido para o italiano com o Sentieri interotti Florença 1968 0 16 G Vattimo Introduzione a Heidegger Bari 1985 17 C Geertz The Growth o f Culture and the Evolution o fM in d em J Scher ed Theories of the Mincí Glencoe 1962 p 71340 republicado em Geertz Interpretation of Cultures p 5585 146 PETER BURKE de outros ém si mesmo mas antes que a função adequada do pensamento como um classificador hermenêutico é permitir que as outras pessoas permaneçam sendo as outras Acredito que esse elo heideggeriano é essencial para um entendimento tanto da força e da sutileza das interpretações quanto da relativa debilidade das explicações dos m undos na antropologia interpretativa de Geertz Dessa maneira Geertz pretende evitar a questão da racionalidade e seus limites limites que são definidos por muito mais do que um acesso simplesmente diferencial à informação A diferença é aquela entre o pensamento autêntico e o pensamento governado pelo princípio da razão suficiente Em vista disso poderia parecer que o etnólogo devesse talvez se contentar em interromper sua pesquisa no nível das descrições do significado Sem dúvida deve ser aceito que de um ponto de vista biológico todos os homens possuem intelectos substancialmente iguais mas esse intelecto é completamente dependente dos recursos culturais para seu funcionamento Essa ênfase na cultura permite que se evite qualquer teoria da superioridade do homem civilizado sobre o homem primitivo Também evita que se considere a idéia de que a cultura surge em alguns pontos ordenados nas fases evolucioná rias A cultura definida como a capacidade de pensamento simbó lico é parte da verdadeira natureza do homem A cultura não é suplementar ao pensamento humano mas seu ingrediente intrín seco N ão obstante segundo Geertz o problema de se evitar o relativismo cultural absoluto assim tom ando possível a com paração entre as culturas não pode ser resolvido e não deve nem mesmo ser mencionado Ele se limita a definir a função do intelecto como um a busca de informação uma elaboração emotiva usan dose os materiais comuns aos membros de uma cultura específica Em suma a intelecção humana no sentido específico do raciocí nio diretivo depende da manipulação de certos tipos de recursos culturais de tal maneira a produzir descobrir selecionar os estímulos ambientais necessários seja para que propósito for ao organismo é uma busca de informação p 79 por isso uma reunião seletiva de informação De fato os seres hum anos neces A ESCRITA DA HISTÓRIA 147 sitam de constantes estímulos afetivos e intelectuais mas ao mesmo tempo esses mesmos estímulos requerem um controle cultural contínuo que os organize em uma ordem significativa e inteligível Por isso não é apenas uma reunião de informação mas a organização emotiva do que está envolvido Todavia não é um processo privado uma vez que o significado dos símbolos repousa no fato de que eles são compartilhados e por isso comunicáveis entre os membros de um grupo pequeno ou grande no primeiro momento o pensamento é organizado de acordo com as estruturas simbólicas públicas à mão e somente depois disso ele se torna privado M as Geertz não pode ir além dessas considerações pois um a investigação mais específica no funcionamento da razão iria inevitavelmente introduzir implicações ameaçadoras de uma hie rarquização de culturas Geertz defende o papel desempenhado pelo relativismo cultu ral na destruição do etnocentrismo e com isso nós não podemos deixar de concordar Entretanto ele prossegue identificando o relativismo cultural com o relativismo tout court e encara todo o antirelativismo como uma tendência perigosa para considerar algumas culturas como hierarquicamente superiores a outras Em um artigo revelador de 198418 And antirelativism ele identifica todo antirelativismo com aquela posição em que a diversidade cultural cruzada no espaço e através do tempo reúne uma série de expressões de uma realidade estabelecida subjacente a natureza essencial do homem Geertz percebe nesta visão da diversidade superficial que reveste uma profunda homogeneidade subjacente um a confiança nas teorias da mente humana e da natureza humana por ele rejeitadas porque conduzem inevitavel mente ao restabelecimento de conceitos errôneos de pensamento primitivo e desvio social em outras palavras à hipótese de uma hierarquia de convicções e de formas de comportamento dispostas segundo diferentes níveis de racionalidade Assim a afirmação neoracionalista de que é possível identificarse constâncias formais 18 C Geertz Anti AntiRelativism American Anthropologist 86 p 263781984 148 PETER BURKE universais cognitivos constâncias relativas ao desenvolvimento estágios cognitivos e constâncias operacionais processos cogniti vos seja sob que forma for só diminui o poder de conceitos que corretamente enfatizam a diversidade cultural e a alteridade Seria realmente lamentável se agora que a distância que estabelecemos e o local em que nos instalamos estão começando a impressionar para mudar nosso sentido do sentido e nossa percepção da percepção tivéssemos que voltar a velhas canções p 276 Geertz não se declara relativista mas antes um anti antirelativista no sentido de que estamos em um estágio talvez transitório em que apenas a descrição densa e a elaboração de um repertório de signi ficados são possíveis Entretanto não me parece que sua redução de todo argumen to racionalista a um renascimento potencial de conceitos hierár quicos de cultura seja defensável e de fato é difícil considerar Gellner LéviStrauss Needham Winch Horton e Sperber a quem Geertz se refere todos como expoentes de um a ordenação hierárquica de culturas Por que os processos cognitivos ou os universais cognitivos conduziriam apenas a um a conclusão etno cêntrica Por que uma descrição dos processos racionais em termos formais ou um conceito das limitações da racionalidade provaria obstáculos a um a descrição nãohierárquica de cultura Por que a formalização e a generalização que permite a possibili dade de comparação entre culturas necessariamente implicariam a destruição da alteridade Naturalmente o perigo existe mas a solução será realmente aceitar a ameaça irracionalista paralisante do relativismo como o preço para se escapar do etnocentrismo um espectro de qualquer m odo até agora já em grande parte exorcizado Eu antes acredito que é a verdadeira identificação de processos cognitivos uniformes que nos permite a aceitação da relatividade cultural enquanto rejeitamos o relativismo abso luto daqueles que limitam nossas possibilidades de conhecer a realidade com o resultado de nos tornarmos enredados em um jogo infinito e gratuito de interpretar as interpretações A ESCRITA DA HISTÓRIA 149 Pareceme que uma das principais diferenças de perspectiva entre a microhistória e a antropologia interpretativa é que a última enxerga um significado homogêneo nos sinais e símbolos públicos enquanto a microhistória busca definilos e medilos com referên cia à multiplicidade das representações sociais que eles produzem Portanto o problema não é simplesmente aquele do funcionamen to do intelecto Há também o perigó de se perder a visão da natureza socialmente diferenciada dos significados simbólicos e conseqüen temente de sua qualidade em parte ambígua Isso leva também ao problema de se definirem as diferentes formas de funcionamento da racionalidade humana dentro do contexto de situações especí ficas Tanto a quantidade de informação necessária para se organi zar e definir a cultura quanto a quantidade de informação neces sária à ação são historicamente mutáveis e socialmente variáveis É esse portanto o problema que necessita ser enfrentado uma vez que o arcabouço das estruturas públicas simbólicas é um a abstra ção Pois no contexto de condições sociais diferentes essas estru turas simbólicas produzem uma multiplicidade de representações fragmentadas e diferenciadas e serão essas o objeto do nosso estudo Tanto a quantidade de informação disponível quanto as oportunidades para a observação empírica são provavelmente muito mais amplas e complexas nas sociedades contemporâneas do que nas sociedades simples ou naquelas do passado Não obstante o principal problema é sempre aquele estabelecido de forma extraordinariamente iluminada por Foucault19 o problema da seleção a partir da variação de significados alternativos possí veis que um sistema de classificação dominante deve impor sem mencionar aquela seleção de informação que podemos chamar de autoprotetora que nos permite dar significado ao mundo e funcionar de m odo eficaz A quantidade e a qualidade de tal informação não é entretanto socialmente uniforme e por jsso é necessário examinarse a pluralidade de formas da racionalidade 19 M Foucault Les mots et les choses archéologie des sciences humaines Paris 1966 150 PETER BURKE limitada que atua na realidade particular em observação Essa pluralidade existe como um resultado entre outras coisas de mecanismos protetores desdobrados em face de informações em excesso mecanismos estes que permitem escapar da quantidade total de informação para que as decisões possam ser tomadas Podese pensar por exemplo nos processos de simplificação causai e também na utilização de slogans simplificados nas esco lhas políticas nos sistemas etiológicos usados na medicina popu lar ou nas técnicas de persuasão empregadas pela indústria de propaganda Pareceme por isso não ser suficiente conduzir uma discus são geral do funcionamento simbólico tendose como base uma definição geertziana de cultura como uma busca infinita de informação Acredito ser necessário tentar medir e formalizar os m ecanism os de racionalidade limitada um a racionalidade limi tada em que a localização de seus limites varia com as várias formas de acesso à informação para permitir um entendimento das diferenças existentes nas culturas dos indivíduos grupos e sociedades em várias épocas e locais A qualidade um tanto alusiva do importante mas incompleto sistema de Geertz negli gencia esse objetivo A prova dessa inadequação está exemplificada na abundância do relativismo autobiográfico que surgiu no cenário científico nos últimos anos sob a capa de antropologia interpretativa Reflections on Fieldwork in Morocco20 de Rabinow pareceme um excelente exemplo Existe prova adicional no fato de que o repertório das descrições densas não tem um objetivo comparativo mas perma nece simplesmente um repertório do qual se extraem casos para esclarecimento segundo regras não especificadas Conseqüente mente a interpretação tem com freqüência permanecido em aber to imponderável e limitada Alguns exemplos dessa imponderabi lidade aparecem mais nos geertzianos do que no próprio Geertz 20 P Rabinow Reflections on Fieldwork in Morocco Berkeley e Los Angeles 1977 A ESCRITA DA HISTÓRIA 151 U m exemplo clássico pareceme ser o Great Cat Massacre de autoria de Robert Darnton21 U m segundo aspecto que já foi mencionado é se abster de qualquer tentativa de construir modelos e estabelecer as regras formais dos jogos interpretativos e comunicativos Geertz conclui pela proposição de um uso experimental de conceituação geral acadêmica apenas para revitalizar os conceitos nos exemplos concretos das descrições densas D essa maneira um repertório de conceitos é introduzido em um repertório de acontecimentos interpretados na esperança de que eles operem juntos para que os acontecimentos simples possam se tornar cientificamente eloqüen tes e opostamente que conclusões de longo alcance possam ser extraídas da densidade de fatos simples Esse método com freqüên cia resulta em um a história cultural sem análise social ou em uma análise social extremamente estereotipada extraída de uma história cultural intensivamente investigada A ação é examinada em pro fundidade mas sem uma reconceituação complexa e formal dos mecanismos sociais envolvidos e por isso a análise pára de repente como se estivesse ameaçada no efetivo limiar da história social Por exemplo o carisma e o simbolismo do poder no cerimonial da coroação parecem falar a mesma língua a todos que pertencem a uma sociedade socialmente indiferenciada22 Ou tomandose outro exemplo a briga de galos é apresentada como tendo uma importância universal singular para o conjunto da sociedade ainda que as formas de aposta sejam socialmente diversas23 Por outro lado a microhistória não rejeitou a consideração de diferenciação social da mesma maneira que a antropologia inter 21 R Darnton The Great C at Massacre and otfier Episodes in French Cultura History N ova York 1984 Ver também seu artigo The Symbolic Element in History Journal of Modem History 58 p 21834 1986 e R Chartier Text Sym bols and Frenchness Journal of Modem History 57 p 68295 1985 assim como G Levi I pericoli dei Geertzism o Quademi Storia 20 p 2692771985 22 C Geertz Local Knowledge Further Essays in Interpretive Anthropology Nova York 1983 p 12146 23 C Geertz Deep Play Notes on the Balinese Cockfight Daedalus 101 p 137 1972 republicado em Geertz Interpretation of Cultures p 41254 152 PETER BURKE pretativa mas a considera essencial para se ter uma interpretação tão formal quanto possível das ações do comportamento das estruturas dos papéis e dos relacionamentos sociais Em outras palavras embora os costumes e o uso dos símbolos sejam sempre polissêmicos não obstante eles assumem conotações mais precisas a partir das diferenciações sociais variáveis e dinâmicas O s indiví duos constantemente criam suas próprias identidades e os pró prios grupos se definem de acordo com conflitos e solidariedades que contudo não podem ser presumidos a priori mas resultam das dinâmicas que são o objeto da análise Eu gostaria agora de observar outra característica comum ao trabalho dos microhistoriadores que é o problema da comunica ção com o leitor o problema da narrativa O restabelecimento da narrativa não deveria ser encarado meramente em termos da escolha entre história qualitativa individualizada e aquela história quantitativa cuja ambição é estabeleáer leis regularidade e com portamento coletivo formal A microhistória dirigiu especificamen te o problema da comunicação e tem estado bastante consciente de que a pesquisa histórica não tem a ver apenas com a comuni cação dos resultados em um livro Esse foi um ponto central negligenciado em um conhecido artigo de Stone24 Em geral os problemas de prova e demonstração em história por meio do relato de momentos concretos têm uma relação próxima com as técnicas de exposição N ão é simplesmente um problema de retórica pois o significado do trabalho histórico não pode ser reduzido à retórica mas especificamente um problema de comunicação com o leitor que nunca é um a tabula rasa e por isso sempre coloca um problema de recepção25 Pareceme que a função particular da 24 L Stone The Revival of Narrative Reflections on a New O ld History Past and Present 85 p 3241979 25 Recordo a controvérsia entre A M om igliano La retórica delia storia e la storia delia retórica sui tropi di Hayden W hite em M om igliano Sui fondamenti delia storia antica Turim 1984 p 46476 e H W hite Metakistory Baltimore 1973 em que no entanto M om igliano enfatiza excessivamente a oposição entre a verdade e a retórica C om o eu afirmo no texto os problemas da teoria da argumentação são A ESCRITA DA HISTÓRIA 153 narrativa pode ser resumida em duas características A primeira é a tentativa de demonstrar através de um relato de fatos sólidos o verdadeiro funcionamento de alguns aspectos da sociedade que seriam distorcidos pela generalização e pela formalização quantita tiva usadas independentemente pois essas operações acentuariam de uma maneira funcionalista ô papel dos sistemas de regras e dos processos mecanicistas de mudança social Em outras palavras é exibido um relacionamento entre os sistemas normativos e aquela liberdade de ação criada para os indivíduos por aqueles espaços que sempre existem e pelas inconsistências internas que fazem parte de qualquer sistema de normas e sistemas normativos A segunda característica é aquela de incorporar ao corpo princi pal da narrativa os procedimentos da pesquisa em si as limitações documentais as técnicas de persuasão e as construções interpreta tivas Esse método rompe claramente com a assertiva tradicional a forma autoritária de discurso adotada pelos historiadores que apresentam a realidade como objetiva N a microhistória ao con trário o ponto de vista do pesquisador tornase uma parte intrín seca do relato O processo de pesquisa é explicitamente descrito e as limitações da evidência documental a formulação de hipóteses e as linhas de pensamento seguidas não estão mais escondidas dos olhos do nãoiniciado O leitor é envolvido em um a espécie de diálogo e participa de todo o processo de construção do argumento histórico U m exemplo esclarecedor deste processo é o livro de Ginzburg e Prosperi26 Henry James adotou uma abordagem similar em seu romance In The Cage27 que serve como uma extraordinária metáfora ao trabalho do historiador N o romance Jam es descreve todo o processo de interpretação da realidade construído por um operador de telégrafo em seu local confinado de trabalho em um distrito de Londres Seu material tosco é a importantes na historiografia prática e não são como declara W hite incompatíveis com um a referência realista a fetos históricos 26 C G insburg e A Prosperi Giochi di pazienza un seminário sul Beneicio di Cristo Turim 1975 27 H Jam es ín the Cage Londres 1898 154 PETER BURKE documentação escassa fragmentária e falaciosa apresentada pelo texto dos telegramas diários trocados por seus clientes aristocráti cos O romance deste evidente processo de compreensão do m undo é um a metáfora para o trabalho do historiador mas também proporciona um exemplo do papel que a narrativa pode desempenhar em tal tipo de trabalho A abordagem microhistórica dedicase ao problema de como obtemos acesso ao conhecimento do passado através de vários indícios sinais e sintomas Esse é um procedimento que toma o particular como seu ponto de partida um particular que com freqüência é altamente específico e individual e seria impossível descrever como um caso típico e prossegue identificando seu significado à luz de seu próprio contexto específico Entretanto a contextualização pode significar muitas coisas A teoria de contexto mais coerente é a funcionalista cujo aspecto mais característico talvez seja aquele de se focalizar o contexto para explicar o comportamento social Para o funcionalismo não são tanto as próprias causas do comportamento que constituem os objetos de análise mas antes a normalização de uma forma de comportamento em um sistema coerente que explica aquele com portamento suas funções e o modo como ele opera O modelo durkheimiano de contextualização enfatiza a natureza restritiva de alguns de nossos conceitos gerais mas a contextualização é um elemento funcionalista ainda que se limite a enfatizar o ajustamen to entre uma instituição um a forma de comportamento ou um conceito e aquele sistema do qual faz parte C om o observa Gellner28 mesm o Wittgenstein foi um seguidor e sucessor de Durkheim pois até ele supunha que as categorias eram valida das por serem partes de uma forma de vida Eu gostaria de ressaltar que ao contrário da ênfase do funcio nalismo na coerência social os microhistoriadores concentraram se nas contradições dos sistemas normativos e por isso na fragmen 28 E Gellner Concepts and Society em BR W ilson ed Rationality O xford 1970 p 1 8 4 9 especialmente p 24 A ESCRITA DA HISTÓRIA 155 ração nas contradições e na pluralidade dos pontos de vista que tornam todos os sistemas fluidos e abertos As mudanças ocorrem por meio de estratégias e escolhas minuciosas e infinitas que operam nos interstícios de sistemas normativos contraditórios Isto é realmente uma reversSo da perspectiva pois acentua as ações mais insignificantes e mais localizadas para demonstrar as lacunas e os espaços deixados êm aberto pelas complexas incon sistências de todos os sistemas Voltando ao exemplo previamen te mencionado é afinal mais funcionalista considerar o significa do da briga de galos no contexto de um sistema coerente da cultura balinesa do que considerar os significados múltiplos socialm entejragm entados da briga de galos em si como um meio de interpretar a cultura balinesa em geral com todas as suas inconsistências29 De fato mesmo quando pensamos em um repertório de culturas locais não comparáveis uma com a outra e das quais regras gerais mais ou menos abstratas só podem ser deduzidas de uma forma puramente arbitrária ainda é possível que tal abordagem possa produzir uma interpretação muito funcionalista se assumir a cultura local como um todo coerente homogêneo e sistemático Há por isso duas formas possíveis de se interpretar um contexto social como um local que imputa significado a particulares supos tamente estranhos ou anôm alos revelando seu significado oculto e conseqüentemente seu ajustamento a um sistema ou por outro lado como um ponto de descoberta do contexto social em que um fato aparentemente anômalo ou insignificante assume significado quando as incoerências ocultas de um sistema aparen temente unificado são reveladas A redução da escala é uma operação experimental justamente devido a esse fato porque ele presume que as delineações do contexto e sua coerência são aparentes e revela aquelas contradições que só aparecem quando a escala de referência é alterada Esse esclarecimento pode também ocorrer de m odo incidental como observou corretamente Jacques 29 Geertz Deep Play ver nota 23 156 PETER BURKE Revel30 peloaum ento da escala t A escolha de microdimensões surge como um resultado direto da tradicional preponderância da interpretação macrocontextual em vista da qual ela é a única direção experimental possível de ser tomada Outro conceito de contextualização é aquele que entende o contexto cultural como um processo de se colocar uma idéia dentro dos limites prescritos pelas linguagens disponíveis Estou pensan do aqui por exemplo na história intelectual dos contextualistas ingleses31 Esta teoria encara o contexto como sendo ditado pela linguagem e pelos idiomas disponíveis e utilizados por um grupo particular de pessoas em uma situação particular para organizar por exemplo suas lutas de poder Essa escola de pensamento tem tido grande influência sobre a teoria social em si e tem iniciado tantas discussões que me parece supérfluo voltar a expor seus argumentos Entretanto a perspectiva da microhistória é mais uma vez diferente porque uma importância fundamental é dada às atividades às formas de comportamento e às instituições que proporcionam o arcabouço dentro do qual os idiomas podem ser adequadamente entendidos e que permitem uma discussão signi ficativa daqueles conceitos e convicções que de outra maneira permaneceriam hermeticamente fechados em si mesmos sem uma adequada referência à sociedade mesmo que o discurso seja conceitualizado mais como uma ação do que como uma reflexão A contextualização pode ter um terceiro significado este con siste na colocação formal e comparativa de um acontecimento uma forma de comportamento ou um conceito em uma série de outros que são similares embora possam estar separados no tempo e no 30 J Revel V histoire au ras du sol introdução a G Levi Le Pournir au village Paris 1989 p ixxxiii 31 V er JG A Pocock The Machiavellian Moment Fíorentine Political Thought and the Atlantic Republican Tradition Princeton 1975 e Virtue Commerce and History Essays on Political Thought and History chiefly in the Eighteentfi Century Cambridge 1985 Ver tam bém Q Skinner Hermeneudcs and the Role o f History New Literary History 7 p 2093219756 e o livro de Skinner The Foundations of Modem Political Thought the Renaissance Cambridge 1978 A ESCRITA DA HISTÓRIA 157 espaço Esta contextualização pressupõe que as estruturas formali zadas e explícitas são comparáveis mas está preocupada não apenas em agrupar os itens individuais caracterizados por um ou mais aspectos comuns mas também com a classificação baseada em similaridades indiretas via analogia Aqui o contexto envolve não somente a identificação de um conjunto de coisas que com partilham certas características mas pode também operar no nível da analogia ou seja na área em que a similaridade perfeita existe mais entre os relacionamentos que unem as coisas do que entre as próprias coisas que podem ser muito diversas A similaridade ocorre entre sistemas de relações envolvendo elementos diferentes E por assim dizer uma identificação de semelhanças familiares Eu me refiro aqui em particular à posição de Needham32 A microhistória tem demonstrado a falibilidade e a incoerência dos contextos sociais como convencionalmente definidos obser vese por exemplo as críticas feitas por M Gribaudi33 em relação à delimitação das vizinhanças da classe trabalhadora Gribaudi demonstra que as solidariedades podem estar baseadas não tanto na similaridade da posição social mas antes na similaridade da posição nos sistemas de relacionamentos Outro exemplo é a análise das regras do matrimônio e dos efeitos da consangüinidade na região do Com o no século dezessete34 nessa análise uma forte contextualização social e uma redução da escala revelam a impor tância das regras abstratas formais do matrimônio como uma base para as categorizações sociais Para outro exemplo vejase o estudo de um feudo realizado por Ago35 Essas observações colocam problemas adicionais o que é necessário considerar brevemente Em primeiro lugar o problema 32 R Needham Reconnaissances Toronto Buffalo Londres 1980 33 M Gribaudi Mondo operaio e mito operaio spazi e percorsi sociaíi a Torino jiel primo Novecento Turim 1987 34 Merzario II paese stretto 1981 35 R Ago Jn feudo esemplare immobilismo padronale e astuzia contadina nel Lazio del700 Rom a 1988 158 PETER BURKE do contraste entre o conhecimento individualizado e o generaliza do debate recorrente entre os historiadores sociais E suficiente recordar o debate sobre história qualitativa ou quantitativa da família ou em um contexto mais amplo a crise que abalou uma convicção difundida nos anos 60 da possibilidade de se quantificar as ocorrên cias sociais e formular leis rigorosas de comportamento social Desejo concentrarme aqui em um único aspecto que embora talvez em si singular serve para esclarecer um problema importante Gostaria de examinar o que significa história quantitativa ou melhor examinar aquelas características da quantificação implícitas em um conceito mecanicista de realidade social A microhistória tenta não sacrificar o conhecimento dos elementos individuais a uma generalização mais ampla e de fato acentua as vidas e os acontecimentos individuais Mas ao mesmo tempo tenta não rejeitar todas as formas de abstração pois fatos insignificantes e casos individuais podem servir para revelar um fenômeno mais geral Em um a ciência frágil em que se a própria experimentação não é impossível aquele aspecto da experimen tação envolvendo a capacidade de reproduzir as cauSas está excluído m esm o as menores dissonâncias provam ser indicado res do significado que podem potencialmente presumir as dim en sões gerais Edoardo Grendi definiu essa perspectiva como sendo a atenção dada ao normal excepcional 36 As alternativas de se sacrificar o particular ao geral ou de se concentrar apenas na singularidade do particular é portanto uma distinção inadequa da O problema é mais aquele de como podem os elaborar um paradigma que dependa do conhecimento do particular em bora não rejeitando a descrição formal e o conhecimento científico do próprio particular37 N ão obstante as comparações entre quanti 36 E Grendi M icroanalisi e storia sociale Quaderni Storici 7 p 50620 1972 e Polanyi daífantropologia economica alia microanalisi storica M ilão 1978 37 C Ginzburg Spie radiei di um paradigm a indiziario em A Gargani ed Crisi delia ragione Turim 1979 p 59106 republicada no livro de Ginzburg M m Emblemi Spie morologia e storia Turim 1986 p 158209 U m a tradução inglesa do livro foi publicada em Londres em 1990 com o Myths Emblems Clues A ESCRITA DA HISTÓRIA 159 tativo e qualitativo acontecimento e série particular e geral levaram a um a visão errônea dos instrumentos adequados à formalização A história social tradicionalmente se considerava capaz de aplicar modelos rígidos à história e de utilizar um tipo quantitativo de formalizaçãoem que o conceito de causalidade não poderia ser enfraquecido pela atenção às escolhas e às incertezas pessoais às estratégias individuais e de grupo que evocam um a perspectiva menos mecanicista C om o esta tendên cia a identificar a formalização com a quantificação há muito tempo tem sido predominante a história ficou paradoxalmente atrás das outras ciências sociais Pareceme que a microhistória se movimenta mais firmemente em direção aos ramos nãoquan titativos da matemática para apresentar representações mais realistas e menos mecanicistas am pliando assim o cam po da indeterminação sem necessariamente rejeitar as elaborações for malizadas Problemas como aqueles relacionados a gráficos ou a entrelaçamentos relacionais com a decisão em situações incertas com o cálculo de probabilidades e com jogos e estratégias foram todos inacreditavelmente negligenciados no debate sobre a cham ada história quantitativa Ao se decidir trabalhar com um quadro diferente mais complexo e realista da racionalidade de atores sociais e ao se considerar a natureza fundamentalmente entrelaçada dos fenômenos sociais tornase de imediato necessá rio desenvolver e utilizar novos instrumentos formais de abstra ção O campo permanece bem aberto para a exploração dos historiadores Estas então são as questões e posições comuns que caracteri zam a microhistória a redução da escala o debate sobre a racionalidade a pequena indicação como um paradigma científico o papel do particular não entretanto em oposição ao social a atenção à capacidade receptiva e à narrativa uma definição especí fica do contexto e a rejeição do relativismo Estes elementos característicos são de muitas maneiras similares àqueles esboçados por Jacques Revel em um artigo recente sobre a microhistória que talvez até agora seja a tentativa mais coerente de interpretar este 160 PETER BURKE trabalho experimental38 Revel39 define a microhistória como a tentativa de estudar o social não como um objeto investido de propriedades inerentes mas como um conjunto de interrelaciona mentos deslocados existentes entre configurações constantemente em adaptação Ele encara a microhistória como uma resposta às limitações óbvias daquelas interpretações da história social que em sua busca de regularidade dá proeminência a indicadores super simples A microhistória tentou construir uma conceituação mais fluida um a classificação menos prejudicial do que constitui o social e o cultural e um arcabouço de análise que rejeita simplificações hipóteses dualistas polarizações tipologias rígidas e a busca de características típicas Por que tornar as coisas simples quando se pode tornálas complicadas p xxiv é o lema que Revel sugere para a microhistória C om isso ele quer dizer que o verdadeiro problema para os historiadores é serem bem sucedidos no expres sar a complexidade da realidade ainda que isso envolva o uso de técnicas descritivas e formas de raciocínio que são mais intrinsica mente autoquestionadas e menos assertivas que qualquer outra antes utilizada O problema é também aquele de selecionar as áreas importantes para o exame a idéia de se considerarem os indivíduos da história tradicional em uma de suas variações localizadas é análoga à idéia de se ler nas entrelinhas de um determinado documento ou entre as figuras de um quadro para discernir significados que previamente escaparam da explicação ou a verda deira importância daquilo que antes parecia ter surgido meramente por circunstância ou necessidade ou o papel ativo do indivíduo que antes parecia simplesmente passivo ou indiferente C om referência à definição de Revel tentei salientar mais claramente o impulso antirelativista da microhistória e as aspira ções de formalização que caracterizam ou em minha opinião 38 C Ginzburg e C Poni II nom e eil come scam bio ineguale e mercato storiografico Quaderni Storici 14 p 18190 1979 um breve manifesto inicial que lido hoje parece ter sido muito superado pelo trabalho subseqüente no cam po prático da microhistória 39 Revel Uhistoire au ras du sol em Levi Le pouvoir au village 1989 A ESCRITA DA HISTÓRIA 161 deviam caracterizar o trabalho do microhistoriador Isso é impor tante pois os conceitos que usamos na história e nas ciências sociais são com freqüência imprecisos e usados metaforicamente O próprio conceito de configuração por exemplo fórmula inteli gente e intuitiva de Elias pareceme típico no sentido de ser poderosamente expressivo mas permanece alusivo e não se movi menta em direção a algo que Gomo tentei mostrar neste artigo acredito ser possível expressar em termos mais formais N ão sei se esta apresentação da microhistória é confiável Gostaria de apresentar em termos mais ou menos bem caracteri zados um grupo de pessoas que na verdade tem se envolvido em muitos e variados debates na história social italiana nos anos 70 e 80 Talvez eu devesse ter explicado de modo mais amplo as várias opiniões diferentes envolvidas e as referências a um debate histó rico que se estende muito além do grupo italiano Devo por isso esclarecer as coisas informando o leitor de que meus princípios diretivos são fortemente pessoais este é muito mais um autoretrato que um retrato de grupo Eu não poderia ter feito de outra forma e por isso advirto o leitor ser este o caso HISTÓRIA ORAL Gwyn Prins O s historiadores das sociedades modernas industriais e maci çamente alfabetizadas ou seja a maior parte dos historiadores profissionais em geral são bastante céticos quanto ao valor das fontes orais na reconstrução do passado Nesta questão eu sou quase totalmente cético observou AJP Taylor causticamente Velhos babando acerca de sua juventude N ão Muitos podiam nessa altura ser um pouco mais generosos e admitir a história oral a história escrita com a evidência acumulada de um a pessoa viva de preferência àquela de um documento escrito como uma ilustração agradável e útil mas poucos aceitariam que tais materiais possam se tornar essenciais no estudo das sociedades modernas documentadas Acham que as histórias do povo de Terkel da Depressão e da Segunda Guerra Mundial jamais edificam hipóte ses históricas importantes sobre aqueles grandes acontecimentos A fragilidade implícita das fontes orais é considerada universal e irreparável por isso para as sociedades sem registros escritos o alcance convencional do discernimento é desanimador Em um extremo Arthur Marwick em The Nature of History admite que a Diretor de Estudos de História e M em bro do Emmanuel College 164 PETER BURKE história baseáda exclusivamente em fontes nãodocumentais como por exemplo a história de um a com unidade africana pode ser um a história m ais im precisa e m enos satisfatória do que um a extraída de docum entos m as de todo m odo é um a história N o outro extremo a m enos que haja docum entos não pode haver uma história adequada Desde o início da história isto é da história escrita segundo o m étodo de Ranke a África tem sido vista como o continente ahistórico par excellence Esta opinião foi consistentem ente sustentada desde a sentença de Hegel em 1831 de que ela não é parte histórica do m undo até a fam osa observação de Hugh TrevorRoper em 1965 que ofendeu por uma geração os clãs de africanistas anticoloniais que rapidamente se proliferavam na época decla rando que a África não possuía história apenas evoluções sem sentido de tribos bárbaras1 Esta não era som ente um a visão da direita ou apenas da África A s aldeias ifidianas exemplificando o m odo de produção asiático sim plesm ente assavam ao sol reproduzindose im produtivam ente intocadas pelas nuvens tem pestuosas do céu político na fam osa frase de M arx O s defensores marxistas dos movimentos anticoloniais desde então fazem m alabarism os tentando explicar que o V elho realmente não quis dizer q que claramente ele disse Tanto nos casos simpáticos quanto nos hostis é aplicado o teste rankeano básico Sob a hierarquia de dados rankeana quando forem disponíveis fontes oficiais escritas elas devem ser as prefe ridas Q uando não se dispuser delas temse de tolerar a segunda escolha buscandose as informações longe da fonte pura do texto oficial O s dados orais são nesses termos certamente a segun da melhor ou pior escolha pois seu papel é facilitar as histórias de segunda escolha sobre as comunidades com fontes escassas N es ses critérios Hegel TrevorRoper e M arx estão apenas sendo escrupulosos 1 Para a visão de um cam inho diferente que começa deste m esm o ponto ver H enk W esseling W hat is overseas history p 97131 A ESCRITA DA HISTÓRIA 165 Por parte daqueles que empregam as fontes orais tem havido dois tipos de reação a tal ceticismo uma de irritação a outra um pouco menos Paul Thom pson figura proeminente no movimen to da história oral uma autodescrição que já possui um halo evangelista que defende o valer das fontes orais na história social moderna como proporcionando presença histórica àquelas cujos pontos de vista e valores são descartados pela história vista de cima escreveu iradamente em seu manifesto The Voice ofthe Past que a oposição à evidência oral é muito mais fundamentada no sentimento do que no princípio A geração mais velha dos historiadores que ocupam as cátedras e detêm as rédeas é instintivamente apreensiva em relação ao advento de um novo método Isso implica que eles não mais comandem todas as técnicas de sua profissão Daí os comentários depreciativos sobre os jovens que percorrem as ruas com gravadores de fita2 Assim na batalha sobre as fontes orais na história contempo rânea a linguagem imoderada revela que profundas paixões estão comprometidas de ambos os lados M as quanto ao papel das fontes orais para a história das sociedades nãoalfabetizadas o mais renomado expoente da história oral na África Jan Vansina admitiu francamente o objetivo de Marwickem seu manifesto Oral Tradition as History Onde não há nada ou quase nada escrito as tradições orais devem suportar o peso da reconstrução histórica Elas não farão isso como se fossem fontes escritas A escrita é um milagre tecnológico As limitações da tradição oral devem ser amplamente avaliadas de modo que ela não se transforme em um desapontamento quando após longos períodos de pesquisa resultar uma reconstrução ainda não muito detalhada O que se reconstrói a partir de fontes orais pode bem ter um baixo grau de confiabilidade na medida em que não existem fontes independentes para uma verificação cruzada3 2 P Thom pson The Voice ofthe Past Oral History Oxford 1978 p 63 3 J V ansina O ral Tradition as History M adison W isconsin 1985 p 199 166 PETER BURKE Podese observar que a concordância está limitada às circuns tâncias em que as fontes orais têm de se estabelecer sozinhas e uma vez que Vansina demonstra tanto naquele livro quanto em suas muitas monografias que freqüentemente não é este o caso a principal estocada de seu argumento é de fato muito mais peremptória A questão é que o relacionamento entre às fontes escritas e orais não é aquele da primadona e de sua substituta na ópera quando a estrela não pode cantar aparece a substituta quando a escrita falha a tradição sobe ao palco Isso está errado As fontes orais corrigem as outras perspectivas assim como as outras perspectivas as corrigem Por que seria tão controvertida a utilização das fontes orais Paul Thom pson sugeriu que os velhos professores não gostam de aprender novos truques e resistem ao que percebem ser uma erosão da posição especial do método rankeano Isso pode ser verdade mas eu suspeito de que há razões mais profundas e menos estridentes O s historiadores vivem em sociedades alfabetizadas e como muitos dos habitantes de tais sociedades inconscientemente tendem a desprezar a palavra falada Ela é o corolário de nosso orgulho em escrever e de nosso respeito pela palavra escrita E por que não Com o Vansina observou a comunicação através da linguagem simbólica escrita é uma realização absolutamente estu penda O alfabetizado tende a se esquecer disso O s maoris da Nova Zelândia proporcionam um exemplo triste mas esclarecedor de uma ocorrência comum durante a expansão da Europa os povos analfabetos que observaram depois seguraram com uma energia feroz mas falharam no controle desse instrumento do poder O s fatos triviais são particularmente impressionantes Em 1833 talvez 500 maoris podiam ler depois de um ano 10000 Em 1840 ano do Tratado de Waitangi em que os dirigentes maoris perderam sua terra ou obtiveram o benefício da anexação britânica dependendo do nosso ponto de vista algo raro para um pakeha homem branco naquela época um viajante expressou temor pela saúde física dos maoris Em vez de se exercitarem o que é próprio dos selvagens nobres eles agora eram sedentários A ESCRITA DA HISTÓRIA 167 tendose tornado leitores Em 1837 o tipógrafo W illiam Colenso membro de um a famosa família de missionários concluiu a primeira edição de um Novo Testamento Maori e em 1845 os m issionários protestantes distribuíram quase tantos Novos Testa mentos Maoris quanto metade do número de maoris Em 1849 o Governador George Gray acreditava que a proporção de maoris alfabetizados era maior que a de qualquer população européia Que poder os maoris viam na escrita para buscála tão avidamente Era um poder triplo mas com o muitos povos recémconquis tados e recém e parcialmente alfabetizados os maoris só conse guiram atingir um a pequena parcela dele A primeira faceta do poder do liyro era totêmica O s maoris analfabetos levavam livros quaisquer livros para a igreja ou enfiavam as páginas em orifícios am pliados nos lóbulos de suas orelhas Era uma tenta tiva comumente observada nos primeiros estágios de um encon tro colonial de se obter o poder através da associação A segunda faceta era m anipuladora O m esm o Colenso utilizando o mesmo recurso com que imprimiu as escrituras em 1840 imprimiu o texto do Tratado de W aitangi N o encontro para discutir o Tratado ele não conseguiu convencer o Governador de que em bora todos os maoris pudessem ouvir e alguns pudessem ler as palavras do rascunho do inglês traduzido eles não poderiam e não podiam compreender o significado legal ou compartilhar os conceitos subjacentes de propriedade ou ainda entender as conseqüências da assinatura D on McKenzie declara que os maoris foram os que mais perderam e durante mais tempo na batalha sobre o controle da terra precisamente porque sua exposição à alfabetização na década anterior deu a im pressão de que eles podiam e realmente aceitaram os termos do jogo determinados pelo registro escrito mas não foram capazes de manipulálo com sucesso4 4 D F McKenzie The Sociology of a text oral culture literacy and print in early New Zealand em P Burke e R Porter ed The Social History of Language Cambridge 1987 p 16197 168 PETER BURKE A terceira jaceta do poder é formal e ativa É o poder de extemali zar de acumular e fixar o conhecimento Isso os maoris só adquiri ram em uma escala politicamente significativa na geração seguinte Esta é a verdadeira essência do milagre de escrever e em todas as comunidades a capacidade de cruzar a soleira do passivo para o ativo de passar de vítima a dominador da palavra escrita foi a mais revolucionária de suas conseqüências ainda que a mais ilusória Nas antigas pinturas nas cavernas de Lascaux na França entre as imagens de animais podem ser vistas séries de pontos dispostos aos pares Esses podem ser os primeiros exemplos de comunicação simbólica comunicação que é feita pelo indivíduo embora exista independentemente dele no tempo e no espaço A capacidade de realizar isso é um critério fundamental na distinção do Homo sapiens homem sábio de seus predecessores biológicos a primeira grande divisória na história humana O s pontos de Lascaux podem ser tanto quanto os machados polidos os primei ros prenúncios da revolução neolítica que é a base de toda a civilização subseqüente N o antigo Oriente Próximo o ferro o trigo e os animais domésticos eram subjugados5 Lá também ocorreu a principal invenção que libertou os potenciais da escrita A escrita simbólica foi criticamente importante capacitando o homem a transcender a nãopermanência da fala mas era difícil Foi a criação de um sistema alfabético de escrita que facilitou o desenvolvimento final de um a sociedade essencialmente alfabetizada que primeiro flores ceu na Grécia no século sétimo antes de Cristo Bertrand Russell chamou o nascimento da civilização na Grécia a coisa mais difícil de ser relatada em toda a história e a mais surpreendente Foi com certeza outra linha divisória mas talvez não tão importante quanto aquela representada pela revolução neolítica e talvez não merecen do uma linguagem tão elevada 5 O ferro foi também independentemente subjugado na Tailândia e provavelmente próxim o aos Grandes Lagos na África Central a importância da descoberta do Oriente Próximo está em sua combinação com o cavalo e com os grãos A ESCRITA DA HISTÓRIA 169 Jack Goody em The Domestication of the Savage Minei sugere que na busca da compreensão do poder da alfabetização é útil adaptandose a terminologia de Marx distinguir duas partes no modo de comunicação os objetivos e as relações de comunicação respectivamente as dimensões físicas e as socioculturais Além disso declara ele elas devem ser sempre consideradas em conjun to Nesses termos a Grécia ptíde ser situada em um contexto Nós nos encontramos em uma sociedade de literatura maciça que desfruta de um sistema alfabético de escrita e olhando para trás podemos distinguir três m odos de comunicação Podemos ver 1 Culturas orais em que a linguagem assume uma forma puramente oral Essas são tipificadas por linguagens locais são hoje em dia e têm sido há longo tempo relativamente raras 2 Culturas escritas em que a linguagem assume somente uma forma escrita porque a forma oral não mais existe Essas são tipificadas pelas línguas clássicas 3 Culturas compostas em que uma linguagem assume tanto formas orais quanto escritas para todo o povo ou para uma proporção dele Somos obrigados a categorizar mais e distinguir entre culturas universalmente alfabetizadas que nós muito facilmente admitimos de modo tácito mas que são historicamente incomuns e culturas restritamente alfabetizadas em que a maior parte das pessoas vive à margem mas sob o domínio do registro escrito A existência no interior de um a cultura composta é de fato típica atualmente para todas as grandes línguas do mundo As pessoas ou são individualmente analfabetas ou semianalfabetas reguladas pelo livro assim como os maoris no século dezenove grande parte do m undo islâmico ou o mundo pósalfabetizado no m undo novo da comunicação de m assa eletrônica dominadas pelo rádio pela televisão e pelo telefone M as os historiadores são pessoas alfabetizadas par excellence e para eles a palavra escrita é soberana Estabelece seus padrões e métodos Rebaixa as palavras faladas que se tornam utilitárias e sem interesse em comparação com o significado concentrado do texto A s nuanças e os tipos de dados orais não são levados em conta 170 PETER BURKE U m dos effeitos de se viver em uma cultura dominada pela palavra escrita é devido ao rebaixamento da palavra falada caute rizála Podemos possuir uma consciência detalhada de muitas linguagens escritas complexas especiais no inglês no correr dos tempos tivemos os m odos chauceriano e shakespeareano ou a linguagem especial do Rei James Bible ou do Livro de Orações todas as quais sobrevivem A o observar uma cultura oral ou composta temos de fazer um esforço consciente para tentar e retardar nosso passo de acesso e considerar o testemunho oral como potencialmente do mesmo modo complexo Devemos reconhecer a distinção entre a fala importante e a banal assim como a Tess dos Ubervilles de Thom as Hardy passou do dialeto de Dorset para o inglês padrão segundo seu interlocutor assim como os rastafarianos do Caribe merecem um registro especial para o canto religioso U m dos exemplos mais antigos e mais conhecidos de como as linguagens especiais do registro oral e escrito se entrelaçam em uma cultura composta é a tradição oral sobre o Corão o hadith Em um magnífico estudo dessa cultura islâmica composta Ernest Gellner mostrou como o baraka autoridade carismática dos santos ou Homens Sagrados das M ontanhas A das do Marrocos deriva para seus vizinhos analfabetos de sua interpretação oral da lei islâmica o sh ana M as o sharía é uma lei escrita e esses Hom ens Sagrados podem ser eles próprios pessoalmente analfabetos M as extraem seu carisma da associação com o poder da palavra do livro O s historiadores tradicionais orientados por documentos buscam três qualidades em suas fontes nenhuma das quais os dados orais manifestamente possuem Por isso eles não são levados a sério Exigem precisão na forma E importante verificar a natureza estável da evidência U m documento é um artefato N ão há dúvidas a respeito do que é fisicamente o testemunho a forma é fixa Ele também pode ser testado de várias maneiras fisicamente mais uma vez mas também através de uma bateria de meios comparativos textuais estruturais e outros Isso proporciona a segunda qualidade buscada a precisão na cronologia A ESCRITA DA HISTÓRIA 171 O s historiadores pensam em tempo serial como é medido pelo calendário e pelo relógio de pulso O s documentos podem oferecer belos detalhes nessa dimensão e assim podem permitir que se derive deles argumentos sutis A objetividade requerida pelos membros mais tradicionais d profissão histórica é colocada em grande parte sobre a suposta força de dedução extraída de um estudo concentrado da lógica da1 narrativa belamente estruturada M as como veremos logo a seguir o tempo serial não é o único tipo de tempo que os homens utilizam e há outras coisas além da mudança para explicar Em terceiro lugar uma vez que se é alfabetizado a escrita é fácil e deixa um rastro marcado e por isso vivemos em um oceano de mensagens escritas e consideramos a compreensão da mensagem de um texto lendo textos adicionais Testis unus testis nullus uma única testemunha não é testemunha Nós demonstramos por multiplicação Em cada um desses campos a evidência oral sem comprovação é considerada pobre A forma não é fixa a cronologia freqüentemente é imprecisa a comunicação muitas vezes pode não ser comprovada Para os historiadores que não gostam da história oral esses compõem campos suficientes para sua rejeição Mas outras duas razões são com freqüência adicionadas em relação a seus objetos de estudo U m a delas mencionada no início deste capítulo é que a história oral está autoindulgentemente preocupa da com questões tangenciais A outra é que não pode ser outra ela está enclausurada na irrelevância da pequena escala Creio que a queixa geral das premissas metodológicas sobre a precisão freqüentemente refletem uma crença de que os dados orais não podem explicar a mudança e que a mudança é o que mais os historiadores estudam M as isso não é totalmente verdade e em algumas circunstâncias em especial nas sociedades nãoalfabetiza das ou quase alfabetizadas a continuidade é muito mais interes sante e muito mais difícil de ser explicada do que a mudança A queixa da autoindulgência reflete um preconceito contra a história vista de baixo ou um medo de que uma vez que os dados orais sejam expressos na escala das percepções do indivíduo o historia 172 PETER BURKE dor seja enganado por eles na pequena escala possivelmente os interprete mal e assim seja incapaz de extrapolar de maneira eficiente Em suma ficaríamos irremediavelmente atravancados A história oral só nos relata o trivial sobre as pessoas importantes e as coisas importantes através de sua própria visão das pessoas triviais Será isso realmente verdade Evidentemente foi para destruir esse tipo de postura de rejeição que a artilharia do movimento da história oral deslocouse para o campo de batalha Ele pode ter sido superentusiasticamente bombardeado nos disparos iniciais mas as questões que estão em disputa são reais e estão igualmente vinculadas às funções da memória e aos propósitos da história nas sociedades com modos de comunicação diferentes H á outros testes além dos rankeanos a serem aplicados Para julgar essas queixas e verificarquem está escamoteando quais suposições sobre os propósitos do historiador devemos ser precisos na definição dos termos para evitar erros de categoria Por isso imediatamente distingo dois tipos e dentro de um tipo seguindo Vansina quatro formas diferentes de dados órais e devemos estar preparados para encontrar argumentos diferentes sobre cada um deles em diferentes tipos de sociedade M ais precisamente o que é evidência oral N o início eu a defini como a evidência obtida de um a pessoa viva em oposição a fontes inanimadas mas isso não está suficientemente detalhado Há a tradição oral Em De la tradition orale o livro que mais que qualquer outro revolucionou nossa percepção da tradição oral Jan Vansina a definiu como o testemunho oral transmitido verbal mente de uma geração para a seguinte ou mais a ênfase é minha Tal material é a substância daquilo que possuím os para reconstruir o passado de uma sociedade com uma cultura oral A tradição oral tornase cada vez menos pronunciada à medida que a cultura se move para a alfabetização maciça embora alguma tradição oral possa persistir em um ambiente predominantemente alfabetizado O outro tipo de fonte oral é a reminiscência pessoal Esta é uma evidência oral específica das experiências de vida do informan A ESCRITA DA HISTÓRIA 173 te Tal evidência não passa de geração para geração exceto de modo altamente esmaecido como por exemplo em narrativas familiares privadas N a década de 1870 meu avô materno trabalhava como ajudante de jardineiro em uma mansão em Cornwall O mordomo era um sádico que costumavacolocar gatinhos no fogão quente da cozinha e se divertia assistindo à sua agonia Compreensivelmente meu avô não esqueceu esse comportamento e na verdade deixou a casa para trabalhar nas minas de estanho por causa daquele homem Esse fragmento eu ouvi de minha mãe A reminiscência pessoal direta compõe a carga esmagadora da evidência oral utilizada por Paul Thom pson e o movimento da história oral A tradição oral distinguese da reminiscência de outra maneira A transmissão de grandes quantidades e formas especiais de dados orais de geração para geração requer tempo e um esforço mental considerável por isso deve ter algum propósito Em geral acre ditase que o propósito seja estrutural Alguns teóricos como Durkheim encarariam o propósito na criação e transmissão da história oral desde que sistemática e dependentemente relaciona dos à reprodução da estrutura social Outros veriam propósitos cognitivos mais amplos e mais autônomos Mas quaisquer que sejam eles antes de poderem ser considerados devese ainda subdividir a tradição oral em quatro tipos6 Automática EXPRESSÃO congelada NãoAutomática livre congelada POESIA INCLUINDO CANÇÕES LISTAS ÉPICA FORMA e livre FÓRMULAS NARRATIVA nomes provérbios etc 6 Este quadro é retirado de V ansina O nce upon a time O ral traditions as history in África Daedalus 2 p 44268 primavera dê 1971 na p 451 174 PETER BURKE Se um relato é aprendido automaticamente então as palavras pertencem à tradição Se a forma de apresentação é fixa então a estrutura pertence à tradição Avaliarei uma categoria de cada vez O s materiais aprendidos automaticamente de forma congela da realmente apresentam ao historiador os menores problemas de verificação pois uma crítica textual rigorosa de versões da rrtesma tradição abrirão caminho para se chegar a um cerne comum de forma e de palavras As regras de forma e linguagem podem ser identificadas O s poemas de louvor africanos dos quais os mais conhecidos são os isibongo zulus são bons exemplos desse gênero As palavras a forma e a entonação são todas estritamente definidas Freqüentemente os poemas de louvor descrevem as relações entre o governante e o governado eles mediam um relacionamento que não poderia ser conduzido na linguagem coloquial Assim sua estrutura reflete seu propósito Eis um extrato de um poema desse tipo em louvor a Lozi que recolhi nó oeste de Zâmbia E apresentado em luyana o antigo idioma tão próximo da linguagem cotidiana o siLozi quanto o anglosaxão do inglês moderno Embora eu esteja próximo a você não posso lhe falar Mas não me importo pois sei de onde vem minha família Venho de uma linha de parentesco que está ligada a você Toda canção tem sua origem Quando o rei está na corte ele é como um elefante na vegetação espinhosa como um búfalo na floresta densa como um jardim de milho em um pequeno outeiro na planície alagada do Zambezi Governe bem o país Se o país morrer você será responsável Se ele prosperar terá orgulho de você e o aclamará O s materiais provenientes de fórmulas7 são especialmente úteis quando se está tentando descobrir as dimensões de uma cultura popular U m estudo de provérbios é freqüentemente um modo 7 A expressão do original é form ulaic m aterial im possível de ser traduzida um a vez que não existe registro da palavra formulaic nos dicionários de língua inglesa Considerandose que o sufixo aico de origem latina significa referência pertinência proveniência optam os pela tradução m aterial proveniente de fórm ulas N T A ESCRITA DA HISTÓRIA 175 eficiente de se começar a fazer um tal mapeamento tanto no presente de uma cultura oral ou composta quanto em seu passado Isso porque não é fácil falsificar sua expressão ou se estiverem falsificados fica claro que isso foi feito Há outra ilustração também relacionada ao reinado de Loziem Zâmbia O século colonial na África foi como em qualquer outro lugar tumultuado Grandes forças de mudança afetaram a sociedade lozi assim como muitas outras Por isso se se percebem elementos que permanecem constantes apesar de tais pressões isso é particularmente interes sante e este é um dos exemplos que os exibe Em 1974 eu estava vivendo em Bulozi e costumava coletar provérbios em um caderno de anotações de início principalmente por curiosidade U m provérbio comum referese por analogia ao reinado Está escrito em luyana Nengo minya maloto wa fulanga meí matanga musheke ni mu ku onga O hipopótamo rei agita as águas mais profundas do rio as areias brancas dos locais rasos o traem Encontreio novamente alguns anos depois mas em um con texto diferente havia se transformado em um canto antifonal por um culto de cura misturando o moderno siLozi com o antigo luyana Curandeiro canto Mezi mtua nuka ki tapeio A água do rio é uma oração Curandeiro canto Kubu mwana lilolo Pequeno hipopótamo filho do redemoinho Coro Itumukela mwa ngaia Ele emerge no meio do rio Curandeiro Musheke ni mu kongal As areias o traem Coro Itumukela mwa ngala Portanto tivemos duas variantes compartilhando o mesmo tema importante e ambas firmemente na época póscolonjal O exemplo mostra com clareza como os cristais da expressão perma necem inalterados no interior de um caleidoscópio de estruturas em mutação adaptado a propósitos particulares A força 4 material proveniente de fórmulas é percebida quando aquelas versões modernas são colocadas ao lado do mesmo provérbio exceto nas formas coletadas por um missionário francês bem no início da experiência colonial na década de 1890 wa fulanga meyi matungu musheke ni mu konga e Mbu ku m wana lilolo wa twelanga matungu musheke ni mu konga8 Tal exemplo vivo de persistência na forma de uma fonte oral testemunha sua contínua reprodução na cultura popular e que por sua vez teste m unha sua continuidade na posse de alguma função cultural persistente9 Isso conseqüentemente suscita uma questão impor tante sobre a memória seletiva nas fontes orais o que veremos adiante Alguns materiais provenientes de fórmulas são menos propen sos que outros a tal memória seletiva Por exemplo a identidade de alguém em sua cultura pessoal é freqüentemente transmitida e expressa publicamente em uma descrição semiótica dos limites físicos Por isso se decodificada a paisagem de sua terra descrita por um migrante pode demonstrar mais vivamente a reprodução cultural Isso está brilhantemente exibido em outro estudo de caso africano Siyaya the Historical Anthropology of an African Laridscape realiza tal decodificação e a utiliza para desafiar a suposição convencional de que a migração leva à quebra de relaciona mentos10 O s principais problemas do uso e do mau uso da tradição oral estão relacionados às tradições não apreendidas de modo automá tico as epopéias e as narrativas A forma fixa da épica implica que a maior parte da épica africana é narrativa nesta esquematização 8 Para um a exposição adicional do visível e do oculto na história de Lozi ver G Prins The Hidden Hippopotamus Reappraisal in African History the early Colonial Experience in Western Zambia Cambridge 1980 9 Para um a discussão adicional da importância e da utilidade dos provérbios ver J Obelkevich Proverbs and social history em Burke e Portered The Social History of Language p 4372 10 David W C ohen e ES Atieno O dhiam bo Siyaya the Historical Anthropology ofan African Landscape Londres 1988 e um a crítica em African Affairs 188 p 5889 outubro de 1989 A ESCRITA DA HISTÓRIA 177 Por épica quero me referir aqui à épica homérica a poesia heróica composta oralmente segundo as regras E claro que os poemas foram escritos subseqüentemente e não podemos saber o quanto foram alterados neste ponto ou subseqüentemente mas a estrutura é bastante forte para transcender àquele processo E uma colcha de retalhos uma rapsódia literalmente costurada do verbo grego pooruá de modcí que aquela repetição das fórmulas desempenha um papel na produção da forma da obra tanto para o poeta quanto para a audiência Cerca de um terço da Iliada consiste de versos ou blocos de versos que se repetem mais de uma vez O mesmo acontece com a Odisséia Ocorrem vinte e cinco expressões provenientes de fórmulas nos primeiros vinte e cinco versos da llíada Por exemplo a aurora é quase sempre pintada de rosa Atenas tem olhos de coruja a ilha de ítaca é rodeada de m ar Aquiles saqueando a cidade e mais famosamente o mar é vinho escuro M as não é uma repetição monótona Há trinta e seis epítetos diferentes para Aquiles escolhidos e empre gados por meio de regras fixas11 Assim de tais fragmentos de material o poeta costura uma nova obra embora os retalhos individuais possam ser velhos e bastante conhecidos M as essa categoria e esse método mais uma vez suscitam questões óbvias sobre a limitação da quantidade de conhecimento que a tradição oral pode conter ou transmitir Tudo isso não c estropiadamente restritivo M esmo com uma variedade de alternativas tal composição oral não pode avançar o conhecimento ou a precisão E manietada pela nãopermanência da palavra falada e pela capacidade limitada da memória humana mesmo quando auxiliada por artifícios mnemô nicos assim as culturas orais não podem inovar e devem esquecer Esse ponto de vista está no âmago do argumento do Professor Jack Goody em The Domestication of the Savage M ind A mente selva gem tornase domesticada quando os meios de comuricação tom am possível mudar o m odo 11 M I Finley The World ofOdysseus Penguin edition 1962 p 34 178 PETER BURKE A escrita e mais especificamente a alfabetização tornou possível investigar o discurso de uma maneira diferente proporcionando à comu nicação oral uma forma semipermanente essa verificação favoreceu o aumento do escopo da atividade crítica e daí da racionalidade do ceticismo da lógica Aumentou as potencialidades da crítica porque a escrita expunha o discurso diante dos olhos de uma pessoa de uma maneira diferente ao mesmo tempo aumentava a potencialidade do conhecimento cumulativo especialmente de um tipo abstrato de conhecimento O problema do armazenamento da memória não mais dominava a vida intelectual do homem A mente humana estava livre para estudar o texto estático em vez de estar limitada à participação na expressão dinâmica12 Embora alguns historiadores orais pudessem discutir com Goody a questão da libertação intelectual da escrita muitos especialmente Vansina em Oral Tradition as History discutiriam a extensão da questão de Goody dizer que as tradições orais são por isso também homeostáticas que aquilo que é inconveniente ou não possui mais importância funcional é esquecido Ele sugere que uma amnésia estrutural aflige as culturas orais que são por isso forçadas a ser seletivas devido às limitações da memória e assim as tradições não podem ser bons dados históricos N a verdade tal amnésia estrutural raramente é total Em muitas obras iniciais culminando em sua obraprima sobre a história précolonial da África Central colonial intitulada Paths in the Rainforest13 V ansina mostra como se pode desenredar e decodifi car as várias partes de uma tradição presentes no final da cadeia de transmissão Envolve a comparação de variantes e o entrelaça mento das fontes orais com outras de proveniência diferente A técnica de comparação textual interna para derrotar a homeostase é bem conhecida O s estudiosos islâmicos avaliam versões do hadith estabelecendo o valor de cada um dos elos da cadeia isnâd e não aceitarão qualquer tradição para a qual os dados sobre o isnâd não estejam presentes e razoavelmente completos Mas mesmo derrotandose a homeostase e estabelecendose quais tradições 12 J Goody The Domestication of the Savage Mind Cam bridge 1977 p 37 13 V ansina Paths in the Rainorest M adison W isconsin 1990 A ESCRITA DA HISTÓRIA 179 estão presentes em um testemunho isto é buscandose a precisão da forma como serão elas datadas A precisão da cronologia era a segunda das três qualidades buscadas pelos historiadores orientados pelos documentos Tem sido na tentativa de satisfazeressa exigência e assim obter os aparatos da respeitabilidade que os dados orais têm sido mais seriamente mal utilizados O problema é facilmente ilustrado A categoria da narrativa freqüentemente contém três tipos de transmissão Há tradições de gênesis histórias dinásticas e relatos de organização social Hoje em dia esses três tipos de narrativa não mais existem todos dentro dos mesm os conceitos de tempo embora em questões complicadas a apresentação da evidência possa misturar os tipos de material como espécies diferentes de carne em uma salsicha TEMPO NÃO ESTRUTURADO Tradições dc gênese TEMPO TRADICIONAL scqüenciado mas não serial Histórias dinásticas Relatos de estrutura de governo TEMPO SERIAL Edward EvansPritchard o grande antropólogo que estudou o povo nuer do sul do Sudão antes da Segunda Guerra Mundial escreveu um ensaio embrionário descrevendo o que ele denomi nou de tempo ecológico ou seja o tempo cíclico em que os homens vêem sua passagem na mudança das estações não no passar dos anos Amplificando esse ponto o historiador social EP Thom pson declarou que a mudança das sensações de tempo por tarefas específicas um cozimento de arroz meiahora em Madagascar um assar de milho quinze minutos na Nigéria ocidental um par de Credos no Chile católico do século dezessete para a geral culturalmente autônoma e proposital disciplina de tempo do relógio foi parte da consciência social engendrada pela sociedade industrial e ao mesmo tempo para ela 180 PETER BURKE fundamental14 Imediatamente podem ser imaginados os abusos dos dados orais os historiadores eruditos tentaram extrair crono logias de tempo serial das tradições que existem no tempo tradi cional Ali a importância passada ou presente do sujeito pode afetar sua posição Por exemplo coisas muito importantes podem ser consideradas bastante antigas ou muito recentes aproximan dose ou distanciandose a visão dependendo do contexto e dos propósitos atuais M as os historiadores exploradores perseguindo a precisão cronológica com a convicção e a devoção dos cavalheiros colecio nadores do século dezenove não pensaram nisso Eles utilizaram digamos assim uma lenda real Contavam o número de reis mencionados Consideravam que uma geração alcançasse por exemplo trinta e três anos Multiplicavam um dado pelo outro e pronto eis as datas para as culturas orais U m historiador em particular David Henige provou e explorou tais ingenuidades The Chronology ofO ral Tradition eficazmente apresentando o subtítulo Quest for a Chimera se estende desde os reinados africanos até as relações de reis assírios e do mesmo modo que dissemina a iconoclastia e o ceticismo Henige também dissemina alguma esperança15 Para alguém que compreenda com que espécie de tempo se está lidando e que tipo de propósitos sustentou a tradição na memória podese ainda que grosseiramente tomar medidas defensivas Tal conhecimento é quase sempre contextual U m a medida é mais importante que a maioria U m dos capítulos mais importantes de Henige tem o título de History as present politics O reconhecimento do fato da invenção da tradição foi uma das introspecções mais destrutivamente criativas na história extraeuropéia da última geração acadêmica e na utiliza ção dessa idéia por exemplo por David Cannadine para reexa 14 EE EvansPritchard The Nuer Oxford 1940 EP Thom pson Tim e W ork Discipline and Industrial Capitalism em M W Flinn e T C Sm out ed Essays in Social History Oxford 1974 p 401 V er também Jacques Le Goff Au Moyen Age temps de 1Église et temps du m archand Annales 15 p 417331960 15 D Henige The Chronology of Oral Tradition Q u estfora Chimera Oxford 1974 A ESCRITA DA HISTÓRIA 181 m inar os mitos da m onarquia britânica vemos uma importante importação metodológica na historiografia européia da história extraeuropéia onde as exigências interdisciplinares e lingüísticas mais severas impulsionaram grande parte do pioneirism o meto dológico nos estudos históricos durante a última geração aca dêm ica16 A invenção da tradição não é surpreendente nem desonesta especialmente em culturas sem um critério único de verdade E semelhante à autodefesa do prisioneiro que se finge de bobo ou de surdo vivamente explorado por Alexander Solzhenitsyn em One Day in the Life of Ivan Denisovitch A s situações coloniais são similares pois são também marcadas por extremos de poder e ausência de poder Em algumas circunstâncias especiais nenhuma recuperação é possível nas totalitárias podem ser a simples seqüência e o ritmo do tempo em si que são distorcidos nos contextos coloniais os relatos da estrutura social e da tradição dinástica são mais comumente reinventados Há alguns tipos de memória que podem ser para sempre irrecuperáveis devido à maneira de sua perda Tal foi o caso concluído pelo escritor italiano Primo Levi um dos sobreviventes de Auschwitz em relação ao Holocausto The Drowned and the Saved seu último livro é uma das mais belas reflexões sobre a natureza da vida e o m odo de operação psicológica dos campos de morte que a posteridade possui M as nele Levi estabeleceu a excentricidade de sua própria memória e a natureza conseqüente mente defeituosa de sua interpretação Por definição ele não poderia recuperar a memória das profundidades onde a maioria estava afogada dali ninguém retornou e ele foi um dos poucos que se salvou N o fim tanto para ele quanto para o grande psicanalista freudiano Bruno Bettelheim outro sobrevivente dos campos parece que a carga da sobrevivência foi muito pesada e 16 D Cannadine The Context Performance and M eaning o f Ritual the British M onarchy and the invention o f tradition em T O Ranger e E Hobsbaw n ed The Invention of Tradition Cam bridge 1983 p 101 64 a m esm a questão é levantada por W esseling na p 110 182 PETER BURKE ambos em sua velhice cometeram suicídio Talvez para eles o passado não pudesse ser reinventado nem comunicado Era lite ralmente inenarrável17 Um passo mais próximo de nós que o silêncio estabelece a reconstituição da substância O historiador da experiência soviéti ca Geoffrey Hosking ilustrou a situação totalitária com uma citação da Rádio Armênia Todas as verdades fundamentais sobre a vida soviética são ilustradas por anedotas orais muitas delas originadas da mítica Rádio Armênia Assim perguntase à Rádio Armênia E possível prever o futuro Resposta Sim isso não é problema sabemos exatamente como será o futuro N osso proble ma é o passado esse está sempre m udando 18 Desde o advento da glasnost na União Soviética a batalha pelo controle da memória tem sido amarga U m a facção na verdade se intitula Pamyat Memó ria a outra inteiramente oposta ao arder e nacionalismo eslavo e ao antisemitismo da Pamyat chamase Memorial esta facção sendo estimulada pelo falecido acadêmico Andrei Sakharov como uma forma de resgatar as vítimas de Stálin do esquecimento do silêncio A recuperação da memória popular da Sibéria da mente das pessoas tomouse uma atividade proeminente e de alguma forma uma atividade política marginal na segunda Revolução Russa A reforma do poder fez com que uma comissão relatasse a todo o Congresso dos Deputados do Povo no final de 1989 o resgate e a reinterpretação de um episódio crucial o pacto HitlerStálin19 A natureza da história é combatida ferozmente também na GrãBretanha Em 1985 a Inspetoria de Sua Majestade Her Majestys Inspectorate HMI publicou um parecer sobre o que 17 Primo Levi The Droumed and the Savecl Londres 1988 Michael Ignatieff A cry for help or o f release Observer 1 de abril de 1990 sobre o suicídio de Bruno Bettelheim em 13 de março de 1990 18 Geoffrey A Hosking Memory in a totaliarian society the case o f the Soviet U n io n em Thom as Buder ed Memory Oxford 1988 p 115 19 O n the political and legal assessm ent o f the SovietGerman NonAggression Treaty o f 1939 Relatório ao Segundo Congresso dos Deputados do Povo pelo Presidente da C om issão Alexander Yakovlev 23 de dezembro de 1989 M oscou 1990 A ESCRITA DA HISTÓRIA 183 as crianças deveriam aprender O Blue Book da HMI sintetizava grande parte do que era mais inovador nas escolas durante os vinte anos anteriores um trabalho como o projeto de história do Conselho Escolar visando ensinar as crianças de 11 a 14 anos de idade a discriminar a boa evidência da má evidência pretendia reconhecer a legitimidade de muitos tipos de fontes incluindo a oral para questionar todas as verdades aprendidas para empatizar com as situações difíceis das pessoas no passado como um estímulo essencial à imaginação histórica30 Da mesma forma que os revolucionários modernos na U nião Soviética os Inspetores compreendiam exatamente o significado político de um estudo vigoroso da história e por isso colocaram na contracapa do livro a seguinte frase de Nikita Khruschev O s historiadores são pessoas perigosas São capazes de transtornar tudo O governo da Sra Thatcher aboliu o Conselho Escolar Houve uma tentativa encolerizada prolongada e mal sucedida da Sra Thatcher e da direita radical para estabelecer como termos exclu sivos aqueles do G rupo de Trabalho de História de Saunders W atson de 1990 recomendando ao Departamento de Educação e Ciência o conteúdo do currículo nacional britânico seu programa triunfalista whiggisca orientado por documentos e sumários pro vincianos de história política e constitucional britânica com uma ênfase no aprendizado mecânico das datas e dos fatos e uma aversão à imaginação histórica Podese encontrar aí também a negação à legitimação da história oral O G rupo de Trabalho relatava em termos similares àqueles da HMI em 1985 para ser logo abruptamente derrubado por decreto ministerial quando o Sr Kenneth Clarke recémnomeado para o ministério impôs as opiniões rejeitadas pelo Grupo de Trabalho orientando a profissão e também o Blue Book da Inspetoria Na ocasião da redação do documento fevereiro de 1991 houve confusão e ressentimento pelo feto de tal atuação ser permitida na profissão21 20 History in the Primary and Secondary Years an H M I View Londres 1985 21 M artin Kettle The great batde of history Guardian 4 de abril de 1990 p 23 184 PETER BURKE Esses episódios consideram dois pontos A Sibéria da mente não é apenas o terreno do silêncio da morte mas também uma negação viva da legitimidade Renuncia à mudez em prol da condescendência dissecativa e da hegemonia proscrita dos atuais governantes Nisso os britânicos ecoam friamente o debate sovié tico Em segundo lugar é ressaltada a evidência da fragilidade e sob pressão contemporânea da maleabilidade do passado A escala de tal invenção pode ser grandiosa O povo tiv da Nigéria Central não era composto de cavalheiros N o início da década de 1900 eles combateram os soldados brancos que estendiam linhas telegráficas através de sua terra assim obten do uma reputação de serem bárbaros traiçoeiros e é claro profundamente pagãos Além disso cheiravam à anarquia pois não possuíam uma hierarquia clara de chefes Por isso quando em 1907 um residente britânico Charles Fprbes Gordon descreveu sua sociedade pela primeira vez percebeu e registrou a natureza segmentar de seus clãs M as na ocasião da Primeira Guerra Mundial a administração britânica na Nigéria foi bastante amplia da e achou conveniente parar de olhar os tivs como tivs em vez disso anexandoos a seus vizinhos mais numerosos os hausas Obsequiosamente os chefes tivs se hausaíram aos olhos colo niais falavam hausa vestiamse como os hausas etc M as em 19301 os tivs foram visitados e estudados por RC Abraham antropólogo do governo e RO Downes funcionário do distrito O relatório AbrahamDownes apresentava uma visão nova dos tivs Eles viram a sociedade acéfala descrita por Forbes G ordon em termos razoavelmente hierárquicos refletida em um novo conjunto de conselhos hierarquizados Mas a legitimação desses conselhos e de seus chefes impediu uma geração mais jovem de tivs alfabetizados de um amparo político potencial Assim eles por sua vez começaram a defender um a nova causa aquela do T or Tiv um chefe supremo tiv para comandar os conselhos e por criticando o furor político sobre o Relatório do Grupo de Trabalho de História publicado depois de muito atraso em 3 de abril de 1990 A ESCRITA DA HISTÓRIA 185 coincidência exatamente congruente com o modelo normal da autoridade nativa comandada por funcionários britânicos treina dos na escola de governo indireto de Lord Lugard Outra investi gação antropológica em 1940 decidiu que os tivs eram realmente governados por patriarcas que formavam uma pirâmide de autori dade Será que havia realmente um chefe supremo nativo Em quarenta anos a percepção da estrutura social tiv ficou de pernas para o ar Depois no final dos anos 40 foram para lá mais dois antropólogos os Bohannans e seu estudo clássico dos tivs como uma sociedade de linhagem segmentar como aquela descrita em seu primeiro contato com eles ainda prevalece C ada pesquisador europeu buscava o verdadeiro tiv e cada vez que os forasteiros vinham com uma nova imagem alguma constituinte tiv que via interesse nisso reinventava seu passado para ser amável para com eles Só temos conhecimento disso porque um historiador D C Dorward percebeu que os pesqui sadores participavam reciprocamente da história e porque ele sabia que a invenção de grande parte da tradição era uma possibilidade22 Claramente a defesa contra a tradição inventada é exatamente essa ter uma visão menos confiante da credibilidade tanto do testemu nho oral sem suporte quanto dos predecessores acadêmicos a menos que eles tivessem demonstrado sinais de estarem conscien tes do problema O problema também não está limitado apenas à história oral Outro exemplo confirma a objeção de Vansina à imagem das primadonas e de suas substitutas Ele mostra que uma visão muito confiável de fontes escritas sem suporte combinada com demasia do respeito para com os historiadores pode ser uma combinação igualmente enganadora Aplicando a dúvida sistemática Julian Cobbing convincentemente pôs em questão três dogmas centrais da história sulafricana a visão popular do matabele de Zimbabwe com o uma cultura de guerreiros o mito do nacionalismo zim 22 D C Dorward Ethnography and administration the study o f AngloTiv working m isunderstanding Journal of African History 15 p 457771974 babweano dfe que seu antecedente direto está nas insurreições de 1896 opinião predominantemente enraizada nos pontos de vista do historiador britânico orientado por documentos T O Ranger e mais recentemente a significação e existência real do Mfecane aquela dispersão dos povos que se pensava haverem resultado da destruição do Estado zulu em meados do século dezenove23 N o caso das insurreições sendo o Zimbabwe moderno uma cultura composta a interpretação nacionalista de Ranger penetrou então no registro oral dos pessoalmente analfabetos e assim tornouse a resposta a perguntas sobre aqueles acontecimentos obscurecendo qualquer outra tradição Embora possa ser útil compreender as razões por que as tradições são inventadas também é desanimador testemunhar a perda da possibilidade de algum dia se construir um relato confiante de acontecimentos importantes como esses devido a um a técnica historiográfica inadequada Isso também não é desculpado pelo reconhecimento da nècessidade que tal comu nidade tem daquilo que o próprio Ranger denominava de história usável 14 O reconhecimento da vulnerabilidade dos historiadores orien tados por documentos a tais malogros suscita algumas apreensões quanto ao mau uso dos dados orais na busca da cronologia serial Em ambos os casos a solução é aquela com a qual Vansina rejeitou a analogia operacional o uso de fontes múltiplas convergentes e independentes Com respeito à cronologia a partir da análise interna as tradições orais formais podem produzir uma história seqüenciada m as não necessariamente com uma datação rigorosa Para maior precisão devese buscar uma correlação com as fontes 23 J Cobbing The evolution o f the Ndebele Am abutho Journal of African History 15 p 60731 1974 idem The absent priesthood Another look at the Rhodesian Risings o f 18967 Journal of African History 18 p 6184 1977 idem The M fecane as Alibi Thoughts on Dithakong and M bolom po Journal of African History 29 p 487519 1988 T O Ranger Revolt in Rhodesia 18967 edição em brochura Londres 1979 24 T O Ranger Towards a usable african past in C Fyfe ed African Studies since 1945 A Tribute to Basil Davidson Londres 1976 p 1730 A ESCRITA DA HISTÓRIA 187 externas A evidência arqueológica eclipses do sol ou da lua ou calamidades naturais importantes são pontos de referência co m uns M itos de gêneses histórias dinásticas histórias familiares de pessoas comuns provérbios poesias de louvor épicas e narra tivas podem nos propiciar algum acesso ao interior de um a cultura e de um a época Q uando presos às fontes externas podemos nos defender contra a tradição invenotada apresentar algumas datas do tempo serial e desse modo reconstruir esse tipo de passado Permanece uma espécie de narrativa a ser considerada Está deliberadamente colocada em uma categoria separada porque se refere ao indivíduo isolado e às suas experiências Tal reminiscên cia pessoal é o principal dado utilizado pelos historiadores ao estudarem as sociedades dominadas pela palavra escrita Seu alcance estendese do início da possibilidade biológica cerca de oitenta anos em diante Embora seja o tipo primário de dado oral a reminiscência não é o único tipo nas sociedades alfabetizadas A tradição formal no sentido já discutido ainda persiste U m exemplo clássico disso está na obra de lona e Peter Opie Em In Lore and Language of Schoolchildren eles estabelecem que um enigma de um parque infantil pode atravessar intacto por longas cadeias de transmissão C om o a geração das crianças em idade escolar é mais curta que aquela dos portavozes lozi dos provérbios reais já referidos um ditado que é transmitido durante 130 anos atravessará vinte gerações de crianças em idade escolar ou seja 300 narradores isso eqüivale a mais de 500 anos entre os adultos25 Esse cálculo obrigatoriamente enfatiza que a continuidade mantida pela ener gia de tal renovação ininterrupta requer mais explicação do que mudança D os 137 cantos registrados em 1916 nos London Street Games de Norm an Douglas os Opies encontraram 108 em uso nos anos 50 Em certo caso um poema rimado sobre um grana deiro os Opies têm versões que abrangem os elementos cardeais estáveis a 1725 De modo contrário a reminiscência pessoal não 25 I e P O pie The Lore and Language of Schoolchildren Oxford 1959 p 8 188 PETER BURKE está ausente na sociedade nãoalfabetizada mas seu lugar é na sociedade alfabetizada onde ocupa maior preocupação e interesse Será que a reminiscência pessoal é apenas uma vangloria dos bons velhos tempos Sim e não Grande parte da crítica dos historiadores orientados por docu mentos segue a linha de que a reminiscência das pessoas famosas está fácilmente propensa à autojustificativa conveniente ex pose facto e aquela das pessoas não importantes a lapsos de memória Seja em que caso for a memória é sabidamente indigna de confiança e um teto inseguro quando comparada aos registros inanimados e imutáveis dos documentos através dos anos cm questão O primeiro ponto como podem atestar as estantes de autobiografia política é bem aceito o segundo não tanto pois as fontes documentais não são tão involuntária e naturalmente lega das a nós como se poderia pensar A época em que o quinto Conde de Rosebery confiou seus pensamentos mais íntimos a seu diário quando o governo levava em consideração o pensamento e os memorandos manuscritos de um grupo discreto e identificável e quando o historiador podia com razoável confiança esperar encontrar e ler todos esses docu mentos e acreditar que poderia crer neles terminou há um século atrás Desde então o volume dos documentos oficiais ficou fora de controle Tem de haver seleção para a preservação de forma que os extirpadores tiveram de operar sistematicamente e por isso o que os arquivos oficiais contêm pode ser seja por intenção consciente em geral maldosa ou em virtude de escolhas erradas do que preservar ou do que queimar tão enganador quanto as outras fontes U m a extensa lição das coisas é proporcionada pelo contraste entre a arbitrária e cada vez mais secreta política de testemunho dos departamentos de governo britânicos e o acesso permitido aos assuntos britânicos através dos arquivos americanos pelo Ato de Liberdade de Informação N a época da Guerra das Malvinas em 1982 por exemplo os documentos relacionados às primeiras discussões sobre as ilhas e especialmente uma opinião do Departamento do Exterior datada dos anos 30 que põe em A ESCRITA DA HISTÓRIA 189 dúvida a solidez da reivindicação britânica à soberania foram repentinamente retirados do acesso público embora não antes que um historiador vigilante e como se comprovou corretamente desconfiado conseguisse realizar uma cópia a lápis da opinião o que subseqüentemente foi eneregue à imprensa despertando a ira da Sra Thatcher O processo de Oliver North auxiliar do Presidente Reagan e administrador do caso sombrio do Irã e dos Contras da Nicarágua forneceu uma sinistra ilustração do colapso das suposições dos historiadores tradicionais com respeito aos documentos Um a corte fascinada ouviu em sessões prolongadas de retaliamento da glamurosa secretária do Sr North improvavelmente chamada Fawn Hall sobre o escamoteamento de documentos incriminado res do Pentágono em suas botas e em suas roupas íntimas e também sobre a tentativa de North de evitar deixar qualquer rastro documental utilizando redes de computador para enviar suas mensagens Infelizmente para ele comprovouse possível a recupe ração de mensagens apagadas dos bancos de computação Mas a questão é simplesmente da volta à tecnologia oral via informação eletrônica para a tomada de decisão primária Q uando os docu mentos sobreviverem e puderem ser lidos freqüentemente vão se referir a decisões tomadas em conversações telefônicas De vez em quando a distância entre o texto original oral e o subseqüente texto oficial escrito vem acidentalmente à tona Na GrãBretanha durante a grande depressão um importante comitê de finanças sentouse diante da presidência do Juiz Macmillan A evidência publicada do comitê é extensivamente citada em obras padronizadas sobre o período U m a delas é Politicians and the Slump de Robert Skidelsky26 U m a testemunha particularmente importante diante do comitê foi Montagu Norman Diretor do Banco da Inglaterra mas a versão pública do testemunho de N orm an não foi o que ele realmente disse A subm issão ral de 26 R Skidelsky Politicians and the Slump the Labour Government of 192931 Londres 1967 190 PETER BURKE Norman foi pesadamente reelaborada para o registro Sabem os disso por acidente A cópia do Departamento de Registros Públicos do testemunho verbal foi destruída mas outra cópia foi guardada nos arquivos do Banco da Inglaterra onde um historiador econô mico buscando outra coisa encontroua por acaso Nos Estados Unidos é bemconhecida a extensão em que os funcionários do Departamento de Estado cujos resumos são recusados tiveram de reelaborar os testemunhos orais do grande expoente da guerra fria e Secretário de Estado John Foster Dulles Foi considerado nãopolitico para o C ongressional Record transmitir tais julgamentos inconvenientes sobre os aliados dos Estados Unidos como a resposta de Dulles ao Comitê de Apropriações de que todos os franceses tinham amantes e enviavam cartões postais obscenos mas que não obstante a França era um cêntimo útil do tesouro real Seu obiter dieta sobre a Alemanha e a GrãBreta nha também compensa a descoberta Assim poderíamos virar a mesa Poderíamos argumentar que na verdade o testemunho oral seja ele coletado por gravação em fita sem as lacunas nixonianas ou pelas pesquisas de campo entre as tribos de almirantes e secretários de estado está mais próximo da fonte principal Ele é certamente vulnerável a problemas tão graves quanto aqueles que afetam as fontes documentais modernas mas eles são diferentes Am bos têm em comum o fato de poderem estar sujeitos à invenção da tradição como demonstrou a retirada da opinião sobre as Ilhas Malvinas do PRO mas os problemas de má utilização dos dados orais são possivelmente mais fáceis de serem localizados e resolvidos Além da má utilização que é evitável há dois problemas comuns de crítica da fonte que afetam o testemunho oral esses inevitáveis U m deles é a influência inconsciente da forma literária sobre o testemunho oral Isso ocorre inevitavelmente em culturas compostas Há a reinserção da hermenêutica de um ponto de vista escrito em um testemunho oral de um a pessoa analfabeta Isso é mais comum em contextos altamente saturados como aquele de um encontro colonial e o exemplo zimbabweano de reinserção da A ESCRITA DA HISTÓRIA 191 interpretação de Ranger na cultura oral já mencionado Há também um segundo aspecto de tal influência diferentemente sinistro quando a predominância da forma literária corrói e finalmente destrói os m odos orais de memória O s exemplos m ais conhecidos disso são musicais Ralph Vaughan W illiams Percy Grainger e Benjam in Britten estavam entre os muitos com positores do início do século vinte que coletaram eou utilizaram canções folclóricas em sua própria obra que traduzi ram e perpetuaram as canções originais até o mom ento de sua extinção nas regiões selvagens Além disso alguns dos mais fam osos colecionadores modernos como Ewan M cColl que resgatou e revigorou um grande número de cânticos de trabalho e baladas dos povos trabalhadores da Escócia e do norte da Inglaterra eram também compositores do gênero e suas canções novas e coletadas não são distinguidas pelos ouvintes e por outros intérpretes Assim o que é atualmente ouvido cantar em um bar em Kerry ou em Galloway quase certamente passou pelo ciclo da reinserção da hermenêutica M as esses problemas podem premeditadamente ser antecipados e acomodados na técnica crítica as fontes documentais como a corrente rankeana tornam se poluídas pela invenção da tradição antes mesmo de brotar do solo N o caso da reminiscência geral da vida do informante estruturada pelo que ele acredita ser importante podem os ter o que é comprovadamente o tipo mais puro de registro A bioquímica da memória é ainda muito pouco compreendi da M as testes sobre diferentes tipos de memória tendem a concordar que a memória de longo prazo especialmente em indivíduos que entraram naquela fase que os psicólogos chamam de revisão da vida podem ser notavelmente precisos As pessoas adquirem um poço de informações preenchido pelo relacionamento pessoal E circunscrito a seu contexto social obviamente forma a identidade pessoal e tem um a incrível estabilidade Isso observa David Lowenthal é especialmente verdadeiro em relação às reminiscências intensas e involuntárias da infância quando se vê e se recorda o que está lá não como 192 PETER BURKE fazem os adultos o que é esperado27 A revisão da vida é o produto final de uma vida de reminiscências U m a narrativa estável de revisão da vida no poço de informações é o início de uma tradição oral de longo prazo O fragmento apresentado no início sobre a época de meu avô na mansão de Cornish é um de tais cristais constituintes da tradição E justamente o uso de tal reminiscência que tem sido até agora a maior contribuição de historiadores como Paul Thompson Eles são historiadores sociais e utilizam os dados orais para darem voz àqueles que não se expressam no registro documental Embora não sejam inerentemente um instrumento de radicalização os dados orais na sociedade contemporânea têm sido extensivamente usados por historiadores com uma propensão radical à sua utilização pois como diz Thompson nas primeiras linhas de The Voice of the Past Toda história depende finalmente de seu propósito social e a história oral é a que melhor reconstrói os particulares triviais das vidas das pessoas comuns para aqueles que desejam realizar isso Está na tradição de Mayhew que registrou as vidas dos pobres de Londres na década de 1850 de Charles Booth que estudou a vida e o trabalho das pessoas em Londres entre 1889 e 1903 e do estudo da pobreza em York em 1901 realizado por Seebohm Rowntree Tal propósito tem sido proeminente na prática da história oral a partir da reminiscência na história italiana moderna28 O que a reminiscência pessoal pode proporcionar é um a atualidade e uma riqueza de detalhes que de outra maneira não podem ser encontradas Torna possível as histórias de grupo em pequena escala como o trabalho de Bill W illiams sobre os judeus de Manchester e as obras geograficamente em pequena escala histórias locais de aldeias ou de algumas ruas Isso dá aos historia 27 D Lowenthal The Past is a Foreign Country Cambridge 1985 p 2023 28 G Levi L Passerini e L Scaraffini Vita quotidiana in un quartieri operaio di Torino ira le due guerre lopporto delia storia orale p 20924 L Bergonzini Le fonti orali come verifica delle testimonianze scritte in una ricerca sui antifascismo e la resistenza bolognese p 2638 am bos em B Bernardi C Poni e A Triulzi ed Fonti Orale Antropologia e Storia Milão 1978 A ESCRITA DA HISTÓRIA 193 dores os meios para escrever o que o antropólogo Clifford Geertz chamou de descrição densa relatos ricamente tecidos que têm a profundidade e os contornos que permitem uma análise antropo lógica substancial Mas pondose de lado a simpatia ideológica ou o potencial para a análise estrutural mesmo que a história oral através da reminis cência seja muito poderosa para a história social os céticos ainda têm uma questão a colocar que eu mencionei no início deste capítulo Ela pode ser útil pode ser ilustrativa pode até ser historicamente libertadora mas é passível de explicação O teste munho oral pode permitir uma evocação descritiva bastante como vente do que provavelmente é um mexicano pobre através da obraprima de O scar Lewis The Children oSanchez mas em última análise certamente está confinado à pequena escala e não é lá que as forças propulsoras das teorias explanatórias dos historiadores devem ser encontradas29 U m bom teste para essa asserção é verificar a própria m ono grafia de Paul Thom pson The Edwardians Esta é uma tentativa de recriar a estrutura e a impressão da vida nos anos imediatamente anteriores à Grande Guerra E um período inundado de roman tismo corderosa na memória popular quando ainda existe mel para o chá quando o relógio da igreja de Grantchester ainda se mantém em dez para as três quando Deus estava em seu Céu e tudo estava certo com um m undo prestes a ser feito em pedaços pela guerra M as como deseja mostrar Thom pson não era assim tão simples para mais que bem poucos O recurso central do livro é uma série de cinco vinhetas de evocadas infâncias edwardianas escolhidas como representativas de cada nível da sociedade desde o muito rico até o muito pobre Estão intimamente ligadas ao registro de arquivos pelo procedi mento de amostragem que levou à seleção dos indivíduos Eles 29 O scar Lewis The Children of Sanchez Aurobiography of a Mexican Family Londres 1962 30 P Thom pson The Edwardians the Remaking of Brítish Society Londres 1975 A ESCRITA DA HISTÓRIA 195 confirmálos Eles também podem proporcionar detalhes insigni ficantes que de outra forma são inacessíveis e por isso estimu lar o historiador a reanalisar outros dados de maneiras novas Foi isso que ocorreu na discussão de classe de Thom pson em The Edwardians Foi isso que aconteceu quando o Sr Donald Reagan chefe de gabinete da C asa Branca do Presidente Reagan publicou seu relato autojustificativo de seu período de gabinete e de suas lutas com a Sra Nancy Reagan que revelou entre outras coisas concretas que a escolha do momento da assinatura do Tratado de Intermediação das Forças Nucleares na convocação das superpo tências em dezembro de 1987 foi na verdade orientada pelo astrólogo pessoal da Sra Reagan fato que não será encontrado nos papéis oficiais E isso que está acontecendo com o estudo prestes a ser publicado de Christopher Lee sobre a política de defesa britânica a partir de 1945 Essa é uma questão para a qual o registro documental oficial está de qualquer modo trancado sob a flexível lei britânica trinta e alguma coisa segundo a qual o governo da época pode se quiser prescrever um longo período de confinamentò para os papéis delicados do governo dos quais os assuntos de defesa são os exemplos supremos além do período normal de trinta anos Sabese que a opinião da Sra Thatcher é de que nada relacionado às atividades dos agentes da Inteligência britânica na Rússia czarista deve ser publicado a fim de não proporcionar ajuda ou consolo aos inimigos Ela e as emendas de 1989 ao Ato dos Segredos Oficiais assim o desejam N o caso de Lee seus muitos anos como Correspondente da Defesa da B B C o colocou em um a posição de conhecer e obter a confiança de seus temas As transcrições de suas entrevistas com todos os atores centrais na peça tornamse por si mesmas um a fonte documental vital Seu livro será um exemplar que nenhum historiador acadêmico poderia escrever Dará um alcance radicalmente diferente à nossa compreensão de um período vital de m udança no declínio do poder britânico O s materiais orais se situam naquilo que o Professor Hexter chama de registro secundário mais imediato que outros tipos de dados A compe 196 PETER BURKE tência de Lee para localizar ler e interpretar o registro principal é crucialmente afirmada por sua posse de um registro secundário altamente específico e raro31 Isso não o transforma em um novo tipo de historiador é antes o oposto Muitos historiadores do século dezenove eram amadores no sentido de que escreviam e viviam principalmente fora da academia Tanto no passado quanto no presente o trabalho de campo é um inestimável auxiliar à escrita de um livro Em segundo lugar há o efeito contrário A posse de um registro secundário rico e variado por exemplo antes por meio da experiência pessoal do que via uma entrevista pode tirar o historiador do campo das pessoas comuns O s historiadores das estradas de ferro são excelentes exemplos disso Adrian Vaughan trabalhou como sinaleiro da grande linha de Brunel de Londres para o oeste do país Ele atravessou o período de contração e fechamento nos anos 60 assistiu ao estrangulamento das antigas formas de trabalho e ao desprezo pelos peritos especializados tornouse várias vezes redundante e então decidiu registrar o mundo que havia perdido Suas primeiras obras Signalmans Morninge Signalmans Tmlight foram composições de reminiscên ciás M as à medida que se desenvolveu sua capacidade como historiador ele aprofundou sua análise e agora tornouse o autor de um a notável biografia recente do próprio Brunel enriquecida e informada pela educação de Vaughan na linha ferroviária de propriedade de Brunel32 Outro exemplo desta vez o último que mais um a vez tem sua origem na ira diante da destruição dos especialistas é encontrado em um surpreendente livro sobre arquitetura de autoria de um mestredeobras Roger Colem an vem de uma família de artesãos especializados do norte de Londres Tornouse mestredeobras mas no processo observou e sofreu a desespecialização do ramo 31 C R Lee WhitehallWarriors Postwar Deence Policy Decisionmakingaser publicado 32 A V aughan Signalm ans Morning Londres 1981 e Signaímans Twilight Londres 1983 A m bos os volum es em um a edição variada em brochura Londres 1984 idem lsambard Kingdom Brunel a ser publicado A ESCRITA DA HISTÓRIA 197 da construção Ficava encolerizado diante da arrogância e da incompetência técnica dos arquitetos cujo trabalho ele tinha de executar e que jamais pensavam em pedir sua opinião Assim se desenvolveu a sombria batalha semelhante às batalhas coloniais sobre a tradição inventada em que se alegava a ignorância do prático e se dispensava sua cooperação os arquitetos formados pelos livros e de mãos macias ditando as regras N ão foi sempre assim Estimulado por seu registro secundá rio Colem an iniciou uma longa investigação sobre arte e trabalho No processo assim como W illiam Morris ele adquiriu as habili dades convencionais da história e da crítica de arte M as em seu inflamado livro The Art of Work an Epitaph to Skill as passagens originais não poderiam ter sido escritas apenas por um aprendiz dos livros U m a passagem notável questiona por que W illiam of Sens foi o único homem atingido no acidente durante a restauração da Catedral de Canterbury A resposta que ele era ao mesmo tempo o empreiteirochefe mas também o artesão mais capacitado mostra que a divisão do trabalho não era na época como é agora Avança para um relato que passa pela recuperação de Colem an da cultura submersa dos carpinteiros escrita a partir de seu conheci mento obtido oralmente e do aprendizado com homens velhos e chega a um a exposição única em minha leitura de suas próprias habilidades Ele descreve os procedimentos práticos envolvidos na fabricação de um a janela nova Aprender sobre a característica e o uso de tirantes fitas de madeira com que o carpinteiro transfere as dimensões exatas do orifício na alvenaria para a estrutura da janela soa vulgar se é que tem utilidade M as o relato de Colem an surpreendentemente vai além disso O s tirantes dos carpinteiros unem em um a fraternidade William of Sens Villard de Honne court projetista e construtor da catedral cujos livros de instrução medievais são em certo sentido os precursores do próprio livro de Coleman os carpinteiros anônimos do século dezoito que trabalharam para Vanbrugh e John W ood o Jovem anônimos a m enos que se saiba procurar suas marcas escondidas os velhos professores de ofício de Colem an e a nova janela em questão A 198 PETER BURKE descrição da fabricação de sua nova janela contemporânea situa histórica e analiticamente cada aspecto das tarefas que são em geral invisíveis por serem subvalorizadas33 Alguns historiadores acham que seu oficio é descrever e talvez explicar por que as coisas ocorreram no passado Esta é uma justificativa necessária mas não suficiente Há dois outros compo nentes essenciais da tarefa do historiador A continuidade deve ser explicada A continuidade histórica especialmente nas culturas orais requer mais atenção do que mudança A tradição é um processo vive apenas enquanto é continuamente reproduzida E efervescentemente vital em sua aparente quietude Em segundo lugar a tarefa do historiador é proporcionar ao leitor confiança em sua competência metodológica Para demonstrar consciência das ciladas da tradição inventada e a partir daí das explicações oferecidas o historiador deve também revelar o que é provável que houvesse ali um poeta na Grécia homérica um aldeão na África anterior à chegada do homem branco um maquinista vitoriano esgotado um chefe de gabinete na C asa Branca do Sr Reagan ou se isso não puder ser feito dizer que não pode e explicar o motivo E para essas partes vitais da tarefa do historiador que a história oral tradição e reminiscência passado e presente com seu detalhe sua humanidade freqüentemente sua emoção e sempre seu muito desenvolvido ceticismo com relação a todo o empreen dimento historiográfico é principalmente dirigida Sem acesso a tais recursos os historiadores das sociedades modernas maciça mente alfabetizadas e industriais ou seja a maior parte dos historiadores profissionais vão consumirse em um poço de com preensão circunscrito por sua própria cultura como amantes abandonados colocados sob o círculo de luz tremulante de um poste isolado em uma rua escura e varrida pelo vento 33 R Colem an The Art of Work An Epitaph to Skill Londres 1988 HISTÓRIA DA LEITURA1 R obert Dam ton Ovídio nos aconselha sobre a maneira de se ler uma carta de amor Se sua amante lhe fizer propostas por meio de algumas palavras inscritas em placas entregues a você por um criado esperto medite com cuidado sobre elas examine suas expressões e tente adivinhar se seu amor é apenas simulado ou se suas súplicas partem na verdade de um coração sinceramente apaixonado E extraordinário O poeta romano poderia ser um de nós Referese a um problema que poderia surgir em qualquer época que parece existir independentemente do tempo Lendo sobre a leitura em The Art of Love parecenos ouvir um a voz que nos fala diretamente a um a distância de dois mil anos M as à medida que ouvimos mais a voz soa estranha Ovídio prossegue prescrevendo técnicas para a comunicação com uma amante às escondidas de seu marido De acordo com a moral e a lei uma mulher honesta deve temer seu marido e estar cercada por uma guarda rigorosa Mas se você tiver tantos Professor de História da Universidade de Princenton 1 Este artigo foi reimpresso de Australian Journal of French Stutiíes 23 p 530 1986 com perm issão do autor 200 PETER BIJRKE guardiães quanto Argus tem olhos pode enganálos a todos se sua vontade for bastante firme Por exemplo será que alguém pode impedir sua criada e cúmplice de carregar seus bilhetes no corpete dela ou entre o pé e a sola da sandália dela Suponhamos que seu guardião possa ver através de todos esses estratagemas Faça então com que sua confidente ofereça costas em lugar das placas e deixe que seu corpo se transforme numa carta viva2 Esperase que o amante dispa a criada e leia seu corpo não exatamente o tipo de comunicação que associamos hoje em dia a uma carta de amor Apesar de seu ar de ilusória atualidade The Art of Love nos lança em um mundo que dificilmente podemos imaginar Para compreender a mensagem devemos conhecer algo sobre a mitologia romana técnicas de escrita e vida doméstica Devemos ser capazes de nos supor como a esposa de um nobre romano e avaliar o contraste entre a moralidade formal e os hábitos de um m undo dado à sofisticação e ao cinismo em uma época em que o Sermão da M ontanha estava sendo pregado em um idioma bárbaro bem além do alcance do ouvido dos romanos Ler Ovídio é defrontarse com o mistério da leitura em si Ao m esmo tempo familiar e estranho é uma atividade que comparti lhamos com nossos ancestrais embora ela jamais possa ser a mesma que eles experimentaram Podemos desfrutar da ilusão de sair do tempo para entrar em contato com autores que viveram há séculos atrás Mas mesmo que seus textos tenham chegado intactos até nós uma impossibilidade virtual considerandose a evolução dos projetos e dos livros como objetos físicos nossa relação com esses textos não pode ser a mesma que aquela dos leitores do passado A leitura possui uma história M as como podemos recuperála Poderíamos começar buscando o registro dos leitores Cario Ginzburg encontrou um deles o de um humilde moleiro de Friuli no século dezesseis nos papéis da Inquisição Acusado de heresia 2 O vídio A rs Amatoria Livro 111 linhas 46972 e 61326 Segui a tradução de JH Mozley em The Art of Love and Other Poems Londres 1929 modificandoa em alguns locais de acordo com a versão m oderna de Héguin de Guerle LArt daimer Paris 1963 Todas as outras traduções neste ensaio são de m inha responsabilidade A ESCRITA DA HISTÓRIA 201 o inquisidor perguntou a sua vítima sobre sua leitura Menocchio respondeu com uma série de títulos e elaborados comentários sobre cada um deles Com parando os textos e os comentários Ginzburg descobriu que Menocchio havia lido uma grande quan tidade de narrativas bíblicas frônicas e livros de viagem do tipo que existia em muitas bibliotecas aristocráticas Menocchio não se limitou simplesmente a receber as mensagens transmitidas pela ordem social Ele leu de um m odo agressivo transformando os conteúdos do material à sua disposição em uma visão radicalmente nãocristã do mundo Se essa visão pode ser atribuída a uma tradição popular antiga como afirma Ginzburg é um a questão a ser discutida mas Ginzburg certamente demonstrou a possibilida de de se estudar a leitura como uma atividade entre as pessoas comuns há quatro séculos atrás3 Encontrei por acaso um leitor de classe média abastada em minha própria pesquisa sobre a França do século dezoito Era um comerciante de La Rochelle chamado Jean Ranson e um rous seauísta apaixonado Ranson não apenas leu Rousseau e se emo cionou ele incorporou as idéias de Rousseau na estrutura de sua vida quando montou seu negócio apaixonouse casouse e educou seus filhos A leitura e a vida corriam paralelas como motivos condutores em uma rica série de cartas que Ranson escreveu entre 1774 e 1785 e que mostram como o rousseauísmo foi absorvido no m odo de vida do burguês provinciano sob o Antigo Regime Rousseau recebeu um fluxo de cartas de leitores como Ranson após a publicação de La Nouvelle Héloise Foi acredito eu a primeira onda gigantesca de correspondência de admiradores na história da literatura embora Richardson já houvesse provocado algumas ondas impressivas na Inglaterra A correspondência revela que os leitores reagiram como Ranson em toda parte na França e além disso que suas reações estavam em conformidade com aquelas que Rousseau evocou nos dois prefácios de sua novela 3 C ario Ginzburg The Cheese and the Worms the Cosmos of a SixteentvCentur M iller trad de A nne e John Tedeschi Baltimore 1980 202 PETER BURKE Deu instruções a seus leitores de como lêla Atribuiulhes papéis e proveuos com uma estratégia para compreender sua novela O novo modo de ler funcionou tão bem que La Nouvelle Héloise tornouse o livro mais vendido do século a mais importante fonte isolada da sensibilidade romântica Essa sensibilidade está agora extinta Nenhum leitor moderno pode chorar dessa maneira através dos seis volumes de La Nouvelle Héloise como o fizeram seus predecessores há dois séculos atrás Mas em sua época Rousseau conquistou toda uma geração de leitores revolucionando a própria leitura4 O s exemplos de Menocchio e Ranson sugerem que a leitura e a vida a elaboração de textos e a compreensão da vida estavam muito mais intimamente relacionadas no início do período moder no do que estão hoje Mas antes de precipitar conclusões precisa mos examinar mais arquivos comparando os relatos dos leitores sobre sua experiência com os registros de leitura em seus livros e quando possível com seu comportamento Fui levado a crer que The Sorrows of Young Werther provocou uma onda de suicídios na Alemanha Será que não chegou a hora de uma nova avaliação da Wertherfieberl O s prérafaelitas na Inglaterra proporcionam exem plos similares da vida imitando a arte tema que pode ser rastreado desde Don Quixote até Madame Bovary e Miss Lonelyhearts Em cada caso a ficção poderia ser mais detalhada e comparada com docu mentos bilhetes reais de suicídio diários e cartas ao editor A correspondência dos autores e os papéis dos editores são fontes de informação ideais sobre os autênticos leitores Há dúzias de cartas de leitores na correspondência publicada de Voltaire e Rousseau e centenas nos papéis não publicados de Balzac e Zola5 4 Robert Darnton Readers Respond to Rousseau the Fabrication o f Romantic Sensitivity em Darnton The Great C at Massacre and other Episodes of French Cultural History Nova York 1984 p 21556 5 C om o exemplos desses temas ver Kurt Rothm an Erlâuterungen und Dokumente Johann Wolfgang Goethe Die Leiden des Jungen Werthers Stuttgart 1974 e Jam es Sm ith Allen History and the Novel Mentalité in M odem Popular Fiction History and Theory 22 p 23352 1983 A ESCRITA DA HISTÓRIA 203 Em sum a seria possível desenvolver um a história e também um a teoria da reação do leitor Possível m as não fácil pois os docum entos raramente m ostram os leitores em atividade m ol dando o significado a partir dos textos e os documentos são eles próprios textos o quê também requer interpretação Pou cos deles são ricos o bastante para propiciar um acesso ainda que indireto aos elementos cognitivos e afetivos da leitura e alguns poucos casos excepcionais podem não ser suficientes para se reconstruírem as dim ensões interiores dessa experiên cia M as os historiadores do livro sempre exibiram um a grande quantidade de informação sobre a história externa da leitura Tendo estudado a leitura com o um fenômeno social podem responder m uitas das perguntas de quem o que onde e quando o que pode ser de grande ajuda na abordagem dos m ais difíceis porquês e com os O estudo de quem lê o quê em diferentes épocas recai em dois tipos principais o macro e o microanalítico A macroanálise floresceu acima de tudo na França onde se nutre de uma poderosa tradição de história social quantitativa HenriJean Martin Fran çois Furet Robert Estivais e Frédéric Barbier traçaram a evolução dos hábitos de leitura desde o século dezesseis até os dias de hoje utilizando séries de longo prazo construídas a partir do dépôt legal dos registros de direitos do livro e da publicação anual da Bibliographie de la France Podemse observar muitos fenômenos intrigantes nas oscilações de seus gráficos o declínio do latim a ascensão da novela o fascínio geral pelo mundo imediato da natureza e os m undos remotos dos países exóticos que se dissemi naram por todo o público educado entre a época de Descartes e Bougaínville O s alemães elaboraram uma série ainda mais longa de estatísticas graças a uma fonte peculiarmente rica os catálogos das feiras do livro de Frankfurt e Leipzig que se estendem de meados do século dezesseis a meados do século dezertove O catálogo de Frankfurt foi publicado sem interrupção de 1564 a 1749 e o catálogo de Leipzig que data de 1594 pode ser substituído no período posterior a 1797 pelo Hinrichssche Verzeich 204 PETER BURKE nisse Embora os catálogos tenham seus inconvenientes forne cem um índex aproxim ado da leitura germânica desde a Renas cença e têm sido explorados por um a sucessão de historiadores alemães do livro desde que Johann Goldfriedrich publicou seu m onum ental Geschichte des deutschen Buchhandels em 1908 e 1909 O m undo da leitura em inglês não possui um a fonte com parável mas para o período posterior a 1557 quando Londres começou a dom inar a indústria da im pressão os docum entos da London Stationers Com pany proveram H S Bennet W W Greg e outros com um a enorm e quantidade de material que permitiu traçar a evolução do comércio do livro inglês Em bora a tradição britânica da bibliografia não tenha favorecido a compilação de estatísticas há um grande núm ero de inform ações quantitativas nos catálogos de títulos editados desde 1475 G iles Barber extraiu alguns gráficos sem elhantes aos franceses dos registros da alfândega e Robert W inans e G Thom as Tanselle avaliaram o início da leitura americana reexplorando a enorme American Bibliography de Charles Evans dezoito mil inscrições para o período de 16381783 incluindo infelizmente uma população indeterminada de fantasmas6 6 C om o exemplos dessa literatura que é muito vasta para ser citada aqui em detalhes ver HenriJean Martin Livre pouvoirs et société à Paris au XV IIe siècle 15981 701 Genebra 1969 2 v Robert Estivais La Statisdque bibliographique de la France sous la monarquie au XV lIle siècle Paris e Haia 1965 Frédéric Barbier The Publishing Industry and Printed O utput in NineteenthCentury France em Kenneth E Carpenter ed Books and Society in History Papers of the Association of College and Research Libraries Rare Books and Manuscripts Preconference 2428 June 1980 Boston Massachusetts Nova York e Londres 1983 p 199230 Johan Goldfriedrich Geschichte des deutschen Buchhandels Leipzig 18861913 4 v Rudolf Jentzsch Der deutsch lateinische Büchermarkt nach den Leipziger Ostermesskatalogen von 1 740 1 770 und 1800 in seiner Gliederung und Wandlung Leipzig 1912 H S Bennett English Books Readers 1475 to 1557 Cambridge 1952 Bennett English Books Readers 1558 to 1603 Cam bridge 1965 Bennett English Books Readers 1603 to 1640 Cam bridge 1970 Giles Barber Books from the O ld W orld and for the New the British International Trade in Books in the Eighteenth Century Studies on Voltaire and the Eighteentk Centura 151 p 1852241976 Robert B W inans Bibliography and the Cultural Historian Notes on the EighteenthCentury Novel em W illiam L Joyce David D Hall Richard D Brown e John B Hench ed Printingand Society in Early America W orcester 1983 p 17485 e G Thom as Tanselle Som e Statístícs A ESCRITA DA HISTÓRIA 205 T oda essa compilação e computação proporcionaram algumas orientações para os hábitos de leitura mas as generalizações parecem às vezes amplas demais para serem satisfatórias A novela como a burguesia parece sempre estar em ascensão e os gráficos caem nos pontos esperados mais especialmente durante a Guerra dos Sete Anos na feira de Leipzig e durante a Primeira Guerra Mundial na França A m aiorparte dos quantificadores classifica suas estatísticas em categorias vagas como artes e ciências e belleslettres que são inadequadas para se identificarem fenômenos particulares como a Controvérsia da Sucessão o Jansenismo o Iluminismo ou o Renascimento Gótico exatamente os temas que atraíram mais atenção entre os estudiosos de literatura e os historiadores culturais A história quantitativa dos livros precisará refinar suas categorias e aguçar seu foco antes de provocar um impacto importante nas correntes tradicionais da erudição M as os quantificadores descobriram alguns padrões estatísticos importantes e suas realizações teriam parecido ainda mais impres sionantes se houvesse um pouco mais de esforço ao se fazerem comparações de um país para outro Por exemplo as estatísticas sugerem que o renascimento cultural da Alemanha no final do século dezoito estava relacionado a uma febre tipo epidêmica pela leitura a chamada Lesewut ou Leseshucht O catálogo de Leipzig não alcançou o nível que havia atingido antes da Guerra dos Trinta Anos até 1764 quando incluía 1200 títulos de livros recémpubli cados C om a explosão de Sturm und Drang elevouse a 1600 títulos em 1770 depois 2600 em 1780 e 5000 em 1 8 0 0 0 francês seguiu um padrão diferente A produção de livros cresceu regular mente por um século depois da Paz de W estphalia 1648 um século de grande literatura desde Corneille até à Encyclopédie que coincidiu com o declínio na Alemanha M as nos cinqüenta anos seguintes quando as figuras alemãs se destacaram a ascensão da França parece relativamente modesta Segundo Robert Estivais as on American Printing 17641783 em Bernard Bailyn e John B Hench ed The Press the American Revolution Boston 1981 p 31564 t 206 V n rV PETER BURKE solicitações de autorizações para publicar novos livros privilèges e permissions tacites chegaram a 729 em 1764 a 896 em 1770 e apenas a 527 em 1780 e os novos títulos submetidos ao dépôt légal em 1800 totalizaram 700 Certamente tipos diferentes de docu mentos e padrões de medida poderiam produzir resultados dife rentes e as fontes oficiais excluem a enorme produção de livros franceses ilegais Mas sejam quais forem suas deficiências os dados indicam um grande salto para diante na vida literária alemã após um século de dominação francesa A Alemanha também teve mais escritores embora a população das áreas de língua francesa e alemã fosse mais ou menos a mesma U m almanaque literário alemão Das gelehrte Teutschland relacionou 3000 autores vivos em 1772 e 4300 em 1776 U m a publicação francesa comparável La France littéraire incluiu 1187 autores em 1757 e 2367 em 1769 Ainda que Voltaire e Rousseau estivessem próximos à velhice Goethe e Schiller passavam por uma onda de criatividade bem mais pode rosa do que se poderia imaginar considerandose apenas as histórias convencionais da literatura7 A s comparações estatísticas cruzadas também são úteis no mapeamento das correntes culturais Depois de tabular os direitos dos livros durante o século dezoito François Furet encontrou um marcante declínio nos antigos ramos de ensino especialmente da literatura humanista e da literatura latina clássica que haviam florescido um século antes segundo as estatísticas de HenriJean Martin O s gêneros mais novos como os livros classificados sob a rubrica de ciências e artes prevaleceram após 1750 Daniel Roche e Michel M arion anunciam uma tendência similar no exame dos arquivos notariais parisienses A s novelas os livros de viagem e as obras sobre história natural tenderam a tomar o lugar dos clássicos nas bibliotecas dos nobres e dos burgueses ricos Todos os estudos apontam para uma queda significativa na litera 7 Estivais La Statistique bibliographique p 309 Paul Raabe Buchproduktion und Lesepublikum in Deutschland 17701780 PKilobiblin eine Vieneljahrsschrift für Buch und Graphiksammler 21 p 216 1977 A s estatísticas comparativas sobre os escritores são baseadas em meus próprios cálculos A ESCRITA DA HISTÓRIA 207 tura religiosa durante o século dezoito Confirmam a pesquisa quantitativa em outras áreas da história social a de Michel Vovelle sobre os rituais funerários por exemplo e a pesquisa de Domini que Julia a respeito das ordenações clericais e das práticas de ensino8 r O s estudos temáticos da leitura alemã complementam aque les do francês Rudolf Jentzsch e Albert W ard encontraram nos catálogos das feiras de Leipzig e Frankfurt uma forte queda nos livros em latim e um a correspondente ascensão nas novelas Segundo Edward Reyer e Rudolf Schenda no final do século dezenove os empréstimos nas bibliotecas alemãs inglesas e americanas caíram em um padrão incrivelmente similar 70 a 80 dos fivros pertenciam à categoria de ficção leve na maioria novelas 10 eram livros de história biografias e relatos de viagem e menos de 1 pertencia à temática religiosa Em pouco mais de duzentos anos o mundo da leitura foi transformado A ascensão da novela contrabalançou um declínio na literatura religiosa e em quase todos os casos o ponto crítico poderia ser localizado na segunda metade do século dezoito especialmente a década de 1770 anos da Wertherfieber Die Leiden des jungen Werthers provocou na Alemanha uma resposta ainda mais espeta cular do que La Nouvelle Héloise na França ou Pamela na Inglaterra Todas as três novelas marcaram o triunfo de um a nova sensibi lidade literária e as últimas frases de Wertfier parecem anunciar o advento de um novo público leitor juntamente com a morte de uma cultura cristã tradicional Handuierker trugen ihn Kein Geistlicher hat ihn begleicet9 8 François Furet La líbraíríe du royaume de France au 18e siècle em Furet et al Livre et société dans la France du XVIIIe siècle Paris 1965 p 332 Daniel Roche N oblesses et culture dans la France d uX V IIIe les lectures de la noblesse em BwcK und Sammler Private und õffentliche Bibliotfieken im 18 Jahrhundert Colloquium der Arbeitsstelle 18 Jahrhundert Gesamthochschule Wuppertal Universitãt Münster vom 2628 September 1977 Heidelberg 1979 p 927 Michel M arion Recherclies sur les bibliotHèques privées à Paris au milieu du XV lIIe siècle 1 7501 759 Paris 1978 Michel Vovelle Piété baroque et déchristianisation en Provence au X V ÍIF siècle Les attitudes devam la mort daprès les clauses des testaments Paris 1973 9 Jentzsch Der deutschlateinische Büchermarkt Albert W ard Book Production Fiction 208 PETER BURKE Apesar de toda a sua variedade e ocasionais contradições os estudos microanalíticos sugerem algumas conclusões gerais algo semelhante à desmistificação do m undo de M ax Weber M as isso pode parecer por demais cósmico para servir de consolo Aqueles que preferem a precisão podem recorrer à microanálise embora esta em geral se dirija ao extremo oposto o excèsso de detalhes Podemos apresentar centenas de listas de livros nas bibliotecas desde a Idade Média até nossos dias mais do que qualquer um poderia conseguir ler Mas a maioria de nós concorda que um catálogo de uma biblioteca particular pode servir como um perfil do leitor ainda que não tenhamos lido todos os livros que nos pertencem e tenhamos lido muitos livros que nunca adquiri mos Esquadrinhar o catálogo da biblioteca de Monticello é inspecionar as provisões da mente de Jefferson10 E o estudo das bibliotecas particulares tem a vantagem de unir o o quê com o quem da leitura Tam bém nessa área os franceses assumiram a liderança O ensaio de Daniel Mornet Les enseignements des bibliothèques pri vées datado de 1910 demonstrava que o estudo dos catálogos das bibliotecas poderiam produzir conclusões que desafiavam alguns dos lugarescomuns da história literária Depois de tabular os títulos de quinhentos catálogos do século dezoito ele encontrou apenas um a cópia do livro que iria ser a Bíblia da Revolução Francesa o Contrato Social de Rousseau A s bibliotecas destacavam as obras de autores que tinham sido completamente esquecidos e não proporcionavam uma base para relacionar alguns tipos de literatura a obra dos filósofos por exemplo com algumas classes de leitores a burguesia Setenta anos mais tarde a obra de M ornet ainda parecia impressionante Mas uma vasta literatura desen and the Germ an Reading Public 17401800 Oxford 1974 Rudolf Schenda Volk ohne Buch Studien zur Sozialgeschichce der populàren Lesestoffe 17001910 Frankfurt am M ain 1970 p 467 10 Para o m odelo de Jefferson de um a biblioteca m ínim a para um cavalheiro educado m as não especialmente um erudito ver Arthur Pierce Middleton A Virgínia Gentlemans Library W illiam sburg 1952 A ESCRITA DA HISTÓRIA 209 volveuse à sua volta Agora temos estatísticas sobre as bibliotecas dos nobres magistrados padres acadêmicos burgueses artesãos e até de alguns criados domésticos Pesquisadores franceses estu daram a leitura através das camadas sociais de algumas cidades a Caen de JeanClaude Perrot a Paris de Michel M arion e através de regiões inteiras a Norm andia de Jean Quéniart a Languedoc de Madeleine Ventre Em sua maior parte eles se baseiam em inventaires après décès registros notariais de livros dos ben do falecido Assim sendo sofrem dos desvios apresentados nos documentos que geralmente negligenciam livros de pouco valor comercial ou se limitam a declarações vagas com o uma pilha de livros Masa visão notarial enganou a muitos na França bem mais que na Alemanha onde Rudolf Schenda considera os inventários lamentavelmente inadequados como um guia aos hábitos de leitura das pessoas comuns O estudo alemão mais completo é provavelmente a pesquisa realizada por W alter Witt m ann nos inventários a partir do final do século dezoito em Frankfurt am M ain Indicou que os livros pertenciam a 100 dos funcionários graduados 51 dos comerciantes 35 dos mestres artesãos e 26 dos artífices Daniel Roche encontrou um padrão similar entre as pessoas comuns de Paris apenas 35 dos trabalhadores assalariados e empregados domésticos que aparecem nos arquivos notariais por volta de 1780 possuíam livros M as Roche também descobriu muitas indicações de fami liaridade com a palavra escrita Em 1789 quase todos os em pre gados domésticos podiam assinar seus nom es nos inventários G rande parte deles possuía escrivaninhas amplamente equipa das com implementos de escrita e apinhadas de papéis de família A maior parte dos artesãos e dos lojistas passou vários anos de sua infância na escola Antes de 1789 Paris possuía 500 escolas primárias um a para cada mil habitantes todas mais ou menos gratuitas O s parisienses eram leitores conclui Roche mas a leitu ra não assum ia a forma dos livros que aparecem nos inventários Envolvia literatura popular críticas violentas cartazes cartas pessoais e até os letreiros nas ruas O s parisienses liam em suas 210 PETER BURKE caminhadas pela cidade e liam através de suas vidas mas seus processos de leitura não deixaram evidência suficiente nos ar quivos para que o historiador possa seguir de perto os seus calcanhares11 Ele deve por isso buscar outras fontes As listas de subscrição têm sido as preferidas embora em geral cubram apenas os leitores abastados Do final do século dezessete ao início do século dezeno ve muitos livros foram publicados por subscrição na GrãBretanha e continham listas dos subscritores O s pesquisadores do Projeto para a Biobibliografia Histórica de Newcasde upon Tyne utiliza ram essas listas para elaborar uma sociologia histórica do leitor Esforços similares estão em andamento na Alemanha especial mente entre os pesquisadores de Klopstock e Wieland Talvez um sexto dos novos livros alemães tenha sido publicado por subscrição entre 1770 e 1810 quando a prática atingiu seu ápice M as mesmo durante sua Blütezeit as listas de subscrição não proporcionam uma visão acurada do leitor Deixavam de lado os nomes de muitos subscritores incluíam outros que atuavam como patronos e não como leitores e normalmente representavam mais a venda de alguns empresários do que os hábitos de leitura do público educado segundo uma crítica um tanto devastadora que Reinhard W ittmann dirigiu contra a pesquisa das listas de subscrição O trabalho de Wallace Kirsop sugere que tal pesquisa pode ter mais resultado na França onde a publicação por subscrição também floresceu no final do século dezoito M as as listas da França como as outras em geral privilegiam os leitores mais abastados e os livros mais fantasiosos12 11 Daniel M ornet Les Enseignements des bibliothèques privées 17501780 Revue dhiscoire littérairede la France 17 p 449961910 Para um a visão geral da literatura francesa com referências bibliográficas ver HenriJean M artin e Roger Chartier ed Histoire de lédition française Paris 1982 da qual os dois primeiros volumes que cobrem o período até 1830 já foram publicados O estudo de W alter W ittmann e obras relacionadas estão discutidos em Schenda Volk ohne Bucli p 4617 Sobre o leitor com um parisiense ver Daniel Roche Le Peuple de Paris Essai sur la culture populaire au XVIUe Paris 1981 p 20441 12 Reinhard W ittmann Buchmarkt und Lektüre im 18 und 19 Jahrhunderc Beitrage zum literarischen Leben 1 7501880 Tübingen 1982 p 4668 W allace Kirsop Les A ESCRITA DA HISTÓRIA 211 O s registros das bibliotecas de empréstimo oferecem uma oportunidade melhor para se fazerem conexões entre os gêneros literários e as classes sociais mas poucos deles sobrevivem O s mais interessantes são os registros de empréstimo da biblioteca ducal de Wolfenbüttel que se estendem de 1666 a 1928 Segundo Wolf gang Milde Paul Raabe e John MacCarthy eles mostram uma importante democratização da leitura na década de 1760 o número de livros emprestados dobrou os empréstimos partiam das camadas sociais inferiores incluíam alguns porteiros lacaios e oficiais subalternos do exército e a temática da leitura tornouse mais leve deslocandose de volumes eruditos para novelas senti mentais imitações de Robinson Crusoe eram especialmente bem recebidas E curioso que os registros da Bibliothèque du Roi em Paris indicam que houve o mesmo número de usuários nessa época cerca de cinqüenta por ano incluindo um certo Denis Diderot O s parisienses não podiam levar os livros para casa mas desfruta vam da hospitalidade de uma época mais calma Embora o bibliotecário lhes abrisse as portas apenas duas manhãs por semana oferecialhes uma refeição antes de mandálos embora As condições são diferentes hoje em dia na Bibliothèque Nationale O s bibliotecários tiveram de aceitar uma lei básica de economia não há nada como um almoço gratuito13 O s microanalistas fizeram muitas outras descobertas tantas de fato que se defrontam com o mesmo problema dos macroquan tificadores como reunilas A disparidade da documentação catálogos de leilão registros notariais listas de subscrição registros de bibliotecas não tornam a tarefa mais fácil As diferenças nas conclusões podem ser atribuídas mais às peculiaridades das fontes do que ao comportamento dos leitores E as monografias freqüen temente anulam umas às outras os artesãos parecem alfabetizados aqui e nãoalfabetizados ali a literatura de viagem parece popular m écanismes éditoriaux em Histoire de 1édition française Paris 1984 v II p 312 13 Joh n A McCarthy Lektiire und Lesertypologie im 18 Jahrhundert 17301770 Ein Beitrag zur Lesergeschichte am Beispiel W olfénbüttels Intemationales Archiu für Sozialgeschichte derdeutschen Literatur 8 p 3582 1983 212 PETER BURKE entre alguns grupos em alguns lugares e impopular em outros U m a comparação sistemática dos gêneros ambientes sociais épocas e lugares pareceria uma conspiração de exceções tentando contestar regras Até agora apenas um historiador do livro foi ousado o bastante para propor um modelo geral Rolf Engelsing declarou que ocorreu um a revolução na leitura Leserevolution no final do século dezoito Segundo ele da Idade Média até algum tempo após 1750 os hom ens liam intensivamente Possuíam apenas alguns livros a Bíblia um almanaque uma ou duas obras de oração e os liam repetidas vezes em geral em voz alta e em grupo de forma que uma estreita variedade de literatura tornouse profundamente impressa em sua consciência Em 1800 os homens estavam lendo extensivamente Liam todo o tipo de material especialmente periódicos e jornais e os liam apenas üm a vez correndo para o item seguinte Engelsing não apresenta muita evidência para sua hipótese Na verdade a maior parte de sua pesquisa diz respeito apenas a uma pequena amostra de burgueses em Bremen M as possui um a sedutora simplicidade na relação temporal e apresenta uma fórmula cômoda para contrastar os modos de leitura muito precoces e muito tardios na história européia N o meu m odo de ver seu principal inconveniente é o caráter nãolinear A leitura não se desenvolveu em uma só direção a extensão Assum iu muitas formas diferentes entre diferentes grupos sociais em dife rentes épocas Hom ens e mulheres leram para salvar suas almas para melhorar seu comportamento para consertar suas máquinas para seduzir seus enamorados para tomar conhecimento dos acontecimentos de seu tempo e ainda simplesmente para se divertir Em muitos casos em especial entre os admiradores de Richardson Rousseau e Goethe a leitura tornouse mais intensiva não menos M as o final do século dezoito parece representar um ponto crítico quando se pode visualizar a emergência de uma leitura de m assa que iria atingir proporções gigantescas no século dezenove com o desenvolvimento do papel feito à máquina as prensas movidas a vapor o linotipo e um a alfabetização quase A ESCRITA DA HISTÓRIA 213 universal Todas essas mudanças abriram novas possibilidades não diminuindo a intensidade mas aumentando a variedade14 Devo por isso confessar algum ceticismo em relação ã revolu ção da leitura Embora um historiador do livro o americano David Hall tenha descrito uma transformação nos hábitos de leitura dos habitantes da Nova Inglaterra entre 1600 e 1850 quase exatamente nos mesmos termos que aqueles utilizados por Engelsing Antes de 1800 os habitantes da Nova Inglaterra liam pequenas coleções dos veneráveis sempre vendidos a Bíblia os almanaques o New England Primer Rise and Progress of Religion de Philip Doddridge Call to the Unconverted de Richard Baxter e os liam várias e várias vezes em vez alta em grupo e com excepcional intensidade Depois de 1800 foram inundados com novos tipos de livros novelas jornais variedades recentes e alegres de literatura infantil e os liam avidamente descartando uma coisa assim que podiam encontrar outra Embora Hall e Engelsing jamais tenham ouvido falar um do outro descobriram ambos um padrão similar em duas áreas bastante diferentes do mundo ocidental Talvez tenha ocor rido um deslocamento fundamental na natureza da leitura no final do século dezoito Pode não ter sido uma revolução mas marcou o fim de um Antigo Regime o reinado de Thom as a Kempis Johann A m d t e John Bunyam15 O onde da leitura é mais importante do que se poderia pensar pois a colocação do leitor em seu ambiente pode dar sugestões sobre a natureza de sua experiência N a Universidade de Leyden há um a gravura na parede datada de 1610 representando a biblioteca da universidade M ostra os livros pesados volumes infólio encadeados em altas estantes projetandose das paredes em um a seqüência determinada pelas rubricas da bibliografia 14 R olf Engelsing Die Perioden der Lesergechichte in der Neuzeit D as statisnsche A usm ass und die soziokulturelle Bedeutung der Lektüre Archiv für Geschickte des Buchsuiesens 1 0 1 9 6 9 col 9441002 e Engelsing DerBürgerals Leser Lesergeschichte in Deutschland 15001800 Stuttgart 1974 15 David Hall The U ses o f Literacy in New England 16001850 em Printing and Society in Early America p 147 214 PETER BURKE clássica Jurisconsulti Mediei Historiei etc Há estudantes espalha dos pela sala lendo os livros em balcões construídos ao nível dos ombros abaixo das estantes Eles lêem de pé protegidos contra o frio por grossas capas e chapéus com um dos pés apoiado em uma barra para aliviar a pressão sobre seus corpos A leitura não pode ter sido confortável na época do humanismo clássico Em quadros realizados um século e meio mais tarde La Lecture e La Liseuse de Fragonard por exemplo os leitores estão reclinados em canapés ou poltronas bem acolchoadas com suas pernas apoiadas em banquinhos São com freqüência mulheres usando vestidos folga dos conhecidos na época como liseuses Em geral seguram entre os dedos um duodécimo volume de formato elegante e exibem um olhar distante De Fragonard a Monet que também pintou uma Liseuse a leitura passa dos aposentos privados para o ar livre O leitor carrega os livros para os campos e para os topos das montanhas onde como Rousseau e Heine ele pode comungar com a natureza A natureza deve ter parecido se deslocar algumas gerações depois para as trincheiras da Primeira Guerra Mundial onde os jovens tenentes de Gòttingen e Oxford de algum modo encontraram espaço para alguns volumes leves de poesia U m dos livros mais preciosos de minha própria pequena coleção é uma edição do Hymnen an die Ideale der Menschheit de Hõlderlin com a inscrição A dolf Noelle Januar 1916 nordFrankreich pre sente de um amigo alemão que tentava justificar a Alemanha Ainda não estou certo de ter entendido mas creio que a compreen são geral da leitura avançaria se meditássemos mais diligentemente sobre sua iconografia e seus equipamentos incluindo a mobília e o vestuário16 O elemento humano no cenário deve ter afetado a compreen são dos textos Sem dúvida Greuze adotou um a atitude sentimen tal diante do caráter coletivo da leitura quando pintou Un père de famille qui lit la Bible à ses enfants Restif de la Bretonne provavel 16 Para observações similares sobre o estabelecimento da leitura ver Roger Chartier e Daniel Roche Les pratiques urbaines de rim prim é em Histoire de 1édition française v II p 40329 A ESCRITA DA HISTÓRIA 215 mente fez o mesm o nas leituras familiares da Bíblia em La vie de mon père Je ne saurais me rappeler sans attendrissement avec quelle attention cette lecture était écoutée comme elle communiquait à toute la nombreuse famille un ton de bonhomie et de fraternité dans la famille je comprends les domestiqúes Mon père commençait toujours par ces mots Recueillonsnous mes enfants cest lEsprit Saint qui va parler 17 M as apesar de todo o seu sentimentalismo tais descri ções procediam de uma mesma suposição para as pessoas comuns no início da Europa moderna a leitura era uma atividade social Ocorria nos locais de trabalho nos celeiros e nas tavernas Era quase sempre oral mas não necessariamente doutrinadora Assim Christian Schubart em 1786 descreveu o camponês na estalagem no campo com alguns matizes corderosa Und bricht die Abendzeit herein So trink ich halt mein Schòpple W ein D a liest der H err Sckulm eister mir 18 W as N eues au s der Zeitung fur A instituição de leitura popular mais importante sob o Antigo Regime era um encontro à beira do fogo conhecido como veillée na França e Spinnstube na Alemanha Enquanto as crianças brincavam as mulheres costuravam e os homens consertavam ferramentas um do grupo que podia decifrar um texto os regalaria com as aventuras de Les quatre fils Aymon Till Eulenspiegel ou algum outro favorito do repertório padronizado dos livros popula 17 Citado em francês no original A tradução é Eu não saberia me recordar sem ternura com que atenção era escutada aquela leitura como comunicava a toda a num erosa família um tom de bondade e de fraternidade na família eu incluo os criados M eu pai iniciava sempre com estas palavras V am os nos concentrar meus filhos é o Espírito Santo quem vai falar NT 18 Restif de la Bretonne La vie de mon père Ottawa 1949 p 21617 O poem a de Schubart está citado em Schenda Volk ohne Buch p 465 e pode ser assim traduzido When the evening time comes roundl aluiays drink my glass of wineThen the schoolmaster reads to meSomething new out of the newspaper Q uando a noite chegaSem pre bebo minha taça de vinhoEntão o mestreescola lê para mimAl gum a novidade do jornal 216 PETER BURKE res e baratos Algumas dessas primeiras brochuras indicavam que sua intenção era que eles entrassem nos ouvidos começando com frases como O que você vai ouvir N o século dezenove grupos de artesãos especialmente fabricantes de charutos e alfaiates revezavamse lendo ou ouvindo um leitor para se manterem entretidos enquanto trabalhavam Até hoje muitas pessoas to mam conhecimento das notícias através da leitura de um locutor de televisão A televisão pode ser menos um rompimento do passado do que geralmente se supõe Seja como for para a maioria das pessoas através da maior parte da história os livros tiveram mais ouvintes que leitores Foram mais ouvidos do que vistos19 A leitura era experiência mais reservada à minoria das pessoas educadas que podia se permitir comprar livros Mas muitos deles se associavam a clubes de leitura cabinets íittéraires ou Lesegesells chaften onde podiam ler quase tudo o que queriam em uma atmosfera sociável por um pequeno pagamento mensal Françoise ParentLardeur reconstituiu a proliferação desses clubes em Paris durante a Restauração20 mas eles remontam ao século dezoito O s livreiros provincianos muitas vezes transformavam seu esto que em um a biblioteca e cobravam taxas pelo direito de freqüen tála Boa luz algumas cadeiras confortáveis quadros na parede e subscrições para um a meiadúzia de jornais eram o suficiente para transformar qualquer livraria em um clube Assim estava anunciado o cabinet littéraire de PJ Bernard um pequeno livreiro 19 Sobre os livros populares e seu uso público na França ver Charles N isard Histoire des livres populaires ou de la littérature du colportage Paris 1854 2 v RobertM androu De laculture populaire aux 1 T et 18esiêcíes la bibliothèque bleuede Troyes Paris 1964 e para exemplos de estudos m ais recentes a série Bibliothèque bleue editada por Daniel Roche e publicada pelas Editions M ontalba O melhor relato sobre a literatura popular na Alem anha é ainda Schenda Volk ohne Buch em bora sua interpretação esteja sendo desafiada por alguns trabalhos m ais recentes especialmente Reinhart Siegett Aufklãrung und Volkslektüre exemplarisch dargestellt an Rudolph Zacharias Beclter und seinem Noth und HülsbücKlein Frankfurt am M ain 1978 C om o um exem plo de estudiosos que lêem um ao outro ver Sam uel Gom pers Seventy Years of Life and Labor An Autobiography Nova York 1925 p 801 20 Françoise ParentLardeur Les cabinets de lecture La íecture publique à Paris sous la Restauration Paris 1982 A ESCRITA DA HISTÓRIA 217 de Lunéville Une maison commode grande bien éclairée et chauf fée qui serait ouverte tous les jours depuis neuf heures du matin ju sq u à midi et depuis une heure jusquà dix ofrirai t dès cet instant aux amateurs deux mille volumes qui seraient augmentés de quatre cents par anée21 Em novembro de 1779 o clube tinha 200 associados a maior parte oficiais da gendarmerie local Pela modesta quantia de três libras por ano eles tinham acesso a 5000 livros treze jornais e salas especiais para conversar e escrever ver Apêndice Segundo Otto Dann os clubes de leitura alemães propiciaram a base social para um a variedade distinta de cultura burguesa no século dezoito em um a proporção espantosa especialmente nas cidades do norte Martin Welke estima que talvez um dentre cada 500 alemães adultos pertencia a uma Lesegesellschaft em 1800 Marlies Prüsener conseguiu identificar bem mais de 400 clubes e esboçar alguma idéia de seu tema de leitura Todos eles possuíam um suprimento básico de periódicos suplementado por séries irregulares de livros em geral sobre temas bem áridos como história e política Parecem ter sido uma versão mais séria dos cafés em si um a instituição importante para a leitura que se espalhou por toda a Alemanha a partir do final do século dezessete Em 1760 Viena possuía pelo menos sessenta cafés Eles forneciam revistas jornais e oportunidades sem fim para discussões políticas o que ocorreu em Londres e Amsterdã por m ais de um século22 Assim já sabemos bastante sobre as bases institucionais da leitura Tem os algumas respostas para as perguntas de quem o quê onde e quando M as os porquês e os com os nos escapam A inda não descobrimos uma estratégia para o entendi 21 Citado em francês no original A tradução é U m a casa cômoda grande bem ilum inada e aquecida que estará aberta todos os dias das nove horas da m anhã até o meiodia e da um a hora da tarde até às dez da noite oferecendo desde pgora aos am adores dois mil volum es que serão aum entados em quatrocentos por ano N T 22 O s estudos de Dann Welke e Prüsener juntamente com outras pesquisas interes santes estão reunidos em Otto D ann ed Lesegesellschaften und bürgerliche Eman zipation em europãischer Vergleich M unique 1981 218 PETER BURKE mento do prcesso interno através do qual os leitores compreen dem as palavras Nem mesmo entendemos a maneira como nós m esmos lemos apesar dos esforços dos psicólogos e dos neurolo gistas para traçarem os movimentos dos olhos e mapearem os hemisférios do cérebro Será que os processos cognitivos são diferentes para os chineses que lêem ideogramas e para os ociden tais que escandem linhas Para os israelenses que lêem palavras sem vogais movendose da direita para a esquerda e para as pessoas cegas que transmitem estímulos através de seus dedos Para os asiáticos do sudeste cujas línguas são desprovidas de tempos verbais e determinam espacialmente a realidade e para os índios americanos cujas línguas só recentemente foram reduzidas à escrita por estudiosos estrangeiros Para o homem devoto na presença da Palavra e para o consumidor que examina os rótulos em um supermercado As diferenças parecem infinitas pois a leitura não é simplesmente um a habilidade mas uma maneira de estabelecer significado que deve variar de cultura para cultura Seria estranho esperar encontrar uma fórmula que pudesse considerar todas essas variações M as deveria ser possível desenvolver um m odo de estudar as mudanças na leitura no interior da nossa própria cultura Eu gostaria de sugerir cinco abordagens ao problema Em primeiro lugar creio que seria possível aprender mais sobre os ideais e as suposições subjacentes à leitura no passado Podería mos estudar as descrições contemporâneas da leitura na ficção em autobiografias escritos polêmicos cartas pinturas e gravuras para descobrir algumas noções básicas daquilo que as pessoas imagina vam ocorrer quando liam Consideremos por exemplo o grande debate sobre a mania de leitura na Alemanha no final do século dezoito Aqueles que deploravam a Lesewut não se limitavam a condenar seus efeitos sobre a moral e a política Temiam que ela fizesse mal à saúde pública Em um folheto de 1795 JG Heinze m ann relacionou as conseqüências físicas da leitura excessiva suscetibilidade a resfriados dores de cabeça enfraquecimento dos olhos ondas de calor gota artrite hemorróida asma apoplexia doença pulmonar indigestão obstipação intestinal distúrbio ner A ESCRITA DA HISTÓRIA 219 voso enxaqueca epilepsia hipocondria e melancolia N o lado positivo do debate Johann Adam Bergk aceitou as premissas de seu oponente mas discordou de suas conclusões Considerou como estabelecido que nunca se deveria ler imediatamente depois de comer ou quando se está de pé Mas com uma disposição correta do corpo poderseía ler bastante indefinidamente A arte da leitura envolvia lavar o rost com água fria e fazer caminhadas ao ar livre assim como concentração e meditação Ninguém desafiava a teoria de que havia um elemento físico na leitura porque ninguém fazia uma distinção clara entre o mundo físico e o m undo moral O s leitores do século dezoito tentaram digerir os livros absorvêlos em todo o seu ser corpo e alma O aspecto físico do processo às vezes se projeta nas páginas O s livros da biblioteca de Samuel Johnson atualmente de propriedade da Sra Donald F Hyde são empenados e desgastados como se Johnson houvesse lutado para abrir o seu caminho através deles23 Desde o início da maior parte da história ocidental e especial mente nos séculos dezesseis e dezessete a leitura foi encarada acima de tudo como um exercício espiritual Mas como ela era realizada Seria possível buscar orientação nos manuais dos jesuítas e nos tratados de hermenêutica dos protestantes As leituras familiares da Bíblia ocorriam em ambos os lados da grande Unha divisória religiosa E como indica o exemplo de Restif de la Bretonne a Bíblia era abordada com temor mesmo entre alguns camponeses católicos E claro que Boccaccio Castiglione Cervantes e Rabelais desenvolveram outros usos da instrução para a elite M as para a maioria das pessoas a leitura permanecia uma atividade sagrada Colocava as pessoas diante da Palavra desvendava os mistérios 23 A s observações de Heinzemann estão citadas em Helm ut Kreuzer Gefãhrliche Lesesucht Bemerkungen zu politischer Lektürekritik im ausgehenden 18 Jahrhun dert em Rainer Gruenter ed Leser und Lcsen im 18 Jahrundert Colloquium der Arbeitsstelle Achzehntes Jahrhundert Gesamthochschule Wuppertal 242ÓOhoher 1975 Heidelberg 1977 As observações de Bergk estão espalhadas por todo o seu tratado Die Kunst Bücher zu Lesen Jena 1799 que também contém algumas observações características sobre a importância dos livros digestivos ver seu frontispício e p 302 220 PETER BURKE sagrados C om o hipótese de trabalho parece válido presumir que quanto mais se recua no tempo mais afastado se fica da leitura instrumental N ão somente o livro do como fazer se torna mais raro e o livro religioso mais comum mas também a própria leitura é diferente N a época de Lutero e Loyola ela promovia o acesso à verdade absoluta Em um nível mais mundano as hipóteses sobre a leitura poderiam ser delineadas através dos anúncios e dos prospectos dos livros Daí algumas observações típicas de um prospecto do século dezoito tomado ao acaso da rica coleção da Newberry Library um livreiro está oferecendo uma edição inquartou dos Commentaires sur la coutume dAngoumois uma obra excelente insiste ele tanto por sua tipografia quanto por seu conteúdo O texto do Coutume é im presso em tipo grosromain os resumos que precedem os comentários impressos em cicéro e os comentários são impressos em SaintAugustin Toda a obra é feita de um papel muito bonito fabricado em Angoulème25 Nenhum editor sonharia em mencionar o papel e o tipo ao anunciar hoje em dia um livro de direito N o século dezoito os anunciantes presumiam que seus clientes se preocupavam com a qualidade física dos livros Tanto compradores quanto vendedores compartilhavam do m esmo modo de um conhecimento tipográfico que atualmente está quase extinto O s relatórios dos censores também podem ser reveladores pelo m enos no caso dos livros do início da França moderna quando a censura era altamente desenvolvida além de extrema mente eficiente U m livro típico de viagem Nouveau voyage aux isles de VAmérique Paris 1722 de autoria de JB Labat contém quatro aprovações impressas por extenso próximo aos direitos U m censor explica que o manuscrito despertou sua curiosidade E difícil começar a lêlo sem sentir aquela moderada m as ávida curiosidade que nos impele a continuar a ler Outro o recomenda 24 Dizse do formato dos livros im pressos em folhas dobradas duas vezes N T 25 Newberry Libraty C ase W ing Z 4518 serla no 31 A ESCRITA DA HISTORIA 221 por seu estilo simples e conciso e também por sua utilidade Nada em minha opinião é tão útil aos viajantes aos habitantes daquele país aos comerciantes e àqueles que estudam história natural E um terceiro simplesmente o considerou uma boa leitura Experimentei grande prazer em lêlo Ele contém um número enorme de coisas curiosas O s censores não perseguiam apenas os livros hereges e revolucionários como tendemos a supor olhando para trás através do tempo da Inquisição e do Iluminis mo Concediam a uma obra o selo real de aprovação e assim fazendo apresentavam indicações de como ele poderia ser lido Seus valores constituíam um padrão oficial em comparação com o qual as leituras comuns poderiam ser avaliadas Mas como liam os leitores comuns M inha segunda sugestão para atacar esse problema diz respeito às maneiras como a leitura era ensinada A o estudar a instrução na Inglaterra do século dezessete Margaret Spufford descobriu que grande parte do apren dizado ocorria fora da escola em oficinas e nos campos onde os trabalhadores ensinavam a si mesmos e uns aos outros Dentro da escola as crianças inglesas aprendiam a ler antes de aprenderem a escrever em vez de adquirirem as duas habilidades ao mesmo tempo no início de sua educação como ocorre hoje Freqüente mente juntavamse à força de trabalho antes dos sete anos de idade quando tinham início as instruções na escrita Assim as avaliações da alfabetização baseadas na capacidade de escrever podem ser muito baixas e o público leitor pode ter incluído um grande número de pessoas que não podiam assinar seus nom es26 Mas a leitura para tais pessoas provavelmente significava algo completamente diferente daquilo que significa hoje N o início da 26 M argaret Spufford First Steps in Literacy The Reading and W riting Experiences ofth e H um blest seventeenthcentury Autobiographers Social History 4 p 40735 1979 e Spufford Smal Books and Pleasant Histories Popular Fiction and its Raadership in Seventeenthcentury England Athens Geórgia 1981 Sobre a leitura popular na Inglaterra dos séculos dezenove e vinte ver RK W ebb The BritísK Working Class Reader Londres 1955 e Richard D Altick The Engiish Common Reader A Social History ofthe M ass Reading Public 18001900 Chicago 1957 222 PETER BURKE França moderna os três Rs eram aprendidos em seqüência primeiro ler depois escrever depois aritmética27 assim como na Inglaterra e ao que parece em todos os outros países do Ocidente A s cartilhas mais comuns do Antigo Regime livros de alfabetiza ção como a Croix de Jésus e a Croix de par Dieu começavam como os manuais modernos com o alfabeto M as as letras tinham sons diferentes O aluno pronunciava uma vogal de apoio antes de cada consoante de forma que o p surgia como um ehp em vez de pe como é hoje Q uando ditas em voz alta as letras não se ligavam foneticamente em combinações que poderiam ser reconhe cidas pelo ouvido como sílabas de uma palavra Assim pat em pater soaria como ehpaheht M as a indistinção fonética realmente não importava porque as letras eram consideradas como estímulos visuais para acionar a memória de um texto que já havia sido aprendido de cor e o texto era sempre em latim Todo o sistema era construído na premissa de que as crianças francesas não deveriam começar a ler em francês Passavam diretamente do alfabeto para sílabas simples e daí para o Pater Nos ter a Ave Maria o Credo e o Benedicite Tendo aprendido a reconhecer essas orações comuns passavam para as respostas litúrgicas impressas nas brochuras padronizadas Nesse ponto muitas crianças deixavam a escola Já haviam adquirido domínio suficiente da palavra impres sa para preencherem as funções que a Igreja esperava delas ou seja participar de seus rituais M as jamais haviam lido um texto em uma língua que pudessem compreender Algumas crianças não sabemos quantas talvez uma minoria no século dezessete e uma maioria no século dezoito permane ciam na escola tempo suficiente para aprender a ler em francês M esm o assim no entanto a leitura era com freqüência uma questão de reconhecimento de algo já conhecido em vez de um processo de aquisição de um novo conhecimento Quase todas as escolas eram orientadas pela Igreja e quase todos os livros didáticos 27 C ham ados em inglês de três Rs porque uniting reading e arithmetics têm um som inicial de R NT A ESCRITA DA HISTÓRIA 223 eram religiosos em geral catecismos e livros de devoção como a Escole paroissiale de Jacques de Batencour No início do século dezoito os Frères des Ecoles Chrétiennes começaram a apresentar o mesmo texto a vários alunos e a ensinarlhes como um grupo primeiro passo para a instrução padronizada que irisrse tomar a regra cem anos mais tarde Ao mesmo tempo alguns preceptores nas famílias aristocráticas começaram a ensinar a ler diretaínente em francês Desenvolveram técnicas fonéticas e auxílios audiovisuais como as cartas brilhantes e ilustradas do abade Berthaud e o bureau typographique de Louis Dumas Em 1789 seu exemplo se difundiu para algumas escolas primárias progressistas Mas a maior parte das crianças ainda aprendia a Ler ficando de pé diante do professor e recitando passagens de seja qual fosse o texto em que conseguissem pôr as mãos enquanto seus colegas lutavam com uma coleção heterogênea de livretos nos bancos de trás Alguns desses livros didáticos iriam reaparecer à noite na vieillê porque eram livros populares muito vendidos da bibliothèque bleue28 Portanto a leitura ao pé do fogo tinha algo em comum com a leitura em uma sala de aula era uma récita de um texto que todos já conheciam Em lugar de abrir perspectivas sem limites de novas idéias ele provavelmente perma necia no interior de um circuito fechado exatamente onde a Igreja PósTridentina desejava mantêlo Provavelmente no entanto é a palavra principal nessa proposição Só podemos fãzer conjeturas diante da natureza dos primórdios da pedagogia lendo as primeiras cartilhas e as reminiscências ainda em menor número que sobreviveram dessa época N ão sabemos o que realmente acontecia na sala de aula E seja o que fosse que acontecesse os leitores e ouvintes camponeses podem ter construído tanto seu catecismo como suas narrativas de aventuras de maneira que absolutamente nos escapam29 28 C oleção de livros populares de capa azul publicada do século X V II a meados do século X IX em sua m aioria adaptações de romances medievais de cavalaria N T 29 Esta discussão é baseada na pesquisa de Dom inique Julia especialmente seú Livres de classe et usages pédagogiques em Histoire de lédition française v II p 46897 Ver tam bém Jean Hébrard Didactique de la lettre et soum ission au sens Note sur lhistoire des pédagogies de la lecture em Les textesdu Centre Alfred Binet Venfant et 1écrit 3 p 1530 1983 224 PETER BURKE Se a experiência da grande m assa de leitores está além do alcance da pesquisa histórica os historiadores deveriam ser capazes de captar algo do que a leitura significava para as poucas pessoas que dela deixaram um registro U m a terceira abordagem poderia começar com os muito conhecidos relatos autobiográficos aqueles de Santo Agostinho Santa Teresa de Ávila Montaigne Rousseau e Stendhal por exemplo e passar para fontes menos familiares JM Goulem ot utilizou a autobiografia de JamereyDuval para mostrar como um camponês podia ler e escrever sua trajetória nas fileiras do Antigo Regime e Daniel Roche descobriu um vidraceiro JacquesLouis Ménétra que transcreveu sua viagem em um circuito característico pela França Embora não levasse muitos livros na sacola às suas costas Ménétra constantemente trocava cartas com companheiros viajantes e com namoradas Esbanjou alguns soidos em manifestos em execuções públicas e até compôs versos burles cos para as cerimônias e as farsas que representava com os outros trabalhadores Q uando contou a história de sua vida organizou sua narrativa de modo picaresco combinando a tradição oral contos folclóricos e fanfarronadas estilizadas de reuniões masculi nas com gêneros de literatura popular as pequenas novelas da bibliothèque bleue Ao contrário de outros autores plebeus Restif Mercier Rousseau Diderot e Marmontel Ménétra jamais con seguiu um lugar na República das Letras Ele mostrou que a literatura tinha um lugar na cultura do homem comum30 Esse lugar pode ter sido à margem mas as margens em si fornecem indícios para a experiência dos leitores comuns No século dezesseis as notas lançadas à margem apareciam impressas sob a forma de glossários que orientavam o leitor através dos textos humanistas N o século dezoito o glossário deu lugar à nota de rodapé Com o o leitor seguia a peça entre o texto e o paratexto na base ou na lateral da página G ibbon criou uma distância irônica através do desdobramento magistral das notas de rodapé Um 30 JeanMarie Goulem ot ed Valentin JamereyDuval Mémoires Enfance et éducation d un paysan au XV U le siècle Paris 1981 Daniel Roche ed Journal ie ma vie JacquesLouis Ménétra compagnon vitrier au 18e siècle Paris 1982 A ESCRITA DA HISTÓRIA 225 estudo cuidadoso de cópias anotadas do século dezoito de The Decline and Fali of Roman Empire poderia revelar o m odo como a distância foi percebida pelos contemporâneos de Gibbon John Adam s cobriu seu livro de rabiscos Acompanhandoo através de sua cópia do Discourse on the Origin of Inequality de Rousseau podese ver o quanto a filosofia do Iluminismo parecia radical para um revolucionário isolado no clima maravilhoso de Quincy em Massachusetts Assim dizia Rousseau na primeira edição em inglês There was no kind of moral relation between men in th is State the State of nature they could not be either good or bad and had neither vices nor virtues It is proper therefore to suspend judgment about their situation until we have examined whether there are more virtues or vices among civilized men31 E Adam s na margem Wonders upon wonders Paradox upon Paradox What astonishing sagacity had Mr Rousseau Yet this eloquent coxcomb has with his affectation of singularity made men discontented ivith superstition and tyranny32 Christiane BerkvensStevelinck encontrou um excelente local para mapear a República das Letras nas notas à margem de Prosper M archand bibliófilo da Leyden do século dezoito Outros estudio sos levantaram as tendências da história literária tentando reler os grandes livros como os grandes escritores os haviam lido utilizan do as anotações de exemplares de colecionadores como a cópia de Diderot da Encyclopédie e a cópia de Melville dos ensaios de Emerson M as a pesquisa não precisa se restringir aos grandes livros ou aos livros em geral Peter Burke está atualmente estudando os graffiti da Itália renascentista Q uando se rabiscava na porta de um inimigo os rabiscos muitas vezes funcionavam como insultos 31 N ão havia qualquer espécie de relação moral entre os hom ens neste estado o estado da natureza eles não podiam ser bons ou ruins e nem possuíam vícios ou virtudes É conveniente portanto suspenderse o julgamento sobre sua situação n até que tenham os examinado se há m ais virtudes e vícios entre os hom ens civilizados NT 32 M aravilhas sobre maravilhas Paradoxo sobre paradoxo Q ue surpreendente saga cidade possuía o Sr Rousseau M as esta eloqüente pretensão com sua simulação de singularidade tornou os hom ens descontentes com a superstição e a tirania NT rituais que tleflniam as linhas do conflito social que dividia vizinhanças e clãs Q uando ligados à famosa estátua de Pasquino em Roma esses rabiscos públicos estabeleciam a tônica de uma cultura de rua intensamente política U m a história da leitura poderia ser capaz de avançar em grandes saltos da Pasquinade e da Com m edia deliArte até Molière de Molière até Rousseau e de Rousseau até Robespierre33 M inha quarta sugestão diz respeito à teoria literária Concordo que ela possa parecer desencorajadora especialmente para quem está de fora Aparece envolta em rótulos imponentes estrutura lismo desconstrução hermenêutica semiótica fenomenologia e desaparece tão rapidamente quanto surgiu pois as tendências substituem umas às outras com desconcertante velocidade Através delas todas entretanto segue uma preocupação que poderia con duzir a alguma colaboração entre os críticos literários e os historia dores do livro a preocupação com a léitura Seja desenterrando estruturas profundas ou demolindo sistemas de sinais os críticos têm cada vez mais tratado a literatura antes como uma atividade do que como um corpo estabelecido de textos Insistem em que o significado de um livro não está determinado em suas páginas é construído por seus leitores A ssim sendo a reação do leitor tornase o ponto chave em torno do qual gira a análise literária N a Alemanha esta abordagem conduziu a um renascimento da história literária como Rezeptionsàsthetik sob a liderança de Hans Robert Jauss e W olfgang Iser N a França provocou uma reviravolta filosófica na obra de Roland Barthes Paul Riccoeur Tzvetan Todorov e Georges Poulet N os Estados U nidos está ainda no estágio de fusão Wayne Booth Paul de Man Jonathan 33 A s notas à margem de Adam s estão citadas em Zoltán Haraszti John Adams the Prophets of Progress Cambridge M ass 1952 p 85 Sobre os glossários e as no tas de rodapé ver Lawrence Lipking The M arginal G loss Criticai Inquiry 3 p 620311977 eG W Bowersock The Art ofthe Footnote The American Scholar 53 p 5462198384 Sobre os manuscritos de Prosper M archand ver os dois artigos de autoria de Christiane BerkvensStevelinck LA pport de Prosper M archand au système des libraires de Paris e Prosper M archand trait dunion entre auteur et éditeur em De gulden Passer 56 p 2163 e 6599 1978 A ESCRITA DA HISTÓRIA 227 Culler Geofftey Hartman J Hillis Miller e Stanley Fish acrescen taram ingredientes para uma teoria geral mas nenhum consenso emergiu de seus debates Não obstante toda essa atividade crítica aponta para uma nova textologia e todos os críticos compartilham um modo de trabalho quando interpretam textos específicos34 Considerem os por exemplo a análise de W alter O ng das primeiras frases de A Farewell to Arms No final do verão daquele ano nós vivíamos em uma casa em uma aldeia que parecia atravessar o rio e a planície até chegar às montanhas No leito do rio havia seixos e pedregulhos secos e brancos ao sol e a água era clara moviase depressa e era azul nos canais Que ano Q ue rio pergunta Ong Hemingway não diz Pelo uso nãoortodoxo do artigo definido o rio em vez de um rio e do desdobramento esparso de adjetivos ele sugere que o lei tor não necessita de uma descrição detalhada da cena U m lembre te será suficiente porque imaginase que o leitor já esteve lá Hemingway dirigese a ele como se fosse um confidente e compa nheiro de viagem que apenas necessita ser lembrado das coisas para recuperar o brilho forte do sol o sabor vulgar do vinho e o cheiro fétido da morte na Itália da Primeira Guerra Mundial O leitor poderia objetar e podese imaginar muitas reações como Eu sou um a avó de sessenta anos de idade e não sei nada sobre os rios da Itália não ser capaz de acompanhar o livro M as se aceitar o papel que lhe é imposto pela retórica seu ser ficcionalizado pode se avolumar até às dimensões do herói de Hemingway e pode seguir a narrativa como um companheiro de armas do aütor35 34 Para pesquisas e bibliografias da crítica leitorresposta ver Susan R Suleim an e Inge C rosm an ed The Reader in the Text Essays on Audience and Interpretation Princeton 1980 e Jane P Tom pkins ed ReaderResponse Criticism From Formalism to PostStructuralism Baltimore 1980 U m a das obras mais importantes deste estilo de crítica é W olfgang Iser The Implied Reader Patterns of Communication in Prose Fiction from Bunyan to Beckett Baltimore 1974 35 W alter O ng The W riters Audience Is Always a Fiction PMLA 90 p 921 1975 228 PETER BURKE A retórica anterior em geral operava da maneira oposta Presumia que o leitor nada sabia sobre a história e necessitava ser orientado por ricas passagens descritivas ou observações introdu tórias Assim a abertura de Pride and Prejudice E uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro de posse de uma boa fortuna deva estar desejoso de uma esposa Por menos que se conheçam os sentimentos ou as opiniões de um tal homem que pode estar se introduzindo pela primeira vez em um ambiente esta verdade está tão arraigada nas mentes das famílias das cercanias que ele é considerado como propriedade de direito de uma ou outra de suas filhas Meu caro Sr Bennet disselhe sua esposa certo dia ouviu falar que Netherfield Park foi finalmente alugado Este tipo de narrativa movese do geral para o particular Coloca primeiro o artigo indefinido e ajuda o leitor a atingir seu rumo aos poucos M as sempre o mantém à distância porque se presume que ele entre na história como alguém de fora e que está lendo para se instruir para se divertir ou por algum propósito moral elevado Com o no caso da novela de Hemingway deve desempe nhar seu papel para que a retórica funcione mas o papel é completamente diferente O s escritores inventaram muitas maneiras de introduzir seus leitores nas narrativas U m a grande distância separa o Chameme Ismael de Melville do devoto de M ilton que reza por ajuda para justificar os caminhos de Deus até os hom ens M as toda narrativa pressupõe um leitor e toda leitura se inicia a partir de um título inscrito no texto O texto pode escavar a si mesmo e o leitor reagir contra a semente ou extrair novo significado de palavras familiares daí as infinitas possibilidades de interpretação propostas pelos desconstrutivistas e pelas leituras dos originais que moldaram a história cultural a leitura de Rousseau de Le Misanthrope por exemplo ou a leitura de Kierkegaard do Gênesis 22 M as seja o que for que se faça dela a leitura ressurgiu como o fato central da literatura A ESCRITA DA HISTÓRIA 229 Se é assim chegou o momento de se realizar uma união entre a teoria literária e a história dos livros A teoria pode revelar a variedade nas reações potenciais a um texto ou seja aos cons trangimentos retóricos que dirigem a leitura sem determinála A história pode mostrar que asleituras realmente ocorrem ou seja dentro dos limites de um corpo imperfeito de evidência Estando atento à história os críticos literários podem evitar o perigo do anacronismo pois eles às vezes parecem supor que os ingleses do século dezessete liam Milton e Bunyan como se fossem professores secundários do século vinte Levando em conta a retórica os historiadores podem encontrar indícios para o comportamen to que de outra forma seria desconcertante como as paixões despertadas de Clarissa até La Nouvelle Héloíse e de Werther até René Por isso eu argumentaria em prol de uma estratégia dupla que combinaria a análise textual com a pesquisa empírica Dessa maneira seria possível comparar os leitores implícitos dos textos com os leitores reais do passado e através dessas comparações desenvolver tanto uma história quanto uma teoria da reação do leitor Tal história poderia ser reforçada por um quinto modo de análise baseado na bibliografia analítica Estudando os livros como objetos físicos os bibliógrafos demonstraram que a disposição tipográfica de um texto pode em uma extensão considerável determinar seu significado e a maneira como foi lido Em um estudo notável de Congreve D F McKenzie mostrou que o dramaturgo neoelizabethano obsceno conhecido por nós pelas edições inquarto do final do século dezessete passou por um renascimento tipográfico em sua velhice e emergiu como o imponente autor neoclássico dos três volumes inoitavo36 das O bras publicadas em 1710 As palavras isoladas raramente m udam de um a edição para outra mas um a transformação no formato dos livros proporcionou às peças um sabor inteiramente 36 Dizse do formato de livro cuja folha dobradatrês vezes é composta de dezesseis páginas isto é oito de cada lado NT 230 PETER BURKE novo Acrescèntando divisões de cena personagens agrupados linhas realocadas e apresentando as liaisons des scènes Congre ve adapta seus antigos textos ao novo modelo clássico derivado do palco fracês Passar dos volumes inquarto para os volumes inoitavo é transferirse da Inglaterra elizabethana para a geor giana37 Roger Chartier encontrou implicações similares porém m ais sociológicas nas m etam orfoses de um clássico espanhol Historia de la vida dei Buscón de Francisco de Quevedo A novela foi originalmente destinada a um público sofisticado tanto na Espanha onde foi publicada pela primeira vez em 1626 quanto na França onde foi lançada em um a elegante tradução em 1633 M as em meados do século dezessete as editoras O udot e Garnier em Troyes começaram a publicar uma série de edições baratas em brochura que a tornaram durante duzentos anos a peça principal vital da literatura popular conhecida como bibliothèque bleue O s editores populares não hesitaram em remendar o texto m as concentraramse primeiramente no formato do livro o que Chartier chama de mise en livre Fragmentaram a narrativa em unidades simples encurtando as frases subdividindo parágrafos e multiplicando o número de capítulos A nova estrutura tipográ fica implicava um novo tipo de leitura e em um novo público as pessoas humildes a quem faltava a facilidade e o tempo para absorver longos trechos de narrativa O s episódios curtos eram autônom os N ão necessitavam ser unidos por subtemas comple xos e desenvolvimento de personagens porque proporcionavam material suficiente para preencher um a vieillée A ssim sendo o livro em si tornouse antes um a coleção de fragmentos do que um a narrativa contínua e poderia ser reunido por cada leitor ouvinte à sua própria maneira Exatamente como esta apropria ção ocorreu permanece um mistério porque Chartier se limita 37 D F McKenzie Typography and Meaning The C ase o f W illiam Congreve em Giles Barber e Bernhard Fabian ed Buch und Buchhandel in Europa im achtzehnten Jahrhundert Ham burgo 1981 p 81126 A ESCRITA DA HISTÓRIA 231 a analisar o livro como um objeto físico M as mostra como a tipografia se abre para a sociologia como o leitor implícito do autor tornouse o leitor implícito do editor descendo a escala social do Antigo Regime e penetrando no mundo que seria reconhecido no século dezenove como o grande público38 Poucos bibliógrafos e historiadores do livro aventureiros começaram a especular sobre as tendências de longo prazo na evolução do livro Argumentam que os leitores reagem mais diretamente à organização física dos textos que ao ambiente social que os rodeia Assim pode ser possível aprender algo sobre a história remota da leitura praticandose uma espécie de arqueolo gia textual Se não podemos saber precisamente como os romanos liam Ovídio podemos supor que assim como a maior parte das inscrições romanas os versos não continham pontuação parágra fos ou espaços entre as palavras As unidades de som e significado provavelmente estavam mais próximas dos ritmos da fala do que as unidades tipográficas os prefixos as palavras e as linhas da página impressa A página em si como uma unidade do livro data apenas do terceiro ou quarto século dC Antes disso tinhase que desenrolar um livro para lêlo U m a vez que as páginas reunidas o codex substituíram os rolos voumen os leitores podiam facilm ente se m ovim entar para trás e para diante através dos livros e os textos tornaram se divididos em segm entos que podiam ser lim itados e indexados M as m uito tem po depois dos livros terem adquirido sua form a m oderna a leitura continuou a ser um a experiência oral apresentada em públi co Em um m om ento indeterm inado talvez em alguns m os teiros no século sétim o e certamente nas universidades do século treze os hom ens com eçaram a ler silenciosam ente e sozinhos A m udança para a leitura silenciosa pode ter envol vido um ajustam ento m ental maior que a mudança para o texto 38 Roger Chartier Figures de la gueuserie Paris 1982 V er também as reflexões gerais de Chartier em seu ensaio U ne histoire de la lecture estclle possible Du livre au lire quelques hypothèses a ser publicado nas transações do Colloque de Saint M axim in outubro de 1982 232 PETER BURKE impresso pois ela transformou a leitura em uma experiência individual interior39 E claro que a impressão fez diferença mas provavelmente foi menos revolucionária do que em geral se acredita Alguns livros tinham frontispício índice índex paginação e editores que pro duziam muitas cópias a partir do original para um grandè público leitor antes da invenção do tipo móvel Durante o primeiro meio século de sua existência o livro impresso continuou a ser uma imitação do livro manuscrito Sem dúvida era lido pelo mesmo público da mesma maneira M as após 1500 livros panfletos manifestos mapas e cartazes impressos atingiram novos tipos de leitores e estimularam novos tipos de leitura Cada vez mais padronizado em seu formato mais barato em seu preço e espalhado em sua distribuição o novo livro transformou o mundo Ele simplesmente não supria mais informação Proporcionava uma forma de entendimento uma metáfora básica do sentido da vida Portanto foi durante o século dezesseis que os homens toma ram posse da Palavra Durante o século dezessete começaram a decodificar o livro da natureza E no século dezoito aprenderam eles próprios a ler C om a ajuda dos livros Locke e Condillac estudaram a mente como uma tabula rasa e Franklin formulou um epitáfio para si mesm o40 39 Paul Saenger M anières de lire médiévales Histoire de ledition française v I p 13141 e Sanger From O ral Reading to Silent Reading Vi ator 13 p 367414 1982 E claro que se podem encontrar casos excepcionais de indivíduos que liam silenciosamente muito antes do século dezessete o mais famoso sendo Santo Am brósio com o está descrito nas Confessions de Santo Agostinho Para um a discussão adicional da leitura e do início da história do livro ver HenriJean Martin Pour une histoire de la lecture Revue française dhistoire du livre nova série n 16 p 5836101977 40 Sobre a história de longo prazo da idéia do m undo como um livro a ser lido ver H ans Blumenberg Die Lesbarkeit der Welt Frankfurt am M ain 1981 O epitáfio de Franklin na verdade não aparece em seu m ausoléu Ele provavelmente o escreveu em 1728 quando era um jovem tipógrafo e um talento do Junto club ver The Papers of Benjamin Franklin Leonard W Labaree ed New Haven 1959 v 1 p 10911 A linguagem é ligeiramente diferente em cada um dos três textos autografados A ESCRITA DA HISTÓRIA 233 O Corpo de B Franklin Impressor Como a capa de um velho Livro Seu Conteúdo é arrancado E despido de sua Inscrição Brilho Aqui jaz Alimento para os Vermes Mas a Obra não será perdida Pois como ele acreditava Vai aparecer uma vez mais Em uma Edição nova e mais elegante Corrigida e melhorada Pelo Autor N ão quero interpretar muito a metáfora pois Franklin já se empenhou nisso até a morte mas antes voltar a um ponto tão simples que pode escapar à nossa observação A leitura tem uma história N ão foi sempre e em toda parte a mesma Podemos pensar nela como um processo direto de se extrair informação de uma página m as se a considerássemos um pouco mais concordaríamos que a informação deve ser esquadrinhada retirada e interpretada O s esquemas interpretativos pertencem a configurações culturais que têm variado enormemente através dos tempos Com o nossos ancestrais viviam em mundos mentais diferentes devem ter lido de forma diferente e a história da leitura poderia ser tão complexa quanto a história do pensamento Seria tão complexa de fato que os cinco passos aqui sugeridos poderiam conduzir a direções disparatadas ou nos pôr circulando indefinidamente em torno do problema sem penetrar em seu âmago N ão há caminhos diretos ou atalhos porque a leitura não é uma coisa distinta como uma constituição ou uma ordem social que pode ser rastreada através do tempo E um a atividade que envolve uma relação peculiar por um lado o leitor por outro o texto Embora os leitores e os textos tenham variado segundo circunstâncias sociais e tecnológicas a história da leitura não deve ser reduzida a uma cronologia dessas 234 PETER BURKE variações Deveria ir além para confrontar o elemento de relação no cerne da questão como as funções variadas do leitor interpre tavam textos desiguais A questão soa obscura mas muita coisa depende disso C on sideremos a freqüência com que a leitura mudou no curso da história a leitura que Lutero fez de Paulo a leitura que Marx fez de Hegel a leitura que M ao fez de Marx Esses pontos se sobres saem em um processo muito mais profundo muito mais vasto o esforço eterno do homem para encontrar significado no m undo que o cerca e no interior de si mesmo Se pudéssemos compreender como ele tem lido poderíamos nos aproximar de um entendimen to de como ele compreende a vida e dessa maneira da maneira histórica poderíamos até satisfazer parte de nossa própria ânsia de significado Apêndice um Cabinet littéraire provinciano em 1779 A circular que se segue apresenta um raro vislumbre de um cabinet littéraire ou clube de leitura na França prérevolucioná ria Foi enviada por PJ Bernard um livreiro de Lunéville para os oficiais da gendarmerie local em setem bro de 1779 Bernard queria convencer os gendarmes a se associarem a seu cabinet e por isso enfatizava a sua utilidade para os militares M as provavelmente se parecia com estabelecimentos sim ilares disse m inados através da França provinciana A circular provém do arquivo de Bernard localizado entre os docum entos da Société typographique de Neuchâtel na Bibliothèque publique et uni versitaire de Neuchâtel na Suíça Sua ortografia não foi m oder nizada ou corrigida A ESCRITA DA HISTÓRIA 235 A Messieurs les Gendarmes Messieurs Le Sr Bernard propriétaire du Cabinet Littéraire de la Gendarmerie autorisé par Monsieur le Marquis dAutichamp a 1honneur de vos représenter quencouragé par le suffrage de tes abonnés il désireroit fonder un écablissement plus étendu et plus utile II voudroit quau moyen dun a bonnement certain inmriable M essieurs les Gendarmes trouvassent cves lui tous les secours littéraires quils peuvent désirer Une maison commode grande bien éclairée chauffée que seroit ouverte tous le jours depuis neuf heures du matin jusquà midi depuis une heure jusquà dix offriroit dès cet instant aux amateurs deux mille volumes qui seroient augmentés de quatre cens par année Les livres seroient à la disposicion de Messieurs les Gendarmes qui cependant ne pourront les sortir de la bibliothèque Le Sr Bernard sengage à se procurer par chaque ordinaire Deux journaux de Linguet Deux M ercures Deus Journaux militaires Deus Journaux des affaires de VAmérique de VAngleterre Deux Esprits des journaux Deux Gourriers de 1Europe Deux Gazettes de France Deux Gazettes de Leyde Deux Gazettes de la Haye Deux Gazettes de Bruxelles Deux Courriers du Bas Rhin Deux Courriers de DeuxPonts Deux Bulletins Auxquels seront joints les ouvrages Instruments de mathématiques les cartes géographiques les ordonnances militares tout ce que concerne un officier Le Sr Bernard aussi sensible au plaisir dêtre utile quà son interêt particulier se bornera pour chaque abonnement à trois livres par an Voilà quel sera 1ordre de sa m aison Une salle au rais de chaussêe sera destinée pour la conversation ainsi quune chambre au premier étage íes autres seront abandonnées aux íecteurs des gazettes des ouvrages de littérature etc II ne sera question daucun jeu quelconque sous tel prétexte que ce soit La reconnaissance que le Sr Bernard a vouée à la Gendarmerie lui fait saisir tous le moyens de lui être agréable II se iate que Messieurs les Gendarm es voudront bien jetter sur son projet un coup doeil favorable le mettre à portée dajouter aux obligations quil leur a deja 1hommage dune éternelle reconnaissance NB Le Sr Bernard prie ceux de ces Messieurs les Gendarmes qui lui seront favorables de vouloir bien lui accorder leur signature1 236 PETER BURKE 41 Citado em francês no original A tradução é A os Senhores Gendarm es Senhores O Sr Bernard proprietário do Cabinet Littéraire de la Gendarmerie autorizado pelo Sr M arquês dAuticham p tem a honra de comunicarlhes que encorajado pela aprovação de seus subscritores desejaria fundar um estabelecimento dê m aior alcance e mais útil Ele gostaria que mediante um a subscrição Certa e invariável os senhores Gendarm es encontrassem em seu estabelecimento todos os recursos literários que pudessem desejar U m a casa cômoda grande bemiluminada e aquecida que estaria aberta todos os dias das nove da m anhã ao meiodia e da um a da tarde às dez da noite ofereceria desde agora aos amadores dois mil volumes que seriam aum entados em quatrocentos a cada ano O s livros estariam à disposição dos senhores Gendarm es que entretanto não poderiam retirálos da biblioteca O Sr Bernard se compromete a conseguir habitualmente D ois jornais de Linguet dois Mercures dois Journaux militaires dois Journaux des affaires de lAm érique dAngleterre dois Esprits des jornaux dois Courriers de 1Europe duas Gazettes de France duas Gazettes de Leyde duas Gazettes de La Haye duas Gazettes de Bruxelles dois Courriers du Bas Rhin dois Courriers de DeuxPonts dois Bulletins aos quais seriam acrescentados obras e instrumentos de matemática m apas geográficos editos militares e tudo o que diz respeito a um oficial O Sr Bernard tão sensível ao prazer de ser útil quanto ao seu interesse particular limitará cada subscrição a três libras por ano Assim será a disposição da casa U m a sala ao résdochão será destinada à conversação assim como um aposento no primeiro andar os outros ficarão à disposição dos leitores das gazetas das obras de literatura etc N ão será permitido nenhum jogo por qualquer pretexto O reconhecimento de que o Sr Bernard tem devotado ao C orpo dos Gendarm es faz com que ele utilize todos os meios para serlhe agradável Está convencido de que os senhores Gendarm es vão considerar favoravelmente o seu projeto e acrescenta às obrigações que já lhes deve a homenagem de um eterno reconhecimento N B O Sr Bernard roga aos senhores Gendarm es que apoiarem seu projeto queiram concederlhe sua assinatura N T HISTÓRIA DAS IMAGENS Ivan Gaskell Material visual Embora os historiadores utilizem diversos tipos de material como fonte seu treinamento em geral os leva a ficarem mais à vontade com documentos escritos Conseqüentemente são muitas vezes mal equipados para lidar com material visual muitos utili zando as imagens apenas de maneira ilustrativa sob aspectos que podem parecer ingênuos corriqueiros ou ignorantes a pessoas profissionalmente ligadas à problemática visual Mas é claro que isso não ocorre sempre Alguns historiadores têm proporcionado valiosas contribuições à nossa visão do passado e do local em que nele está inserido o material visual usando as imagens de uma forma sofisticada e especificamente histórica N ão obstante é raro que a opinião do historiador seja levada em conta quando as imagens são debatidas em um contexto mais amplo Essa carência não continuaria a existir se os historiadores fossem informados de algumas das preocupações que dominam os pensamentos e a C urador de Pinturas do M useu Margaret S W inthrop dos M useus de Aros da Universidade de Harvard 238 PETER BURKE prática daqueles que lidam com material visual É isso que eu espero fazer no presente capítulo no contexto de uma discussão de uma seleção de obras recentes em um campo de pesquisa terrivelmente vasto Para evitar possíveis malentendidos antes de prosseguir vou definir meu uso dos termos Por história entendo antes o discurso realizado pelos historiadores do que o passado Por arte entendo aqueles artefatos e às vezes os conceitos a eles associados produ zidos por aqueles designados como artistas seja por si próprios por seus contemporâneos ou retrospectivamente por outros Tam bém deveriam estar incluídos aqueles meios desenvolvidos pelos artistas para escaparem da arte como um artefato especialmente estando entre eles a arte da representação embora esta não vá ser aqui tratada Mas minha discussão não está limitada à arte ainda que eu desconheça algum termo isolado para descrever a ampla variedade de material visual a que desejo me referir Este inclui a arte como acabou de ser definida mas também primeiramente aqueles constituintes do ambiente visual feito pelo homem que são ou foram avaliados por outras razões além de seu propósito prático ostensivo se é que possuem um seja por sua destinação desde o início por exemplo a cadeira não simplesmente designada para ser sentada ou retrospectivamente o objeto encontrado ou coletável investido de um a nova importância pela designação em segundo lugar aqueles constituintes do ambiente visual feito pelo homem que são primariamente comunicativos incluindo o desenho gráfico e a fotografia Vou denominar essa m assa um tanto nebulosa que inclui a arte de material visual Este capítulo tem o título de História das Imagens em vez de História da Arte pela simples razão de que eu desejo considerar as questões relacionadas ao material visual além dos limites da arte assim como em seu interior N a verdade a distinção entre a arte e os outros materiais visuais sugere não somente questões de terminologia mas também a relativa posição ou privilégio dos diferentes tipos de material A história da arte é em grande parte relacionada apenas à arte e à percepção das hierarquias A ESCRITA DA HISTÓRIA 239 qualitativas em seu interior embora este aspecto discriminatório da disciplina esteja sendo cada vez mais questionado por alguns profissionais nos últimos anos Todavia tanto a história da arte quanto outras formas de estudo do material visual são em grande parte e legitimamente ahistóticas No presente contexto parece importante salientar que a história da arte não é uma subdisciplina da história Além disso muito trabalho interpretativo relacionado à arte e a outros materiais visuais não assume a forma escrita ou apenas a forma escrita N a verdade muitos daqueles mais intimamente envolvidos com a consideração do material visual desconfiam ou mesm o rejeitam o discurso acadêmico e a reivindicação implícita de precedência interpretativa com freqüência tem propiciado isso A apresentação e a interpretação implícita de tal material por museus e galerias em mostras e no interior da arte em si são igualmente ou até mais importantes N a cultura ocidental três instituições interligadas são centrais à definição pela prática daquilo que constitui material visual e de igual importância seus limites e hierarquias internos Estas instituições são primeiro os negociantes os leiloeiros e os cole cionadores segundo as diretorias dos museus e das galerias públicas e por trás delas os burocratas dos fundos públicos em terceiro os historiadores de arte acadêmicos os editores e como companheiros mais novos os críticos Embora alguns membros de cada grupo individual possam reivindicar permanecer à parte dos outros há um considerável intercâmbio entre os três em muitos níveis desde aquele das idéias e das suposições até aquele do dinheiro N a verdade os dois primeiros são claramente inter dependentes por exemplo o patrocinador de um a exibição pode deslizar entre eles Fora dessa tríade central tendo uma influência limitada sobre ela podem estar situados os artistas e os professores de arte Sua prática quase não tem efeito imediato sobre a discussão do material visual prémoderno nessa tríade e em certo sentido apenas um efeito limitado sobre a discussão das questões contem porâneas O que os artistas fazem podé ser facilmente ignorado e 240 PETER BURKE eles não podem ter uma voz independente efetiva pois seu trabalho e até certo ponto eles próprios são tratados como propriedade dos membros da tríade E difícil formularse uma análise da opinião recebida subjacente à constituição hierárquica do material visual devido à complexi dade do material e à falta de consenso verdadeiro Entretanto o que se segue pode servir como um amplo guia geral Dentro deste vasto corpo de material a distinção primária a ser feita é entre arte e outros N a arte há uma distinção baseada em critérios humanistas renascentistas classicamente derivados entre arte erudita como uma expressão da criação humana individual e arte decorativa ou aplicada termos que têm sido parcialmente supera dos por design quando se refere à época moderna Estabelecida paralelamente aparece uma atividade cuja posição mudou um pouco até se tornar ambígua a arquitetura Escritores renascentistas italianos como Leon Battista Alberti e Giorgio Vasari seguiram o arquiteto e teórico romano Vitruvius na concep ção da arquitetura como o pináculo das artes visuais devido a sua combinação de constituintes funcionais e abstratos dando espaço à criatividade individual Em muitas análises subseqüentes da história da arte a ênfase é colocada menos sobre a função prática ou social dos edifícios do que sobre a criação por tratarem as estruturas e os planos a elas relacionados quase exclusivamente como veículos de expressão artística individual uma abordagem também basicamente derivada de Vitruvius De architectura II ii Por outro lado a prática atual da arquitetura é em geral encarada como a preservação de uma profissão separada cujos membros e cujos críticos tendem a tratar ambiguamente a definição do relacio namento entre as considerações práticas e as expressivas Há uma tendência a tratar a prática corrente da arquitetura não como uma arte erudita como pode ter sido concebida quando Michelangelo alternadamente esculpiu estátuas pintou quadros e projetou edifí cios mas como o design em uma grande escala embora mantendo vestígios do prestígio de suas associações anteriores preservadas em A ESCRITA DA HISTÓRIA 241 parte pela obra dos historiadores de arte que escrevem sobre arquitetura Tam bém entre arte e outros em uma situação de categoria curiosamente não resolvida embora de uma maneira completa mente diferente daquela da arquitetura está a fotografia Embora a variedade de imagens que pode ser produzida por essa técnica em certo sentido não seja muito grande seu espectro de significação cultural é importante sendo considerada em um extremo como um meio transparente de transmissão de informação e em outro como um meio de arte opaco O impacto cultural da fotografia sobre os últimos cento e cinqüenta anos tanto em si mesma quanto na forma da imagem visual em movimento a que ela também deu origem tem sido imenso alterando completamente o ambiente visual e os meios de troca de informação de uma grande parte da população do globo A fotografia transformou sutil radical e diretamente a disciplina da história da arte e a prática de todos os membros da tríade acima definida não importando se seus objetos de preocupação foram criados antes ou depois de sua invenção Quase todos fazem uso diário tia fotografia seja como ilustrações auxílios à memória ou como substitutos de objetos descritos através dela Entretanto a maior parte dos membros dessas profissões tem evitado explicitamente considerar as conse qüências da fotografia à medida que ela afeca o seu próprio trabalho bem como em uma escala mais ampla A categoria inadequadamente designada acima como outros é na prática em grande parte definida pelos museus e pelo comércio U m a preocupação com o passado local durante muito tempo transformou os museus locais em depósitos de objetos Itens domésticos obsoletos evocando práticas rotinas e até relaciona mentos sociais do passado passaram a ser expostos em acréscimo às obras de arte arqueologia e história natural que caracterizavam os museus locais fundados na GrãBretanha nos anos fcue se seguiram ao Ato dos M useus de 1845 A partir da década de 1970 um a preocupação maior com a cultura popular revestiu esses artefatos de uma significação ampliada e mais estritamente orien 242 PETER BURKE tada do pontode vista histórico devido a mudanças nas técnicas de exposição Toda a área foi estimulada a partir das ondas de estudos folclóricos para assumir seu lugar no interior de um estudo revificado da cultura popular intimamente relacionado aos desen volvimentos concomitantes na escrita da história representada na GrãBretanha pela Popular Culture in Early Modem Europe 1978 de Peter Burke A nova posição conferida ao estudo do material remanescente dos setores externos à elite das sociedades passadas está resumida em termos claros pela construção suntuosa do Musée National des Arts et des Traditions Populaires em Paris Enquanto vitrinas apresentam implementos agrícolas ou instrumentos pro fissionais exibindo a variação regional e o valor do trabalho anônimo a sala de pintura é um repositório de folhetos e ninharias predominantemente anônimos produzidos para o consumo po pular do século dezesseis em diante O engajamento do comércio com essa ampla variedade de outros materiais visuais certamente não está definido por uma participação erudita em debates relativos à importância cultural de tais objetos N a verdade o impacto do comércio sobre esta área do ambiente visual e sobre a percepção que as pessoas têm do passado é provavelmente mais considerável que aquele do saber das dire torias dos museus e dos historiadores sociais M esm o os principais leilões têm tido problemas consideráveis para desenvolver a área conhecida como colecionáveis potes cartazes de propaganda de cigarro brinquedos etc Esta área reflete a intersecção de várias preocupações Primeiro apela para um sentido de ordenação e serve como uma técnica de recreação equivalente às técnicas comerciais de contabilidade e câmbio mas ao contrário dos interesses do colecionador ela promete uma conclusão e um encerramento final O s colecionadores de selos são o seu paradig ma Segundo os colecionáveis apelam para outro impulso comercial a atribuição do valor na conclusão de conjuntos defini dos e a expectativa de um retorno sobre o investimento Terceiro a coleção é postulada sobre a noção implícita de que o conheci mento relativo aos objetos é ostensivamente finito a possibilidade A ESCRITA DA HISTÓRIA 243 de interpretação não faz parte da atitude mental Certa vez eu visitei um a casa de campo paladiana1 em que muitos aposentos estavam desprovidos de mobília e decoração mas os assoalhos estavam cobertos de bules de chá O s bules um diferente do outro estavam colocados de um extremo a outro nos corredores e em partes das escadas tornandoas intransitáveis Para o proprietário esse não era um arranjo expressando oú convidando à interpretação mas simplesmente uma questão de conveniência Quarto e mais importante para o historiador as coleções deste tipo implicam um relacionamento particular com o passado Dois de seus ele mentos são a nostalgia baseada nas qualidades sinedóquicas observadas em um objeto um brinquedo em miniatura evocando um a infância dos anos 50 por exemplo e a suposta aderência de um a qualidade imutável devida ao contato pessoal com uma pessoa ou com pessoas celebradas ou reverenciadas um par de botas que pertenceu a Elvis Presley ou ao primeiro Duque de Wellington por exemplo N a verdade quando esta atitude evocativa de mágica sedutora é institucionalizada o que ocorre de uma maneira cada vez mais disseminada podemos nos surpreender se for possível fazerse um a distinção entre digamos assim Graceland e Apsley House pois ambas implicam uma atitude profundamente não analítica em relação a um passado dominado por grandes homens cuja essência pode ser conhecida através do exame dos objetos com os quais eles se cercaram Tendo realizado algumas incursões na vasta m assa de material visual arte temas de categoria nãoresolvida como a arquitetura 1 O estilo paladiano é aquele estilo de arquitetura inaugurado por Palladio arquiteto italiano do século XVI um a das maiores influências dns nrtcs plásticas O estilo de Palladio é um a adaptação das regras da arquitetura greeoromana às necessidades e conveniências da aristocracia na Renascença conferindo à vida cotidiana um a solenidade quase religiosa sobretudo na construção de palácios residenciais e grandes casas de campo O estilo paladiano dom inou toda a arquitetura dbs séculos dezessete e dezoito sobretudo na Inglaterra onde a Villn Rotondo foi várias vezes imitada A partir da segunda metade do século dezenove começouse a desprezar esse estilo tachado de pseudodássico Esboçase atualmente um movimento de reabilita ção do estilo paladiano NT 244 PETER BURKE e a fotografia e outros incluindo algumas categorias de artefato e colecionáveis a chegada à conjunção de todos esses fenôme nos na apresentação institucionalizada de heróis Presley como o Rei W ellington como o Duque de Ferro pode ser o ponto em que se deve falar no problema de como o conhecimento do material visual pode ser estabelecido de forma a poder ser exibido com vários propósitos diversão propaganda negócio e relação do presente com o passado Tentarei explorar apenas três dos vários aspectos da especulação com referência à obra recente selecionada a autoria a canonicidade e a interpretação Autoria Buscar estabelecer a autoria não é simplesmente uma conse qüência dos valores do mercado de arte como sustentam os céticos ou seja um quadro de Van Gogh valerá incomparavelmente mais que uma pintura que parece ser de V an Gogh mas não o é É antes um a conseqüência da concepção do artista e da percepção do relacionamento dele e muito ocasionalmente dela com a arte na tradição ocidental Com o um corolário a autoria do material visual não considerado arte produtos artesanais ou industriais é em geral julgada de pequena importância embora o desenvolvi mento do design como uma estratégia para subordinar os elementos imediatamente exploráveis da arte para propósitos diretamente comerciais esteja conduzindo a uma transferência parcial da prer rogativa do artista para o designer Aqui no entanto dificil mente existe o campo de discórdia a ser encontrado no campo da arte especialmente em seu subgrupo prémoderno ou do velho mestre de pintura e desenho O connoisseurism o2 técnica pela qual a autoria das obras de arte individuais é em geral reconhecida é o id do ego da 2 Connoisseurism no original Derivado da palavra francesa connoisseur que indica pessoa com profundo conhecimento de algum assunto principalmente em questões A ESCRITA DA HISTÓRIA 245 história da arte como expressou Gary Schwartz em uma crítica recente3 M uitos historiadores de arte que estão longe de ser radicais em suas opiniões reconhecem a base intelectualmente insegura do connoisseurism o e concentramse em outras áreas de pesquisa iconografia patronato O s apologistas do connois seurism o não podem ajudar mas revelam suas contradições internas Em 1985 a casa de leilões Sothebys de Londres e o M useu Fitzwilliam da Universidade de Cambridge uniramse para produzir a Primeira M ostra Sotheby Fitzwilliam Seu tema era The Achievement of a Connoisseur Philip Pouncey que durante um a longa carreira trabalhou tanto em museus quanto no comércio primordialmente no que dizia respeito aos desenhos da Renascen ça italiana Descrevendo o trabalho de Pouncey na introdução do catálogo que acompanhava a mostra4 John Gere descreveu a clareza a acurácia a concisão e a exatidão de expressão atenção às nuanças de significado a distinção entre hipótese e fato e o relevante e o irrelevante além da expressão de concordância e discordância em termos graduados Ele continua dizendo que O Sr Pouncey é um estudioso para quem a acurácia não é uma virtude mas um dever Entretanto por toda a página Gere revela os estranhos padrões duplos do connoisseurism o decla rando que U m a coisa é realizar uma atribuição satisfatória mas outra completamente diferente é justificála satisfatoriamente mais adiante descrevendo o uso de Pouncey do gestual na resposta a este problema Inesquecível mesmo depois de trinta anos foi sua maneira de demonstrar o correggiosismo do n2 19 na presente mostra colocandose ele mesmo na posição de São Sebastião no desenho Para muitos historiadores de arte a incapacidade de de arte O neologismo foi utilizado no inglês e optam os por mantêlo em português aspas nossas um a vez que não existem em am bas as línguas palavras correspon dentes indicando o significado preciso do termo francês N T 3 Connoisseurship the penalty o f ahistoricism International Journal of Museum Management and Curatorship 7 p 2618 1988 4 The Achievement of a Connoisseur Philip Pouncy Italian Old Master Drawings de Julíen Stock e David Scrase Fitzwilliam M useum Cam bridge 1985 sem paginação expressão que permite a pantomima e mais seriamente as anotações resumidas nos montes de desenhos como sendo o principal modo de expressão do connoisseur descrito por Gere como o monumento tangível de seu de Pouncey notável trabalho de um a vida está intrincadamente sujeito ao autoritarismo pois se afasta do argumento racional e apela para a reputação pessoal Muitos encontram dificuldade em aceitar a pura afirmação de um estudioso Em conseqüência disso vários historiadores de arte e teóricos radicais denigrem abertamente o connoisseurismo como uma atividade inerentemente de direita limitada que simplesmen te sustenta o mercado de arte e estimula a evasão de questões importantes concentrandose nas minúcias discretas e insignifican tes Em contraposição muitos connoisseurs desconsideram os his toriadores de arte cujas especulações se relacionam a outras questões além da autoria Existe uma polarização ideológica O connoisseurism o merece antes um a avaliação mais cuida dosa que uma rejeição Gere na introdução acima citada apresenta uma excelente definição da concepção tradicional de connoisseu rism o digna de ser citada integralmente Eu numero os critérios de Gere para facilitar a subseqüente referência O connoisseurismo no sentido técnico da identificação dos autores de obras de arte não é exatamente uma ciência interpretada como um sistema racional de inferência a partir de dados comprováveis nem é exatamente uma arte Está situado em algum lugar entre ambas e requer uma combinação particular de qualidades do espirito algumas mais científicas que artísticas outras mais artísticas que científicas 1 uma memória visual para as composições e os detalhes de composições 2 um conhecimento exaustivo da escola ou do período em questão 3 a consciência de todas as respostas possíveis 41 uma percepção da qualidade artística 5 uma capacidade para estabelecer a evidência e 6 um poder de empatia com o processo criativo de cada artista individualmente além de 7 uma concepção positiva do artista como uma personalidade artística individual Se se aceita que o connoisseurismo é uma atividade necessá ria o que eu aceito mas como um meio para uma variedade de fins não como um fim em si mesmo os critérios de números 1 A ESCRITA DA HISTÓRIA 247 2 e 5 parecem incontestáveis O de número 3 no entanto é um a impossibilidade racional da forma como está expresso e espero não prejudicar Gere sugerindo que a qualidade que percebo estar ele desejando transmitir está realmente compreendida tanto quan to o racionalmente possível por seus dois primeiros critérios O de número 4 pode ser considerado como supondo várias questões vitais mas nem a menor delas poderia ser aceita nas presentes circunstâncias O s verdadeiros problemas estão nos critérios de números 6 e 7 o último especialmente sendo básico para o connoisseurism o como é em geral concebido A idéia de que cada artista individual inevitavelmente se revela de uma maneira única por seus traços estilísticos inconscientes que o connoisseur pode reconhecer compõe a verdadeira base do connoisseurism o Gere admite que o connoisseurismo dos desenhos italianos é baseado quase inteiramente na evidência interna estilística portan to apenas o refinamento e a discussão das inconsistências percebidas no interior de um conjunto de argumentos circularmente definidos estão abertos ao participante E essencialmente um sistema fechado autoratificado e por isso demonstravelmente não é nada além de uma ficção Não estou negando no entanto que uma ficção possa expressar uma verdade Além disso a contradição subjacente aos critérios de números 6 e 7 não é em si demonstrável O s parâmetros estilísticos no interior dos quais um artista individual trabalha podem concebivelmente ser bem mais amplos do que permitiria o princípio de um sistema de connoisseurismo baseado na diferen ciação ostensiva entre minúcias inexplicáveis Vários agrupamentos de obras podem ser feitos tendose como base as semelhanças e as diferenças observadas mas isso em si não proporciona motivo necessário ou suficiente para atribuir aquelas que exibem caracterís ticas semelhantes do mesmo artista Fazer isso é aceitar um sistema arbitrário não reconhecido não necessariamente correspondente à realidade Isso pode se tornar inevitável mas eu proponho primeiro que a posição de tal sistema deva ser reconhecida por seus pVofissio nais segundo que quaisquer reivindicações relativas à sua vincula ção com o mundo devam ser examinadas com cuidado em exemplos 248 PETER BURKE individuaise terceiro que a pesquisa recente relativa à percepção e à cognição seja levada em conta Atualmente têm sido feitos grandes esforços para evitar esse problema embora não se reconhecendo explicitamente que ele exista Ainda que permanecendo silenciosos a respeito do mito do olho refinado e sofisticado que funciona de maneira explicita mente reconhecida como algo muito próximo da intuição os novos connoisseurs colocam sua fé no exame técnico e científico Isso tem se tornado possível graças aos desenvolvimentos na prática da conservação e à aplicação de técnicas científicas às análises dos componentes das obras de arte especialmente das pinturas a óleo O problema deste tipo que provavelmente recebeu mais atenção pública nos últimos anos não se relaciona a um objeto de arte como tal mas a um item de material visual cuja situação incerta como uma verdadeira relíquia ou uma imagem feita pelo homem tem sido de interesse geral o Sudário de Turim Em 1988 fragmentos foram analisados em três laboratórios na Suíça na GrãBretanha e nos Estados U nidos simultaneamente através de técnicas de datação de carbono os resultados sugerindo que o material era do final da Idade Média ao invés de ter uma origem páleocristã Esta experiência pode nos lembrar que a prática antiqüíssima do exame e da subseqüente certificação ou rejeição das supostas relíquias pelas autoridades eclesiásticas poderia bem ser considerada como o antecedente intelectual do connoisseurismo atual Entreos respeitáveis projetos atuais de connoisseurism o o Projeto de Pesquisa Rembrandt é preeminente Durante mais de vinte anos um pequeno grupo de estudiosos holandeses trabalhan do em conjunto examinou pinturas atribuídas a Rembrandt van Rijn e reuniu quantidades consideráveis de informações técnicas Está prestes a ser publicado um catálogo cronológico das obras aceitas com uma consideração das duvidosas e de algumas obras previamente aceitas rejeitadas pelo grupo5 Entretanto a premissa 5 J Bruyn B Haak SH Levie PJJ van Thiel e E van de Wetering A Corpus of Rembrandt Paintings v 1162516311982 v 2163116341986 v 3163416391989 A ESCRITA DA HISTÓRIA 249 básica de todo o projeto em si parece cada vez mais questionável ou seja a suposição de que é tão desejável quanto possível definir um conjunto da obra produzida pelo próprio Rembrandt distinta daquela de seus alunos assistentes seguidores e imitadores con temporâneos E interessante observar que tanto o desejo quanto a viabilidade parecem consideravelmente menos seguros agora do que devem ter sido para os iniciadores do Projeto em grande parte e inadvertidamente graças ao trabalho do próprio grupo A questão agora é se o Rembrandt é o produto de um grupo de trabalho que compreende um número de membros flutuante em que o próprio Rembrandt é o único constante seria realmente apropria do tentar identificar as pinturas de autoria apenas de Rembrandt mesmo que isso fosse possível dadas as limitações das técnicas de connoisseurism o que neste momento só podem se basear na estilística interna e na evidência técnica Entretanto estamos culturalmente relutantes em renunciar ou pelo menos em qualificar a concepção do artista como um criador essencialmente individual cuja atividade o processei criativo e caráter personalidade artística singulares podem ser discernidos pelo observador em pático comparar com os critérios de Gere de números 6 e 7 citados anteriormente Grande parte do exame técnico é realmente uma busca acen tuada dos traços ostensivamente únicos tio artista seu toque suas abreviaturas pessoais Embora o local de uma obra no interior de categorias amplas como a data aproximada e provavelmente o local de produção possa ser proveitosamente estabelecido os resultados em geral só autorizam as declarações negativas a análise tem demonstrado que não é empregado nenhum material anacrônico em um quadro do século dezessete A análise comparativa pode estabelecer padrões de prática de grupo de trabalho Por exemplo é improvável que uma tela sem um campo duplo distintivo discernível em cortes transversais da camada de pintura realizados para exame microscópico tenha sido preparada na oficina de trabalho de Rembrandt Todas as técnicas disponíveis desde a autoradiografia até a análise de difração de Raio X podem ser e 250 PETER BURKE são utilizadas para estabelecer parâmetros dentro dos quais as obras podem ser discutidas através de processos legítimos de compara ção e exclusão Não obstante o principal objetivo na interpretação de tais resultados pelos historiadores e curadores de arte permanece sendo o estabelecimento ou a desqualificação do conjunto da obra de um artista individual O processo da tomada de decisões do connoisseurism o permanece fundamentalmente inalterado e a única diferença é que mais dados estão à disposição do connoisseur A importância disso contudo raramente é precisa o suficiente para suas dele ou dela exigências Hoje em dia o uso da análise técnica está se intensificando sem a devida consideração às implicações epistemológicas Algu mas das hipóteses de trabalho publicadas do Projeto de Pesquisa Rembrandt foram recentemente postas em dúvida como resultado do exame técnico e científico do acervo de Rembrandt da National Gallery de Londres o exame mais completo de um conjunto de obras associadas ao grupo de trabalho de Rembrandt está ainda comprometido6 Sua insinuação foi a de que a informação técnica extensiva e detalhada utilizada pelo Projeto de Pesquisa Rembrandt é na verdade inadequada Se assim for onde se deve parar e em que ponto as decisões podem ser tomadas A autoradiografia por ativação de nêutron que efetivamente revela a disposição dos constituintes da pintura individual em uma série de imagens radiográficas não era uma técnica disponível para o grupo da National Gallery mas uma série de pinturas atribuídas a Rem brandt em número suficiente para proporcionar material compa rativo foi analisada por esse procedimento Será que um exame similar das pinturas da National Gallery atrapalharia suas hipóteses atributivas recentemente publicadas O u de preferência as limita ções do connoisseurism o por mais extensivos que fossem os dados técnicos à disposição do connoisseur deveriam ser exami nadas e todo o projeto de especulação atributiva verificado em 6 Art in the Making Rembrandt por David Bom ford Christopher Brown e A shok Roy National Gallery Londres 19889 A ESCRITA DA HISTÓRIA 251 seguida em uma nova base base esta em que a hipótese é reconhecida pelo que ela é e a opinião não é apresentada como um conhecimento seguro O problema da posição epistemológica do conhecimento derivado do connoisseurism o tornase mais agudo quando aquela informação necessariamente insegura é empregada na construção de argumentos complexos da história da arte em associação com o conhecimento estabelecido por processos mais dignos de confiança por exemplo inferências extraídas de fontes mutuamente corroborativas Se a evidência do connoisseuris m o tiver um peso igual àquela sustentada por uma evidência estabelecida de m odo mais seguro em tais estruturas essas estruturas devem ser frágeis M ais que a qualidade da evidência apenas nas circunstâncias individuais deve ser levada em conta a qualidade da natureza da evidência Através dessa avaliação a evidência do connoisseurism o por sua própria natureza não pode ser tão persuasiva quanto algumas outras formas de evidên cia O reconhecimento disso não conduziria à rejeição ou exclu são da evidência do connoisseurism o mas antes à sua utilização adequada discreta A s questões sobre o peso relativo de diferentes tipos de evidência não surgem da mesma maneira quando se consideram formas de argumento em que apenas o connoisseurism o está envolvido M as reconhecer as limitações epistemológicas do con noisseurism o dificilmente interessaria aos direitos adquiridos do m undo da arte U m deslocamento da ênfase é improvável porque as obras de arte funcionam como objetos individuais mais que como componentes indeterminados no contexto determinante o mercado e seu companheiro e dependente o museu Dentro deste contexto é altamente desejável que a posição de cada objeto individual não deva ser duvidosa Em conseqüência disso a falta de conhecimento é regularmente compensada pela apresentação de opinião corroborada por reputação e autoridade à guisa de um conhecimento seguro U m a confissão de ignorância é muito freqüentemente encarada como uma falha indesculpável uma 252 PETER BURKE atitude que envergonha a prática no campo Somente aqueles a quem grande autoridade foi atribuída podem prosseguir com ocasionais adm issões de ignorância se realizadas de maneira sensata tais confissões podem realmente confirmar quelas posi ções de grande autoridade Muito está em jogo para os partici pantes reconhecerem este estado de coisas posição prestígio tanto individual quanto institucional e acima de tudo dinhei ro C om o em qualquer outro mercado capitalista a confiança e a credulidade passam de mão em mão Aqueles cujo principal meio de troca é a idéia em vez da moeda estão em considerável desvantagem D o ponto de vista daqueles preocupados com o relaciona mento entre o presente e o passado deveríamos observar que a definição da prática passada estabelecida apenas pelo connoisseu rism o deve ser considerada uma ficção embora ela seja convin cente quando bem argumentada Deferíam os também notar que aqueles argumentos da história da arte que depositam muito peso no connoisseurism o devem ser tratados com muito cuidado pois provavelmente devem conter elementos frágeis se não absolutas imperfeições U m a das conseqüências de uma aceitação deste argumento provavelmente será que a questão da autoria individual tornarseá menos premente do que antes Mas se aceitamos que as mudanças na prática dos artistas resultam pelo menos em parte de escolhas intencionalmente motivadas realizadas por indivíduos que são subseqüentemente divulgados por influência o que pode compreender a imitação e a emulação a questão da autoria individual não será inteiramente suplantada C anonicidade A diferenciação retoricamente exagerada entre conhecimento e opinião apresentada no tópico anterior está evidentemente longe de ser a adequada para a análise do procedimento crítico e histórico a que a consideração do material visual está relacionada A ESCRITA DA HISTÓRIA 253 Libertar o conhecimento da opinião não é uma questão simples como declarou Frank Kermode em Forms of Attention 1985 ao examinar a formação e perpetuação dos cânones tanto na literatu ra quanto nas artes visuais Ele demonstrou que a opinião malinformada e a moda pddem mais que o julgamento critico erudito criar as circunstâncias em que um artista pode ser redes coberto e sua obra adm itidano cânone do tema material para repetidos reexames de estudiosos e críticos Kermode descreveu o caso de Sandro Botticelli cujas pinturas foram em grande parte ignoradas entre o século dezesseis e o final do século dezenove Ele convincentemente argumentou que nem o interesse de Herbert Horne quç se esforçou muito para definir o conjunto das pinturas de Botticelli através do connoisseurismo e de pesquisa de arquivos7 nem aquele de Aby W arburg que examinou aspectos da obra de Botticelli no contexto de suas próprias teorias sistemá ticas de história cultural8 teriam percebido que não havia ocorrido uma mudança cultural popular que acomodasse um gosto pela obra atribuída a Botticelli Tanto Horne quanto W arburg estavam na verdade nadando com a corrente do findesiècle Em conseqüência disso a obra de Botticelli foi em termos gerais adequadamente distinguida daquela de seus contemporâneos alunos e imitadores e possuía um a personalidade artística definida9 Aquelas pinturas designadas como as obrasprimas de Botticel li especialmente o Nascimento de Vênus e a Primavera ambas na Galleria degli Uffizi em Florença reuniramse ao grupo totOmico de imagens maciçamente reproduzidas familiares a um amplo público através de muitas formas de reprodução A Primavera chegou à sua apoteose como o definitivo maior tesouro da Galeria Uffizi com suas figuras femininas centrais aparecendo na 7 Aíessandro Filipepi called Sandro Botticelli Painter of Florence 1908 nova ediçíío com uma introdução de John PopeHennessy 1980 8 Sandro Botticellis Geburt der Venus und Frühling Ei ne Untersuchung über die Vorstellungen von derAntike in der italienischen Friihrenaissance 1893 9 Ronald Lightbown Sandro Botticelli Life and Works and Complete Catalogue 2 v 1978 é atualmente o texto padrão 254 PETER BURKE capa do guia de turistas publicado em vários idiomas U m a longa e extensiva restauração dessa pintura foi concluída em 1982 Foi apresentada ao público como o clímax da mostra Método e scienza Operatività e ricerca nel restauro Palazzo Vecchio Florença 19823 quando foi exibida sozinha em um aposento escuro dramatica mente iluminado como uma tela de cinema um espetáculo pro positadamente impressionante A introdução no catálogo que acompanhava sua exibição p 20750 foi a mais longa até então dedicada nessa forma de publicação à descrição técnica de uma única pintura Já vimos que a informação técnica é empregada a serviço do connoisseurism o Entretanto a apresentação ao pú blico de achados técnicos embora ostensivamente desmistificado ra é entre outras coisas um meio moderno importante de se aumentar a mística e a posição de uma obra de arte apresentando publicamente seu tratamento especial Enquanto há duzentos anos atrás os visitantes da Uffizi esperavam admirar a Venus de Mediei como seu maior tesouro a Sala Botticelli agora tomou o lugar da Tribuna apesar de sua restauração historicista recente como o objetivo final da peregrinação artística popular sendo a Primavera sua peça central Este é pelo menos em parte um desenvolvimento perfeitamente calculado em que a direção da galeria intencional mente desempenhou um papel preponderante10 Podemos ver assim que várias questões interligadas comple xas são levantadas quando se considera a canonicidade Duas destas estão intimamente vinculadas ao débito da história da arte a seu reconhecido texto básico Lives of the Artists de Giorgio Vasari11 São elas em primeiro lugar sua coincidência com os estudos literários tratando predominantemente o trabalho da vida 10 Isto ficou claro durante a mesa redonda entre os diretores de várias importantes galerias européias e americanas e outros estudiosos que concluiu a conferência de 1982 sobre a história e o futuro da Galeria Uffizi U m a transcrição da reunião foi subseqüentemente publicada em Cli Uffizi Quattro secoli di una galleria editada por Paola Barocchi e Giovanna Ragioneri 1983 v 2 p 557635 11 Principalmente em sua segunda edição Le vi te de piú eccellenti pittori seultori ed architettori 1568 A ESCRITA DA HISTÓRIA 255 de um indivíduo como uma unidade básica a ser considerada C om o já vimos esta abordagem é sustentada pelas suposições subjacentes de grande parte do connoisseurismo Segundo o cânone baseado na autoria é perpetuado entre outros meios escrevendose à maneira de Yasari O cânone está também sujeito à modificação o próprio Vasari estabeleceu o precedente na segunda edição de suas Lives O s artistas são acrescentados à medida que suas carreiras se desenvolvem com ou sem tendências nacionais por van Mander Bellori de Piles O s artistas ou as escolas em que são agrupados são ocasionalmente abandonados como G uido Reni e os bolonheses do século dezessete ou descobertos como Botticelli ou mais recentemente Caravaggio Essas alterações afetam e são afetadas pelas mudanças ocorridas nas instituições de arte o mercado e o museu U m modo de tratar essas mudanças e aferir as disparidades em qualquer época entre as atitudes de eruditos em relação ao cânone e a um estado de coisas públicas como é expresso primeiramente pelas coleções é a área de estudo que tem crescido consideravelmente nos últimos anos a história do gosto O principal expoente da história do gosto é Francis Haskell Suas Rediscoveries in Art Some Aspecls of Taste Fashion and Collecting in England and France 1976 e com Nicholas Penny Taste and the Antique The Lure of Classical Sculpture 15001900 1981 ajudaram a engendrar uma consciência de que os cânones da excelência artística observada são historicamente contingentes e determinados por uma variedade de fatores alguns dos quais necessariamente não têm de início nada a ver com as questões artísticas Haskell lida com a vida dos objetos subseqüente às circunstâncias de sua criação preocupação em recuperar a história da arte a ser discutida mais adiante e anteriores a seus possíveis efeitos ativos no presente a matériaprima da crítica M as longe de simplesmente intensificar uma atitude histórica às circunstân cias em que a arte atua esta obra tem ajudado a efetuar uma reavaliação crítica completa da apresentação da arte do passado no museu Esse desenvolvimento nas instituições públicas de arte pode ser encarado como uma abordagem inerente e às vezes explicitamente nãomodernista à canonicidade Por exemplo seria difícil imaginar o renascimento de interesse sério pela arte acadê mica francesa do século dezenove sem a obra de entre outros Francis Hàskell e Albert Boim e12 que culminou com a elaboração de um século dezenove nãomodemista no novo Musée dOrsay em Paris A teleologia que sustentava o projeto modernista concedendo um privilégio crítico retrospectivo a Courbet a Manet aos impres sionistas e a Cézanne decididamente não é mais apoiada Para uma nova geração de visitantes de galerias os nomes de Couture Gérôme e Bouguereau podem atingir uma posição canônica O desenvolvimento da história do gosto também ajudou a sancionar uma atitude regressiva em relação às coleções O s provedores e a direção dos museus estão menos propensos a argumentar contra a aceitação de presentes ou doações de coleções com a condição de que elas só sejam exibidas intactas em vez de dispersas entre os acervos do museu como as direções julgam adequado Tem estado em andamento um a tentativa de retornar as coleções abertas ao público nos ambientes originais de suas disposições originais Talvez o exemplo mais bemsucedido na GrãBretanha seja a Wallace Collection em Londres que de forma alguma é uma coleção morta nada pode ser acrescentado ou retirado mesmo que temporariamente como empréstimo Entre tanto uma abordagem muito pouco exigente a essa questão pode conduzir a uma falta de consciência crítica da função social das coleções como monumentos a um supostamente grande homem ou ocasionalmente mulher e acredito ser dever dos curadores tratar essa questão por seu direito próprio ou pelo menos reco nhecer sua natureza problemática A subordinação da obra de arte individual a um esquema geral é inerente em qualquer disposição de galeria mas quando aquela disposição é escolhida devido a sua iluminação ao gosto do indivíduo de uma maneira não crítica e é 12 Albert Boim e The Academy and French Painting in the Nineteenth Century 1971 idem Tkomfls Couture and tive Eciectic Vision 1980 A ESCRITA DA HISTÓRIA 257 instituída como uma disposição permanente não temporária um autoritarismo petrificante parece inerente ao projeto A posição é ainda pior quando a suposta restauração das disposições originais ocorre em uma coleção variável e além disso é falsificada O exemplo maiS notável desse tratamento é a nova remodelação da National Gallery da Escócia em Edimburgo que foi asperamente censurada por Caroline Elam em um editorial da conservadora revista de arte Burlington M agazine13 O motivo aparente da restauração da autenticidade do século dezenove é desm entido pela arcaização artificial da am pliação do mezanino em 1970 com na descrição detalhada de Elam guarnições de márm ore lam bris cornijas tapetes pseudovitorianos otoma nas de veludo cotelê franjado e painéis de seda de Lyons violentam ente coloridos extraindo a cor até dos V an G oghs Ela observou que nas galerias principais um pendente duplo ou tripo indica que são necessários binóculos para os quadros pendurados dem asiado alto Concluindo Elam sugeriu que a m oda atual de decoração autêntica e historização dos quadros pendurados é apenas uma manifestação da incerteza contem po rânea sobre os valores estéticos quando abordam os o segundo m ilênio O desenvolvimento da história do fosto implica uma nova atitude para com a canonicidade paradoxalmente unindo um novo ecletismo crítico alguns poderiam chamá lo de não critico que implicitamente desafia o cânone teológico da historia da arte c uma atitude que pode encorajar uma petríficaçao autoritária das coleções individuais para produzir um critério alternativo de canonicidade a coleção em si Outras forças estão também em açao modificando ou minando tanto o cânone quanto a idéia de canonicidade Algumas dessas estão centradas em noções de ínterpretaçao signi ficado e intenção 13 The hangings too good for them Burlington Magazine 1 51 p 3 4 1989 258 PETER BURKE Interpretação Partindo do cânone definido pela autoria e do cânone definido pela coleção voltome agora para o significado e a interpretação pictórica Aqui mais uma vez vamos nos confrontar com alguns temas agora familiares Se o historicismo prevalecer escreveu Caroline Elam em seu editorial do Burlington Magazine acima mencionado a obra de arte individual fica trancada em seu período e não pode aparecer para encontrar a visão contemporâ nea A apresentação direta do material visual está cada vez mais afetada pela aplicação dos critérios da história do gosto Contudo no discurso acadêmico este tem um lugar pequeno as linhas de batalha são obviamente entre a recuperação histórica a tentativa de interpretar o material visual como deveria ter ocorrido quando ele foi feito seja pelo autor por seus contemporâneos ou por ambos e o engajamento crítico direto de vários tipos com freqüên cia mutuamente irreconciliáveis Esses incluem em primeiro lugar a abordagem que admite a possibilidade de acesso intuitivo direto à personalidade artística e ao processo criativo que já encontramos no tópico sobre o connoisseurism o segundo uma preocupação teoricamente engajada pósestruturalista com a her menêutica visual e terceiro uma abordagem que enfatiza a conti nuidade essencial da arte de forma que a arte de qualquer período do passado não possa ser compreendida além do contexto de sua relação com a prática corrente na arte e por extensão em nenhum meio visual Estes conflitos de interpretação têm sido cada vez mais politi zados nos últimos anos Em um artigo apaixonado intitulado The Death of British Art History14 o historiador de arte acadêmico Michael Rosenthal reviu as tônicas políticas de alguns aconteci mentos recentes do m undo dá arte no contexto de uma denúncia dos acadêmicos britânicos por seu fracasso no engajamento ao debate cultural e político em amplas bases Rosenthal reexaminou 14 Art Monthly n 125 p 38 abril de 1989 A ESCRITA DA HISTÓRIA 259 o furor de 1982 sobre a exibição da Galeria Tate da obra de um pintor de paisagens britânico do século dezoito Richard W ilson David Solkin fez uma tentativa discreta na própria mostra e deuma maneira completa e erudita no catálogo que a acompanhava para situar as paisagens ideais deWilson dentro do contexto social e cultural de sua criação e de seu consumo inicial15 Isso foi denun ciado em vários órgãos influer es incluindo um editorial do Daily Telegraph como subversão marxista Dois anos antes o estudioso de literatura John Barrell havia publicado um exame histórico igualmente questionador das pinturas de temas rurais do século dezoito em The Dark Side ofthe Landscape The Rural Poor in English Painting 17301840 1980 Barrell examinou a ideologia implí cita na representação dos trabalhadores rurais nas pinturas de Thom as Gainsborough George M orland e John Constable suge rindo que sua condição é mostrada antes como sendo natural do que como socialmente determinada Ele opôs uma mitologia nostálgica a um apelo à história argumentando que devemos olhar duas vezes para um conceito de natureza através do qual parece natural que alguns homens deveriam trabalhar enquanto outros não16 Sendo simplesmente um texto acadêmico e além disso não especialmente bem informado sobre o papel da tradição artística na geração das imagens o livro de Barrell poderia ser ignorado pelo comércio e pelas galerias Podemos reconhecer com Michael Rosenthal que o texto acadêmico é acima de tudo uma atividade socialmente marginal na GrãBretanha Neil McWilliam e Alex Potts explicaram claramente porque a contribuição de Solkin para a história da arte social não foi da mesma forma simplesmente ignorada17 Solkin rompeu as regras infiltrando a 15 Richard Wilson The Landscape ofRcaction por David Solkin Tnte Gnlleiy I m ires 1982 16 p 164 17 Na nova seção introdutório a wu ortiijo Tlc I ainlínH of lUnutiom Ruimrd Wilson 1713M 782 e suas Crfticns em The New Art I hitmy ediiiiilo iot A l Rees c Francês Borzello 1986 p 10 6 1 9 ortjimliveme puhluíulo em ffisiory Worlcshop 16 p 1715 1983 260 PETER BURKE instituição da prestigiosa exibição do velho mestre em uma galeria nacional importante McWilliam e Potts prosseguiram Ainda que os tesouros culturais declinassem como o deleite inglês diante da paisagem e o suposto gosto e refinamento da época georgiana teriam de ser defendidos se desafiados no território onde ainda parecessem vagamente dignos de crédito A abordagem histórica do material visual não está restrita à atribuição de significação ideológica como ela foi percebida correta ou erroneamente por Barrell e Solkin A significação na época da produção vai além de uma conformidade muitas vezes inconscien te com a ideologia sociopolítica do consumidor para acompanhar os modos de percepção que não são inclinados a provocar uma atenção politicamente motivada nos dias de hoje Sua elucidação tem uma historiografia longa e importante que foi examinada em um contexto artehistórico mais amplo por Michael Podro em The Criticai Historians of Art 1982 U m dos primeiros profissionais desse tipo de recuperação da história da arte é Michael Baxandall cujo livro Painting and Experience in Fifteenth Century Italy 1972 tem o notável subtítulo de A Primer in the Social History of Pictorial Style Baxandall procurou ir além da simples análise iconográfica Ele escreveu Parte do equipamento mental com que um homem organiza sua experiência visual é variável e grande parte desse equipamento variável é culturalmente relativo no sentido de ser determinado pela sociedade que influenciou sua experiência Por isso a tarefa do historiador é recuperar a visão do período a maneira de ver culturalmente específica peculiar a digamos assim os escultores de madeira calcárea do sul da Alemanha no início do século dezesseis e aos seus clientes como Baxandall tentou em The Limewood Sculptors of Renaissance Germany 1980 Outros estudio sos aplicaram suas próprias versões da abordagem de Baxandall a outras culturas visuais uma das mais controvertidas sendo o exame de Svedana Alpers da arte holandesa no século dezessete The Art of Describing 1983 Alpers declarou que era característico dos holandeses no século dezessete buscar conhecer o m undo taxono micamente através de descrição pictórica detalhada compreenden A ESCRITA DA HISTÓRIA 261 do mapeamento microscopia e transcrição representacional realís tica da realidade observada Isso afirmou ela deveria assumir precedência sobre qualquer alusão ou alegoria na interpretação do material visual holandês um ponto de vista que provocou um vigoroso debate com outros estudiosos da área18 Este debate demonstrou que a especulação nos processos cognitivos suplanta dos pode ser mais controvertida que a busca de elucidação do significado pictórico original das obras individuais através da comparação das imagens visuais umas com as outras e com os textos contemporâneos procedimento hoje em dia artehistorica mente ortodoxo entre os acadêmicos ainda que isso não ocorra entre as figuras proeminentes dos museus e do mercado de arte Todas essas formas de recuperação da história da arte estão atualmente sob ataque por três ilustres direções Alguns daqueles interessados na hermenêutica visual questionam a noção de que a significação cultural pode ser codificada em material visual e subseqüentemente decodificada por uma interpretação posterior para produzir um significado adequado Hans Belting por exemplo em Das Ende der Kunstgeschichte 1983 observou como este processo ostensivamente simétrico de codificação e decodifica ção degenera no jogo de salão humanista da iconologia renas centista enquanto as imagens pictóricas tendem a ser interpretadas com referência a textos literários ostensivamente equivalentes freqüentemente programas ideados por estudiosos humanistas para tradução para termos pictóricos em esquemas decorativos Além disso o modelo de interpretação pictórica derivado da distinção de Erwin Panofsky entre os níveis préiconográfico iconográfico e iconológico19 foi há muito tempo teoricamente 18 Para a reação hostil a Alpers pelo renom ado iconologista holandês Ed de Jongh ver sua crítica em Simiolus 14 p 5191984 M inha própria crítica foi julgada por outros como simpática a Alpers m as é na verdade crítica em bora não ao longo das linhas do partido Oxford Art Journal 7 n 1 p 5760 1984 Para uma visão geral ver Egbert HaverkampBegemann The State o f research in northern baroque art Art Bulletin 69 p 510191987 especialmente p 51011 19 Erwin Panofsky Introductory em Studies in Iconology Humanistic Themes in the 262 PETER BURKE superado peia compreensão de que a indicação é afinal indistin guível da conotação e que mesmo o significado mais simples a imagem de um cachimbo para significar um cachimbo por exemplo é culturalmente contingente Ver por exemplo a seção de abertura de Roland Barthes SZ 1970 e Michel Foucault Ceei nest pas une pipe 1973 Talvez a posição mais interessante adotada hoje em dia seja a de que o material visual do passado especifica mente a sua arte só pode ser adequadamente interpretado através da criação de novo material visual a arte como parte de um campo de comportamento representacional que seja rigorosa e concei tualmente disciplinado O teórico cultural e o artista podem se tornar um só e o mesmo por exemplo Victor Burgin artista escritor teórico e acadêmico cujo trabalho foi competentemente descrito por Chris Miller como o contraabuso ideológico da imageria apropriada a partir da propaganda20 e cujas publicações incluem Betuieen 1986 e The End of Art Theory Criticism and Postmodernity1986 Algum questionamento da recuperação da história da arte surge também de fontes artehistóricas mais ortodoxas entre elas Michael Baxandall Em Patterns of Intention On the Historical Explanation of Pictures 1985 Baxandall descreve o uso de Giorgio Vasari do que é provavelmente uma ficção histórica para fazer uma observação puramente crítica sobre o aparecimento dos tecidos nas pinturas de Piero delia Francesca Art o f the Renaissance 1939 e do mesm o autor Iconography and Iconology an Introduction to the Study o f Renaissance Art em Meaning in the Visual Arts 1955 O préiconográfico diz respeito ao reconhecimento do espectador de um objeto ou de um ato representado o iconográfico ao lugar de um a representação dentro de um conjunto de convenções para produzir significação especifica reconhecível por exemplo as características individuais dos santos o iconológico diz respeito ao manejo inovador ou singular do artista do tema dentro de parâmetros culturalmente contingentes para gerar um a significação implícita requerendo um a reação imagina tiva do espectador para sua elucidação 20 European Photography 8 n 3 p 47 1987 A ESCRITA DA HISTÓRIA 263 Piero gostava muito de fazer modelos despidos que ele vestiria com tecidos úmidos dispostos em muitas dobras e daí o uso para o desenho e para propósitos similares Qualquer leitor atento de Vasari aprende a reconhecer este tipo de observação à medida que Vasari arrisca sua arma inferencial é improvável que ele tivesse o tipo de evidência para esta prática que atualmente faria com que nos sentíssemos felizes por fazer a declaração de maneira tão firme Isso não importa O próprio caráter genérico de Vasari situa sua observação no que ela é uma verdade crítica por assim dizer como a vemos quando nos defrontamos com ela assim como o anjo branco do meio no Batismo de Cristo e nenhum leitor da própria época de Vasari teria tido um sentido falso de sua historicidade Na verdade a agilidade de Vasari entre o crítico e o histórico é invejável mas vivemos em épocas mais muscularmente hipertrofiadas nessas questões e se eu dissesse tal coisa agora sobre Piero de modo tão franco vocês estariam autoriíados a esperar que eu tivesse um subsídio real de uma espécie que eu não poderia produzir p 117 Em seu ensaio sobre o connoisseurismo Gary Schwartz observou que O s historiadores de arte treinados desde o início para se articularem para trás e para diante entre as abordagens históricas e ahistóricas da arte nunca parecem observar as contra dições básicas entre elas21 Podese inferir do texto de Baxandall que esta contradição pode ser reconciliada pelo reconhecimento de que a veracidade histórica é contingente e que a aplicação de critérios históricos para o estudo do material visual produz ficções que não são necessariamente epistemologicamente distinguíveis dos comentários críticos ahistóricos Por isso situar a discussão da arte dentro de uma estrutura histórica não é mais do que o que Baxandall denomina de um gosto especial a recuperação histó rica e a avaliação crítica não são inerentemente melhores uma que a outra na verdade na medida em que a recuperação histórica é baseada em critérios contingentes não é nada mais que uma forma especial de avaliação crítica Podese por isso sugerir que a crítica que abertamente se ocupa das atuais preocupações culturais e sociais e que não reivindica um acesso improvável a verdades universais e perpétuas pode estar menos propensa a interpretar mal os 21 G Schwartz Connoisseurship 1988 p 265 264 PETER BURKE expectadorese leitores do que poderiam ostensivamente os relatos puramente históricos Talvez só possam os sempre conhecer a arte do presente parte da qual é o que sobrevive do passado propor cionando apenas o acesso mais tênue e incerto àquele passado O significado do material visual se modifica as interpretações diferem através dos limites cronológicos e culturais aqueles que conhece m os só podem ser sempre aqueles que nós próprios geramos Consideravelmente mais preocupantes que as dúvidas expres sas e sugeridas pelos historiadores de arte propensos à história são as tentativas de interpretar o passado ou como prontamente acessível pela resposta emocional do momento ao material visual ou pela indústria da herança em que a resposta emocional do mom ento é com freqüência explorada A crítica mais cáustica do desenvolvimento da herança como um fator social e cáda vez mais político nos últimos anos é The Heritage Industry Britain in a Climate of Decline 1987 de Robert Hewison Eu mencionarei apenas dois pontos levantados pelo livro de Hewison a herança é profundamente não analítica e implica que a história como um processo de mudança está ou deveria estar superada A produção de uma população capaz de enxergar o passado apenas em termos de nostalgia e patriotismo ajuda a assegurar a docilidade política O material da herança é um tesouro e seu paradigma é a casa de campo A casa de campo está investida não somente de uma mística social mas de uma mística estética Por exemplo a frase A casa de campo como uma obra de arte coletiva é um a das contribuições britânicas mais importantes à civilização ocidental pode ser encontrada na contracapa do catálogo que acompanha a enorme mostra The Treasure Houses of Britain Five Hundred Years of Private Patronage and Art Collecting National Gallery of Art W ashington D C 19856 Essa mostra foi descrita no Economist como um palavrório de vendedor desavergonhado em favor da herança britânica22 Outros buscam solicitar dinheiro de uma 22 Citado por Robert Hewison The Heritage Industry 1987 p 52 A ESCRITA DA HISTÓRIA 265 forma menos direta inspirando simpatia pela sugestão de que a casa de campo é uma instituição ameaçada com freqüência em termos políticos levemente velados As palavras iniciais do primei ro ensaio do catálogo que acompanha a mostra ligada ao Fundo Memorial de Herança N adonal do Museu Britânico em 19889 Treasures for the Nation Conserving our Heritage são Dificilmente decorre um a semana sem qüe vejamos o anúncio de um leiloeiro da venda e dissolução iminente de alguma grande propriedade pública Continuando a citar W G Hoskins Marcus Binney prossegue A casa é confiscada pelos empreiteiros da demolição seu parque é invadido e danificado e assim por diante Essa mitologia da destruição patrocinada por nobres do museu como Roy Strong na mostra e em seu catálogo The Destruction of the Country House Victoria Albert Museum Londres 1974 e políticos como Patrick Corm ack Heritage in Danger 1976 pro porciona uma cortina de fumaça conveniente atrás da qual o poder e o privilégio continuam a operar Em The Latest Country Houses 1984 John Martin Robinson revelou que mais de duzentas novas casas de campo foram construídas na GrãBretanha desde a Segunda Guerra Mundial Isso é pelo menos politicamente pru dente e poderia trazer vantagens de impostos para aqueles que desfrutam de riqueza privada para desempenhar o papel de guar diães de um a herança nacional parte da qual é exibida ao público como a síntese do bom gosto e de um passado invariavelmente bom que deveria ser preservado acriticamente para todo o sempre N ão há interpretação apenas uma acumulação que sanciona um status quo social e estético A fotografia é o meio visual em que os acontecimentos passados são com freqüência tornados mais acessíveis pela res posta emocional do momento Isto porque a fotografia traz em si um a relação material e causai com seu sujeito Parte de nossa resposta é para o fotógrafo como um traço real de um aconteci mento O s apologistas do fotojornalismo vão adiante para sugerir que a informação sobre qualquer acontecimento com uni cado por um fotógrafo nos proporciona o conhecimento vital 266 PETER BURKE desse acontecimento N a verdade o passado recente é cada vez mais conhecido através de imagens parcialmente fortuitas e instantâneas C om o expressou o editor de jornal Harold Evans N ossas impressões dos acontecimentos importantes e comple xos podem ser permanentemente m oldadas por um único repór ter fotográfico observação citada no painel introdutório na m ostra Eyewitness 30 Years of World Press Photography no M useu Nacional de Fotografia Cinem a e Televisão em Bradford 1989 Entretanto alguns pontos são agora óbvios e têm sido repetida mente relatados e não apenas nas mostras permanentes daquele museu o momento captado necessita comunicar ao observador pouco ou nada de um acontecimento que ocorre no tempo os fotógrafos estão sujeitos a muitas formas de manipulação a excisão de figuras cortes e atenuações para alterar a interpretação do observador e o significado prontamente legível muitas vezes é apenas gerado pela combinação com um a legenda Legendas diferentes para a mesma fotografia com freqüência produzem significados radicalmente diferentes ou até contraditórios A informação correta fornecida por uma fotografia pode ser de uso tangencial em um relato analítico de um acontecimento passado mas preservandose um detalhe que de outro m odo poderia ser ignorado podem ser reveladas novas linhas de curiosidade não necessaria e estritamente históricas sobre o passado Por que por exemplo a mulher que administrou o juramento presidencial a Lyndon Johnson a bordo do Airforce O ne em 22 de novembro de 1963 em seguida ao assassinato de John F Kennedy colocou seu polegar sobre o dedo mínimo da mão com que ele segurava a Bíblia como pode ser visto na fotografia de Cecil Stoughton do acontecimento U m a das áreas de discussão atuais mais interessantes em relação á imprensa e à documentação fotográfica diz respeito ao papel do fotógrafo nos acontecimentos que ele ou ela descreve Podese argumentar que a idéia do olho inocente não é mais defensável e que a câmera é sempre uma presença intrusa U m a fotografia como aquela de Sadayuki Mikami da dor dos parentes A ESCRITA DA HISTÓRIA 267 dos passageiros mortos a bordo do vôo 007 da Korean Airlines tirada em setembro de 1983 em um barco no local em que o aeroplano submergiu no mar poderia ser interpretada tanto como uma intromissão quanto como seu assunto as lentes são um impacto nas faces dos parentçs em pranto incluindo por implica ção o autor dessa fotografia E uma estocada de baioneta no estômago de um a vitima porque um fotógrafo Michel Laureat está presente ou aquilo de qualquer forma teria ocorrido ou será que a presença de um fotógrafo desencorajaria prováveis assaltantes de investir outros golpes de baioneta em outros estômagos Seja qual for a resposta em qualquer exemplo dado é difícil não se considerar o fotógrafo como um participante História Pelo que já foi dito o leitor pode deduzir que eu não acredito que o historiador esteja mais bem situado para tratar da imagem visual ele ou ela está antes de tudo preocupado com a interpretação do passado não com a prática visual e com as questões críticas atuais N o entanto os historiadores levantaram questões sobre o material visual de maneiras proveitosas que podem lembrar àqueles de nós que estão primeiramente ligados à critica e aos assuntos culturais atuais que todo o material do passado é potencialmente admissível como evidência para o historiador For the Sake of Simple Folíc Popular Propaganda for the German Reformation 1981 de Bob Scribner ó um exemplo do efeito de nivelação atual que o olhar de um historiador pode lançar a uma mistura de material xilogravuras alemãs do início do século dezessete que os historiadores de arte não podem evitar exceto tratando do assunto de uma maneira hierárqu ica segu ndo o mérito artístico percebido Scribner tentou elucidar as convenções icono gráficas e formais que permitiam que a propaganda pictórica para e contra a Reforma religiosa fosse entendida pelas pessoas comuns Por sua vez a imagem é tomada pará revelar seus limites de 268 PETER BURKE entendimento cultural e as idéias em seu interior o Anticristo o m undo virado de cabeça para baixo a que os reformadores poderiam recorrer E adequado para ele tratar as obras de Dürer e os Cranachs nos mesmos termos que as gravuras de seus contem porâneos que os historiadores de arte poderiam rejeitar como inferiores e de pouco interesse intrínseco ainda que quando o sucesso da imagem seja estabelecido em termos da imitação ou da emulação dos motivos e dos artifícios visuais a qualidade o senso artístico e o papel da tradição visual existente devam também ser considerados como o seriam diferentes mercados prováveis para imagens de qualidade diferente U m segundo exemplo de um livro em que um historiador faz um uso sofisticado do material visual é The Embarassment of Riches An Interpretation of Dutch Culture in the Golden Age 1987 de Sim on Schama Em sua descrição dos hábitos sociais e das crenças da classe média holandesa com respeito à identidade nacional à probidade doméstica aos deveres das mulheres e dos empregados domésticos e à educação das crianças Schama convoca à ação uma grande variedade de material incluindo a poesia a coreografia os relatos dos viajantes os documentos notariais os registros dos tribunais os impressos e as pinturas Assim fazendo mostrou uma consciência dos atuais debates artehistóricos relativos à interpreta ção da arte holandesa e produziu o que já descrevi como sendo um a reorganização magistral do antiquarismo anedótico do século dezenove ao longo de linhas antropológicas à luz de uma erudição moderna histórica e artehistórica 23 Embora eu sinceramente espere que os historiadores cada vez mais voltem sua atenção para o material visual lamento que poucos até agora tenham demonstrado suficiente percepção das questões necessariamente envolvidas ou das habilidades particulares neces sárias para se enfrentar tal material A contribuição para o estudo do material visual que o historiador está provavelmente mais bem equipado para realizar é a discussão de sua produção e de seu 23 Burlington Magazine 130 p 6367 1988 A ESCRITA DA HISTÓRIA 269 consum o como atividades sociais econômicas e politicas U m a área em que os historiadores já realizaram um considerável pro gresso diz respeito a uma forma especial de consumo de imagens a destruição deliberada ou o iconoclasmo Para a maior parte dos historiadores de arte o iconoclasmo continuará sendo marginal porque os objetos não sobrevivem ou são curiosidades prejudica das24 Isso contudo não desencoraja o historiador da religião ou o historiador social N o estudo do iconoclasmo da Reforma os historiadores sociais determinaram a iniciativa pois esta é uma atividade em que não apenas a teoria da elite mas as noções analfabetas e populares especialmente em relação à mágica da imagem e o comportamento relativo ao carnaval ou à festividade freqüentemente parecem ser acessíveis Isso levou a uma tendência a tratar o iconoclasmo como um fenômeno invariável sendo dada mais atenção a fatores comuns em momentos variados do que às diferenças entre eles Atualmente os historiadores sociais estão cada vez mais voltados para aquilo que tem sido chamado de micropo lítica ou o estudo dos acontecimentos individuais à luz dos quais eles estão aprendendo a modificar as estruturas teóricas permitin do uma maior atenção às nuanças Isso pode ser visto por exemplo na obra de Lee W andel sobre o iconoclasmo em Zurich por ela apresentada em um simpósio que teve lugar na Herzog August Bibliothek em Wolfenbüttel em 198625 Este simpósio também marcou uma prontidão para reunir especialistas de dife rentes disciplinas historiadores literários sociais religiosos e de arte para discutirem o fenômeno do iconoclasmo a partir de pontos de partida complementares U m exemplo menos dramático embora não menos compen sador do que o historiador pode fazer para situar o material visual em um contexto socioeconômico de produção e consumo é pro porcionado pela obra do economista John Michael Montias Seu 24 U m a exceção é David Freedberg por exemplo seu Iconoclasts and their Motives 1985 25 Iconoclasts in Zurich em Biláer und Bildersturm im Spàtmittelalter und in derfrühen Neuzeit ed Bob Scribner e M artin W arnkç Wolfenbütteler Forschungen 46 1990 p 12 5 4 1 270 PETER BURKE estado Artists and Artisans in Delft A Socioeconomic Study of the Seventeenth Century 1982 recorda aos leitores que a pintura da arte erudita era uma questão de oportunidade financeira determi nada pela classe tanto para o comprador quanto para o autor Além de delinear as fortunas dos pintores de Delft Montias descreveu a organização capitalista protoindustrial de seus impres sores e fabricantes de porcelana Em contraste com os profissionais das duas últimas especialidades os pintores precisavam de pouco em termos de investimento de capitai mas antes de ser uma profissão aberta M ontias descobriu que o gasto do aprendizado de seis anos efetivamente limitava os aprendizes apenas aos filhos dos artesãos mais prósperos dos notários dos advogados e dos próprios pintores As crianças patrocinadas pela Câm ara dos Órfãos ao contrário tinham muito menos probabilidade de ser aprendizes de um porcelanista e embora pertencentes à mesma corporação dos pintores era pouco provável que ascendessem das fileiras de um nascente proletariado Concluindo portanto podemos ver que nenhuma profissão tem ou em minha opinião deveria ter um m onopólio sobre a interpretação do material visual incluindo a história das imagens Se os historiadores têm muito a aprender nesta área têm pontos importantes também a ensinar Inadequações muito piores têm sido descritas na prática daqueles que lidam profissionalmente com a arte O s historiadores de arte se desenvolveram acostumados a ouvir que muitos deles ainda não haviam captado as questões levantadas pela semiótica pela comunicação de m assa e pela teoria da mídia ficando à mercê de se informarem de como prosseguir lutando com a fotografia com a arte da representação o cinema a televisão e o vídeo O historiador e o curador de arte por exemplo podem parecer se refugiarem em problemas aparentemente mais imediatos o refinamento a aplicação imediata e a transmissão de técnicas analíticas experimentadas incluindo o connoisseuris m o o refinamento dos cânones e diferentes formas de interpre tação pictórica Embora assumindo um a visão crítica não acredito que pudéssem os simplesmente ser impacientes com aqueles que A ESCRITA DA HISTÓRIA 271 praticam essas especialidades Eles não são úteis apenas ao mercado e ao museu Algumas questões que devem ser levantadas à luz das preocupações contemporâneas e não do futuro antecipado só podem ser respondidas com a sua ajuda Enquanto isso atualmente vivemos em um clima mental de fragmentação de dessistematízação do conhecimento descrito por Jean Baudrillard26 em que versões do passado são constantemente recicladas em potenciais permanentemente presentes reutilizáveis alternadamente como pontos de informação N osso relacionamen to com o passado não é mais primeiramente definido pela história mas antes por uma variedade de prática grande parte dela visual mente baseada sujeita a análises em termos do visualismo e do olhar expandido27 em que os historiadores e a maior parte dos historiadores de arte em geral se sentem muito longe de casa a propaganda a televisão o fotojornalismo a arquitetura e algumas áreas da arte As palavraschave agora são fragmento e ruína28 nenhuma delas mencionada no manual cultural de meados dos anos 70 as Keyivords A Vocabulary of Culture and Society 1976 de Raymond W illiams E o leitor atento irá observar que por todo este capítulo eu não utilizei nem uma vez o termo pós moderno 29 26 L a précession des sim ulacres Simulacres et Simulation 1981 27 Por exemplo N orm an Bryson The gaze in the expanded field em Vision and Visuality ed Hal Foster 1988 28 Por exemplo Douglas Crim p O n the M useum s Ruins em Postmoclern Culture ed H al Foster 1985 e Arthur Kroker e David Cook The Postmodem Scenc Excremental Culture and HyperAesthetics 1986 Excurses on the Post Nouveau The body in ruins Science in ruins theory in ruins philosophym ruins history in ruins 29 Gostaria de agradecer a Patricia Rubin por seus aguçados eoinentilrk sobre um esboço anterior deste ensaio HISTÓRIA DO PENSAMENTO POLÍTICO Richard Tuck N o decorrer da década de 60 vários historiadores do pensa mento político por uma coincidência agradável e conveniente muitos deles vinculados à U niversidade de Cambridge publicaram suas reflexões de caráter geral sobro sua atividade profissional Três destes ensaios conseguiram unia reputação duradoura The History of Political Thought A Meilwdological Enquiry1 de John Pocock The Identity of the History of Ideas de John Dunn e M eaning and Understanding ín the History of Ideas3 de Quentin Skinner E desses três foi o de Skinner que provocou mais discussão em parte devido a sua extensão e abrangência muito maiores mas sobretudo porque ao contrário de Pocock e Dunn ele tornou seus objetivos muito precisos e especificouos O prin cipal objetivo e aquele que os escritores subseqüentes estiveram Assistente de História da Universidade de Cambridge e M em bro do Jesus College 1 Em Philosophy Politics and Socíety série II ed Peter Laslett e W G Runciman Oxford 1962 p 183202 2 Em Philosophy 43 p 85104 1968 reeditado em D unn Political Obligation in its Historical Context Cambridge 1980 p 1328 3 Em History and Theory 8 p 353 1969 reeditado em Jam es Tully ed Meaning and Context Oxford 1988 p 2667 274 PETER BURKE mais propensos a defender foi descrito por Skinner na seguinte passagem Antes de mais nada vou considerar a metodologia ditada pela reivin dicação de que o próprio texto deve compor o objeto autosuficiente de pesquisa e de entendimento Pois essa é a suposição que continua a orientar o maior número de estudos levantar as mais amplas questões filosóficas e dar margem ao maior número de confusões Esta abordagem em si está logicamente ligada na história das idéias não menos do que em estudos mais estritamente literários a uma forma particular de justificativa para a condução do próprio estudo E característico dizerse que o objetivo fundamental do estudo de obras passadas de filosofia ou de literatura deve ser o fato de elas conterem em uma expressão aprovatíva elementos atemporais sob a forma de idéias universais até mesmo uma ciência não datada com aplicação universal Atualmente o historiador que adota tal ponto de vista já está na verdade ele próprio comprometido com a questão de como melhor obter uma compreensão de tais textos clássicos Pois se o objetivo fundamental de tal estudo é concebido em termos da recuperação das perguntas e respostas atemporais colocadas nos grandes livros e assim demonstrar sua continuada relevância não deve ser apenas possível mas essencial que o historiador se concentre simplesmente naquilo que cada um dos escritores clássicos disse a respeito de cada um desses conceitos fundamen tais e questões permanentes O objetivo deve ser em suma promover uma reavaliação dos escritos clássicos deixando de lado o contexto do desenvolvimento histórico como tentativas perenemente importantes para se estabelecerem proposições universais sobre a realidade política Para sugerir em vez disso que um conhecimento do contexto social seja uma condição necessária para um entendimento dos textos clássicos é equiva lente a negar que eles realmente contêm quaisquer elementos de interesse atemporal e perene e é por isso equivalente a remover o objetivo funda mental de se estudar o que eles disseram p 30 U m grande número de cientistas políticos em sua maioria americanos foi relacionado nas notas de rodapé para esta passagem Peter Merkl Hans J Morgenthau Mulford Q Sibley William T Bluhm G E G Cadin Andrew Hacker R G McCloskey Karl Jaspers Leonard Nelson Charles R N McCoy Leo Strauss e Joseph Cropseh4 4 Ibid p 2912 A ESCRITA DA HISTÓRIA 275 Em bora D unn não apresente nenhuma relação comparável de pessoas é claro que ele tinha em mente seu tipo de abordagem quando no ano anterior se queixou de que poucos ramos da história das idéias têm sido escritos como a história de uma atividade Estruturas complicadas de idéias dispostas de uma maneira quase tão restrita quanto é possível freqüentemente mais restritas do que a evidência permite para os sistemas dedutivos têm sido examinadas em pontos diferentes no tempo e sua morfologia tem atravessado os séculos Reconstruções reificadas das idéias mais acessíveis de um grande homem têm sido comparadas àquelas de outros grandes homens daí a tendência estranha de muitos escritos mais especialmente na história do pensamento político serem compostos daquelas proposições daqueles grandes livros que recordam aquelas proposições daqueles outros grandes livros p 15 C om o uma alternativa para isso tanto Skinner quanto Dunn enfatizaram que a maneira adequada de se ler um texto histórico é como um produto histórico em que as verdadeiras intenções do autor à medida que elas podem ser razoavelmente reconstruídas devem ser nosso principal guia como o porquê de o texto ter assum ido a forma particular que assumiu embora é claro que nenhum deles supusesse que a intenção fosse um guia suficiente o fracasso também necessita de reconhecimento e explicação A inda que um argumento desse tipo não tenha sido a primeira intenção de Pocock seu ensaio de seis anos antes poderia ser restabelecido nessa causa e Skinner sempre reconheceu generosa mente a influência de Pocock juntamente com aquela de RG Collingwood Alasdair Macintyre e Peter Laslett O ensaio de Pocock era na verdade um apelo no interior da profissão da história das idéias para se levar a sério como o material a ser compreendido e explicado todo o conjunto de escritos ou outros produtos sobre política disponíveis de uma sociedade particular o que ele chamou de estereótipos e linguagens e o que subseqüentemen te nomeou de paradigmas Sua própria obra Thè Ancieút Cons titution and the Feudal Law 1957 tem sido um a ilustração brilhante do que ele queria dizer que os principais filósofos políticos só poderiam ser lidos em contraposição a uma estrutura minuciosamente especificada e historicamente particular de práti cas lingüísticas neste caso a prática de suposições históricas dentro da tradição forense e que somente dessa maneira poderiam ser compreendidas sua originalidade ou convencionalidade Era ver dade reconheceu Pocock que como a linguagem empregada na discussão política tomouse de crescente generalidade teórica então o êxito de persuasão dos argumentos do pensador se apóia menos em seu êxito na invocação dos símbolos tradicio nais do que na coerência racional das declarações que ele é levado a fazer em algum campo do discurso político em que as declarações de ampla generalidade teórica são consideradas possíveis Aqui mais cedo ou mais tarde nosso historiador deve abandonar seu papel de estudante do pensamento como a linguagem de uma sociedade e tomarse um estudante do pensamento como filosofia ou seja em sua capacidade de fazer declarações gerais inteligíveis Mas como o historiador aproximouse de seu filósofo através de um estudo da linguagem mais ampla ele agora pode considerar o nível de abstração em que a linguagem do pensador tende a fazer com que ele opere e o nível de abstração em que as preocupações do pensador tendem a fazer com que ele use sua linguagem Agora pode dar alguma precisão de significado à expressão vaga todo pensador opera dentro de uma tradição pode estudar as exigências que pensadore tradição fazem um ao outro p 2001 Este relato sobre os anos 60 tem sido atualmente feito muitas vezes os estudantes têm à sua disposição copiosos resumos das questões envolvidas neste debate metodológico das faculdades5 Têm havido muitas reações levemente impertinentes a Dunn a Pocock e a Skinner e algumas tréplicas defensivas por parte dos próprios autores M as para aqueles de nós que pertencem a uma geração mais jovem para quem esta luta tinha a qualidade curio samente remota que as questões dos irmãos mais velhos sempre possuem a dificuldade sempre foi compreender qual tem sido o objetivo do estudo nãohistórico no sentido de Dunn da história das idéias Era óbvio para nós que como colocou Collingwood 5 O s m elhores são John G unnell Political Theory Tradition and Interpretation C am bridge M ass 1979 C onal Condren The Status and Appraisal of Classic Texts Princeton N J 1985 e Jam es Tully ed Meaning and Context Oxford 1988 A ESCRITA DA HISTÓRIA 277 devastadoramente trinta anos antes se alguém quisesse compreen der a história de algo teria realmente que realizar o relevante trabalho de pesquisar a evidência e elaborar o que as pessoas preocupadas com ela seriam capazes de fazer Maldição diz Hamlet você acha que eu sou mais facil de ser tocado do que uma flauta Aqueles eminentes filósofos Rosencrantz e Guildenstem acham tout bonnement que podem descobrir o que Parmenides está fazendo simplesmente o lendo mas se você os levar até o portão sul de Housesteads e disser Por favor distinga os vários períodos de construção aqui e explique que propósitos tinham em mente os construtores de cada período eles protestariam Acrediteme eu não posso Será que eles acham que Parmenides é mais fácil de ser entendido do que um fortim romano podre Maldição6 Se isso era tão óbvio em 1939 por que necessita ser dito novamente agora embora com um conjunto diferente de conside rações filosóficas em 1969 Dos comentadores dessas questões apenas Gunnell tratou desse problema encarandoo corretamente como um problema sobre o caráter da ciência política do século vinte M as a resposta particular que Gunnell deu à questão foi menos plausível e vou sugerir um a diferente Com o parte de seu tratamento do tema Gunnell esboçou uma história em que o desenvolvimento do behaviourismo na ciência política durante as décadas de 50 e 60 levou a ataques sobre a escrita da história do pensamento político como uma atividade de pouca importância Gunnell citou David Easton em 19 51 queixandose de que o pensamento político ocidental tradicional havia sido substituído por investigações na história do pensamento político atividade que vivia parasitaria mente das idéias passadas e não mais buscava promover uma ciência política empírica adequada ou construir uma estrutura apreciável de referência p 4 6 R G Collingwood An Autobiography Oxford 1970 p 3 9 4 0 278 PETER BURKE O behaviourismo significa aqui7 uma ampla noção de uma ciência política empírica marcada por estudos com freqüência quantitativos de leis gerais quase científicas do comportamento humano e por um divórcio rigoroso entre fatos e valores a avaliação ética e a explicação empírica envolvem dois tipos de proposições que para garantir a clareza devem ser fnantidas analiticamente distintas Gunnell p 7 Gunnell considerava o objetivo principal da crítica de Easton da história do pensamento político como um chamado implícito para a ciência política empí rica tornarse o m odo de pensamento dominante sobre política ele conjecturou que a reação dos historiadores de teoria política ao desafio dos behaviouristas em relação à importância de se estudar a tradição não era apenas para reafirmar que ela é relevante tanto para a ciência política quanto para a política mas para sustentar que ela era agora absolutamente crucial p 26 A idéia de uma grande tradição do debate político na Europa Ocidental tornouse hoje em dia declarou Gunnell o locus para uma crítica do tipo de atitude moderna representada por Easton e companhia seu repúdio à história do pensamento político transformouse em um antagonismo histórico entre um m odo de pensar sobre política expressável apenas na linguagem da civilização captada nos textos clássicos de Platão até Marx e um m odo de pensar expresso na pseudociência da análise dos sistemas ou seja do que for que a teoria behaviourista fosse a favor Escritores como Strauss Voegelin ou Arendt foram os principais exemplos de Gunnell de teóricos que abraçaram essa idéia da tradição e é claro pelo menos no caso de Strauss que a existência dessa tradição e a irredutibilidade de seu conteúdo a algum conjunto diretamente objetivo e moderno de expressões era na verdade central para uma visão política Gunnell assim explicou o movimento que Skinner D unn e Pocock atacaram como uma resposta à hostilidade da ciência 7 C om o o próprio Easton reconheceu ver David Easton A Framework o Political Analysis Englewood Cliffs NJ 1965 p 1922 A ESCRITA DA HISTÓRIA 279 política do pósguerra ao escrito de histórias do pensamento político e como uma asserção da continuada relevância de uma ciência política não quantitativa não behaviourista Houve no entanto dois problemas com o relato de Gunnell O primeiro foi que ele supôs que fosse esta idéia de uma tradição o principal objetivo de Skinner e dos outros e conseqüentemente criticou suas observações sobre a metodologia como uma falha em descobrir o objetivo da crítica da modernidade e da ciência política moderna implícito nos escritos de pessoas como Strauss p 24 De fato como vimos embora suas observações fossem aplicáveis a Strauss ou a Arendt os verdadeiros objetos de sua crítica explícita foram mais comumente as figuras mundanas dos anos 60 que escreveram sobre a história do pensamento político de um ponto de vista científicopolítico convencional como Merkl e Hacker O segundo problema sobre o relato de G unnel foi que ele m esm o reconheceu e documentou amplamente o fato de que o rei da escrita sobre a história do pensamento político que Easton atacava era em si o fruto de uma visão positivista e virtualmente behaviourista da política remontando pelo menos ao início do século vinte Há vários exemplos notáveis disso um dos melhores sendo a obra de George Catlin um dos autores escolhidos por Skinner para ser alvo de ataque em 1969 que escreveu tanto um a história dos filósofos políticos8 quanto também alguns trabalhos surpreendentemente positivistas sobre a possibilidade de um estudo genuinamente científico da política Conseqüen temente como admitiu Gunnell é difícil discernir nesta litera tura até o final dos anos 40 a fonte da retratação de Easton tanto do caráter do saber na história da teoria política quanto das intenções e preocupações que lhe deram origem p 21 o que deixa tanto a suposta investida behaviourista na história do pensamento político nos anos 50 quanto a retaliadora insis tência sobre um a grande tradição pelos antipositivistas parecen do sem significado 8 George Catlin A H istory of the Political Philosophers Londres 1950 280 PETER BURKE O erro de Gunnell e aquele cometido por muitos autores que escrevem sobre essas questões foi o de não levar a sério as reivindicações de behaviouristas como Easton de que o estudo da política tinha de envolver tanto fatos quanto valores mas que estes pertencem a dois reinos logicamente distintos a distinção fatovalor que remonta em sua forma drástica a Kant e que é uma base essencial para as ciências humanas modernas É verdade que a maioria dos cientistas humanistas conduzia sua prática profissio nal cotidiana para ser a exploração do aspecto fato desta distin ção mas todos reconheciam em seus momentos de maior reflexão que os valores políticos também tinham de ser produzidos de algum modo A combinação desse reconhecimento com uma tentativa muito débil de realmente considerar como os valores deveriam aparecer ou ser justificados é o aspecto mais notável da ciência política angloamericana e particularmente a americana na primeira metade do século vinte Poderíamos descrevêla como um kantianismo sem a teoria ética de Kant embora os próprios participantes9 mais freqüentemente a descrevessem como um hum anism o ou seja uma aceitação da distinção lógica entre declarações empíricas e valorativas mas uma rejeição da dedução transcendental de moralidade na verdade a ser encontrada no Groundwork of the Metaphysics of Morais M ais comumente esses cientistas humanistas supuseram que de algum m odo mais ou menos inespecífico a cidadania iria decidir A beleza está no olhar do espectador é um aforismo que nos recorda que os julgamentos de melhor ou pior envolvem avaliações subjetivas Mas isso não nega que o nariz de uma pessoa possa ser objetivamente mais curto que o de outra Similarmente há elementos de realidade válidos em uma dada situação econômica por mais difícil que possa ser reconhecêlos e isolálos Não há uma teoria da economia para os republicanos e outra para os democratas uma para os trabalhadores e outra para os empregadores uma para os russos e outra ainda para os chineses Em muitos princípios 9 George Sabine A History of Política Thought 3 ed Londres 1983 p v A ESCRITA DA HISTÓRIA 281 concernentes aos preços e ao emprego a maior parte não todos dos economistas está em quase total acordo Essa declaração não significa que os economistas concordem rigorosa mente no campo da política O economista A pode ser a favor do total emprego a qualquer custo O economista B pode não considerálo de importância tão vital quanto estabilidade dos preços Questões básicas relacionadas com os objetivos certos e errados a serem buscados não podem ser estabelecidas pela mera ciência como tais Elas pertencem ao reino da ética e dos julgamentos de valor A cidadania pode finalmente decidir tais questões O que o técnico pode fazer é apontar as alternativas factíveis e os custos reais que podem estar envolvidos nas diferentes decisões Mas a mente ainda deve se render ao âmago que está no domínio do coração Pois como disse Pascal o coração tem razões que a própria razão desco nhece10 Essa notável passagem ilustra aquela idéia de valores dos cientistas humanistas do início do século vinte como essencial mente questões do coração mais que da razão que não poderia haver uma base sistemática e racional para eles M as todos os homens os possuiriam e como cidadãos os utilizariam em suas decisões D ada esta opinião era obviamente de alguma importân cia prática que a cidadania não colhesse seus valores do ar ao acaso um a vez que não pudesse deriválos de uma dedução transcenden te e o principal propósito de se estudar a história do pensamento político o que manual após manual torna claro era prover o leitor que sendo em geral estudante de um colégio americano era encarado acima de tudo como um futuro cidadão de um conjunto de possíveis atitudes políticas que ele próprio não teria sido capaz de gerar elas eram o trabalho de gênios mas às quais poderia reagir e fazer sua escolha de um a maneira equilibrada e bem orientada Na verdade é impressionante quantos desses manuais eram muito avessos a se comprometerem com qualquer reivindicação sobre a verdade ou falsidade das teorias políticas que estavam considerando Sabine disse expressamente que encarada como 10 PaulSam uelson Economics Englewood Cliffs N J 1976 p 78 livrotcxto cm grande parte produzido nas décadas de 50 e 60 282 PETER BURKE um conjunto uma teoria política dificilmente poderia ser assumida como verdadeira11 O s autores que eles consideravam em geral não deveriam ter realizado reflexões em uma teoria verdadeira e nesse aspecto esses historiadores do pensamento político do início do século vinte diferiam de seus contemporâneos historiadores da ciência natural mas tendo constituído as fontes de uma tradição de pensamento político especificamente ocidental em que o leitor era levado a participar à medida que refletia sobre a amplitude das idéias descritas no m anual12 E importante reconhecer que essa visão negava a existência das teorias políticas genuinamente universais ou objetivamente verda deiras mas reivindicava a universalidade ou pelo menos a rele vância das questões de que os grandes textos tratavam foi isso que constituiu sua prolongada utilidade Devemos distinguir essa atitude daquela de escritores como Strauss ou Hans Morgenthau que insistiam explicitamente contra seus colegas nos departamen tos de política americanos em que eram verdades da teoria política não importa o tempo e o espaço 13 C ada visão implicava que os textos isolados deviam ser estudados pois representavam a respos ta de grandes mentes a um conjunto de problemas perenes tão familiares ao estudante do colégio americano dos anos 50 quanto ao cidadão da polis grega mas uma visão assumia um a abordagem mais neutra dos méritos das várias respostas ansiosa apenas para situálos na cultura ética ampla do Ocidente enquanto a outra visão tinha uma resposta própria clara aos problemas perenes Em geral a última abordagem tinha menos probabilidade de interessar à história da teoria política pois possuía um critério transhistórico de retidão moral e Morgenthau era por isso muito crítico da disciplina14 Strauss no entanto era um caso especial pois acreditava o que já observei antes que este critério estava dispo 11 Sabine Philosophical Tfieor p v 12 Este parece ter sido por exemplo o ponto de vista de Peter Merkl ver suas observações em Political Continuity and Change N ova York 1967 p 2656 13 H ans M orgenthau Dilemmas of Politics Chicago 1958 p 39 14 Ibid p 24 A ESCRITA DA HISTÓRIA 283 nível apenas às pessoas que haviam mergulhado no estudo da tradição e em seus textos A primeira destas duas visões era pelos padrões de uma cultura política de longo prazo uma abordagem curiosamente desengajada e estranha ao papel dos valorena vida política e foi provavelmente para seu caráter insatisfatório que Easton estava chamando a atenção em seu artigo de 195115 A idéia era de que um conjunto disparatado de valores seria inculcado na cidadania através de uma educação em um conjunto particular de textos plausíveis e não muito estapafúrdios que diferiam entre side um modo intelectual mente estimulante Esse conjunto disparatado poderia então ser harmonizado no interior da sociedade por algum tipo de processo institucional em que os cidadãos iriam decidir sobre os princípios pelos quais sua sociedade deveria ser governada A maior parte dos autores dos grandes textos eles mesmos teriam pensado ser uma visão absurda abordar os princípios políticos mas ela se com pro vou uma clara demonstração do interior da fortaleza das ciências humanas modernas de que era absurdo convencer os cientistas políticos angloamericanos Essa demonstração foi promovida por Kenneth Arrow16 ironicamente no mesmo ano do artigo de Easton 1951 com seu famoso teorema em que ele provou que não havia método de procedimento neutro de integração dos valores individuais em um conjunto de princípios sociais que não infringiam algumas suposições absolutamente óbvias e básicas que quase todos os cidadãos provavelmente fariam tais como aquela de que nenhum membro da cidade deveria ser um ditador sobre o restante A implicação da obra de Arrow era a de que aqueles que acreditavam que de algum modo uma burocracia neutra de técnicos em ciência política poderia fazer uso de sua cidadania para um a decisão efetiva sobre os valores a serem implementados no processo político poderiam agora ser vistos como assobiando no escuro 15 David Easton The Decline o f M odern Political Theory Journal of Politics 13 p 36581951 16 Kenneth Arrow Social Choice and Individual Valúes Londres 1951 284 PETER BURKE A obra de Arrow que se tornou particularmente influente depois da segunda edição revista de Collective Choice and Individual Values ser publicada em 1963 impressionou os mais inflexíveis dos cientistas políticos inflexíveis por seu rigor metodológico e os convenceu de que suas vagas suposições sobre o caráter social dos valores deveriam ser revistas A ssim fazendo ela se harmoni zou a uma visão de ajuste em meados dos anos 60 particularmente na América de que a filosofia política de um tipo aparentemente tradicional deveria ser mais uma vez escrita Creio não ser uma coincidência que o expoente mais proeminente de uma nova filosofia política John Rawls se considerasse e fosse amplamente considerado como um a espécie de kantiano pois o caminho mais provável para se extrair o cruel kantianismo da América na primeira parte deste século era pela construção de um novo e sofisticado kantianismo M as se a pluralidade de valores indeter minadamente estabelecidos não mais fizesse qualquer sentido no panoram a ético da ciência política americana então o papel tradicional da história do pensamento político naquela cultura estava minado Foi isso que Dunn e Skinner sentiram no final da década de 60 e sua polêmica contra a história tradicional do pensamento político prosseguiu com um sentido claro de que uma filosofia política moderna e sistemática era pelo menos possível Skinner disse precisamente isto17 Tudo em que eu desejo insistir é que quando se afirma que o objetivo do estudo histórico de tais questões é que possamos aprender diretamente a partir das respostas será percebido que o que conta como uma resposta em geral vai parecer em uma cultura ou período diferente tão diferente em si que dificilmente pode ser pelo menos útil até prosseguir pensando nas questões relevantes como sendo as mesmas no sentido absoluto requerido Mais rudemente devemos aprender a fazer a nossa parte pensando por nós mesmos A nova história do pensamento político era portanto a contrapartida da nova filosofia política do mundo de língua 17 Em Tully Meaning and Context p 66 A ESCRITA DA HISTÓRIA 285 inglesa nos anos 70 e 80 transferiu a carga de educar os cidadãos para os valores políticos para o fundo do corredor da academia e para os aposentos dos filósofos que estavam mais uma vez prontos para agarrálos Ironicamente na visão da teoria de Gunnell de que Strauss Voegelin e Arendt eram os primeiros alvos desta nova história escritores como Strauss e seus seguidores estavam como vimos mais bem situados para resistir a essa abdicação do que os aliados dos positivistas como Merkl A afirmação de que há objetivamen te uma única filosofia política verdadeira para ser extraída median te leituras esotéricas dos grandes textos a afirmação mais memo ravelmente associada a Strauss não é logicamente impossível nada além da reivindicação de que há uma fonte infalível de doutrina moral a ser encontrada na margem direita do Tibre Em certo sentido Strauss e Rawls estavam ambos tentando prover seus leitores com uma filosofia política única válida embora estivessem utilizando métodos muito diferentes para produzila A sobrevivên cia institucional do straussianismo nos departamentos de ciên cia política norteamericanos não é por isso de modo algum surpreendente Deveria ser dito que o ideal de uma nova filosofia política que proveria a América moderna e por implicação sociedades simi larmente situadas com um conjunto coerente de valores está parecendo muito menos plausível em 1990 que em 1970 Vinte anos de atividade filosófica impressionante serviram bastante para enfatizar a natureza disparatada dos valores modernos apesar de alguma complacência chocante a esse respeito por parte de alguns teóricos liberais A busca é mais uma vez como foi antes da obra de Arrow de uma teoria que possa acomodar o pluralismo radical dos valores embora ninguém atualmente suponha que a cidada nia irá ou poderia decidir a questão Nesse contexto não seria surpreendente se as pessoas passassem a acreditar que a reflexão em uma literatura política existente fosse o caminho para se pensar acerca dos valores políticos e trazer a variada população de uma sociedade liberal para algum equilíbrio intelectual amplo na 286 PETER BURKE verdade ist é mais ou menos o que Richard Rorty propõe embora a literatura relevante para ele seja muito mais ampla que aquela abrangida por Sabine Embora a retórica com que Rorty fala sobre o ironism o seja apropriadamente diferente do relativismo tími do de escritores como Sabine não é claro que haja um abismo intelectual tão grande quanto ele poderia supor18 O relato que eu estava fazendo é manifestamente sobre os teóricos de língua inglesa e o declínio da teoria política de língua inglesa no início do século vinte e seu renascimento no final dos anos 60 desempenham nele um papel crucial As questões em debate nas diferentes tradições intelectuais da França ou da Alema nha desempenharam de início um papel muito pequeno nessas discussões dos anos 60 e Skinner Dunn e Pocock sempre foram um pouco resistentes a qualquer tentativa de vincular seu trabalho àquele de teóricos como Hirsch que atirou contra esses debates ou Koselleck A principal razão disso foi que de seu ponto de vista o objetivo importante a ser estabelecido é a similaridade metodo lógica entre a história das idéias e a história de outras atividades humanas Foi isso que estava no âmago das repetidas tentativas de Skinner de analisar as afirmações políticoteóricas como atos do discurso e daí em diante a tratálas do mesmo modo como mais historiadores m undanos tratavam outros tipos de atos A questão mais ampla de como podemos alcançar uma compreensão histórica da atividade humana em geral não foi sua preocupação central N o continente no entanto essa era a questão chave e ò fato de a história humana consistir ao mesmo tempo do ato e da elocução era em geral aceitos como certos Dilthey por exemplo em The Construction of the Historical World in the Human Studies tornou claro que a compreensão e a interpretação principais temas da tradição hermenêutica estão relacionadas a três tipos de expressão conceitos julgamentos e estruturas maiores de pen samento ações e expressões emotivas 19 Sua orientação ou 18 Ver particularmente Richard Rorty Contingency lrony and Solidaricy Cambridge 1989 p 801 W nilthcy Selected Writings Cambridge ed HP Rickman 1976 p 219 A ESCRITA DA HISTÓRIA 287 mais propriamente a de Hegel foi seguida por todos os par ticipantes dos debates germânicos sobre hermenêutica O deba te metodológico inglês permaneceu assim oblíquo ao debate continental pois a assimilação de Skinner da elocução para a ação poderia encontrar um lar digamos assim ou no campo de Habermas ou naquele de Gadamer N a verdade com suas referên cias explícitas remontando a JCollingwood ele representava uma franca recuperação de um antigo respeito inglês pela hermenêutica germânica Por essa razão como recentemente observou David Hollin ger20 a crítica a Skinner de um ponto de vista pósestruturalista como as queixas derridaístas de David Harlan21 é falha pois se precisamos ter uma história desconstruída das idéias devemos pelo mesm o indício ter um a história desconstruída de tudo e Skinner provavelmente ficaria contente com esta conclusão assu mindo a premissa como verdadeira algo sobre o qual sua metodologia é estritamente falando neutra Por outro lado sua prática profissional e algumas de suas observações expressas suge rem que ele endossa pelo menos a possibilidade de se adquirir algum tipo de compreensão genuína do que os agentes históricos estão fazendo ou que uma compreensão deste tipo é uma suposi ção de procedimento tão profunda de se ter algo a ver com os outros seres hum anos a visão ínter alia de escritores como Davidson que questionar sua veracidade é simplesmente assumir o tipo de opinião radicalmente cética com a qual ninguém pode realmente conviver22 Agora podemos entender por que a história do pensamento político que realmente tem sido escrita contra esse fundamento metodológico muitas vezes tem parecido a seus detratores como 20 The Return o f the Prodigal The Persistence o f Historical Knowing American Historical Revieu 94 p 61021 1989 21 Intellectual History and the Return o f Literature American Historical Review 94 p 5816091989 22 Q uentin Skinner A Reply to my Critics em Tully Meaning and Context especialmente p 238 e 2468 288 PETER BURKE muito menos original e brilhante do que eles esperavam dos manifestos metodológicos Qualquer evidência que um historiador razoável aceitaria como parte de uma explicação do porquê um agente histórico fazia algo será aceitável para um historiador moderno do pensamento político e muitas vezes não haverá um método claro e simples para se determinar o que conta como evidência relevante U m bom exemplo disso é fornecido por um problema que os historiadores do pensamento político são em geral chamados a resolver a questão de haver ou não uma diferença substancial entre as obras produzidas pelo mesmo autor em diferentes épocas da sua vida Este é o problema do famoso coupure épistemologique nas considerações althusserianas de Marx é o problema do relacionamento entre o Príncipe de Maquiavel e seus Discursos entre as várias redações da teoria política de Hobbes entre os primeiros e os últimos escritos de Locke sobre a tolerância entre a República e as Leis de Platão etc como ilustra essa lista dificilmente há um teórico político importante em relação ao qual este não seja um problema significativo Evidentemente algumas leituras dos textos em questão os reconciliarão e outras exigirão que sejam mantidos separados A perspectiva de reconciliação pode em si parecer parte da justificativa para uma leitura particular mas o mesmo pode ocorrer com a perspectiva da separação por exemplo poderia explicar porque um autor teria abordado duas vezes o mesmo material Não há a priori uma suposição ou um modo e nesse aspecto a coerência entre os textos pode ser considerada diferente da coerência interna de um texto e nesse caso o ônus da prova fica por conta daqueles que consideram que um texto é internamente contraditório M as é difícil perceber o que seria adequado como um argumento a posteriori N ão é provável que nem a evidência interna nem a externa encerre o assunto O que conta como evidência interna irá se modificar se a bondade interpretativa solicitar que pretendamos uma coerência entre as obras enquanto a evidência externa na ausência de uma declaração inequívoca e confiável do próprio autor sobre o relacionamento entre as obras e eu desconheço tal A ESCRITA DA HISTÓRIA 289 declaração por parte de qualquer grande teórico não irá modificar qualquer leitura plausível delas Nenhum a teoria sobre a maneira de interpretar os textos cobrirá este caso pois o que está em jogo aqui é a verdadeira identidade de um texto Em uma visão possível o texto é o conjunto completo de afirmações de um autor sobre um tópico particular mente se como foi verdade por exemplo no caso de Maquiavel as obras em questão foram em certo momento difundidas simultaneamente pelo autor e em outra visão o texto de cada vez recebe um nome e tem repercussão separadamente Em ainda outra visão o texto tem cada elocução assumida separadamente Por que uma obra escrita durante tantos anos como O C apitai deveria ser considerada mais como uma unidade do que como várias peças separadas escritas em um período de tempo mais curto como o ensaio de Mill sobre a Liberdade e o Utilitarismo O objetivo dessas observações não é pôr em dúvida a possibi lidade de um a escrita inteligente e sensível da história do pensa mento político mas enfatizar que no final terá de haver algum julgamento por parte do historiador sobre como fazer seu relato particular e o que parece plausível como uma maneira de um ser hum ano se comportar nessas circunstâncias o que não pode ser decisivamente justificado contra uma variedade de outros julga mentos diferentes As qualidades intelectuais necessárias a um bom historiador antes de 1969 são aquelas necessárias após 1969 e não deveria ser surpreendente que as melhores histórias do pensamento político produzidas nas décadas de 70 e 80 tenham exibido muito claramente no todo seus comprometimentos me todológicos O que não foi mostrado claramente entretanto foi a convicção de que o que estavam escrevendo era história e não a exposição de um conjunto de valores para a cidadania do final do século vinte HISTÓRIA DO CORPO Roy Porter Eu disse que não éram os troncos nem pedras está muito bem Deveria ter acrescentado que também não som os anjos gostaria que fôssem os mas hom ens revestidos de corpos e governados por nossas imaginações Laurence Sterne Tristram ShancI Ressuscitando o corpo Em um livro provocativo1 Leo Steinberg chamou a atenção para dois fatos primeiro em um a tradição da pintura florescente durante a Renascença Cristo foi em geral retratado tocando ou senão cham ando a atenção para o seu pênis Segundo os histo riadores de arte consistentemente ignoraram essa notável forma de representação Steinberg explica a significação doutrinária do gesto ele foi designado para assinalar a humanidade do Filho o fato de Ele ter sido gerado não criado M as ele não está menos interessado Assistentesênior de História da M edicina do Instituto W ellcome em Londres 1 Leo Steinberg The Sexuality of Christ in Renaissance Art and Modem Oblivion Nova York 1983 292 PETER BURKE em explorar o ponto cego dos historiadores de arte A sexualidade do corpo de Cristo tornouse por assim dizer invisível porque os estudiosos operam tipicamente dentro de tradições interpretati vas para as quais os significados que são mentais espirituais e ideais assum em uma automática prioridade sobre as questões puramente materiais corpóreas e sensuais O ponto essencial de Steinberg aplicase de uma forma mais ampla Até há pouco tempo a história do corpo tem sido em geral negligenciada não sendo dificil se perceber o porquê Por um lado os componentes clássicos e por outro os judaicocristãos de nossa herança cultural avançaram ambos para uma visão fundamental mente dualista do homem entendida como uma aliança muitas vezes ansiosa da mente e do corpo da psiquê e do soma e ambas as tradições em seus caminhos diferentes e por razões diferentes elevaram a mente ou a alma e denegriram o corpo2 Esse é um aspecto totalmente familiar da metafísica jda nossa civilização que não necessita aqui de elaboração Ela se infiltra fundo e exerce um poder penetrante mesmo os escritores que buscaram resgatar o corpo da negligência ou da desonra ainda assim em geral perpe tuaram as velhas hierarquias Assim como sugere a minha epígra fe em meados do século dezoito Laurence Sterne podia defender os hom ens contra a calúnia de não serem puramente espirituais anjos mas apenas até o ponto de dizer que eles estão revestidos de corpos uma fórmula que preserva o dualismo tradicional e deixa o corpo de algum modo um tanto secundário e quase acidental3 Sterne não diz que os homens são seus corpos do modo que as feministas de hoje podem falar de Our Bodies Our Selves4 2 É claro que este é um m odo tolamente sim plista de se colocar um a situação bastante complicada Para as bases intelectuais dessas heranças culturais ver Bennett Sim on M ind and Madness in Ancient Greece Ithaca 1978 ER D odds The Greeks and the Irrational Berkeley e Londres 1951 e para o Cristianism o F Bottomley Attitudes to the Body in Western Christendom Londres 1979 3 Sobre Sterne ver Roy Porter Against the Spleen em Valerie GrosvenorMyer ed Laurence Sterne Riddles and Mysteries Londres e Nova York 1984 p 8499 Rodgers Ideas o f Life in Tristram Shandy Contem porary Medicine tese de PhD Universidade de East Anglia 1978 4 Para um a introdução às perspectivas feministas contem porâneas ver Susan Brown miller Femininity Londres 1984 A ESCRITA DA HISTÓRIA 293 A implicação dessa última observação é que atualmente há tentativas em movimento para demolir as velhas hierarquias culturais que privilegiaram a mente sobre o corpo e por força de analogia sancionaram sistemas inteiros de relações de poder reguladorregulado Esse processo desmistificador certamente está ocorrendo sendo fácil apontar as profundas mudanças culturais na última geração que subverteram a puritana e platô nica suspeição do corpo5 a revolução sexual e a permissividade em geral o capitalismo consumista as críticas acumuladas tanto pela contracultura dos anos 60 quanto pelo feminismo dos 70 e assim por diante6 Esta revolução cultural tem sido clara mente influente como sugere o caso do livro de Tenberg no redirecionamento da atenção dos estudiosos da m esm a maneira para longe das bem estabelecidas subdisciplinas idealistas como a história das idéias e no rumo da exploração da cultura material da qual faz parte a história do corpo Este novo empreendimento foi beneficiado por numerosos estímulos Graças a seu materialismo intrínseco o marxismo proporcionou uma matriz fértil e as obras nesta tradição como Rabelais and His World de Mikhail Bakhtin apresentaram mode los influentes do corpo encarado como um foco para a resistência e a crítica populares dos significados oficiais7 C om suas ambições de construir um a história total e simpatias pelo projeto de uma história científica biologicamente fúndamentada o saber Annaliste promoveu pesquisa em todas as dimensões da vida material desde 5 U m a depreciação evidentemente aumentada pelo recato tradicional pelo bowdleris mo etc V er P Fryer Mrs Grundy Studies in EnglisK Prudery Londres 1963 M Jaeger Before Victoria Londres 1956 6 Para interpretações críticas de tais processos com o m eras m odificações no interior do sistem a existente na verdade com o dessublim ação repressiva ver Hcrbcrt M arcuse One Dimensional M an Londres 1964 C Lasch The Culture oj Narcissism N ova York 1979 7 V er M Bakhtin Rabelais and his World Cam bridge M ass 1968 A Schmidt The Concept of Nature in Mane trad B Fawkes Londres 1971 294 PETER BURKE o berço até o túmulo8 A antropologia cultural tanto na teoria quanto na prática proporcionou aos historiadores linguagens para a discussão dos significados simbólicos do corpo em particular como contextualizados no interior de sistemas de mudança social9 e de um a maneira bem similar a sociologia10 e a sociologia médica acima de tudo11 encorajou os historiadores a tratarem o corpo como a encruzilhada entre o ego e a sociedade O feminismo acadêmico apontou para as questões costumeiramente negligencia das ou reprimidas do enfoque masculino e feminino da experiên cia12 E não menos o desenvolvimento maciço da demografia histórica durante a última geração nos impôs as rígidas estatísticas vitais de nascimento cópula e morte a serem encaradas como a chave para o entendimento de todos os aspectos de classe cultura e consciência13 Entretanto nós evidentemente não esperamos lançar com descuido todos estes ingredientes juntosem uma tigela do saber e verificar o surgimento automático de um a história do corpo como 8 Ver Peter Burke Revolutíon in Popular Culture em Roy Porter e M ikylás Teich ed Revolutíon in History Cam bridge 1986 p 20625 9 Para um exemplo de investigação ver Peter Burke The HistoricalAnthropologyofEarly Modem Italy Cambridge 1987 extremamente úteis são também Michael MacDo nald Anthropological Perspectives on the History o f Science and M edicine em P C orsi e P W eindling ed Information Sources in the History and Medicine Londres 1983 p 6180 10 B S Turner The Body and Soáety Exploradons in Social Theory Oxford 1984 O livro de Turner é até agora a tentativa mais ousada de se criar um a sociologia do corpo H á um a estimulante descrição sobre a negligência do corpo na literatura no ensaio de Virginia W oolf O n being ill em Collected Essays Londres 1967 p 193203 v IV Para os próprios problemas de W oolf com a incorporação ver S Trombley Aií that Summer She Was M ad Virginia Woolf and her Doctors Londres 1981 11 A m elhor pesquisa e a mais atual é Bryan S Turner Medicai Power and Social Knowledge Beverly Hills e Londres 1987 12 C om o um verbete bibliográfico ver o ensaio de Joan Scott neste volume 13 Arthur Im hof esteve à frente na tentativa de relacionar a demografia histórica técnica a questões m ais am plas da existência social Ver por exemplo seu Methodological Problems in M odem U rban Geography Graphic Representations o f U rban Morta lity 17501850 em Roy Porter e Andrew W ear ed Problems and Methods in the History of Medicine Londres 1987 p 10132 A ESCRITA DA HISTÓRIA 295 um prato pronto A natureza e os conteúdos da história do corpo assim como os métodos pelos quais ela deve ser pesquisada são em si os pom os da discórdia Abordagens O s estudiosos advertiram de que seria simplista demais assu mir que o corpo humano existiu eternamente como um objeto natural não problemático com necessidades e desejos universais afetado de maneiras variadas pela cultura e pela sociedade em uma época reprimido em outra liberado etc Tal divisão grosseira entre natureza e cultura seria obviamente inútil e seria equivocado e irônico proporcionar ao velho dualismo m entecorpo uma nova vida tentandose estudar a história biológica do corpo independente das considerações culturais da experiência e da expressão na linguagem e na ideologia14 O ponto essencial está bem estabelecido Evidentemente deve m os enxergar o corpo como ele tem sido vivenciado e expresso no interior de sistemas culturais particulares tanto privados quanto públicos por eles mesmos alterados através dos tem pos15 Se para se apontar para uma questão bem berkeleyana os corpos estão presentes para nós apenas por meio da percepção que temos deles então a história dos corpos deve incorporar a história de suas percepções M as como certamente poderia ser argumentado ainda que seja assim isso não significa que a história do corpo antes de tudo com ponha um projeto na história das idéias ou em Vhistoire des mentalités preocupada com as representações do corpo como 14 A interpretação psicofisiológica do corpo é evidentemente por si m esm a importante Ver Jonathan Miller The Body in Question Londres 1978 Prossegue o debate sobre a possibilidade de as perspectivas sociobiológicas poderem iluminar a pesquisa histórica 15 W I W atson W hy IsnttheM indBody Problem Ancient etn Paul K hcyernbend e Grover Maxwell ed Mind Matter and Method Minnenpoli 1966 p 92 102 L J Rather Mind and Body in Eigiteen Century Medicine Unulrcs 196S 296 PETER BURKE distintas digamos assim das representações do trabalho ou do poder N a verdade têm sido feitas tentativas para interpretar a história do corpo essencialmente como a explicação de suas representações no discurso utilizandose as técnicas pósestru turalistas e desconstrutivistas da análise textual16 Acredito no entanto que há um perigo real em se levar muito longe esse repúdio teorizado do positivismo vulgar Algumas das explorações mais brilhantes da anatomia do corpo têm sido os trabalhos de críticos literários e estudiosos afins engajados na análise do discurso e na desconstrução textual desprezando as representações alteradas do ego incorporado M as o abandono irresponsável do empirismo em prol da teoria e da hermenêutica tem suas próprias ciladas em particular o risco de extrapolações descontextualizadas derivadas do uso acrítico de matérias não representativas de evidência U m exemplo de uma obra capturada nesta armadilha é The Tremulous Private Body de Francis Barker uma tentativa corajosa abrangendo cinco séculos de interpretar a história do corpo na verdade sua dissolução 17 Através de uma leitura desconstrutivista do que parece uma amostra puramente casual de textoschave selecionados da cultura erudita Hamlet Anatomy Lesson de Rembrandt Diary de Pepys etc Barker antecipa a generalização de que o corpo que foi um dia um objeto público tornouse privatizado com efeito o local da vergonha narcisista no interior da cultura burguesa N a verdade declara ele o corpo desapareceu completamente como um instrumento de erotismo sendo substituído pelo livro Essas são considerações poderosas realmente para deduzir de poucos textos examinados em gloriosa pesquisa a consideração da textura da história no sentido amplo Além disso Barker tem tanta fé em seu método de leitura hermética textual e concentrada que siste maticamente ignora as pesquisas de outros estudiosos uma idiossincrasia que como apontou JRR Christie entre outras 16 Ver R Barthes Le Plaisir du Texte Paris 1973 J Derrida Writing and Difference Londres 1978 17 F Baker The Tremulous Private Body Londres 1984 A ESCRITA DA HISTÓRIA 297 coisas transforma em uma bobagem sua avaliação da pintura de Rembrandt18 Outras interpretações recentes da história do corpo que se servem principalmente dos preceitos da análise textual parecem igualmente abertas à objeção The Female Body in Western Culture um volume de ensaios que se estende desde a Gênese até Gertrude Stein alardeia o local daquilo que o editor chama de Reescre vendo o C orpo e enfatiza o modo como o corpo deve ser encarado não como um objeto de carne e osso mas como uma construção simbólica 19 Muito bem M as muitos de seus colabo radores vão adiante na suposição que sustenta o livro de Barker de que a difícil elucidação de um pequeno corpus de textos clássicos proporcionará reflexões privilegiadas sobre os problemas e parado xos da experiência de maneira geral Essa é uma suposição dúbia para não dizer arrogante Assim um ensaio como Speaking Silences Womens Suicide deixa de examinar o que alguns novelis tas nos relatam da consciência física de suas heroínas suicidas para oferecer conclusões gerais sobre a experiência do suicídio feminino na vida real não levando em conta um corpo substancial de pesquisa empírica dos testemunhos de autênticas suicidas que na verdade contradizem os achados apresentados20 U m exemplo desse gênero não mais satisfatório é The Body in Pain que modestamente apresenta o subtítulo de The Making and Unmaking of the World de Elaine Scarry21 Com binando a análise filosófica com a literária Scarry examina as representações intelec tuais artísticas e culturais da dor fisicamente localizada a partir da 18 O saber de Barker é gloriosamente derrubado em JR R Christie Bad News for the Body Art History 9 p 26370 1986 19 S R Suleim an ed The Female Body in Western Culture Cambridge M ass 1986 2 introdução do editor 20 M argaret Higonnet Speaking Silences W om ens Suicide em Suleim an ed The Female Body p 6883 muitas das assertivas ali feitas sobre mulheres suicidas que são abandonadas por hom ens vão contra a cuidadosa análise empírica de Olive Anderson Suicide in Victorian and Eduiardian England Oxford 1987 21 Elaine Scarry The Body in Pain The Making and Unmaking of the World Nova York e Londres 1985 298 PETER BURKE Bíblia passando por Marx até chegar aos dias atuais O objetivo de seu texto substancial é estabelecer que é inerente à essência da dor o fato de ela ser inexprimível Ela nos apresenta essa conclusão não apenas como uma nova interpretação mas como uma reflexão privilegiada em um reino da experiência humana conhecido por todos mas compreendido apenas por poucos M as o elitismo rarefeito é certamente negado pelos verdadeiros relatos de dor que longe de serem inexprimíveis são com freqüência expressos com exatidão e eloqüência que as pessoas comuns no passado nos legaram em grande abundância E claro que para alguém que aspira à mais alta exegese intelectual a pesquisa empírica pode como o próprio corpo parecer grosseira e vulgar Entretanto para os historiadores realmente preocupados com a maneira como as pessoas reais sentem dor uma obra como Geschichte unter der Haut de Barbara Duden análise pioneira das experiências de doença de quase duas mil mulheres na Alemanha no início do século dezenove preservadas através dos registros médicos guardados por seu médico Dr Storch oferece um avanço esclarecedor22 Está certo que os estudiosos sensíveis insistam na complexida de conceituai da história do corpo M as é pelo menos tão impor tante evitar flutuar na estratosfera da análise do discurso e descon siderar os materiais disponíveis mais cotidianos e tangíveis E de fato precisamos não ser tão negligentes sobre as possibilidades de se investigar a história do corpo através do uso de métodos empíricos mundanos E claro que em muitas questões nossa informação é irremediavelmente escassa Que posições de coito as pessoas usavam no século dezesseis ou no dezoito23 Dificilmente sabemos O primeiro registro escrito de diários e cartas é em grande parte reticente e onde é eloqüente provavelmente não 22 Barbara D uden GescKicKte unter der Haut Stuttgart 1987 D uden tam bém mostra com o seu grupo de mulheres compartilhava de um a visão de seus próprios corpos como dinâm icos e poderosos os grandes centros da criação da vida 23 V er a discussão na introdução a G S Rousseau e Roy Porter ed Sexual Underworlds of the Enlightenment Manchester 1987 A ESCRITA DA HISTÓRIA 299 é representativo e ainda há razões óbvias para um ceticismo saudável em relação à utilização do testemunho de fontes como gravuras pornográficas ou manuais de aconselhamento24 Além disso mesm o quando temos disponíveis numerosas fontes estas requerem uma interpretação sutil e ainda assim podem mistificar Q uando lemos em registros de admissão hospitalar que as mulhe res eram comumente admitidas nas enfermarias nos séculos dezoito e dezenove sofrendo de histeria quase sempre não está claro o que precisamente se é que havia algo estava fisicamente errado elas podiam ter experimentado paralisia parcial somática ou psicossomática podiam sobretudo ter estado sobrecarregadas de trabalho ou subalimentadas a histeria apesar do estereótipo comum era um a condição comum tanto ao pobre quanto ao rico Isso pode provar um exemplo em que o rótulo da doença serviu como pouco mais que uma senha administrativa para assegurar a admissão Seria um empreendimento arriscado esperar que nossos registros de diagnóstico médico nos proporcionassem uma história das doenças confiável objetiva e epidemiológica25 A pesar de tais dificuldades uma enorme quantidade de infor mação suficientemente confiável sobrevive para permitir a cons trução de perfis seguros da estatística vital dos corpos no passado M ais fundamentalmente há é claro registros de batismos e enterros para muitas partes da Europa do início dos tempos modernos em diante a partir dos quais os estudiosos desenvolve ram técnicas para se extrair indícios confiáveis dos índices de natalidade e mortalidade fecundidade fertilidade crises de morta lidade relacionadas a doenças e assim por diante a lei de assistência pública e os registros hospitalares também abrem janelas para a história da resistência e da enfermidade e para o preço pago pelo 24 Para um a introdução a tais fontes ver R M accubbin ed Unauthorized Sexual Behavior during the Enlightenment publicação especial de Eighteenth Centura Life m aio de 1985 25 V er G Risse Hysteria at the Edinburgh Infirmary Medicai History 32 p 122 1988 300 PETER BURKE trabalho duro26 Mas além disso sobrevivem arquivos particulares que fornecem indicadores extremamente delicados Por exemplo existem inúmeros livros de admissão para orfa natos e escolas além de registros de recrutamento para o exército e a marinha abrangendo um período de vários séculos N o meio deles temos acesso à idade e ao peso de algumas dezenas de milhares de indivíduos Aqueles da Inglaterra que sobrevivem foram processados para proporcionar um perfil coletivo da propor ção idadepeso de meninos e rapazes alterada no decorrer das gerações Tendo como base a investigação controlada de tais dados físicos podem ser feitas extrapolações sobre mudanças na ingestão alimentar tanto qualitativa quanto quantitativa gradientes de adaptação etc O s aspectos físicos podem oferecer um índice mais confiável do que os salários para o estabelecimento das alterações no padrão real de vida27 D a mesma forma possuímos um registro fotográfico que documenta agora quase um século e meio dos aspectos físicos das pessoas U m a vez mais não há necessidade de ridicularizar as másinterpretações que resultariam de um a ingênua confiança na veracidade das imagens visuais é claro que a câmera mente ou mais precisamente as fotografias não são instantâneos da realida de mas como as pinturas compõem artefatos culturais que transmitem complicados sinais convencionais codificados aos lei tores de primeira linha28 M as este embargo se aplica mais a algumas fotografias que a outras Retratos posados captam como as pessoas desejam ser lembradas todas limpas e embonecadas em seu melhor aspecto domingueiro M as os fotógrafos vitorianos também gostavam de 26 V er dassicam ente EA Wrigley e RS Schofield The Population History of England 15411870 Londres 1982 27 Roderick Floud Kenneth W achter e Annabell Gregory Height Health and History Cam bridge 1990 28 Para os problem as de interpretação de tal evidência ver D M Fox e C Lawrence Photographing Medicine lmages and Power in Britam and America since 1840 Spring field C onn 1988 Para interpretações valiosas ver David Piper The English Face Londres 1957 e Personality and the Portrait Londres 1972 A ESCRITA DA HISTÓRIA 301 fazer documentários casuais de instantâneos de rua e esses captavam as pessoas em seus movimentos e atitudes do cotidiano como resultado registraram tais aspectos como linguagem do corpo e espaço social de uma maneira mais informativa que qualquer texto impresso O arquivo fotográfico revela e confirma muita coisa sobre as transformações físicas da condição humana nos tempos modernos envelhecimento deformidades má nutri ção etc e também o que Goffman chamou de apresentação do ser linguagem corporal gestos e a apropriação do espaço físico29 A s fotografias permanecem estranhamente subexploradas como um recurso histórico A busca da história do corpo não é portanto somente uma questão He triturar as estatísticas vitais sobre o físico nem apenas um conjunto de métodos para a decodificação das representa ções E antes um chamado para a compreensão da ação recíproca entre os dois N o mundo quando surpreendemos o olhar superior do rico sobre o pobre este gesto era tanto físico quanto simbólico os nobres acima de tudo suas altezas eram tipicamente centímetros mais altos uma vantagem ainda aumentada pelos trajes imponentes vestuário e adereços com que se permitiam adornar seus corpos Dada a abundância da evidência disponível permanecemos incrivelmente ignorantes sobre a maneira como os indivíduos e os grupos sociais experimentavam controlavam e projetavam seus egos incorporados Com o as pessoas interpretavam o elo miste rioso entre o ego e suas extensões C om o administravam o cor po como um intermediário entre o ego e a sociedade Algumas tradições intelectuais poderiam se comprovar frutíferas na promo ção de tais explorações O s sociólogos do corpo ainda consideram a obra de W eber valiosa pois uma das resistências estáveis de sua avaliação da ética protestante está na revelação de como o que poderia ser assumido 29 V er E Goffm an Stigma Notes on the Management of Spoiled Identity Harmonds worth 1968 idem The Presentation of Self in Everyday Life Londres 1959 idem Strategic Interacdon Oxford 1970 idem Interaction Ritual Londres 1972 302 PETER BURKE antes como comprometimentos questões de salvação e justificação doutrinários abstratos desencarnados tornaramse de tal forma internalizados para terem profundas implicações no controle e na disciplina pessoal do corpo30 Por outro lado a psicohistória nos moldes freudianos apontou para uma cadeia de conseqüências completamente inversa mostrando como as atitudes para com o m undo em geral são comumente projeções dos m odos como as pessoas lidam com suas próprias funções corporais revelando assim as lutas interiores entre a consciência acima de tudo o inconsciente e sua expressão física M esm o que grande parte da psicohistória permaneça viciada pelo dogmático reducionismo edipiano e seja extremamente especulativa sua integração temática do interior e do exterior do privado e do público é altamente sugestiva31 Além disso algumas outras abordagens no interior da socio logia parecem particularmente dignas da atenção dos historiadores A fenomenologia e a etnometodologia promoveram ambas progra mas para a análise de encontros íntimos interpessoais que ao contrário digamos assim do funcionalismo parsoniano prestam a devida atenção ao desempenho do corpo como um órgão de comunicação conversamos com nossos corpos E corajosas tenta tivas têm sido feitas para aplicar tais métodos a apresentações sistemáticas e públicas dos egos sociais em comunidades históricas específicas como por exemplo na análise de Rhys Isaac dos estilos de vida na Virgínia colonial32 M esmo assim a frente de pesquisa atualmente está quando muito irregular Poucas áreas particulares têm recebido atenção e a maioria de nós está no escuro 30 Para a construção do Ego ver PM Spacks ImaginingaSelf Cam bridge M ass 1976 especialmente capítulo 5 JN M orris Versions of the Sei Nova York 1966 SD C ox The Stranger Within Tfiee The Concept of Self in Late Eighteenth Centura Literature Pittsburgh 1980 JO Lyons The lnvention of the Self Carbondale 1978 31 V er Lioyd DeM ause The Neui Psychohistory N ova York 1975 Devid E Stannard Sfirinking History On Freud and the Failure of Psychohistory Nova York e Oxford 1980 afirmou que a psicohistória desapareceu 32 Ver por exemplo Rhys Isaac The Transformation of Virgínia 17001800 Chapei llill 1981 A ESCRITA DA HISTÓRIA 303 N o âmago deste artigo vou me dedicar a algumas áreas especiais do problema para iluminar alguns campos potencialmente frutí feros para uma história do corpo e para a avaliação das implicações da pesquisa atual Corpo e mente É de importância básica um a compreensão do local subordi nado destinado ao corpo nos sistemas de valor religioso moral e social da cultura européia tradicional Muito antes de Descartes um dualismo fundamental invadiu a mentalité ocidental ser huma no significava ser uma mente encarnada ou na formulação de Sir Thom as Browne um anfíbio E um dualismo que muitos pensadores consideram paradoxal e mistificador devido à radical incompreensibilidade das intersecções entre a mente e a carne Não obstante tal dualismo tem sido uma força profundamente mode ladora do uso lingüístico dos esquemas classificatórios da ética e dos sistemas de valor A mente e ao corpo têm sido designados atributos e conotações distintos A mente é canonicamente supe rior à matéria Ontologicamente por isso a mente o desejo a consciência ou o ego têm sido indicados como os guardiães e governantes do corpo e o corpo deve ser seu criado M as este esquema tem um corolário crucial quando como um servo desobediente o corpo se rebela não são os punhos pés ou dedos os ofensores necessariamente considerados culpados mas as fa culdades mais nobres cujo dever era têlos controlado adequada mente E um fato que cria profundas tensões para todos os sistemas de controle pessoal por exemplo regimes de educação ou pu nição33 Em aspectos mais importantes esta subordinação hierárquica do corpo à mente sistematicamente degrada o corpo seus apetites 33 Assim todas as formas de materialismo provocam dilemas sobre a responsabilidade pessoal Para o Ilum inism o ver Lester Crocker An Age of Crisis M an and World in Eighteenth Centura FrencK Thought Baltimore 1959 304 PETER BURKE e desejos são encarados como cegos obstinados anárquicos ou no Cristianismo radicalmente pecaminosos pode ser encarado como a prisão da alma Por isso o corpo facilmente ofende cometendo o mal ou atos criminosos M as devido a sua verdadeira natureza sendo imperfeito até bestial ele pode paradoxalmente ser prontamente desculpado a fraqueza da carne A mente o ego o desejo ou a alma ao contrário devido ao seu ofício mais nobre é obrigada a ascender acima de tal desordem de tal guerra civil interna se implicada a vontade idealmente livre e nobre parece ainda mais culpada de ofensa A questão de precisamente como atribuir honra e vergonha deveres e responsabilidades respectiva mente à mente e ao corpo tem sido crucial para a avaliação do homem como um ser racional e moral no interior de sistemas de teologia ética política e jurisprudência tanto teóricos quanto práticos34 No século dezessete uma mulher sofre de alucinações seu comportamento é excêntrico e bizarro O s contemporâneos con cordam que ela está doente na verdade que ela está atacada de melancolia ou loucura M as que espécie de aflição é essa Poderia ser um distúrbio da sua mente Nesse caso provavelmente seria encarado como alguma forma de possessão demoníaca35 M as a idéia de tal invasão satânica era claramente perigosa no caso de um a bruxa suspeita exigiria um julgamento ou mais geralmente implicava em danação Houve assim uma boa razão para se antecipar um contradiagnóstico em vez disso a loucura era vista como somática em sua origem talvez o produto de um ferimento na cabeça ou de uma enfermidade intestinal melancolia lite ralmente um excesso de bile negra Evidentemente era de qualquer modo humilhante ser diagnosticada como um problema dos intestinos Swift Pope e outros satíricos ridicularizaram os soidisant poetas de gênio de sua época como não sendo realmente 34 Roger Smith Trial by Medicine lnsanity and Responsibility in Victorian Trials Edinburgh 1981 35 DP W alker Spiritualand Demonic Magicfrom Ficino to Campanella Londres 1958 Keith Thom as Religion and the Decline of Magic Harm ondsworth 1978 A ESCRITA DA HISTÓRIA 305 possuídos por aflatos mas apenas sofrendo de flatulência mas ao contrário da possessão satânica a doença somática tinha a válvula de escape de não pôr automaticamente em risco um destino espiritual uma alma imortal Discutindo tais questões historiado res perspicazes da insanidade como Michael M acDonald dem ons traram os perigos do anacronismo O que para o século vinte parecia muito bem ser um sinal de doença mental e por isso parte do ramo da psiquiatria poderia ter sido interpretado como um a indisposição física há três séculos atrás os limites do corpo são fluidos36 Questões da relativa responsabilidade do corpo e da alma confundiam as tentativas de explicar e conter a enfermidade Nos julgamentos das bruxas nos séculos dezesseis e dezessete era crucial determinar se os fenômenos da possessão eram devidos à doença à fraude ou a Satã E a tendência fortemente defendida pela profissão médica era cada vez mais enfatizar as causas orgânicas para aquilo que agora chamaríamos sempre de doença mental A vontade era assim garantido um álibi e o corpo quando doente era mais prontamente desculpado precisamente porque era mais baixo do que a mente teria sido Dois séculos mais tarde as percepções das relativas responsa bilidades da mente e do corpo não haviam se alterado muito Na época vitoriana tanto os leigos quanto os profissionais eram mais inclinados a designar diretamente como perturbação mental o desarranjo da consciência C om o declínio da crença literal em Satã e no fogo do inferno e o fim dos julgamentos das bruxas em suma com um certo grau de secularização arriscarse a um tal diagnóstico não mais provocava tais espectros N a verdade a emergência da psicoterapia criou um novo otimismo de prognós 36 Para os contextos intelectuais e culturais dessas idéias de loucura ver Michel Foucault Madness and Civilization a Historj of lnsanity in the Age of Reason Çraduzido por Richard Howard Nova York 1965 Michael M acdonald Mystical Bedlam Madness Anxiety and Healing in Seventeenth Centura England Cam bridge 1981 fundamental aqui é G S Rousseau Psychology em G S Rousseau e Roy Porter ed The Ferment of Knowledge Cambridge 1980 tico as enfermidades da mente poderiam ser tratadas e curadas assim afirmavam os psiquiatras progressistas mais facilmente que aquelas do corpo É óbvio que a nova tendência a se atribuir a responsabilidade da insanidade a distúrbios da consciência poderia carregar com ela formas distintas de estigma e censura todos tinham o dever de governar sua mente Mas uma nova simpatia se desenvolveu paralelamente As sociedades por demais individua listas e pressionadoras era explicado criavam grandes expectativas e árduas responsabilidades viver na alta sociedade gerava alta ansiedade Assim sob circunstâncias apropriadas as perturbações mentais ou como foram mais tarde chamadas os colapsos nervo sos poderiam incluir isenção social e despertar simpatia ou mesm o distinção Por isso a passagem de dois séculos testemu nhou profundas mudanças nos mapeamentos da mente e do corpo e os reagrupamentos de suas relações com enormes implicações para a política e para a terapia N ão devemos confundir essas mudanças nas explicações com o progresso positivo da ciência médica nenhuma ruptura cientí fica com provou os respectivos papéis da mente e do corpo na ação direcionadora Elas antes deviam ser vistas como sinais de reorientações culturais que repensavam as características da mente e do corpo Este objetivo que se aplica a revisões culturais mais amplas é igualmente pertinente ao problema de interpretação de episódios particulares Tom em os Freud N o início de sua prática psiquiátrica Freud concluiu que muitas de suas pacientes neuróticas haviam sido atacadas sexualmente quando crianças isso foi o que elas lhe disseram Por razões complicadas algumas profissionais algumas pessoais Freud abandonou essa interpretação adotando em vez disso a opinião de que os relatos das mulheres não eram acima de tudo lembranças mas antes fantasias enraizadas no inconsciente sobre acontecimentos traumáticos que na verdade jamais ocorre ram Assim desenvolvendo um a teoria de desejos reprimidos Freud deu origem à psicanálise Por isso ele passou de uma explicação essencialmente somática o ataque verdadeiro da etio A ESCRITA DA HISTÓRIA 307 logia do distúrbio mental para uma explicação localizada apenas na mente e propôs um tratamento igualmente psiquiátrico a cura pela conversa A grande maioria dos observadores de Ernest Jones em diante elogiou Freud por sua reflexão supostamente profunda no direcionamento da atenção para longe da vida do corpo e para aquela da consciência Podemos contudo considerar este elogio como refletindo o arraigado privilégio do intelectual sobre o físico A interpretação da mudança das explicações de Freud é um a questão absolutamente mais complicada37 Assim sendo as relações mentecorpo não são inatas mas dependentes da cultura Este relativismo é exemplificado por uma notável distinção cultural entre a experiência ocidental e a chinesa na atribuição da enfermidade o que foi mostrado pelo historiador e antropólogo de medicina Arthur Kleinman U m americano do século vinte sentese deprimido ele não consulta um clínico geral mas um psicoterapeuta é diagnosticado como sofrendo de um distúrbio psiquiátrico algum tipo de neurose o terapeuta investiga sua história de vida para recuperar sua felicidade A pessoa equiva lente na China ao contrário atribui uma enfermidade comparável a uma desordem e a uma causa físicas Seu médico confirma que sua doença é orgânica pode ser chamada de neurastenia e prescreve remédios Apontado como vítima de uma doença somática é permitido ao chinês assumir o papel do doente e pode por isso merecer simpatia e atenção Ao contrário se ele alegasse como seu correspondente americano alguma forma de perturbação mental teria sido uma admissão terrível e debilitante de defeito e desvio de caráter o que lhe teria trazido estigma e desvantagens38 37 Sobre Freud ver H F Ellenberger The Discovery ofthe Unconscious the History and Evolution ofDynamic Psychiatry N ova York 1971 RW Clark Freud The M an and the Cause Londres 1982 FrankJ Sulloway Freud Biologist ofthe Mind Nova York 1979 eJM M asson The Assault on Truth Freuds Suppression ofthe Seduction Tfieory Nova York 1983 38 Arthur Kleinm an Social Origins of Distress and Disease Depression Neurasthenia and Pain in Modem China New Haven 1986 Ver também Carney Landis e Fred Metder Varieties of Psychopathological Experience Nova York 1964 Para um a discussão mais am pla do papel do doente ver D Mechanic The Concept o f Illness Behaviour Journal of Chronic Disease 15 p 18994 1962 308 PETER BURKE Em outras palavras como demonstra a discussão de Kleinman sobre as construções rivais somáticas e psiquiátricas da perturba ção mental o corpo não pode ser tratado pelo historiador simplesmente como biológico mas deve ser encarado como me diado por sistemas de sinais culturais A distribuição da função e da responsabilidade entre o corpo e a mente o corpo e a alma difere extremamente segundo o século a classe as circunstâncias e a cultura e as sociedades com freqüência possuem uma plurali dade de significados concorrentes O estabelecimento do caso individual é um tema para ser negociado Muita coisa tem dependido de tais atribuições como por exemplo a questão prática da culpabilidade legal O s historiadores de medicina forense como Roger Smith elucidaram os dilemas U m tiro de um homem mata outro E o proprietário daquele corpo que deve ser o responsável Sim se sua mente dirigiu o tiro ou seja se houve mens rea uma intenção culpada não teria achado um tribunal dos séculos dezoito ou dezenove se ele estivesse fora de sua mente talvez até fora de si em conseqüência de enfermidade somática Se contudo a responsabilidade for mantida como a reparação deve ser exigida Durante os últimos dois séculos ela foi dirigida principalmente contra o corpo através de punição corporal ou capital Mais uma vez no entanto mudaram os sistemas de valor intervenientes especialmente a partir do final do século dezoito os reformadores penais declararam que era mais nobre ou mais hum ano não punir o corpo mas corrigir ou reformar a mente nos termos de Mably a punição deve antes atingir a alma que o corpo C om o Michel Foucault e Michael Ignatieff particularmente enfatizaram a intenção terapêutica que sustenta o sistema penal m oderno ainda determina outro exemplo da condição variável do corpo aquela que poupando o corpo serve apenas para reiterar sua inferioridade39 39 V er M Foucault Discipline and Punish The Birth of the Prison Harm ondsworth 1979 M Ignatieff A Just Measure of Pain Londres 1978 A ESCRITA DA HISTÓRIA 309 Tomemos outro exemplo U m homem é morto não por um tiro de outro mas devido a um microorganismo difundido por um portador O portador deve ser considerado moral ou criminalmente responsável pelo risco ou pelo desastre que seu corpo provocou Essa questão temse comprovádo extremamente complicada central à política de regulamentação das populações de alta densidade por burocracias médicas desde as epidemias de peste bubônica na Idade Média O que é notável entretanto como foi enfatizado pelos historiadores recentes de saúde pública é como os sistemas jurídico políticos do Ocidente têm considerado pouco os indivíduos respon sáveis pela destruição da saúde descarregada por seus corpos Apesar da emergência de sociedades de bemestar cada vez mais policiadas durante os dois últimos séculos as questões de saúde têm sido deixadas surpreendentemente a cargo de relacionamentos contra tuais privados e confidenciais entre o indivíduo e seu médico Ereuihon a Utopia de Samuel Buder em que é um crime ficar doente embora a criminalidade seja desculpada como uma doença proporciona um espantoso contraste Apesar da medicalização da vida as compulsões de saúde têm sido poucas Por exemplo a vacinação contra varíola legalmente constrangedora foi brevemente introduzida na Inglaterra vitoriana mas encontrando feroz oposi ção a legislação foi derrubada o mesmo ocorreu para o tratamento compulsório das doenças venéreas40 Essa solução certamente incor pora um sentido da propriedade inalienável e individual do corpo solidamente adiantada nas formulações secularizantes da filosofia política liberal do século dezessete em diante A s políticas e as banalidades no cumprimento da lei na filosofia política e na administração social freqüentemente só serão inteiramente com preendidas se seu enraizamento nas doutrinas sobre a propriedade e a privacidade do corpo forem antes entendidas41 40 W M Frazer History of EnglisK Public Health 1 8 3 41939 Londres 1950p 7072 106112 P M cHugh Prostitution and Victorian Social Reform Londres 1981 e J Walkowitz Prostitution and Victorian Society Cambridge 1980 41 A s dim ensões pública e privada são exploradas em R Sennett The Fali of Public Man Cam bridge 1976 310 PETER BURKE Policiando o corpo Há um estereótipo cultural profundamente estabelecido arrebatador em Rabelais42 insultuoso no interior da teologia cristã que retrata o corpo como um chefe rebelde senhor do desregra mento símbolo do excesso de comida bebida sexo e violência incorporação do princípio que Freud mais tarde intelectualizou como o id O s historiadores recentemente exploraram as tenta tivas de grupos sociais dominantes para restringir reprimir e reformar a mutilação do corpo Essas estratégias obviamente assu miram formas distintas O s estudiosos focalizaram sua atenção primeiramente sobre as reformas que são autoinfligidas implementando aspirações para um melhor autocontrole associadas à educação e à disciplina familiar Manuais para comportamento adequado tanto religioso quanto civil espalhando as máquinas de impressão do século dezesseis compuseram grandes estoques sobre a submissão e a obediência do corpo e sobre o cultivo das boasmaneiras da decência e do decoro Foucault declarou que a crescente preocupação com a boa saúde e a vida longa originadas no Iluminismo proporcionam mais um sintoma43 Vigarello acentuou a importância de se cultivar interna mente o corpo anárquico através da higiene da limpeza e do vestuário e Norbert Elias em particular estudou o processo civiliza dor visível no desenvolvimento dos controles do corpo corpos limpos hábitos limpos conversa limpa mentes limpas Além disso a pesquisa de Schama sobre a pureza e a disciplina do corpo entre os calvinistas holandeses ilumina a eficácia tanto social quanto psicológica de tais estratégias na criação de um cordon sanitaire contra as ameaças morais e religiosas tanto o papismo quanto a profanação consideradas sujas perigosas e contagiosas44 42 M Bakhtin Rabelais and his World Cambridge M ass 1968 43 Ver M Foucault A History of Sexuality v 1 Introduction Londres 1978 JL Flandrin Un Temps pour embrasser Paris 1983 44 V er em geral N Elias The Civiliting Process Oxford 1983 e mais especificamente S Scham a The Unruly Realm Appetite and Restraint in SeventeenthCentury H olland Daedalus 108 p 103231979 A ESCRITA DA HISTÓRIA 311 Falar em decência delicadeza e recato automaticamente sugere os vitorianos mas o vitorianismo antecedeu muito aqueles que portam seu nome Thom as Bowdler era um georgiano foi Wesley que colocou a limpeza próxima à divindade e o comportamento adequado do corpo em uma sociedade educada nunca foi tão divulgado quanto na época de Addison Steele e Mandeville Em obras como The Virgin Unmaskd M andeville explorou de forma m açante os significados ambivalentes da repressão corporal em que ocultar o corpo poderia ser m ais excitante do que revelálo45 O autocontrole físico prosseguiu intimamente ligado ao desejo de policiar os corpos alheios assim como de assegurar uma melhor ordem social e moralreligiosa Sobretudo os historiadores do início da França moderna como Muchembled Flandrin e Delumeau enfatizaram especialmente as tentativas das autoridades religiosas e civis de regulamentarem os corpos das pessoas comuns através da persuasão da prescrição e finalmente da coerção física46 M u chembled acima de tudo declarou que na tradicional cultura camponesa quase pagã o corpo desfrutava de um a elevada posição como um instrumento potente e que suas partes e produtos sangue fezes o pênis e o útero possuíam poderes mágicos Embora vulnerável à fome à doença e à morte o corpo era também a energia dionisíaca subjacente à devassidão e aos excessos orgíacos Essa contracultura carnavalesca do corpo ficou no entanto cada vez mais sujeita à vigilância sistemática e à repressão efetiva através dos instrumentos dos julgamentos das bruxas das cortes eclesiás ticas e da confissão intensificada pela ContraReforma além de incutir uma nova moralidade sexual subordinada ao casamento e à legitimidade 45 Para um a opinião do início do período georgiano ver Fenella Childs Prescriptions for Manners in Eighteenth Century Courtesy Literature tese de PhD Oxford 1984 46 Jacques Donzelot The Policing of Families trad Robert Hurley Nova York 1979 eanLouis Flandrin Am our et marriage Dixhuitième Siêcle 12 p 16576 1980 Ver tam bém M Bakhtin Rabelais and His World trad H Iswolsky Cam bridge M ass 1968 e J Starobinski The Bodys M om ent em Montmgne Essays in Reaáing Yale French Studies n2 64 p 273305 1983 312 PETER BURKE O início da Inglaterra moderna também testemunhou movi mentos paralelos conduzidos pelos puritanos pela reforma reli giosa da moral e dos costumes47 Eles podem ter alcançado algum sucesso O s demógrafos históricos demonstraram que os persona gens da bastardia eram em número muitíssimo menor na época de Stuart do que se tornaram posteriormente no ambiente mais secular da primeira nação industrial sugerindo talvez que a disci plina moral fosse efetiva48 A Inglaterra georgiana testemunhou mais ataques a uma cultura corporal anárquica com a regulamen tação dos esportes sanguinários e das lutas profissionais uma nova desaprovação dos duelos e as tentativas dos empregadores capita listas de insistirem no trabalho regular e na disciplina de horário em sua força de trabalho49 O s corpos plebeus estavam tradicionalmente no extremo re ceptor da coerção física o chicote o pelourinho a forca M as como Foucault particularmente enfatizou os corpos das pessoas também se tornaram sujeitos a uma nova tecnologia política do corpo e esperavase eram por ela regenerados as rotinas do fundo da fábrica os exercícios da escola a fadiga das paradas as punições do reformatório Desde a infância e o treinamento esfincteriano no seio familiar passando pela escola até o exército e o recinto da fábrica o estado trabalhava para produzir súditos dóceis e uma força de trabalho obediente através da disciplina sistemática dos corpos das pessoas50 Só recentemente os historiadores do presen te século sugeriram que a lógica do capitalismo relaxou um pouco 47 K W rightson English Society 15801680 Londres 1982 EJ Bristow Vice and Vigilance Purity Movements in Britain since 1700 Dublin 1977 48 P Laslett ed Bastardy and its Comparative History Londres 1980 49 R M alcolm son Popular Recreations in English Society 17001850 Cam bridge 1973 50 A s obras mais importantes de Foucault são Madness and Civilization a History of Insanity in the Age of Reason Londres 1967 The Order of Tfvings an Archaeology of the Human Sciences Londres 1970 The Archaeology of Knowledge Londres 1972 The Birth ofthe Cíinic an Archaeology of Medicai Perception Londres 1973 Discipline and Punish the Birth ofthe Prison Harmondsworth 1979 The History of Sexuality v I lntroduction Londres 1978 V er também C G ordon ed M Foucault PowerKnowledge Brighton 1980 especialmente o ensaio BodyPower p 5562 A ESCRITA DA HISTÓRIA 313 esta severa ênfase chamada protestante sobre o corpo discipli nado e sobre um asceticismo tão m undano o imperativo recen temente havia mudado da m ão produtiva e disciplinada tipo máquina para o corpo como consumidor cheio de deficiências e de necessidades cujos desejos devem ser inflamados e encora jados51 Focalizar a atenção sobre o problema do corpo seus perigos e suas disciplinas seu potencial para a profanação mas também seus poderes produtivos ajuda a compreender os numerosos desenvolvimentos disparatados tão freqüentemente estudados no isolamento e anacrônicamente através das sinalizações das discipli nas modernas Com o declarou Catherine Gallagher interpreta mos mal Malthus se por exemplo o consideramos simplesmente como o pai da demografia moderna52 N a verdade ele propôs um enigma dramaticamente novo com respeito ao bemestar moral dos organismos políticos Tradicionalmente o corpo saudável era a garantia do estado saudável Ele produzia ele reproduzia Mas segundo a contrasugestão de Malthus o corpo saudável devido a seus altos poderes reprodutivos podia realmente se comprovar inimigo do estado Assim o corpo privado e o corpo público podiam estar em desacordo Ou como enfatizou EP Thom pson deixamos escapar metade da importância da disputa pela disciplina de horário nas fábricas se a encaramos apenas em termos de racionalidade econômica e de heróicos capitães de indústria antes de tudo ela era parte de uma tentativa muito mais ampla de governar as pessoas através do controle de seus corpos53 Similarmente uma história da educação que se concentra exclusivamente em atingir habilidades como a leitura e a escrita 51 M Featherstone The Body in Consum er Culture Theory Culture Society 1 p 18331982 52 Para um a discussão das preocupações mais am plas de Malthus ver Patricia Jam es Population Malthus His Life and Times Londres 1979 capítulo 2 parte 4 e RM Young M althus and the Evolutionists The C om m on Context of Biological and Social Theory Past and Present 43 1969 p 10945 53 EP Thom pson Time W orkDiscipline and Industrial Capitalism Past and Present 37 p 5697 1967 314 PETER BURKE deixará escapar uma das principais funções da escola para crianças pobres de caridade ou elementar do passado incutir a obediência física ou a educação como um processo para domesticar as crian ças54 Da mesma forma seria limitado estabelecer os objetivos dos sanitaristas e dos higienistas apenas em termos de miasmas e drenagens suas preocupações não eram menores com respeito à sujeira moral e à regulamentação do contágio e da contaminação sexual55 D o mesmo modo os rituais da medicina à beira do leito ou no hospital não podem ser inteiramente explicados pelos achados da ciência médica Questões mais amplas de tabus e decoros corporais também ditam a natureza e os limites dos exames diagnósticos do tratamento cirúrgico e da emergência de novas especialidades intervencionistas e sensíveis ao gênero como a obstetrícia humana56 Estas questões mais amplas mostram porque as políticas do corpo exigem atenção por direito próprio tais questões são muitas vezes negligenciadas se seguimos a demografia histórica a história da educação a história da medicina e assim por diante através de uma visão fechada isolada e estreita Permanece obscuro entretanto até que ponto é exato um retrato apresentado por historiadores como Muchenbled que encaravam as culturas populares do corpo como sendo triunfal mente suprimidas em nome do estado soberano e terapêutico e dos ditames da racionalidade capitalista As aspirações podem bem ter superado muito as realizações A cultura de elite não parece ter subjugado tanto a cultura popular como dela se separado desen volvendo sua própria linguagem corporal seus rituais e seus 54 Sobre as dim ensões mais am plas da educação ver B Haley The Healthy Body and Victorian Culture Cam bridge M ass 1978 55 Virginia Sm ith Physical Puritanism and Sanitary Science Material and Immaterial Beliefs in Popular Physiology 16501840 em W F Bynum and Roy Porter ed Medicai Fringe and Medicai Orthodoxy 1 7 5 0 1 8 5 0 Londres 1986 p 17497 56 Ver R L Engle e BJ Davis Medicai Diagnosis Present Past and Future Archives of Internai Medicine 112 p 51243 1963 A ESCRITA DA HISTÓRIA 315 refinamentos distintos desmaterializados e expressivos57 O s cos tumes sexuais do folclore popular por exemplo a tradição da relação sexual préconjugal seguida do casamento por gravidez e a magia médica popular comprovaramse imensamente elásticos diante da doutrinação e da infiltração vinda de cima Igualmente as políticas de controle do comportamento corpo ral à beira dos riscos colocados pela doença epidêmica e pelas sexualidades perigosas eram imensamente complexas N a Ingla terra as aspirações do movimento de saúde e higiene pública do início do período vitoriano associadas ao utilitarismo e a Edwin Chadwick foram diretas e estatais Nenhuma aliança desse tipo entre o governo central e a drenagem de esgotos pode ser encon trada entretanto em Paris M as mesmo na Inglaterra o empreen dimento do policiamento dos corpos pela medicina estatal rapida mente sossobrou naufragado nas rochas dos corredores de políti cos concorrentes inclusive grupos de puristas e feministas furiosos diante das tentativas dos legisladores do sexo masculino de contro lar os corpos das mulheres através do duplo padrão Por toda parte a idéia superficialmente atraente de que o crescimento do poder do estado tem sido dirigido para a subordinação social do corpo passa a ser ingênua e nada convincente58 O sexo o gênero e o corpo Se a sociedade européia através de la longue durée foi um patriarcado e ainda carrega pelo menos suas cicatrizes até que ponto o patriarcado em si foi um sintoma ou uma conseqüência direta da diferenciação entre os corpos masculino e feminino um a diferença digamos assim não simplesmente biológica mas 57 Para tais divisões ver P Burke Popular Culture in Early Modem Europe Londres 1978 H C Payne Elite versus Popular Mentality in the Eighteenth Century Studies in Eighteenth Century Culture 8 p 20137 1979 58 A m elhor e mais recente introdução está em Frank Mort Dangerous Sexualities MedicoPolitics in England since 1830 Londres 1987 316 PETER BURKE constituídano interior das realidades sociais Será que a razão para a tradicional subordinação das mulheres aos homens foi primária e essencialmente física devido às gestações sem fim que os maridos egoístas forçaram sobre elas na época anterior ã contra cepção efetiva algemaramnas às crianças e à vida doméstica ao envelhecimento prematuro à exaustão e freqüentemente à morte por doenças do parto e que além disso as confinavam em uma cultura de gueto apenas para mulheres manchada de sangue menstruai e das impurezas do parto Assim declarou Edward Shorter em sua History of Womens Bodies59 concluindo que as mulheres finalmente durante o último século se emanciparam de suas cadeias biológicas primárias pelo advento da gravidez segura da contracepção e do aborto legalizado que proporcionandolhes o controle sobre sua própria fertilidade pavimentaram o caminho para a família m oderna para a família igualitária e até para a sociedade pósfamília O que não se pode duvidar é que os tradicionais médicos teólogos e filósofos do sexo masculino atribuíam a subordinação das mulheres à sua condição biológica inferior dentro do esquema da Criação De acordo com Aristóteles e seus seguidores as mulheres eram machos defeituosos ou monstruosos seres nos quais a genitália designada para ser do lado exterior do Corpo por falta de calor ou de força falhou na extrusão Com sua natureza mais fria e mais fraca e sua genitália contida internamente as mulheres eram essencialmente equipadas para a criação de filhos não para uma vida racional e ativa dentro do fórum cívico As mulheres eram criaturas privadas os homens eram públicos60 Thom as Laqueur declarou que essa conceituação médica da natureza das mulheres foi corroída e substituída por volta do final do século dezoito610 sexo feminino deixou de ser visto literalmen 59 E Shorter The Making of the Modem Family Londres 1976 60 J M orsink Aristotle on the Generation of Animais W ashington 1982 61 T Laqueur O rgasm Generation and the Politcs o f Reproductive Biology em C Gallagher e T Laqueur ed The Making of the Modem Body Berkeley e Los Angeles 1987 p 141 Com parar com Pierre Darm on Le Mythe de la procréation à Vage baroque Paris 1977 A ESCRITA DA HISTÓRIA 317 te como uma versão inferior do masculino tornandose em vez disso encarado como essencialmente diferente mas complemen tar O s fisiologistas haviam acabado de afirmar que o aparato reprodutivo sexual feminino era radicalmente distinto daquele dos homens opinião confirmada pela descoberta das funções dos ovários e da natureza do ciclo menstruai Isso por sua vez indicava que não havia nenhuma boarazão biológica por que as mulheres devessem ser exclusivamente seres ativamente sexuais isto é eróticos ao contrário do dogma médico clássico não era necessá rio qualquer estímulo sexual para as mulheres conceberem elas tinham apenas de servir como receptáculos de sêmen Havia nascido a passiva e dessexualizada mulher vitoriana embora pace Laqueur deva ser destacado que Peter Gay e outros historia dores declararam que as mulheres vitorianas não eram absoluta mente vitorianas naquele sentido seria um grande erro confun dir com a realidade algumas prescrições para o comportamento feminino adequado62 Laqueur busca relacionar esta composição do corpo m oder n o à m udança de lugar das mulheres na sociedade Dessexuali zada a esposa tornouse o anjo da casa dócil frágil desapaixo nada e por isso seu relato encaixa bem com a recente análise da emergência de esferas separadas para os papéis domésticos m asculino e feminino63 Declarando que a ciência não emerge de um a sim ples lógica da descoberta mas proporciona um a forma articulada a pressões sócioideológicas Laqueur nega que a nova imagem do gênero fosse produto de pesquisa científica autôno ma M as surge assim um enigma ovogalinha Aceitamos como indica o argumento de Laqueur e muitos estudiosos feministas sugerem que as forças culturais isto é a ideologia patriarcal traduzida em poder institucional foram os primeiros responsá veis pelo encerramento das mulheres em casas de boneca Se 62 P Gay The Bourgeois Experience Victoria to Freud v 1 A Sentimental Educatíon v 2 The Tender Passion N ova York 1984 1986 63 Leonore D avidoffe Catherine Hall Family Fortunes Men and Women o the English Middle Class 1 7801850 Londres 1987 318 PETER BURKE assim for trnase urgente demonstrar por que se pensava que os anos imediatamente anteriores e posteriores a 1800 fossem essen ciais para a transformação da posição social das mulheres O u antes deveríamos seguindo Shorter subscrever um rela to mais materialista em que os grilhões biológicos gestações múltiplas etc principalmente explicam a prolongada servi dão das mulheres e se acredita que os achados biomédicos contracepção aborto etc fizeram mais pela emancipação das mulheres do que a agitação das feministas M as se com Shorter aceitarmos o dínam o biomédico da história como podemos explicar por que o fantasma do patriarcado continua a mandar m esm o hoje uma vez que a emancipação biológica foi suposta mente alcançada Talvez a resposta seja a de que não precisamos nos empalar nos chifres de um a falsa dicotomia a idéia de que as explicações para a identidade do gênero podem ser simplesmente sociocul turais ou simplesmente biocientíficas U m a via de escape é na verdade assinalada por relatos de Foucault e de outros sobre a transformação do discurso sobre o sexo durante o século deze nove64 Foucault destacou corretamente que a noção popular de que o sexo supostamente tão abertamente discutido durante o livre século dezoito65 foi silenciado no furtivo século dezeno ve é absolutamente falsa Nenhum século viu um a discussão do sexo tão extensiva quase obsessiva M as o foco da atenção mudou O s tratamentos iniciais como aquele encontrado no manual popular Aristotles Masterpíece consideravam o encontro sexual essencialmente como a ação de corpos de acordo com as urgências e os apetites da natureza primeiramente designada para assegurar 64 M Foucault The History of Sexuality v 1 lntroduction Londres 1978 65 Para a reivindicação do Ilum inism o de que o erótico é o saudável ver Hagstrum Sex and Sensibility Erotic Ideal and Erotic Lovefrom Milton to Motart Londres 1980 Roy Porter Mixed Feelings the Enlightenment and sexuality in Britain em PG Boucé ed Sexuality in Eighteenth Century Britain Manchester 1982 p 127 A ESCRITA DA HISTÓRIA 319 a perpetuação das espécies66 O discurso sexual do século dezenove pelo contrário presta uma extraordinária atenção às desordens à anormalidade e aos desvios sexuais Acima de tudo elaborou uma psicopatologia de perversões sexuais vinculando essas a práticas como a masturbação e a condições como a histeria O sexo foi visto portanto à luz da psiquiatria no espaço de uma nova construção teórica a sexualidade 67 Essa análise ilumina e ajuda a resolver o dilema levantado pelas análises divergentes de Shorter e Laqueur Pois poderia parecer que ao nos aplicarmos para a mudança das concepções das mulheres no século dezenove nossa atenção não deveria estar focalizada literalmente na história biomédica de seus corpos nem principal mente sobre as pressões em mutação no casamento e na família mas antes no desenvolvimento de uma nova metafísica do femini no Isto encontra uma matriz em uma psicofisiologia da materni dade e estava intimamente associado ao que Elaine Showalter corretamente nomeou de o padecimento da fêmea que era no caso extremo o padecimento de ser fêmea68 Este novo discurso finalmente enclausurado na teoria psicanalítica freudiana na ver dade recuperou o velho biologismo anatomia é destino mas o mascarou em uma nova roupagem fantasiosa a inveja do pênis estava acima de tudo apenas na mente N o caso do próprio Freud aspiravase à liberação das mulheres embora não a partir dos homens mas de suas próprias neuroses69 E por isso que apesar do tom eupéptico a emancipação biológica teve uma 66 Roy Porter Spreading Carnal Knowledge or Selling Dirt Cheap Nicolas Venettes Tableau De LAmour Conjugal in Eighteenth Century England Journal of European Scudies 14 p 233551984 PG Boucé Aspects o f sexual tolerance and intolerance in eighteenthcentury England British Journal of EighteentfiCentury Studies 3 p 180 1980 67 Para um a dim ensão desta nova psiquiatria sexual ver EH Hare Masturbatory Insanity The History o f an Idea Journal of Mentaí Science 108 p 125 1962 68 Elaine Showalter The Female Malady Nova York 1985 69 Foi feita um a tentativa de unir a psicanálise com o feminismo em Juliet Mitchel Psychoanalysis and Feminism Nova York 1974 Para um conjunto de opiniões muito mais céticas ver Charles Bernheimer e Claire Kahane ed In Doras Case Freud Hysteria Feminism Nova York 1985 320 PETER BURKE importância um pouco inconsistente para as mulheres deste século em vista da emergência de outras disciplinas as variedades da psicanálise que oferecem novas racionalizações para a inferioridade neuroses das mulheres70 Uma agenda Acabei de examinar três áreas chaves em que o nosso conhe cimento do corpo tanto na realidade quanto nas representações é crucial para interpretações mais amplas da mudança social Em cada uma delas o debate historiográfico já é intenso A guisa de coda para esta pesquisa superficial quero apontar sete outros ramos da história do corpo que merecem íntima atenção mencio nando nas referências as obras notáveis já publicadas 1 O Corpo como uma Condição Humana As religiões as filosofias e as literaturas do mundo fazem uma apreciação em coro sobre a condição humana sobre o nascimento a cópula e a morte71 M as com que especificidade e direcionamento as doutri nas religiosas predominantes ou as têmperas artísticas de determi nadas épocas se relacionam refletem compensam com as expe riências reais da vida encarnada72 Por exemplo será que a cultura obcecada com a morte que Huizinga chamou de o declínio da Idade M édia foi uma reação reflexa às realidades das epidemias de peste bubônica que assolaram a Europa no século quatorze Ou 70 Para perspectivas gerais úteis sobre a historiografia do sexo ver Jeffrey W eaks Sex Politics and Society Londres 1981 Michael Ignatieff H om o Sexualis London Review of Books p 89 m arço de 1982 71 Para atitudes em relação à morte ver J M cM anners Death and the Enlightenment Oxford 1981 P Ariés The Hour of our Death Harmondsworth 1981 e W F Bynum Health Disease and Medicai C are em G S Rousseau e Roy Porter The Ferment of Knowledge Cambridge 1980 p 21154 72 V er a discussão em J Broadbent The Image o f G od or Two Yards o f Skin em J Benthall e T Polhemus ed The Body as a Medium of Expression Londres 1975 p 30526 A ESCRITA DA HISTÓRIA 321 seguindo Camporesi podíamos considerar melhor os elementos macabros do final do Cristianism o medieval o fascínio por Cristo pregado na cruz os corpos incorruptíveis dos santos e assim por diante como uma expressão de um amor vibrante pela vida e uma absorção do espírito gela carne Ou tomandose um período posterior será que existe um elo genuíno como sugere Im hof entre a recente garantia de uma existência temporal mais segura e prolongada e por outro lado uma crença decadente na imortali dade pessoal Usandose a formulação de Imhof a expectativa de vida que foi um dia infinita está agora reduzida a cerca de setenta anos73 2 AJForma do Corpo N a arte na escrita criativa na ciência e na medicina mas não menos em provérbios74 frases feitas e metáforas o corpo assume uma forma visual ou visualizada Magro ou gordo bonito ou feio o espelho do universo o modelo dos animais a quintessência do pó cada quadro conta a sua história e incorpora um sistema de valor Poucos historiadores até agora prestaram muita atenção à linguagem como aquela contida por exemplo nas metáforas de vida e morte como um veículo para mensagens ocultas sobre o corpo Ainda menos historiadores gerais em oposição aos historiadores especialistas de arte ponde raram profundamente sobre a significação das imagens visuais verdadeiras dos corpos em retratos em efígies fúnebres anato m ias ou mesmo em álbuns de instantâneos como evidência histórica Muito freqüentemente os historiadores utilizam a evidên cia visual antes como meras ilustrações do que como coisas a serem explicadas U m a melhor integração das fontes escritas e visuais é um a remota prioridade75 73 P Cam poresi The lncorruptible Fíesh Bodily Mutation and Mortification in Reiigion and Folklore trad de T CroftMurray Cambridge 1988 74 Para os provérbios ver F Loux Sagesses du corps Paris 1978 75 Sobre o importante cam po da fisiognomia ver G Tyler Pfiysiognom in the European Novel Princeton 1982 M Shordand The Body in Question Some Perceptions Problems and Perspectives of the Body in Relation to Character c 1 7501850 Tese de PhD Universidade de Leeds 1985 322 PETER BURKE 3 A Anatomia do Corpo O s corpos são objetos para a contem plação externa eles enfrentam o mundo de fora M as são também subjetivos integrais ao ego interno Estranhamente contudo a maior parte dos relatos da história do ego76 do caráter e da psicologia pessoal tem muito pouco a dizer sobre como as pessoas têm compreendido seus próprios corpos e com eles se relacionado Precisamos saber muito mais sobre o modo como os indivíduos em particular e as culturas em geral atribuíram significado a seus membros e órgãos suas constituições seu corpo Qual é a topo grafia emocional e existencial da pele e dos ossos O que as pessoas queriam dizer quando falavam literal e figuradamente de seu sangue77 sua cabeça ou seu coração suas entranhas seus espíritos e seus humores Com o esses órgãos e funções incorporavam emoções experiências e desejos Com o se interrelacionavam os significados privados e os públicos as conotações subjetivas e as médicas Q uando alguém se sentia velho ou jovem ou na verdade jovem de coração e o que significava a sucessão de tais idades e períodos E como as pessoas pensavam em seus corpos seus incômodos e suas dores quando ficavam doentes O corpó é o sistema de comunicações primário mas os historiadores prestaram pouca atenção a seus códigos e chaves os antropólogos podem ter muito a nos ensinar aqui78 4 Corpo Mente e Alma Eu aludi anteriormente ao fato de que os territórios da mente e do corpo não são fixos menos ainda fixos pela biologia mas possuem limites sujeitos à negociação com sistemas particulares de valores julgamentos e deveres Este 76 V er nota 30 77 Richard M Titm uss The Gift Relationship From Human Blood to Social Policy Nova York 1971 e mais geralmente sobre a ressonância metafórica do corpo C G H elm an Feed a C old Starve a Fever Folk M odels o f Infection in an English Suburban Community and their Relation to Medicai Treatment Culture Medicine and Psychiatry II p 10737 1978 idem Culture Health and Illness Bristol 1984 JB Loudon ed Social Anthropology and Medicine Londres 1976 78 J Lane The Doctor Scolds M e The Diaries and Correspondence o f Patients in EighteenthCentury England em Roy Porter ed Patients and practitioners p 20747 A ESCRITA DA HISTÓRIA 323 sentido do ego uma totalidade dividida em capacidades e funções distintas um corpo espiritualizado e uma mente encarnada com freqüência mutuamente em desacordo obviamente tem sido cen tral às teorias éticas aos códigos de jurisprudência aos programas pedagógicos e mais geralmente às idéias do lugar do homem na natureza N a verdade podese dizer que as relações mentecorpo e ainda mais as relações corpoalm a não apenas constituem um problema interior à ética e à teologia mas geram o verdadeiro ímpeto com o mistério por trás delas para suas profundas especulações O s elos e as divisões entre a mente e o corpo a experiência e as lesões claramente não são menos centrais à história das doenças e dos remédios como testemunham as condições psicossomáticas como a histeria79 e a hipocondria80 Devemos nos lembrar de que as filosofias e as visões do mundo do homem e de sua natureza são em geral atributos de uma metafísica freqüentemente não mencionada do corpo hum ano81 5 Sexo e Gênero Graças às estudiosas feministas a constituição e a reconstituição do sexo e do gênero formam uma das muito poucas áreas de análise do corpo de modo específico o corpo feminino imediatamente atraente mas profanado desejável mas perigoso que tem sido pesquisada minuciosamente E absolutamente impossível discutir aqui a variedade dos tópicos cobertos nesta área ou mesmo relacionála nas referências82 U m a conclusão importante que parece 79 Para a histeria ver I Veith Hysteria the History of a Disease Chicago 1963 80 Para a hipocondria ver C M oore Backgrounds of English Literature 1 7001760 M inneapolis 1953 O Doughty The English Malady o f the Eighteenth Century Review of English Studies 2 p 257691926 E FischerHomberger Hypochondria sis o f the Eighteenth Century N eurosis o f the present Century Bulletin of the History of Medicine 46 p 3914011972 Roy Porter TheR ageofP arty a Glorious Revolutíon in English Psychiatry Medicai History 27 p 3550 1983 81 L J Rather Mind and Body in Eighteenth Century Medicine Londres 1965 W I M atson W hy Isnt the MindBody Problem Ancient em PK Feyerabend e G Maxwell ed Mind Matter and Method M inneapolis 1966 82 V er Carroll SmithRosenberg e Charles Rosenberg The Female Animal Medicai and Biological Views ofW om an and Her Role in NineteenthCenturyAmerica em Judith W Leavitt ed Women and Health in America M adison 1984 p 1227 Nancy F Cott Passionlessness an Interpretation o f Victorian Sexual Ideology 17901850 ibid p 5789 C arl N Degler W hat O ught to Be and W hat W as 324 PETER BURKE estar emergirído é digna de nota o fato de nenhuma atitude isolada e uniforme em relação à política do corpo feminino visàvis a socie dade existente ou uma sociedade reformada ter sido adotada pela opinião feminista As escritoras discordavam Por exemplo muitas mulheres militantes buscavam a emancipação sexual outras acha vam que o avanço está na emancipação do sexo Muitas feministas declararamse pela identidade essencial entre os homens e as mulhe res unidos pelo atributo comum da razão outras pela identidade construída sobre os aspectos singulares do corpo feminino por exemplo sua capacidade para engravidar A idéia de um movimen to feminista único progressivo precisa ser finalmente descartada O que permanece lamentavelmente ignorado é a história do machismo e da masculinidade muito tipicamente assum ida como normal e por isso normativa e não problemática Há alguns sinais de que isto está finalmente mudando83 6 O Corpo e o Corpo Político O s historiadores do pensamento político e da literatura investigaram muito a metáfora do corpo político e seus conceitos associados e derivados como Os Dois Corpos do Rei embora com freqüência tenham realizado isso de m odo um tanto impaciente ansiosos para ver essas metáforas há muito obsoletas retiradas do palco por uma linguagem mais filosoficamente rigorosa da política do século dezessete em diante84 W om ens Sexuality in the Nineteenth Century Ibid p 4056 L J Jordanova Natural Facts a Historical Perspective on Science and Sexuality em Nature Culture and Gender ed Caroline M acCorm ack e Marilyn Strathern Cambridge 1980 p 4269 83 V er Brian Easlea Science and Sexual Oppression Londres 1981 Jefftey W eeks Sex Politics and Society Londres 1981 Lesley H all Som ehow Very Distasteful Doctors M en and Sexual Problems Between the W ars Journey of Contemporary History 20 p 55374 1985 idem From Self Preseivation to Love Without Fear Medicai and Lay W riters o f Sex Advice from W illiam Acton to Eustace C hesser Society for the Social History of Medicine Bulletin 39 p 203 1986 84 W Greenleaf Order Empiricism and Politics Oxford 1964 Otto Gierke Political Theories of the Middle Age trad com introdução de FW Maidand Cambridge 1958 Paul Archambault The Analogy ofthe Body in Renaissance Political Literature Bibliothêque dHumanisme et Renaissance 29 p 2163 1967 Em st Kantorowicz The Kings Two Bodies Princeton 1957 GJ Schochet Patriarchalism in Political Thought Oxford 1975 A ESCRITA DA HISTÓRIA 325 O que tem recebido bem menos atenção são as maneiras pelas quais a autoridade política tem realmente tratado o corpo indivi dual O s elevados objetivos retóricos da política os direitos do homem são comumente expressos em termos abstratos intelec tualistas liberdade de expressão liberdade de consciência M as atrás desses estão suposições sobre liberdades e imunidades físicas fundamentais não apenas o habeas corpus em si M as permanece mos incrivelmente ignorantes quanto às circunstâncias e às racio nalizações sob as quais os estados dominaram ou arregimentaram o corpo no recrutamento militar na época da peste85 e na verdade na escravidão Há um enorme campo de ação para os historiadores políticos eos cientistas políticos serem mais sensíveis às realidades do poder produzidas pelo exercício da autoridade do estado sobre os corpos de seus súditos86 7 O Corpo a Civilização e seus Descontentes A História é um processo de civilização inacabado uma luta nos dizem os antropó logos para afirmar a distinção do homem da Natureza M as a escrita da história da civilização concentrouse muito tempo nos artefatos da cultura erudita Há uma necessidade de um tipo diferente de história da aculturação Chegamos nus ao mundo mas logo somos adornados não apenas com roupas mas com a roupagem metafórica dos códigos morais dos tabus das proibições e dos sistemas de valores que unem a disciplina aos desejos a polidez ao policiamento 85 Sobre o policiamento médico ver R Palmer The Church Leprosy and Plague in Medieval and Early M odem Europe em Shiels Church and Healing p 79100 AW Russell ed The Town and State Physician in Europe from the Middle Ages to the EnlightenmentWolfenbüttel 1981 D Armstrong Political Anatomy ofthe Body Medicai Knowledge in Britam in the Twentieth Century Cam bridge 1983 86 Sobre as mulheres e o poder médico ver Roy Porter A Touch o f Danger The Manmidwife as Sexual Predator em G S Rousseau e Roy Porter ed Sexual Underworlds ofthe Enlightenment Manchester 1987 JN Clarke Sexism Feminism and M edicalism A Decade Review o f Literature on Gender and Illness Sociology of Health and Illness 5 p 62821983 IK Zòla Medicine as an Institution o f Social C ontrol Sociological Review 20 p 487504 1972 BB Schnorrcnhcrj Is Child birth any Place for a W om an The Decline o f Midwifery in Eighteenth Century England Studies in EigfvteentK Century Culture 10 p 393408 1981 326 PETER BURKE A s histórias do vestuário da limpeza da alimentação dos cosmé ticos também foram deixadas por muito tempo a cargo de especia listas relativamente desinteressados das questões mais amplas das funções servidas por tais objetos e atividades na transformação dos indivíduos e das sociedades em cultura87 O objetivo deste artigo não foi propor uma nova indústria doméstica dedicada a tecer uma gigantesca tapeçaria da história do corpo Foi produzir uma recordação de como o corpo é uma presença suprimida muito freqüentemente ignorada ou esqueci da em muitos outros ramos mais prestigiosos do saber Um a consciência mais alerta de sua existência minaria as pretensões idealistas duradouras endossadas por aqueles a quem Nietzsche caracterizava como os Desprezadores do C orpo e ajudaria a sua ressurreição 87 Para algum as perspectivas mais am plas sobre a alimentação ver P Pullar Consuming Passions Beingan Historie ínquiry into Certain Englisk Appetites Boston M ass 1970 BS Turner The Governm ent o f the Body Medicai Regimens and the Rationali zationofD iet British Journal of Sociology 33 p 254691982 idem The Discourse o f Diet TKeory Culture and Society 1 p 2332 1982 Sobre a ornam entação do corpo ver R Brain The Decorated Body Londres 1979 H á comentários esclarece dores em John 0 Neill Five Bodies the Human Shape of Modem Society Ithaca 1985 A HISTÓRIA DOS ACONTECIMENTOS E O RENASCIMENTO DA NARRATIVA Peter Burke Narrativa versus estrutura A historiografia como a história parece se repetir com variações1 Muito antes do nosso tempo na época do Iluminismo já se atacava a hipótese de que a história escrita deveria ser uma narrativa dos acontecimentos O s críticos incluíam Voltaire e o teórico social escocês John Millar que escreveu sobre a superfície dos acontecimentos que prende a atenção do historiador com um Desse ponto de vista a chamada Revolução Copérnica liderada na historiografia por Leopold von Ranke no início do século dezenove parece muito mais uma contrarevolução no sentido de que trouxe os acontecimentos de volta ao centro do palco2 Docente de História Cultural da Universidade de Cambridge e membro do Emmanuel College 1 Este artigo originouse de um a conferência e a presente versão deve muito aos comentários de vários ouvintes de Cam bridge a Cam pinas de Tel Ayiv a Tóquio M eus agradecimentos pessoais a Cario Ginzburg Michael Holly Ian Kershaw Dom inick LaCapra e M ark Phillips 2 Tento apoiar este argumento em Ranke The Reactionary Syracuse Scholar 9 p 2530 1988 328 PETER BURKE U m segundo ataque à história dos acontecimentos ocorreu no início do século vinte N a GrãBretanha Lewis Namier e RH Tawney que concordavam em algo mais sugeriram quase ao mesm o tempo que o historiador em vez de narrar os acontecimen tos deveria analisar as estruturas N a França a rejeição do que era pejorativamente chamado de história dos acontecimentos histoi re événementielle em prol da história das estruturas era uma prancha importante na plataforma da chamada escola dos Arma les de Lucien Febvre a Fernand Braudel que da m esm a forma que Millar encaravam os acontecimentos como a superfície do oceano da história significativos apenas por aquilo que podiam revelar das correntes mais profundas3 Se a história popular permanecesse fiel à tradição da narrativa a história acadêmica tornarseia cada vez mais preocupada com os problemas e com as estruturas O filósofo francês Paul Ricoeur certamente tem razão quando fala do eclipse da narrativa histórica em nosso tempo4 Ricoeur prossegue declarando que toda a história escrita incluindo a chamada história estrutural associada a Braudel necessariamente assume algum tipo de forma narrativa De um m odo similar JeanFrançois Lyotard descreveu algumas interpreta ções da história especialmente aquela dos marxistas como gran des narrativas 5 O problema de tais caracterizações pelo menos para mim é que elas diluem o conceito da narrativa até que ela corra o risco de se tornar indistinguível da descrição e da análise Entretando não vou tratar desse assunto aqui preferindo concentrarme na questão mais concreta das diferenças no que poderia ser chamado de o grau de narrativa entre algumas obras contemporâneas de história e outras De alguns anos para cá tem havido sinais de que a narrativa histórica em um sentido bem 3 F Braudel The Mediterranean 2 ed rev trad S Reynolds Londres 19723 prefácio 4 P Ricoeur Time and Narrative trad de K M cLaughlin e D Dellauer 3 v Chicago 19848 l p 138f 5 JF Lyotard La condition post moderne Paris 1979 The PostModern Condition trad de C Bennington e B M acrum i Manchester 1984 A ESCRITA DA HISTÓRIA 329 estrito está realizando outro retomo M esm o alguns historiadores associados aos A nnales estão se movimentando nessa direção Georges Duby por exemplo que publicou um estudo da batalha de Bouvines e Emmanuel Le Roy Ladurie cujo Carnival trata dos acontecimentos que ocorrem na pequena cidade de Romans durante 1579 e 15806 A atitude explícita desses dois historiadores não está muito distante daquela de Braudel Duby e Le Roy Ladurie não focalizam os acontecimentos particulares por si sós mas pelo que revelam sobre a cultura em que ocorreram Do mesmo modo o fato de dedicarem livros inteiros a acontecimentos particulares sugere um a certa distância da posição de Braudel e seja como for Le Roy Ladurie já discutiu alhures a importância do que ele chama de acontecimento criador événement matrice que destrói as estruturas tradicionais e as substitui por novas7 A nova tendência que começou a afetar outras disciplinas especialmente a antropologia social foi discutida pelo historiador britânico Lawrence Stone em um artigo sobre The Revival of Narrative que atraiu muita atenção8 Stone dizia não estar fazendo mais do que tentar mapear as mudanças observadas de maneira histórica em vez de realizar julgamentos de valor A esse respeito algumas obras históricas mais conhecidas que surgiram nos anos 80 confirmaram suas observações Citizens de Sim on Schama por exemplo é um estudo da Revolução Francesa publicado em 1989 que descreve a si mesm o como um retorno à forma das crônicas do século dezenove9 6 G Duby The Legend of Bouvines trad de C Tihanyi Cambridge 1990 E Le Roy Ladurie Carnival trad de M Fenney Londres 1980 7 E Le Roy Ladurie Event and LongTerm in Social History trad de B e S Reynolds em seu Terricory ofthe Historian H assocks 1979 p 11132 8 L Stone The Revival o f Narrative Pasc and Present 85 p 324 1979 cf E H obsbaw m Som e Com m ents Past and Present 85 p 381980 Cf Boon The Anthropological Romance of Bali Cam bridge 1977 e EM Bruner Ethnography as Narrative em The Anthropology of Experience ed V Turner e E Bruner U rbana e Chicago 1986 capitulo 6 9 S Scham a Citizens Nova York 1989 p xv 330 PETER BURKE D o mesrtio modo é difícil não perceber a tristeza de Stone diante do que ele chama de a mudança do modo analítico para o descritivo da escrita da história O título de seu artigo assim como seus argumentos têm sido influentes Ele tem contribuído para transformar a narrativa histórica em um tema de debate10 M ais exatamente a narrativa histórica tornouse o tema de pelo menos dois debates que têm ocorrido independentemente apesar da relevância de um para o outro Vincular os dois é o objetivo principal deste capítulo11 Em primeiro lugar há a conhecida e longa campanha de oposição àqueles que afirmam como Braudel que os historiadores deveriam considerar as estruturas mais seria mente que os acontecimentos e aqueles que continuam a acreditar que a função do historiador é contar um a história Nesta campa nha ambos os lados estão agora entrincheirados em suas posições mas cada um deles tem feito algumas observações importantes à custa do outro12 De um lado os historiadores estruturais mostraram que a narrativa tradicional passa por cima de aspectos importantes do passado que ela simplesmente é incapaz de conciliar desde a estrutura econômica e social até à experiência e os m odos de pensar das pessoas com uns13 Em outras palavras a narrativa não é mais inocente na historiografia do que o é na ficção N o caso de uma narrativa de acontecimentos políticos é difícil evitar enfatizar os atos e as decisões dos líderes que proporcionam uma linha clara à história à custa dos fatores que escaparam ao seu controle N o caso das entidades coletivas a Alemanha a Igreja o Partido Conservador o Povo etc o historiador narrativo é forçado a 10 Cf B Bailyn The Challenge o f M odem Historiography American Historical Revieiv 87 p 124 1982 11 Cf Ricoeur M Phillips O n Historiography and Narrative University of Toronto Quarterly 53 p 1496519834 e H Kellner Language and Historical Representation M adison 1989 esp capítulo 12 12 Para um a discussão de pontos de vista diferentes ver Theorie uncl Erzühlung in der Geschicfite ed J Kocka e T Nipperdey M unique 1979 13 A última questão está bem observada em E Auerbach Mimesis trad W R Trask Princeton 1953 capítulos 2 e 3 discutindo Tacitus e Am m ianus Marcellinus A ESCRITA DA HISTÓRIA 331 escolher entre omitilos completamente ou personificálos e eu concordaria com Huizinga em que a personificação é uma figura de retórica que os historiadores deveriam tentar evitar14 Ela obscurece as distinções entre os líderes e os seguidores além de encorajar os leitores sem grande imaginação a suporem o consenso de grupos que estavam freqüentemente em conflito N o caso da história militar em particular John Keegan obser vou que a narrativa tradicional da batalha está levando a conclusões erradas com seu alto foco sobre a liderança e sua redução dos soldados a peões e necessita ser abandonada15 A dificuldade de se fazer isso pode ser ilustrada pelo caso do conhecido estudo de Cornelius Ryan sobre o DiaD16 Ryan pôsse a escrever sobre a guerra do soldado em vez daquela do general Sua história é uma extensão de seu trabalho como correspondente de guerra suas fontes são sobretudo orais Seu livro transmite muito bem o sentimento da batalha de ambos os lados E vivo e dramático na verdade como um drama clássico é organizado em torno de três unidades de lugar a Normandia de tempo 6 de junho de 1944 e de ação Por outro lado o livro é fragmentado em discretos episódios A s experiências dos diferentes participantes não têm coerência A única maneira de tornálas coerentes parece ser impor um esquem a provindo de cima e assim retomar à guerra dos generais de que o autor estava tentando escapar O livro de Ryan ilustra o problema mais claramente que a maioria mas o problema não é apenas dele Esse tipo de tendência pode ser inerente à organização da narrativa Por outro lado os defensores da narrativa observaram que a análise das estruturas é estática e assim em certo sentido nãohis tórica A o se tomar o mais famoso exemplo de história estrutural de nosso tempo embora o Mediterranean 1949 de Braudel 14 J Huizinga Two W restlers with the Angel em seu Men and Idfias trad de JS H olm es e H van Marle Londres 1960 Contrastar a defesa da personificação em Kellner esp capítulo 5 sobre Michelet 15 J Keegan The Face of Battle 1976 Harm ondsworth 1978 ed p 61f 16 C Ryan The Longest Day Londres 1959 332 PETER BURKE encontre espaço tanto para os acontecimentos quanto para as estruturas freqüentemente tem sido observado que o autor pouco faz para sugerir que aquilo que une poderia estar entre as três escalas de tempo que ele utiliza o longo o médio e o curto prazo Seja como for o M editerranean de Braudel não é um exemplo extremo de história estrutural17 Apesar de suas observações no prefácio sobre a superficialidade dos acontecimentos ele prosse guiu dedicandolhes várias centenas de páginas na terceira parte de seu estudo O s seguidores de Braudel entretanto têmse inclinado a reduzir seu projeto e não apenas no sentido geográfico enquanto o imitam O atual formato clássico de um estudo regional à maneira dos Annales inclui uma divisão em duas partes estrutura e conjun tura em outras palavras tendências gerais com pouco espaço para os acontecimentos no estrito senso O s historiadores desses dois campos estrutural e narrativo diferem não apenas na escolha do que consideram significativo no passado mas também em seus m odos preferidos de explicação histórica O s historiadores da narrativa tradicional tendem e isto não é exatamente contingente a exprimir suas explicações em termos de caráter e intenção individuais explicações do tipo as ordens chegaram tarde de Madri porque Felipe II não conseguia decidir o que fazer em outras palavras como diriam os filósofos a janela quebrou porque Brown atirou nela uma pedra O s historiadores estruturais por outro lado preferem explicações que tomam a forma a janela quebrou porque o vidro era frágil ou citando o famoso exemplo de Braudel as ordens chegaram tarde de M adri porque os navios do século dezesseis demoravam várias semanas para cruzar o Mediterrâneo C om o observa Stone o chamado renascimento da narrativa tem muito a ver com uma crescente desconfiança do segundo m odo de explicação histórica freqüentemente criticado como reducionista e determinista Mais uma vez o recente livro de Schama oferece um bom exemplo da 17 Ricoeur 1983 vai adiante para afirmar que é um a narrativa histórica com um quase enredo p 298 ff A ESCRITA DA HISTÓRIA 333 tendência O autor explica que escolheu para apresentar estes argumentos na forma de um a narrativa tendo em vista que a Revolução Francesa foi muito mais o produto da atuação humana do que de condicionamento estrutural18 Esta prolongada guetra de trincheiras entre os historiadores narrativos e os estruturais foi longe demais Alguma idéia do preço do conflito a perda do entendimento histórico potencial que ele envolve pode ser sentida ao se compararem dois estudos da índia do século dezenove que foram publicados em 1978 e focalizam o que se costumava chamar de Motim Indiano de 1857 agora conhecido como a Grande Rebelião19 Christopher Hibbert produ ziu uma narrativa tradicional uma história dividida em partes em grande estilo com capítulos intitulados M otim em Meerut O Motim se Espalha O Cerco de Lucknow O Ataque e assim por diante Seu livro é colorido na verdade prende a atenção mas é também superficial no sentido de não dar ao leitor muita idéia do porquê os acontecimentos ocorreram talvez por ser escrito do ponto de vista dos britânicos que foram tomados de surpresa Por outro lado Eric Stokes apresenta uma cuidadosa análise da geogra fia e da sociologia da revolta suas variações regionais e seus contextos locais mas se exime de uma síntese final Lendo os dois livros um imediatamente após o outro podese ficar assom brado como eu fiquei pelo fantasma de um potencial terceiro livro que pudesse integrar a narrativa e a análise e relacionar mais intima mente os acontecimentos locais às mudanças estruturais na socie dade Chegou o m om ento de se investigar a possibilidade de encon trar um m odo de escapar a este confronto entre narradores e analistas U m bom começo poderia ser criticar ambos os lados por uma suposição falsa do que eles têm em comum a suposição de que distinguir os acontecimentos das estruturas seja uma questão fácil Tendem os a utilizar o termo acontecimento de uma 18 Scham a 1989 p xv 19 C Hibbert The Great Mutiny Londres 1978 E Stokes The Peasant and the Raj Cam bridge 1978 334 PETER BURKE maneira muito vaga referindonos não somente a eventos que duraram poucas horas como a batalha de Waterloo mas também a ocorrências como a Revolução Francesa um processo desenrolado durante vários anos Pode ser útil empregar os termos acontecimen to e estrutura para se referir aos dois extremos de todo um espectro de possibilidades mas não deveríamos esquecer a existência do centro do espectro As razões para a chegada tardia das ordens de Madri não necessitam estar limitadas à estrutura das comunicações no Mediterrâneo ou ao fato de Felipe II não conseguir se decidir em uma determinada ocasião O rei pode ter sido cronicamente indeciso e a estrutura do governo por conselho poderia ter retardado mais ainda o processo de tomada de decisão Devido a essa imprecisão de definição deveríamos fazer o que M ark Phillips sugeriu e pensar nas variedades de m odos de narrativa e de nãonarrativa existentes ao longo de uma série contínua 20 Tam bém não deveríamos nos esquecer de questionar a relação entre acontecimentos e estruturas Trabalhando nesta área central pode ser possível ir além das duas posições opostas para alcançar um a síntese Narrativa tradicional versus narrativa moderna V isando a esta síntese as opiniões expressas no segundo debate podem proporcionar um a contribuição útil Este segundo debate teve início nos Estados U nidos nos anos 60 e ainda não foi levado tão a sério quanto merece pelos historiadores de outras partes do mundo talvez por parecer meramente literário N ão está preocupado com a questão de escrever ou não escrever a narrativa mas com o problema do tipo de narrativa a ser escrita O historiador de cinema Siegfried Kracauer parece ter sido o primeiro a sugerir que a ficção moderna mais especialmente a decomposição da continuidade temporal em Joyce Proust e 20 Phillips O n Historiography 19834 p 157 A ESCRITA DA HISTÓRIA 335 Virgínia W oolf oferece um desafio e um a oportunidade aos narradores históricos21 U m exemplo ainda mais nítido dessa decomposição incidentalmente é Eyeless in Gaza 1936 de Aldous Huxley novela composta de curtos verbetes datados para o período de 190234 em uma ordem que embora lógica é determinadamente nãocronológica Hayden White atraiu mais atenção que Kracauer quando acusou a profissão histórica de negligenciar as reflexões literárias de sua própria época incluindo um sentido de descontinuidade entre os acontecimentos no mundo exterior e sua representação sob a forma narrativa e de continuar a viver no século dezenove a época áurea do realismo literário22 Em uma tônica similar Lionel G ossm an queixouse de que não é fácil para nós hoje em dia perceber quem é como escritor o Joyce ou o Kafka da historiografia m oderna 23 Talvez M esm o assim o historiador G olo M ann parece ter aprendido algo da prática narrativa de seu pai novelista N ão é inteiramente fantasioso compararse a inter pretação de G olo M ann dos pensamentos do idoso W allenstein com o célebre capítulo de Lotte in Weimar que evoca o fluxo de consciência de Goethe aparentemente um a tentativa de superar Joyce Em seu estudo que ele chama de um a novela excessiva mente verdadeira G olo M ann segue as regras da evidência histórica e deixa claro que está apresentando uma reconstrução hipotética A o contrário da maioria dos romancistas ele não pretende ler a mente de seu herói apenas suas cartas24 21 S Kracauer H istory the Last Tfiings beore the Last N ova York 1969 p 178f 22 H V W hite The Burden o f History History and Theory 5 1966 republicado em seu Tropics of Discourse Baltimore 1983 p 2750 Para um a defesa filosófica da continuidade entre as narrativas e os acontecimentos que eles relatam ver D Carr Narrative and the Real W orld an Argum ent for Continuity History and Theory 25 p 117311986 23 L G ossm an History and Literature em The Writing of History ed RH Canary e H Kozicki M adison 1978 p 339 24 G M ann Wallenstein Frankfurt 1971 p 984f 993ff T M ann Lotte in Weimar 1939 capítulo 7 Cf G M ann Pládoyer fürdie historische Erzàhlung em Kocka e Nipperdey 1979 p 4056 especialmente sua declaração de que a narrativa histórica não exclui o conhecimento da teoria 336 PETER BURKE Em contraste com W hite e Gossm an não estou afirmando que os historiadores sejam obrigados a se engajar em experiências literárias simplesmente por viverem no século vinte ou a imitar determinados escritores devido suas técnicas serem revolucioná rias O objetivo de buscarmos uma nova forma literária é certamen te a consciência de que as velhas formas são inadequadas aos nossos propósitos Algumas inovações são provavelmente mais bem evitadas pelos historiadores Neste grupo eu incluiria a invenção do fluxo de consciência por mais útil que pudesse ser pelas mesmas razões que levaram os historiadores a rejeitarem o famoso expediente clássico do discurso inventado Outras experiências no entanto inspiradas por uma variedade bem maior de escritores modernos do que já tem sido mencionado podem apresentar soluções para problemas com que os historiadores há muito vêm lutando três problemas em particular Em primeiro lugar poderia ser possível tom ar as guerras civis e outros conflitos mais inteligíveis seguindose o modelo dos romancistas que contam suas histórias partindo de m ais de um ponto de vista E estranho que esse expediente tão eficaz nas mãos de Huxley W illiam Faulkner em The Sound and the Fury 1931 e Lawrence Durrel em The Alexandria Quartet 195760 sem mencionar as novelas epistolares do século dezoito não tenha sido levado muito a sério pelos historiadores embora pudesse ser útil modificálo para lidar com pontos de vista coletivos e também individuais Tal expediente permitiria uma interpretação do con flito em termos de um conflito de interpretações Para permitir que as vozes variadas e opostas da morte sejam novamente ouvidas o historiador necessita como o romancista praticar a heteroglossia ver anteriormente p 1525 25 Cf G W ilson Plots and Motives in apan s M iji Restoration Comparatiue Studies in Society and History 25 p 40727 1983 que faz uso da terminologia de Hayden White m as está essencialmente vinculada à multiplicidade dos pontos de vista dos atores N H am pson The Life and Opinions ofM aximilian Robespiene Londres 1976 apresenta um diálogo entre diversas interpretações m odernas da Revolução Francesa A ESCRITA DA HISTÓRIA 337 Bastante curiosamente quando este ensaio estava prestes a ir para o prelo foi publicado um trabalho histórico desse tipo Richard Price apresenta seu estudo do Suriname do séculodezoito na forma de um a narrativa com quatro vozes simbolizadas por quatro padrões tipográficos aquela dos escravos negros transmi tida por seus descendentes os Saramakas a dos administradores holandeses a dos missionários moravianos e finalmente aquela do próprio historiador26 O objetivo do exercício é precisamente mostrar e também estabelecer as diferenças de pontos de vista entre o passado e o presente a Igreja e o Estado o negro e o branco os desentendimentos e a luta para impor definições particulares da situaçãq Será difícil imitar este towr de force de reconstrução histórica mas Price merece inspirar toda uma estante de estudos Em segundo lugar cada vez mais historiadores estão começan do a perceber que seu trabalho não reproduz o que realmente aconteceu tanto quanto o representa de um ponto de vista particular Para comunicar essa consciência aos leitores de história as formas tradicionais de narrativa são inadequadas O s narradores históricos necessitam encontrar um m odo de se tornarem visíveis em sua narrativa não de autoindulgência mas advertindo o leitor de que eles não são oniscientes ou imparciais e que outras interpretações além das suas são possíveis27 Em uma peça notável de autocrítica G olo M ann declarou que um historiador necessita tentar fazer duas coisas simultaneamente nadar com a corrente dos acontecimentos e analisar esses acontecimentos da posição de um observador posterior mais bem informado combinando os dois métodos para produzir uma aparência de homogeneidade sem que a narrativa fique de lado28 26 R Price A labis World Baltimore 1990 27 O problem a já foi discutido por Thierry e Michelet Ver G Pomata Overt and Covert Narrators in NineteenthCentury Historiography History Workshop 27 p 1171989 28 Prefácio para a tradução inglesa de seu Wallenstein de autoria de C Kessler Londres 1976 M ann confessa que a primeira abordagem prevalece em seu próprio livro O utro bom exemplo do que M ann defencle pode ser encontrado em T H Breen Imagining the Past East Hampton Histories Reading M ass 1989 338 PETER BURKE Aqui mais uma vez o novo livro de Price apresenta uma possível solução para o problema rotulando sua própria contribuição como um a voz entre outras Soluções alternativas também são dignas de consideração O s teóricos literários têm ultimamente discutido o expediente ficcional do narrador nada confiável de primeira pessoa 29 Tal expediente pode ser de algum uso também para os historiadores contanto que a nãoconfiabilidade seja explicitada M ais uma vez Hayden White sugeriu que as narrativas históricas sigam quatro planos básicos comédia tragédia sátira e romance Ranke por exemplo escolheu consciente ou inconscientemente escrever história com enredos de comédia em outras palavras seguindo um movimento ternário a partir de um a condição de paz aparente através da revelação do conflito até a resolução do conflito no estabelecimento de uma ordem social genuinamente pacífica 30 Se o m odo como a narrativa termina ajuda a determinar a interpretação do leitor então pode ser valioso seguir o exemplo de alguns romancistas como John Fowles e proporcionar finais alternativos U m a história narrativa da Primeira Guerra Mundial por exemplo vai nos dar um a impressão se a narrativa terminar em Versailles em 1919 outra se a narrativa se estender até 1933 ou 1939 A ssim sendo fechos alternativos tornam a obra mais aberta no sentido de encorajar os leitores a chegarem às suas próprias conclusões31 Em terceiro lugar e este é o tema principal deste capítulo um novo tipo de narrativa poderia melhor que as antigas fazer frente às demandas dos historiadores estruturais ao mesm o tempo em que apresenta um sentido melhor do fluxo do tempo do que em geral o fazem suas análises 29 W Riggan Pícaros Madmen Naifs and Clowns the Unreliable FirtsPerson Narrator N orm an 1981 30 H W hite Metahistory Baltimore 1973 p 176f 31 Cf M Torgovnick Closure in the Novel Princeton 1981 e U Eco The Poetics of the O pen W ork em seu The Role of the Reader Londres 1981 capítulo 1 U m movimento na direção de um a narrativa histórica m ais aberta é prevista por Phillips O n Historiography p 153 A ESCRITA DA HISTÓRIA 339 Densificando a narrativa Há alguns anos atrás o antropólogo Clifford Geertz inventou a expressão descrição densa para uma técnica que interpreta uma cultura alienígena através da descrição precisa e concreta de práticas ou acontecimentos particulares em seu caso a descrição das brigas de galo em Bali cf Giovanni Levi p 13432 Assim como a descrição a narrativa poderia ser caracterizada como mais ou menos fluida ou densa N o final fluido do espectro temos a observação crua em um volume dos anais como a Crônica AngloSaxônica de que Neste ano Ceolwulf foi destituído de seu reinado N o outro extremo encontramos narrativas raríssimas até agora que foram deliberadamente construídas para suportar um volume pesado de interpretações O problema que eu gostaria de discutir aqui é aquele de se fazer uma narrativa densa o bastante para lidar não apenas com a seqüência dos acontecimentos e das intenções conscientes dos atores nesses acontecimentos mas também com as estruturas instituições m odos de pensar etc e se elas atuam como um freio ou um acelerador para os acontecimentos Com o seria uma narrativa desse tipo Estas questões embora vinculadas à retórica não são em si retóricas É possível discutilas tendose como base textos e narra tivas produzidos por romancistas ou por historiadores N ão é difícil encontrar romances históricos que abordem esses problemas Poderíamos começar com War and Peace pois podese dizer que Tolstoi compartilhou a opinião de Braudel sobre a futilidade dos acontecimentos mas de fato muitos romances famosos estão vinculados a importantes mudanças estruturais em um a determi nada sociedade encarandoas em termos do seu impacto nas vidas de alguns indivíduos U m exemplo de destaque externo à cultura 32 C Geertz Thick Description Towards an Interpretative Theory of Culture e Deep Play Notes on the Balinese Cockfight em The Interpretation ofCultures Nova York 1973 340 PETER BURKE ocidental é Beore the Dawn 19326 de Shimakazi Toson33 A palavra despertar no título down é a modernização industrialização ocidentalização do Japão e o livro lida com os anos imediatamente anteriores e subseqüentes à restauração impe rial de 1868 quando não estava de m odo algum claro que caminho o país iria seguir O romance mostra em brilhantes detalhes como O s efeitos da abertura do Japão para o m undo estavam se fazendo sentir nas vidas de cada indivíduo34 Para fazer isso o autor escolheu um indivíduo Aoyama Hanzo que é o vigia de um posto dos correios em uma aldeia da principal rodovia entre Quioto e Tóquio Seu trabalho mantém Hanzo em contato com os aconte cimentos mas ele não se limita a observálos E membro do movimento de Instrução Nacional empenhado em uma solução autenticamente japonesa para os problemas do Japão O enredo do romance é em grande extensão narrativa do impacto da mudança social em um indivíduo e em sua família ponto enfati zado pela interrupção de Toson de sua narrativa de tempos em tempos para relatar os principais acontecimentos da história japonesa de 1853 a 1886 E provável que os historiadores possam aprender algo a partir das técnicas narrativas de romancistas como Tolstoi e Shimazaki Toson mas não o bastante para resolver todos os seus problemas literários Pois os historiadores não são livres para inventar seus personagens ou mesmo as palavras e os pensamentos de seus personagens além de ser improvável que sejam capazes de con densar os problemas de uma época na narrativa sobre um a família como freqüentemente o fizeram os romancistas Poderseia esperar que o chamado romance de nãoficção pudesse ter tido algo a oferecer aos historiadores desde In C old Blood 1965 de Trum an Capote até Schindlers Ark 1982 de Thom as Keneally que declaram usar a textura e os expedientes de um romance para contar um a história verdadeira Entretanto esses autores não 33 Shimazaki Toson Beore the Dawn H onolulu 1987 34 Ibid p 621 A ESCRITA DA HISTÓRIA 341 enfrentaram o problema das estruturas Parece que os historiadores teriam de desenvolver suas próprias técnicas ficcionais para suas obras factuais35 Felizmente os autores de algumas obras recentes de história também têm refletido sobre problemas como estes e seus estudos esboçam um a resposta ou mais exatamente várias respostas das quais pode ser útil destacaremse quatro U m dos modelos está bem a cam inho de se transformar em moda enquanto os outros três são representados por pouco mais de um livro cada um A primeira resposta poderia ser descrita como micronarrati va ao longo das linhas do novo termo microhistória E a narração de uma história sobre as pessoas comuns no local em que estão instaladas Em um certo sentido essa técnica é lugarcomum entre os romancistas históricos e isso desde o tempo de Scott e Manzoni cujo Betrothed 1827 foi atacado na época da forma que a história vista de baixo e a microhistória foram atacadas mais recentemente por escolher como seu tema a crônica miserável de um a aldeia obscura 36 Foi apenas muito recentemente no entanto que os historia dores adotaram a micronarrativa Exemplos recentes bemconhe cidos incluem a narrativa de Cario Cipolla sobre o impacto da peste de 1630 na cidade de Prato na Toscana e a história de Natalie Davis de Martin Guerre um filho pródigo do século dezesseis que retornou a sua casa no sul da França para descobrir que seu lugar na fazenda e também na cama de sua esposa havia sido tom ado por um intruso que afirmava ser o próprio M artin37 35 W R Siebenschuh Fictional Techniques and Factional Works 1983 discute como isso foi feito no passado com referência especial à vida de Johnson de autoria de Boswell C f RW Rader Literary Form in Factual Narrative the Example o f Boswells Johnson em Essays in EighteenthCentury Biography eçl PB Daghlian Bloom ington 1968 p 342 36 Citado em Letteratura Italiana ed A A sor Rosa 5 Turim 1986 p 224 37 C Cipolla Cristoano and the Plague Londres 1973 NZ Davis The Return of Martin Guerre Cam bridge M ass 1973 342 PETER BURKE A redução na escala não densifica em si a narrativa A questão é que os historiadores sociais voltaramse para a narrativa como um meio de esclarecer as estruturas as atitudes em relação à peste e às instituições para combatêla no caso de Cario Cipolla a estrutura da família camponesa do sul da França no caso de Natalie Davis e assim por diante Mais exatamente o que Natalie Davis queria fazer era descrever não tanto as próprias estruturas mas as esperanças e os sentimentos dos camponeses os m odos como sentiam a relação entre marido e mulher pais e filhos os m odos como experimentavam as restrições e as possibilidades em suas vidas38 O livro pode ser lido simplesmente como um a boa história e uma evocação viva de alguns indivíduos do passado mas a autora faz deliberadas e repetidas referências aos valores da sociedade Discutindo por exemplo porque a esposa de Martin Bertrande reconheceu o intruso como seu marido Davis comenta sobre a posição das mulheres na sociedade rural francesa e sobre seu senso de honra reconstruindo as restrições no interior das quais elas maquinavam Por outro lado os comentários são deliberadamente discretos C om o explica a autora Eu escolhi previamente meus argumen tos tanto pela ordenação da narrativa escolha de detalhes voz e metáfora literária quanto pela análise temática O objetivo era aquele de implantar esta história nos valores e nos hábitos da vida e das normas de uma aldeia francesa no século dezesseis e utilizálos para ajudar a compreender os elementos centrais na história e usar a história para comentálos de volta 39 A história de Martin pode ser encarada como um drama social no sentido em que os antropólogos utilizam o termo um acontecimento que revela conflitos latentes e assim esclarece as estruturas sociais40 A micronarrativa parece ter vindo para ficar cada vez mais historiadores estão se voltando para essa forma M esm o assim 38 Davis Martin Guerre p 1 39 NZ Davis O n the Lame American Historical Revieiv 93 p 575573 1988 40 Sobre este conceito V Turner Dramas Fields and Metaphors Ithaca 1974 capí tulo 1 A ESCRITA DA HISTÓRIA 343 seria um erro encarála como uma panacéia Ela não apresenta uma solução para todos os problemas delineados anteriormente e gera problemas próprios especialmente aquele de ligar a microhistória à macrohistória os detalhes locais às tendências gerais E por enfrentar diretamente esse problema importante que considero Gate of Heavenly Peace de Spence um livro exemplar Jonathan Spence é um historiador da China que há muito tempo tem se interessado pelas experiências sob forma literária U m de seus primeiros livros foi uma biografia do imperador KangHsi ou antes um retrato do imperador na verdade um tipo de autoretrato uma tentativa de explorar a mente de Kang Hsi fazendo uma espécie de mosaico ou montagem de suas observações pessoais encontradas dispersas entre os documentos oficiais dispondoas sob títulos como filhos governando ou envelhecendo O efeito não é diferente de umas Memoirs of Hadrian chinesas E difícil pensar em um estudo que melhor mereça a descrição de história vista de cima do que o autoretrato de um imperador mas Spence seguiuo com um ensaio comovente em história vista de baixo The Death of Woman Wang é uma peça de microhistória ao estilo de Cipolla ou Davis com quatro histórias contadas ou imagens descritas para revelar as condições na província de Shantung nos anos conturbados do final do século dezessete M ais recentemente em The Memory Palace of Matteo Ricci Spence organizou seu relato do famoso missionário jesuíta na China em torno de várias imagens visuais à custa de seqüência cronológica produzindo um efeito reminiscente do Eyeless in Gaza de Huxley The Gate of Heavenly Peace por outro lado parece mais uma peça de história convencional um relato das origens e do desen volvimento da Revolução Chinesa de 1895 a 198041 Mais uma vez contudo se afirma o interesse do autor pela biografia e pelos instantâneos históricos e seu livro é construído em torno de um 41 J Spence Emperor of China Londres 1974 The Death of Woman Wang Londres 1978 The Gate of Heavenly Peace Londres 1982 The Memory Palace of Matteo Ricci Londres 1985 344 PETER BURKE pequeno ijúmero de indivíduos especialmente o estudioso Kang Youwei o soldado e acadêmico Shen Congwen e os escritores Lu Xun e Ding Ling Esses indivíduos não desempenham um papel importante nos acontecimentos da revolução Desse ponto de vista podem ser comparados com o que o crítico húngaro Georg Lukács chamou de herói medíocre nas novelas de Sir Walter Scott um herói cuja vulgaridade permite que o leitor enxergue mais clara mente a vida e os conflitos sociais da época42 N o caso de Spence os protagonistas foram selecionados porque como sugere o autor eles descreveram suas esperanças e tristezas com particular sensi bilidade e também porque as experiências pessoais ajudam a definir a natureza dos tempos através dos quais eles viveram São encarados mais como passivos que como ativos N a verdade o autor fala das intrusões dos acontecimentos externos sobre seus personagens43 Sua preocupação com indivíduos diferentes implica um interesse em pontos de vista múltiplos ou uma multivocalidade mas em contraste com o livro de Price discutido anteriormente esta multivocalidade permanece abaixo da superfície da história Apresentar a história da China dessa maneira suscita proble mas A passagem de um indivíduo para outro corre ò risco de confundir o leitor assim como também as mudanças para trás e para diante entre o que poderia ser chamado de tempo público o tempo dos acontecimentos como a Grande Marcha ou a Revo lução de 1949 e o tempo privado dos principais personagens Por outro lado Spence comunica de um m odo vivo e comovente a experiência de vida ou na verdade de deixar de viver durante esses anos turbulentos Entre suas passagens mais memoráveis está seu relato da opinião de uma criança sobre a revolução de 1919 como é lembrada por Shen Congwen a reação de Lu Xun ao massacre dos estudantes em uma passeata em Beijing em 1926 e os ataques oficiais sobre Ding Ling em 1957 em seguida à supressão do Movimento das Cem Flores 42 G Lukács The Historical Novel trad de H e S Mitchell Londres 1962 p 30f 43 Spence 1982 p xiii A ESCRITA DA HISTÓRIA 345 Pode haver outras maneiras de se relacionar mais intimamente a estrutura aos acontecimentos do que em geral fazem os historia dores U m método possível é escrever a história de frente para trás como fez BH Sumner em sua Survey ofRussian History organizada por tópicos ou NormanJDavies em sua história recente da Polônia Heart of Europe 1984 narrativa que focaliza o que o autor chama de o passado na presentePolônia44 Com eça com O Legado da Humilhação a Polônia a partir da Segunda Guerra M undial e movese para trás através de O Legado da Derrota O Legado do Desencanto 191439 O Legado do Domínio Espiritual 17951918 e assim por diante Em cada ocasião o autor sugere que é impossível compreender os acontecimentos narrados em um capítulo sem conhecer o que o precedeu Esta forma de organização tem suas dificuldades mais obvia mente o problema de que embora os capítulos sejam dispostos em ordem inversa cada capítulo tem de ser lido para diante A grande vantagem da experiência por outro lado é permitir ou mesmo forçar o leitor a sentir a pressão do passado sobre os indivíduos e os grupos a pressão das estruturas ou dos acontecimentos que congelaram ou como diria Ricoeur se sedimentaram em estru turas Davies não explora esta vantagem tanto quanto poderia N ão faz qualquer esforço sério para relacionar cada capítulo com aquele que vem depois E difícil imaginar sua abordagem de andar para trás tornandose adaptável ao estilo da microhistória M esm o assim esta é uma forma de narrativa digna de ser seria mente considerada U m quarto tipo de análise da relação entre estruturas e acontecimentos pode ser encontrado na obra de um antropólogo social americano embora ela vá completar o ciclo que nos trará de volta aos Annales O antropólogo Marshall Sahlins que trabalha no Havaí e nas Ilhas Fuji é extremamente interessado no pensa mento moderno francês de Saussure a Braudel de Vourdieu a LéviStrauss mas considera mais seriamente os acontecimentos 44 N Davies Heart of Europe a Short History of Poland Oxford 1984 Jfl NQJ do que qualquer um desses pensadores45 Em seus estudos dos encontros entre as culturas no Pacífico Sahlins faz duas observa ções diferentes mas complementares Em primeiro lugar sugere que os acontecimentos especial mente a chegada de C ook no Havaí em 1778 portam traços culturais distintos que são regulados pela cultura nò sentido de que os conceitos e as categorias de uma cultura particular determinam os modos pelos quais seus membros percebem e interpretam seja o que for que aconteça em sua época O s havaia nos por exemplo perceberam o Capitão C ook como uma mani festação de seu deus Lono porque ele era obviamente poderoso e porque chegou na época do ano associada aos aparecimentos do deus O acontecimento pode por isso ser estudado como sugeriu Braudel como um a espécie de papel heliográfico que revela as estruturas da cultura Entretanto Sahlins também declara ao contrário de Braudel que há um relacionamento dialético entre os acontecimentos e as estruturas As categorias são postas em perigo cada vez que são utilizadas para interpretar o m undo em mutação N o processo de incorporação dos acontecimentos a cultura é reordenada O fim do sistema dos tabus por exemplo foi uma das conseqüências estruturais do contato com os britânicos Assim também o aumen to do comércio intercontinental É verdade em mais de um sentido que C ook não deixou o Havaí como o havia encontrado Sahlins contou um a história com uma moral ou talvez com duas morais A moral para os estruturalistas é aquela em que eles deveriam reconhecer o poder dos acontecimentos seu lugar no processo da estruturação O s defensores da narrativa por outro lado são encorajados a examinar a relação entre os acontecimentos e a cultura em que eles ocorrem Sahlins foi além da famosa justapo sição dos acontecimentos e das estruturas de Braudel N a verdade 346 PETER BURKE 45 M Sahlins Historical Metaphors and Mythical Realities A nn Arbor 1981 e lslands of History Chicago 1985 Cf P Burke Les iles anthropologiques et le territoire de lhistorien em Philosophie et histoire ed C Descam ps Paris 1987 p 4966 A ESCRITA DA HISTÓRIA 347 ele virtualmente resolveu ou dissolveu a oposição binária entre essas duas categorias Resum indo tenho tentado argumentar que historiadores como Tawney e Namier Febvre e Braudel foram justificados em sua rebelião contra uma forma tradicional da narrativa histórica que era mal adaptada à história estrutural que eles consideravam importante A escrita da história foi imensamente enriquecida pela expansão de seu tema e também pelo ideal da história total Entretanto muitos estudiosos atualmente consideram que a escrita da história também tem sido empobrecida pelo abando no da narrativa estando em andamento um a busca de novas formas de narrativa que serão adequadas às novas histórias que os historiadores gostariam de contar Estas novas formas incluem a micronarrativa a narrativa de frente para trás e as histórias que se movimentam para frente e para trás entre os m undos público e privado ou apresentam os mesm os acontecimentos a partir de pontos de vista múltiplos Se os historiadores estão procurando modelos de narrativas que justaponham as estruturas da vida comum pelos acontecimen tos extraordinários e a visão de baixo pela visão de cima podem muito bem ser aconselhados a voltar à ficção do século vinte incluindo o cinema os filmes de Kurosawa por exemplo ou de Pontecorvo ou de Jancsó Pode ser importante que uma das discussões mais interessantes da narrativa histórica seja a obra de um historiador do cinema a obra de Kracauer já citada O expediente de pontos de vista múltiplos é central ao Rashomon de Kurosawa46 Está implícita em The Red and the White de Jancsó um a narrativa da guerra civil russa em que os dois lados se revezam para capturar a mesma aldeia Quanto a Pontecorvo poderia ser dito que ele transformou o próprio processo histórico em si no tema de seus filmes em vez de simplesmente contar uma história sobre indivíduos em trajes 46 A história original de Akutagawa não adotava este expediente 348 PETER BURKE históricos47 É interessante observar que Jonatham Spence usa a linguagem de montagem e que The Return of Martin Guerre apareceu mais ou menos na mesma época como uma história e como um filme depois de Natalie Davis e Daniel Vigne terem trabalhado juntos no tema48 Visões retrospectivas cortes e a alternância entre cena e história essas são técnicas cinemáticas ou na verdade literárias que podem ser utilizadas de uma maneira superficial antes para ofuscar do que para iluminar mas podem também ajudar os historiadores em sua difícil tarefa de revelar o relacionamento entre os acontecimentos e as estruturas e apresen tar pontos de vista múltiplos Desenvolvimentos desse tipo se continuarem podem reivindicar ser vistos não apenas como mero renascimento da narrativa como denominou Stone mas como um a forma de regeneração 47 G Pontecorvo La battaglia di Algeri 1966 Queimada 1969 48 NZ Davis JC Carrière D Vigne Le retour de Martin Guerre Paris 1982 ÍNDICE REMISSIVO Acton Lord historiador britânico 15 A H A American Historical Association 70 72 Alexander W illiam historiador britânico 19 alfabetização 169170 Alltagsgeschichte 23 Alpers Svedana historiadora de arte ame ricana 260 am nésia estrutural 178 Annales revista histórica francesa 9 11 1 6 1 7 1 8 5 1 6 1 ss 1 02110 ss 117 180 328 329 antropologia 52 9 3 1 4 1 1 4 4 1 9 9 293 322 328 Ariès Philippe historiador francês 1116 arqueologia 2 8 1 5 8 arquitetura 241 Arrow Kenneth cientista político america no 283 autenticidade 244252 Bakhtin Mikhail teórico literário russo 15 293 Barker Francis 295297 Barrell John historiador literário britâni co 258260 Barth Fredrik antropólogo norueguês 137 Baxandall Michael historiador de arte britânico 260 262 263 behaviourismo 277279 Belting H ans historiador de arte alemão 261 bibliotecas 202204 Bloch Marc historiador francês 17 113 Bourdieu Pierre sociólogo francês 34 Braudel Fernand historiador francês 12 1 4 1 5 1 7 2 0 2 3 2 4 3 1 3 7 6 1 1 0 5 11 2 1 1 7 3 2 8 3 3 2 3 3 9 345 ss Brecht Bertold escritor alemão 40 Brunschwig Henri historiador francês 1 1 1 1 1 2 1 1 3 1 2 1 1 2 2 1 2 3 bruxaria 52 Burckhardt Jacob historiador suíço 18 Burke Peter colaborador 7 17 26 43 5 2 1 7 6 225 241 Cambridge Moáem Histor 15 Cannadine David historiador britânico 5 5 5 6 1 8 0 canonicidade 252 258 Capote Trum an escritor americano 340 C air EH historiador britânico 61 350 PETER BURKE Certeau Michel de sociólogo francês 23 78 79 Chartier Roger historiador francês 35 230 C ipolla Cario historiador italiano 341 classes subalternas 21 Clausewitz Karl von teórico militar ale mão 10 diom etria 29 C obb Richard historiador francês 80 Collingw ood RG filósofo e historiador britânico 14 276 colonialism o 102 Com te Auguste sociólogo francês 18 connoisseurism o 244 250 construção cultural 23 36 contexto contextualização 154 157 258 C ook Capitão explorador britânico 346 cortes 348 cotidiana 23 C ronon W illiam historiador americano 20 Crosby Alfred historiador britânico 20 cultura material 29 cultura popular 21 36 43 312 314 Darnton Robert colaborador 11 151 202 Davies N orm an historiador britânico 345 Davis Natalie historiadora americana 80 124 3 4 2 3 4 8 demografia 31 312 314 dependência teoria da 126 129 Derrida Jacques filósofo francês 63 76 descolonização 1 9 1 2 5 1 2 9 desconstrução ver pósestruturalismo descrição densa 141 descristianizaçâo 29 diferença 76 85 Dilthey W ilhelm filósofo alemão 286 Ding Ling escritor chinês 344 disciplina 310 313 docum entos históricos ver fontes dram a social 342 Duby Georges historiador francês 329 D unn John historiador intelectual britâ nico 273 276 283 287 Durkheim Emile sociólogo francês 17 1 5 4 1 7 3 Durrell Lawrence escritor britânico 336 Easton David cientista político america no 277 278 283 ecohistória 7 ecologia 20 educação 21 Elias Norbert sociólogo alemão 24 161 310 Engelsing Rolf historiador alemão 212 English Historical Review 16 Erikson Erik psicanalista americano 32 estratégias 158 estruturas história das 12 16 34 36 327 345 347 etnohistória 111 EvansPritchard Edward antropólogo bri tânico 179 180 explicação 31 35 332 Faulkner W illiam escritor americano 336 Febvre Lucien historiador francês 17 113 328 feminismo 19 63 95 294 322 filmes ver fotografia Finlay Robert historiador americano 80 Finley M oses historiador da antigüidade 28 177 Floud Roderick historiador britânico 57 119 fontes e crítica da fonte 1 2 1 4 2 5 3 0 4 2 1 6 5 1 7 0 1 8 9 1 9 1 2 9 9 301 visuais 27 268 269 320 formalização na história 156 158 fotografia 26 240 242 266 300 filmes 346 348 Foucault Michel teórico francês 8 66 149 262 3 0 8 3 1 9 Foum ier Jacques inquisidor francês 47 49 Fowles John escritor britânico 338 Freud Sigtnund 32 A ESCRITA DA HISTÓRIA 351 Fruin Robert historiador holandês 18 funcionalism o 3 4 1 5 4 1 5 5 Gallagher Jack historiador britânico 120 122 124 125 Gaskell Ivan colaborador 14 27 Gay Peter historiador americano 32 317 Geertz Clifford antropólogo arrfericano 57 58 95 138 141 142 144 145 146 147 148 150 151 155t 170 193 339 Gellner Ernest filósofo e antropólogo bri tânico 1 4 8 1 5 4 1 7 0 gênero 36 65 87 315 319322 325 Genovese Eugene D historiador america no 60 Gere John historiador de arte britânico 244 248 G ibbon Edward historiador britânico 19 Ginzburg Cario historiador italiano 25 2 7 4 9 5 0 5 7 5 9 1 4 0 1 5 3 1 5 8 1 6 0 200 Goffm an Erving sociólogo americano 23 300 Goody Jack antropólogo britânico 169 177 178 G ossm an Lionel crítico americano 336 gosto história do 255 257 Gram sci Antonio filósofo italiano 21 Grendi Edoardo historiador italiano cita do 1 58241 G under Frank André econom ista ameri cano 126 Gunnell John teórico político 277 279 Haberm as Jürgen filósofo alemão 286 hábito 35 Haldane JB S cientista britânico 11 Hall David historiador americano 212 213 H am pson N orm an historiador britânico 80 Hanawalt Barbara historiadora america na 50 Haskell Francis historiador de arte britâ nico 255 Hegel G W F filósofo alemão 101 109 14 6 1 6 4 287 Heidegger Martin filósofo alemão 145 Henige David historiador americano 180 herança 264 hermenêutica ver interpretação heteroglossia 15 336 343 Hibbert Christopher historiador britâni co 333 história ver cotidiano ecohistória educa ção gosto história cultural história econômica história do ltvro história militar história política história serial história social história do trabalho medicina menta lidades história dos acontecimentos 12 16 36 11 2 3 2 7 história cultural 17 21 37 história econômica 8 18 22 história nas escolas 182 184 história do livro 203 205 história da medicina 21 299 história militar 21 história das mulheres 17 36 63 história oral 26 49 111 163 198 história política 8 1 1 30 34 36 história serial 30 170 história social 36 43 54 81 204 207 história do trabalho 46 51 historiadores orientados por documentos 1 7 0 1 7 9 1 8 5 1 8 7 1 9 4 Historiscie Zeitschrift revista histórica ale mã 16 History Workshop Journal 16 54 Hider Adolf 32 33 Hobsbawm Eric historiador britânico 45 46 56 H obson JA teórico do imperialismo 1 2 0 1 2 2 1 8 1 Hoggart Richard crítico britânico 45 Hosking Geoffrey historiador britânico 182 Huizinga Johan historiador holandês 13 1 3 2 0 329 331 Huxley Aldous historiador britânico 335 343 352 PETER BURKE iconoclasm o 269 iconografia 260 261 identidade 88 ideologia 66 80 imperialismo 120 121 interpretação 144 259 262 287 289 Jam es Henry novelista americano 153 Jancsó M iklós diretor de cinem a húnga ro 347 Judt Tony historiador britânico 55 Kam m en Michael historiador americano 37 Kanghsi im perador chinês 343 Kang Youwei intelectual chinês 344 Kant Immanuel filósofo alemão 280 284 Kartodirdjo Sartono historiador indoné sio 107 Keegan John historiador militar britâni co 22 325 331 Kenneally Thom as escritor australiano 340 Kerm ode Frank crítico literário britânico 253 254 Khruschchev Nikita citado 182 Kleinm an Arthur antropólogo histórico americano 307 Koselleck Reinhart historiador alemão 286 Kracauer Siegfried historiador do cinema alemão 334 Kuhn Thom as historiador de ciência americano 10 Kurosawa Akira diretor de cinema japo nês 347 Lamprecht Karl historiador alemão 17 Laqueur Thom as historiador americano 316 3 1 7 3 1 9 Le Gofí Jacques historiador francês 9 Lênin V I 120 Le Roy Ladurie Emmanuel historiador francês 25 ss 47 49 50 59 329 Leur JC van historiador holandês 107 108 Levi Giovanni colaborador 3 1 1 3 3 1 3 9 1 4 0 1 5 6 literatura 1 6 9 1 7 0 livraria libraries 208 210 longo prazo longue durée 12 315 Lotman Juri semiótico russo 23 24 Lukács Georg crítico húngaro 341 Lu Xun escritor chinês 344 345 Lyotard JeanFrançois filósofo francês 328 M abillon Jean intelectual francês 18 31 Macfarlane Alan antropólogo histórico britânico 52 53 McKenzie Don bibliógrafo neozelandês 1 6 7 2 2 9 M ajum dar RC historiador indiano 106 M ann Golo historiador alemão 335338 M ann Thom as escritor alemão 336 Manzoni Alessandro escritor italiano 34 r marxism o marxistas 43 51 109 121 1 2 6 1 6 4 2 5 8 2 6 0 masculinidade 324 material proveniente de fórmulas 175 177 M einers Christoph historiador alemão 19 memória seletiva 176 191 Menocchio moleiro italiano 49 57 200 mentalidades 30 5 1 1 7 8 296 303 métodos quantitativos 14 28 30 158 204 205 207 299 301 microhistória 31 53 5 7 1 3 3 340 ss micropolítica 269 Millar John historiador britânico 327 Minow M artha teórica legal americana 77 79 montagem 348 M ontias JM econom ista americano 269 270 M õser Justus historiador alemão 19 M otim Indiano 331 Muchembled Robert historiador francês 314 multivocalídade ver heteroglossia m useus 238 242 A ESCRITA DA HISTÓRIA 353 N am ier Lewis historiador britânico 12 1 6 1 7 3 2 8 narrativa 1 5 2 1 5 4 1 7 6 1 7 9 1 8 7 328 N ehru Jawaharlal citado 105 N icolau I czar citado 12 nouvelle histoire 9 10 Oliver Roland historiador britânico 112 113 O pie lona e Peter folcloristas britânicos 187 Ovfdio poeta rom ano citado 199 ss Ozouf Jacques historiador francês 22 Panofsky Erwin historiador de arte ale mão 27 261 paradigm as 276 Philips M ark historiador canadense 334 Pocock JG A historiador intelectual 13 156 2 7 3 2 7 6 Políbio historiador grego 18 Pontecorvo Giulio diretor de cinema ita liano 347 pontos de vista múltiplos 336 346 Porter Roy colaborador 11 22 176 pósestruturalismo 88 93 286 295 Prebisch Raul econom ista argentino 126 Price Richard antropólogo histórico ame ricano 337 338 Prins Gwyn colaborador 14 163 176 processo civilizador 310 Proust Mareei novelista francês 334 provérbios usos de 175 psicanálise 88 psicohistória 32 34 303 Pugachev Em elian rebelde russo 12 Pushkin Alexander escritor russo 12 racionalidade 144 145 Ranger Terence historiador britânico ci tado 104 112 1 8 1 1 8 6 mencionado 287 Ranke Leopold von historiador alemão 1 0 1 3 1 5 1 6 1 8 1 0 1 1 6 4 3 2 7 3 3 8 Rawls John filósofo político americano 284 recepção história da 227 Reforma 267 269 312 relativismo cultural 10 12 15 23 142 14 6 1 4 8 260 286 306 representações 295 301 Revel Jacques historiador francês 155 1 5 6 1 5 9 1 6 0 Revolução Francesa 12 25 46 329 332 334 Ricoeur Paul filósofo francês 328 345 Robertson W illiam historiador britânico 19 Robinson Jam es Harvey historiador am e ricano 1 7 1 8 Robinson Ronald historiador britânico 1 2 0 1 2 1 1 2 2 1 2 4 1 2 5 1 2 8 Rodney W alter historiador africano 127 Romein Jan historiador holandês 102 Rosenthal Michael historiador de arte britânico 258 Rousseau JeanJacques 201 202 206 208 Ryan Cornelius jornalista e historiador irlandês 331 Sahlins M arshall antropólogo america no 345 347 Scarry Elaine crítica literária americana 297 Scham a Sim on historiador britânico 268 269 310 329 333 Schwartz Gary historiador de arte ameri cano 245 263 Scribner Bob historiador australiano 267 Scott Joan colaboradora 11 20 21 63 7 1 7 4 8 1 8 2 9 2 1 3 6 Scott W alter escritor britânico 341 344 Seeley John historiador britânico 10 senso comum da história visão do 10 sexualidade 292 315 319 Sharpe Jim colaborador 12 25 39 Shen Congwen soldadoacadêmico chi nês 344 Shorter Edward historiador americano 316 318 Showalter Elaine feminista americana 65319 354 PETER BURKE Sik Endre Kistyriador húngaro 1 0 9 1 1 0 Skinner Quentin historiador intelectual britânico 156 273 277 283 285 sociologia 53 Spence Jonathan historiador britânico 343 344 Spencer Herbert sociólogo britânico 18 Steinberg Leo historiador de arte ameri cano 291 Sterne Laurence citado 291 Stokes Eric historiador britânico 333 Stone Lawrence historiador britânico 80 1 5 2 3 2 9 330 Strauss Leo historiador intelectual ameri cano 274 279 282 283 Sum ner BH historiador britânico 345 suplemento conceito de 75 77 Tawney RH historiador britânico 17 55 328 Taylor AJP historiador britânico 32 citado 163 tempo conceitos de 170 179 teoria literária 226 227 Thom pson Edward historiador britânico 35 40 42 43 44 45 46 48 52 53 5 5 5 9 6 0 1 7 9 1 8 0 1 9 1 3 1 3 T hom pson Paul historiador britânico 2 6 1 6 5 1 6 6 1 7 3 1 9 3 Tolstoi Leon escritor russo 339 340 Toson Shimazaki escritor japonês 339 340 tradição 198 277 279 invenção da 180 191 TrevorRoper Hugh Lord Dacre historia dor britânico 32 52 5 3 1 1 0 1 6 4 Tuck Richard colaborador 13 V ansina Jan antropólogo histórico belga 2 6 1 1 1 1 1 3 1 6 5 1 6 6 1 7 2 1 7 3 1 7 8 185 188 194 Venturi Franco historiador italiano cita do 138 Veralltaglichung 24 Vico Giambattista filósofo da história ita liana 19 Vigne Daniel diretor de cinema francês 348 vitoríanísmo 315 Voltaire 19 202 206 327 W aitangi Tratado de 166 W aite Robert historiador americano 33 W allerstein Immanuel historiador ameri cano 1 1 7 1 1 8 1 1 9 1 3 1 W eber M ax sociólogo alemão 24 108 208 301 W esseling Henk colaborador 20 2197 1 0 3 1 1 3 1 2 6 1 2 9 1 6 4 1 8 1 W heeler W illiam soldado britânico 39 4 0 4 1 5 3 W hite Hayden historiador americano 335 338 W ind Edgar historiador de arte alemão 27 W ittgenstein Ludwig filósofo austríaco citado 1 3 3 1 3 6 m encionado 155 W oolf Virginia escritora britânica 75 76 334 SOBRE O LIVRO Coleção B iblioteca Básica Formato 14 x 21 cm M an ch a 25 x 44 paicas Tipologia G oudy O ld Style 1214 Papél P ólen 80 gm 2 m iolo C artão Suprem o 250 gm 2 capa J a edição 1992 E Q U IP E D Ê R E A L IZ A Ç Ã O Produção G ráfica Sidn ei Sim onelli Gerente Edição de Texto Fábio G on çalves Assistente Editorial Erandy Lopes Preparação de original Fernanda Spin elli Rossi Bernadete dos San tos A breu e D alila M aria P Lem os Revisão Editoração Eletrônica Lourdes G u acira da Silv a Supervisão Luiza O dete A n dré Digitação D uclera G Pires de A lm eida Diagramação Projeto V isual Lourdes G u acira da Silv a à PETER BURKE O R G A ESCRITA DA HISTÓRIA N O V A S P E R S P E C T I V A S Neste universo que se expande e se fragmenta há uma necessidade crescente de orientação O que é a chamada nova história Quando ela é nova É um modismo temporário ou uma tendência de longo prazo Ela irá ou deverá substituir a história tradicional ou as rivais podem coexistir pacificamente O presente volume é destinado a responder a essas questões Peter Burke
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A ESCRITA DA HISTÓRIA NOVAS PERSPECTIVAS PETER BURKE ORGANIZADOR A ESCRITA JA HISTÓRIA N O VAS PER SPEC TIV A S FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP Presidente do Conselho C urador José C arlos Souza T rindade DiretorPresiden Ce José C astilh o M arques N eto Editor Executivo Jézio H ernani Bom fim G utierre Conselho Editorial Acadêmico A lberto Ikeda A n ton io C arlos C arrera de Souza A n to n io de Pádua Pithon C yrino B enedito A ntunes Isabel M aria F R Loureiro Lígia M V ettorato T revisan Lourdes A M dos San tos Pinto R aul Borges G uim arães R uben A ldrovandi Tanir R egina de Luca PETER BURKE Org A ESCRITA DA HISTÓRIA NOVAS PERSPECTIVAS Tradução de M agda Lopes 7a R eim pressão í Class Cutter Tombo Data O dio vrr rr C opyright 1991 by Basil Blackw ell Lim ited England T ítu lo original em inglês N ew Perspectives on H istorical W riting C opyright 1992 da tradução brasileira Editora U n esp da Fundação para o D esenvolvim ento da U niversidade Estadual Paulista FUNDUNESP Praça da Sé 108 01001900 S ã o Paulo S P T eL 01132427171 F ax0 1 1 3 2 4 2 7 1 7 2 H om e page wwweditoraunespbr Em ail feu editoraunespbr D ados Internacionais de C atalogação na Publicação CIP C âm ara Brasileira do Livro SP Brasil A Escrita a história novas perspectivas Peter Burke org tradução de Magda Lopes São Paulo Editora da Universidade Estadual Paulista 1992 Biblioteca básica dISBN 8571390274 1 Historiografia 1 Burke Peter II Série 921978 CDD9072 ín dices para catálogo sistem ático 1 Escola dos Annales Historiografia 9072 2 Historiografia 9072 3 Nova história Historiografia 9072 o Editora afiliada V B D R AMOCWÇXOflBaJW m onciiot cmocnuieot Asociaclón de Edltoriales Unlversltarlas de América Latina y el Caribe Associação Brasileira de Editoras Universitárias SUMÁRIO 7 Abertura a nova história seu passado e seu futuro Peter Burke 39 A história vista de baixo Jim Sharpe 63 História das mulheres Joan Scotc 97 História de alémmar Henlc Wesseling 133 Sobre a microhistória Giownni Leví 163 História oral Gun Prins 199 História da leitura Robert Darnton 237 História das imagens Ivan Gaskell 273 História do pensamento político Richard Tuck 291 História do corpo Roy Porter 321 A história dos acontecimentos e o renascimento da narrativa Peter Burke 349 índice remissivo 6 PETER BURKE ABERTURA A NOVA HISTÓRIA SEU PASSADO E SEU FUTURO1 Peter Burke M ais ou menos na última geração o universo dos historiadores se expandiu a uma velocidade vertiginosa2 A história nacional dominante no século dezenove atualmente tem de competir com a história mundial e a história regional antes deixada a cargo de antiquários3 amadores para conseguir atenção H á muitos Docente de História Cultural da Universidade de Catnbridge c M em bro do Emma nuel Collegc 1 C om referência à nomenclatura utilizada neste volume desejo registrar meus agradecimentos iis Profs M aria IJgia Prado e M aria Helena Capelato docentes de H istória da Universidade de São Paulo pelo inestimável auxilio na tradução dos termos específicos quase todos neologismos ou expressões adaptadas da linguagem comum Sua contribuição foi fundamental para a clareza do texto NT 2 Este ensaio deve muito a discussões com Raphael Sam uel durante muitos anos a Gwyn Prins e a várias gerações de estudantes do Em annuel College em Cambridge e m ais recentemente a Nilo O dália e à participante audiência em m inhas conferências na Universidade Estadual de São Paulo em Araraquara em 1989 3 N o século dezessete vários estudiosos posteriormente chamados de antiquários antiquariam começaram a coletar documentos antigos visando a comprovação de fatos históricos A partir dessa atividade o antiquarianismo iniciaram uma contestação à realeza pregando um maior poder ao parlamento o que provocou sua perseguição durante o reinado de Carlos I Contrapunhamse aos historiadores da época que não verificavam a veracidade dos fatos e limitavamse ao relato da história da nobreza NT 8 PETER BURKE cam pos novos freqüentemente patrocinados por publicações es pecializadas A história social por exemplo tornouse independen te da história econômica apenas para se fragmentar como alguma nova nação em demografia histórica história do trabalho história urbana história rural e assim por diante M ais uma vez a história econômica dividiuse em antiga e nova A nova história econômica dos anos 50 e 60 agora de meiaidade se não mais velha é suficientemente conhecida para necessitar aqui de uma discussão4 Tem havido também uma mudança entre os historiadores econômicos de uma preocupação com a produção para uma preocupação com o consumo mudança esta que cria uma dificuldade crescente na separação entre a história econômica e a história social e cultural A história do gerenciamento é um interesse recente mas fica obscura se não se dissolvem as ligações entre a história econômica e a administrativa Outra especialização a história da publicidade abarca a história econômica e a história da comunicação Atualmente a verdadeira identidade da história econômica está ameaçada por uma proposta de controle de um empreendimento jovem mas ambicioso a história do meio am biente às vezes conhecida como ecohistória A história política também está dividida não apenas nas chamadas escolas de grau superior e elementar mas também entre os historiadores preocupados com os centros de governo e aqueles interessados na política em suas raízes O território da política expandiuse no sentido de que os historiadores seguindo teóricos com o Michel Foucault estão cada vez mais inclinados a discutir a luta pelo poder na fábrica na escola ou até mesmo na família Entretanto o preço de tal expansão é um a espécie de crise de identidade Se a política está em toda parte será que há necessidade de história política5 O s historiadores culturais estão diante de um problema similar na medida em que se afastam de um a definição 4 Para um exemplo fam oso e discutível ver RW Fogel e S Engerman Time on the Cross Boston 1974 H á uma avaliação criteriosa da posição atual da história econôm ica em D C Colem an Hístory and the Economic Past O xford 1987 5 J Vincent The Formation of the British Liberal Parfy Londres 1966 A ESCRITA DA HISTÓRIA 9 estreita mas precisa de cultura em termos de arte literatura música etc para uma definição mais antropológica do campo Neste universo que se expande e se fragmenta há uma necessidade crescente de orientação O que é a chamada nova história Q uanto ela é nova E um m odismo temporário ou uma tendência de longo prazo Ela irá ou deverá substituir a história tradicional ou as rivais podenj coexistir pacificamente O presente volume é destinado a responder a essas questões U m exame abrangente das variedades da história contemporânea não deixaria espaço para mais do que uma discussão superficial Por isso tomouse a decisão de concentrar a atenção em alguns movimentos relativamente recentes6 O s ensaios sobre esses movi mentos estâo preocupados pelo menos implicitamente com mui tos dos mesmos problemas fundamentais Pode ser útil confrontar de início esses problemas e situálos no contexto de mudanças de longo prazo na escrita da história O que é a nova história A expressão a nova história é mais bem conhecida na França La nouvelle histoire é o título de uma coleção de ensaios editada pelo renomado medievalista francês Jacques Le Goff Le G off também auxiliou na edição de um a maciça coleção de ensaios de três volumes acerca de novos problemas novas abordagens e novos objetos 7 Nesses casos está claro o que é a nova história é uma história made in France o país da nouvelle vague e do nouveau roman sem mencionar la nouvelle cuisine M ais exatamente é a história associada à chamada École des Annales agrupada em torno da revista Annales économies societés civilisations 6 O utras variedades são examinadas em What is History Todayl J G ardinej Londres 1988 7 J Le G off ed La nouvelle histoire Paris 1978 J Le Goff P N ora ed Faire de Vhistoire Paris 1974 3 v Alguns dos ensaios desta coleção estão disponíveis em inglês J Le Goff P N ora eds Constructing thePast Cam bridge 1985 10 PETER BURKE O qjae é essa nouvelle histoire U m a definição categórica não é fácil o movimento está unido apenas naquilo a que se opõe e as páginas que se seguem irão demonstrar a variedade das novas abordagens E por isso dificil apresentar mais que uma descrição vaga caracterizando a nova história como história total histoire totale ou história estrutural Por isso pode ser o caso de se imitar os teólogos medievais diante do problema de definir Deus e optar por uma via negativa em outras palavras definir a nova história em termos do que ela não é daquilo a que se opõem seus estudiosos A nova história é a história escrita como uma reação deliberada contra o paradigma tradicional aquele termo útil embora im preciso posto em circulação pelo historiador de ciência americano Thom as Kuhn8 Será conveniente descrever este paradigma tradi cional como história rankeana conforme o grande historiador alemão Leopold von Ranke 17951886 embora este estivesse menos limitado por ele que seus seguidores Assim como Marx não era um marxista Ranke não era um rankeano Poderíamos também chamar este paradigma de a visão do senso comum da história não para enaltecêlo mas para assinalar queele tem sido com freqüência com muita freqüência considerado a maneira de se fazer história ao invés de ser percebido como uma dentre várias abordagens possíveis do passado Em prol da simplicidade e da clareza o contraste entre a antiga e a nova história pode ser resumido em seis pontos 1 De acordo com o paradigma tradicional a história diz respeito essencialmente à política N a ousada frase vitoriana de Sir John Seeley Catedrático de História em Cambridge História é a política passada política é a história presente A política foi admitida para ser essencialmente relacionada ao Estado em outras palavras era mais nacional e internacional do que regional N o entanto não incluía a história da Igreja como uma instituição e também o que o teórico militar Karl von Clausewitz definiu como a continuação da 8 T S Kuhn The Structure of Scientific Revolucions N ova York 1961 A ESCRITA DA HISTÓRIA 11 política por outros meios ou seja a guerra Embora outros tipos de história a história da arte por exemplo ou a história da ciência não fossem totalmente excluídos pelo paradigma tradicional eram marginalizados no sentido de serem considerados periféricos aos interesses dos verdadeiros historiadores Por outro lado a nova história começou a se interessar por virtualmente toda a atividade humana Tudo tem um a história como escreveu certa ocasião o cientista JBS Haldane ou seja tudo tem um passado que pode em princípio ser reconstruído e relacionado ao restante do passado9 Daí a expressão história total tão cara aos historiadores dos Armaíes A primeira metade do século testemunhou a ascensão da história das idéias N os últimos trinta anos nos deparamos com várias histórias notáveis de tópicos que anteriormente não se havia pensado possuírem uma história como por exemplo a infância a morte a loucura o clima os odores a sujeira e a limpeza os gestos o corpo como apresen tado por Roy Porter p 291 a feminilidade discutida por Joan Scott p 63 a leitura discutida por Robert Darnton p 199 a fala e até mesmo o silêncio10 O que era previamente considerado imutável é agora encarado como uma construção cultural sujeita a variações tanto no tempo quanto no espaço O relativismo cultural aqui implícito merece ser enfatizado A base filosófica da nova história é a idéia de que a realidade é social ou culturalmente constituída O compartilhar dessa idéia ou sua suposição por muitos historiadores sociais e antropólogos sociais ajuda a explicar a recente convergência entre essas duas discipli nas citadas mais de uma vez nas páginas que se seguem Este 9 JB S H aldane Everthin has a History Londres 1951 10 P Ariès Centuries of ChiIdhood trad de R Baldick Londres 1962 P Ariès The Hour oO u r Death trad de H Weaver Londres 1981 M Foucault Maciness and Civilisation trad de R Howard Londres 1967 E Le Roy Ladurie Times ofFeast Times of Famine trad de B Bray Nova York 1971 A Corbin The Fouland the Fragrant tradução Leamington 1986 G Vigarello Concepts of Cleanliness tradu ção Cam bridge 1988 JC Schmitt ed Gestures publicação especial Historçi and Anthropology 1 1984 R Baum an Let Your Words be Few Cambridge 1984 12 PETER BURKE relativismo também destrói a tradicional distinção entre o que é central e o que é periférico na história 2 Em segundo lugar os historiadores tradicionais pensam na história como essencialmente uma narrativa dos acontecimentos enquanto a nova história está mais preocupada com a análise das estruturas U m a das obras mais famosas da história de nossa época o Mediterranean de Fernand Braudel rejeita a história dos aconte cimentos histoire événementielle como não mais que a espum a nas ondas do mar da história11 Segundo Braudel o que realmente importa são as mudanças econômicas e sociais de longo prazo la longue durée e as mudanças geohistóricas de muito longo prazo Em bora recentemente tenha surgido alguma reação contra este ponto de vista discutido adiante na p 327 e os acontecimentos não sejam mais tão facilmente rejeitados quanto costumavam ser a história das estruturas de vários tipos continua a ser considerada muito seriamente 3 Em terceiro lugar a história tradicional oferece uma visão de cima no sentido de que tem sempre se concentrado nos grandes feitos dos grandes homens estadistas generais ou ocasionalmente eclesiásticos Ao resto da humanidade foi destinado um papel secundário no drama da história A existência dessa regra é revelada pelas reações a sua transgressão Quando o grande escritor russo Alexandre Pushkin estava trabalhando em um relato de uma revolta de camponeses e de seu líder Pugachev o comentário do czar Nicolau foi que tal homem não tem história N os anos 50 quando um historiador britânico escreveu uma tese sobre um movimento popu lar na Revolução Francesa um de seus examinadores perguntoulhe Por que você se preocupa com esses bandidos12 Por outro lado como m ostra im Sharpe p 40 vários no vos historiadores estão preocupados com a história vista de 11 F Braudel The Mediterranean and the Mediterranean World in the Age of Philip U trad de S Reynolds 2 ed Londres 19723 2 v 12 O nom e do examinador era Lewis Namier R C obb The Police and the People O xford 1970 p 81 A ESCRITA DA HISTÓRIA 13 baixo13 em outras palavras com as opiniões das pessoas comuns e com sua experiência da mudança social A história da cultura popular tem recebido bastante atenção O s historiadores da Igreja estão começando a estudar sua história vista tanto de baixo como de cim a14 O s historiadores intelectuais também têm deslocado sua atenção dos grandes livros ou das grandes idéias seu equivalente aos grandes homens para a história das mentalida des coletivas ou para a história dos discursos ou linguagens a linguagem da escolâstica por exemplo ou a linguagem forense cf com o ensaio de Richard Tuck mais adiante na p 27315 4 Em quarto lugar segundo o paradigma tradicional a história deveria ser baseada em documentos U m a das grandes contribui ções de Ranke foi sua exposição das limitações das fontes narrativas vamos chamálas de crônicas e sua ênfase na necessidade de basear a história escrita em registros oficiais emanados do governo e preservados em arquivos O preço dessa contribuição foi a negligência de outros tipos de evidência O período anterior à invenção da escrita foi posto de lado como préhistória Entre tanto o movimento da história vista de baixo por sua vez expôs as limitações desse tipo de documento O s registros oficiais em geral expressam o ponto de vista oficial Para reconstruir as atitudes dos hereges e dos rebeldes tais registros necessitam ser suplemen tados por outros tipos de fonte 13 O ptam os pelas expressões história vista de baixo e história vista de cim a para as originais historyfrom below e history from above para as quais os historiadores franceses utilizam as expressões histoire vue d un haut e histoire vue dun bas Em bora uma tradução literal pareceunos a m ais adequada aos propósitos dos autores qual seja a do estabelecimento da perspectiva do historiador ao narrar a história NT 14 E H oornaert et al História da Igreja no Brasil ensaio de interpretação a partir do povo Petró polis 1977 15 JG A Pocock The Concept o f a Language em The Language of Political Theorji ed A Pagden Cam bridge 1987 Cf D Kelley Horizons o f Intellectual History Journal of the History of Ideas 48 p14369 1987 e W hat is H appening to the History o f Ideas Journal of the History of Ideas Journal of the History of Ideas 51 p 325 1990 14 PETER BURKE De qualquer modo se os historiadores estão mais preocupados que seus antecessores com uma maior variedade de atividades humanas devem examinar uma maior variedade de evidências Algumas dessas evidências são visuais outras orais ver Ivan Gaskell e Gwyn Prins p 237 e 163 respectivamente Há também evidência estatística dados comerciais dados populaçionais dados eleitorais etc O ponto alto da história quantitativa foi provavel mente os anos 50 e 60 quando alguns entusiastas afirmaram que apenas os métodos quantitativos eram confiáveis Houve uma reação contra tais afirmações e de certa forma também contra os métodos mas o interesse em uma história quantitativa mais modesta continua a crescer Na GrãBretanha por exemplo foi fundada em 1987 uma Associação para a História e Computação 5 De acordo com o paradigma tradicional memoravelmente enunciado pelo filósofo e historiador RG Collingwood Q uando um historiador pergunta Por que Brutus apunhalou César ele quer dizer O que Brutus pensou o que fez com que ele decidisse apunhalar César16 Esse modelo de explicação histórica foi criti cado por historiadores mais recentes em vários campos principal mente porque ele falha na avaliação da variedade de questionamen tos dos historiadores com freqüência preocupados tanto com q s movimentos coletivos quanto com as ações individuais tanto com as tendências quanto xom os acontecimentos Por que por exemplo os preços se elevaram na Espanha no século dezesseis O s historiadores econômicos não concordam em sua resposta a essa questão mas suas várias respostas em termos de importações de prata crescimento da população etc estão muito distantes do modelo de Collingwood N o famoso estudo de Fernand Braudel sobre o Mediterrâneo do século dezesseis publi cado pela primeira vez em 1949 apenas a terceira e última parte dedicada à história dos acontecimentos faz perguntas remotamente semelhantes às de Collingwood e mesmo aí o autor apresenta um tipo muito diferente de resposta enfatizando os constrangimentos 16 R G Collingwood The Idea of History Oxford 1946 p 213f A ESCRITA DA HISTÓRIA 15 do seu protagonista o Rei Felipe II e a ausência de influência do rei sobre a história de sua época17 6 Segundo o paradigma tradicional a História é objetiva A tarefa do historiador é apresentar aos leitores os fatos ou como apontou Ranke em uma frase muito citada dizer como eles realmente aconteceram Sua modesta rejeição das intenções filo sóficas foi interpretada pela posteridade como um presunçoso manifesto à história sem tendências viciosas Em um a famosa carta a seu grupo internacional de colaboradores da Cambridge Modem History publicada a partir de 1902 seu editor Lord Acton insistiu com eles que o nosso Waterloo deve ser tal que satisfaça do mesmo modo a franceses e ingleses alemães e holandeses e que os leitores deveriam ser incapazes de dizer onde um colaborador iniciou e outro continuou18 Hoje em dia este ideal é em geral considerado irrealista Por mais que lutemos arduamente para evitar os preconceitos associa dos a cor credo classe ou sexo não podemos evitar olhar o passado de um ponto de vista particular O relativismo cultural obviamente se aplica tanto à própria escrita da história quanto a seus chama dos objetos N ossas mentes não refletem diretamente a realidade Só percebemos o mundo através de uma estrutura de convenções esquemas e estereótipos um entrelaçamento que varia de uma cultura para outra N essa situação nossa percepção dos conflitos é certamente mais realçada por uma apresentação de pontos de vista opostos do que por uma tentativa como a de Acton de articular um consenso N ós nos deslocamos do ideal da Voz da História para aquele da heteroglossia definida como vozes varia das e opostas adiante p 33619 Por isso foi muito apropriado 17 Braudel 1949 18 Citado em Varieties of History ed F Stern Nova York 1956 p 249 19 Tirei a expressão do famoso crítico russo Mikhail Bakhtin em seu Dialogic Imagina tion trad de C Em erson e M Holquist Austin 1981 p xix 49 55 263 273 Cf M de Certeau Heterologies Discourse on the Other trad de B M assum i Minneapo lis 1986 ts FIBRA s i P 16 A j v O y PETER BURKE que este volume tomasse a forma de uma obra coletiva e que seus colaboradores falassem línguas maternas diferentes A história rankeana era o território dos profissionais O século dezenove foi a época em que a história se tornou profissionalizada com seus departamentos nas universidades e suas publicações específicas como a Historische Zeitschrift e a English Historical Review A maior parte dos principais novos historiadores são também profissionais com a notável exceção do falecido Philippe Ariès que gostava de descrever a si próprio como um historiador domingueiro U m a maneira de descrever as realizações do grupo dos Annales é dizer que eles mostraram que a história econômica social e cultural pode atingir exatamente os padrões profissionais estabelecidos por Ranke para a história política Seja como for sua preocupação com toda a abrangência da atividade humana os encoraja a ser interdisciplinares no sentido de aprenderem a colaborar com antropólogos sociais economistas críticos literários psicólogos sociólogos etc O s historiadores de arte literatura e ciência que costumavam buscar seus interesses mais ou menos isolados do corpo principal de historiadores estão agora mantendo com eles um contato mais regular O movimento da históriavistadebaixo também reflete uma nova determinação para considerar mais seriamente as opiniões das pessoas comuns sobre seu próprio passado do que costumavam fazer os historiado res profissionais20 O mesmo acontece com algumas formas de história oral adiante p 163 Neste sentido também a heteroglos sia é essencial à nova história Quanto é nova a nova história Quem inventou ou descobriu a nova história A expressão é às vezes utilizada para os desenvolvimentos ocorridos nos anos 70 e 80 período em que a reação contra o paradigma tradicional 20 V er quase todos os ensaios do History Workshop Journal A ESCRITA DA HISTÓRIA 11 tornouse mundial envolvendo historiadores do Japão da índia ila América Latina e de vários outros lugares O s ensaios deste volume focalizam este período em particular E claro no entanto que muitas das mudanças ocorridas na escrita da história nestas duas décadas são parte de uma tendência mais antiga Para muitas pessoas a nova história está associada a Lucien ebvre e a Marc Bloch que fundaram a revista Annales em 1929 para divulgar sua abordagem e na geração seguinte a Fernand Braudel N a verdade seria difícil negar a importância do movimen to para a renovação da história liderado por esses homens Todavia eles não estavam sozinhos em sua revolta contra os rankeanos N a GrãBretanha dos anos 30 Lewis Namier e RH rawney rejeitaram ambos a narrativa dos acontecimentos para alguns tipos de história estrutural N a Alemanha por volta de 1900 Karl Lamprecht tornouse impopular expressando seu de safio ao paradigma tradicional A desdenhosa expressão histoire cvénementielle história centralizada nos acontecimentos foi in ventada nessa ocasião uma geração antes da época de Braudel Bloch e Febvre21 Expressa as idéias de um grupo de estudio sos concentrados em torno do grande sociólogo francês Emile Durkheim e sua revista Annçe Sociologique publicação que ajudou a inspirar os Annales M esm o a expressão a nova história tem uma história própria O primeiro uso da expressão por mim conhecido data de 1912 quando o estudioso americano James Harvey Robinson publicou um livro com este título O conteúdo correspondia ao título História escreveu Robinson inclui todo traço e vestígio de tudo o que o homem fez ou pensou desde seu primeiro aparecimento sobre a terra Em outras palavras ele acreditava na história total Em relação ao método A Nova História estou novamente citando Robinson vai servirse de todas aquelas descobertas que estão sendo feitas sobre a humanidade pelos antropólogos econo I Cf P Burke The French Histórica Revoíution Cambridge 1990 p 113 18 PETER BURKE mistaspsicólogos e sociólogos22 Este movimento para uma nova história não foi bem sucedido nos Estados U nidos na época mas o entusiasmo americano mais recente pelos Annales tornase mais inteligível se recordarmos essa experiência local N ão há uma boa razão para se parar em 1912 ou mesmo em 1900 Tem sido recentemente argumentado que a substituição de um a história antiga por uma nova mais objetiva e menos literária é um tema recorrente na história da escrita da história23 Tais afirmações foram feitas pela escola de Ranke no século dezenove pelo grande estudioso beneditino Jean Mabillon que formulou novos métodos de crítica da fonte no século dezessete e pelo historiador grego Políbio que denunciou alguns de seus compa nheiros como meros retóricos cento e cinqüenta anos antes do nascimento de Cristo N o primeiro caso pelo menos a reivindi cação da novidade foi consciente Em 1867 o grande historiador holandês Robert Fruin publicou um ensaio chamado A Nova Historiografia uma defesa da história científica rankeana24 Tam bém remontam a um longo percurso as tentativas de escrever uma história mais abrangente que aquela dos aconteci mentos políticos Foi na segunda metade do século dezenove que a história econômica se estabeleceu na Alemanha Em 1860 o estudioso suiço Jacob Burckhardt publicou um estudo de The Civilization of the Renaissance in Italy concentrado na história cultural e descrevendo mais as tendências do que narrando os acontecimentos O s sociólogos do século dezenove como Auguste Comte Herbert Spencer sem mencionar Karl Marx eram extremamente interessados pela história mas desprezavam os historiadores profissionais Estavam interessados nas estruturas 22 JH Robinson The New History Nova York 1912 cf JR Pole The New History and the Sense o f Social Purpose in American H istorical W riting 1973 reeditado em seu Pachs to the American Past N ova York 1979 p 27198 23 L Orr The Revenge o f Literature New Literary History 18 p 122 1986 24 R Fruin De Nieuwe historiographie reeditado em seu Verspreide Geschriften 9 H aia 1904 p 41018 A ESCRITA DA HISTÓRIA 19 não nos acontecimentos e a nova história tem um débito para com eles que freqüentemente não é reconhecido Eles por sua vez têm um débito para com seus antecessores que freqüentemente não reconhecem os historiadores do Ilumi nismo entre eles Voltaire G ibbon apesar da observação que citei antes Robertson Vico M õser e outros N o século dezoito houve um movimento internacional para a escrita de um tipo de história que não estaria confinada aos acontecimentos militares e políticos mas relacionada às leis ao comércio à manière de penser de uma determinada sociedade com seus hábitos e costumes com o espírito da época N a Alemanha em particular houve um vivo interesse pela história mundial25 Estudos da história das mulheres foram publicados pelo escocês W illiam Alexander e por Christoph Meiners professor da Universidade de Gõttingen um centro da nova história social no final do século dezoito26 Assim a história alternativa discutida neste volume tem uma ancestralidade razoavelmente longa ainda que os antepassados pudessem não reconhecer seus descendentes O que é novo não é sua existência mas o fato de seus profissionais serem agora extremamente numerosos e se recusarem a ser marginalizados Problemas de definição o O propósito deste volume não é celebrar a nova história a despeito dos colaboradores concordarem que pelo menos alguns de seus tipos são valiosos realmente necessários mas estabelecer seus pontos fortes e fracos O movimento de mudança surgiu a partir de um a percepção difundida da inadequação do paradigma tradicional Esta percepção da inadequação só pode ser compreen dida se olharmos além do âmbito do historiador para as m udan 25 M Harbsm eier W orld Histories before Domestication Culture and History 5 p 931311989 26 W Alexander The History of Women Londres 1779 C M einers Geschcchte des weiblichen Geschlechts Hanover 17881800 4 v 20 PETER BURKE ças no mundo mais amplo A descolonização e o feminismo por exemplo são dois movimentos que obviamente tiveram grande impacto sobre a escrita histórica recente o que fica bastante claro nos capítulos de autoria de Henk W esseling e Joan Scott N o futuro é provável que o movimento ecológico tenha cada vez mais influência sobre a forma como a história é escrita N a verdade ele sempre inspirou vários estudos A famo sa monografia de Braudel sobre o Mediterrâneo chamou a atenção quando foi pela primeira vez publicada em 1949 pela quantida de de espaço dedicado ao ambiente físico terra e mar montanhas e ilhas Atualmente entretanto o quadro de Braudel parece curiosamente estático porque o autor não considerou de modo sério as maneiras pelas quais o ambiente foi modificado pela presença do homem destruindo florestas por exemplo para construir as galeras que aparecem com tanto destaque nas páginas de The Mediterranean Vários autores têm apresentado uma ecohistória mais dinâmi ca W illiam Cronon escreveu um belo estudo a respeito da Nova Inglaterra colonial focalizado nos efeitos da chegada dos europeus sobre as plantas e as comunidades animais da região observando o desaparecimento de castores e ursos cedros e pinheirosbrancos e a crescente importância dos animais de pasto de origem européia Em um a escala bastante diferente Alfred Crosby discutiu o que ele chama de a expansão biológica da Europa entre 900 e 1900 e o lugar das doenças européias abrindo caminho para o estabe lecimento bemsucedido das NeoEuropas da Nova Inglaterra à Nova Zelândia27 D o mesmo modo por razões internas e externas não é fora de propósito falarse da crise do paradigma tradicional da escrita da história Todavia o novo paradigma também tem seus proble mas problemas de definição problemas de fontes problemas de método problemas de explicação Esses problemas irão reaparecer 27 W C ronon Changes in the Lanei Nova York 1983 AW Crosby Ecological Imperialism Cambridge 1986 A ESCRITA DA HISTÓRIA 21 aos capítulos específicos mas pode ser importante neste momento apresentar uma breve discussão de todos eles O s problemas de definição ocorrem porque os novos historia dores estão avançando em território não familiar C om o normal mente fazem os exploradores de outras culturas eles começam com uma espécie de imagem negativa daquilo que estão procurando A história do Oriente tem sido percebida pelos historiadores ociden tais como o oposto de sua própria história eliminadas as diferenças entre o Extremo Oriente a China e o Japão etc28 Com o observa mais adiante Henk W esseling p 97 a história mundial tem sido com freqüência encarada pelos ocidentais como o estudo das relações entre o Ocidente e o resto ignorando as interações entre a Á sia e a África a Á sia e a América etc Mais uma vez a história vista de baixo foi originalmente conceitualizada como a inversão da história vista de cima com a baixa cultura no lugar da cultura erudita N o decorrer de sua pesquisa contudo os estudiosos tornaramse cada vez mais conscientes dos problemas inerentes a essa dicotomia Por exemplo se a cultura popular é a cultura do povo quem o o povo São todos o pobre as classes subalternas como costumava chamálas o intelectual marxista Antonio Gramsci São os analfabetos ou os incultos N ão podemos presumir que as divisões econômicas políticas e culturais em uma determinada sociedade necessariamente coincidam E o que é educação Apenas o treinamento transmitido em algumas instituições oficiais como escolas ou universidades As pessoas comuns são ignorantes ou simplesmente têm uma educação diferente uma cultura diferente das elites Evidentemente não deveria ser suposto que todas as pessoas comuns têm as mesmas experiências e a importância de distin guir a história das mulheres daquela dos homens é enfatizada por Joan Scott p 63 Em algumas partes do mundo da Itáli ao M H á alguns comentários perspicazes sobre este problem a em E Said Orientaiism Londres 1978 Brasil a história do povo é com freqüência chamada a história do dom inado assim assemelhando as experiências das classes su bordinadas no ocidente àquelas das colonizadas29 N o entanto as diferenças entre essas experiências também necessitam ser discutidas A expressão história vista de baixo parece oferecer uma escapatória a essas dificuldades mas gera problemas próprios Ela muda seu significado em contextos diferentes U m a história polí tica vista de baixo deveria discutir os pontos de vista e as ações de todos que estão excluídos do poder ou deveria lidar com a política em um nível local ou popular U m a história da Igreja vista de baixo deveria encarar a religião do ponto de vista do leigo seja qual for a sua condição social U m a história da medicina vista de baixo deveria se preocupar com os curandeiros em oposição aos médicos ou com as experiências dos pacientes e os diagnósticos de doença30 U m a história militar vista de baixo deveria lidar com o Agincourt ou o W aterloo do soldado comum como fez John Keegan tão memoravelmente ou deveria concentrarse na experiência civil da guerra31 U m a história da educação vista de baixo deveria deslocar se dos ministros e teóricos da educação para os professores comuns como fez Jacques Ozouf por exemplo ou deveria apre sentar as escolas do ponto de vista dos alunos32 U m a história econômica vista de baixo deveria focalizar o pequeno comerciante ou o pequeno consumidor U m a razão para a dificuldade de definir a história da cultura popular é que a noção de cultura é algo ainda mais difícil de precisar que a noção de popular A chamada definição opera house de cultura como arte erudita literatura erudita música erudita etc era restrita mas pelo menos era precisa U m a noção 22 PETER BURKE 29 E D e Decca 1930 o silêncio dos vencidos São Paulo 1981 30 Cf R Porter The Patients View D oing M edicai History from Below Theory and Society 14 p 175981985 31 Sobre os soldados comuns v erj Keegan The Face of Batde Londres 1976 32 J O zouf ed Nous les maitres decole Paris 1967 examina a experiência dos professores de escola elementar c 1914 A ESCRITA DA HISTÓRIA 23 ampla de cultura é central à nova história33 O estado os grupos sociais e até mesmo o sexo ou a sociedade em si são considerados como culturalmente construídos Contudo se utilizamos o termo em um sentido amplo temos pelo menos que nos perguntar o que não deve ser considerado como cultura Outro exemplo de uma nova abordagem que gerou problemas de definição é a história da vida cotidijina Alltagsgeschichte como a chamam os alemães A expressão em si não é nova la vie quotidienne era o título de uma série lançada pelos editores franceses Hachette nos anos 30 O novo é a importância dada à vida cotidiana nos escritos históricos contemporâneos especialmente desde a publicação do famoso estudo de Braudel da civilização material em 196734 Outrora rejeitada como trivial a história da vida cotidiana é encarada agora por alguns historiadores como a única história verdadeira o centro a que tudo o mais deve ser relacionado O cotidiano está também nas encruzilhadas de abor dagens recentes na sociologia de Michel de Certeau a Erving Goffman e na filosofia seja ela marxista ou fenomenológica35 O que essas abordagens têm em comum é sua preocupação com o m undo da experiência comum mais do que a sociedade por si só como seu ponto de partida juntamente com uma tentativa de encarar a vida cotidiana como problemática no sentido de mostrar que o comportamento ou os valores que são tacitamen te aceitos em uma sociedade são rejeitados como intrinsecamente absurdos em outra O s historiadores assim como os antropólogos sociais tentam agora pôr a nu as regras latentes da vida cotidiana a poesia do diaadia como a expressou o semiótico russo Juri Lotman e mostrar a seus leitores como ser um pai ou uma filha 33 Lc H unted The N ew Cultural History Bcrkeley 1989 34 F Braudel Civilisation matérielleetcapicalisme Paris 1967 ed revisada Les structures duquotidien Paris 1979 The Structures ofEveryday Life trad de M Kochan Londres 1981 Cf J Kuczynski Geschichte des Alltags des Deutschen Volkes Berlim 19802 v 4 35 M de Certeau Linuention du quotidien Paris 1980 E Goffm an The Presentation of Self in Everyday Life Nova York 1959 H Lefebvre Critique de la vie quotidienne Paris 194681 3 v Cf F Mackie The Status of Everyday Life Londres 1985 24 PETER BURKE umjuiz ou um santo em uma determinada cultura36 Neste ponto a história social e a cultura parecem estar se dissolvendo uma na outra Alguns profissionais definemse como novos historiadores culturais outros como historiadores socioculturais 37 Seja como for o impacto do relativismo cultural sobre o escrito histórico parece inevitável Entretanto como observou o sociólogo Norbert Elias em um importante ensaio a noção do cotidiano é menos precisa e mais complicada do que parece Elias distingue oito significados atuais do termo desde a vida privada até o mundo das pessoas com uns38 O cotidiano inclui ações Braudel o define como o reino da roti na e também atitudes o que poderíamos chamar de hábitos mentais Pode até incluir o ritual E o ritual indicador de ocasiões especiais na vida dos indivíduos e das comunidades é com freqüên cia definido em oposição ao cotidiano Por outro lado os visitantes estrangeiros muitas vezes observam rituais cotidianos na vida de toda sociedade m odos de comer formas de saudação etc que os habitantes locais não encaram de forma alguma como rituais Igualmente difícil de descrever ou analisar é a relação entre as estruturas do cotidiano e a mudança Visto de seu interior o cotidiano parece eterno O desafio para o historiador social é mostrar como ele de fato faz parte da história relacionar a vida cotidiana aos grandes acontecimentos como a Reforma ou a Revolução Francesa ou a tendências de longo prazo como a ocidentalização ou a ascensão do capitalismo O famoso sociólogo M ax W eber criou um termo famoso que pode ser útil aqui rotinização Veralltüglichung literalmente cotidianização U m foco de atenção para os historiadores sociais poderia ser o processo 36 J Lotman The Poetics of Everyday Behaviour in Russian EighteenthCentury Culture em The Semiotics of Russian Cuiture ed Lotman e BA U spenskii Ann Arbor 1984 p 23156 U m a discussão mais am pla do problema de se escrever a história das regras culturais está em P Burke Histórica Anthropology of Early Mociern Italy Cam bridge 1987 p 5f 21 f 37 L Hunt ed The New Cultural History Berkeley 1989 38 N Elias Zum Begriff des Alltags em Materiellen zur Soziologie des Alltags ed K Ham m erich e M Klein Opladen 1978 p 229 A ESCRITA DA HISTÓRIA 25 de interação entre acontecimentos importantes e as tendências por um lado e as estruturas da vida cotidiana por outro Até que ponto por que meios e durante que período a Revolução Francesa ou a Revolução Russa por exemplo penetraram na vida cotidiana dos diferentes grupos sociais até que ponto e com que sucesso eles resistiram Problemas das fontes O s maiores problemas para os novos historiadores no en tanto são certamente aqueles das fontes e dos métodos Já foi sugerido que quando os historiadores começaram a fazer novos tipos de perguntas sobre o passado para escolher novos objetos de pesquisa tiveram de buscar novos tipos de fontes para suplementar os documentos oficiais Alguns se voltaram para a história oral cf p 163 outros à evidência das imagens cf 237 outros à estatística Tam bém se provou possível reler alguns tipos de registros oficiais de novas maneiras O s historiadores da cultura popular por exemplo têm feito grande uso de registros judiciais especialmente os interrogatórios de suspeitos Dois estudos fam osos da história vista de baixo são baseadps em registros de inquisição o Montaillou 1975 de Le Roy Ladurie cf Jim Sharpe p 39 e The Cheese and the Worms 1986 de Ginzburg Todavia todas essas fontes suscitam problemas embaraçosos O s historiadores da cultura popular tentam reconstruir as suposi ções cotidianas comuns tendo como base os registros do que foram acontecimentos extraordinários nas vidas do acusado inter rogatórios e julgamentos Tentam reconstruir o que as pessoas pensavam baseandose naquilo que os acusados que podem não ter sido um grupo típico tinham preparado para dizer na situação incomum para não dizer terriíicante em que se encontravam Por isso é necessário ler os documentos nas entrelinhas N ão há nada de errado em tentar ler nas entrelinhas particularmente quando a 26 O i PETER BURKE tentativa é realizada por historiadores com a sutileza de um Ginzburg ou de um Le Roy Ladurie Seja como for os princípios subjacentes a tal leitura não são sempre claros Só é razoável admitir que retratar o socialmente invisível as mulheres trabalhadoras por exemplo ou ouvir o inarticulado a maioria silenciosa dos mortos entretanto necessá rios como parte da história total é um empreendimento mais arriscado do que em geral é o caso na história tradicional Nem sempre esse é o caso A história política da época de Carlos Magno por exemplo é baseada em fontes pelo menos tão esparsas e nãoconfiáveis quanto à história da cultura popular no século dezesseis39 Boa parte da atenção tem sido dada à evidência oral uma parcela por historiadores da África como Jan Vansina preocupado com a confiabilidade das tradições orais através dos séculos e outra por historiadores contemporâneos como Paul Thom pson recons truindo a experiência da vida na época edwardiana O problema da influência do historiadorentrevistador e da situação da entre vista sobre o depoimento da testemunha tem sido discutido40 Mas é apenas razoável admitir que a crítica das testemunhas orais ainda não atingiu a sofisticação da crítica de um documento que os historiadores têm praticado durante séculos Podese ter alguma idéia da distância percorrida em um quarto de século e da longa distância ainda por percorrer comparandose a primeira edição do estudo de V ansina sobre a tradição oral publicado pela primeira vez em 1961 com a versão completamente reescrita de 198541 A situação é um pouco semelhante no caso de fotografias de imagens e mais comumente da evidência de cultura material U m a obra recente sobre fotografia incluindo cinema desmascarou a presunção de que a câmera é um registro objetivo da realidade 39 Cf P Burke Popular Culture in Early Modem Europe Londres 1978 capítulo 3 40 R Sam uel e P Thom pson ed The Mjitis We Live By Londres 1990 41 P Thom pson The Voice of the Past 1978 ed revista Oxford 1988 J V ansina Oral Tradition trad H M W right Londres 1965 e Oral Tradüion as History M adison 1985 A ESCRITA DA HISTÓRIA 27 enfatizando não apenas a seleção feita por fotógrafos segundo seus interesses crenças valores preconceitos etc mas também seu débito consciente ou inconsciente às convenções pictóricas Se algumas fotografias vitorianas da vida rural parecem paisagens holandesas do século dezessete isso pode muito bem ocorrer porque os fotógrafos conheciam as pinturas e colocavam seus modelos em conformidade com elas para produzirem como expressou Thom as Hardy no subtítulo a Under the Greenwood Tree um a pintura da escola holandesa A ssim como os historiadores os fotógrafos não apresentam reflexos da realidade mas represen tações da realidade Alguns passos importantes foram dados em direção a uma crítica da fonte das imagens fotográficas mas ãí também ainda há um longo caminho a percorrer42 N o caso das imagens pictóricas discutidas mais adiante por Ivan Gaskell o clima de entusiasmo para a decodificação de sua iconografia ou iconologia em meados do século vinte período de virtuoses como Erwin Panofsky e Edgar W ind foi sucedido por um período gelado de relativo ceticismoOs critérios para a interpretação dos significados latentes em particular são na ver dade difíceis de ser form ulados13 O s problemas da iconografia tomamse ainda mais embaraçosos quando os historiadores de outros tópicos tentam utilizar gravuras para seus próprios propósitos como evidência de atitudes religiosas ou políticas E muito fácil discutir em um grupo interpretando uma imagem de Albrecht Dürer por exemplo como um sintoma de uma crise espiritual e depois apresentar a imagem como um argumento para a existência da crise44 42 P Sm ith ed The H istorân and Film Cambridge 1976 A Trachtenberg Album s ofW ar Represencacions 9 p 1321985 JT agg The Burden of Representation Essays on Photographies and Histories Amherst 1988 43 E Panofsky Essays in Iconology N ova York 1939 E W ind Pagan Mysteries in the Renaissance Londres 1958 U m ponto de vista m ais cético é expressado por EH Gom brich Aim s and Límits of Iconology em seu Symbolic Images Londres 1972 p 122 44 C Ginzburg D a Aby W arburg a EH Gom brich Studi medievali 8 p 101565 1966 Sua crítica foi dirigida em particular contra Fritz Saxl Sobre a iconografia para os historiadores das mentalidades ve M Vovelle ed Iconographie et histoire des mentalités Aix 1979 28 PETER BURKE A cultura material é evidentemente o campo de ação tradicional dos arqueólogos que estudam períodos para os quais não existem registros escritos N o entanto não há nenhum bom motivo para se restringir os métodos arqueológicos à préhistória e os arqueó logos têm de fato se movimentado para estudar a Idade Média o início da Revolução Industrial e mais recentemente um a varieda de mais ampla de períodos desde a América colonial até à sociedade de consum o atual45 O s historiadores estão começando a competir com eles se não escavando o passado Versailles e outras construções importantes do início do período moderno felizmente não necessitam de escavação pelo menos prestando mais atenção aos objetos físicos O s argumentos sobre a ascensão do individualismo e da privaci dade no início do período moderno estão agora baseados não somente na evidência da manutenção de um diário mas também em mudanças como a criação de xícaras individuais em lugar de tigelas de uso coletivo e cadeiras em lugar de bancos coletivos e o desenvolvimento de quartos específicos para dormir46 Neste caso entretanto é difícil não imaginar se a cultura material está sendo utilizada para fazer algo mais do que confirmar uma hipótese fundamentada no primeiro caso sobre a evidência literária Pode o arqueólogo do período posterior a 1500 no Ocidente pelo menos aspirar a algo mais O falecido Sir M oses Finley certa vez sugeriu que alguns tipos de documentação tornam a arqueologia mais ou menos desnecessária varrendo a arqueologia industrial para a cesta de lixo em um a única frase47 Seu desafio merece uma resposta séria porém uma avaliação minuciosa do valor da evidência da cultura material para a história pósmedieval ainda permanece por fazer De forma bastante irônica a história da cultura material área que tem atraído grande interesse nos últimos anos é baseada 45 K H udson The Archaeology of the Consumer Society Londres 1983 46 J Deetz In Small Things Forgotten the Archaeology of Early American Life N ova York 1977 47 M I Finley The Use and Abuse of History Londres 1975 p 101 A ESCRITA DA HISTÓRIA 29 menos no estudo dos artefatos em si do que nas fontes literárias O s historiadores preocupados com o que tem sido chamado de vida social dos objetos ou mais exatamente com a vida social dos grupos revelada por seu uso dos objetos confiam profunda mente em evidências tais como descrições de viajantes que nos dizem muito sobre a localização e as funções de determinados objetos ou inventários de propriedades acessíveis à análise por métodos quantitativos48 A m aior e mais controvertida inovação no método na última geração certamente foi o crescimento e a difusão dos métodos quantitativos às vezes ironicamente descritos como uCliometria ou seja a estatística vital da deusa da história E claro que a abordagem é um a das mais antigas entre os historia dores econômicos e os demógrafos históricos O que é ou foi novo foi sua difusão nos anos 60 e 70 para outros tipos de história N os Estados U nidos por exemplo há uma nova história política cujos profissionais fazem contagem de votos sejam eles contados em eleições ou em parlamentos49 N a França a história serial histoire sérielle assim denom inada porque os dados são dispostos em séries através do tempo gradativamen te se estendeu do estudo dos preços nos anos 30 para o estudo i a população nos anos 50 até o chamado terceiro nível da nistória das mentalidades religiosas ou seculares50 U m estudo fam oso da cham ada descristianização da França m oderna m os tra a magnitude de sua evidência a partir dos dados declinantes para a com unhão da Páscoa Outro concentrado na Provença no século dezoito estuda as atitudes modificadas em relação à morte como foram reveladas nas tendências nas formulações de cerca de 30000 testam entos observandose o declínio nas referências 48 A Appadurai ed The Social Life of Things Cam bridge 1986 49 W Aydelotte Quantification in History M ass 1971 A Bogue Clio and the Bitch Goddess Quantification in American Political History Beverly H ills 1983 50 P Chaunu Le quantitatifau 3e niveau 1973 reeditado em sua Histoire quantitatif histoire sérielle Paris 1978 30 PETER BURKE ao tribunal do céu ou em legados para funerais elaborados ou m issas para o morto51 N os últimos anos a estatística auxiliada pelos computadores chegou mesmo a invadir a cidadela da história rankeana os arquivos O s Arquivos Nacionais Americanos por exemplo têm agora uma Divisão de Dados Com putadorizados e os arquivistas estão começando a preocuparse com a conservação e o armazena mento de fitas perfuradas assim como a dos manuscritos Em conseqüência disso os historiadores estão cada vez mais inclinados a encarar os arquiyos anteriores tais como os arquivos da Inqui sição como bancos de dados que podem ser explorados por métodos quantitativos52 A introdução no discurso histórico de grande quantidade de estatística contribuiu para polarizar a profissão em defensores e oponentes Am bos os lados tenderam a exagerar a novidade dos problemas criados pela utilização de dados A estatística pode ser falsificada mas isso também pode ocorrer com os textos A estatística pode ser facilmente mal interpretada mas com os textos pode acontecer o mesmo O s dados computadorizados não são amigáveis mas o mesmo se aplica a muitos manuscritos escritos em caligrafias quase ilegíveis ou a ponto de desintegração O necessário é um a ajuda na discriminação na descoberta dos tipos de estatística mais confiáveis em que extensão utilizálos e para que propósitos A noção da série fundamental para a história serial precisa ser tratada como problemática especialmente quando as mudanças são estudadas a longo prazo Quanto mais extenso o período menos provável que as unidades na série testamentos registros de comunhões na Páscoa ou seja o que for sejam homogêneas M as se elas próprias estão sujeitas a se modificar como podem ser utilizadas como medidas de outras mudanças 51 G Le Bras Etudes de sociologie religieuse Paris 19556 2 v e M Vovelle PieCé baroque et déchristianisation Paris 1973 52 G H enningsen El Banco de datos dei Santo O ficio Boletin de 1 a Real Academia de Historia 174 p 547701977 A ESCRITA DA HISTÓRIA 31 Em outras palavras o requerido como no caso das fotografias e de outras fontes novas já discutidas é uma nova diplomática Esse foi o termo usado pelo estudioso beneditino Jean Mabillon em seu guia para o uso de títulos em um a época final do século dezessete em que o apelo a esse tipo de evidência era novo e despertava a suspeita de historiadores mais tradicionais53 Quem será o M abillon da estatística das fotografias ou da história oral Problemas de explicação Já foi sugerido que a expansão do campo do historiador implica o repensar da explicação histórica uma vez que as tendências culturais e sociais não podem ser analisadas da mesm a maneira que os acontecimentos políticos Elas requerem mais explicação estrutural Quer gostem quer não os historiadores estão tendo de se preocupar com questões que por muito tempo interessaram a sociólogos e a outros cientistas sociais Quem são os verdadeiros agentes na história os indivíduos ou os grupos Será que eles podem resistir com sucesso às pressões das estruturas sociais políticas ou culturais São essas estruturas meramente restrições à liberdade de ação ou permitem aos agentes realizarem mais escolhas54 N os anos 50 e 60 os historiadores econômicos e sociais foram atraídos por m odelos mais ou m enos deterministas de explicação histórica tenham eles dado primazia aos fatores eco nômicos com o os marxistas à geografia como Braudel ou aos movimentos da população como no caso do chamado modelo m althusiano de mudança social H oje em dia entretanto como sugere G iovanni Levi em seu ensaio sobre a microhistória os modelos m ais atraentes são aqueles que enfatizam a liberdade de 53 M abillon De re diplomatica Paris 1681 54 C Lloyd Exfiianation in Social History Oxford 1986 apresenta um exame geral M ais acessível a nãofilósofòs é S Jam es The Content of Sociai Expianation Cam bridge 1984 32 PETER BURKE escolhi das pessoas comuns suas estratégias sua capacidade de explorar as inconsistências ou incoerências dos sistemas sociais e políticos para encontrar brechas através das quais possam se introduzir ou frestas em que consigam sobreviver cf mais adiante na p 133 A expansão do universo histórico também tem tido repercus sões sobre a história política pois também os acontecimentos políticos podem ser explicados de várias maneiras O s historiado res que estudam a Revolução Francesa por exemplo vista de baixo provavelmente dãolhe um tipo muito diferente de explicação do que aqueles que se concentram nos feitos e intenções dos líderes M esm o os estudiosos que se concentram nos líderes às vezes divergem dos modelos tradicionais da explicação histórica invo cando seus motivos inconscientes assim como os conscientes tendo em vista que esses modelos superestimam a importância da conscientização e da racionalidade Por exemplo um grupo de chamados psicohistoriadores a maior parte deles vivendo nos Estados U nidos onde a psicanálise penetrou na cultura mais profundamente do que em qualquer outra parte tentou incorporar os insights de Freud à práticaij histórica Eles vão desde o psicanalista Erik Erikson que causou certa sensação nos anos 50 com seu estudo dos problemas de identidade do Jovem Lutero até o historiador Peter Gay que ao mesmo tempo exalta e pratica a psicohistória Não surpreende muito descobrir q u e sua abordagem despertou controvérsias e eles foram acusados de reducionismo em outras palavras de reduzir as complexidades d e um adulto individual ou de um conflito entre adultos ao relaciona mento de uma criança pequena com seus pais55 Para ilustrar as atuais controvérsias sobre a explicação histórica pode ser útil tomar o exemplo de Hitler O s debates iniciais como aquele entre HR TrevorRoper e AJP Taylor sobre a importância relativa dos objetivos de curto e longo prazo de Hitler presumiam 55 E Erikson Young M an Luther Nova York 1958 P Gay Freud for Historians Nova York 1985 D Stannard Shrinking History Nova York 1980 A ESCRITA tA HISTÓRIA 33 a validade do modelo tradicional de explicação histórica em termos de intenções conscientes M ais recentemente no entanto o debate foi ampliado Em primeiro lugar alguns historiadores como Robert Waite apresentaram interpretações de Hitler em termos de intenções inconscientes e até de psicopatologia enfatizando sua sexualidade anormal o trauma da morte de sua mãe após trata mento com um médico judeu etc5 Outro grupo de historiadores rejeita completamente o que chamam de intencionalismo no sentido de que tratam o proble ma dos motivos ou atuações de Hitler como relativamente margi nal Segundo estes funcionalistas como têm sido chamados eu preferiria o termo historiadoreá1 estruturais para descrevêlos as explicações históricas das políticas do Terceiro Reich necessitam se concentrar nos homens em torno de Hitler na m áquina de governo e no processo de decisão e no nazismo como um movi mento social57 Há também historiadores que combinam as abor dagens estruturais com as psicohistóricas e concentramse na explicação do que havia nos nazistas que os atraía a Hitler58 O que é ao m esm o tempo excitante e confuso no debate a respeito de Hitler com o muitos outros debates históricos nos últimos anos é que ele não é mais conduzido segundo as regras O acordo tradicional sobre o que constitui uma boa explicação histórica foi rompido Será esta um a fase de transição a ser substituída por um novo consenso ou o caminho em que os debates históricos serão conduzidos no futuro Se houver tal consenso a área do que pode ser chamado de psicologia histórica psicologia coletiva provavelmente será de particular importância visto que ela vincula os debates sobre a 56 R G L W aite The Psychopachic God Adolf Hitler Nova York 1977 57 Extraí a distinção entre intencionalistas e funcionalistas d eT M ason Intendon and Explanation em The Fuhrer Scace Myth and Reality ed G Hirschfeld e L Kettenacker Stuttgart 1981 p 2340 M eus agradecimentos a Ian Kershaw por cham ar a m inha atenção para este attigo 8 P Lowenberg The Psychohistorical Origins o f the Nazi Youth Cohort American Historical Review 76 p 14575021971 34 PETER BURKE motivação consciente e inconsciente àqueles sobre as explicações individuais e coletivas E estimulante perceber um interesse cres cente nesta área U m conjunto recente de monografias está centra lizado na história da ambição da raiva da ansiedade do medo da culpa da hipocrisia do amor do orgulho da segurança e de outras emoções Do mesmo modo os problemas de método envolvidos na busca de tais objetos ardilosos de estudo estão longe de ter sido resolvidos59 N a tentativa de evitar o anacronismo psicológico em outras palavras a presunção de que as pessoas no passado pensavam e sentiam exatamente da mesma forma que nós há um perigo de se chegar ao outro extremo e desfamiliarizar tão completamente o passado que ele venha a tornarse ininteligível O s historiadores estão diante de um dilema Se explicarem as diferenças no com portamento social nos diferentes períodos pelas diferenças nas atitudes conscientes ou nas convenções sociais correm o risco da superficialidade Por outro lado se explicarem as diferenças no comportamento pelas diferenças na profunda estrutura do caráter social correm o risco de negar a liberdade e a flexibilidade dos atores individuais no passado U m a maneira possível de se sair da dificuldade é utilizar a noção de hábito de um grupo social particular formulada pelo sociólogo Pierre Bourdieu Por hábito de um grupo Bourdieu entende a propensão de seus membros para selecionar respostas de um repertório cultural particular de acordo com as demandas de uma determinada situação ou de um determinado campo Diferentemente do conceito de regras o hábito tem a grande vantagem de permitir que seus usuários reconheçam a extensão da liberdade individual dentro de certos limites estabelecidos pela cultura60 59 J Delum eau La peuren occident Paris 1978 e Rassureret proteger Paris 1989 PN e CZ Stearns Emotionology American Histórica Revieiv 90 p 81336 1986 CZ e PN Stearns Anger Chicago 1986 T Zeldin France 18481945 Oxford 19737 2 v 60 P Bourdieu Outline of a Tfieory ofPractice trad R Nice Cam bridge 1977 A ESCRITA DA HISTÓRIA 35 Seja como for o problema permanece Em minha opinião os novos historiadores de Edward Thom pson a Roger Chartier foram muito bemsucedidos ao revelar as inadequações das expli cações materialistas e deterministas tradicionais do comportamen to individual e coletivo de curto çrazo e na demonstração de que tanto na vida cotidiana quanto nos momentos de crise o que conta é a cultura61 Por outro lado pouco fizeram para desafiar a importância dos fatores materiais do ambiente físico e de seus recursos de longo prazo Ainda parece útil considerar estes fatores materiais como determinantes da ordem do dia dos problemas aos quais os indivíduos os grupos e metaforicamente falando as culturas tentam se adaptar ou responder Problemas de síntese Embora a expansão do universo do historiador e o diálogo crescente com outras disciplinas desde a geografia até a teoria literária certamente devam ser benvindos esses desenvolvimentos têm seu preço A disciplina da história está atualmente mais fragmentada que nunca O s historiadores econômicos são capazes de falar a linguagem dos economistas os historiadores intelectuais a linguagem dos filósofos e os historiadores sociais os dialetos dos sociólogos e dos antropólogos sociais m as estes grupos de histo riadores estão descobrindo ser cada vez mais difícil falar um com o outro Teremos de suportar esta situação ou há uma esperança de síntese E impossível apresentar mais que uma visão parcial e pessoal do problema A minha própria pode ser resumida em dois pontos opostos mais complementares que contraditórios Em primeiro lugar a proliferação de subdisciplinas é virtualmente inevitável Este movimento não está confinado à história A profissão histórica 61 O argumento está excepcionalmente explícito em G Sider Culture and Class in Anthropalogy and History Cam bridge e Paris 1986 simplesmente oferece um exemplo dentre muitos da crescente divisão do trabalho em nossa sociedade industrial tardia ou pósindustrial A proliferação tem suas vantagens contribui para o conhecimento humano e encoraja métodos mais rigorosos padrões mais profissionais Tanto há custos quanto benefícios mas podemos fazer algo para manter aqueles custos intelectuais os mais baixos possíveis A não comunicação entre as disciplinas ou subdisciplinas não é inevitável N o caso específico da história há alguns sinais anima dores de rapprochement se não de síntese E verdade que no primeiro fluxo de entusiasmo pela história estrutural a história dos acontecimentos esteve muito próxima de ser posta de lado De maneira similar a descoberta da história social foi às vezes associada a um desprezo pela história política uma inversão do preconceito dos historiadores políticos tradicio nais Novos campos como a histófia das mulheres e a história da cultura popular foram às vezes tratados como se fossem indepen dentes ou mesmo opostos da história da cultura erudita e da história dos homens A microhistória e a história da vida cotidiana foram reações contra o estudo de grandes tendências sociais a sociedade sem uma face humana Em todos os casos que citei é possível observarse uma reação contra essa reação uma busca pelo centro O s historiadores da cultura popular estão cada vez mais preocupados em descrever e analisar as mudanças das relações entre o erudito e o popular a intersecção da cultura popular e da cultura das pessoas educadas62 O s historiadores das mulheres têm ampliado seus interesses para incluir as relações entre os gêneros em geral e a construção histórica tanto da masculinidade quanto da feminilidade63 A oposição tradicional entre os acontecimentos e as estruturas está sendo substituída por um interesse por seu interrelacionamento 62 A Gurevich Medieval Popular Culture trad de JM Bak e PA Hollingsworth Cambridge 1988 63 Coletiva editorial W hy G ender and History Gender and History 1 p 16 1989 A ESCRITA DA HISTÓRIA 37 e alguns historiadores estão experimentando formas narrativas de análise ou formas analíticas de narrativa ver adiante p 327 O mais importante de tudo talvez é que a oposição há muito estabelecida entre os historiadores políticos e não políticos está finalmente se dissolvendo A famosa definição de história social de GM Trevelyan como a história com a política posta de lado é atualmente rejeitada por quase todo mundo Em vez disso nos percebemos preocupados com o elemento social na política e com o elemento político na sociedade Por um lado os historiadores políticos não mais se restringem à alta política aos líderes às elites Discutem a geografia e a sociologia das eleições e a república na aldeia 64 Estudam as culturas políticas as suposições sobre política que fazem parte da vida cotidiana mas diferem amplamen te de um período para outro ou de um a região para outra Por outro lado a sociedade e a cultura são agora encaradas como arenas para a tomada de decisões e os historiadores discutem a política da família a política da linguagem ou as maneiras como o ritual pode expressarse ou até em certo sentido criar poder65 O historiador americano Michael Kammen pode bem estar certo em sua sugestão de que o conceito de cultura em seu sentido amplo antropológico pode servir como uma base possível para a reintegração de diferentes abordagens à história66 Ainda estamos a um a longa distância da história total defendida por Braudel N a verdade seria irrealista acreditar que esse objetivo poderia um dia ser alcançado mas alguns passos a mais foram dados em sua direção 64 M Agulhon The Republic in the Village trad de J Lloyd Cambridge 1982 65 M Segalen Lote and Power in the Peasant Family trad de S Matthews Cambridge 1983 O Sm ith The Politics of Language 17 9 1 1 8 1 5 Oxford 1984 D Cannadine e S Price eds Rituais of Royalty Cam bridge 1987 66 M Kam m en Extending the Reach of American Cultural History American Stwtlíes 29 p 1 9 4 2 1 9 8 4 A HISTÓRIA VISTA DE BAIXO Jim Sharpe Em 18 de junho de 1815 houve um a batalha próximo à aldeia belga de Waterloo C om o sabem todos aqueles que estudaram a história britânica o resultado daquela batalha foi que um exército aliado comandado pelo Duque de Wellington com a ajuda tardia mas decisiva das forças prussianas lideradas por Blücher derrotou um exército francês comandado por Napoleão Bonaparte sendo assim decididos os destinos da Europa N os dias que se seguiram à batalha um daqueles que ajudou a determinar o destino de um continente o soldado W illiam Wheeler da 51 Infantaria Britâni ca escreveu várias cartas a sua esposa Os três dias de luta terminaram Estou salvo isto é o que importa Descreverei agora e em toda oportunidade os detalhes do grande aconte cimento ou seja o que pude dele observar A manhã do dia 18 de junho surgiu sobre nós e nos encontrou ensopados de chuva entorpecidos e tremendo de frio Você muitas vezes me censurou por fumar quando eu estava em casa no ano passado mas devo dizerlhe que se eu não tivesse um bom estoque de tabaco nessa noite poderia ter morrido1 Assistentesênior de História da Universidade de York 1 The Letters of Private Wheeler 1 8 0 9 1 8 2 8 ed B H Liddell Hart Londres 1951 p 16872 40 PETER BURKE W heeler prosseguiu fornecendo a sua esposa uma descrição da Batalha de Waterloo a partir do violento final a experiência de suportar o fogo da artilharia francesa seu regimento destruindo um corpo de couraceiros inimigos com uma rajada de tiros o espetáculo de montes de corpos queimados de soldados britânicos nas ruínas do castelo de Hougoumont o dinheiro saqueado de um oficial hussardo francês alvejado por um membro de um destaca mento a cargo de Wheeler O s livros de história nos contam que W ellington venceu a batalha de Waterloo De certa maneira W illiam W heeler e milhares como ele também a venceram Durante as duas últimas décadas vários historiadores traba lhando em uma ampla variedade de períodos países e tipos de história conscientizaramse do potencial para explorar novas pers pectivas do passado proporcionado por fontes como a correspon dência do soldado Wheeler com sua esposa e sentiramse atraídos pela idéia de explorar a história do ponto de vista do soldado raso e não do grande comandante Tradicionalmente a história tem sido encarada desde os tempos clássicos como um relato dos feitos dos grandes O interesse na história social e econômica mais ampla desenvolveuse no século dezenove mas o principal tema da história continuou sendo a revelação das opiniões políticas da elite Havia é claro vários indivíduos que se sentiam infelizes com essa situação e já em 1936 Bertold Brecht em seu poema Perguntas de um Operário que Lê apresentou aquela que provavelmente ainda é a afirmação mais direta da necessidade de uma perspectiva alternativa ao que poderia ser chamado de história da elite 2 Mas provavelmente é justo dizer que um a declaração séria da possibili dade de transformar essa necessidade em ação só surgiu em 1966 quando Edward Thom pson publicou um artigo sobre The History from Below em The Times Literary Supplem en tDaí em diante o 2 Bertold Brecht Poems ed John W illett e Ralph M anheim Londres 1976 p 2523 3 EP Thom pson History from Below The Times Literary Supplement 7 dc abril de 1966 p 27980 Para uma discussão da base para o pensam ento do Thom pson ver Harvey J Kaye The British Marxist Historiam an Introductory Andhsis Cambridge 1984 A ESCRITA DA HISTÓRIA 41 conceito da história vista de baixo entrou na linguagem comum dos historiadores Em 1985 foi publicado um volume de ensaios intitulado History from Below4 enquanto em 1989 uma nova edição de um livro referente à historiografia das Guerras Civis Inglesas e às suas conseqüências denominou um capítulo sobre a obra recente dos radicais do período de History from Below5 Assim durante mais ou menos os últimos vinte anos foi encontrado um rótulo para aquela perspectiva do passado oferecida pelas cartas de W illiam Wheeler Essa perspectiva atraiu de imediato aqueles historiadores an siosos por ampliar os limites de sua disciplina abrir novas áreas de pesquisa e acima de tudo explorar as experiências históricas daqueles homens e mulheres cuja existência é tão freqüentemente ignorada tacitamente aceita ou mencionada apenas de passagem na principal corrente da história M esmo hoje grande parte da história ensinada nas sextas classes e nas universidades da Grã Bretanha e também supõese em instituições similares por toda parte ainda considera a experiência da m assa do povo no passado como inacessível ou sem importância não a considera um proble m a histórico ou no máximo considera as pessoas comuns como um dos problemas com que o governo tinha de lidar 6 O ponto de vista oposto foi vigorosamente apresentado por Edward Thom p son em 1965 no prefácio de um a das principais obras de história inglesa Estou procurando resgatar o pobre descalço o agricultor ultrapassado o tecelão do tear manual obsoleto o artesão utopista e até os seguidores enganados de Joanna Southcott da enorme condescendência da posterida de Suas habilidades e tradições podem terse tornado moribundas Sua hostilidade ao novo industrialismo pode terse tornado retrógrada Seus 4 History from Below Studies in Popular Protest and Popular Ideology ed FrederjckKrantz Oxford 1988 Esta foi a edição inglesa de um a coleção primeiro publicada em Montreal em 1985 5 R C Richardson The Debate on the English Revolution Revisíted Londres 1988 capitulo 10 The Twentieth Century History from Below 6 Thom pson History from Below p 279 42 PETER BURKE ideais comunitários podem terse tomado fantasias Suas conspirações insurrecionais podem terse tornado imprudentes Mas eles viveram nesses períodos de extrema perturbação social e nós não7 Portanto Thom pson não se limitou apenas a identificar o problema geral da reconstrução da experiência de um grupo de pessoas com uns Percebeu também a necessidade de tentar compreender o povo no passado tão distante no tempo quanto o historiador moderno é capaz à luz de sua própria experiência e de suas próprias reações a essa experiência Meu objetivo neste ensaio será explorar o máximo possível com referência ao que poderia ser considerado um número con sistente das obraschaves publicadas parte do potencial e dos problemas inerentes à escrita da história vista de baixo Assim fazendo entrarei em contato com dois temas bem diferentes se bem que em grande medida emaranhados O primeiro deles é introduzir o leitor na absoluta diversidade de temática produzida pelo trabalho sobre o que poderia ser descrito em termos amplos como uma história vista de baixo Ele se estende desde a recons trução das experiências dos pastores medievais dos Pireneus até àquelas dos primeiros trabalhadores industriais de certa idade cujas reminiscências formam o principal elemento da história oral O segundo é isolar algumas das questões evidenciais conceituais e ideológicas suscitadas pelo estudo da história vista de baixo A idéia de uma tal abordagem da história é muito sedutora mas como tão freqüentemente acontece os problemas envolvidos no estudo do passado rapidamente tornamse mais complexos do que podem parecer à primeira vista A perspectiva de se escrever a história vista de baixo resgatando as experiências passadas da m assa da população seja da total negligência dos historiadores ou da enorme condescendência da posteridade de Thom pson é portanto uma perspectiva atraente M as como sugerimos a tentativa de estudar a história dessa maneira envolve muitas dificuldades A primeira gira em torno da 7 EP Thom pson The Malcing of the English Working Class Londres 1965 p 1213 A ESCRITA DA HISTÓRIA 43 evidência Temse apenas que ler o estudo de Thom pson sobre os anos formadores da classe trabalhadora inglesa para compreender que sejam quais forem as críticas que possam ser feitas à sua interpretação da questão pouca dúvida existe de que ela seja baseada em um a quantidade de material de fonte maciçamente ampla e rica Em geral entretanto quanto mais para trás vão os historiadores buscando reconstruir a experiência das classes so ciais inferiores mais restrita se torna a variedade de fontes à sua disposição C om o veremos um excelente trabalho tem sido feito com relação aos materiais que realmente persistem para os tempos primitivos mas o problema é real os diários as memórias e os manifestos políticos a partir dos quais podem ser reconstruídas as vidas e as aspirações das classes sociais inferiores são escassos antes do final do século dezoito com exceção de alguns poucos períodos como as décadas de 1640 e 1650 na Inglaterra Em segundo lugar há vários problemas de conceituação O nde exatamente o baixo deve ser alocado e o que seria feito com a história vista de baixo um a vez escrita As complicações inerentes à questão de se precisar que história vem de baixo estão finamente ilustradas em uma das áreas de crescimento da história social nos últimos anos o estudo da cultura popular no início da Europa moderna Tanto quanto posso perceber além de encarála como uma espécie de categoria residual nenhum historiador chegou ainda a uma definição completamente abrangente do que era na verdade a cultura popular naquele período8 A principal razão disso é que o povo mesm o há tanto tempo atrás como no século dezesseis compunha um grupo muito variado dividido por estratificação econômica culturas profissio nais e sexo Tais considerações invalidam qualquer idéia simplista 8 Ver por exemplo a discussão em Peter Burke Popular Cuíture in Early Modem Europe Londres 1978 p 2364 e Barry Reay Introduction Popular Culture in Early M odem England em Popular Culture in SeventeenthCentury England ed B Reay Londres 1985 44 PETER BURKE do que o baixô poderia significar na maior parte dos contextos históricos9 E igualmente importante a questão do significado mais amplo ou dos propósitos de uma abordagem da história vista de baixo O s problemas ficam talvez mais bem ilustrados tomandose por referência o trabalho dos historiadores que escrevem dentro da tradição marxista ou dentro da tradição da história britânica do trabalho É óbvio que a contribuição dos historiadores marxistas aqui e em qualquer outra parte tem sido enorme na verdade um filósofo marxista declarou que todos aqueles que escrevem a história vista de baixo assim o fazem na sombra da conceituação marxista da história10 Embora tais afirmações possam parecer um tanto hiperbólicas a dívida do historiador social para com as idéias de M arx e para com os historiadores marxistas deve ser reconhe cida e certamente não é minha intenção juntarme à tendência atualmente em m oda de depreciar uma das mais ricas tradições intelectuais do mundo Ainda que pudesse parecer que os histo riadores marxistas antes de outros escritores que escrevem a partir de tradições diferentes sugerirem a amplitude da temática que o historiador social poderia estudar tenham tendido a restringir o estudo da história vista de baixo àqueles episódios e movimentos em que as m assas se engajaram na atividade política manifesta ou em áreas familiares de desenvolvimento econômico Embora ele fosse transcender tais limitações este foi em grande extensão o ponto de partida do ensaio de Thom pson de 1966 A fundamen tação histórica para tal linha de pensamento foi descrita mais 9 U m a maneira de contornar este problem a é examinar a experiência de diferentes setores das classes inferiores às vezes através do estudo de caso isolado Para duas obras que utilizam esta abordagem am bas constituindo importantes contribuições à história vista de baixo ver Natalie Zemon Davis Society and Culture in Earíy Modem France Londres 1975 e David Sabean Power in the Blood Popular Culture and Víllage Discourse in Early Moáem Germany Cam bridge 1984 10 Alex Callinicos The Revolutionary Ideas of Karl Marx Londres 1983 p 89 Ao contrário poderia ser observado que não há razão por que a abordagem marxista não pudesse produzir um a história vista de baixo bastante efetiva ver os comentá rios de Perry Anderson Lineages of the Absolutist State Londres 1979 p 11 A ESCRITA DA HISTÓRIA 45 recentemente por Eric Hobsbawm Hobsbawm declarou que a possibilidade do que ele chama de história das pessoas com uns só se tornou realmente aparente mais ou menos em torno de 1789 A história das pessoas comuns como um campo especial de estudo escreveu ele tem início com a história dos movimentos de m assa no século dezoito Para o marxista ou mais comumente o socialista o interesse na história das pessoas comuns desenvol veuse com o crescimento do movimento trabalhista Com o ele prosseguiu para observar essa tendência impôs algumas luzes bastante eficazes para os historiadores socialistas 11 Algo da natureza dessas luzes foi sugerido em um livro de Richard Hoggart publicado em 1957 The Uses of Literacy que poderia bem ter recebido o subtítulo de The Breaking of the English Working Class Discutindo diferentes abordagens no estudo da classe trabalhadora Hoggart pediu cuidado aos leitores das histó rias dos movimentos da classe trabalhadora Com o muitos outros Hoggart se afasta de muitas dessas histórias com a impressão de que seus autores supervalorizam o lugar da atividade política na vida da classe trabalhadora que nem sempre têm uma noção adequada da rotina diária dessa vida 12 Em 1966 Thom pson observou uma mudança das preocupações mais antigas dos histo riadores do trabalho com as instituições do trabalho e com os líderes e a ideologia aceitos embora também tenha observado que esse processo estava tendendo a subtrair da história do trabalho parte de sua coerência13 Hobsbawm escrevendo à luz da subse qüente ampliação da história do trabalho conseguiu fazer comen tários mais centralizados neste ponto O problema era como sugeriu Hobsbawm que os historiadores do movimento trabalhis ta marxistas ou não estudaram não exatamente as pessoas comuns mas as pessoas comuns que poderiam ser consideradas 11 E Hobsbawm History from Below Som e Reflections1 em History from Below ed Krantz p 15 12 Richard Hoggart The Uses of Literacy Aspects of WorkingClass Life uith Special Reerence to Publications and Entertainments Harm ondsworth 1958 p 15 13 Thom pson History from Below p 280 46 PETER BURKE os ancestrais do movimento não os trabalhadores como tais porém mais como cartistas sindicalistas militantes trabalhistas A história do movimento trabalhista e de outros desenvolvimentos institucionalizados declarou ele não deveria substituir a história das pessoas comuns em si 14 Outra limitação que a corrente principal da história do trabalho cria para a história vista de baixo é aquela de uma restrição no período O s leitores do ensaio inicial de Thom pson e da posterior contribuição de Hobsbawm poderiam facilmente ter ficado apesar das intenções dos autores com a impressão de que a história vista de baixo só pode ser escrita para os períodos da Revolução Francesa em diante Hobsbawm como observamos acreditava que foi o desenvolvimento dos movimentos de m assa no final do século dezoito que primeiro alertou os estudiosos para a possibilidade de se escrever a história vista de baixo e prosseguiu declarando que a Revolução Francesa especialmente desdeque o jacobinismo foi revitalizado pelo socialismo e o Iluminismo pelo marxismo tem sido o campo de prova para esse tipo de história Indagando um pouco mais adiante por que tanta história moderna popular emergiu do estudo da Revolução Francesa Hobsbawm citou a ação conjunta da m assa populacional e os arquivos criados por uma vasta e diligente burocracia que documentava os atos das pessoas comuns e depois passou a classificar e preencher seus registros em beneficio do historiador Esta documentação pro porcionava um rico filão para a pesquisa posterior e era também segundo Hobsbawm perfeitamente legível ao contrário das cali grafias intrincadas dos séculos dezesseis e dezessete 15 Entretanto a história vista de baixo não tem sido meramente escrita a respeito da história política familiar moderna por histo 14 Hobsbawn Som e Reflections p 15 15 Ibid p 16 A pesar do ceticismo que se poderia experimentar sobre a singularidade da contribuição de historiadores da Revolução Francesapermanece claro que as obras baseadas naquele período deram um a substancial contribuição ao cânone da história vista de baixo desde estudos pioneiros como Georges Lefebvre Les Paysans du Nord Paris 1924 e The Great Fear of 1789 Paris 1932 trad ingl Nova York 1973 até a obra m ais recente de Richard C obb A ESCRITA DA HISTÓRIA 47 ríadores incapazes de enfrentar os desafios paleográficos N a v erdade embora o conceito da história vista de baixo tenha sido essencialmente desenvolvido por historiadores marxistas ingleses que escreviam dentro dos limites cronológicos tradicionais da história britânica do trabalho talvez o livro que utiliza essa perspectiva no passado a criar maior impacto tenha sido escrito por um estudioso francês que tomou como sua temática uma comunidade medieval camponesa dos Pireneus M ontaillou de Emmanuel Le Roy Ladurie pela primeira vez publicado na França em 1975 despertou maior atenção foi mais vendido e teve maior alcance de leitores que a maior parte das obras de história medie val16 Evidentemente ele tem suscitado alguma crítica no interior da comunidade erudita e várias questões foram levantadas sobre a metodologia de Le Roy Ladurie e a abordagem por ele utilizada de suas fontes17 O s historiadores que trabalham com a visão de baixo devem é claro ser tão rigorosos nessas questões quanto em quaisquer outras mas M ontaillou se situa como um a espécie de marco na escrita da história vista dessa perspectiva C om o observou seu autor embora haja muitos estudos históricos relacionados às comunidades camponesas há muito pouco material disponível que possa ser considerado o testemunho direto dos próprios cam poneses 18 Le Roy Ladurie contornou esse problema baseando seu livro nos registros inquisitoriais produzidos por Jacques Four nier Bispo de Poitiers durante sua investigação da heresia entre 1318 e 1325 Sejam quais forem seus inconvenientes M ontaillou não apenas demonstrou que a história vista de baixo poderia atrair o público leitor em geral mas também que alguns tipos de registro oficial poderiam ser utilizados para explorar o mundo mental e material das gerações passadas 16 Publicado em inglês como Montaillou Cathars and Catholics in a French Village 12941324 Londres 1978 17 Ver por exemplo L E Boyle Montaillou Revisited Mentalité and M ethodalogy in Pathways to Medieval Peasants ed JA Raftis Toronto 1981 e R Rosaldo From the D oor o f his Tent the Fieldworker and the Inquisitor em Writing Culture the Poetics and Politics of Ethnography ed J Clifford e G M arcus Berkeley 1986 18 Le Roy Ladurie Montaillou p vi 48 PETER BURKE Na verdade os historiadores sociais e econômicos estão em pregando cada vez mais tipos de documentação cuja real utilidade como evidência histórica repousa no fato de que seus compiladores não estavam deliberada e conscientemente registrando para a posteridade Supõese que muitos desses compiladores ficariam surpresos e talvez preocupados com o uso que os historiadores recentes fizeram dos casos judiciais registros paroquiais testamen tos e transações de terras feudais que registraram Tal evidência pode ser empregada adequadamente para explorar ações e idéias explícitas ou suposições implícitas e também para propiciar uma base quantitativa às experiências do passado Com o observou Edward Thom pson A s p e sso a s pagavam im p o sto s as listas d e im p o sto s são ap ro p riad as n ão p elo s h istoriad o res d a taxação m as p o r d em ó g rafo s h istóricos A s p e sso a s p agavam dízim os o s in ven tários são ap ro p riad o s co m o evidência p elo s d em ó g rafo s h istóricos A s p esso a s eram arren datárias co n su eaid in á rias o u enfiteutas seus títulos d e p o sse eram in scritos e co n stavam d o s registros d a corte feudal essa s fon tes essen ciais são exaustivam en te inter rogad as p elos h istoriad ores n ão som en te em b u sca d e n ova evidência m as em u m d iálogo em qu e eles p ro p õ em n ovas p erg u n tas19 Pelo que sugere esta citação tais materiais são muito variados Ocasionalmente como ocorre com os materiais em que Montaillou foi baseado permitem que o historiador consiga chegar tão próxi mo às palavras das pessoas quanto consegue o gravador do historiador oral A história oral tem sido muito usada pelos historiadores que tentam estudar a experiência das pessoas co muns embora é claro não haja razão por si só evidente do motivo pelo qual o historiador oral não deva gravar as memórias das duquesas dos plutocratas e dos bispos da mesma forma que dos 19 EP Thom pson The Poverty ofTheory and Other Essays Londres 1978 p 21920 Para um a discussão m ais am pla dos tipos de registros sobre os quais os historiadores da Inglaterra poderiam basear a história vista de baixo ver Alan Macfarlane Sarah H arrison e Charles Jardine Reconstructing Historical Communicies Cam bridge 1977 A ESCRITA DA HISTÓRIA 49 mineiros e dos operários fabris20 M as o historiador oral tem problemas óbvios ao tratar com pessoas que morreram antes de serem gravadas ou cuja memória foi perdida por seus sucessores e o tipo de testemunho direto que pode obter é negado aos historiadores dos períodos mais antigos Ao contrário como sugerimos existem fontes que permitem aos historiadores de tais períodos chegarem mais perto das experiências das pessoas das classes inferiores Le Roy Ladurie utilizou uma fonte desse tipo o registro de Jacques Fournier Outro trabalho que mostra como este tipo de registro legal poderia ser empregado por um tipo bem diferente de história vista de baixo foi publicado em 1976 a edição italiana de The Cheese and the Worms de Cario Ginzburg21 O objetivo de Ginzburg não era reconstruir a mentalidade e o modo de viver de um a comunidade camponesa mas antes explorar o mundo inte lectual e espiritual de um moleiro chamado Domenico Scandella apelidado de Menocchio nascido em 1532 que viveu em Friuli no nordeste da Itália Menocchio teve complicações com a Inqui sição foi afinal executado provavelmente em 1600 e a volumosa documentação que se refere ao seu caso permitiu que Ginzburg reconstruísse grande parte de seu sistema religioso O livro em si é uma realização notável o prefácio de Ginzburg apresenta uma proveitosa discussão dos problemas conceituais e metodológicos da reconstrução da cultura das classes subalternas no mundo préindustrial Ele foi particularmente insistente para o fato de um a fonte não ser objetiva para aquele tema nem um inventário o é não significar que ela seja inútil Em suma mesmo a 20 Algum as im pressões do tipo de áreas temáticas cobertas pelos historiadores orais podem ser obtidas através da leitura dos registros regulares do trabalho em andam en to contidos em Oral History the Journal of the Oral History Society que é publicado desde 1972 21 Publicado em inglês traduzido por Anne e John Tedeschi como The Cheese and the Worms the Cosmos of a SixteenthCentury Miller Londres 1980 O utra obra de Ginzburg The Night Battles Witchcraft and Agrarian Cults in the Sixteenth and Seventeenth Centuries Londres 1983 ed italiana 1966 tam bém dem onstra como os registros inquisitoriais podem ser usados para esclarecer as crenças populares 50 PETER BURKE documentaçãoescassa dispersa e obscura pode ter um bom uso22 e o estudo dos indivíduos nesse tipo de profundidade é tão valioso quanto as abordagens coletivas mais familiares à história social Resta o problema é claro da representatividade de tais indivíduos m as os estudos de caso desse tipo tratados de forma adequada podem ser imensamente esclarecedores Mas em seus esforços para estudar a história vista de baixo os historiadores utilizaram outros tipos de documentação oficial ou semioficial além de uma fonte rica isolada U m exemplo disso é Barbara A Hanawalt que fez um uso extensivo de um a das grandes fontes negligenciadas da história social inglesa a inquirição do coroner23 na reconstrução da vida familiar cam ponesa medieval24 Hanawalt declara que esses registros estão isentos das tendências encontradas nos registros das cortes reais eclesiásticas ou feudais além de apontar voltando a um tema anterior que os detalhes da vida material e das atividades familiares neles assinalados são incidentais ao principal propósito dos registros daí a improbabi lidade de serem distorcidos C om o é tão freqüente quando se trata de registros oficiais eles têm sua maior utilidade quando emprega dos para propósitos que seus compiladores jamais sonharam Com binadas com outras formas de documentação Hanawalt usou as inquirições para compor um quadro do ambiente material da economia familiar das etapas no ciclo de vida nos padrões de educação dos filhos e de outros aspectos da vida cotidiana dos camponeses medievais Em certo sentido seu trabalho demonstra um a estratégia alternativa àquela seguida por Le Roy Ladurie e Ginzburg o exame minucioso de um vasto corpo de documenta ção em vez da construção de um estudo de caso baseado em uma 22 Ginzburg The Cheese and the Worms p xvii 23 Oficial de justiça anglosaxão cargo criado no fim do século XII com parte das atribuições do xerife e cujas funções estão atualmente limitadas à investigação da causa das mortes violentas não naturais ou misteriosas N T 24 Barbara A Hanawalt The Ties that Bound Peasant Families in Medieval England Nova York e O xford 1986 Para um a apresentação mais breve dos objetivos de Hanawalt ver seu artigo Seeking the Flesh and Blood o f M anorial Fam ilies Journal of Medieval History 14 p 3 3 4 5 1988 A ESCRITA DA HISTÓRIA 51 lonte excepcionalmente rica M as o resultado final é um a demons ração de como mais uma forma de documentação oficial pode ser usada para construir a história vista de baixo Esta ampliação do alcance cronológico da história vista de baixo assim como o movimento em direção a um âmbito mais amplo das preocupações históricas do que as ações políticas e os movimentos políticos das m assas levou a uma busca de outros modelos além daqueles proporcionados pelo marxismo tradicio nal ou pelo velho estilo da história do trabalho A necessidade de se manter um diálogo com os estudiosos marxistas é essencial mas permanece claro que até a aplicação para o mundo préindustrial de um conceito marxista básico como aquele é problemática ao mesmo tempo em que é difícil imaginarse uma linha distintamente marxista em um processo de difamação em Yorkshire no século dezesseis ou em uma fraude em Wiltshire no século dezessete Infelizmente a busca de um modelo alternativo admitidamente ainda em seus escassos primórdios até agora alcançou muito pouco sucesso Muitos historiadores especialmente na Europa continental foram inspirados pela escola francesa dos Annales25 Sem dúvida muitos dos vários trabalhos produzidos por escritores que operam dentro da tradição dos Annales não apenas aprofun daram nosso conhecimento do passado mas também proporcio naram incríveis reflexões metodológicas demonstrando o uso inovador que pode ser feito das formas familiares de documentação e o m odo como novas questões sobre o passado podem ser formuladas Além disso a clarificação dos annalistas do conceito de mentalité comprovouse de grande valor para os historiadores que tentaram reconstruir o m undo mental das pessoas das classes inferiores Entretanto eu gostaria de afirmar que a maior contri buição da abordagem dos Annales tem sido a demonstração de como compor o contexto dentro do qual poderia ser escrita a história vista de baixo Por exemplo o conhecimento de um a queda 25 A m elhot introdução para a obra dessa escola é TraianStoianavitch FrencK Historical Method the Annales Paradigm Ithaca e Londres 1976 52 PETER BURKE nos preços dos grãos em um a determinada sociedade durante um dado período ajuda a compor o pano de fundo essencial para a compreensão da experiência do pobre tal evidência quantificada no entanto pode não ser toda a história Outros buscaram modelos na sociologia e na antropologia Aí também em mãos competentes e sensíveis os ganhos têm sido grandes embora mesmo nessas mãos alguns problemas ainda permaneçam enquanto em outras ocorreram alguns desastres Poderia ser argumentado que a sociologia é de maior relevância para os historiadores da sociedade industrial enquanto algumas de suas suposições nem sempre têm sido muito facilmente aplicá veis ao tipo de microestudo da preferência dos profissionais da história vista de baixo26 A antropologia tem atraído muitos histo riadores que estudam tópicos medievais e do início do modernis mo embora aqui também o resultado tenha apresentado alguns problemas27 Algumas dessas questões são esclarecidas pelo traba lho de Alan Macfarlane sobre as acusações de bruxaria na Essex de Tudor e Stuart28 Macfarlane decidiu escrever o que poderia ser descrito como uma história da bruxaria vista de baixo A interpre tação elitista do tema foi anteriormente apresentada pór Hugh TrevorRoper que em seu próprio estudo da bruxaria na Europa no início da era moderna declarou sua falta de interesse em meras crenças em bruxarias aquelas credulidades aldeãs elementares que os antropólogos descobrem em todas as épocas e em todos os 26 Para discussões gerais do relacionamento entre as duas disciplinas ver Peter Burke Sociology and History Londres 1980 e Philip Abram s Historical Sociology Shepton Mallet 1982 27 Duas exposições clássicas da importância dos possíveis elos entre a história e a antropologia são EE EvansPritchard Anthropology and History Manchester 1961 e Keith Thom as History and Anthropology Past and Present 24 p 324 1963 Para um a visão m ais cética ver EP Thom pson Anthropology and the Discipline o f Historical Context Midland History 3 n 1 p 4156 primavera de 1972 28 Alan Macfarlane Witchcraft in Tudor and Stuart England A Regional ancí Comfarative Study Londres 1970 A obra de Macfarlane deveria ser lida em conjunto com Keith Thom as Religion and the Decline of Magic Studies in Popular Beliefs in Sixteenth and SeventeenthCentury England Londres 1971 trabalho abrangente que também deduz consideráveis reflexões da antropologia A ESCRITA DA HISTÓRIA 53 lugares 29 Macfarlane ao contrário imergiu ele próprio nas me iis crenças em bruxarias e produziu um livro que se constituiu m i um importante aprofundamento de nossa compreensão do issunto U m dos elementos mais notáveis em seu projeto foi a aplicação de estudos antropológicos ao material histórico O resul tado foi um aprofundamento de nossas reflexões na função da 1 iruxaria no interior da sociedade da aldeia e a percepção do quanto is acusações de bruxaria eram geradas na maior parte das vezes por um conjunto razoavelmente padronizado de tensões interpessoais Mas a abordagem antropológica ajudou pouco aos leitores na compreensão daquelas dimensões mais amplas do tópico e que são exteriores à comunidade da aldeia por que foi aprovada uma lei no parlamento permitindo a perseguição da bruxaria maléfica em 1563 e por que outra legislação tornando impossível a perseguição legal da bruxaria foi aprovada em 1736 A abordagem micro histórica utilizada preferencialmente pelos modelos antropológicos pode facilmente obscurecer o problema mais geral do lugar onde o poder está concentrado na sociedade como um todo e da natureza de sua operação Por trás de toda a nossa discussão ocultouse uma questão fundamental a história vista de baixo constitui uma abordagem da história ou um tipo distinto de história O ponto pode ser enfocado de ambas as direções Com o abordagem a história vista de baixo preenche comprovadamente duas funções importantes A primeira é servir como um corretivo à história da elite para mostrar que a batalha de W aterloo envolveu tanto o soldado Wheeler quanto o Duque de Wellington ou que o desenvolvimento econômico da GrãBretanha que estava em plena atividade em 1815 envolveu o que Thom pson descreveu como a pobre e sangrenta infantaria da Revolução Industrial sem cujo trabalho e perícia ela teria permanecido um a hipótese não testada 30 A segunda é que oferecendo esta abordagem alternativa a história vista de baixo 29 H R TrevorRoper The European WitchCraze of the Sixteenth and Seventeenth Centuries Harmondsworth 1967 p 9 30 Thom pson History from Below p 280 54 PETER BURKE abre a possibilidade de uma síntese mais rica da compreensão histórica de um a fusão da história da experiência do cotidiano das pessoas com a temática dos tipos mais tradicionais de história Inversamente poderia ser argumentado que a temática da história vista de baixo os problemas de sua documentação e possivelmen te a orientação política de muitos de seus profissionais criam um tipo distinto de história Em certo sentido é claro é difícil estabelecerse uma divisão precisa entre um tipo de história e uma abordagem à disciplina em geral a história econômica a história intelectual a história política a história militar etc têm uma eficácia mínima quando confinadas em caixas hermeticamente fechadas Qualquer tipo de história se beneficia de uma abertura no pensamento do historiador que a está escrevendo Poderia parecer então que a história vista de baixo tem sua maior eficácia quando está situada dentro de um contexto Assim no primeiro número de uma revista destinada em grande medida a este tipo de história o editorial coletivo do History Workshop Journal declarou que nosso socialismo determina nossa preocu pação com as pessoas comuns no passado com sua vida seu trabalho seu pensamento e sua individualidade assim como com o contexto e com as causas determinantes de sua experiência de classe e prosseguiu determina igualmente a atenção que deve m os prestar ao capitalismo31 Com o nossos sentimentos nos recordam a expressão história vista de baixo implica que há algo acima para ser relacionado Esta suposição por sua vez presume que a história das pessoas com uns mesmo quando estão envol vidos aspectos explicitamente políticos de sua experiência passada não pode ser dissociada das considerações mais amplas da estru tura social e do poder social Esta conclusão por sua vez leva ao problema de como a história vista de baixo deve ser ajustada a concepções mais amplas da história Ignorar este ponto ao se tratar da história vista de baixo ou de qualquer tipo de história social é arriscar a emergência de uma intensa fragmentação da escrita da 31 Editorial History Workshop 1 p 3 1971 A ESCRITA DA HISTÓRIA 55 111stória talvez m esm o de algum tipo de antiquarianism o moderno O s perigos foram bem apontados em 1979 por Tony udt N ão é necessário que compartilhemos inteiramente da posição de Judt para simpatizar com a sua preocupação de que não há lugar para a ideologia política na maior parte da história social moderna não mais do que havia na sociologia da qual esta ultima derivou a história social como indiquei anteriormente oi transformada em um a espécie de antropologia cultural retros pectiva 32 O tipo de história vista de baixo introduz outra questão aquela da ampliação da audiência do historiador profissional de permitir um acesso mais amplo à história de um padrão profis sional do que aquele normalmente permitido pelos nobres acadêmicos profissionais e seus alunos Em seu artigo de 1966 Thom pson observou que Tawney e outros historiadores de sua geração tinham um relacionamento incomumente amplo e participante com um público externo aos campos da academia e obviamente lamentou que isso não fosse uma prática comum aos profissionais mais recentes33 Esta questão foi levantada mais recentemente por alguém que trabalha em uma posição ideológi ca bastante diferente daquela de Thom pson David Cannadine Constatando a maciça expansão da história como um a disciplina universitária na GrãBretanha do pósguerra Cannadine comen tou que grande parte desta nova versão profissional da história britânica foi completamente afastada da grande audiência leiga cuja satisfação de sua curiosidade sobre o passado nacional foi um dia a principal função da história Um resultado paradoxal deste período de expansão sem prece dentes foi que cada vez mais os historiadores acadêmicos estavam cada vez 32 Tony Judt A Clow n in Regai Purple Social History and the H istorian History Workshop 7 p 87 1979 33 Thom pson History from Below p 279 56 PETER BURKE mais escreveftdo uma história acadêmica que cada vez menos pessoas realmente lia m 34 U m dos principais objetivos daqueles que escrevem a história vista de baixo particularmente daqueles que trabalham com uma postura socialista ou de história do trabalho era tentar remediar esta situação ampliando seu público e possivelmente proporcio nando uma versão do povo daquela nova síntese de nossa história nacional cujo fim Cannadine lamentava A medida que seus esforços não foram bemsucedidos e a história da elite ainda parece estar muito ao gosto público o próprio Hobsbawm admitiu seu engano na leitura variada de biografias de figuras políticas proemi nentes35 M esmo assim a idéia do acesso ampliado a um conhecimento de nosso passado através da história vista de baixo ainda é atrativa Entretanto permanece o perigo de se cair em algo como a fragmentação do conhecimento histórico e a despolitização da história que tanto contrariaram Ju d t O interesse popular na história vista de baixo como qualquer pessoa que teve de lidar com questões sobre tais tópicos nos encontros da Associação Histórica irá saber está freqüentemente restrito ao que poderia ser chamado de uma visão porãosótão da sociedade do passado sendo este problema exacerbado por alguns aspectos do que atualmente estamos nos acostumando a descrever como história pública Tal visão é a tomada de consciência de que as pessoas fizeram coisas diferentes e então implicitamente estranhas no passado e que muitas delas sofreram privações materiais e supor 34 David Cannadine British History Past Present and Future Past and Present 116 p 177 1987 O trabalho de Cannadine inspirou Com m ents de autoria de PR C oss W illiam Lam onte Neil Evans Past and Present 119 p 171203 1988 O s pontos de vista de Lamont especialmente aqueles expressos nas páginas 180193 sugerem um a abordagem da história vista de baixo para uma nova história nacional enquanto Evans na p 197 declara explicitamente que a história britânica precisa ser m oldada através de um a visão de baixo e transformarse gradualmente em uma compreensão do estado 35 Hobsbawn Som e Reflections p 13 A ESCRITA DA HISTÓRIA 57 taram sofrimentos o que nos permite comparar os dissabores do passado com nossas atuais condições mais amenas M as há pouca tentativa de se levarem os temas adiante ou de se abordarem os problemas históricos em um nível bem mais elevado que a anedota ou a experiência local isolada M çsm o aqueles com uma visão mais desenvolvida do passado do povo não escaparam daquelas acusa ções de antiquarianismo que os historiadores acadêmicos gos tam tanto de lançar sobre seus companheiros menos bem aqui nhoados conceituai e ideologicamente Por isso Roderick Floud criticando a posição de um grupo com idéias muito nitidamente definidas sobre a importância da história do povo pôde declarar que às vezes na verdade o estilo de um Grupo de Trabalho de História tendeu para o antiquarianismo da esquerda para a reunião e publicação de coisas sem importância da vida da classe trabalhadora 36 Embora não se possa simpatizar com o sentido total do argumento de Floud pouca dúvida pode haver de que ele chamou a atenção para um problema genuíno U m a possível resposta a essa crítica é evidentemente que até que algum antiquarianismo de esquerda tenha permitido a construção de um conjunto sólido de material importante até mesm o através da reunião e publicação de coisas sem importância pouca esperança pode haver de se desenvolver uma síntese madura ou uma visão significativa mais ampla U m a segunda resposta e talvez mais válida poderia ser que estudos de caso isolados ou outros estudos similares se contextualizados poderiam conduzir a algo mais significativo que o antiquarianismo Sob circunstân cias apropriadas o estudo de Cario Ginzburg sobre Domenico Scandella pareceria fornecer um bom exemplo o escritor da história vista de baixo pode se beneficiar muito do uso daquilo que os antropólogos poderiam chamar de descrição densa37 O proble ma intelectual que uma técnica desse tipo suscita será familiar aos 36 Roderick Floud Quantitative History and Peoples History History Workshop 17 p 116 1 9 8 4 37 V er Clifford Geertz The Interfjretation of Cultures Nova York 1973 capítulo 1 Thick Description Toward an Ineerpretative T h eory of Culture 58 PETER BURKE historiadoreá sociais o de situar um acontecimento social dentro de seu contexto cultural pleno de forma a ele poder ser estudado mais em um nível analítico que apenas em um nível descritivo Mas obviamente este processo pode ser revertido e uma vez que foi estabelecido um domínio da sociedade em questão o aconteci mento social ou individual isolados como foi o caso do único mas bem documentado moleiro de Friuli podem ser usados para proporcionar uma base para uma compreensão mais profunda daquela sociedade O historiador não necessita adotar o conceito semiótico de cultura defendido por antropólogos como Clifford Geertz para apreciar a utilidade potencial desta técnica E o problema básico a que Geertz se refere aquele do quanto estamos aptos a compreender as pessoas culturalmente diferentes de nós e do quanto estamos aptos a traduzir um a realidade cultural para as idealizações eruditas de livros artigos ou conferências certamen te é familiar ao estudante da história vista de baixo Esperase que as páginas precedentes tenham pelo menos convencido o leitor de que a escrita da história vista de baixo é um projeto que se comprovou extraordinariamente frutífero Atraiu a atenção de historiadores que estão trabalhando em várias socieda des passadas tanto geograficamente variadas quanto cronologica mente estendendose dos séculos treze ao vinte Esses historiadores são oriundos de vários países e de várias tradições intelectuais e posições ideológicas Ao escrever a história vista de baixo esses historiadores buscaram socorro de formas tão variadas quanto a quantificação com a ajuda do computador e da teoria antropoló gica e seus achados apareceram em formatos tão diferentes quanto o artigo erudito técnico e o livro bestseller Chegou o momento de se tirarem algumas conclusões gerais sobre os trabalhadores que operaram neste canto frutífero embora confuso do vinhedo de Clio Está pelo menos claro que vários historiadores foram bem sucedidos na superação dos obstáculos não insignificantes que impedem a prática da história vista de baixo M ais especificamente vários estudiosos reconheceram a necessidade de dar um salto A ESCRITA DA HISTÓRIA 59 conceituai para aumentar sua compreensão das pessoas das classes inferiores nas sociedades passadas e tiveram então de prosseguir para realizar com sucesso aquela proeza de ginástica intelectual Edward Thom pson Cario Ginzburg Emmanuel Le Roy Ladurie e outros partindo de pontos diferentes e tendo em vista objetivos históricos diferentes foram todos capazes de demonstrar como a imaginação pode interagir com aerudição para ampliar nossa visão do passado Além disso o trabalho desses e de outros historiadores mostrou como a imaginação histórica pode ser aplicada não somente para estruturar novas conceituações sobre a temática da história mas também para questionar de outra forma os documen tos e fazer coisas diferentes com eles Há duas ou três décadas atrás muitos historiadores teriam negado a possibilidade com base em evidências de se escrever uma história séria sobre vários temas que agora são familiares crime cultura popular religião popular a família camponesa Desde medievalistas tentando reconstruir a vida das comunidades históricas até historiadores orais registrando e descrevendo a vida das primeiras gerações no século vinte os historiadores que trabalham com esta visão de baixo mostraram como o uso imaginativo do material da fonte pode esclarecer muitas áreas da história que de outra forma poderia se supor estarem mortas e condenadas a permanecer na escuridão Mas a importância da história vista de baixo é mais profunda do que apenas propiciar aos historiadores uma oportunidade para mostrar que eles podem ser imaginativos e inovadores Ela propor ciona também um meio para reintegrar sua história aos grupos sociais que podem ter pensado têla perdido ou que nem tinham conhecimento da existência de sua história Com o já observamos a colocação inicial da história vista de baixo na história da Revolução Francesa ou na história do movimento trabalhista britânico causa aqui alguns problemas embora permaneça verda deiro que o trabalho sobre a m assa populacional no séculotdezoito ou a classe trabalhadora do século dezenove tenha proporcionado alguns dos mais significativos exemplos de como a história inopi nada de setores da população pode ser descoberta O s propósitos 60 PETER BURKE da história sãô variados mas um deles é prover aqueles que a escrevem ou a lêem de um sentido de identidade de um sentido de sua origem Em um nível mais amplo este pode tomar a forma do papel da história embora fazendo parte da cultura nacional na formação de uma identidade nacional A história vista de baixo pode desempenhar um papel importante neste processo recordan donos que nossa identidade não foi estruturada apenas por monarcas primeirosministros ou generais Este ponto tem outras implicações Em um livro sobre a história de um grupo que era inegavelmente de baixo os escravos negros nos Estados U nidos no período préGuerra Civil Eugene D Genovese declarou que o seu principal objetivo era explorar a questão da nacionalidade da identidade que seguiu furtivamente a história afroamericana desde seus primórdios coloniais 38 Mais uma vez como por exemplo no trabalho de Thom pson sobre a classe trabalhadora inglesa o uso da história para auxiliar a autoidentificação é fundamental M as poderia ser observado que o livro de Genovese tem o subtítulo de O M undo que os Escravos Construíram Para Genovese os seres humanos que formavam sua temática embora sem dúvida socialmente inferiores foram capazes de construir um mundo para si por isso eram atores históricos criaram história muito mais do que foram apenas um problema que contribuiu para envolver políticos e soldados brancos em um a guerra civil e que os políticos brancos iam finalmente resolver A maior parte daqueles que escreveram a história vista de baixo aceitariam em um sentido amplo a opinião de que um dos resultados de terem seguido essa abordagem tem sido demonstrar que os membros das classes inferiores foram agentes cujas ações afetaram o mundo às vezes limitado em que eles viviam Voltamos à argumentação de Edward Thom pson de que as pessoas comuns não eram apenas um dos problemas com que o governo tinha de lidar Mas lamentavelmente temos de admitir que embora o con ceito tenha estado conosco por mais de duas décadas a história 38 Eugene D Genovese Roll Jordan Roll the World the Slaves Made Londres 1975 p xv A ESCRITA DA HISTÓRIA 61 vista de baixo até agora causou comparativamente pouco impacto na história da corrente principal ou na alteração das perspectivas dos historiadores da corrente principal Encarando o problema por um de seus níveis básicos os compêndios de iniciação à história têm pouco a dizer sobre o assunto A maior parte dos estudantes que deseja descobrir de que trata a história ou como ela deve ser feita ainda se volta ou é dirigida pára o que é atualmente uma obra absolutamente obsoleta What is History de EH Carr Lá encon trarão uma visão bastante limitada do que poderia ser a resposta a essa intrigante pergunta Em particular descobrirão que Carr não tem a imaginação aberta em relação à temática da história que historiadores posteriores demonstraram e que Braudel e outros escritores da tradição inicial dos Annales já haviam estabelecido antes de ele ter escrito o seu livro Por isso sua declaração de que A travessia de C ésar daquele pequeno riacho o Rubicão é um fato histórico enquanto a travessia do Rubicão por milhares de pessoas antes ou depois dele não interessa absolutamente a ninguém sugere que a história do transporte da migração e da mobilidade geográfica não lhe ocorreram Similarmente seus problemas de aceitação da morte a pontapés de um vendedor de pão de gengibre em Stalybridge W akes em 1850 como um fato histórico insinuase que o vendedor de pão de gengibre pode ter tido um a visão mais clara do tema demonstra que ele não havia considerado a história do crime como um tema39 Se um a obra for escrita para substituir a de C arr como um compêndio de iniciação à história é óbvio que seu autor à luz da história vista de baixo e dos desenvolvimentos recentes mais amplos da história social necessariamente terá um a visão mais ampla do passado Por conseguinte nosso ponto final deve ser que por mais valiosa que a história vista de baixo possa ser no auxílio ao estabelecimento da identidade das classes inferiores devet ser retirada do gueto ou da aldeia de camponeses das ruas da classe 39 EH Carr What is History Harm ondsworth 1961 p 1112 62 PETER BURKE i trabalhador dos bairros miseráveis ou dos altos edifícios e usada para criticar redefinir e consolidar a corrente principal da história Aqueles que escrevem a história vista de baixo não apenas propor cionaram um campo de trabalho que nos permite conhecer mais sobre o passado também tornaram claro que existe muito mais que grande parte de seus segredos que poderiam ser conhecidos ainda estão encobertos por evidências inexploradas Desse modo a história vista de baixo mantém sua aura subversiva Há um perigo distante de que ela como ocorreu com a escola dos Annales possa se tornar uma nova ortodoxia mas no momento ainda faz troça da corrente principal Certamente existirão historiadores tanto acadêmicos quanto populares que planejarão escrever livros que implícita ou explicitamente neguem a possibilidade de uma recria ção histórica significativa das vidas das m assas mas seus motivos para agir assim serão cada vez mais duvidosos A história vista de baixo ajuda a convencer aqueles de nósnascidos sem colheres de prata em nossas bocas de que temos um passado de que viemos de algum lugar Mas também com o passar dos anos vai desem penhar um importante papel ajudando a corrigir e a ampliar aquela história política da corrente principal que é ainda o cânone aceito nos estudos históricos britânicos HISTÓRIA DAS MULHERES Joan Scott A história que se pode escrever dos estudos sobre as mulheres pertence também ao movimento não é uma metalinguagem e irá atuar tanto como um momento conservador quanto como um momento subversivo não há uma interpretação teoricamente neutra da história dos estudos sobre as mulheres A história terá aí um papel atuante1 Jacques Derrida 1984 A história das mulheres apareceu como um campo definível principalmente nas duas últimas décadas Apesar das enormes diferenças nos recursos para ela alocados em sua representação e em seu lugar no currículo na posição a ela concedida pelas universidades e pelas associações disciplinares parece não haver mais dúvida de que a história das mulheres é uma prática estabe lecida em muitas partes do mundo Embora a situação dos Estados Unidos seja única pelo fato de a história das mulheres ter atingido Professora de Ciências Sociais no Instituto de Estudos Avançados em Princenton 1 W om en in the Beehive A seminar with Jacques Derrida transcrito do seminário com Derrida prom ovido pelo Centro Pembroke para o Ensino e a Pesquisa em SubjectsObjects Primavera de 1984 p 17 64 PETER BURKE uma presenea visível e influente na academia há evidência clara em artigos e livros na autoidentificação dos historiadores que se pode encontrar em conferências internacionais e nas redes infor mais que transmitem as notícias do mundo intelectual da participação internacional no movimento da história das mulheres Utilizo o termo movimento deliberadamente para distin guir o fenômeno atual dos esforços anteriormente disseminados por alguns indivíduos para escrever no passado sobre as mulheres para sugerir algo da qualidade dinâmica envolvida nos intercâm bios no nível nacional e nos interdisciplinares pelos historiadores das mulheres e ainda para evocar as associações com a política A conexão entre a história das mulheres e a política é ao m esmo tempo óbvia e complexa Em uma das narrativas convencionais das origens deste campo a política feminista é o ponto de partida Esses relatos situam a origem do campo na década de 60 quando as ativistas feministas reivindicavam uma história que estabelecesse heroínas prova da atuação das mulheres e também explicações sobre a opressão e inspiração para a ação Foi dito que as feministas acadêmicas responderam ao chamado de sua história e dirigiram sua erudição para uma atividade política mais ampla no início houve uma conexão direta entre política e intelectualidade M ais tarde em algum momento entre a metade e o final da década de 70 continua o relato a história das mulheres afastouse da política Am pliou seu campo de questionamentos documentando todos os aspectos da vida das mulheres no passado e dessa forma adquiriu um a energia própria O acúmulo de monografias e artigos o surgimento de controvérsias internas e o avanço de diálogos interpretativos e ainda a emergência de autoridades intelectuais reconhecidas foram os indicadores familiares de um novo campo de estudo legitimado em parte ao que parecia por sua grande distância da luta política Finalmente assim prossegue a trajetória o desvio para o gênero2 na década de 80 foi um rompimento definitivo com a política e propiciou a este campo conseguir o seu 2 Gênero aqui como divisão natural dos sexos N T A ESCRITA DA HISTÓRIA 65 próprio espaço pois gênero é um termo aparentemente neutro desprovido de propósito ideológico imediato A emergência da história das mulheres como um campo de estudo envolve nesta interpretação uma evolução do feminismo para as mulheres e daí para o gênero ou seja da política para a história especializada e daí para a análise Certamente esta narrativa tfem variações significativas depen dendo de quem a relata Em algumas versões a evolução é encarada positivamente como um resgate da história tanto de princípios políticos de interesses estreitos quanto de um enfoque demasiado exclusivo sobre as mulheres ou de suposições filosoficamente ingênuas Em outras a interpretação é negativa a retirada para a academia para não falar do desvio para o gênero e para a teoria sendo encarada como um sinal de despolitização O que ocorre com o feminismo quando o movimento das mulheres está morto perguntou recentemente Elaine Showalter Tornase estudos so bre as mulheres apenas outra disciplina acadêmica3 Entretanto apesar das diferentes valências colocadas no relato a trajetória em si é compartilhada por muitas feministas e seus críticos como se fosse incontestavelmente o m odo como as coisas aconteceram Gostaria de argumentar que a narrativa necessita de alguma reflexão crítica não apenas por não ser tão simples mas também porque representa mal a história da história das mulheres e seu relacionamento tanto com a política quanto com a disciplina da história A história deste campo não requer somente uma narrativa linear mas um relato mais complexo que leve em conta ao mesmo tempo a posição variável das mulheres na história o movimento feminista e a disciplina da história Embora a história das mulheres esteja certamente associada à emergência do feminismo este não desapareceu seja como uma presença na academia ou na sociedade em geral ainda que os termos de sua organização e de sua existência tenham mudado Muitos daqueles que usam o termo gênero na 3 Citado em Karen W inlder W om ens Studics After Two Decades Debates over Politics New Directions for Research The Chromcle of Higher Educacion 28 de setembro de 1988 p A6 66 PETER BURKE verdade se denQminam historiadores feministas Isso não é somen te um a subm issão política mas também uma perspectiva teórica que os leva a encarar o sexo como um modo melhor de conceituar a política Muitos daqueles que escrevem a história das mulheres consideramse envolvidos em um esforço altamente político para desafiar a autoridade dominante na profissão e na universidade e para mudar o m odo como a história é escrita E grande parte da atual história das mulheres mesmo quando opera com conceitos de gênero está voltada para as preocupações contemporâneas da política feminista entre eles nos Estados U nidos atualmente o bemestar o cuidado dos filhos e o direito ao aborto N a verdade há uma razão importante para se argumentar que os desenvolvi mentos na história das mulheres estão fortemente relacionados à força crescente e à legitimidade do feminismo como um movimen to político4 como também para insistir que está aumentando a distância entre o trabalho acadêmico e o político Mas tomarse a história das mulheres simplesmente como um reflexo do cresci mento da política feminista externa à academia também é falho Mais do que postular uma simples correlação precisamos pensar sobre este campo como um estudo dinâmico na política da produção de conhecimento A palavra política é usada atualmente em vários sentidos Primeiro em sua definição mais típica ela pode significar a atividade dirigida paraou em governos ou outras autoridades poderosas atividade essa que envolve um apelo à identidade coletiva à mobilização de recursos à avaliação estratégica e à m anobra tática Segundo a palavra política é também utilizada para se referir às relações de poder mais gerais e às estratégias visadas para mantêlas ou contestálas5 Terceiro a palavra política é 4 Nancy Fraser e Linda N icholson Social Criticism W ithout Philosophy manuscrito inédito 1987 p 29 5 Politics in the profound sense as the ensemble o f hum an relations in their real social structure in their ability to construct the world Roland Barthes Mythologies Paris 1957 p 230 V er também Michel Foucauk The History ofSexuality v I An íntroduction N ova York 1980 p 92102 A ESCRITA DA HISTÓRIA 67 aplicada ainda mais amplamente a práticas que reproduzem ou desafiam o que é às vezes rotulado de ideologia aqueles sistemas de convicção e prática que estabelecem as identidades individuais e coletivas que formam as relações entre indivíduos e coletividades e seu mundo e que são encaradas como naturais normativas ou autoevidentes6 Essas definições correspondem a diferentes tipos de ação e diferentes esferas de atividade mas a minha utilização da palavra política para caracterizar tudo isso sugere que os limites de definição e es paço são indistintos e que inevitavelmente qualquer utilização tem múltiplas ressonâncias A narrativa da história das mulheres que eu desejo fazer depende dessas múltiplas ressonâncias é sempre uma narrativa política Profissionalismo versus política O feminismo tem sido nas últimas décadas um movimento internacional mas possui características particulares regionais e nacionais Pareceme útil focalizar os detalhes do caso que melhor eu conheço o dos Estados U nidos para fazer algumas observa ções gerais N os Estados U nidos O feminismo ressurgiu nos anos 60 estimulado em parte pelo movimento dos Direitos Civis e pelas políticas do governo destinadas a estabelecer o potencial feminino para ir ao encontro da expansão econômica através da sociedade incluindo as profissões e a academia M oldou seu apelo e sua autojustificativa nos termos da retórica prevalecente de igualdade N o processo o feminismo assumiu e criou uma identidade coletiva de mulheres indivíduos do sexo feminino com um interesse compartilhado no fim da subordinação da invisibilidade e da 6 Gayatri Chakravorty Spivak The Politics o f Interpretation em W JT Mitchell The Politics of Interpretation Chicago 1983 p 34766 Mary Poovey tUneven Deveofments The Ideological WorkofGender in midVictorian England Chicago 1988 V er tam bém ideologia no glossário de Louis Althusser e Etienne Balibar Reading Capital trad de Ben Brewster Londres 1979 p 314 68 PETER BURKE impotência criando igualdade e ganhando um controle sobre seus corpos e sobre suas vidas Em 1961 por ordem de Esther Peterson dirigente da Divisão de Mulheres do Departamento de Trabalho o presidente Kennedy estabeleceu uma Com issão sobre a Condição da Mulher Seu relatório em 1963 documentou o fato de que eram negados às mulheres americanas iguais direitos e oportunidades e recomen dou a criação de cinqüenta comissões estaduais Em 1964 quando a Com issão para Oportunidades Iguais de Emprego Equal Em ployment Opportunity Com m ission EEOC foi estabelecida pelo Ato dos Direitos Civis a discriminação sexual foi incluída em sua jurisdição acrescentada por um legislador hostil para desacreditar o sétimo direito do Ato Em 1966 delegados do terceiro encontro da Conferência Nacional das Com issões Estaduais sobre a Condi ção da Mulher votaram uma resolução que pressionava a EEOC para fazer valer a proibição contra a discriminação sexual tão seriamente quanto ela o fez contra a discriminação racial As mulheres que apresentaram a emenda derrotada encontraramse então para decidir sua próxima ação e formaram a Organização Nacional das M ulheres7 Mais ou menos na mesm a época as jovens do grupo Estudantes por um a Sociedade Democrática e do Movimento dos Direitos Civis começaram a articular seus agravos exigindo reconhecimento de seu papel de mulheres como partici pantes ativos e iguais nos movimentos políticos para a mudança social8 N o reino da política tradicional as mulheres tornaramse um grupo identificável pela primeira vez desde o movimento sufragista na virada do século Durante os anos 60 também as faculdades as escolas de graduação e as fundações começaram a estimular as mulheres a obterem PhDs oferecendo bolsas de estudo e um considerável apoio financeiro E claro comentou um autor que as mulheres 7 Jo Freeman W om en on the Move Roots o f Revolt em Alice S Rossi e Ann Calderwood ed Academic Women on the Move Nova York 1973 p 137 Ver também os ensaios de Alice Rossi e Kay Klotzburger no m esm o volume 8 Sara Evans Personal Politics N ova York 1979 A ESCRITA DA HISTÓRIA 69 constituem um a importante força latente para as faculdades e as universidades carentes de bons professores e pesquisadores9 Em bora autores tão diversos quanto diretores de faculdades e acadêmicos feministas reconhecessem que tinha havido precon ceitos contra as mulheres nas profissões intelectualizadas eles tendiam a concordar que os obstáculos cairiam por terra se as mulheres buscassem uma formação de nivel superior10 É interes sante à luz das discussões teóricas subseqüentes que a atuação das mulheres foi aqui presumida como opção espontânea atores racionais as mulheres eram chamadas para se inserirem em profissões que previamente as havia excluído ou subutilizado N o espaçaaberto pelo recrutamento de mulheres o feminismo logo apareceu para reivindicar mais recursos para as mulheres e para denunciar a persistência da desigualdade As feministas na academia declaravam que os preconceitos contra as mulheres não haviam desaparecido ainda que elas tivessem credenciais acadêmi cas ou profissionais e se organizaram para exigir uma totalidade de direitos aos quais suas qualificações presumivelmente lhes davam direito N as associações das disciplinas acadêmicas as mulheres formavam facções para pressionar suas exigências Essas incluíam maior representação nas associações e nas reuniões de intelectuais atenção às diferenças salariais entre homens e mulhe res e um fim à discriminação nos contratos nos títulos e nas promoções A nova identidade coletiva das mulheres na academia anunciava uma experiência compartilhada de discriminação basea da na diferenciação sexual e também admitia que as historiadoras com o um grupo tinham necessidades e interesses particulares que não poderiam ser subordinados à categoria geral dos historiadores Sugerindo que as historiadoras eram diferentes dos historiadores 9 Citação de Barnaby Keeney Reitora da Brown University Pembroke Alumnae 27 n 4 p 1 outubro de 1962 10 Keeney Ibid p 89 Jessie Bernard Academic Women Cleveland 1966 Lucille A ddison Pollard Women on College and University Faculties A Historical Survey and a Study of the ir present Academic Status Nova Yorjc 1977 Ver especialmente a p 296 70 PETER BURKE e que seu sexo influenciava suas oportunidades profissionais as feministas disputavam os termos universais e unitários que em geral designavam os profissionais e lançavam a acusação de que eles haviam politizado previamente organizações nãopolíticas Em 1969 o recémformado Com itê de Coordenação de M u lheres na Profissão Histórica apresentou no encontro profissional da Associação Histórica Americana AHA resoluções dirigidas a melhorar a condição das mulheres o que ocorreu dentro de uma atmosfera tensa e altamente carregada Normalmente destinada a discussões de leis secundárias e política organizacional o papel não a política da associação esses encontros eram em geral um modelo de boa camaradagem e decoro As discordâncias quando ocorriam poderiam ser atribuídas às diferenças de opinião pessoal preferência ou mesmo de persuasão política à prioridade institu cional ou regional mas nenhuma delas era fundamental nenhuma delas a plataforma de um interesse identificável em desacordo com o todo Por seu tom sua prontidão para a luta e sua exigência em representar uma entidade coletiva a quem sistematicamente foram negados os seus direitos as mulheres romperam as normas de conduta e desafiaram as implicações de trabalho comosem pre N a verdade acusaram que o trabalho como sempre era em si uma forma de política pois ignorava e assim perpetuava a sistemática exclusão em termos de gênero e raça de profissionais qualificados O ataque ao poder entrincheirado teve pelo menos dois resultados obteve concessões da AHA sob a forma de um comitê ad hoc para averiguar as questões levantadas um comitê que publicou um relatório em 1970 reconhecendo a condição inferior das mulheres e recomendando várias medidas puniti vas incluindo a criação de um comitê permanente sobre as mulheres e resultou na crítica da conduta das mulheres como nãoprofissional A oposição entre profissionalismo e política não é uma oposição natural mas parte da autodefinição da profissão como uma prática especializada baseada na posse compartilhada de extensivo conhecimento adquirido através da educação Há dois A ESCRITA DA HISTÓRIA 71 aspectos distintos mas em geral inseparáveis da definição de uma profissão U m deles envolve a natureza do conhecimento produzi do neste caso do que se considera como história O outro envolve as funções de barreira que estabelecem e reforçam os padrões mantidos pelos membros da profissão neste caso os historiadores Para os historiadores profissioYiais do século vinte a história é o conhecimento do passado obtido por meio de investigação desin teressada e imparcial o interesse e a parcialidade são a antítese do profissionalismo e universalmente disponível para quem quer que tenha dom inado os procedimentos científicos requeridos11 O acesso repousa então neste domínio cuja possessão se supõe evidente àqueles que já são profissionais e que por si só podem julgar O dom ínio não pode ser uma questão de estratégia ou de poder mas apenas de educação e treinamento A qualidade de membro na profissão histórica confere responsabilidade aos indi víduos que se tornam os guardiães daquele conhecimento que é o seu campo de ação especial A guarda e o domínio são portanto a base para a autonomia e para o poder de determinar o que conta com o conhecimento e quem o possui E além disso é claro as profissões e as organizações profissio nais são estruturadas hierarquicamente os estilos e padrões domi nantes operam para incluir alguns e excluir outros da qualidade de membros O dom ínio e a excelência podem ambos explici tar julgamentos de capacidade e desculpas implícitas para tendên cias viciosas na verdade os julgamentos de capacidade estão com freqüência entrelaçados com avaliações de uma identidade social do indivíduo que são irrelevantes à competência profissional12 C om o separar esses julgamentos e realmente se eles podem ser afinal separados são questões não apenas de estratégia mas de 11 Peter Novick That Noble Dream The Objectivity Question and the American Historical Profession N ova York 1988 12 Sobre a questão do acesso ver Mary G Dietz Context is Ali Fem infsm and Theories o f Citizenship Jill K Conway Politics Pedagogy and G ender e Joan W Scott History and Difference todos em Daedalus outono de 1987 p 124 13752 93118 respectivamente 72 PETER BURKE epistem ologiaA oposição entre política e profissionalism o conseguiu pouco a pouco obscurecer a questão epistemológica N a AHA as mulheres os negros os judeus os católicos e os nãocavalheiros foram sistematicamente subrepresentados durante anos13 Esta situação era periodicamente observada e protestada alguns historiadores combinaram esforços para remediar a discri minação mas os termos e o estilo de protesto eram diferentes daqueles utilizados após 1969 N os primeiros tempos seja se recusando a comparecer a uma convenção marcada em um hotel segregacionista seja insistindo para que as mulheres fossem incluí das nos encontros profissionais os historiadores que participavam do protesto alegavam que a discriminação baseada em raça reli gião etnia ou sexo prejudicava o reconhecimento de historiadores qualificados Aceitando o conceito do que a profissão deveria ser argumentavam que a política não tinh espaço ali sua ação declaravam estava direcionada à realização dos verdadeiros ideais profissionais Em contraste a implicação dos protestos de 1969 e posteriores era que as profissões eram organizações políticas nos múltiplos significados da palavra política apesar do decoro de seus membros e apenas a ação coletiva poderia modificar as relações de poder prevalecentes Durante os anos 70 as mulheres da AHA e de outras associações profissionais uniram suas lutas locais por reconhecimento e representação às campanhas nacionais das mu lheres especialmente àquela para a Emenda dos Direitos Iguais à Constituição Equal Rights Am endm ent ERA e insistiram em que as associações profissionais como um todo tomassem uma posição nessas questões nacionais Rejeitavam a sugestão de que a ERA fosse irrelevante para as questões da AHA argumentando que ciência não era neutralidade mas cumplicidade com discrimina ção N o interior das organizações noções sagradas como excelên cia intelectual e qualidade da mente foram investidas por tantas capas de tratamento discriminatório que deveriam ser substituídas 13 Howard K Beale The Professional H istorian H isT h eoryand His Practice Pacific Historical Revieiv 22 p 235 agosto de 1953 A ESCRITA DA HISTÓRIA 73 por medidas quantitativas de ação afirmativa O s padrões profis sionais de imparcialidade e desinteresse estavam sendo derrubados por interesses particulares ou assim parecia àqueles que manti nham a visão normativa N o entanto outra maneira de ver o problema é tratar o desafio das mulheres como um a questão de redefinição profissio nal pois a presença de mulheres organizadas contestava a noção de que a profissão da história fosse um corpo unitário Insistindo em que havia um a identidade de historiadoras em desacordo com aquela dos hom ens e sugerindo também que a raça separava os historiadores brancos dos negros as feministas questionavam se algum dia poderia haver avaliações imparciais do saber sugerin do que elas não eram mais que a atitude hegemônica de um ponto de vista interessado Elas não puseram de lado os padrões profis sionais na verdade continuaram a defender a necessidade da educação e de julgamentos de qualidade instituindo entre outras coisas concursos para trabalhos de valor sobre a história das mulheres Embora certamente se possa citar evidência de tenden ciosidade entre os historiadores das mulheres isso não caracteri zava o campo como um todo nem era ou é algo peculiar às feministas E mesmo o tendencioso não defendia a distorção deliberada dos fatos ou á supressão da informação em prol da causa14 A maior parte dos historiadores das mulheres não 14 Esta questão surgiu de várias maneiras diferentes mais recentemente em conexão com o caso da Sears N o decorrer de um processo de discriminação de sexo movido contra a cadeia de lojas Sears Roebuck and Com pany duas historiadoras das mulheres Rosalind Rosenberg e Alice KesslerHarris testemunharam em lados opostos O caso provocou um a enorme controvérsia entre os historiadores a respeito das implicações políticas da história das mulheres e dos comprometimentos políticos das historiadoras feministas Houve acusações de má fé de am bos os lados mas as acusações m ais recentes e bem mais contundentes de Sanford Levinson e Thom as Haskell em defesa de Rosenberg insistem em que KesslerHarris distorceu delibera damente a história no interesse da política enquanto Rosenberg defendeu bravamen te a verdade A oposição entre política e verdade ideologia e história compõe a estrutura de seu ensaio e lhe proporciona seu tom aparentemente objetivo e desapaixonado enquanto lhes permite passàr por cima de todas as difíceis dificul dades epistemológicas que o caso levantou e isso eles apontam na nota de rodapé n 136 V er Academ ic Freedom and Expert W ifnessing Historians and the Sears C ase Texas Law Review 667 p 30131 outubro de 1988 Sobre o caso da Sears 74 PETER BURKE rejeitava a questão do saber e do conhecimento que é a base fundamental de uma profissão N a verdade aceitavam as leis da academia e buscavam reconhecimento como intelectuais Empre gavam as regras de linguagem exatidão evidência e investigação que tornavam possível a comunicação entre os historiadores15 E no processo buscavam e adquiriam posição como profissionais no campo da história Ao mesmo tempo no entanto desafiavam e subvertiam aquelas regras questionando a constituição da discipli na e as condições de sua produção de conhecimento16 Sua presença contestava a natureza e os efeitos de um corpo uniforme e inviolável de padrões profissionais e de uma única figura o homem branco para representar o historiador De fato as historiadoras feministas insistiram em que não havia oposição entre profissionalism o e política introduzin do um conjunto de questões profundamente perturbadoras sobre as hierarquias as bases e as hipóteses que governavam o em preendimento histórico Q ue padrões que definições de profis sionalism o estão em voga Q ue consenso representam Com o se chegou ao consenso Q ue outros pontos de vista foram excluídos ou suprimidos Q ue perspectiva determina o que se considera como sendo uma boa história ou para aquela questão como história C ase Texas Law Review 667 p 30131 outubro de 1988 Sobre o caso da Sears vet tam bém Ruth M ilkm an W om en s History and the Sears C ase Feminist Studies 12 p 375400 verão de 1986 e Joan W Scott The Sears C ase em Scott Gender and the Politics of History Nova York 1988 p 16777 15 Ellen Somekawa e Elizabeth A Smith Theorizing the W riting o f History or I cant think why it should be so dull for a great deal o f it m ust be invention Journal of Social History 221 p 14961 outono de 1988 16 Sobre o potencial da história das mulheres para transformar a história ver A nn Gordon M ari Jo Buhle e Nancy Schrom Dye The Problem ofW om ens History em Berenice Carroll ed Liberating Womens History Urbana 1976 Natalie Zemon Davis W om ens History in Transition The European C ase Feminist Studies 3 p 83103 1976 Joan Kelly Women History and Theory Chicago University of Chicago Press 1984 Carl Degler W hat the W om ens M ovem ent has done to American History Soundings 64 p 419 inverno de 1981 A ESCRITA DA HISTÓRIA 75 História versus ideologia A emergência da história das mulheres como um campode estudo acompanhou as campanhas feministas para a melhoria das condições profissionais e envolveu a expansão dos limites da história M as esta não foi uma operação direta ou linear não foi simplesmente uma questão de adicionar algo que estava anterior mente faltando Em vez disso há uma incômoda ambigüidade inerente ao projeto da história das mulheres pois ela é ao mesmo tempo um suplemento inócuo à história estabelecida e um deslo camento radical dessa história Este gume duplo é visível em muitas declarações feitas pelos proponentes do novo campo no início dos anos 70 mas foi mais bem expresso por Virginia W oolf em 1929 Em A Room of Ones O um W oolf abordou a questão da história das mulheres como muitos de seus contemporâneos fizeram no período que se seguiu à concessão do direito de voto às mulheres na Inglaterra e nos Estados U n idos17 Ela divaga sobre as inadequações da história existente uma história que necessita ser reescrita diz ela porque freqüentemente parece um pouco estranho como se fosse irreal desequilibrado ou seja Carente insuficiente incompleto A pa rentemente se afastando da reescrita da história ela apresenta como tentativa o que parece ser outra solução Por q u e não acrescentar um suplemento à história chamandoo é claro por algum nome discreto de forma que as mulheres pudessem ali aparecer sem impropriedade A invocação de W oolf de um suplemento parece apresentar um compromisso mas não o é O delicado sarcasmo de seus comentários sobre um nome discreto e a necessidade de propriedade sugere um projeto complicado ela o chama de am bicioso além da minha coragem que mesmo quando ela tenta circunscrever as dificuldades evoca implicações contraditórias18 17 Entre essas estavam Ivy Pinchbeck Women Workers and the Industrial Revolution 17501850 Londres 1930 e Mary Beard On Understanding Women Nova York 1931 e America Through Womens Eyes N ova York 1934 18 Virginia W oolf A Room ofO nes O um Nova York 1929 p 47 PETER BURKE A s mulhereg estão ao mesmo tempo adicionadas à história e provocam sua reescrita elas proporcionam algo extra e são neces sárias à complementação são supérfluas e indispensáveis O uso que W oolf faz do termo suplemento recorda a análise de Jacques Derrida o que me auxilia a analisar o relacionamento da história das mulheres com a história No projeto de descons trução da metafísica ocidental Derrida apontou certos indicado res que resistem e desorganizam as oposições binárias sem chegarem a constituir um terceiro termo ou uma resolução dialética São dilacerados devido a sua indefinição implicam simultaneamente significados contraditórios que são impossíveis até de serem classificados separadamente O suplemento é uma dessas indefinições N a França como na Inglaterra ele significa tanto uma adição quanto um a substituição E algo adicionado extra supérfluo acima e além do que já está inteiramente presente é também uma substituição para o que está ausente incompleto carente por isso requerendo complementação ou integralidade O suplemento não é algo a mais ou a menos nem algo externo ou o complemento a algo interno nem também um acidente ou um a essência 19 Ele é nas palavras de Barbara Johnson supér fluo e necessário perigoso e redentor Tanto como significante quanto como significado não é possível precisar a distinção entre excesso e falta compensação e corrupção20 Eu gostaria de dizer que pensando em termos da lógica contraditória do suplemento podemos analisar a ambigüidade da história das mulheres e sua força política potencialmente crítica uma força que desafia e desestabiliza as premissas disciplinares estabelecidas mas sem oferecer um a síntese ou uma resolução fácil O desconforto subjacente a tal desestabilização conduziu não apenas à resistência por parte dos historiadores tradicionais mas 19 Jacques Derrida Posicions trad de Alan Bass Chicago 1981 p 43 V et tam bém Derrida O f Grammatology trad de Gayatri Chakravorty Spivak Baltimore 1974 p 14164 20 Barbara Johnson introdução a sua tradução de Disseminations de Derrida Chicago 1981 p xiií A ESCRITA DA HISTÓRIA 77 também a um desejo de resolução por parte dos historiadores das mulheres Entretanto não há resolução simples mas apenas a possibilidade de constante atenção aos contextos e significados no interior dos quais são formuladas as estratégias políticas subversi vas É dentro desse tipo de estrutura analítica que podemos melhor compreender os contextos sobre poder e conhecimento que carac terizam a emergência deste campo A maior parte da história das mulheres tem buscado de alguma forma incluir as mulheres como objetos de estudo sujeitos da história Tem tomado como axiomátíca a idéia de que o ser hum ano universal poderia incluir as mulheres e proporcionar evidência e interpretações sobre as várias ações e experiências das mulheres no passado Entretanto desde que na moderna historio grafia ocidental o sujeito tem sido incorporado com muito mais freqüência como um homem branco a história das mulheres inevitavelmente se confronta com o dilema da diferença assim denominado pela jurista teórica americana Martha Minow21 Este dilema se apresenta porque a diferença é construída através da verdadeira estrutura da nossa linguagem que embute pontos de comparação não estabelecidos no interior de categorias que ocul tam sua perspectiva e implicam erroneamente um ajustamento natural com o m undo 22 O universal implica uma comparação com o específico ou o particular homens brancos com outros que não são brancos ou não são homens homens com mulheres Mas essas comparações são mais freqüentemente estabelecidas e com preendidas como categorias naturais entidades separadas do que como termos relacionais Por isso reivindicar a importância das mulheres na história significa necessariamente ir contra as defi nições de história e seus agentes já estabelecidos como verda deiros ou pelo menos como reflexões acuradas sobre o que aconteceu ou teve importância no passado E isso é lutar contra 21 M artha Minow The Suprem e C ourt 1986 Term Foreword justice Engendered Harvard Law Review 101 n 1 p 995 novembro dç 1987 22 Ibid p 13 78 PETER BURKE padrões consolidados por comparações nunca estabelecidas por pontos de vistá jamais expressos como tais23 A história das mulheres sugerindo que ela faz uma modificação da história investiga o modo como o significado daquele termo geral foi estabelecido Questiona a prioridade relativa dada à história do hom em em oposição à história da mulher expon do a hierarquia implícita em muitos relatos históricos Ê mais fundamentalmente desafia tanto a competência de qualquer rei vindicação da história de fazer um relato completo quanto à perfeição e à presença intrínseca do objeto da história o Homem universal Embora todos os historiadores das mulheres não apre sentem diretamente estas questões seu trabalho implicaas Atra vés de que processos as ações dos homens vieram a ser conside radas uma norma representativa da história hum ana em geral e as ações das mulheres foram subestimadas subordinadas ou consignadas a uma arena particularizada menos importante Que comparações não estabelecidas estão implícitas em termos como história e o historiador Que perspectiva estabelece os hom ens como atores históricos primários Qual é o efeito sobre as práticas estabelecidas da história de se olhar os acontecimentos e as ações pelo lado de outros sujeitos as mulheres por exemplo Qual o relacionamento entre o historiador e os sujeitos sobre os quais eleela escreve Michel de Certeau vê o problema da seguinte forma O fato de a particularidade do lugar onde o discurso é produzido ser relevante ficará naturalmente mais evidente quando o discurso historiográ fico tratar das questões que focalizam o sujeitoprodutor da história a história das mulheres dos negros dos judeus das minorias culturais etc Nesses campos podese é claro sustentar que a condição pessoal do autor é indiferente em relação à objetividade do trabalho dele ou dela ou que somente ele ou ela autoriza ou invalida o discurso se ele ou ela faz parte ou não dele Mas esta discussão requer o que tem sido dissimulado por 23 Sobre a questão das representações da história ver Gayatri Chakravorty Spivak Can the Subaltern Speak em Cary N elson e Lawrence Grossberg Marxism and the Interpretation of Culture Urbana 1988 p 271313 A ESCRITA DA HISTÓRIA 79 uma epistemologia a saber o impacto das relações sujeitoasujeito mulhe res e homens negros e brancos etc sobre a utilização de técnicas aparentemente neutras e na organização de discursos que são talvez igualmente científicos Por exemplo partindose do fato da diferenciação dos sexos devese concluir que uma mulher produz uma historiografia diferente daquela do homem E claro que eu não respondo a essa questão mas afirmo que essa pergunta coloca em questão o lugar do sujeito e requer um tratamento diferente da epistemologia que construiu a verdade do trabalho baseandose na irrelevância do narrador24 O que De Certeau aí enfatiza não é que apenas as mulheres possam escrever a história das mulheres mas que a história das mulheres traz à luz as questões de domínio e de objetividade sobre as quais as normas disciplinares são edificadas A solicitação supos tamente modésta de que a história seja suplementada com informa ção sobre as mulheres sugere não apenas que a história como está é incompleta mas também que o domínio que os historiadores têm do passado é necessariamente parcial E o que é mais perturbador abre à sondagem da crítica a verdadeira natureza da história como uma epistemologia centralizada no sujeito25 N a maioria das vezes a discussão dessas questões filosóficas desconcertantes tem sido deslocada para outro tipo de terreno O s chamados historiadores tradicionais defenderam seu poder como guardiães da disciplina e por implicação seu domínio da história invocando uma oposição entre história que o conhecimento obteve através da inquisição neutra e ideologia conhecimento distorcido por considerações de interesse Por sua própria natureza a ideologia é descrita como contaminadora e por isso desqualifica o trabalho intelectual O rótulo ideológico proporciona às opi niões dissidentes um a idéia de inaceitabilidade e dá às opiniões predominantes uma condição de lei indiscutível ou verdade26 24 Michel de Certeau History Science and Fiction em Hecerologies Discourse on the Other M inneapolis 1986 p 21718 25 Mary Hawkesworth Knower Knowing Know n Signs primavera de 1989 p 533557 26 O sucesso ideológico é alcançado quando apenas as opiniões dissidentes são consideradas como ideologias a opinião predom inante é a verdade M artha Minow Justice Engendered Harvard Law Review 101 p 67 novembro de 1987 80 PETER BURKE Norm an Ham pson jamais admitiria que sua caracterização pejorativa de tim livro sobre as mulheres como história uterina implicasse para ele um contraste com a história fálica em sua opinião o contraste era com a história real E o ataque gratuito de Richard C obb a Simone de Beauvoir em um a crítica do mesmo livro sugeria que as feministas não podiam ser boas historiadoras O s dez mandamentos de Lawrence Stone para a história das mulheres foram muito mais adiante da aceitação do campo como um todo mas enfatizavam os perigos da evidência distorcida para apoiar a ideologia feminista moderna como se o significado da evidência fosse inequívoco e de forma alguma apresentasse proble mas quanto à posição ponto de vista e interpretações dos historia dores Com uma rejeição similar a essas questões Robert Finley acusou Natalie Davis de desprezar a soberania das fontes e transgredir o tribunal dos documentos com o propósito de promover uma leitura feminista da vida de Martin Guerre27 Dificilmente podese dizer que as tentativas das feministas para expor as tendências machistas ou a ideologia masculinista incorporadas na escrita da história tenham com freqüência sido ridicularizadas ou rejeitadas como expressões de ideologia28 Relações de poder desiguais no interior da disciplina tornam as acusações de ideologia perigosas para aqueles que buscam posição profissional e legitimidade disciplinar Isso e as regras de formação disciplinar inicialmente desencorajou muitos historiado 27 N orm an H am pson The Big Store London Review of Books p 18 21 de janeiro 3 de fevereiro de 1982 Richard C obb The Discreet Charm o f the Bourgeoisie New York Review of Books p 59 17 de dezembro de 1981 Lawrence Stone Only W om en New York Review of Books p 217 11 de abril de 1985 Robert Finlay The Refashioning o f Martin Guerre e Natalie Zemon Davis O n the Lam e am bos em American Historical Review 933 p 55371 e 572603 respectivamente junho de 1988 28 A intratabilidade do liberalismo ocidental para fazer justiça às lutas baseadas em gênero e raça m ostra algo que as feministas têm de conhecer bem a resistência do indivíduo liberal do Homem às intimações de deficiência especialmente quando essas intimações são em si m esm as expressas por meio do gênero Elizabeth W eed Introdução a Corning to Terms Feminism Theory Politics Nova York 1988 p 6 da transcrição datilografada A ESCRITA DA HISTÓRIA 81 ics das mulheres de confrontar as implicações epistemológicas mais radicais de seu trabalho em vez disso enfatizaram as mulhe res como um sujeito histórico adicional e não seu desafio aos pressupostos metodológicos da disciplina Naquele momento buscávamos aparecer como cidadãs respeitadoras da lei não como agentes de subversão Ao defender novos cursos sobre as mulhe res diante de um comitê curricular universitário em 1975 argu mentei como exemplo que a história das mulheres era um a área recente de pesquisa assim como os estudos da região ou as relações internacionais29 Em parte esse foi um artifício tático uma jogada política que tentava em um contexto específico separar os estudos das mulheres daqueles intimamente associados ao movimento feminista Em parte resultou da crença de que o acúmulo de bastante informação sobre as mulheres no passado inevitavelmen te atingiria sua integração na históriapadrão Este último motivo foi estimulado pela emergência da história social com seu foco nas identidades coletivas de uma ampla variedade de grupos sociais A existência do campo relativamente novo da história social proporcionou um importante veículo para a história das mulheres a associação de um novo tópico com um novo conjunto de abordagens enfatizou a reivindicação da importância ou pelo menos a legitimidade do estudo das mulheres Apelando para algumas préconcepções disciplinares sobre a análise científica desinteressada ele não obstante pluralizou os objetos da investi gação histórica admitindo a grupos sociais como camponeses operários professores e escravos uma condição de sujeitos históri cos Nesse contexto os historiadores das mulheres poderiam apontar para a realidade da experiência vivida pelas mulheres e presumir seu interesse inerente e sua importância Colocaram as mulheres em organizações políticas e em locais de trabalho e introduziram novas arenas e instituições famílias e cuidados com 29 Testem unho de Joan Scott para a Universidade da Carolina do Norte Com itê de Currículo de Chapei Hill maio de 1975 citado em Pamela Dean Women on the Hill A History of Women at the University of North Carolina Chapei Hill 1987 p 23 82 PETER BURKE a casa como dignos de estudo Parte da história das mulheres buscava demonstrar a similaridade da atuação das mulheres e dos homens e parte enfatizava a diferença das mulheres ambas as abordagens consideravam as mulheres como uma categoria social fixa uma entidade separada um fenômeno conhecido eram pessoas biologicamente femininas que se moviam dentro e fora de contextos e papéis diferentes cuja experiência mudava mas cuja essência como mulher não se alterava30 Assim os historiadores sociais eu dentre eles documentaram os efeitos da industrialização sobre as mulheres um grupo cuja identidade comum nós pressupomos Questionávamos menos freqüente mente naquela época sobre a variabilidade histórica do próprio termo mulheres como ele se alterou como no decorrer da industrialização por exemplo a designação de mulheres trabalha doras como uma categoria separada de trabalhadores criou novas percepções sociais do que significava ser uma mulher31 Outros voltaramse para a cultura das mulheres como o produto tangível da experiência social e histórica das mulheres e eles 30 N ão quero dizer que se deva subestim ar a variedade de abordagens à história das mulheres e as diferentes posições interpretativas e teóricas assum idas Dentro da história das mulheres haviahá muita divergência entre as marxistasfeministas feministas liberais aquelas que usam os enfoques de várias escolas psicanalistas etc Meu objetivo aqui não é criticar a variedade m as indicar alguns dos cam pos comuns entre todas elas a preocupação com a mulher como um sujeito com a identidade das mulheres assim como o relacionamento do cam po como um todo com a disciplina da história Já critiquei em outro momento a diversidade V er Joan W Scott W om ens History The M odem Period Past and Present 101 p 14157 1983 e Gender A Useful Category o f Historical Analysis American Historical Review 915 p 105375 dezembro de 1986 31 Para as histórias do trabalho das mulheres ver Louise A Tilly e Joan W Scott Women Work and Family Nova York 1978 1987 Alice KesslerHarris Out to Work A History of WageEarning Women in the United States N ova York 1982 Thom as D ublin Women at Work The Transformation of Work and Communiry in Lowell Massachusetts 182660 Nova York 1979 Sally Alexander W om en s W ork in NineteenthCentury London A Study o f the Years 182950 em Juliet Mitchell e A nn Oakley eds The Rights and Wrongs of Women Londres 1976 Patricia A Cooper Once a Cigar Malcer Men Women and Work Culture in American Cigar Factories 19 0 0 1 9 1 9 Urbana 1987 A ESCRITA DA HISTÓRIA 83 também tenderam a supor que as mulheres eram uma categoria homogênea32 C om o resultado a categoria mulheres assumiu uma existência como entidade social separada de seu relacionamen to conceituai historicamente situado com a categoria hom ens33 A história das mulheres passoti menos tempo documentando a vitimização das mulheres e mais tempo afirmando a distinção da cultura das mulheres criando assim uma tradição histórica a que as feministas poderiam apelar como exemplos de atividade das mulheres para provar sua capacidade de fazer história34 A documentação da realidade histórica das mulheres ecoou e contribuiu para o discurso da identidade coletiva que tornou possível o movimento das mulheres nos anos 70 Esse discurso produziu uma experiência feminina compartilhada que embora levasse em conta as diferenças sociais enfatizava o denominador comum da sexualidade e as necessidades e interesses a ela vincu lados O aumento da consciência acarretou a descoberta da ver dadeira identidade das mulheres a queda das viseiras a obtenção de autonomia de individualidade e por isso de emancipação O movimento das mulheres pressupôs a existência das mulheres a m o uma categoria social separada definível cujos membros necessitam apenas ser mobilizados ao invés de se ver uma coleção de pessoas biologicamente similares cuja identidade estava em processo de ser criada pelo movimento A história das mulheres i onfirmou assim a realidade da categoria mulheres sua existên i ia anterior ao movimento contemporâneo suas necessidades 12 Linda Kerber Separate Spheres Female W orlds W om ans Place The Rhetoric of W om ens History Journal of American History 751 p 939 junho de 1988 15 Isto não significa que os historiadores das mulheres não escrevessem sobre as mulheres em relação aos hom ens como esposas mães filhas empregadas pacientes etc Significa que eles tendiam a pôr de lado a questão principal que as m ulheres não possuem um a definição intrínseca mas apenas um a definição contextual que é sempre contestada em sua idealização e atualização e que não pode ser elaborada exceto por meio do contraste em geral com os hom ens Sobre isso ver Denise Riley Am 1 that name Feminism and the Category of women in History Londres e M inneapolis 1988 t1 Ver por exemplo o sim pósio sobre W om ens Gulture e política em Feminist Studies 6 p 26641980 84 PETER BURKE inerentes setis interesses e suas características dandolhe uma história A emergência da história das mulheres ficou então entrelaçada com a emergência da categoria das mulheres como uma identi dade política e esta foi acompanhada por uma análise que atribuía a opressão das mulheres e sua falta de visibilidade histórica à tendenciosidade masculina C om o as mulheres os hom ens julgaramse um grupo de interesse homogêneo cuja resistência às exigências de igualdade foi atribuída a um desejo intencional de proteger o poder e os recursos que sua dominância lhes propor cionava A atenção à diversidade à classe à raça e à cultura produziu variações sobre o tema do patriarcado mas não obstante fixou a oposição hom em m ulher Menos atenção foi dada às bases conceituais de patriarcado às maneiras como a diferença sexual foi transformada em conhecimento cultural do que aos efeitos dos sistemas da dominância masculina sobre as mulheres e à resistên cia das mulheres a eles O antagonismo homem versus mulher foi um foco central da política e da história e isso teve vários efeitos tornou possível uma mobilização política importante e dissemina da ao mesmo tempo que implicitamente afirmava a natureza essencial da oposição binária macho versus fêmea A ambigüidade da história das mulheres parecia estar resolvida por essa oposição direta entre dois grupos de interesse separadamente constituídos e conflitantes Paradoxalmente embora esse tipo de conflito fosse um anátema àqueles que concebiam as profissões como comunidades unificadas ele foi aceitável como uma caracterização da história Isso ocorreu em parte porque o próprio campo em si estava se modificando seus focos se deslocando suas ortodoxias reinantes desafiadas e substituí das N a verdade poderia ser dito que a história das mulheres atingiu uma certa legitimidade como um empreendimento histórico quan do afirmou a natureza e a experiência separadas das mulheres e assim consolidou a identidade coletiva das mulheres Isso teve o duplo efeito de assegurar um local para a história das mulheres na disciplina e afirmando sua diferença da história A história das A ESCRITA DA HISTÓRIA 85 mulheres foi tolerada em parte porque a pressão de historiadoras 0 estudantes feministas tornoua digna de ser tolerada por plura listas liberais que estavam desejando obter credenciais para ò interesse histórico de muitos tópicos mas permaneceu fora das preocupações dominantes da disciplina seu desafio subversivo aparentemente contido em uma esfera separada Política versus teoria A aparente restrição e segregação da história das mulheres 1 amais foi completa mas no final dos anos 70 começou a ser obviamente minada por várias tensões algumas delas no interior da disciplina outras no movimento político Essas combinaram para desafiar a viabilidade da categoria das mulheres e introdu ziram a diferença como um problema a ser analisado O foco na diferença tornou explícita parte da ambigüidade que sempre esteve implícita na história das mulheres apontando para os significados inerentemente relacionados das categorias de gênero Trouxe à luz questões sobre os elos entre o poder e o conhecimento e dem ons trou as interconexões entre ateoria e a política O objetivo dos historiadores das mulheres mesmo quando estabeleceram a identidade separada das mulheres era integrar as mulheres à história E o impulso para a integração prosseguiu com verbas do governo e fundações privadas nos anos 70 e início dos 80 Essas agências estavam não apenas interessadas na história mas também na luz que os estudos históricos poderiam lançar sobre a política contemporânea a respeito das mulheres A inte gração presumia não somente que as mulheres poderiam ser acomo dadas nas histórias estabelecidas mas que sua presença era requerida para corrigir a história Aqui estavam em ação as implicações contraditórias da condição suplementar da história das mulheres A história das mulheres com suas compilações de dados sobre as mulheres no passado com sua insistência em que as periodiza ções aceitas não funcionavam quando as rfiulheres eram levadas 86 PETER BURKE em conta com ua evidência de que as mulheres influenciavam os acontecimentos e tomavam parte na vida pública com sua insistência de que a vida privada tinha uma dimensão pública política implicava uma insuficiência fundamental o sujeito da história não era uma figura universal e os historiadores que escreviam como se ele o fosse não podiam mais reivindicar estar contando toda a história O projeto de integração tomou essas implicações explícitas Tom ada com grande entusiasmo e otimismo a integração se comprovou difícil de ser atingida Parecia mais uma resistência dos historiadores do que uma simples tendência ou preconceito embora isso certamente fizesse parte do problema35 Sem dúvida os próprios historiadores das mulheres acharam difícil inscrever as mulheres na história e a tarefa de reescrever a história exigia reconceituações que eles não estavam inicialmente preparados ou treinados para realizar Era necessário um m odo de pensar sobre a diferença e como sua construção definiria as relações entre os indivíduos e os grupos sociais G ênero foi o termo usado para teorizar a questão da diferença sexual N os Estados U nidos o termo é extraído tanto da gramática com suas implicações sobre as convenções ou regras feitas pelo homem do uso da lingüística quanto dos estudos de sociologia dos papéis sociais designados às mulheres e aos homens Embora os usos sociológicos de gênero possam incorporar tônicas fun cionalistas ou essencialistas as feministas escolheram enfatizar as conotações sociais de gênero em contraste com as conotações físicas de sexo36 Tam bém enfatizaram o aspecto relacionado do gênero 35 Susan Hardy A ikenetal TryingTransform ations Curriculum Integration and the Problem o f Resistance Signs 122 p 25575 inverno de 1987 V er também sobre a m esm a questão M argaret L Anderson Changing the Curriculum in Higher Education p 22254 36 Ver Gail Rubin The Traffic in W om en Notes on the Political Economy o f Sex em Rayna R Reiter ed Touards an Anthropology ofW omen Nova York 1975 Ver também Joan W Scott Gender A Useful Category o f Historical Analysis American Historical Revieiv 91 5 dezembro de 1986 e D onna Haraway Geschlecty Gender Genre Sexualpolitik eines W ortes em Vieíe One überall Feminismus in Bewegung Festschrift für Frigga Haug ed Kornelia Hauser Berlim 1987 p 22 4 1 A ESCRITA DA HISTÓRIA 87 não se pode conceber mulheres exceto se elas forem definidas em iclação aos homens nem homens exceto quando eles forem diferenciados das mulheres Além disso uma vez que o gênero foi lefinido como relativo aos contextos social e cultural foi possível pensar em termos de diferentes sistemas de gênero e nas relações daqueles com outras categorias como raça classe ou etnia assim como em levar em conta a mudança A categoria de gênero usada primeiro para analisar as diferen ças entre os sexos foi estendida à questão das diferenças dentro da diferença A política de identidade dos anos 80 trouxe à tona alegações múltiplas que desafiaram o significado unitário da cate goria das mulheres N a verdade o termo mulheres dificilmente poderia ser usadb sem modificação mulheres de cor mulheres judias mulheres lésbicas mulheres trabalhadoras pobres mães solteiras foram apenas algumas das categorias introduzidas Todas desafiavam a hegemonia heterossexual da classe média branca do termo mulheres argumentando que as diferenças fundamentais da experiência tornaram impossível reivindicar uma identidade isolada37 A fragmentação de uma idéia universal de mulheres por raça etnia classe e sexualidade estava associada a diferenças 37 Teresa de Lauretis Fem inist StudiesCritical Studies IssuesTerm s and Contexts Cherrie Moraga From a Long Line ofV endidas Chicanas and Fèm inism Biddy M artin e C handra Taopade Mohanty Fem inist Politics W hats Hom e G ot to Do with Ití todos em Teresa de Lauretis ed Feminist StudiesCritical Studies Bloom ington 1986 p 119173190191212 respectivamente V ertam bém The Com bahee River Collective A Black Fem inist Statement em Gloria T Hull Patricia Bell Scott e Barbara Sm ith eds But Some of Us are Brave Black Womens Studies N ova Iorque 1982 Barbara Sm ith ed Home Girls A Black Womens Antholog N ova Iorque 1983 Ver também Barbara Sm ith Toward a Black Feminist Criticism Deborah E McDowell New Directions for Black Fem inist Criticism Bonnie Zimmerman W hat has Never Been A n Overview o f Lesbian Feminist Criticism todos em Elaine Showalter ed The New Feminist Literary Criticism Essays on Women Literature Tfieorj Nova Iorque 1985 p 168224 Nancy Hofirnan W hite W om en Black W om en Inventing an Adequate Pedagogy Womens S tu d ie s Neuisletter 5 p 214 primavera de 1977 Michele W allace A Black F em iru V s Search for Sisterhood Village Voice 28 de julho de 1975 p 7 Teresa de Lauretis Displacing Hegemoníc Discourses Reflections on Fem inist Theory in the 1980s Inscriptions n 3 4 p 12741 1988 88 PETER BURKE políticas sérias no interior do movimento das mulheres sobre questões qúe variavam desde a Palestina até à pornografia38 As diferenças cada vez mais visíveis e veementes entre as mulheres questionavam a possibilidade de uma política unificada e sugeriam que os interesses das mulheres não eram autoevidentes mas uma questão de disputa e de discussão De fato todas as exigências de reconhecimento das experiências e das histórias de diversos tipos de mulheres representam a lógica da suplementação desta vez em relação à categoria universal das mulheres o bastante para qualquer história geral das mulheres e para a competência de qualquer historiador das mulheres cobrir todo o campo A questão das diferenças dentro da diferença trouxe à tona um debate sobre o modo e a conveniência de se articular o gênero como uma categoria de análise Um a dessas articulações servese do trabalho nas ciências sociais sobre os sistemas ou estruturas do gênero presume uma oposição fixa entre os homens e as mulheres e identidades ou papéis separadas para os sexos que operam consistentemente em todas as esferas da vida social Também presume uma correlação direta entre as categorias sociais masculina e feminina e as identidades de sujeito dos homens e das mulheres e atribui sua variação a outras características sociais estabelecidas como classe ou raça Am plia o foco da história das mulheres cuidando dos relacionamentos machofêmea e de questões sobre como o gênero é percebido que processos são esses que estabele cem as instituições geradas e das diferenças que a raça a classe a etnia e a sexualidade produziram nas experiências históricas das 38 Algum as das rupturas ocorreram em seguida à derrota da Em enda dos Direitos Civis Equal Rights Am endm ent ERA à Constituição Americana uma cam panha que promoveu uma frente unida entre vários grupos de feministas Evidentemente a cam panha em si da ERA m ostrou como eram profundas as diferenças entre as feministas e os antifeministas e pôs em dúvida qualquer idéia de solidariedade fem inina inerente Algum as das diferenças foram atribuídas à consciência falsa m as não inteiramente Sobre a cam panha da ERA ver Mary Francês Berry Why ERA Faãed Bloomington 1986 Jane M ansbridge Why We Lost the ERA Chicago 1986 D onald G Mathews e Jane Shorron de Hart Era and the Politics of Cultural Conflict North Carolina N ova York 1989 A ESCRITA DA HISTÓRIA 89 mulheres A abordagem da ciência social ao gênero pluralizou a categoria das mulheres e produziu um conjunto brilhante de histórias e de identidades coletivas mas também esbarrou em um conjunto aparentemente intratável de problemas que se seguiram ao reconhecimento das diferenças entre as mulheres Se há tantas diferenças de classe raça etnia e sexualidade o que constitui o campo comum em que as feministas podem organizar uma ação coletiva coerente Q ual é o elo conceituai para a história das mulheres ou para os cursos de estudos das mulheres entre o que parece ser um a proliferação infinitade diferentes histórias de mulheres Os dois problemas estão ligados será que há uma identidade comum para as mulheres e será que há uma história delas que possam os escrever Algumas feministas tentaram abordar essas questões analisan do o gênero com as abordagens literárias e filosóficas que por mais diversas que sejam estão conjuntamente agrupadas sob a rubrica do pósestruturalismo Aqui a ênfase se afasta da documentação da oposição binária macho versus fêmea para questionar como ela é estabelecida da suposição de uma identidade preexistente das mulheres para investigar o processo de sua construção do estabelecimento de um significado inerente para as categoriasomo hom ens e mulheres para analisar como seu significado é assegurado Essa análise assume a significação como seu objeto examinando as práticas e os contextos dentro dos quais os signifi cados da diferença sexual são produzidos Freqüentemente usa a teoria psicanalítica particularmente as leituras lacanianas de Freud para discutir a complexidade e a instabilidade de quaisquer identificações de sujeito A masculinidade e a feminilidade são encaradas como posições de sujeito não necessariamente restritas a machos ou fêmeas biológicos39 M ais importante foram as maneiras como as feministas se apropriaram do pósestruturalismo para pensar sobre a diferença 39 V erJudithB uder GenderTrouble Fèminism and the Subversion ofldentity Nova York 1989 90 PETER BURKE A diferença está no âmago das teorias lingüísticas de significação Dizse que todos os significados são produzidos diferencialmente através de contrastes e de oposições e hierarquicamente através da designação de primazia a um termo e de subordinação a outro A interconexão do relacionamento assimétrico é importante de ser considerada porque sugere que a mudança é mais que uma questão de ajustamento dos recursos sociais para um grupo subor dinado mais que uma questão de justiça distributiva Se a definição do Homem permanece na subordinação da Mulher então uma modificação na condição da Mulher requer e provoca uma modificação em nossa compreensão do Homem um simples pluralismo cumulativo não funciona A ameaça radical colocada pela história das mulheres situase exatamente neste tipo de desafio à história estabelecida as mulheres não podem ser adicionadas sem uma remodelação fundamental dos termos padrões e suposi ções daquilo que passou para a históriaobjetiva neutra e universal no passado porque essa visão da história incluía em sua própria definição de si mesma a exclusão das mulheres Aqueles que se dedicam ao ensino do pósestruturalismo afirmam que o poder deve ser compreendido em termos dos processos discursivos que produzem diferença C om o é produzido legitimado e disseminado o conhecimento da diferença C om o as identidades são construídas e em que termos As historiadoras feministas encontram respostas para essas questões em particular exemplos contextuais mas elas não produzem simplesmente nar rativas separadas O campo comum politica e academicamente é um campo de preferência das feministas onde elas produzem análises da diferença e organizam resistência contra a exclusão dominação ou marginalidade que são os efeitos dos sistemas de diferenciação Diferentemente da abordagem da ciência social que aceita tacitamente a identidade e a experiência das mulheres a abordagem pósestruturalista relativiza a identidade e a priva de suas bases em uma experiência essencializada ambos elementos cruciais na maior parte das definições padronizadas de política para a mobi A ESCRITA DA HISTÓRIA 91 I ização dos movimentos políticos Problematizando os conceitos de identidade e experiência as feministas que utilizam a análise pósestruturalista apresentaram interpretações dinâmicas do gêne ro que enfatizam a luta a contradição ideológica e as complexidades das relações de poder em mutação De muitas maneiras seu trabalho insiste em maior variabilidade histórica e especificidade contextual para os termos do próprio gênero do que o faz o trabalho daqueles que se baseiam em conceituações científicas sociais M as o trabalho influenciado pelo pósestruturalismo esbar ra em alguns dos mesmos problemas encontrados por aqueles que preferem as abordagens científicas sociais Com o declarou Denise Riley se a categoria das mulheres e assim a identidade e a experiência das mulheres são instáveis porque são historicamente variáveis quais são os campos para a mobilização política Com o escrever uma história coerente das mulheres sem uma idéia determinada e compartilhada do que são as mulheres Riley responde corretamente a meu ver que é possível pensarse e organizarse a política com categorias instáveis o que na verdade sempre tem sido feito mas exatamente como fazêlo é algo que necessita de discussão Ironicamente entretanto mais que o reconhecimento da similaridade dos dilemas confrontados pelas historiadoras do sexo feminino nos anos 80 os dilemas causados por nossa necessidade de pensar a política em novos termos desenvolveuse um debate polarizado sobre a utilidade do pós estruturalismo para o feminismo que é engastado em um contexto entre a teoria e a política As feministas hostis ao pósestruturalismo generalizaram sua crítica como uma denúncia da teoria e o rotularam como abstrato elitista e machista Em contraposição insistiram em que sua posição é concreta prática e feminista e por isso politicamente correta Tudo o que for teórico a respeito do feminismo é redeno minado de política nesta oposição porque de acordo cpm um relato recente suas introjeções vêm direto da própria reflexão de nós mesmas ou seja da experiência das mulheres das contradi ções que sentimos entre as diferentes maneiras em que fomos 92 PETER BURKE representadas até para nós mesmas das injustiças que temos há tanto tempo suportado em nossas situações40 Colocando o problema em termos de uma oposição binária intratável esta formulação afasta a possibilidade de considerar a utilidade de várias abordagens teóricas à história feminista e à política feminista assim como a possibilidade de conceber a teoria e a política como intrincadamente ligadas Creio que a oposição entre teoria e política é uma oposição falsa que busca silenciar os debates que devemos realizar sobre que teoria é mais útil para o feminismo para tornar apenas um a teoria aceitável como política Na linguagem daqueles que utilizam esta dicotomia política realmente significa uma boa teoria e teoria significa uma má política41 A boa teoria encara as mulheres e sua experiência como os fatos autoevidentes que são a origem da identidade e da ação coletivas Com efeito em uma mudança que é o inverso da reação da história à história das mulheres aqueles que usam essa oposição estabelecem a política como a posição normativa para alguns sendo o teste ético da validade do feminismo e da história das mulheres E os historiadores das mulheres que rejeitam a teoria em nome da políticâ estão curiosamente aliados àqueles historiadores tradicionais que consi deram o pósestruturalismo e consideravam a história das mulhe res uma antítese aos princípios de sua disciplina42 Em ambos os 40 Judith Newton History as Usual Fem ninism and th eN ew H istoricism Cultural Critique 9 p 93 1988 41 A oposição entre teoria e politica sugere também um a oposição entre idealismo e materialismo que desvirtua as questões filosóficas atualmente em voga Sobre a invalidade da oposição ídealism om aterialism o ver Joan Scott A Reply to Criti cism International Labor and Working Class History 32 p 3945 outono de 1987 A oposição teoria versus politica também se refere indiretamente à questão da atuação hum ana muito enfatizada atualmente pelos historiadores A teoria pós estiuturalista não nega que as pessoas atuam ou que têm algum controle sobre suas ações antes critica a teoria individual liberal que presume que os indivíduos são totalmente autônom os racionais e autogerados A questão não ê a atuação per se m as os limites da teoria liberal da atuação 42 A ironia é notável O s historiadores das mulheres que aceitaram as idéias de universalidade da disciplina acrescentando a categoria universal das m ulheres à já existente dos hom ens e do dom ínio presum indo que os historiadores podem A ESCRITA DA HISTÓRIA 93 casos esses historiadores estão defendendo o conceito da expe riência recusandose a problematizálo opondo teoria e polí tica removem a experiência da sondagem da crítica e a prote gem como o campo de origem e sem problemas da política e da explicação histórica43 Todavia o conceito da experiência temse tornado problemáti co para os historiadores e necessita ser criticamente discutido N ão somente o pósestruturalismo questionou se a experiência tem uma posição externa à convenção lingüística ou construção cultural mas o trabalho dos historiadores das mulheres também pluralizou e complicou os caminhos que os historiadores usaram convencio nalmente para a experiência Além disso e mais importante para m inha argumentação aqui o mundo diferente do movimento político feminista nos anos 80 tom ou impossível uma única definição da experiência das mulheres Com o tem sempre ocorri do as questões colocadas para a teoria são questões sobre política há um a experiência das mulheres que transcenda os limites de classe e raça C om o as diferenças de raça ou etnia afetam a experiência das mulheres e as definições das necessidades e interesses femininos em tom o dos quais podemos nos organizar ou sobre os quais podemos escrever Com o podemôs determinar o que aquela experiência é ou foi no passado Sem algum caminho para pensar teoricamente sobre a experiência os histo riadores não podem responder a essas questões sem algum caminho para pensar teoricamente sobre o relacionamento da história das mulheres com a história os efeitos potencialmente críticos e desestabilizantes do feminismo serão muito facilmente perdidos e renunciaremos à oportunidade de transformar radical alcançar um conhecimento desinteressado ou completo do passado não obstante caracterizam sua posição com o política termo que indica seu relacionamento subversivo com a disciplina Creio que este é m ais um exemplo da lógica do suplemento os historiadores das mulheres seja qual for sua posição epístemológica não estão nem inteiramente dentro nem inteiramente fora da profissão da história 43 V er John Toews Intellectual History After the Linguistic T u m The Autonomy of M eaning and the Irreducibility o f Experience American Historical Review 92 p 879907 outubro de 1987 94 PETER BURKE mente o cenhecimento que constitui a história e a política que praticamos O pósestruturalismo não deixa de ter seus dilemas para as historiadoras feministas Creio que aquelas que insistem em que o pósestruturalismo não pode lidar com a realidade ou que seu foco nos textos exclui as estruturas sociais não compreendeu o ponto principal da teoria M as creio que ele não proporciona respostas prontas para os historiadores para alguns dos proble mas que levanta como invocar a experiência sem implicitamen te sancionar conceitos essencializados identidades ahistóricas como descrever a atuação humana enquanto reconhece suas determinações lingüísticas e culturais como incorporar a fantasia e o inconsciente em estudos de comportamento social como reconhecer diferenças e elaborar processos de diferenciação do foco da análise política sem terminar com relatos múltiplos e desconectados ou com categorias protegidas como classe ou o oprim ido como reconhecer a parcialidade da história de vida de alguém na verdade de todas as histórias de vida e ainda contála com autoridade e convicção Estes são problemas não resolvidos pondose de lado a teoria ou declarandoa uma antítese à política antes de tudo requerem um a discussão continuada e simultânea discussão que é ao mesm o tempo teórica e política pois no fim eles são os problem as de todos aqueles que escrevem a história das mulheres seja qual for a sua abordagem São problemas comuns porque seguem a lógica da suplemen tação que caracteriza a história das mulheres e que lhe proporcio nou sua força crítica A medida que as historiadoras feministas resolveram produzir um novo conhecimento elas necessariamente questionaram a adequação não apenas da substância da história existente mas também de suas bases conceituais e premissas epistemológicas N isso encontraram aliados entre os historiadores e outros estudiosos de hum anidades e nas ciências sociais que estão discutindo entre si questões de causalidade e explicação atuação e determinação M as as feministas em sua m aior parte A ESCRITA DA HISTORIA 95 não têm sido consideradas parceiras plenas nesses debates44 Mesmo nesses discursos críticos sua posição permanece suplementar ao mesmo tempo um exemplo particular de um fenômeno geral e um comentário radical da insuficiência de seus termos e práticas A posição suplementar é uma indeterminação recorrente e uma deses tabilização potencial Requer atenção constante aos relacionamentos de poder uma certa vigilância diante das tentativas de implementar uma ou outra de suas posições contraditórias O s historiadores das mulheres constantemente se deparam protestando contra as tentati vas de relegálos a posições que são meramente estranhas também resistem aos argumentos que põem de lado o que eles fazem como sendo tão diferente que não pode ser qualificado de história Suas vidas profissionais e seu trabalho são por isso necessariamente políticos N o final não há jeito de se evitar a política as relações de poder os sistemas de convicção e prática do conhecimento e dos processos que o produzem por essa razão a história das mulheres é um campo inevitavelmente político Neste ensaio utilizeime das operações da lógica do suplemento para que me facilitassem a compreensão e a análise da natureza inerentemente política do campo da história das mulheres final mente eu diria que é tal teoria que pode nos iluminar a política de nossa prática45 44 U m exemplo desse desprezo pelas contribuições feministas para os debates historio gráficos pode ser encontrado no fórum especial sobre história e teofia crítica em American Historical Review 94 junho de 1989 N enhum dos artigos reconhece o impacto que a história feminista ou a história afroamericana ou a história gay e lésbica tem tido sobre as questões epistemológicas confrontadas pela disciplina V er David Harlan Intellectual History and the Return o f Literature David Hollinger The Retum ofth e Prodigal The Persistence o f Historical Knowing e Alan Megill Recounting the Pasfc Descriptiori Explanation and Narrative in Historiography p 581609 61021 e 62753 respectivamente 45 Gostaria de agradecer a Cliflòtd Geertz por ter colocado algumas das questões que levaram à elaboração deste ensaio e também por seus esclarecedores comentários sobre uma primeira versão realizada Donald Scott auxilioume na articulação de muitos pontos cruciais e Elizabeth Weed apresentou inestimáveis sugestões críticas Também apreciei os comen tários e conselhos de Judith Buder Laura Engelstein Susan Hardíng Ruth Leys e Mary Louise Roberts A s críticas de Hilda Romer Tania Urum e Karin Widerberg provocaram desafios difíceis que melhoraram e reforçaram o argumento Estou grata por elas Biblioteca FIBRA HISTÓRIA DE ALÉMMAR Henk Wesseling Esta contribuição é sobre a história de alémmar tema interes sante mas de modo algum fácil Pois o que é história de alémmar Falando estritamente não há uma definição adequada para ela ou m elhor o que ela é depende de onde se está D a perspectiva britânica por exemplo praticam ente toda a história é história de além m ar incluindo parte da própria história do Reino U nido Parafraseando uma expressão francesa bem conhecida a história de todo m undo é história de alémmar para alguém de fora Obviam ente não é isso o que temos em mente quando utilizamos o term o então o que é U m a solução prática para este problem a pode ser encontrado examinandose os conteúdos de publicações que apresentam este term o em seu título A Revue française d histoire doutremer publicada pela sociedade de mesmo nom e é essencialm ente um a publicação dedicada à história européia e particularmente a francesa da expansão ultramarina e da form ação das possessões francesas Isso não é surpreendente pois seu nom e original era Revue dhistoire des colonies D o m esm o m odo as Académies de sciences doutremer francesas e belgas costumavarti ser Professor de História da Universidade de Leiden e Diretor do Instituto de H istória d a Expansão Européia 98 PETER BURKE conhecidas como as Académies des sciences coloniales A série de língua alemã Beitràge zur Kolonialund Uberseegeschichte combina os dois termos O s britânicos são bastante afortunados por terem sua commonwealth motivo pelo qual há um Journal of Imperial and Commonwealth History uma combinação muito mais elegante do que História Imperial e História de AlémMar N a Holanda o Instituto Colonial Real trocou seu nome para Instituto Tropical Real mas de certo modo a história tropical não foi aceita N ão é difícil compreender o que estava ocorrendo aqui Após 1945 o termo colonial tornouse cada vez mais sem atrativos e os institutos que queriam continuar sua existência tiveram de encontrar nomes diferentes de preferência mais neutros Entre tanto não era simplesmente uma questão de trocar nomes Houve também um a mudança de abordagem e de interesse A história de alémmar desenvolveuse em um campo de estudo muito mais amplo do que costumava ser a história colonial Trata não somente dos sistemas coloniais e do encontro entre europeus e não euro peus em geral mas também da história econômica social política e cultural dos povos não europeus E precisamente aí que surge o problema porque não apenas teoricamente mas também na prática real a história de alémmar desenvolveuse em um a questão tão vasta que se tornou impossível de ser identificável E claro que há alguns elementos que proporcionam uma certa coesão ao campo Em primeiro lugar o historiador de alémmar trata nor malmente com dois tipos de fontes por um lado as fontes européias em sua maior parte arquivísticas e por outro as nãoeuropéias escritas ou como freqüentemente é o caso na história africana não escritas Devido à ausência das fontes tradi cionais é necessária a assistência de outras disciplinas daí o papel de disciplinas como arqueologia lingüística e antropologia na história de alémmar Por isso a história de alémmar tende a ser interdisciplinar A parte isso o historiador de alémmar deve também se familiarizar com outras civilizações além da sua própria Isso geralmente supõe uma educação mais ampla e um pouco A ESCRITA DA HISTÓRIA 99 diferente do que em geral ocorre assim como uma exigência maior de habilidades lingüísticas Por essa razão os historiadores de alémmar são com freqüência encontrados em departamentos orientalistas ou africanistas pelo menos na Europa a situação nos Estados U nidos é diferente Bm esm o quando estão alocados em departamentos de história os historiadores de alémmar sentem a necessidade de colaborar com outros especialistas da m esm a área com o lingüistas antropólogos ou historiadores de arte Isso não acontece com os historiadores da Europa U m especialista em história da França em geral não vai trabalhar em um depar tamento de estudos franceses nem se sentirá estimulado a comparecer aconferências sobre estudos franceses C om o é típico para os historiadores de alémmar aprenderem sobre civilizações outras além da sua própria têm de colaborar com outras disciplinas para atingir uma compreensão melhor daquela civili zação ou sociedade particular M as também têm de se manter em contato com outros historiadores para compreender o que está acontecendo em sua própria disciplina A tensão entre a aborda gem da área e a abordagem disciplinar é um fenômeno bastante conhecido Há outra razão por que historicamente falando há uma certa unidade no campo da história de alémmar A maior parte do m undo ultramarino pertencia anteriormente ao m undo colonial e agora supõese fazer parte do Terceiro M undo Por isso em alguns círculos está em uso a expressão história do Terceiro M undo1 M as a idéia real de um Terceiro M undo está agora se desinte grando e não mais reflete a realidade Retrospectivamente parece até estranho que países como a índia e a Indonésia pudessem formar um m undo com o Sudão e com Mali pela única razão de terem sido todas excolônias e sejam ainda relativamente pobres Por isso equiparar a história de alémmar com a história do Terceiro M undo não parece uma boa idéia sobretudo porque a 1 Ver por exemplo M M órner e T Svensson ed The History of the Third World in Nordic Research Gõteborg 1986 100 PETER BURKE história dos Estados Unidos pertence à história de alémmar e na verdade à história colonial mas não à história do Terceiro Mundo Pode ser levantada a questão se a história de alémmar um a vez que ela suponha a inclusão da história de todo o m undo exterior à Europa ou ao O cidente é afinal um objeto de estudo Esse problem a é resultado do sucesso da história de alémmar após a Segunda G uerra M undial quando a ascensão da história de alémmar deveuse até certo ponto a um a reação à antiga história colonial U m grande acúm ulo de material teve de ser organizado e foi dado um grande salto para frente As novas nações reivindicavam seu próprio passado nacional O s povos sem história finalmente encontravam um a e os resul tados desse m ovimento foram im pressionantes A história de alémmar tornouse tão vasta e tão variada que não pode mais ser considerada como um cam po específico da história Para sobreviver a história de alémmar vai necessitar de alguma forma de reconceituação Antes de discutir isso devemos traçar um breve esboço da história do sujeito A história da história de alémmar um a visão geral De uma forma ou de outra a história tem sido praticada na maioria das civilizações N a Indonésia as crônicas ou babads remontam há muito tempo atrás O s hindus na índia têm pouco interesse em história mas os maometanos têm um grande interesse em uma idéia mais consistente de cronologia embora eles também só façam crônicas dos acontecimentos N o Japão e na China foi desenvolvida um a historiografia comparável à história européia tradicional que em sua forma científica moderna só foi desenvol vida no Ocidente no século dezenove E caracterizada pelo chama do método histórico cronologia filologia crítica de texto her menêutica e também por um tipo particular de pensamento histórico A consciência da singularidade dos acontecimentos a A ESCRITA DA HISTÓRIA 101 noção de desenvolvimento e sucessão através dos tempos mas também a noção de que cada período tem um caráter específico com seus próprios valores e padrões são características deste A escola histórica germânica desempenhou um papel importante nesse desenvolvimento motivo pelo qual alguns dos conceitos históricos mais famosos são ainda mais bem conhecidos em sua forma germânica Historismus Verstehen Zeitgeíst A interpretação histórica que resultou disso foi extremamente eurocêntrica A Welgeschichte realmente veio a se tornar a história européia pois na estrutura da história geral os povos nãoeuropeus não desempenham nenhum papel Eram considerados povos sem história Hegel ou povos de imobilização eterna Ranke À parte as civilizações antigas tradicionais eles só vinham à luz no m om ento em que se submetiam ou eram conquistados pelos europeus Isso não significa que não houvesse nenhum interesse em outras civilizações além das ocidentais pois esse existiu sob a forma do que é conhecido como estudos orientais O que im pulsionou estes estudos foi por um lado a Bíblia e a lingüís tica por outro o colonialismo Depois do Renascimento muitas universidades européias não apenas criaram cadeiras de grego e latim mas também de hebreu e árabe M ais tarde departamentos de estudos do Oriente M édio eou Árabes em anaram dessas disciplinas A lingüística comparada e histórica assunto popular no século dezenove estimulou o estudo do sânscrito que por sua vez deu origem a cadeiras e institutos para o estudo da civilização indiana U m estímulo ainda mais importante veio do colonialismo O treinamento dos criados civis coloniais tornouse um a parte da educação universitária no século dezenove Cursos de línguas e administração colonial podiam ser encontrados ao lado de cursos de história imperial ou colonial Embora focalizassem primaria mente o ponto de vista europeu esses cursos também prestavam alguma atenção aos povos de alémmâr E interessante observar que já em 1897 um comitê de seleção para uma cadeira de história das índias Holandesas deu preferência a um candidato porque ele 102 PETER BURKE conseguia também ver as coisas do ponto de vista nativo2 À parte os próprios súditos coloniais outros povos de alémmar tornaram se objetos de estudo N a Holanda por exemplo os chineses eram estudados devido à importante comunidade chinesa nas índias Orientais os japoneses devido ao perigo amarelo e os islâmicos devido ao perigo do fanatismo muçulmano O resultado disso foi o surgimento de dois grupos de historiadores um pequeno grupo em departamentos de estudos orientais que estudavam outras civilizações por direito próprio e outro muito maior que ensinava a própria história ou seja a história da Europa e de suas colônias A inda que situados dentro da mesma universidade raramente os dois grupos colaboravam entre si A situação modificouse radicalmente após 1945 em parte por razões externas em parte por razões internas A s razões externas eram óbvias a descolonização o declínio da Europa a emergência de novos superpoderes Tudo isso levou a um repensar do papel da Europa na história mundial e a um questionamento da aborda gem eurocêntrica O declínio da Europa tornouse um tema de estudo tão importante quanto sua ascensão O historiador holan dês Jan Romein proclamou o fim da Era Européia e o início do Século Asiático3 M as além das razões políticas e ideológicas houve tam bém desenvolvim entos internos modificações na m aneira com o a história era estudada O período pósguerra testemu nhou a ascensão da história social e econômica O s historia dores tornaramse m enos interessados na história política e militar e m ais interessados em questões com o civilização mate rial mentalités vida cotidiana o hom em com um etc N esse aspecto pelo menos até o século dezoito a história européia não era tão diferente da história nãoeuropéia Sob o impacto da escola dos Annales a história tornouse m enos teleológica 2 Ver C Fasseur Leiden and Empire University and Colonial Office 18251925 em W Otterspeer ed Leiden Oriental Connections 18501940 Leiden 1989 p 187203 3 J Rom ein Aera van Europa Leiden 1954 e De eeuw van Aziê Leiden 1956 A ESCRITA DA HISTÓRIA 103 menos wfiiggisfi4 A estrutura substituiu a evolução como a preo cupação central A continuidade tornouse tão importante quanto a mudança e por isso a oposição entre a Europa mudança e a Ásia continuidade tornouse menos relevante N essa abordagem o estadonação não era mais ít unidade central da análise histórica e portanto a oposição entre terramãe e colônia era menos importante A nova abordagem era mais em termos de aldeias cidades regiões grupos sociais Isso tornou menos acentuado o antagonismo entre as abordagens colonialista e nacionalista e tam bém ocorreram mudanças práticas Houve uma crescente influência por parte dos historiadores americanos pois seus departamentos de história sempre haviam sido menos paroquiais que os europeus e eles desempenhavam um papel cada vez maior na história asiática e africana Além disso as próprias excolônias desenvolveram seus próprios departamentos de história Certamente durante um longo período os historiadores ocidentais ainda dominaram o campo pois eram mais bem formados e tinham um acesso mais fácil a impor tantes domínios nos arquivos europeus As elites nativas estavam mais interessadas em outros campos do que na história A tarefa de desenvolver a economia e construir a nação era mais urgente e mais compensadora do que aquela de escrever a história Daí resultou uma situação curiosa Por um lado o impacto da Europa no conceito da própria história tornouse ainda mais forte que antes Historiadores da Á sia e da África freqüentemente iam para a Europa para estudar história ou pelo menos para concluir sua educação Trabalhavam em arquivos ocidentais e se valiam dos modelos ocidentais para aprender como a história deveria ser estudada e escrita Assim como os japoneses após a revolução Meiji eles aprenderam a história a partir do ponto de vista ocidental5 Em sua própria civilização não encontravam referên 4 Relativo aos tvhigs m em bros de um partido político da GrãBretanha qu í depois da revolução de 1688 pretendia subordinar o poder da C oroa ao do Parlamento no século X IX foi sucedido pelo Partido Liberal NT 5 L Blussé Japanese Historiography and European Sources em PC Emmer e H L W esseling ed Reappraisals in Overseas History Leiden 1979 p 193222 104 PETER BURKE cias Por outro lado sua interpretação era evidentemente muito diferente e às vezes fortemente antiocidental As nações jovens necessitavam de um passado usável e usável significava nacio nalístico e anticolonial6 Assim a questão não era apenas de historiografia colonialista versus historiografia nacionalista Dizia respeito ao lugar do Ocidente na história do mundo em gèral O s próprios historiadores europeus também questionaram a aborda gem eurocêntrica à história de alémmar U m novo impulso para este debate surgiu a partir da discussão sobre as origens do subdesenvolvimento causado pelo desapontamento com a mudan ça póscolonial O otimismo original sobre um novo futuro bri lhante agora que o colonialismo havia terminado desapareceu quando ficou claro que os problemas econômicos e sociais das excolônias não eram temporários mas antes permanentes ou estruturais O otimismo liberal foi substituído pelo pessimismo radical para parafrasear a adequada formulação de A G Hopkins7 N essa época a oposição não era aquela de colonialismo versus nacionalismo mas de esquerda versus direita A crítica neomarxista do colonialismo tornouse muito influente no próprio mundo ocidental Assim o desenvolvimento da história de alémmar após 1945 foi um processo dialético Primeiro houve um movimento de emancipação na historiografia não ocidental que resultou em uma significativa explosão de pesquisa e produção histórica na Á sia e na África O s países nãoeuropeus descobriram seu próprio passa do e apresentaram sua própria interpretação dele mas foi exata mente então que o problema da história de alémmar se manifestou sob uma nova forma Hoje em dia todo mundo aceita que os africanos e os asiáticos possuem sua própria história tão rica e interessante quanto a da Europa A questão entretanto é se 6 Ver T O Ranger Towards a Usable African Past em C Fyfe ed African Studies Since 1945 a Tribute to Basil Davidson Londres 1976 p 1729 7 Ver A G H opkins European Expansion into W est Africa a Historiographical Survey o f English Language Publications since 1945 em Em mer and W esseling Reappraisals p 56 A ESCRITA DA HISTÓRIA 105 podemos nos deter aqui e simplesmente considerar a história mundial como a som a de um grande número de histórias regionais autônomas A maioria dos historiadores concordaria que devería mos tentar prosseguir e estudar como de um m odo ou de outro essas várias civilizações tornaramse interligadas como a situação mundial atual chegou onde está O verdadeiro desafio da história de alémmar é apresentar um aform a moderna da história mundial Esse é um objetivo ambicioso mas como disse Fernand Braudel precisamos de historiadores ambiciosos8 O primeiro esboço disso pode talvez ser encontrado na nova história da expansão européia desenvolvida mais ou menos nas últimas três décadas Antes de examinála devemos observar primeiro o desenvolvimento espeta cular da história asiática e africana no mesmo período9 História asiática e africana Tanto na índia quanto na Indonésia a história em sua forma científica moderna foi introduzida pelo poder colonial N a índia a fundação da Sociedade Asiática de Bengali em 1784 pode ser considerada o ponto de partida A historiografia britânica oficial da índia era altamente anglocêntrica Com o certa vez Nehru observou sobre os britânicos Para eles a verdadeira história começa com a chegada dos ingleses na índia tudo o que houve antes é em uma espécie de trajetória mística uma preparação para sua divina consum ação 10 Entretanto logo começou a se desen volver um interesse nos estudos históricos no novo ambiente intelectual indiano Em meados do século dezenove como uma 8 F Braudel La Méditerranée et le monde méditerranéen à 1époque de Philippe II 3 ed 2 v Paris 1976 v I p 17 9 Tanto por razões práticas quanto teóricas deixaremos de lado a história das Américas e do Caribe N o que diz respeito à Ásia vam os nos restringir às duas excolônias européias onde a emancipação de um a historiografia nacional foi mais impressio nante ou seja a índia e a Indonésia 10 J Nehru The Discovery oíndio Londres 1956 p 28 106 PETER BURKE reação à abordagem muito condescendente dos historiadores colo niais os historiadores indianos desenvolveram sua própria histo riografia e no final do século a ascensão do movimento naciona lista proporcionoulhe um forte impulso de forma que nos anos 20 e 30 já existia aí um grupo considerável de historiadores profissionais O s nomes bastante conhecidos de estudiosos como RK Mookerjii e RC M ajumdar atestam isso Portanto quando ocorreu a independência em 1947 a historiografia profissional indiana já ocupava uma posição forte A transferência do poder em si também estimulou a escrita da história tendo havido uma demanda por textos populares e livros didáticos O governo estimulou o estudo do passado recente e particularmente do movimento nacionalista Em 1952 o Ministério da Educação ordenou a compilação de uma história do movimento libertador indiano e RC Majumdar foi nomeado diretor do projeto As conclusões de Majumdar foram muito diferentes daquelas que o governo esperava mas mesmo assim ele publicou a sua interpreta ção Esta derrubada do mito nacionalista foi uma indicação clara do alto padrão de profissionalismo alcançado pelos historiadores india nos Embora os historiadores britânicos ainda ocupem um papel de liderança senão o papel de liderança na história indiana os próprios historiadores indianos tornaramse cada vez mais impor tantes A Cambridge Economic History of índia assim como a New Cambridge History of Índia são demonstrações convincentes disso Na Indonésia o desenvolvimento foi um pouco diferente Em comparação com a índia havia menos pessoas treinadas em universidades de modo geral e praticamente não houve nenhum historiador profissional durante o período colonial O movimento nacionalista também foi mais fraco do que na índia e os intelec tuais nacionalistas expressavam sua sensibilidade mais na literatura do que em trabalhos intelectuais Assim praticamente não houve historiadores indonésios profissionais antes da independência O 11 V er S Ray índia After Independence Journal of Contemporary History 2 p 125421967 A ESCRITA DA HISTÓRIA 107 governo da República estimulou o estudo do passado mas de uma perspectiva política clara as pressões ideológicas eram fortes Em 1957 teve lugar o primeiro congresso nacional de historiadores Tornouse clara a escassez de pesquisa realizada mas daí em diante a história foise desenvolvendo como uma disciplina intelectual A principal figura nessa área era Sartono Kartodirdjo que introduziu um a nova forma de história inspirada na ciência social que cuida especialmente da história rural12 Nesse meio tempo foi a história indonésia que provocou um interessante debate sobre a nova abordagem asiacêntrica à história asiática John Bastin em sua conferência inaugural em Kuala Lumpur em 1959 sobre The Study of Modem Southeast Asian History estirftulou muito essa discussão13 mas a questão em si já havia surgido muito antes Foi introduzida por JC van Leur na dissertação sobre o início do comércio asiático publicada em 193414 Van Leur que morreu muito jovem aos trinta e quatro anos na Batalha do M ar de Java teria uma duradoura influência sobre a história indonésia e na verdade sobre a história asiática em geral A originalidade de seu trabalho está em duas coisas o abandono do ponto de vista eurocêntrico e a aplicação de categorias sociológicas Ele reagiu contra a abordagem exclusivamente colo nial que constituía uma perspectiva distorcida e ignorou várias áreas de realidade histórica A maior parte dos historiadores escreveu ele enxerga o mundo asiático através dos olhos do governante holandês do convés do navio da muralha da fortaleza da alta galeria da câmara do comércio 15 12 H A J Klooster Indonesiérs schrijven hun geschiedenis De ontuikkeling van de lndone sische geschiedbeoefening in cheorie en praktijk 19001980 Leiden 1985 13 Bastin The Study of Modem SoutheasC Asian History Kuala Lumpur 1959 Ver também The Western Elsment in Modem Southeast Asian History Kuala Lumpur 1963 14 JC V an Leur Eenige bescHouwingen betreffende den ouden AjiatiscKen hantlel M iddelburg 1934 U m a tradução desta obra assim como de seus outros escritos pode ser encontrada em JC Van Leur Indonesian Trade and Society Essays in Asian Social and Economic History H aiaBandung 1955 15 V an Leur Trade and Society p 162 108 PETER BURKE Entretanto a crítica de Van Leur é ao mesmo tempo mais geral e mais fundamental Ele questiona a periodização da história e o local onde nela está repartida a Ásia Por exemplo em um artigo bastante conhecido ele examina por que rótulos de período como o século dezoito eram aplicados à história indonésia Conclui que não havia razão para isso pois nenhuma das grandes mudan ças que tipificam a história européia desse período pode ser esboçada no passado indonésio Até 1800 ela simplesmente faz parte da Á sia16 Isso nos conduz à segunda característica principal da aborda gem histórica de Van Leur ou seja a aplicação dos conceitos da sociologia particularmente aqueles de M ax W eber U sando o conceito de W eber do tipo ideal por exemplo aqueles de cultura cam ponesa estados burocráticos patrimoniais comércio am bulante ele tenta descrever a história asiática como parte da história universal mas com seu caráter próprio Desse modo é possível se fazer justiça às peculiaridades das várias culturas sem envolvêlas em um conjunto de categorias muito abstratas e mui to gerais ou discutilas como simplesmente exóticas e incompreen síveis A questão do papel da Europa na história asiática foi eviden temente de vital importância para a historiografia pósindependên cia Nesse aspecto podemos distingüir duas escolas a minimalista e a sentimentalista A escola minimalista minimiza o papel do fator ocidental na história asiática afirmando que este virtualmente não existiu enquanto a escola sentimentalista maximiza os crimes e os delitos do Ocidente Embora logicamente falando as duas escolas pareçam ser contraditórias elas podem às vezes estar ambas fundamentadas na obra de um mesmo estudioso por exemplo o sociólogo holandês W F W ertheim ou o historiador indiano KM Panikkar17 Assim o debate não ficava inteiramente claro e os 16 Ibid p 26889 17 KM Panikkar A Survey of Indian History Londres 1947 W F W ertheim Asian History and the W estern Historian Rejoinder to Professor Bastin Bijdragen tot de T aal Land en Volkenkunde 119 p 14960 1963 A ESCRITA DA HISTÓRIA 109 próprios conceitos eram ambíguos M as as duas questões Foi boa ou má a influência ocidental e Seu impacto foi grande ou pequeno são ainda intensivamente debatidas hoje em dia o que é compreensível Elas são tão vitais para nossa interpretação do passado quanto para n ossa compreensão do presente como veremos mais adiante N o século dezenove a abordagem européia à história asiática tornouse cada vez mais dominada pelos sentimentos de superio ridade européia e por uma convicção do atraso asiático Isso no entanto foi apenas um fenômeno bastante recente pois os histo riadores europeus tradicionalmente demonstraram um grande respeito pelais antigas civilizações da Ásia Foi muito diferente da atitude européia para com a África que foi sempre considerada um continente ahistórico e o povo africano um povo sem civilização e por isso sem história A mais famosa formulação desta opinião pode ser encontrada nas conferências de Jena proferidas por Hegel em 18301 e publicadas como a Pkylosophy of History Nesta obra ele escreveu Neste ponto deixamos a África para não mais a mencionarmos Pois ela não é parte histórica do M undo não tem movimento ou desenvolvimento para m ostrar O que compreen demos apropriadamente por África é o Espírito NãoHistórico Subdesenvolvido ainda envolvido nas condições da simples natu reza que só tem de ser apresentada aqui como situada no limiar da história do M undo 18 Evidentemente Hegel teve uma grande influência sobre Karl M arx e os escritos marxistas clássicos refletem a mesm a linha de pensamento U m eco tardio disso pode ser encontrado na obra do historiador marxista húngaro da África Endre Sik que escreveu em 1966 Antes do seu encontro com os europeus a maioria dos povos africanos ainda vivia uma vida primitiva bárbara muitos deles até mesmo no nível mais baixo do barbarismo Alguns deles viviam em completo ou quase completo isolamento os contatos se é que ocorriam com outras pessoas 18 G W F Hegel The Philosophy of History Nova York 1944 p 99 110 PETER BURKE eram apenaS conflitos esparsos com povos vizinhos O Estado tomado no verdadeiro sentido da palavra era uma noção desconhecida para a maior parte dos povos africanos uma vez que também não existiam classes Ou melhor ambos já existiam mas apenas em embrião Por isso é irrealístico falarse de sua história no sentido científico da palavra antes do surgimento dos invasores europeus19 N ão há dúvida de que tais opiniões não eram de forma alguma um m onopólio dos historiadores marxistas Apenas um ano antes do aparecimento do livro de Sik o catedrático de História M oderna de Oxford H R TrevorRoper comparou as histórias da GrãBre tanha e da África descrevendo a última como sendo pouco mais que as rotações sem sentido de tribos bárbaras em locais pitores cos mas irrelevantes do globo20 Com o as coisas mudaram em vinte anos Ninguém em seu juízo perfeito poderia mais afirmar que a história africana não existe nem mesmo em Oxford O desenvolvimento da história africana tem sido espetacular Talvez tenha sido o campo mais vivo dinâmico e inovador da história desde a emergência da nova história social e econômica nas décadas de 20 e 30 Podese dizer que o Journal of African History foi a publicação mais inovadora desde a fundação dos Annales N a verdade os dois desenvolvimen tos são de certo modo comparáveis O s historiadores sociais como aqueles dos Annales e outros começaram a se fazer perguntas que jamais haviam feito antes e que não haviam sido mencionadas nas fontes tradicionais Novas fontes tiveram de ser descobertas e novas técnicas desenvolvidas para reexaminar as velhas fontes sob uma nova luz A mesma situação ocorre com a história africana As fontes são escassas pelo menos as tradicionais Por razões culturais os africanos produziram menos material escrito sobre história africana que os europeus e por razões climáticas pouco desse material chegou até nossas mãos Isto significa que a maioria das fontes é exógena Elas provêm de estrangeiros sejam eles viajantes 19 E Sik The History of Black Africa 2 v Budapest 1966 v I p 17 20 H TrevorRoper The Rise of Christian Europe Londres 1965 p 9 A ESCRITA DA HISTÓRIA 111 gregos romanos ou árabes geógrafos comerciantes ou adminis tradores europeus Tecnicamente falando a maior parte da história africana é pré ou protohistória ou etnohistória como tem sido às vezes chamada21 A absoluta escassez de fcfntes proporcionou um enorme estí mulo ao desenvolvimento de novas técnicas e métodos O passado tinha de ser interrogado por outros meios M ais uma vez é relevante a comparação com os Annales e sua nouvelle histoire Em ambos os casos têm sido aplicadas a arqueologia a cartografia a lingüística e a onomástica A antropologia também desempenhou um papel importante na história africana N a verdade a distinção entre o antropólogo e o historiador não é de forma alguma muito aguda A mais famosa das técnicas desenvolvidas para promover novas fontes para a história africana foi é claro o estudo da tradição oral Neste caso a publicação de Jan Vansina De la tradition orale Essai de méthode historique em 1961 marcou época Rapidamente traduzida para o inglês Oral tradition 1965 o livro teve um tremendo impacto sobre a história africana22 N o meio termo entre o ingênuo e o cético Vansina desenvolveu um método para a utilização da tradição oral de um m odo crítico assim propiciando o seu emprego em escritos históricos sérios V ansina dividiu a tradição oral em cinco categorias formulários poesia inventários narrativas comentários cada uma com várias subdivisões Decla rava que a história oral não deveria ser aceita tacitamente só devendo ser utilizada após uma verificação crítica prestandose atenção ao impacto da importância social dos valores culturais e da personalidade dos escritores Deveria também tanto quanto possível ser colocada em confronto com outras fontes como por exemplo achados arqueológicos ou documentos escritos Alguns historiadores e antropólogos eram mais céticos a respeito da 21 H Brunschwig U n fauxproblèm e 1ethnohistoire AnnalesESC 20 p 291300 1965 22 J V ansina De la tradition orale Essai de méthode historique Tervueren 1961 Tradução inglesa Oral Tradition A Study in Historical Methodology Londres 1965 112 PETER BURKE tradição oral e acreditavam com o devido respeito a Vansina que ele superestimava suas possibilidades mas é inegável que sua obra e suas idéias influenciaram enormemente a história africana23 Sejam quais forem as possibilidades oferecidas pela tradição oral e por outras fontes não ortodoxas permanece o fato de que no que se refere a documentos escritos a África é bastante carente Evidentemente é verdade que isso também ocorre para alguns períodos da história européia para os quais os documentos são também muito escassos assim como para a América précolombia na a Austrália précookiana etc e por isso a história africana é excepcional mas não única Do mesmo modo parece impossível uma comparação entre a historiografia da África e aquela da Europa Podem ser estudados desenvolvimentos de longo prazo mas uma história estritamente factual ou événementiel é com freqüência impossível N o momento está também em voga a abordagem estrutural ou de longo prazo na história européia mas isso é uma questão de escolha N a África a história estrutural não é uma escolha mas a única possibilidade N ão se é seduzido por ela mas condenado a ela24 Nas últimas décadas surgiram vários historiadores africanos no fórum internacional e seu papel tornase cada vez mais proeminente D a mesm a forma devese reconhecer que o grande salto para diante na história africana é em grande parte devido a historiadores europeus e americanos especialmente os britâni cos O Journal of African History cujo primeiro número apareceu em 1960 foi como disse Terence Ranger um com binado de manifesto alvará programa e vitrina para o cam po25 O semi nário de Roland Oliver na Escola de Londres de Estudos Orientais e Africanos foi cham ado de a primeira proclamação no m undo para a apresentação da nova obra sobre o passado da 23 Em algumas de suas últimas obras o próprio V ansina parece m ais cético que antes V er P Salm on lntroduction à Vhistoire de 1Afrique Bruxelas 1986 126f 24 Ver H Brunschwig U ne histoire de 1Afrique noire estelle possible em Mélanges en 1honneur de Fernand Braudel 2 v Toulouse 1973 v I p 7587 25 V e rT Ranger Usable Past p 17 A ESCRITA DA HISTÓRIA 113 África26 Short History ofAfrica de Oliver e Fage vendeu mais de um milhão de exemplares e foi provavelmente o livro mais influente publicado sobre a história africana O s historiadores franceses também desempenharam um papel importante ainda que maiS modesto Em 1961 Henri Bruns chwig exaluno de Marc Bloch e Lucien Febvre em Estrasburgo foi convidado por Fernand Braudel para apresentar a história africana na École de Hautes Etudes Seu seminário tornouse um local de encontro para estudiosos franceses e africanos Yves Person autor de uma história monumental e inovadora de Samori e Catherine CoqueryVidrovitch não apenas escreveram eles mes mos livros importantes mas também levaram o tema à Universi dade de Paris27 Outras universidades Abc Bordeaux também ofereceram cursos e seminários sobre história africana além de um grande número de estudantes africanos ter apresentado disserta ções de doutorado nas universidades francesas A contribuição das universidades americanas foi significativa particularmente aquela das três principais escolas de Yale UCLA e acima de tudo M adison W isconsin Aqueles historiadores americanos que desempenharam um papel de liderança na segun da e terceira gerações dfe historiadores africanos foram em sua maioria alunos de Curtin e V ansina em M adison N o momento importantes escolas de história existem também em várias univer sidades da própria África Nigéria Kenya Zaire O período de domínio europeu está claramente superado Retrospectivamente grande parte do debate sobre as possibili dades e impossibilidades da história africana e asiática parece frívolo não somente devido ao decréscimo na sensação da supe rioridade européia mas também às mudanças no estudo da própria história O antagonismo colonialista versus nacionalista faz sentido 26 The Blackwell Dictionary of Historians Oxford 1988 p 308 sv O liver R 27 C CoqueryVidrovitch Le Congo au temps des grandes comfagnies concessionnaires Paris 1972 Y Person Samori une Révolution dyula 3 v Dakar 1 9681970 1976 Ver sobre isso também H Brunschwig French Historiography Since 1945 Concerning Black África em Em m er and W esseling Reappraisals p 8497 114 PETER BURKE na estruturada história política mas em outros campos da história encontramos uma abordagem diferente A história social é estuda da a nível da aldeia da região do grupo étnico A história cultural é analisada em uma escala muito mais ampla que aquela do estadonação Conceitos como civilização hindu ou javanesa ou o mundo do Islão são importantes aqui A história econômica trabalha com grandes unidades como o Oceano Indico o Sudeste da Á sia ou mesmo a economia mundial Neste tipo de abordagem a oposição colonial versus anticolonial não faz muito sentido Será que isto significa que o impacto do colonialismo sobre a história de alémmar está superado e que as atitudes ocidentais e não ocidentais encontraram um completo equilíbrio N ão neces sariamente pois em dois aspectos ainda existe um domínio ocidental Em primeiro lugar como resultado da expansão colo nial grande quantidade de livros documentos e outros materiais sobre o mundo de alémmar tem sido levado para a Europa e está agora disponível em arquivos e bibliotecas europeus Isso significa que para estudar seu próprio passado os historiadores nãoeuro peus terão de continuar a ir à Europa Em segundo lugar e também em grande parte como conseqüência do colonialismo no mundo ocidental uma grande tradição foi fundamentada no campo de estudos não ocidentais em que ele ainda desempenha um papel preponderante Por outro lado praticamente não há historiadores africanos ou asiáticos que estudem a história e a sociedade européia Desde que o Ocidente tem seus orientalistas mas o Oriente não possui ocidentalistas não pode haver um real equilíbrio Para contrabalançar podese dizer que o desenvolvimento da história africana e asiática foi um fenômeno natural e necessário Mas também nos deixa com um problema Embora seja verdade que a história africana e asiática é em grande parte autônoma é também verdade que desde cerca de 1500 a história da África e da Á sia tornouse relacionada àquela da Europa A história asiática é muito mais que uma extensão da história da Europa mas também não pode ficar completamente isolada da história européia O desenvolvimento central da história moderna é a crescente inter A ESCRITA DA HISTÓRIA 115 relação e o entrelaçamento de várias civilizações e economias anteriormente isoladas Isso resultou no sistema mundial moder no Wallerstein e na civilização da modernidade Eisenstadt que possuím os hoje Não se pode compreender este processo considerando apenas partes isoladas da história pois isso seria deixar escapar o tema central da história mundial moderna A história mundial não pode ser considerada idêntica à história européia ou ocidental nem pode ser concebida como uma série de desenvolvimentos isolados Enfrentar este problema é a preo cupação central da história da expansão européia como ela se desenvolveu no período pósdescolonização Expansão e reação O estudo da expansão européia foi também influenciado por fatores externos e internos A queda rápida dos impérios coloniais por exemplo levou ao questionamento de sua prévia estabilidade aparente A ascensão do império americano um império sem colônias estimulou um repensar de ambas as técnicas informal e formal do imperialismo A emergência da China levou a uma reavaliação das possibilidades científicas e navais do país e assim a novas questões sobre as diferenças entre a expansão chinesa e o início da expansão européia 0 Por outro lado os fatores internos mudaram a natureza tam bém dos estudos de expansão e também se manifestando nesse campo a tendência geral em prol da história social e econômica A s questões sobre monetarização transporte marítimo ouro e prata os lucros do império etc eram colocadas de uma nova maneira e estas poderiam com freqüência ser respondidas com a ajuda de um computador28 A história social tornouse um assunto 28 U m informe útil sobre esta questão é T Lindblad Com puter Applications in Expansion History A Survey Second Bulletin of the ESF Network on the History of European Expansion Suplemento de itinerário 12 p 261 1988 116 PETER BURKE em m oda e isso estimulou o estudo da migração do tráfico de escravos das relações raciais da urbanização e das mentalitês A ciência política influenciou a história política sugerindo o estudo de tópicos como tomada de decisões opinião pública o papel de grupos de interesse especial etc Embora no nível teórico tenha sido questionada a distinção tradicional entre uma primeira e uma segunda fase de expansão na prática real a divisão do trabalho entre os modernistas e os estudantes de história contemporânea é ainda muito visível Tra dicionalmente no início da expansão moderna a ênfase está colocada sobre as grandes descobertas os navios e a navegação as companhias e o comércio a migração os sistemas de plantação e as sociedades escravagistas Charles Boxer e JH Parry escreveram livros bem sucedidos buscando apresentar uma visão geral dos impérios marítimos29 A série de Minnesota sobre a história da Europe and the World in the Age of Expansion também lançou uma série de livros sobre esses tópicos Em muitos desses campos novas abordagens foram apresentadas novas perguntas colocadas e no vas técnicas aplicadas Glam ann Steensgaard e Chaudhuri publi caram estudos pioneiros sobre as Com panhias das índias Curtin realizou um trabalho desbravador sobre o tráfico de escravos Chaunu sobre o mundo adântico Bailyn sobre a migração e muitos mais poderiam e deveriam ser m encionados30 Muitas das questões aqui discutidas estão intimamente relacionadas a tópicos 29 C R Boxer The Portuguese Seaborne Empire 14181825 N ova York 1969 CR Boxer The Dutch Seaborne Empire 1 6 0 0 1 8 0 0 Londres 1965 JH Parry The Spanish Seaborne Empire Nova York 1966 30 K G lam ann DutchAsiatic Trade 16 2 0 1 7 4 0 2 ed Haia 1980 N Steensgaard The Asian Trade Revolution of the 1 7th Century The East Índia Companies and the Decline otle Caravan Trade ChicagoLondres 1974 K N Chaudhuri The Trading World ofA sia and the English East índia Comxmy 16601 760 Cam bridge 1978 P Curtin The Atlantic Slave Trade a Census M adison W is 1969 P e H Chaunu Séville et lAtlantique 1 5 0 4 1 6 5 0 12 v Paris 195660 B Bailyn Voyagers to the West Emigration from Britain to America on the Eve ofthe Revolution Londres 1987 U m a síntese recente é G V Scammell The First Imperial Age European Overseas Expansion c14001715 Londres 1989 A ESCRITA DA HISTÓRIA 117 ile debate importantes na história européia tais como as teorias sobre as origens do capitalismo as Fases I e 11 a depressão geral ilo século dezenove a revolução dos preços etc Entretanto deveria ser reconhecido que não foi oferecida nenhuma teoria geral da expansão européia Embora na história da expansão dos séculos dezenove e vinte o debate fosse dominado pelo conceito do imperialismo não havia tal coisa nos estudos iniciais de expansão pelo menos até Immanuel Wallerstein apresentar sua teoria sobre o moderno sistema mundial Sistema mundial de Wallerstein Immanuel Wallerstein cientista social da Universidade de Colum bia estudou inicialmente a descolonização africana e os problemas de desenvolvimento Sua maneira de pensar sobre esses tópicos foi influenciada pela dependência e pelas teorias de subde senvolvimento N o entanto Wallerstein voltouse para a história porque acredita que esses problemas de desenvolvimento só po dem ser inteiramente compreendidos em seu contexto global e sob um a perspectiva histórica O trabalho histórico com o qual ele está mais familiarizado é aquele do grupo dos Annales particularmente o de Fernand Braudel Há na verdade um a forte similaridade entre as idéias de Wallerstein e a estrutura conceituai do terceiro volume da obra de Braudel sobre Material Civilization Economy and Capitalism31 Até agora a principal publicação de Wallerstein é um planejado estudo de quatro volumes do que ele denomina de The Modem World Sustem O primeiro volume publicado em 1974 apresentou a estrutura analítica do projeto32 Foi um a fonte de 31 F Braudel Civilisation matérielle économie et capitalisme X V eXVIIIe siècle Paris 1979 32 I W allerstein The Modem World System Capitalist Agriculture and the Origins of the European World System Capitalist Agriculture and the Origins of the European WorldEconomy in the Sixteenth Century NovaYork 1574 118 PETER BURKE inspiração para muitos outros estudiosos e levou a um interessante debate sobre as origens da expansão européia e do capitalismo Wallerstein declara que a economia mundial atual remonta ao final do século quinze Aí encontramos os primórdios de um sistema mundial que se desenvolveu inteiramente nos séculos dezesseis e dezessete e já estava maduro antes da Revolução Industrial O ponto crítico sistêmico pode ser localizado na resolução da crise do feudalismo que ocorreu aproximadamente entre 1450 e 1550 N o período 15501650 todos os mecanismos básicos do sistema mundial capitalista estavam no devido lugar Em vista disso a Revolução Industrial de cerca de 1760 a 1830 não pode mais ser considerada como um ponto crítico importante na história da economia mundial capitalista Segundo Wallerstein o sistema mundial é caracterizado por uma ordem econômica internacional euma divisão internacional do trabalho Consiste de um âmago uma semiperiferia e uma periferia cuja determinação de posição muda através do tempo regiões podem ascender ao âmago ou descer à periferia A história moderna é na verdade a história da integração contínua de cada vez mais partes do mundo neste sistema mundial O sistema mundial opera de maneira tal que faz com que o centro receba os lucros assim explodindo a periferia Isso é realizado pelo comércio internacional considerado um jogo de som a zero os lucros de uma parte são iguais às perdas da outra O s lucros do comérció internacional tornaram possível a Revolução Industrial que por sua vez só confirmou a existência de relações desiguais e reforçou o desenvolvimento do subdesenvolvimento A obra de Wallerstein foi bem recebida pelos cientistas sociais mas mais criticamente pelos historiadores que em particular criticaram a grande ênfase que o modelo coloca no comércio internacional Alguns argumentaram que as economias préindus triais não eram capazes de produzir um superávit significativo a ponto de tornar possível um comércio internacional Antes dos navios a vapor as disponibilidades de transporte eram muito limitadas Por volta de 1600 o conjunto das frotas mercantes dos A ESCRITA DA HISTÓRIA 119 Estados europeus possuía apenas a tonelagem de um ou dois cerca de 1800 de sete ou oito estados dos supertanques de hoje33 M esm o nas nações comerciais par excellence com o a GrãBretanha e a República Holandesa o comércio de exportação representava um a porcentagem muito pequena do produto na cional bruto e a exportação para a periferia era apenas uma pequena porcentagem do comércio ultramarino total34 O capital acumulado na GrãBretanha como conseqüência do comércio ultramarino não pode ter representado mais de 15 dos gastos brutos durante a Revolução Industrial35 Falando de m odo geral os efeitos da expansão européia sobre as regiões ultramarinas foi apenas regional Tanto na índia produtos têxteis quanto na Indonésia colheitas de grãos apenas regiões limitadas foram afetadas pela dem anda européia N o que tange à África o comércio de produtos era muito limitado Muito mais importante era o tráfico de escravos no Atlântico Entretanto a pesquisa recente tende a minimizar as conseqüências demográficas de longo prazo desse tráfico N as Américas e no Caribe o impacto da expansão européia foi o mais dramático não tanto devido ao comércio mas por causa do declínio demográfico da população original U m ponto interessante da teoria de W allerstein é seu questionam ento do verdadeiro conceito de um a Revolução Industrial e assim da distinção entre colonialism o préindus trial e industrial Essa distinção foi um argumento central na teoria clássica do im perialism o teoria que tem dom inado a historiografia da expansão européia do final do século dezenove e do século vinte 33 V er J de Vries The Economy of Europe in an Age of Crisis 16001 750 Cambridge 1976 p 1923 34 V er R Floud e D M cCloskey ed The Economic History of Britain since 1 700 2 v Cam bridge 1981 v I p 8792 35 V er P 0 Brien European Economic Development The Contribution o f the Periphery Economic History Review 35 p 9 1982 120 PETER BURKE Imperialismo Embora a palavra imperialismo exista desde a década de 1860 o imperialismo como conceito histórico só teve início com a publicação de Imperialism a Study de JA Hobson em 190236 Para explicar o imperialismo Hobson declarou que em conse qüência do sistema capitalista a economia britânica sofria de subconsumo Isso significava que o capital excedente não poderia ser lucrativamente investido na própria Inglaterra Por isso em suas famosas palavras os capitalistas estavam buscando mercados estrangeiros e investimentos estrangeiros para adquirir os bens e o capital que eles não podiam vender ou utilizar internamente 37 Assim nasceu a teoria do imperialismo capitalista A teoria de H obson foi logo absorvida adaptada e tornada mais sofisticada pelos pensadores marxistas em especial os alemães como Karl Hilferding e Rosa Luxemburg Assim fazendo esses autores também modificaram o argumento de Hobson Enquanto para H obson a evasão do capital era uma conseqüência típica mas não necessária do capitalismo para os marxistas o imperialismo tornouse algo inevitável A fórmula mais famosa vai ser encontrada em Lênin que em 1919 denominou o imperialismo de o mais alto estágio do capitalismo Embora as diferenças entre Hobson e Lênin sejam evidentes logo virou lugarcomum a referência às teses de HobsonLênin N a verdade esta se tornou uma expli cação padronizada do imperialismo europeu durante os anos 20 e 30 Somente nos anos 60 foi reaberta a discussão geral sobre o imperialismo A descolonização assim como a ascensão do im pério econômico americano tem claramente muito a ver com isso Em 1961 os historiadores britânicos J Gallagher e R Robin son publicaram o livro que iria ser o reexame mais influente do 36 JA H obson Imperialism a Study Londres 1902 37 Ibid p 85 A ESCRITA DA HISTÓRIA 121 imperialismo britânico Africa and the Victorians38 U m ano antes Henri Brunschwig havia publicado Mythes et réalités de Uimpérialis me colonial français 18711914 ensaio que estabeleceu a tônica para todos os estudos posteriores sobre o imperialismo francês39 Seguiramse novas interpretações do imperialismo belga alemão italiano português e finalmente do holandês Poderíamos falar de uma revolução historiográfiGa cujas conclusões podem ser aqui resumidas apenas muito brevemente para os dois poderes mais importantes envolvidos Gallagher e Robinson prosseguindo na m esm a linha que haviam desenvolvido em seu artigo The Imperialism of Free Trade40 declararam que o chamado período imperialista 1880 1914 só era diferente do período médio vitoriano de comércio livre a ele precedente e supostamente antiimperialista em seus meios não em seus fins os vitorianos dessa época podiam atuar sem medidas políticas O s últimos vitorianos tiveram de formalizar seu império Esta formalização foi induzida por crises locais e situações de fronteira que criaram vácuos políticos que tiveram de ser preenchidos pelos britânicos Suas ações tinham um motivo estratégico e não econômico e sua política era essencialmente defensiva e relutante Em resumo Gallagher e Robinson demoli ram o conceito de um período imperialista e também a explicação econômica tradicionalmente a ele relacionada Embora suas conclusões fossem em alguns aspectos similares a revisão de Brunschwig do imperialismo francês foi bem diferente Brunschwig aceitava que no caso da França houve um período imperialista definido ou seja mais ou menos entre 1880 e 1914 Isso na verdade dificilmente poderia ser negado M as embora ele fosse tradicional nesse aspecto era revolucionário na interpretação 38 R Robinson Gallagher com A Denny Africa and the Victorians the Official Mind of Imperialism Londres 1961 39 H Brunschwig Mythes et réalités de 1impérialismecolonialfrançais 18711914 Paris 1960 40 R Robinson e J Gallagher The Imperialism o f Free Trade Economic History Review 6 p 115 1953 122 PETER BURKE do fenômeno Depois de um cuidadoso exame dos interesses econômicos dos colonialistas franceses assim como do quadro do equilíbrio econômico do imperialismo francês chegou à conclusão de que explicálo em termos econômicos seria um mito O império não compensava não havia elos entre protecionismo e imperialis mo e os imperialistas franceses não possuíam motivos ou interes ses econômicos Conseqüentemente devia haver uma explicação diferente Segundo Brunschwig esta seria encontrada na época de ascensão do nacionalismo na Terceira República profundamente afetada pela derrota de 1870 Assim como aquele de Gallagher e Robinson seu livro é basicamente uma refutação da teoria econô mica do imperialismo O s livros acima mencionados aboliram a explicação simples e tradicional do imperialismo em termos das necessidades econômi cas embora não apresentassem uma análise dos aspectos econô micos do imperialismo Para tentar resolver esta imensa questão não apenas é preciso resolver um grande número de problemas teóricos e metodológicos mas também coletar e analisar uma enorme quantidade de dados M ais uma vez o computador torna isso possível Dois historiadores americanos L Davis e R Hutten back muito adequadamente vinculados ao Instituto de Tecnologia da Califórnia fizeram exatamente isso para a questão do imperia lismo britânico Reuniram um a enorme quantidade de dados e os analisaram através de métodos muito sofisticados Seu livro Mam mon and the Pursuit of Empire41 parece apresentar a resposta definitiva à velha e famosa interrogação O império compensava A resposta é um pouco desapontadora Não Depois de 1880 os índices de lucro inicialmente altos sobre os investimentos colo niais caíram abaixo dos retornos comparáveis de outros destinos alémmar ou mesmo da própria GrãBretanha Assim Hobson e Lênin estavam errados a respeito da relação entre o capital exce dente e a urgência de expansão alémmar As colônias dependentes 41 LA Davis e RA Huttenback M ammon and the Pursuit of Empire the Political Econom of Britisk Imperialism 18601912 Cam bridge 1986 A ESCRITA DA HISTÓRIA 123 não eram recipientes importantes do capital de Londres N ão pode haver dúvida de que esta não é toda a resposta pois Davis e Huttenback também declaram que para alguns capitalistas esses investimentos estavam longe de ser limitados42 N a França sob a influência dos argumentos de Brunschwig m esm o os autores marxistas aceitaram sua visão de que os aspectos econômicos do imperalismo francês eram negligenciáveis Em uma tentativa de resgatar a interpretação marxista declararam que o imperialismo francês podia ser encontrado em qualquer parte na Rússia no Império Otom ano etc Este exercício dialético resultou na conclusão de que o colonialismo francês não era imperialista e o imperialismo francês não era colonial43 Para encontrar uma resposta mais empírica para a questão de economia e império a Professora Catherine CoqueryVidrovitch tomou a iniciativa de compor um banco de dados do comércio colonial francês 1880 1960 Seu colega parisiense Jacques Marseille foi o primeiro a fazer um uso extensivo dessa rica documentação para sua disserta ção Empire colonial et capitalisme français histoire dun divorce44 A conclusão de Marseille é de que houve um rompimento na relação entre capitalismo e colonialismo No período inicial 18801930 a indústria francesa precisava do escoadouro do mercado colonial protegido e o casamento do colonialismo com o capitalismo teve um resultado feliz N o segundo período 193060 o protecionismo tornouse um obstáculo para a modernização industrial intensa mente necessária O divórcio foi inevitável Mas a descolonização já estava a caminho O fim do Império em 1960 foi uma bênção para o capitalismo Assim foi para a Europa mas qual foi o impacto do imperia lismo no mundo de alémmar Esse é um tema complicado sobre o qual prossegue um apaixonado debate desde que a questão foi 42 V er também os artigos de PJ Cain e A G H opkins sobre esta questão em Edbnomic History Review 33 p 463901980 39 p 5015251986 e 40 p 1261987 43 V er J Bouvier e R Girault ed LImpérialisme français davant 1914 ParisHaia 1976 44 Marseille Emfire colonial et capitalisme rançais Kistoire dun divorce Paris 1984 124 PETER BURKE levantada Há poucas coisas sobre as quais os debatedores concor dam mas um feto é inegável o verdadeiro impacto do Ocidente sobre os territórios de alémmar ocorreu depois da Revolução Industrial Quais foram os efeitos disso E claro que o colonialismo foi organizado de maneira a promover os interesses do poder colonial E claro que isso implicou ônus de vários tipos para os povos colonizados Entretanto além do domínio das verdades básicas como essas há uma vasta zona de problemas que não podem ser respondidos de forma simples Há o fenômeno bem estabelecido da desindustrialização especialmente no caso da indústria têxtil indiana Há também o problema da especialização em colheitas de grãos Por outro lado há desenvolvimentos de longo prazo que resultaram de investimento na infraestrutura mineração estradas portos na melhoria da administração da educação da saúde Traçar um quadro do equilíbrio econômico do colonialismo é extremamente difícil N ão somente devido à falta de dados mas também devido a problemas teóricos Se é inaceitável como foi convincentemente demonstrado pela pesquisa moderna a explicação simples de que o imperialismo foi o resultado do capitalismo permanece a questão Qual foi a razão Por que houve afinal uma época de imperialismo No que diz respeito à GrãBretanha a resposta a esta questão é fornecida também por Gallagher e Robinson Eles declararam que não havia nenhuma O próprio conceito de uma época de imperialismo 18801914 é uma falácia Considerar esse período como o zênite do imperialismo britânico é interpretar mal sua verdadeira nature za O número crescente de áreas vermelhas no mapa mundial durante as décadas de 1880 e 1890 parece sugerir que o poder da GrãBretanha estava aumentando Entretanto na realidade esta não era um a indicação de força mas de fraqueza A GrãBretanha era mais poderosa no início do século dezenove quando regida por meios informais do que nos últimos anos de domínio político formal45 45 Robinson e Gallagher Imperialism o f Free Trade ver nota 40 A ESCRITA DA HISTÓRIA 125 O conceito de império informal é muito atraente e muito inspirador porque explica um grande número de importantes fenômenos Tam bém proporciona um significado muito mais ampío ao termo imperialismo Neste tipo de análise o imperialis m o existe em diferentes períodos e em diferentes formas A tarefa do historiador é explicar a transição de uma forma para outra N o argumento de Gallagher e Robinson as razões disso não serão encontradas com os políticos da Europa que de qualquer modo preferiam o império informal mas em situações que se alteram no alémmar O imperialismo é considerado um sistema de cola boração entre as forças européias e as nãoeuropéias As formas em mutação do imperialismoresultam de mudanças em termos de colaboração46 E óbvio que em um a análise desse tipo a descolo nização também perde muito de sua importância como um ponto crítico Se existe um imperialismo informal antes do Império logicamente pode também haver um imperialismo informal depois do Império47 Aqui o debate sobre o imperialismo está relacionado com aqueles sobre descolonização e subdesenvolvimento A descolonização e o período posterior Só recentemente a descolonização tomouse um tema de análise e debate histórico E evidente que muita coisa já havia sido escrita a respeito mas tudo isso foi muito em caráter événementiel e escrito sob uma perspectiva claramente ideológica A mesma canção foi cantada em toda parte O s povos colonizados queriam se tom ar independentes Depois da Segunda Guerra Mundial eles lutaram contra seus opressores e rejeitaram o jugo do domínio colonial Durante um longo tempo pareceu que nada mais impor 46 R Robinson NonEuropean Foundations o f European Imperialism Sketch for a Theory o f Collaboration em R Owen e B Sutdiffe ed Studies in the Theory of Imperialism Londres 1972 p 11740 47 V er W J M om m sen e J Osterham m el ed Imperialism and Ater Continuities and Discontinuities Londres 1986 126 PETER BURKE tava Recentemente foram publicados vários estudos coletivos e comparativos que oferecem novas interpretações e colocam novas questões A descolonização está finalmente emergindo mais como um tema de análise histórica do que como um ato de Deus ou o resultado das leis da natureza48 A s questões discutidas são basicamente muito simples Porque a descolonização ocorreu naquele momento e por que assumiu aquelas várias formas A descolonização não é mais exclusivamente descrita como a história dos atos de líderes políticos em um curto período de tempo 194762 Seus aspectos de longo prazo estru turais e conjunturais também têm de ser levados em conta A análise das várias formas de descolonização centralizase em torno das três forças que estavam em atividade o poder colonial a situação na colônia e o fator internacional A interação dessas forças decidiu as formas mas não o resultado do processo porque apesar das diferenças o resultado foi sempre o mesmo a independência Mas mais uma vez surge aqui uma questão O que realmente significa a independência Será que o fim do Império foi também o fim do imperialismo ou sua continuação por meios diferentes Aqui a questão da descolonização está relacionada a outro tópico a teoria da dependência A teoria da dependência foi apresentada pela primeira vez pelo economista argentino Raul Prebish em 1947 e posteriormente desenvolvida nos anos 60 por estudiosos latinoamericanos e por norteamericanos interessados na América Latina A teoria nasceu da observação da permanência dos problemas da América Latina pobreza desigualdade favelas dívidas externas a dominação do capital estrangeiro em uma palavra dependência A teoria da dependência declara que essa situação não é o resultado de uma falta de desenvolvimento mas do subdesenvolvimento Originária de estudos latinoamericanos a teoria foi mais tarde organizada e elaborada até se tornar uma teoria universal aplicável não somente 48 Ver H L W esseling Towards a History ofDecolonization Itinerário 11 p 94106 A ESCRITA DA HISTÓRIA 127 1 América Latina mas a todo o Terceiro M undo O Terceiro M undo é encarado como a periferia de um sistema econômico mundial em que o centro ou seja o Ocidente está acumulando os lucros e mantendo a periferia em uma situação de permanente dependência Portanto o subdesenvolvimento não é uma situação mas um processo O Terceiro M undo não é subdesenvolvido mas está sendo subdesenvolvido pelo Ocidente André Gunder Frank apresentou sua formulação mais interessante o desenvolvimento do subdesenvolvimento 49 A teoria da dependência foi logo aplicada a várias partes do Terceiro M undo particularmente à África Samir Am in escreveu extensivamente sobre a questão e Walter Rodney publicou seu famoso livro sobre o problema com o título sugestivo Hovu Europe Underdeveloped Africa50 O problema com a teoria é que explicar o subdesenvolvimento particular da África é tornar o continente dependente de influências estrangeiras durante a maior parte de sua história Esta linha de pensamento era um pouco contraditória à tendência principal que desenvolvia a história africana no mesmo período salientando a autonomia da história africana O s africanos não eram mais encarados como meras vítimas da expansão euro péia mas em grande parte como donos de seu próprio destino Enquanto os neomarxistas abraçavam a teoria da dependência os historiadores e antropólogos marxistas clássicos enfatizavam a autonomia da história africana e tentavam mesmo descobrir um m odo de produção africano51 Tanto a teoria da dependência quanto o conceito de império informal foram de grande valor heurístico porque questionaram 49 A G Frank The Development o f Underdevelopm ent em RI Rhodes ed Imperialism and Underdevelopment a Reader Nova York e Londres 1960 p 516 V er sobre isso L Blussé HL W esseling e G D W inius ed History and Underde velopment Leiden e Paris 1980 50 W Rodney How Europe Underdeveloped Africa Londres 1972 51 H á um a vasta literatura sobre este tema Para um a breve introdução ver A G H opkins ClioAntics A Horoscope for African Economic History em Fyfe African Studies p 3 1 4 8 128 PETER BURKE algumas dashipóteses fundamentais da história de alémmar e assim mudaram nossa interpretação O próprio conceito de uma época de imperialismo com um início e um fim nítidos pode ser derrubado pelo menos no que diz respeito à GrãBretanha O zênite do Império Britânico está agora às vezes colocado no século dezoito com seu declínio já se iniciando no dezenove Não surpreende a questão colocada Por que o Império Britânico durou tanto52 O perigo de conceitos e teorias como esses é que seu significado é superestimado e eles se tornam a nova ortodoxia E um corretivo útil às interpretações existentes relativizar a impor tância de pontos críticos como o início do imperialismo ou a transferência de poder mas não devemos também subestimar sua importância histórica A perda e finalmente a recuperação da independência política são cesuras históricas suficientemente im portantes e não é conveniente deixar que sua importância histórica concreta desapareça em algum conceito mais abstrato de depen dência Aqui nos defrontamos com outro problema com conceitos como este eles são formulados de uma maneira tão abstrata que cobrem todos os tipos de dominação A mais recente contribuição de Ronald Robinson à teoria do imperialismo a teoria excêntri ca com ou sem império sofre deste mal Nesta seu último modelo o imperialismo é concebido em termos do jogo dos mercados econômico e político internacionais em que os graus de monopólio e competição nos negócios nos níveis mundial metro politano e local decidem sua necessidade e lucratividade 53 Esta é provavelmente uma descrição correta mas também uma descrição muito abstrata do imperialismo A assimetria do poder e as mudanças nas formas de colaboração podem ser encontradas através de toda a história Talvez seja mais conveniente ficar um pouco mais próximo do processo histórico concreto e dar inteira atenção aos aspectos específicos e singulares da expansão européia 52 PM Kennedy W hy Did the British Em pire Last So Long em PM Kennedy Strategy and Diplomacy 18701945 Eight studies Londres 1983 p 197218 53 R Robinson The Excentric Idea o f Imperialism W ith or W ithout Em pire em M om m sen and Osterhammel Imperialism and After p 26789 A ESCRITA DA HISTÓRIA 129 Isso nos traz de volta à questão com que começamos O que é história de alémmar ou preferivelmente O que será ela no futuro Conclusão Em 1979 quando PC Emmer e eu publicamos um volume de ensaios intitulado Reappraisals in Overseas History também tivemos de fazer a nós mesmos a pergunta O que é história de alémmar Concluím os então que é um conceito muito mais amplo do que a história da expansão européia pois trata não apenas dos encontros entre europeus e nãoeuropeus mas também dos sistemas econômicos sociais políticos e culturais dos próprios nãoeuropeus54 Isso é verdade C om o observamos nesta contri buição há de fato duas formas diferentes e claramente distintas de história de alémmar a história autônoma da Ásia e da África e a história da expansão européia M as como também observamos esta situação não é satisfatória Se há histórias autônomas da África da Ásia da América da Austrália etc não há motivo para se jogar todas essas histórias na cesta de lixo pela única razão de elas não serem européias e chamar isso de história de alémmar A razão de ter acontecido isso foi que depois de 1945 a história de alémmar teve de encontrar um novo foco e os historiadores coloniais e seus alunos voltaramse para a própria história asiática e africana Foi pouco antes desses campos provarem seu direito de existência Nesse meio tempo o termo história de alémmar serviu como uma cobertura neutra e por isso conveniente para suas atividades Esta forma de história de alémmar pode por isso ser considerada como um movimento de emancipação Pode ser comparada com a emergência da história das mulheres ou da história dos negros ou em um período anterior com a história das classes trabalha 54 PC Em m er e H L W esseling W hat is Overseas History em Emmer e W esseling Reappraisals p 3 130 PETER BURKE doras dos camponeses etc Assim que a emancipação se conclui o tema muda o seu caráter Do ponto de vista do historiador profissional ele continua a existir como uma especialização um campo especial de interesse mas para o público tornase parte da história geral Esse é claramente também o caso da história africana e asiática Elas provaram seu direito de existência assim como a história européia ou americana A ssim sendo este ramo particular da história de alémmar está prestes a se desintegrar na história africana ou asiática etc M as isso também tem um outro lado Assim como parte mas não toda a história européia pode ser entendida como história autônoma o mesmo acontece com o mundo de alémmar Durante mais ou menos os últimos cinco séculos as histórias de várias partes do mundo tornaramse interligadas e várias civilizações influenciaram uma à outra Este é o outro tópico da história de alémmar e a importância deste aspecto da história moderna está cada vez mais evidente Sob esse aspecto a história de alémmar ganhou um lugar distinto no campo da história moderna não como uma disciplina especial ou uma subdisciplina mas como uma forma particular de história mundial N o momento parece que há duas abordagens duas maneiras de se tratar o problema da história mundial U m a delas pode talvez ser rotulada de macrossociologia histórica Este tipo de história é caracterizado por uma abordagem de ciência social Destaca um fenônemo ou tópico social específico assim como a formação a revolução ou a ditadura e o analisa em vários contextos históricos Desse m odo podese distinguir similaridades e dissimilaridades entre por exemplo acontecimentos na Europa do século dezesseis e na China do século vinte O objetivo do jogo é aprender mais sobre o processo histórico em geral55 A outra abordagem é mais tradicional na medida em que tenta distinguir um certo padrão no desenvolvimento da história moderna e considera a escrita da 55 Ver T Skocpol e M Som er The U ses o f Com patative History in M actosocial Inquiry Comparative Studies in SocieCy and History 22 p 17497 1980 A ESCRITA DA HISTÓRIA 131 história como a descrição de processos e acontecimentos históricos concretos A história é também estudada de um modo comparati vo mas dentro da estrutura de desenvolvimentos cronológicos Há mais interesse nas diferenças entre vários desenvolvimentos e a singularidade de alguns acontecimentos do que em suas similari dades A estrutura conceituai é aquela da unificação do mundo como uma conseqüência da expansão da Europa e da ascensão do Ocidente56 Am bas as abordagens são caracterizadas por um forte desejo de transcender os limites tradicionais os pontos de vista provincianos e as tendências viciosas nacionalistas N o fim elas têm o mesmo objetivo ou seja tornar a disciplina ocidental específica da história aplicável à história mundial Isso é necessário porque nossa civilização é a primeira a ter por seu passado o passado do mundo nossa história é a primeira a ser a história do m undo Essas palavras foram escritas por Huizinga há mais de meio século atrás57 O desafio de se extrair em suas conseqüências é algo que ainda hoje estamos enfrentando 56 Próximo a W allerstein Eric R W olf Europe and the People Without History Berkeley 1982 e P Curtin C ross Cultural Trade in World History Cam bridge 1985 assim como W M cNeill The Rise of the West a History of the Human Community Chicago 1963 são relevantes para esta questão 57 H uiiinga A Definition o f the Concept o f History em R Klibansky and HJ Paton ed Philosophy and History Oxford 1936 p 8 SOBRE A MICROHISTÓRIA Giovanni Levi U m a dúvida sem um fim não é nem mesm o uma dúvida L Wittgenstein 1969 N ão é por acaso que o debate sobre a microhistória não tem sido baseado em textos ou em manifestos teóricos A microhistória é essencialmente uma prática historiográfica em que suas referên cias teóricas são variadas e em certo sentido ecléticas O método está de fato relacionado em primeiro lugar e antes de mais nada aos procedimentos reais detalhados que constituem o trabalho do historiador e assim a microhistória não pode ser definida em relação às microdimensões de seu objeto de estudo Por isso o leitor pode talvez se surpreender pela natureza um tanto teórica deste artigo N a verdade muitos historiadores que aderem à microhistória têmse envolvido em contínuos intercâmbios com as ciências sociais e estabelecido teorias historiográficas sem con tudo sentir qualquer necessidade de se referirem a qualquer sistema coerente de conceitos ou princípios próprios A micro Professor de História da Universidade de Veneza 134 PETER BURKE t história assim como todo trabalho experimental não tem um corpo de ortodoxia estabelecida para dele se servir A ampla diversidade de material produzido demonstra claramente o quanto é limitada avariedade de elementos comuns Entretanto em minha opinião estes poucos elementos comuns como ocorre na micro história são cruciais e são eles que vou tentar examinar aqui Há algumas características distintas na microhistória que derivam daquele período nos anos 70 quando se iniciou um debate político e cultural mais geral Não há nada particularmente incomum nisso pois os anos 70 e 80 foram em quase todo o mundo anos de crise para a crença otimista prevalecente de que o mundo seria rápida e radicalmente transformado em linhas revolucionárias Naquela época muitas das esperanças e mitologias que antes haviam orientado uma parte importante do debate cultural incluindo o domínio da historiografia estavam se com provando não tanto inválidas mas inadequadas diante das impre visíveis conseqüências dos acontecimentos políticos e das realida des sociais acontecimentos e realidades que estavam longe de estar em conformidade com os modelos otimistas propostos pelos grandes sistemas marxista ou funcionalista Ainda estamos vivendo as fases dramáticas iniciais deste processo e os historiadores têm sido forçados a colocar novas questões sobre suas próprias meto dologias e interpretações Além de tudo a suposição do automatis mo da mudança foi corroída mais especificamente o que tem sido posto em dúvida é a idéia de uma progressão regular apesar de uma série de estágios uniformes e previsíveis em que se imaginava que os agentes sociais se alinhavam conforme as solidariedades e os conflitos em algum determinado sentido naturais e inevitáveis O aparato conceituai com que os cientistas sociais de todas as convicções interpretavam a mudança atual ou passada foi sobrecar regado por um a carga de positivismo herdado O s prognósticos de comportamento social estavam se comprovando demonstravel mente errôneos e esta falência dos sistemas e paradigmas existentes requeria não tanto a construção de uma nova teoria social geral mas uma completa revisão dos instrumentos de pesquisa atuais A ESCRITA DA HISTÓRIA 135 Por mais banal e simplista que esta colocação possa parecer esta percepção da crise é tão geral que apenas a mais simples menção pareceria necessária Havia contudo várias reações possíveis para a crise e a microhistória em si nada tnais é que uma gama de possíveis respostas que enfatizam a redefinição de conceitos e uma análise aprofundada dos instrumentos e métodos existentes Ao mesmo tempo têm havido outras soluções propostas absolutamente mais drásticas que com freqüência desviam para um relativismo deses perado para o neoidealismo ou mesmo para o retorno a uma filosofia repleta de irracionalidade Aqueles historiadores que aderiram à microhistória1 em geral tinham suas raízes no marxismo em uma orientação política para a esquerda e em um secularismo radical com pouca inclinação para a metafísica Apesar do fato dessas características estarem manifes tadas de m odos amplos e diversos acredito que serviram para ancorar firmemente esses historiadores à idéia de que a pesquisa histórica não é uma atividade puramente retórica e estética eu trabalho tem sempre se centralizado na busca de uma descrição mais realista do comportamento humano empregando um modelo de ação e conflito do comportamento do homem no mundo que reconhece sua relativa liberdade além mas não fora das limitações dos sistemas normativos prescritivos e opres sivos Assim toda ação social é vista como o resultado de uma constante negociação manipulação escolhas e decisões do indiví duo diante de um a realidade normativa que embora difusa não obstante oferece muitas possibilidades de interpretações e liberda des pessoais A questão é portanto como definir as margens por mais estreitas que possam ser da liberdade garantida a um indivíduo pelas brechas e contradições dos sistemas normativos que o governam Em outras palavras um a investigação da extensão 1 A obra centralizada em torno de duas publicações a série Microstorie publicada por Einaudi em Turim a partir de 1981 e em partea revista Quademi Storici publicada pelo II M ulino de Bolonha 136 PETER BURKE e da natureza da vontade livre dentro da estrutura geral da sociedade humana Neste tipo de investigação o historiador não está sim plesmente preocupado com a interpretação dos significados mas antes em definir as ambigüidades do mundo simbólico a plurali dade das possíveis interpretações desse mundo e a luta que ocorre em torno dos recursos simbólicos e também dos recursos materiais Assim a microhistória possuía uma posição muito específica dentro da chamada nova história Não era simplesmente uma questão de corrigir aqueles aspectos da historiografia acadêmica que pareciam não mais funcionar Era mais importante refutar o relativismo o irracionalismo e a redução do trabalho do historiador a uma atividade puramente retórica que interprete os textos e não os próprios acontecimentos Segundo Wittgenstein U m a dúvida sem um fim não é sequer uma dúvida2 O problema está em seachar uma maneira de reconhecer os limites do conhecimento e também da razão en quanto ao mesmo tempo se constrói uma historiografia capaz de organizar e explicar o mundo do passado Por isso o principal conflito não é entre a nova história e a história tradicional mas antes do significado da história encarada como uma prática inter pretativa3 A microhistória como um a prática é essencialmente baseada na redução da escala da observação em uma análise microscópica e em um estudo intensivo do material documental Essa defini ção já suscita possíveis ambigüidades não é simplesmente uma questão de chamar a atenção para as causas e os efeitos do fato de 2 L W ittgenstein On Çertainty Oxford 1969 parágrafo 625 3 Por isso discordo da posição assum ida por Joan Scott History in Crisis The O thers Side ofthe Story em American Historical Review 94 p 680921989 que considera positivo todo o trabalho histórico de vanguarda Seu artigo termina evocando uma frase de renovação sem qualquer perspectiva Se as muitas histórias diferentes do passado baseadas em experiências históricas diferentes são na verdade inconciliá veis será que não existe o m enor m odo de se pensar coerente e sistematicamente sobre o passado Essas questões têm resposta m as somente se aceitamos a noção de que a própria história é um a disciplina em mutação p 6912 M as que resposta existe além das inquirições criativas A ESCRITA DA HISTÓRIA 137 dimensões diferentes coexistirem em cada sistema social em outraS palavras o problema de descrever vastas estruturas sociais comple xas sem perder a visão da escala do espaço social de cada indivíduo e a partir daí do povo e de sua situação na vida Não é por isso uma questão de conceituar sridéia de escala como um fator inerente em todos os sistemas sociais e como uma característica importante dos contextos de interação scfcial incluindo diferentes dimensões quantitativas e espaciais Este problema tem sido amplamente discutido entre antropólogos que tôm apresentado o conceito de escala exatamente nesta perspectiva a escala como um objeto de análise que serve para medir as dimensões no campo dos relacio namentos Para Fredrik Barth por exemplo que organizou um seminário fundamental sobre o tema o problema é o de nossa capacidade para descrever diferentes combinações da escala em diferentes organizações sociais empíricas para medir o papel que desempenham nos diferentes setores das vidas que elas m oldam 4 Para a microhistória a redução da escala é um procedimento analítico que pode ser aplicado em qualquer lugar independente mente das dimensões do objeto analisado Desejo por um instante encarar mais de perto este problema pois a idéia da escala ser um objeto de estudo é uma fonte de má interpretação para muitas pessoas em discussões sobre a micro história Freqüentemente se supõe por exemplo que as comuni dades locais possam ser adequadamente estudadas como objetos de sistemas de pequena escala mas que as escalas maiores deveriam ser usadas para revelar as conexões entre as comunidades dentro de uma região entre as regiões dentro de um país e assim por diante Sem dúvida fica imediatamente óbvio que mesmo a ação aparentemente mais insignificante como por exemplo a de alguém sair para comprar um pão realmente envolve o sistema bem mais amplo dos mercados de grão de todo o mundo E apenas uma distorção paradoxal e significativa da perspectiva sugeriria que a vida comercial de uma aldeia não tem interesse além de seu 4 F Barth ed Scale and Social Organfeatíon O slo Bergen Trom so 1978 p 273 138 PETER BURKE significado em uma escala local U m exemplo desse tipo de perspectiva pode ser vislumbrado em uma divertida investida de Franco Venturi contra os estudos de comunidade e em particular contra a microhistória5 Estudar as crônicas de uma aldeia o que é feito com enorme freqüência hoje em dia é algo completamente sem sentido O dever do historiador é estudar as origens daquelas idéias que moldam nossas vidas não escrever novelas Basta eu citar um exemplo há muita conversa atualmente sobre a necessidade de retorno ao mercado Quem inventou o mercado Os homens do século dezoito E na Itália quem se preocupava com isso Os pensadores do Iluminismo Genovese e Verri É importante situar firme mente no centro de nossos estudos as raízes de nossa vida moderna Seria possível replicar isso parafraseando Geertz O s historia dores não estudam as aldeias eles estudam em aldeias6 Naturalmente a descrição de combinações de escala diferentes embora congruentes é importante no fenômeno social ainda que apenas como um meio de atribuir dimensões internas ao objeto de análise Entretanto é autoevidente e até banal afirmar que as dimensões particulares do objeto de análise não refletem necessa riamente a escala distintiva do problema colocado A idéia de que a escala tem sua própria existência na realidade é aceita até por aqueles que consideram que a microanálise só opera através do exemplo ou seja como um processo analítico simplificado a seleção de um ponto específico da vida real a partir do qual se exemplificam conceitos gerais em vez de funcionar como um ponto de partida para um movimento mais amplo em direção à generalização O que as dimensões dos m undos sociais de diferen tes categorias de pessoas e de diferentes campos estruturados de relacionamentos demonstram é a natureza precisa da escala que opera na realidade Nesse sentido portanto a segmentação de 5 F Venturi Lumi di Venezia La Stampa Turim 27 de janeiro de 1990 6 O texto completo diz O s antropólogos não estudam as aldeias tribos cidades vizinhanças eles estudam em aldeias Ver C Geertz The Interpretation of Cultures Nova York 1973 p 22 A ESCRITA DA HISTÓRIA 139 sociedades complexas é delineada sem se recorrer a suposições e estruturas consideradas a priori mas esta abordagem é capaz apenas de construir uma generalização que é mais metafórica que dem ons trada generalização esta baseada somente na analogia Pareceme em outras palavras que deferíamos discutir o problema da escala não só como aquele da escala da realidade observada mas também como um a questão de um a escala variável de observação para propósitos experimentais E natural e correto que a irredutibilidade das pessoas individuais às regras dos sistemas de grande escala tivesse situado o problema da escala no âmago do debate Em oposição a um funcionalismo supersimples é importante enfatizar o papel das contradições sociais na geração da mudança social em outras palavras enfatizar o valor explanatório das discrepâncias entre as restrições que emanam dos vários sistemas normativos ou seja entre as normas do estado e da família e do fato de que além disso um indivíduo tem um conjunto diferente de relacionamen tos que determina suas reações à estrutura normativa e suas escolhas com respeito a ela Embora a escala como uma característica inerente da realidade certamente não seja um elemento estranho no debate da micro história ela é sem dúvida tangencial7 porque o problema real está na decisão de reduzir a escala de observação para propósitos experimentaisO princípio unificador de toda pesquisa microhis tórica é a crença em que a observação microscópica revelará fatores previamente não observados Alguns exemplos desse procedimen to intensivo são a reinterpretação do caso contra Galileu como uma defesa das noções aristotélicas de substância e da Eucaristia contra um atomismo que teria tornado impossível a transformação de vinho e pão em sangue e carne8 o enfoque sobre um único qua dro e a identificação de quem ele representa como um meio de 7 G Levi U n problema di scala em Dieci interventi di Storia Sociale Turim 1981 p 7581 8 P Redondi Galileo eretico Turim 1983 U m a tradução de Raymond Rosenthal foi publicada em Londres em 1988 com o Galileo Heretic 140 PETER BURKE investigação do mundo cultural de Piero delia Francesca9 o estudo das estratégias matrimoniais consangüíneas em uma pequena aldeia na região de Com o para revelar o universo mental dos camponeses do século dezessete10 a introdução do tear mecânico observada em uma pequena aldeia têxtil para explicar o tema geral da inovação seus ritmos e efeitos11 o estudo das transações de terra de uma aldeia para descobrir as regras sociais do intercâmbio comercial que operam em um mercado que além disso teve de ser despersonalizado12 Examinemos brevemente o último exemplo Tem havido muita discussão com respeito à comercialização da terra e é uma crença amplamente considerada que a precocidade e a freqüência das transações de terra ocorridas em muitos países da Europa Ocidental e na América colonial indicam a presença precoce do capitalismo e do individualismo Dois elementos evitaram uma avaliação mais adequada deste fenômeno Em primeiro lugar muitas interpretações têm sido baseadas em dados agregados abordagem que tom ou impossível examinar os fatos concretos das próprias transações Em segundo os historiadores foram induzidos a erro por sua própria mentalidade mercantil moderna que os levou a interpretar as quantidades maciças de transações monetá rias de terra que encontraram em documentos notariais contem porâneos como evidência da existência de um mercado autoregu lador Curiosamente ninguém observou ou deu importância ao fato de que os preços envolvidos eram extremamente variáveis 9 C Ginzburg Indaginisu Piero II battesimo II ciclo di Arezzo Laflagellazionedi Urbino Turim 1981 U m a tradução de Martin Ryle e Kate Soper foi publicada em Londres em 1985 como The Enigma of Piero Piero delia Francesca The Baptism The Arezzo Cycle The Flagellation 10 R Merzario II paese stretto strategie matrimoniali nella diocesi di Como secoli XVI XVIII Turim 1981 11 F Ramella Terra e telai sistemi di parentela e manifattura nel Biellese dellOttocento Turim 1984 12 G Levi UEredità immateriale carriera di um esorcista nel Piemonte dei Seicento Turim 1985 traduzido por Linda Cochrane como Inheriting Power the Story of an Exorcisc Chicago e Londres 1988 A ESCRITA DA HISTÓRIA 141 mesmo considerandose as qualidades diferentes da terra Assim os preços da terra e o mercado geral normalmente estavam relacionados à suposição inquestionável de que as forças de mercado eram impessoais Apenas reduzindose a escala de obser vação a um a área extremamente localizada foi possível observar que o preço da terra variava segundo o relacionamento de paren tesco entre as partes contratuais Tam bém foi possível mostrar que eram imputados preços variáveis a terras de igual dimensão e qualidade Desse modo tornouse possível estabelecer que se estava observando um mercado complexo em que os relacionamentos sociais e pessoais desempenhavam um papel determinante no estabelecimento do nível de preço do prazo de pagamento e das formas pelas quais a terra trocava de mãos Esse exemplo pareceme particularmente revelador da maneira como a microhistória pro cede de m odo geral O s fenômenos previamente considerados como bastante descritos e compreendidos assumem significados completamente novos quando se altera a escala de observação E então possível utilizar esses resultados para extrair uma generaliza ção mais ampla embora as observações iniciais tenham sido feitas dentro de dimensões relativamente estreitas e mais como experi mentos do que como exemplos Apesar de ter suas raízes no interior do círculo de pesquisa histórica muitas das características da microhistória demonstram os laços próximos que ligam a história à antropologia particular mente aquela descrição densa que Clifford Geertz encara como a perspectiva adequada do trabalho antropológico13 Em vez de se iniciar com uma série de observações e tentativas para impor sobre elas uma teoria do tipo legal esta perspectiva parte de um conjunto de sinais significativos e tenta ajustálos em um a estrutura inteligí vel A descrição densa serve portanto para registrar por escrito uma série de acontecimentos ou fatos significativos que de outra forma seriam imperceptíveis mas que podem ser interpretado por sua 13 C Geertz Thick Description Toward an Itjterpretive Theory o f Culture em Geertz Interpretation of Cultures p 331 142 PETER BURKE inserção no contexto ou seja no fluxo do discurso social Essa abordagem é bemsucedida na utilização da análise microscópica dos acontecimentos mais insignificantes como um meio de se chegar a conclusões de mais amplo alcance Este segundo Geertz é o procedimento adotado pelo etnólogo cujos objetivos são ao mesmo tempo extremamente ambiciosos e muito modestos Ambiciosos no sentido de que a autoridade do etnólogo para interpretar o material é praticamente ilimitada e a interpretação é em grande parte a essência do trabalho etnográfi co O s escritos antropológicos são trabalhos imaginativos em que a habilidade do autor é medida por sua capacidade de nos colocar em contato com as vidas dos forasteiros e de fixar os acontecimen tos ou o discurso social de forma a nos permitir examinálos claramente O poder do intérprete tornouse portanto infinito imensurável não suscetível de falsificação14 Inevitavelmente fo ram introduzidos elementos que são difíceis de ser racionalmente avaliados variando desde um a espécie de fria empatia até uma habilidade comunicativa literária O perigo do relativismo é acentuado mais que minimizado pelo pequeno espaço destinado à teoria Para Geertz é proveitosa a busca de leis e conceitos gerais pois a cultura é composta de uma trama de significados cuja análise não é uma ciência experimental tateando leis universais mas uma ciência interpretativa em busca de significado Qual é então o papel da teoria Geertz nega que a abordagem interpretativa deva renunciar explicitamente às formu lações teóricas Entretanto ele imediatamente prossegue dizendo que os termos em que tais formulações podem ser moldados são se não inteiramente inexistentes muito próximos disso Há várias características de interpretação cultural que tornam seu desenvolvimento teórico mais difícil que o usual p 24 Em primeiro lugar está a necessidade da teoria ficar bem mais próxima ao campo do que tende a ser o caso em ciências mais aptas a se entregarem à abstração imaginativa p 24 As 14 Clifford O n Ethnographic Authority Representations 1 p 12239 1983 A ESCRITA DA HISTÓRIA 143 formulações teóricas pairam tão baixo sobre as interpretações que governam que não fazem muito sentido ou despertam muito interesse se delas separadas p 25 Assim as teorias são legitima das mas de pouca utilidade porque a tarefa essencial da teoria aqui edificada não é codificai regularidades abstratas mas tornar possivel a descrição densa não para generalizar os casos cruzados mas para generalizar dentro de seu interior p 26 Algo similar está se passando em relação à inferência clínica não é uma questão de se ajustar os casos observados a uma lei existente mas antes de se trabalhar a partir de sinais significativos que no caso da etnologia são atos simbólicos que foram organizados em uma estrutura inteligível para permitir que a análise do discurso social extraia a nãoaparente importância das coisas Por isso não é uma questão de se elaborar em instrumentos teóricos capazes de gerar previsões mas de se organizar uma estrutura teórica capaz de continuar a produzir interpretações defensáveis como fenôme nos sociais novos vindo à to n a Idéias teóricas não são totalmente criadas de novo em cada estudo elas são adotadas a partir de outros estudos relacionados e refinadas no processo aplicadas a novos problemas interpretativos p 267 N ossa tarefa dupla é descobrir as estruturas conceituais que inspiram nossos atos indi viduais ditos do discurso social e construir um sistema de análise em cujos termos o que é genérico àquelas estruturas o que lhes pertence por elas serem o que são fará contraste com os outros determinantes do comportamento humano N a etnografia a fun ção da teoria é promover um vocabulário onde o que a ação simbólica tem a dizer sobre si mesma ou seja sobre o papel da cultura na vida humana possa ser expresso Assim a teoria é um repertório de conceitos e sistemas de conceitos muito gerais elaborados no interior da academia que se agita no corpo de um a etnografia de descrição densa na esperança de transformar ocorrências simples em cientificamente eloqüentes p 28 Por isso os conceitos são instrumentos frios tomados da bagagem da ciência acadêmica eles são úteis na interpretação mas é apenas nessa função que adquirem realidade concreta e especificidade As 144 PETER BURKE teorias não se originam da interpretação A teoria só tem um pequeno papel como subalterna para desempenhar em relação ao papel muito maior do intérprete O s sistemas dos conceitos gerais pertencentes à linguagem acadêmica são inseridos no corpo vivo da descrição densa na esperança de dar expressão científica a acontecimentos simples não para criar novos conceitos e siste mas teóricos abstratos Portanto a única importância da teoria geral é um a parte da construção de um repertório sempre em expansão do material densamente descrito tornado inteligível através de sua contextualização que servirá para ampliar o universo do discurso humano Pareceme que a antropologia interpretativa e a microhistória têm tanto em comum quanto têm a história e a antropologia em geral Não obstante eu quero aqui ressaltar duas diferenças impor tantes uma derivada do uso tradicionalmente mais intenso da pesquisa intensiva em pequena escala e a outra derivada de um aspecto que tentarei explicar em seguida e que posso definir como uma espécie de limitação autoimposta presente no pensamento de Geertz Essas duas diferenças dizem respeito a trabalhos ha prática da racionalidade humana e à legitimidade de se fazerem generalizações nas ciências sociais Examinemos primeiro a maneira diferente como é encarada a racionalidade U m a vez que nega a possibilidade de uma análise específica de processos cognitivos a antropologia interpretativa presume a racionalidade como um ponto de partida como algo impossível de ser descrito fora da ação humana fora do compor tamento humano visto tanto como uma ação significativa e simbólica quanto além da interpretação Até esse ponto podemos estar de acordo Entretanto Geertz extrai dessas considerações conclusões extremas A única coisa que podemos fazer é primeiro tentar procurar conhecer e depois tornar explícitos através da descrição densa os prováveis significados das ações Aqueles que concordam com essa abordagem não acreditam que seja necessário questionar as limitações as possibilidades e a mensurabilidade da própria racionalidade De preferência quaisquer restrições ou A ESCRITA DA HISTÓRIA 145 limites inerentes são presumidos como determinados pelo jogo infinito de interpretações essencialmente sem valor variando entre idealismo e relativismo em vez de estabelecidos pelos padrões de alguma concepção definida da racionalidade humana Podese prosseguir e afirmar que a concepção de Geertz é revelada por algumas características que ele extraiu de Heidegger15 em particular a rejeição da possibilidade de explicação total e a tentativa de construir uma hermenêutica da escuta ou seja escutar a linguagem poética em outras palavras a linguagem apreendida no esforço de inventar novos significados16 N a verdade segundo Geertz o homem não pode formular sistemas mentais sem recorrer à orientação de modelos de emoção públicos e simbólicos pois esses modelos são os elementos essenciais com que ele percebe o mundo Além disso esses modelos simbólicos não podem ser encontrados em toda a fala humana pois a fala em geral degenerou em um simples meio de comunicação Geertz como Heidegger considera esses modelos simbólicos na linguagem quintessencial da poesia que representa a mais alta expressão da experiência hum ana da realidade Geertz especificamente se refere à linguagem do mito do ritual e da arte Para compor nossas mentes devemos saber como nos sentimos a respeito das coisas e para saber como nos sentimos a respeito das coisas precisamos das imagens públicas do sentimento que apenas o ritual o mito e a arte podem proporcionar17 A posição clara e lúcida de Geertz é que o repertório infinito das possibilidades simbólicas das mentes huma nas nos permite abordar a realidade por uma série de passos infinitamente pequenos sem no entanto jamais atingila Essa opinião é consistente com a teoria antihegeliana de Heidegger de que o conhecimento do indivíduo não deve dissolver a existência 15 M Heidegger Hokwege Frankfurt 1950 traduzido para o italiano com o Sentieri interotti Florença 1968 0 16 G Vattimo Introduzione a Heidegger Bari 1985 17 C Geertz The Growth o f Culture and the Evolution o fM in d em J Scher ed Theories of the Mincí Glencoe 1962 p 71340 republicado em Geertz Interpretation of Cultures p 5585 146 PETER BURKE de outros ém si mesmo mas antes que a função adequada do pensamento como um classificador hermenêutico é permitir que as outras pessoas permaneçam sendo as outras Acredito que esse elo heideggeriano é essencial para um entendimento tanto da força e da sutileza das interpretações quanto da relativa debilidade das explicações dos m undos na antropologia interpretativa de Geertz Dessa maneira Geertz pretende evitar a questão da racionalidade e seus limites limites que são definidos por muito mais do que um acesso simplesmente diferencial à informação A diferença é aquela entre o pensamento autêntico e o pensamento governado pelo princípio da razão suficiente Em vista disso poderia parecer que o etnólogo devesse talvez se contentar em interromper sua pesquisa no nível das descrições do significado Sem dúvida deve ser aceito que de um ponto de vista biológico todos os homens possuem intelectos substancialmente iguais mas esse intelecto é completamente dependente dos recursos culturais para seu funcionamento Essa ênfase na cultura permite que se evite qualquer teoria da superioridade do homem civilizado sobre o homem primitivo Também evita que se considere a idéia de que a cultura surge em alguns pontos ordenados nas fases evolucioná rias A cultura definida como a capacidade de pensamento simbó lico é parte da verdadeira natureza do homem A cultura não é suplementar ao pensamento humano mas seu ingrediente intrín seco N ão obstante segundo Geertz o problema de se evitar o relativismo cultural absoluto assim tom ando possível a com paração entre as culturas não pode ser resolvido e não deve nem mesmo ser mencionado Ele se limita a definir a função do intelecto como um a busca de informação uma elaboração emotiva usan dose os materiais comuns aos membros de uma cultura específica Em suma a intelecção humana no sentido específico do raciocí nio diretivo depende da manipulação de certos tipos de recursos culturais de tal maneira a produzir descobrir selecionar os estímulos ambientais necessários seja para que propósito for ao organismo é uma busca de informação p 79 por isso uma reunião seletiva de informação De fato os seres hum anos neces A ESCRITA DA HISTÓRIA 147 sitam de constantes estímulos afetivos e intelectuais mas ao mesmo tempo esses mesmos estímulos requerem um controle cultural contínuo que os organize em uma ordem significativa e inteligível Por isso não é apenas uma reunião de informação mas a organização emotiva do que está envolvido Todavia não é um processo privado uma vez que o significado dos símbolos repousa no fato de que eles são compartilhados e por isso comunicáveis entre os membros de um grupo pequeno ou grande no primeiro momento o pensamento é organizado de acordo com as estruturas simbólicas públicas à mão e somente depois disso ele se torna privado M as Geertz não pode ir além dessas considerações pois um a investigação mais específica no funcionamento da razão iria inevitavelmente introduzir implicações ameaçadoras de uma hie rarquização de culturas Geertz defende o papel desempenhado pelo relativismo cultu ral na destruição do etnocentrismo e com isso nós não podemos deixar de concordar Entretanto ele prossegue identificando o relativismo cultural com o relativismo tout court e encara todo o antirelativismo como uma tendência perigosa para considerar algumas culturas como hierarquicamente superiores a outras Em um artigo revelador de 198418 And antirelativism ele identifica todo antirelativismo com aquela posição em que a diversidade cultural cruzada no espaço e através do tempo reúne uma série de expressões de uma realidade estabelecida subjacente a natureza essencial do homem Geertz percebe nesta visão da diversidade superficial que reveste uma profunda homogeneidade subjacente um a confiança nas teorias da mente humana e da natureza humana por ele rejeitadas porque conduzem inevitavel mente ao restabelecimento de conceitos errôneos de pensamento primitivo e desvio social em outras palavras à hipótese de uma hierarquia de convicções e de formas de comportamento dispostas segundo diferentes níveis de racionalidade Assim a afirmação neoracionalista de que é possível identificarse constâncias formais 18 C Geertz Anti AntiRelativism American Anthropologist 86 p 263781984 148 PETER BURKE universais cognitivos constâncias relativas ao desenvolvimento estágios cognitivos e constâncias operacionais processos cogniti vos seja sob que forma for só diminui o poder de conceitos que corretamente enfatizam a diversidade cultural e a alteridade Seria realmente lamentável se agora que a distância que estabelecemos e o local em que nos instalamos estão começando a impressionar para mudar nosso sentido do sentido e nossa percepção da percepção tivéssemos que voltar a velhas canções p 276 Geertz não se declara relativista mas antes um anti antirelativista no sentido de que estamos em um estágio talvez transitório em que apenas a descrição densa e a elaboração de um repertório de signi ficados são possíveis Entretanto não me parece que sua redução de todo argumen to racionalista a um renascimento potencial de conceitos hierár quicos de cultura seja defensável e de fato é difícil considerar Gellner LéviStrauss Needham Winch Horton e Sperber a quem Geertz se refere todos como expoentes de um a ordenação hierárquica de culturas Por que os processos cognitivos ou os universais cognitivos conduziriam apenas a um a conclusão etno cêntrica Por que uma descrição dos processos racionais em termos formais ou um conceito das limitações da racionalidade provaria obstáculos a um a descrição nãohierárquica de cultura Por que a formalização e a generalização que permite a possibili dade de comparação entre culturas necessariamente implicariam a destruição da alteridade Naturalmente o perigo existe mas a solução será realmente aceitar a ameaça irracionalista paralisante do relativismo como o preço para se escapar do etnocentrismo um espectro de qualquer m odo até agora já em grande parte exorcizado Eu antes acredito que é a verdadeira identificação de processos cognitivos uniformes que nos permite a aceitação da relatividade cultural enquanto rejeitamos o relativismo abso luto daqueles que limitam nossas possibilidades de conhecer a realidade com o resultado de nos tornarmos enredados em um jogo infinito e gratuito de interpretar as interpretações A ESCRITA DA HISTÓRIA 149 Pareceme que uma das principais diferenças de perspectiva entre a microhistória e a antropologia interpretativa é que a última enxerga um significado homogêneo nos sinais e símbolos públicos enquanto a microhistória busca definilos e medilos com referên cia à multiplicidade das representações sociais que eles produzem Portanto o problema não é simplesmente aquele do funcionamen to do intelecto Há também o perigó de se perder a visão da natureza socialmente diferenciada dos significados simbólicos e conseqüen temente de sua qualidade em parte ambígua Isso leva também ao problema de se definirem as diferentes formas de funcionamento da racionalidade humana dentro do contexto de situações especí ficas Tanto a quantidade de informação necessária para se organi zar e definir a cultura quanto a quantidade de informação neces sária à ação são historicamente mutáveis e socialmente variáveis É esse portanto o problema que necessita ser enfrentado uma vez que o arcabouço das estruturas públicas simbólicas é um a abstra ção Pois no contexto de condições sociais diferentes essas estru turas simbólicas produzem uma multiplicidade de representações fragmentadas e diferenciadas e serão essas o objeto do nosso estudo Tanto a quantidade de informação disponível quanto as oportunidades para a observação empírica são provavelmente muito mais amplas e complexas nas sociedades contemporâneas do que nas sociedades simples ou naquelas do passado Não obstante o principal problema é sempre aquele estabelecido de forma extraordinariamente iluminada por Foucault19 o problema da seleção a partir da variação de significados alternativos possí veis que um sistema de classificação dominante deve impor sem mencionar aquela seleção de informação que podemos chamar de autoprotetora que nos permite dar significado ao mundo e funcionar de m odo eficaz A quantidade e a qualidade de tal informação não é entretanto socialmente uniforme e por jsso é necessário examinarse a pluralidade de formas da racionalidade 19 M Foucault Les mots et les choses archéologie des sciences humaines Paris 1966 150 PETER BURKE limitada que atua na realidade particular em observação Essa pluralidade existe como um resultado entre outras coisas de mecanismos protetores desdobrados em face de informações em excesso mecanismos estes que permitem escapar da quantidade total de informação para que as decisões possam ser tomadas Podese pensar por exemplo nos processos de simplificação causai e também na utilização de slogans simplificados nas esco lhas políticas nos sistemas etiológicos usados na medicina popu lar ou nas técnicas de persuasão empregadas pela indústria de propaganda Pareceme por isso não ser suficiente conduzir uma discus são geral do funcionamento simbólico tendose como base uma definição geertziana de cultura como uma busca infinita de informação Acredito ser necessário tentar medir e formalizar os m ecanism os de racionalidade limitada um a racionalidade limi tada em que a localização de seus limites varia com as várias formas de acesso à informação para permitir um entendimento das diferenças existentes nas culturas dos indivíduos grupos e sociedades em várias épocas e locais A qualidade um tanto alusiva do importante mas incompleto sistema de Geertz negli gencia esse objetivo A prova dessa inadequação está exemplificada na abundância do relativismo autobiográfico que surgiu no cenário científico nos últimos anos sob a capa de antropologia interpretativa Reflections on Fieldwork in Morocco20 de Rabinow pareceme um excelente exemplo Existe prova adicional no fato de que o repertório das descrições densas não tem um objetivo comparativo mas perma nece simplesmente um repertório do qual se extraem casos para esclarecimento segundo regras não especificadas Conseqüente mente a interpretação tem com freqüência permanecido em aber to imponderável e limitada Alguns exemplos dessa imponderabi lidade aparecem mais nos geertzianos do que no próprio Geertz 20 P Rabinow Reflections on Fieldwork in Morocco Berkeley e Los Angeles 1977 A ESCRITA DA HISTÓRIA 151 U m exemplo clássico pareceme ser o Great Cat Massacre de autoria de Robert Darnton21 U m segundo aspecto que já foi mencionado é se abster de qualquer tentativa de construir modelos e estabelecer as regras formais dos jogos interpretativos e comunicativos Geertz conclui pela proposição de um uso experimental de conceituação geral acadêmica apenas para revitalizar os conceitos nos exemplos concretos das descrições densas D essa maneira um repertório de conceitos é introduzido em um repertório de acontecimentos interpretados na esperança de que eles operem juntos para que os acontecimentos simples possam se tornar cientificamente eloqüen tes e opostamente que conclusões de longo alcance possam ser extraídas da densidade de fatos simples Esse método com freqüên cia resulta em um a história cultural sem análise social ou em uma análise social extremamente estereotipada extraída de uma história cultural intensivamente investigada A ação é examinada em pro fundidade mas sem uma reconceituação complexa e formal dos mecanismos sociais envolvidos e por isso a análise pára de repente como se estivesse ameaçada no efetivo limiar da história social Por exemplo o carisma e o simbolismo do poder no cerimonial da coroação parecem falar a mesma língua a todos que pertencem a uma sociedade socialmente indiferenciada22 Ou tomandose outro exemplo a briga de galos é apresentada como tendo uma importância universal singular para o conjunto da sociedade ainda que as formas de aposta sejam socialmente diversas23 Por outro lado a microhistória não rejeitou a consideração de diferenciação social da mesma maneira que a antropologia inter 21 R Darnton The Great C at Massacre and otfier Episodes in French Cultura History N ova York 1984 Ver também seu artigo The Symbolic Element in History Journal of Modem History 58 p 21834 1986 e R Chartier Text Sym bols and Frenchness Journal of Modem History 57 p 68295 1985 assim como G Levi I pericoli dei Geertzism o Quademi Storia 20 p 2692771985 22 C Geertz Local Knowledge Further Essays in Interpretive Anthropology Nova York 1983 p 12146 23 C Geertz Deep Play Notes on the Balinese Cockfight Daedalus 101 p 137 1972 republicado em Geertz Interpretation of Cultures p 41254 152 PETER BURKE pretativa mas a considera essencial para se ter uma interpretação tão formal quanto possível das ações do comportamento das estruturas dos papéis e dos relacionamentos sociais Em outras palavras embora os costumes e o uso dos símbolos sejam sempre polissêmicos não obstante eles assumem conotações mais precisas a partir das diferenciações sociais variáveis e dinâmicas O s indiví duos constantemente criam suas próprias identidades e os pró prios grupos se definem de acordo com conflitos e solidariedades que contudo não podem ser presumidos a priori mas resultam das dinâmicas que são o objeto da análise Eu gostaria agora de observar outra característica comum ao trabalho dos microhistoriadores que é o problema da comunica ção com o leitor o problema da narrativa O restabelecimento da narrativa não deveria ser encarado meramente em termos da escolha entre história qualitativa individualizada e aquela história quantitativa cuja ambição é estabeleáer leis regularidade e com portamento coletivo formal A microhistória dirigiu especificamen te o problema da comunicação e tem estado bastante consciente de que a pesquisa histórica não tem a ver apenas com a comuni cação dos resultados em um livro Esse foi um ponto central negligenciado em um conhecido artigo de Stone24 Em geral os problemas de prova e demonstração em história por meio do relato de momentos concretos têm uma relação próxima com as técnicas de exposição N ão é simplesmente um problema de retórica pois o significado do trabalho histórico não pode ser reduzido à retórica mas especificamente um problema de comunicação com o leitor que nunca é um a tabula rasa e por isso sempre coloca um problema de recepção25 Pareceme que a função particular da 24 L Stone The Revival of Narrative Reflections on a New O ld History Past and Present 85 p 3241979 25 Recordo a controvérsia entre A M om igliano La retórica delia storia e la storia delia retórica sui tropi di Hayden W hite em M om igliano Sui fondamenti delia storia antica Turim 1984 p 46476 e H W hite Metakistory Baltimore 1973 em que no entanto M om igliano enfatiza excessivamente a oposição entre a verdade e a retórica C om o eu afirmo no texto os problemas da teoria da argumentação são A ESCRITA DA HISTÓRIA 153 narrativa pode ser resumida em duas características A primeira é a tentativa de demonstrar através de um relato de fatos sólidos o verdadeiro funcionamento de alguns aspectos da sociedade que seriam distorcidos pela generalização e pela formalização quantita tiva usadas independentemente pois essas operações acentuariam de uma maneira funcionalista ô papel dos sistemas de regras e dos processos mecanicistas de mudança social Em outras palavras é exibido um relacionamento entre os sistemas normativos e aquela liberdade de ação criada para os indivíduos por aqueles espaços que sempre existem e pelas inconsistências internas que fazem parte de qualquer sistema de normas e sistemas normativos A segunda característica é aquela de incorporar ao corpo princi pal da narrativa os procedimentos da pesquisa em si as limitações documentais as técnicas de persuasão e as construções interpreta tivas Esse método rompe claramente com a assertiva tradicional a forma autoritária de discurso adotada pelos historiadores que apresentam a realidade como objetiva N a microhistória ao con trário o ponto de vista do pesquisador tornase uma parte intrín seca do relato O processo de pesquisa é explicitamente descrito e as limitações da evidência documental a formulação de hipóteses e as linhas de pensamento seguidas não estão mais escondidas dos olhos do nãoiniciado O leitor é envolvido em um a espécie de diálogo e participa de todo o processo de construção do argumento histórico U m exemplo esclarecedor deste processo é o livro de Ginzburg e Prosperi26 Henry James adotou uma abordagem similar em seu romance In The Cage27 que serve como uma extraordinária metáfora ao trabalho do historiador N o romance Jam es descreve todo o processo de interpretação da realidade construído por um operador de telégrafo em seu local confinado de trabalho em um distrito de Londres Seu material tosco é a importantes na historiografia prática e não são como declara W hite incompatíveis com um a referência realista a fetos históricos 26 C G insburg e A Prosperi Giochi di pazienza un seminário sul Beneicio di Cristo Turim 1975 27 H Jam es ín the Cage Londres 1898 154 PETER BURKE documentação escassa fragmentária e falaciosa apresentada pelo texto dos telegramas diários trocados por seus clientes aristocráti cos O romance deste evidente processo de compreensão do m undo é um a metáfora para o trabalho do historiador mas também proporciona um exemplo do papel que a narrativa pode desempenhar em tal tipo de trabalho A abordagem microhistórica dedicase ao problema de como obtemos acesso ao conhecimento do passado através de vários indícios sinais e sintomas Esse é um procedimento que toma o particular como seu ponto de partida um particular que com freqüência é altamente específico e individual e seria impossível descrever como um caso típico e prossegue identificando seu significado à luz de seu próprio contexto específico Entretanto a contextualização pode significar muitas coisas A teoria de contexto mais coerente é a funcionalista cujo aspecto mais característico talvez seja aquele de se focalizar o contexto para explicar o comportamento social Para o funcionalismo não são tanto as próprias causas do comportamento que constituem os objetos de análise mas antes a normalização de uma forma de comportamento em um sistema coerente que explica aquele com portamento suas funções e o modo como ele opera O modelo durkheimiano de contextualização enfatiza a natureza restritiva de alguns de nossos conceitos gerais mas a contextualização é um elemento funcionalista ainda que se limite a enfatizar o ajustamen to entre uma instituição um a forma de comportamento ou um conceito e aquele sistema do qual faz parte C om o observa Gellner28 mesm o Wittgenstein foi um seguidor e sucessor de Durkheim pois até ele supunha que as categorias eram valida das por serem partes de uma forma de vida Eu gostaria de ressaltar que ao contrário da ênfase do funcio nalismo na coerência social os microhistoriadores concentraram se nas contradições dos sistemas normativos e por isso na fragmen 28 E Gellner Concepts and Society em BR W ilson ed Rationality O xford 1970 p 1 8 4 9 especialmente p 24 A ESCRITA DA HISTÓRIA 155 ração nas contradições e na pluralidade dos pontos de vista que tornam todos os sistemas fluidos e abertos As mudanças ocorrem por meio de estratégias e escolhas minuciosas e infinitas que operam nos interstícios de sistemas normativos contraditórios Isto é realmente uma reversSo da perspectiva pois acentua as ações mais insignificantes e mais localizadas para demonstrar as lacunas e os espaços deixados êm aberto pelas complexas incon sistências de todos os sistemas Voltando ao exemplo previamen te mencionado é afinal mais funcionalista considerar o significa do da briga de galos no contexto de um sistema coerente da cultura balinesa do que considerar os significados múltiplos socialm entejragm entados da briga de galos em si como um meio de interpretar a cultura balinesa em geral com todas as suas inconsistências29 De fato mesmo quando pensamos em um repertório de culturas locais não comparáveis uma com a outra e das quais regras gerais mais ou menos abstratas só podem ser deduzidas de uma forma puramente arbitrária ainda é possível que tal abordagem possa produzir uma interpretação muito funcionalista se assumir a cultura local como um todo coerente homogêneo e sistemático Há por isso duas formas possíveis de se interpretar um contexto social como um local que imputa significado a particulares supos tamente estranhos ou anôm alos revelando seu significado oculto e conseqüentemente seu ajustamento a um sistema ou por outro lado como um ponto de descoberta do contexto social em que um fato aparentemente anômalo ou insignificante assume significado quando as incoerências ocultas de um sistema aparen temente unificado são reveladas A redução da escala é uma operação experimental justamente devido a esse fato porque ele presume que as delineações do contexto e sua coerência são aparentes e revela aquelas contradições que só aparecem quando a escala de referência é alterada Esse esclarecimento pode também ocorrer de m odo incidental como observou corretamente Jacques 29 Geertz Deep Play ver nota 23 156 PETER BURKE Revel30 peloaum ento da escala t A escolha de microdimensões surge como um resultado direto da tradicional preponderância da interpretação macrocontextual em vista da qual ela é a única direção experimental possível de ser tomada Outro conceito de contextualização é aquele que entende o contexto cultural como um processo de se colocar uma idéia dentro dos limites prescritos pelas linguagens disponíveis Estou pensan do aqui por exemplo na história intelectual dos contextualistas ingleses31 Esta teoria encara o contexto como sendo ditado pela linguagem e pelos idiomas disponíveis e utilizados por um grupo particular de pessoas em uma situação particular para organizar por exemplo suas lutas de poder Essa escola de pensamento tem tido grande influência sobre a teoria social em si e tem iniciado tantas discussões que me parece supérfluo voltar a expor seus argumentos Entretanto a perspectiva da microhistória é mais uma vez diferente porque uma importância fundamental é dada às atividades às formas de comportamento e às instituições que proporcionam o arcabouço dentro do qual os idiomas podem ser adequadamente entendidos e que permitem uma discussão signi ficativa daqueles conceitos e convicções que de outra maneira permaneceriam hermeticamente fechados em si mesmos sem uma adequada referência à sociedade mesmo que o discurso seja conceitualizado mais como uma ação do que como uma reflexão A contextualização pode ter um terceiro significado este con siste na colocação formal e comparativa de um acontecimento uma forma de comportamento ou um conceito em uma série de outros que são similares embora possam estar separados no tempo e no 30 J Revel V histoire au ras du sol introdução a G Levi Le Pournir au village Paris 1989 p ixxxiii 31 V er JG A Pocock The Machiavellian Moment Fíorentine Political Thought and the Atlantic Republican Tradition Princeton 1975 e Virtue Commerce and History Essays on Political Thought and History chiefly in the Eighteentfi Century Cambridge 1985 Ver tam bém Q Skinner Hermeneudcs and the Role o f History New Literary History 7 p 2093219756 e o livro de Skinner The Foundations of Modem Political Thought the Renaissance Cambridge 1978 A ESCRITA DA HISTÓRIA 157 espaço Esta contextualização pressupõe que as estruturas formali zadas e explícitas são comparáveis mas está preocupada não apenas em agrupar os itens individuais caracterizados por um ou mais aspectos comuns mas também com a classificação baseada em similaridades indiretas via analogia Aqui o contexto envolve não somente a identificação de um conjunto de coisas que com partilham certas características mas pode também operar no nível da analogia ou seja na área em que a similaridade perfeita existe mais entre os relacionamentos que unem as coisas do que entre as próprias coisas que podem ser muito diversas A similaridade ocorre entre sistemas de relações envolvendo elementos diferentes E por assim dizer uma identificação de semelhanças familiares Eu me refiro aqui em particular à posição de Needham32 A microhistória tem demonstrado a falibilidade e a incoerência dos contextos sociais como convencionalmente definidos obser vese por exemplo as críticas feitas por M Gribaudi33 em relação à delimitação das vizinhanças da classe trabalhadora Gribaudi demonstra que as solidariedades podem estar baseadas não tanto na similaridade da posição social mas antes na similaridade da posição nos sistemas de relacionamentos Outro exemplo é a análise das regras do matrimônio e dos efeitos da consangüinidade na região do Com o no século dezessete34 nessa análise uma forte contextualização social e uma redução da escala revelam a impor tância das regras abstratas formais do matrimônio como uma base para as categorizações sociais Para outro exemplo vejase o estudo de um feudo realizado por Ago35 Essas observações colocam problemas adicionais o que é necessário considerar brevemente Em primeiro lugar o problema 32 R Needham Reconnaissances Toronto Buffalo Londres 1980 33 M Gribaudi Mondo operaio e mito operaio spazi e percorsi sociaíi a Torino jiel primo Novecento Turim 1987 34 Merzario II paese stretto 1981 35 R Ago Jn feudo esemplare immobilismo padronale e astuzia contadina nel Lazio del700 Rom a 1988 158 PETER BURKE do contraste entre o conhecimento individualizado e o generaliza do debate recorrente entre os historiadores sociais E suficiente recordar o debate sobre história qualitativa ou quantitativa da família ou em um contexto mais amplo a crise que abalou uma convicção difundida nos anos 60 da possibilidade de se quantificar as ocorrên cias sociais e formular leis rigorosas de comportamento social Desejo concentrarme aqui em um único aspecto que embora talvez em si singular serve para esclarecer um problema importante Gostaria de examinar o que significa história quantitativa ou melhor examinar aquelas características da quantificação implícitas em um conceito mecanicista de realidade social A microhistória tenta não sacrificar o conhecimento dos elementos individuais a uma generalização mais ampla e de fato acentua as vidas e os acontecimentos individuais Mas ao mesmo tempo tenta não rejeitar todas as formas de abstração pois fatos insignificantes e casos individuais podem servir para revelar um fenômeno mais geral Em um a ciência frágil em que se a própria experimentação não é impossível aquele aspecto da experimen tação envolvendo a capacidade de reproduzir as cauSas está excluído m esm o as menores dissonâncias provam ser indicado res do significado que podem potencialmente presumir as dim en sões gerais Edoardo Grendi definiu essa perspectiva como sendo a atenção dada ao normal excepcional 36 As alternativas de se sacrificar o particular ao geral ou de se concentrar apenas na singularidade do particular é portanto uma distinção inadequa da O problema é mais aquele de como podem os elaborar um paradigma que dependa do conhecimento do particular em bora não rejeitando a descrição formal e o conhecimento científico do próprio particular37 N ão obstante as comparações entre quanti 36 E Grendi M icroanalisi e storia sociale Quaderni Storici 7 p 50620 1972 e Polanyi daífantropologia economica alia microanalisi storica M ilão 1978 37 C Ginzburg Spie radiei di um paradigm a indiziario em A Gargani ed Crisi delia ragione Turim 1979 p 59106 republicada no livro de Ginzburg M m Emblemi Spie morologia e storia Turim 1986 p 158209 U m a tradução inglesa do livro foi publicada em Londres em 1990 com o Myths Emblems Clues A ESCRITA DA HISTÓRIA 159 tativo e qualitativo acontecimento e série particular e geral levaram a um a visão errônea dos instrumentos adequados à formalização A história social tradicionalmente se considerava capaz de aplicar modelos rígidos à história e de utilizar um tipo quantitativo de formalizaçãoem que o conceito de causalidade não poderia ser enfraquecido pela atenção às escolhas e às incertezas pessoais às estratégias individuais e de grupo que evocam um a perspectiva menos mecanicista C om o esta tendên cia a identificar a formalização com a quantificação há muito tempo tem sido predominante a história ficou paradoxalmente atrás das outras ciências sociais Pareceme que a microhistória se movimenta mais firmemente em direção aos ramos nãoquan titativos da matemática para apresentar representações mais realistas e menos mecanicistas am pliando assim o cam po da indeterminação sem necessariamente rejeitar as elaborações for malizadas Problemas como aqueles relacionados a gráficos ou a entrelaçamentos relacionais com a decisão em situações incertas com o cálculo de probabilidades e com jogos e estratégias foram todos inacreditavelmente negligenciados no debate sobre a cham ada história quantitativa Ao se decidir trabalhar com um quadro diferente mais complexo e realista da racionalidade de atores sociais e ao se considerar a natureza fundamentalmente entrelaçada dos fenômenos sociais tornase de imediato necessá rio desenvolver e utilizar novos instrumentos formais de abstra ção O campo permanece bem aberto para a exploração dos historiadores Estas então são as questões e posições comuns que caracteri zam a microhistória a redução da escala o debate sobre a racionalidade a pequena indicação como um paradigma científico o papel do particular não entretanto em oposição ao social a atenção à capacidade receptiva e à narrativa uma definição especí fica do contexto e a rejeição do relativismo Estes elementos característicos são de muitas maneiras similares àqueles esboçados por Jacques Revel em um artigo recente sobre a microhistória que talvez até agora seja a tentativa mais coerente de interpretar este 160 PETER BURKE trabalho experimental38 Revel39 define a microhistória como a tentativa de estudar o social não como um objeto investido de propriedades inerentes mas como um conjunto de interrelaciona mentos deslocados existentes entre configurações constantemente em adaptação Ele encara a microhistória como uma resposta às limitações óbvias daquelas interpretações da história social que em sua busca de regularidade dá proeminência a indicadores super simples A microhistória tentou construir uma conceituação mais fluida um a classificação menos prejudicial do que constitui o social e o cultural e um arcabouço de análise que rejeita simplificações hipóteses dualistas polarizações tipologias rígidas e a busca de características típicas Por que tornar as coisas simples quando se pode tornálas complicadas p xxiv é o lema que Revel sugere para a microhistória C om isso ele quer dizer que o verdadeiro problema para os historiadores é serem bem sucedidos no expres sar a complexidade da realidade ainda que isso envolva o uso de técnicas descritivas e formas de raciocínio que são mais intrinsica mente autoquestionadas e menos assertivas que qualquer outra antes utilizada O problema é também aquele de selecionar as áreas importantes para o exame a idéia de se considerarem os indivíduos da história tradicional em uma de suas variações localizadas é análoga à idéia de se ler nas entrelinhas de um determinado documento ou entre as figuras de um quadro para discernir significados que previamente escaparam da explicação ou a verda deira importância daquilo que antes parecia ter surgido meramente por circunstância ou necessidade ou o papel ativo do indivíduo que antes parecia simplesmente passivo ou indiferente C om referência à definição de Revel tentei salientar mais claramente o impulso antirelativista da microhistória e as aspira ções de formalização que caracterizam ou em minha opinião 38 C Ginzburg e C Poni II nom e eil come scam bio ineguale e mercato storiografico Quaderni Storici 14 p 18190 1979 um breve manifesto inicial que lido hoje parece ter sido muito superado pelo trabalho subseqüente no cam po prático da microhistória 39 Revel Uhistoire au ras du sol em Levi Le pouvoir au village 1989 A ESCRITA DA HISTÓRIA 161 deviam caracterizar o trabalho do microhistoriador Isso é impor tante pois os conceitos que usamos na história e nas ciências sociais são com freqüência imprecisos e usados metaforicamente O próprio conceito de configuração por exemplo fórmula inteli gente e intuitiva de Elias pareceme típico no sentido de ser poderosamente expressivo mas permanece alusivo e não se movi menta em direção a algo que Gomo tentei mostrar neste artigo acredito ser possível expressar em termos mais formais N ão sei se esta apresentação da microhistória é confiável Gostaria de apresentar em termos mais ou menos bem caracteri zados um grupo de pessoas que na verdade tem se envolvido em muitos e variados debates na história social italiana nos anos 70 e 80 Talvez eu devesse ter explicado de modo mais amplo as várias opiniões diferentes envolvidas e as referências a um debate histó rico que se estende muito além do grupo italiano Devo por isso esclarecer as coisas informando o leitor de que meus princípios diretivos são fortemente pessoais este é muito mais um autoretrato que um retrato de grupo Eu não poderia ter feito de outra forma e por isso advirto o leitor ser este o caso HISTÓRIA ORAL Gwyn Prins O s historiadores das sociedades modernas industriais e maci çamente alfabetizadas ou seja a maior parte dos historiadores profissionais em geral são bastante céticos quanto ao valor das fontes orais na reconstrução do passado Nesta questão eu sou quase totalmente cético observou AJP Taylor causticamente Velhos babando acerca de sua juventude N ão Muitos podiam nessa altura ser um pouco mais generosos e admitir a história oral a história escrita com a evidência acumulada de um a pessoa viva de preferência àquela de um documento escrito como uma ilustração agradável e útil mas poucos aceitariam que tais materiais possam se tornar essenciais no estudo das sociedades modernas documentadas Acham que as histórias do povo de Terkel da Depressão e da Segunda Guerra Mundial jamais edificam hipóte ses históricas importantes sobre aqueles grandes acontecimentos A fragilidade implícita das fontes orais é considerada universal e irreparável por isso para as sociedades sem registros escritos o alcance convencional do discernimento é desanimador Em um extremo Arthur Marwick em The Nature of History admite que a Diretor de Estudos de História e M em bro do Emmanuel College 164 PETER BURKE história baseáda exclusivamente em fontes nãodocumentais como por exemplo a história de um a com unidade africana pode ser um a história m ais im precisa e m enos satisfatória do que um a extraída de docum entos m as de todo m odo é um a história N o outro extremo a m enos que haja docum entos não pode haver uma história adequada Desde o início da história isto é da história escrita segundo o m étodo de Ranke a África tem sido vista como o continente ahistórico par excellence Esta opinião foi consistentem ente sustentada desde a sentença de Hegel em 1831 de que ela não é parte histórica do m undo até a fam osa observação de Hugh TrevorRoper em 1965 que ofendeu por uma geração os clãs de africanistas anticoloniais que rapidamente se proliferavam na época decla rando que a África não possuía história apenas evoluções sem sentido de tribos bárbaras1 Esta não era som ente um a visão da direita ou apenas da África A s aldeias ifidianas exemplificando o m odo de produção asiático sim plesm ente assavam ao sol reproduzindose im produtivam ente intocadas pelas nuvens tem pestuosas do céu político na fam osa frase de M arx O s defensores marxistas dos movimentos anticoloniais desde então fazem m alabarism os tentando explicar que o V elho realmente não quis dizer q que claramente ele disse Tanto nos casos simpáticos quanto nos hostis é aplicado o teste rankeano básico Sob a hierarquia de dados rankeana quando forem disponíveis fontes oficiais escritas elas devem ser as prefe ridas Q uando não se dispuser delas temse de tolerar a segunda escolha buscandose as informações longe da fonte pura do texto oficial O s dados orais são nesses termos certamente a segun da melhor ou pior escolha pois seu papel é facilitar as histórias de segunda escolha sobre as comunidades com fontes escassas N es ses critérios Hegel TrevorRoper e M arx estão apenas sendo escrupulosos 1 Para a visão de um cam inho diferente que começa deste m esm o ponto ver H enk W esseling W hat is overseas history p 97131 A ESCRITA DA HISTÓRIA 165 Por parte daqueles que empregam as fontes orais tem havido dois tipos de reação a tal ceticismo uma de irritação a outra um pouco menos Paul Thom pson figura proeminente no movimen to da história oral uma autodescrição que já possui um halo evangelista que defende o valer das fontes orais na história social moderna como proporcionando presença histórica àquelas cujos pontos de vista e valores são descartados pela história vista de cima escreveu iradamente em seu manifesto The Voice ofthe Past que a oposição à evidência oral é muito mais fundamentada no sentimento do que no princípio A geração mais velha dos historiadores que ocupam as cátedras e detêm as rédeas é instintivamente apreensiva em relação ao advento de um novo método Isso implica que eles não mais comandem todas as técnicas de sua profissão Daí os comentários depreciativos sobre os jovens que percorrem as ruas com gravadores de fita2 Assim na batalha sobre as fontes orais na história contempo rânea a linguagem imoderada revela que profundas paixões estão comprometidas de ambos os lados M as quanto ao papel das fontes orais para a história das sociedades nãoalfabetizadas o mais renomado expoente da história oral na África Jan Vansina admitiu francamente o objetivo de Marwickem seu manifesto Oral Tradition as History Onde não há nada ou quase nada escrito as tradições orais devem suportar o peso da reconstrução histórica Elas não farão isso como se fossem fontes escritas A escrita é um milagre tecnológico As limitações da tradição oral devem ser amplamente avaliadas de modo que ela não se transforme em um desapontamento quando após longos períodos de pesquisa resultar uma reconstrução ainda não muito detalhada O que se reconstrói a partir de fontes orais pode bem ter um baixo grau de confiabilidade na medida em que não existem fontes independentes para uma verificação cruzada3 2 P Thom pson The Voice ofthe Past Oral History Oxford 1978 p 63 3 J V ansina O ral Tradition as History M adison W isconsin 1985 p 199 166 PETER BURKE Podese observar que a concordância está limitada às circuns tâncias em que as fontes orais têm de se estabelecer sozinhas e uma vez que Vansina demonstra tanto naquele livro quanto em suas muitas monografias que freqüentemente não é este o caso a principal estocada de seu argumento é de fato muito mais peremptória A questão é que o relacionamento entre às fontes escritas e orais não é aquele da primadona e de sua substituta na ópera quando a estrela não pode cantar aparece a substituta quando a escrita falha a tradição sobe ao palco Isso está errado As fontes orais corrigem as outras perspectivas assim como as outras perspectivas as corrigem Por que seria tão controvertida a utilização das fontes orais Paul Thom pson sugeriu que os velhos professores não gostam de aprender novos truques e resistem ao que percebem ser uma erosão da posição especial do método rankeano Isso pode ser verdade mas eu suspeito de que há razões mais profundas e menos estridentes O s historiadores vivem em sociedades alfabetizadas e como muitos dos habitantes de tais sociedades inconscientemente tendem a desprezar a palavra falada Ela é o corolário de nosso orgulho em escrever e de nosso respeito pela palavra escrita E por que não Com o Vansina observou a comunicação através da linguagem simbólica escrita é uma realização absolutamente estu penda O alfabetizado tende a se esquecer disso O s maoris da Nova Zelândia proporcionam um exemplo triste mas esclarecedor de uma ocorrência comum durante a expansão da Europa os povos analfabetos que observaram depois seguraram com uma energia feroz mas falharam no controle desse instrumento do poder O s fatos triviais são particularmente impressionantes Em 1833 talvez 500 maoris podiam ler depois de um ano 10000 Em 1840 ano do Tratado de Waitangi em que os dirigentes maoris perderam sua terra ou obtiveram o benefício da anexação britânica dependendo do nosso ponto de vista algo raro para um pakeha homem branco naquela época um viajante expressou temor pela saúde física dos maoris Em vez de se exercitarem o que é próprio dos selvagens nobres eles agora eram sedentários A ESCRITA DA HISTÓRIA 167 tendose tornado leitores Em 1837 o tipógrafo W illiam Colenso membro de um a famosa família de missionários concluiu a primeira edição de um Novo Testamento Maori e em 1845 os m issionários protestantes distribuíram quase tantos Novos Testa mentos Maoris quanto metade do número de maoris Em 1849 o Governador George Gray acreditava que a proporção de maoris alfabetizados era maior que a de qualquer população européia Que poder os maoris viam na escrita para buscála tão avidamente Era um poder triplo mas com o muitos povos recémconquis tados e recém e parcialmente alfabetizados os maoris só conse guiram atingir um a pequena parcela dele A primeira faceta do poder do liyro era totêmica O s maoris analfabetos levavam livros quaisquer livros para a igreja ou enfiavam as páginas em orifícios am pliados nos lóbulos de suas orelhas Era uma tenta tiva comumente observada nos primeiros estágios de um encon tro colonial de se obter o poder através da associação A segunda faceta era m anipuladora O m esm o Colenso utilizando o mesmo recurso com que imprimiu as escrituras em 1840 imprimiu o texto do Tratado de W aitangi N o encontro para discutir o Tratado ele não conseguiu convencer o Governador de que em bora todos os maoris pudessem ouvir e alguns pudessem ler as palavras do rascunho do inglês traduzido eles não poderiam e não podiam compreender o significado legal ou compartilhar os conceitos subjacentes de propriedade ou ainda entender as conseqüências da assinatura D on McKenzie declara que os maoris foram os que mais perderam e durante mais tempo na batalha sobre o controle da terra precisamente porque sua exposição à alfabetização na década anterior deu a im pressão de que eles podiam e realmente aceitaram os termos do jogo determinados pelo registro escrito mas não foram capazes de manipulálo com sucesso4 4 D F McKenzie The Sociology of a text oral culture literacy and print in early New Zealand em P Burke e R Porter ed The Social History of Language Cambridge 1987 p 16197 168 PETER BURKE A terceira jaceta do poder é formal e ativa É o poder de extemali zar de acumular e fixar o conhecimento Isso os maoris só adquiri ram em uma escala politicamente significativa na geração seguinte Esta é a verdadeira essência do milagre de escrever e em todas as comunidades a capacidade de cruzar a soleira do passivo para o ativo de passar de vítima a dominador da palavra escrita foi a mais revolucionária de suas conseqüências ainda que a mais ilusória Nas antigas pinturas nas cavernas de Lascaux na França entre as imagens de animais podem ser vistas séries de pontos dispostos aos pares Esses podem ser os primeiros exemplos de comunicação simbólica comunicação que é feita pelo indivíduo embora exista independentemente dele no tempo e no espaço A capacidade de realizar isso é um critério fundamental na distinção do Homo sapiens homem sábio de seus predecessores biológicos a primeira grande divisória na história humana O s pontos de Lascaux podem ser tanto quanto os machados polidos os primei ros prenúncios da revolução neolítica que é a base de toda a civilização subseqüente N o antigo Oriente Próximo o ferro o trigo e os animais domésticos eram subjugados5 Lá também ocorreu a principal invenção que libertou os potenciais da escrita A escrita simbólica foi criticamente importante capacitando o homem a transcender a nãopermanência da fala mas era difícil Foi a criação de um sistema alfabético de escrita que facilitou o desenvolvimento final de um a sociedade essencialmente alfabetizada que primeiro flores ceu na Grécia no século sétimo antes de Cristo Bertrand Russell chamou o nascimento da civilização na Grécia a coisa mais difícil de ser relatada em toda a história e a mais surpreendente Foi com certeza outra linha divisória mas talvez não tão importante quanto aquela representada pela revolução neolítica e talvez não merecen do uma linguagem tão elevada 5 O ferro foi também independentemente subjugado na Tailândia e provavelmente próxim o aos Grandes Lagos na África Central a importância da descoberta do Oriente Próximo está em sua combinação com o cavalo e com os grãos A ESCRITA DA HISTÓRIA 169 Jack Goody em The Domestication of the Savage Minei sugere que na busca da compreensão do poder da alfabetização é útil adaptandose a terminologia de Marx distinguir duas partes no modo de comunicação os objetivos e as relações de comunicação respectivamente as dimensões físicas e as socioculturais Além disso declara ele elas devem ser sempre consideradas em conjun to Nesses termos a Grécia ptíde ser situada em um contexto Nós nos encontramos em uma sociedade de literatura maciça que desfruta de um sistema alfabético de escrita e olhando para trás podemos distinguir três m odos de comunicação Podemos ver 1 Culturas orais em que a linguagem assume uma forma puramente oral Essas são tipificadas por linguagens locais são hoje em dia e têm sido há longo tempo relativamente raras 2 Culturas escritas em que a linguagem assume somente uma forma escrita porque a forma oral não mais existe Essas são tipificadas pelas línguas clássicas 3 Culturas compostas em que uma linguagem assume tanto formas orais quanto escritas para todo o povo ou para uma proporção dele Somos obrigados a categorizar mais e distinguir entre culturas universalmente alfabetizadas que nós muito facilmente admitimos de modo tácito mas que são historicamente incomuns e culturas restritamente alfabetizadas em que a maior parte das pessoas vive à margem mas sob o domínio do registro escrito A existência no interior de um a cultura composta é de fato típica atualmente para todas as grandes línguas do mundo As pessoas ou são individualmente analfabetas ou semianalfabetas reguladas pelo livro assim como os maoris no século dezenove grande parte do m undo islâmico ou o mundo pósalfabetizado no m undo novo da comunicação de m assa eletrônica dominadas pelo rádio pela televisão e pelo telefone M as os historiadores são pessoas alfabetizadas par excellence e para eles a palavra escrita é soberana Estabelece seus padrões e métodos Rebaixa as palavras faladas que se tornam utilitárias e sem interesse em comparação com o significado concentrado do texto A s nuanças e os tipos de dados orais não são levados em conta 170 PETER BURKE U m dos effeitos de se viver em uma cultura dominada pela palavra escrita é devido ao rebaixamento da palavra falada caute rizála Podemos possuir uma consciência detalhada de muitas linguagens escritas complexas especiais no inglês no correr dos tempos tivemos os m odos chauceriano e shakespeareano ou a linguagem especial do Rei James Bible ou do Livro de Orações todas as quais sobrevivem A o observar uma cultura oral ou composta temos de fazer um esforço consciente para tentar e retardar nosso passo de acesso e considerar o testemunho oral como potencialmente do mesmo modo complexo Devemos reconhecer a distinção entre a fala importante e a banal assim como a Tess dos Ubervilles de Thom as Hardy passou do dialeto de Dorset para o inglês padrão segundo seu interlocutor assim como os rastafarianos do Caribe merecem um registro especial para o canto religioso U m dos exemplos mais antigos e mais conhecidos de como as linguagens especiais do registro oral e escrito se entrelaçam em uma cultura composta é a tradição oral sobre o Corão o hadith Em um magnífico estudo dessa cultura islâmica composta Ernest Gellner mostrou como o baraka autoridade carismática dos santos ou Homens Sagrados das M ontanhas A das do Marrocos deriva para seus vizinhos analfabetos de sua interpretação oral da lei islâmica o sh ana M as o sharía é uma lei escrita e esses Hom ens Sagrados podem ser eles próprios pessoalmente analfabetos M as extraem seu carisma da associação com o poder da palavra do livro O s historiadores tradicionais orientados por documentos buscam três qualidades em suas fontes nenhuma das quais os dados orais manifestamente possuem Por isso eles não são levados a sério Exigem precisão na forma E importante verificar a natureza estável da evidência U m documento é um artefato N ão há dúvidas a respeito do que é fisicamente o testemunho a forma é fixa Ele também pode ser testado de várias maneiras fisicamente mais uma vez mas também através de uma bateria de meios comparativos textuais estruturais e outros Isso proporciona a segunda qualidade buscada a precisão na cronologia A ESCRITA DA HISTÓRIA 171 O s historiadores pensam em tempo serial como é medido pelo calendário e pelo relógio de pulso O s documentos podem oferecer belos detalhes nessa dimensão e assim podem permitir que se derive deles argumentos sutis A objetividade requerida pelos membros mais tradicionais d profissão histórica é colocada em grande parte sobre a suposta força de dedução extraída de um estudo concentrado da lógica da1 narrativa belamente estruturada M as como veremos logo a seguir o tempo serial não é o único tipo de tempo que os homens utilizam e há outras coisas além da mudança para explicar Em terceiro lugar uma vez que se é alfabetizado a escrita é fácil e deixa um rastro marcado e por isso vivemos em um oceano de mensagens escritas e consideramos a compreensão da mensagem de um texto lendo textos adicionais Testis unus testis nullus uma única testemunha não é testemunha Nós demonstramos por multiplicação Em cada um desses campos a evidência oral sem comprovação é considerada pobre A forma não é fixa a cronologia freqüentemente é imprecisa a comunicação muitas vezes pode não ser comprovada Para os historiadores que não gostam da história oral esses compõem campos suficientes para sua rejeição Mas outras duas razões são com freqüência adicionadas em relação a seus objetos de estudo U m a delas mencionada no início deste capítulo é que a história oral está autoindulgentemente preocupa da com questões tangenciais A outra é que não pode ser outra ela está enclausurada na irrelevância da pequena escala Creio que a queixa geral das premissas metodológicas sobre a precisão freqüentemente refletem uma crença de que os dados orais não podem explicar a mudança e que a mudança é o que mais os historiadores estudam M as isso não é totalmente verdade e em algumas circunstâncias em especial nas sociedades nãoalfabetiza das ou quase alfabetizadas a continuidade é muito mais interes sante e muito mais difícil de ser explicada do que a mudança A queixa da autoindulgência reflete um preconceito contra a história vista de baixo ou um medo de que uma vez que os dados orais sejam expressos na escala das percepções do indivíduo o historia 172 PETER BURKE dor seja enganado por eles na pequena escala possivelmente os interprete mal e assim seja incapaz de extrapolar de maneira eficiente Em suma ficaríamos irremediavelmente atravancados A história oral só nos relata o trivial sobre as pessoas importantes e as coisas importantes através de sua própria visão das pessoas triviais Será isso realmente verdade Evidentemente foi para destruir esse tipo de postura de rejeição que a artilharia do movimento da história oral deslocouse para o campo de batalha Ele pode ter sido superentusiasticamente bombardeado nos disparos iniciais mas as questões que estão em disputa são reais e estão igualmente vinculadas às funções da memória e aos propósitos da história nas sociedades com modos de comunicação diferentes H á outros testes além dos rankeanos a serem aplicados Para julgar essas queixas e verificarquem está escamoteando quais suposições sobre os propósitos do historiador devemos ser precisos na definição dos termos para evitar erros de categoria Por isso imediatamente distingo dois tipos e dentro de um tipo seguindo Vansina quatro formas diferentes de dados órais e devemos estar preparados para encontrar argumentos diferentes sobre cada um deles em diferentes tipos de sociedade M ais precisamente o que é evidência oral N o início eu a defini como a evidência obtida de um a pessoa viva em oposição a fontes inanimadas mas isso não está suficientemente detalhado Há a tradição oral Em De la tradition orale o livro que mais que qualquer outro revolucionou nossa percepção da tradição oral Jan Vansina a definiu como o testemunho oral transmitido verbal mente de uma geração para a seguinte ou mais a ênfase é minha Tal material é a substância daquilo que possuím os para reconstruir o passado de uma sociedade com uma cultura oral A tradição oral tornase cada vez menos pronunciada à medida que a cultura se move para a alfabetização maciça embora alguma tradição oral possa persistir em um ambiente predominantemente alfabetizado O outro tipo de fonte oral é a reminiscência pessoal Esta é uma evidência oral específica das experiências de vida do informan A ESCRITA DA HISTÓRIA 173 te Tal evidência não passa de geração para geração exceto de modo altamente esmaecido como por exemplo em narrativas familiares privadas N a década de 1870 meu avô materno trabalhava como ajudante de jardineiro em uma mansão em Cornwall O mordomo era um sádico que costumavacolocar gatinhos no fogão quente da cozinha e se divertia assistindo à sua agonia Compreensivelmente meu avô não esqueceu esse comportamento e na verdade deixou a casa para trabalhar nas minas de estanho por causa daquele homem Esse fragmento eu ouvi de minha mãe A reminiscência pessoal direta compõe a carga esmagadora da evidência oral utilizada por Paul Thom pson e o movimento da história oral A tradição oral distinguese da reminiscência de outra maneira A transmissão de grandes quantidades e formas especiais de dados orais de geração para geração requer tempo e um esforço mental considerável por isso deve ter algum propósito Em geral acre ditase que o propósito seja estrutural Alguns teóricos como Durkheim encarariam o propósito na criação e transmissão da história oral desde que sistemática e dependentemente relaciona dos à reprodução da estrutura social Outros veriam propósitos cognitivos mais amplos e mais autônomos Mas quaisquer que sejam eles antes de poderem ser considerados devese ainda subdividir a tradição oral em quatro tipos6 Automática EXPRESSÃO congelada NãoAutomática livre congelada POESIA INCLUINDO CANÇÕES LISTAS ÉPICA FORMA e livre FÓRMULAS NARRATIVA nomes provérbios etc 6 Este quadro é retirado de V ansina O nce upon a time O ral traditions as history in África Daedalus 2 p 44268 primavera dê 1971 na p 451 174 PETER BURKE Se um relato é aprendido automaticamente então as palavras pertencem à tradição Se a forma de apresentação é fixa então a estrutura pertence à tradição Avaliarei uma categoria de cada vez O s materiais aprendidos automaticamente de forma congela da realmente apresentam ao historiador os menores problemas de verificação pois uma crítica textual rigorosa de versões da rrtesma tradição abrirão caminho para se chegar a um cerne comum de forma e de palavras As regras de forma e linguagem podem ser identificadas O s poemas de louvor africanos dos quais os mais conhecidos são os isibongo zulus são bons exemplos desse gênero As palavras a forma e a entonação são todas estritamente definidas Freqüentemente os poemas de louvor descrevem as relações entre o governante e o governado eles mediam um relacionamento que não poderia ser conduzido na linguagem coloquial Assim sua estrutura reflete seu propósito Eis um extrato de um poema desse tipo em louvor a Lozi que recolhi nó oeste de Zâmbia E apresentado em luyana o antigo idioma tão próximo da linguagem cotidiana o siLozi quanto o anglosaxão do inglês moderno Embora eu esteja próximo a você não posso lhe falar Mas não me importo pois sei de onde vem minha família Venho de uma linha de parentesco que está ligada a você Toda canção tem sua origem Quando o rei está na corte ele é como um elefante na vegetação espinhosa como um búfalo na floresta densa como um jardim de milho em um pequeno outeiro na planície alagada do Zambezi Governe bem o país Se o país morrer você será responsável Se ele prosperar terá orgulho de você e o aclamará O s materiais provenientes de fórmulas7 são especialmente úteis quando se está tentando descobrir as dimensões de uma cultura popular U m estudo de provérbios é freqüentemente um modo 7 A expressão do original é form ulaic m aterial im possível de ser traduzida um a vez que não existe registro da palavra formulaic nos dicionários de língua inglesa Considerandose que o sufixo aico de origem latina significa referência pertinência proveniência optam os pela tradução m aterial proveniente de fórm ulas N T A ESCRITA DA HISTÓRIA 175 eficiente de se começar a fazer um tal mapeamento tanto no presente de uma cultura oral ou composta quanto em seu passado Isso porque não é fácil falsificar sua expressão ou se estiverem falsificados fica claro que isso foi feito Há outra ilustração também relacionada ao reinado de Loziem Zâmbia O século colonial na África foi como em qualquer outro lugar tumultuado Grandes forças de mudança afetaram a sociedade lozi assim como muitas outras Por isso se se percebem elementos que permanecem constantes apesar de tais pressões isso é particularmente interes sante e este é um dos exemplos que os exibe Em 1974 eu estava vivendo em Bulozi e costumava coletar provérbios em um caderno de anotações de início principalmente por curiosidade U m provérbio comum referese por analogia ao reinado Está escrito em luyana Nengo minya maloto wa fulanga meí matanga musheke ni mu ku onga O hipopótamo rei agita as águas mais profundas do rio as areias brancas dos locais rasos o traem Encontreio novamente alguns anos depois mas em um con texto diferente havia se transformado em um canto antifonal por um culto de cura misturando o moderno siLozi com o antigo luyana Curandeiro canto Mezi mtua nuka ki tapeio A água do rio é uma oração Curandeiro canto Kubu mwana lilolo Pequeno hipopótamo filho do redemoinho Coro Itumukela mwa ngaia Ele emerge no meio do rio Curandeiro Musheke ni mu kongal As areias o traem Coro Itumukela mwa ngala Portanto tivemos duas variantes compartilhando o mesmo tema importante e ambas firmemente na época póscolonjal O exemplo mostra com clareza como os cristais da expressão perma necem inalterados no interior de um caleidoscópio de estruturas em mutação adaptado a propósitos particulares A força 4 material proveniente de fórmulas é percebida quando aquelas versões modernas são colocadas ao lado do mesmo provérbio exceto nas formas coletadas por um missionário francês bem no início da experiência colonial na década de 1890 wa fulanga meyi matungu musheke ni mu konga e Mbu ku m wana lilolo wa twelanga matungu musheke ni mu konga8 Tal exemplo vivo de persistência na forma de uma fonte oral testemunha sua contínua reprodução na cultura popular e que por sua vez teste m unha sua continuidade na posse de alguma função cultural persistente9 Isso conseqüentemente suscita uma questão impor tante sobre a memória seletiva nas fontes orais o que veremos adiante Alguns materiais provenientes de fórmulas são menos propen sos que outros a tal memória seletiva Por exemplo a identidade de alguém em sua cultura pessoal é freqüentemente transmitida e expressa publicamente em uma descrição semiótica dos limites físicos Por isso se decodificada a paisagem de sua terra descrita por um migrante pode demonstrar mais vivamente a reprodução cultural Isso está brilhantemente exibido em outro estudo de caso africano Siyaya the Historical Anthropology of an African Laridscape realiza tal decodificação e a utiliza para desafiar a suposição convencional de que a migração leva à quebra de relaciona mentos10 O s principais problemas do uso e do mau uso da tradição oral estão relacionados às tradições não apreendidas de modo automá tico as epopéias e as narrativas A forma fixa da épica implica que a maior parte da épica africana é narrativa nesta esquematização 8 Para um a exposição adicional do visível e do oculto na história de Lozi ver G Prins The Hidden Hippopotamus Reappraisal in African History the early Colonial Experience in Western Zambia Cambridge 1980 9 Para um a discussão adicional da importância e da utilidade dos provérbios ver J Obelkevich Proverbs and social history em Burke e Portered The Social History of Language p 4372 10 David W C ohen e ES Atieno O dhiam bo Siyaya the Historical Anthropology ofan African Landscape Londres 1988 e um a crítica em African Affairs 188 p 5889 outubro de 1989 A ESCRITA DA HISTÓRIA 177 Por épica quero me referir aqui à épica homérica a poesia heróica composta oralmente segundo as regras E claro que os poemas foram escritos subseqüentemente e não podemos saber o quanto foram alterados neste ponto ou subseqüentemente mas a estrutura é bastante forte para transcender àquele processo E uma colcha de retalhos uma rapsódia literalmente costurada do verbo grego pooruá de modcí que aquela repetição das fórmulas desempenha um papel na produção da forma da obra tanto para o poeta quanto para a audiência Cerca de um terço da Iliada consiste de versos ou blocos de versos que se repetem mais de uma vez O mesmo acontece com a Odisséia Ocorrem vinte e cinco expressões provenientes de fórmulas nos primeiros vinte e cinco versos da llíada Por exemplo a aurora é quase sempre pintada de rosa Atenas tem olhos de coruja a ilha de ítaca é rodeada de m ar Aquiles saqueando a cidade e mais famosamente o mar é vinho escuro M as não é uma repetição monótona Há trinta e seis epítetos diferentes para Aquiles escolhidos e empre gados por meio de regras fixas11 Assim de tais fragmentos de material o poeta costura uma nova obra embora os retalhos individuais possam ser velhos e bastante conhecidos M as essa categoria e esse método mais uma vez suscitam questões óbvias sobre a limitação da quantidade de conhecimento que a tradição oral pode conter ou transmitir Tudo isso não c estropiadamente restritivo M esmo com uma variedade de alternativas tal composição oral não pode avançar o conhecimento ou a precisão E manietada pela nãopermanência da palavra falada e pela capacidade limitada da memória humana mesmo quando auxiliada por artifícios mnemô nicos assim as culturas orais não podem inovar e devem esquecer Esse ponto de vista está no âmago do argumento do Professor Jack Goody em The Domestication of the Savage M ind A mente selva gem tornase domesticada quando os meios de comuricação tom am possível mudar o m odo 11 M I Finley The World ofOdysseus Penguin edition 1962 p 34 178 PETER BURKE A escrita e mais especificamente a alfabetização tornou possível investigar o discurso de uma maneira diferente proporcionando à comu nicação oral uma forma semipermanente essa verificação favoreceu o aumento do escopo da atividade crítica e daí da racionalidade do ceticismo da lógica Aumentou as potencialidades da crítica porque a escrita expunha o discurso diante dos olhos de uma pessoa de uma maneira diferente ao mesmo tempo aumentava a potencialidade do conhecimento cumulativo especialmente de um tipo abstrato de conhecimento O problema do armazenamento da memória não mais dominava a vida intelectual do homem A mente humana estava livre para estudar o texto estático em vez de estar limitada à participação na expressão dinâmica12 Embora alguns historiadores orais pudessem discutir com Goody a questão da libertação intelectual da escrita muitos especialmente Vansina em Oral Tradition as History discutiriam a extensão da questão de Goody dizer que as tradições orais são por isso também homeostáticas que aquilo que é inconveniente ou não possui mais importância funcional é esquecido Ele sugere que uma amnésia estrutural aflige as culturas orais que são por isso forçadas a ser seletivas devido às limitações da memória e assim as tradições não podem ser bons dados históricos N a verdade tal amnésia estrutural raramente é total Em muitas obras iniciais culminando em sua obraprima sobre a história précolonial da África Central colonial intitulada Paths in the Rainforest13 V ansina mostra como se pode desenredar e decodifi car as várias partes de uma tradição presentes no final da cadeia de transmissão Envolve a comparação de variantes e o entrelaça mento das fontes orais com outras de proveniência diferente A técnica de comparação textual interna para derrotar a homeostase é bem conhecida O s estudiosos islâmicos avaliam versões do hadith estabelecendo o valor de cada um dos elos da cadeia isnâd e não aceitarão qualquer tradição para a qual os dados sobre o isnâd não estejam presentes e razoavelmente completos Mas mesmo derrotandose a homeostase e estabelecendose quais tradições 12 J Goody The Domestication of the Savage Mind Cam bridge 1977 p 37 13 V ansina Paths in the Rainorest M adison W isconsin 1990 A ESCRITA DA HISTÓRIA 179 estão presentes em um testemunho isto é buscandose a precisão da forma como serão elas datadas A precisão da cronologia era a segunda das três qualidades buscadas pelos historiadores orientados pelos documentos Tem sido na tentativa de satisfazeressa exigência e assim obter os aparatos da respeitabilidade que os dados orais têm sido mais seriamente mal utilizados O problema é facilmente ilustrado A categoria da narrativa freqüentemente contém três tipos de transmissão Há tradições de gênesis histórias dinásticas e relatos de organização social Hoje em dia esses três tipos de narrativa não mais existem todos dentro dos mesm os conceitos de tempo embora em questões complicadas a apresentação da evidência possa misturar os tipos de material como espécies diferentes de carne em uma salsicha TEMPO NÃO ESTRUTURADO Tradições dc gênese TEMPO TRADICIONAL scqüenciado mas não serial Histórias dinásticas Relatos de estrutura de governo TEMPO SERIAL Edward EvansPritchard o grande antropólogo que estudou o povo nuer do sul do Sudão antes da Segunda Guerra Mundial escreveu um ensaio embrionário descrevendo o que ele denomi nou de tempo ecológico ou seja o tempo cíclico em que os homens vêem sua passagem na mudança das estações não no passar dos anos Amplificando esse ponto o historiador social EP Thom pson declarou que a mudança das sensações de tempo por tarefas específicas um cozimento de arroz meiahora em Madagascar um assar de milho quinze minutos na Nigéria ocidental um par de Credos no Chile católico do século dezessete para a geral culturalmente autônoma e proposital disciplina de tempo do relógio foi parte da consciência social engendrada pela sociedade industrial e ao mesmo tempo para ela 180 PETER BURKE fundamental14 Imediatamente podem ser imaginados os abusos dos dados orais os historiadores eruditos tentaram extrair crono logias de tempo serial das tradições que existem no tempo tradi cional Ali a importância passada ou presente do sujeito pode afetar sua posição Por exemplo coisas muito importantes podem ser consideradas bastante antigas ou muito recentes aproximan dose ou distanciandose a visão dependendo do contexto e dos propósitos atuais M as os historiadores exploradores perseguindo a precisão cronológica com a convicção e a devoção dos cavalheiros colecio nadores do século dezenove não pensaram nisso Eles utilizaram digamos assim uma lenda real Contavam o número de reis mencionados Consideravam que uma geração alcançasse por exemplo trinta e três anos Multiplicavam um dado pelo outro e pronto eis as datas para as culturas orais U m historiador em particular David Henige provou e explorou tais ingenuidades The Chronology ofO ral Tradition eficazmente apresentando o subtítulo Quest for a Chimera se estende desde os reinados africanos até as relações de reis assírios e do mesmo modo que dissemina a iconoclastia e o ceticismo Henige também dissemina alguma esperança15 Para alguém que compreenda com que espécie de tempo se está lidando e que tipo de propósitos sustentou a tradição na memória podese ainda que grosseiramente tomar medidas defensivas Tal conhecimento é quase sempre contextual U m a medida é mais importante que a maioria U m dos capítulos mais importantes de Henige tem o título de History as present politics O reconhecimento do fato da invenção da tradição foi uma das introspecções mais destrutivamente criativas na história extraeuropéia da última geração acadêmica e na utiliza ção dessa idéia por exemplo por David Cannadine para reexa 14 EE EvansPritchard The Nuer Oxford 1940 EP Thom pson Tim e W ork Discipline and Industrial Capitalism em M W Flinn e T C Sm out ed Essays in Social History Oxford 1974 p 401 V er também Jacques Le Goff Au Moyen Age temps de 1Église et temps du m archand Annales 15 p 417331960 15 D Henige The Chronology of Oral Tradition Q u estfora Chimera Oxford 1974 A ESCRITA DA HISTÓRIA 181 m inar os mitos da m onarquia britânica vemos uma importante importação metodológica na historiografia européia da história extraeuropéia onde as exigências interdisciplinares e lingüísticas mais severas impulsionaram grande parte do pioneirism o meto dológico nos estudos históricos durante a última geração aca dêm ica16 A invenção da tradição não é surpreendente nem desonesta especialmente em culturas sem um critério único de verdade E semelhante à autodefesa do prisioneiro que se finge de bobo ou de surdo vivamente explorado por Alexander Solzhenitsyn em One Day in the Life of Ivan Denisovitch A s situações coloniais são similares pois são também marcadas por extremos de poder e ausência de poder Em algumas circunstâncias especiais nenhuma recuperação é possível nas totalitárias podem ser a simples seqüência e o ritmo do tempo em si que são distorcidos nos contextos coloniais os relatos da estrutura social e da tradição dinástica são mais comumente reinventados Há alguns tipos de memória que podem ser para sempre irrecuperáveis devido à maneira de sua perda Tal foi o caso concluído pelo escritor italiano Primo Levi um dos sobreviventes de Auschwitz em relação ao Holocausto The Drowned and the Saved seu último livro é uma das mais belas reflexões sobre a natureza da vida e o m odo de operação psicológica dos campos de morte que a posteridade possui M as nele Levi estabeleceu a excentricidade de sua própria memória e a natureza conseqüente mente defeituosa de sua interpretação Por definição ele não poderia recuperar a memória das profundidades onde a maioria estava afogada dali ninguém retornou e ele foi um dos poucos que se salvou N o fim tanto para ele quanto para o grande psicanalista freudiano Bruno Bettelheim outro sobrevivente dos campos parece que a carga da sobrevivência foi muito pesada e 16 D Cannadine The Context Performance and M eaning o f Ritual the British M onarchy and the invention o f tradition em T O Ranger e E Hobsbaw n ed The Invention of Tradition Cam bridge 1983 p 101 64 a m esm a questão é levantada por W esseling na p 110 182 PETER BURKE ambos em sua velhice cometeram suicídio Talvez para eles o passado não pudesse ser reinventado nem comunicado Era lite ralmente inenarrável17 Um passo mais próximo de nós que o silêncio estabelece a reconstituição da substância O historiador da experiência soviéti ca Geoffrey Hosking ilustrou a situação totalitária com uma citação da Rádio Armênia Todas as verdades fundamentais sobre a vida soviética são ilustradas por anedotas orais muitas delas originadas da mítica Rádio Armênia Assim perguntase à Rádio Armênia E possível prever o futuro Resposta Sim isso não é problema sabemos exatamente como será o futuro N osso proble ma é o passado esse está sempre m udando 18 Desde o advento da glasnost na União Soviética a batalha pelo controle da memória tem sido amarga U m a facção na verdade se intitula Pamyat Memó ria a outra inteiramente oposta ao arder e nacionalismo eslavo e ao antisemitismo da Pamyat chamase Memorial esta facção sendo estimulada pelo falecido acadêmico Andrei Sakharov como uma forma de resgatar as vítimas de Stálin do esquecimento do silêncio A recuperação da memória popular da Sibéria da mente das pessoas tomouse uma atividade proeminente e de alguma forma uma atividade política marginal na segunda Revolução Russa A reforma do poder fez com que uma comissão relatasse a todo o Congresso dos Deputados do Povo no final de 1989 o resgate e a reinterpretação de um episódio crucial o pacto HitlerStálin19 A natureza da história é combatida ferozmente também na GrãBretanha Em 1985 a Inspetoria de Sua Majestade Her Majestys Inspectorate HMI publicou um parecer sobre o que 17 Primo Levi The Droumed and the Savecl Londres 1988 Michael Ignatieff A cry for help or o f release Observer 1 de abril de 1990 sobre o suicídio de Bruno Bettelheim em 13 de março de 1990 18 Geoffrey A Hosking Memory in a totaliarian society the case o f the Soviet U n io n em Thom as Buder ed Memory Oxford 1988 p 115 19 O n the political and legal assessm ent o f the SovietGerman NonAggression Treaty o f 1939 Relatório ao Segundo Congresso dos Deputados do Povo pelo Presidente da C om issão Alexander Yakovlev 23 de dezembro de 1989 M oscou 1990 A ESCRITA DA HISTÓRIA 183 as crianças deveriam aprender O Blue Book da HMI sintetizava grande parte do que era mais inovador nas escolas durante os vinte anos anteriores um trabalho como o projeto de história do Conselho Escolar visando ensinar as crianças de 11 a 14 anos de idade a discriminar a boa evidência da má evidência pretendia reconhecer a legitimidade de muitos tipos de fontes incluindo a oral para questionar todas as verdades aprendidas para empatizar com as situações difíceis das pessoas no passado como um estímulo essencial à imaginação histórica30 Da mesma forma que os revolucionários modernos na U nião Soviética os Inspetores compreendiam exatamente o significado político de um estudo vigoroso da história e por isso colocaram na contracapa do livro a seguinte frase de Nikita Khruschev O s historiadores são pessoas perigosas São capazes de transtornar tudo O governo da Sra Thatcher aboliu o Conselho Escolar Houve uma tentativa encolerizada prolongada e mal sucedida da Sra Thatcher e da direita radical para estabelecer como termos exclu sivos aqueles do G rupo de Trabalho de História de Saunders W atson de 1990 recomendando ao Departamento de Educação e Ciência o conteúdo do currículo nacional britânico seu programa triunfalista whiggisca orientado por documentos e sumários pro vincianos de história política e constitucional britânica com uma ênfase no aprendizado mecânico das datas e dos fatos e uma aversão à imaginação histórica Podese encontrar aí também a negação à legitimação da história oral O G rupo de Trabalho relatava em termos similares àqueles da HMI em 1985 para ser logo abruptamente derrubado por decreto ministerial quando o Sr Kenneth Clarke recémnomeado para o ministério impôs as opiniões rejeitadas pelo Grupo de Trabalho orientando a profissão e também o Blue Book da Inspetoria Na ocasião da redação do documento fevereiro de 1991 houve confusão e ressentimento pelo feto de tal atuação ser permitida na profissão21 20 History in the Primary and Secondary Years an H M I View Londres 1985 21 M artin Kettle The great batde of history Guardian 4 de abril de 1990 p 23 184 PETER BURKE Esses episódios consideram dois pontos A Sibéria da mente não é apenas o terreno do silêncio da morte mas também uma negação viva da legitimidade Renuncia à mudez em prol da condescendência dissecativa e da hegemonia proscrita dos atuais governantes Nisso os britânicos ecoam friamente o debate sovié tico Em segundo lugar é ressaltada a evidência da fragilidade e sob pressão contemporânea da maleabilidade do passado A escala de tal invenção pode ser grandiosa O povo tiv da Nigéria Central não era composto de cavalheiros N o início da década de 1900 eles combateram os soldados brancos que estendiam linhas telegráficas através de sua terra assim obten do uma reputação de serem bárbaros traiçoeiros e é claro profundamente pagãos Além disso cheiravam à anarquia pois não possuíam uma hierarquia clara de chefes Por isso quando em 1907 um residente britânico Charles Fprbes Gordon descreveu sua sociedade pela primeira vez percebeu e registrou a natureza segmentar de seus clãs M as na ocasião da Primeira Guerra Mundial a administração britânica na Nigéria foi bastante amplia da e achou conveniente parar de olhar os tivs como tivs em vez disso anexandoos a seus vizinhos mais numerosos os hausas Obsequiosamente os chefes tivs se hausaíram aos olhos colo niais falavam hausa vestiamse como os hausas etc M as em 19301 os tivs foram visitados e estudados por RC Abraham antropólogo do governo e RO Downes funcionário do distrito O relatório AbrahamDownes apresentava uma visão nova dos tivs Eles viram a sociedade acéfala descrita por Forbes G ordon em termos razoavelmente hierárquicos refletida em um novo conjunto de conselhos hierarquizados Mas a legitimação desses conselhos e de seus chefes impediu uma geração mais jovem de tivs alfabetizados de um amparo político potencial Assim eles por sua vez começaram a defender um a nova causa aquela do T or Tiv um chefe supremo tiv para comandar os conselhos e por criticando o furor político sobre o Relatório do Grupo de Trabalho de História publicado depois de muito atraso em 3 de abril de 1990 A ESCRITA DA HISTÓRIA 185 coincidência exatamente congruente com o modelo normal da autoridade nativa comandada por funcionários britânicos treina dos na escola de governo indireto de Lord Lugard Outra investi gação antropológica em 1940 decidiu que os tivs eram realmente governados por patriarcas que formavam uma pirâmide de autori dade Será que havia realmente um chefe supremo nativo Em quarenta anos a percepção da estrutura social tiv ficou de pernas para o ar Depois no final dos anos 40 foram para lá mais dois antropólogos os Bohannans e seu estudo clássico dos tivs como uma sociedade de linhagem segmentar como aquela descrita em seu primeiro contato com eles ainda prevalece C ada pesquisador europeu buscava o verdadeiro tiv e cada vez que os forasteiros vinham com uma nova imagem alguma constituinte tiv que via interesse nisso reinventava seu passado para ser amável para com eles Só temos conhecimento disso porque um historiador D C Dorward percebeu que os pesqui sadores participavam reciprocamente da história e porque ele sabia que a invenção de grande parte da tradição era uma possibilidade22 Claramente a defesa contra a tradição inventada é exatamente essa ter uma visão menos confiante da credibilidade tanto do testemu nho oral sem suporte quanto dos predecessores acadêmicos a menos que eles tivessem demonstrado sinais de estarem conscien tes do problema O problema também não está limitado apenas à história oral Outro exemplo confirma a objeção de Vansina à imagem das primadonas e de suas substitutas Ele mostra que uma visão muito confiável de fontes escritas sem suporte combinada com demasia do respeito para com os historiadores pode ser uma combinação igualmente enganadora Aplicando a dúvida sistemática Julian Cobbing convincentemente pôs em questão três dogmas centrais da história sulafricana a visão popular do matabele de Zimbabwe com o uma cultura de guerreiros o mito do nacionalismo zim 22 D C Dorward Ethnography and administration the study o f AngloTiv working m isunderstanding Journal of African History 15 p 457771974 babweano dfe que seu antecedente direto está nas insurreições de 1896 opinião predominantemente enraizada nos pontos de vista do historiador britânico orientado por documentos T O Ranger e mais recentemente a significação e existência real do Mfecane aquela dispersão dos povos que se pensava haverem resultado da destruição do Estado zulu em meados do século dezenove23 N o caso das insurreições sendo o Zimbabwe moderno uma cultura composta a interpretação nacionalista de Ranger penetrou então no registro oral dos pessoalmente analfabetos e assim tornouse a resposta a perguntas sobre aqueles acontecimentos obscurecendo qualquer outra tradição Embora possa ser útil compreender as razões por que as tradições são inventadas também é desanimador testemunhar a perda da possibilidade de algum dia se construir um relato confiante de acontecimentos importantes como esses devido a um a técnica historiográfica inadequada Isso também não é desculpado pelo reconhecimento da nècessidade que tal comu nidade tem daquilo que o próprio Ranger denominava de história usável 14 O reconhecimento da vulnerabilidade dos historiadores orien tados por documentos a tais malogros suscita algumas apreensões quanto ao mau uso dos dados orais na busca da cronologia serial Em ambos os casos a solução é aquela com a qual Vansina rejeitou a analogia operacional o uso de fontes múltiplas convergentes e independentes Com respeito à cronologia a partir da análise interna as tradições orais formais podem produzir uma história seqüenciada m as não necessariamente com uma datação rigorosa Para maior precisão devese buscar uma correlação com as fontes 23 J Cobbing The evolution o f the Ndebele Am abutho Journal of African History 15 p 60731 1974 idem The absent priesthood Another look at the Rhodesian Risings o f 18967 Journal of African History 18 p 6184 1977 idem The M fecane as Alibi Thoughts on Dithakong and M bolom po Journal of African History 29 p 487519 1988 T O Ranger Revolt in Rhodesia 18967 edição em brochura Londres 1979 24 T O Ranger Towards a usable african past in C Fyfe ed African Studies since 1945 A Tribute to Basil Davidson Londres 1976 p 1730 A ESCRITA DA HISTÓRIA 187 externas A evidência arqueológica eclipses do sol ou da lua ou calamidades naturais importantes são pontos de referência co m uns M itos de gêneses histórias dinásticas histórias familiares de pessoas comuns provérbios poesias de louvor épicas e narra tivas podem nos propiciar algum acesso ao interior de um a cultura e de um a época Q uando presos às fontes externas podemos nos defender contra a tradição invenotada apresentar algumas datas do tempo serial e desse modo reconstruir esse tipo de passado Permanece uma espécie de narrativa a ser considerada Está deliberadamente colocada em uma categoria separada porque se refere ao indivíduo isolado e às suas experiências Tal reminiscên cia pessoal é o principal dado utilizado pelos historiadores ao estudarem as sociedades dominadas pela palavra escrita Seu alcance estendese do início da possibilidade biológica cerca de oitenta anos em diante Embora seja o tipo primário de dado oral a reminiscência não é o único tipo nas sociedades alfabetizadas A tradição formal no sentido já discutido ainda persiste U m exemplo clássico disso está na obra de lona e Peter Opie Em In Lore and Language of Schoolchildren eles estabelecem que um enigma de um parque infantil pode atravessar intacto por longas cadeias de transmissão C om o a geração das crianças em idade escolar é mais curta que aquela dos portavozes lozi dos provérbios reais já referidos um ditado que é transmitido durante 130 anos atravessará vinte gerações de crianças em idade escolar ou seja 300 narradores isso eqüivale a mais de 500 anos entre os adultos25 Esse cálculo obrigatoriamente enfatiza que a continuidade mantida pela ener gia de tal renovação ininterrupta requer mais explicação do que mudança D os 137 cantos registrados em 1916 nos London Street Games de Norm an Douglas os Opies encontraram 108 em uso nos anos 50 Em certo caso um poema rimado sobre um grana deiro os Opies têm versões que abrangem os elementos cardeais estáveis a 1725 De modo contrário a reminiscência pessoal não 25 I e P O pie The Lore and Language of Schoolchildren Oxford 1959 p 8 188 PETER BURKE está ausente na sociedade nãoalfabetizada mas seu lugar é na sociedade alfabetizada onde ocupa maior preocupação e interesse Será que a reminiscência pessoal é apenas uma vangloria dos bons velhos tempos Sim e não Grande parte da crítica dos historiadores orientados por docu mentos segue a linha de que a reminiscência das pessoas famosas está fácilmente propensa à autojustificativa conveniente ex pose facto e aquela das pessoas não importantes a lapsos de memória Seja em que caso for a memória é sabidamente indigna de confiança e um teto inseguro quando comparada aos registros inanimados e imutáveis dos documentos através dos anos cm questão O primeiro ponto como podem atestar as estantes de autobiografia política é bem aceito o segundo não tanto pois as fontes documentais não são tão involuntária e naturalmente lega das a nós como se poderia pensar A época em que o quinto Conde de Rosebery confiou seus pensamentos mais íntimos a seu diário quando o governo levava em consideração o pensamento e os memorandos manuscritos de um grupo discreto e identificável e quando o historiador podia com razoável confiança esperar encontrar e ler todos esses docu mentos e acreditar que poderia crer neles terminou há um século atrás Desde então o volume dos documentos oficiais ficou fora de controle Tem de haver seleção para a preservação de forma que os extirpadores tiveram de operar sistematicamente e por isso o que os arquivos oficiais contêm pode ser seja por intenção consciente em geral maldosa ou em virtude de escolhas erradas do que preservar ou do que queimar tão enganador quanto as outras fontes U m a extensa lição das coisas é proporcionada pelo contraste entre a arbitrária e cada vez mais secreta política de testemunho dos departamentos de governo britânicos e o acesso permitido aos assuntos britânicos através dos arquivos americanos pelo Ato de Liberdade de Informação N a época da Guerra das Malvinas em 1982 por exemplo os documentos relacionados às primeiras discussões sobre as ilhas e especialmente uma opinião do Departamento do Exterior datada dos anos 30 que põe em A ESCRITA DA HISTÓRIA 189 dúvida a solidez da reivindicação britânica à soberania foram repentinamente retirados do acesso público embora não antes que um historiador vigilante e como se comprovou corretamente desconfiado conseguisse realizar uma cópia a lápis da opinião o que subseqüentemente foi eneregue à imprensa despertando a ira da Sra Thatcher O processo de Oliver North auxiliar do Presidente Reagan e administrador do caso sombrio do Irã e dos Contras da Nicarágua forneceu uma sinistra ilustração do colapso das suposições dos historiadores tradicionais com respeito aos documentos Um a corte fascinada ouviu em sessões prolongadas de retaliamento da glamurosa secretária do Sr North improvavelmente chamada Fawn Hall sobre o escamoteamento de documentos incriminado res do Pentágono em suas botas e em suas roupas íntimas e também sobre a tentativa de North de evitar deixar qualquer rastro documental utilizando redes de computador para enviar suas mensagens Infelizmente para ele comprovouse possível a recupe ração de mensagens apagadas dos bancos de computação Mas a questão é simplesmente da volta à tecnologia oral via informação eletrônica para a tomada de decisão primária Q uando os docu mentos sobreviverem e puderem ser lidos freqüentemente vão se referir a decisões tomadas em conversações telefônicas De vez em quando a distância entre o texto original oral e o subseqüente texto oficial escrito vem acidentalmente à tona Na GrãBretanha durante a grande depressão um importante comitê de finanças sentouse diante da presidência do Juiz Macmillan A evidência publicada do comitê é extensivamente citada em obras padronizadas sobre o período U m a delas é Politicians and the Slump de Robert Skidelsky26 U m a testemunha particularmente importante diante do comitê foi Montagu Norman Diretor do Banco da Inglaterra mas a versão pública do testemunho de N orm an não foi o que ele realmente disse A subm issão ral de 26 R Skidelsky Politicians and the Slump the Labour Government of 192931 Londres 1967 190 PETER BURKE Norman foi pesadamente reelaborada para o registro Sabem os disso por acidente A cópia do Departamento de Registros Públicos do testemunho verbal foi destruída mas outra cópia foi guardada nos arquivos do Banco da Inglaterra onde um historiador econô mico buscando outra coisa encontroua por acaso Nos Estados Unidos é bemconhecida a extensão em que os funcionários do Departamento de Estado cujos resumos são recusados tiveram de reelaborar os testemunhos orais do grande expoente da guerra fria e Secretário de Estado John Foster Dulles Foi considerado nãopolitico para o C ongressional Record transmitir tais julgamentos inconvenientes sobre os aliados dos Estados Unidos como a resposta de Dulles ao Comitê de Apropriações de que todos os franceses tinham amantes e enviavam cartões postais obscenos mas que não obstante a França era um cêntimo útil do tesouro real Seu obiter dieta sobre a Alemanha e a GrãBreta nha também compensa a descoberta Assim poderíamos virar a mesa Poderíamos argumentar que na verdade o testemunho oral seja ele coletado por gravação em fita sem as lacunas nixonianas ou pelas pesquisas de campo entre as tribos de almirantes e secretários de estado está mais próximo da fonte principal Ele é certamente vulnerável a problemas tão graves quanto aqueles que afetam as fontes documentais modernas mas eles são diferentes Am bos têm em comum o fato de poderem estar sujeitos à invenção da tradição como demonstrou a retirada da opinião sobre as Ilhas Malvinas do PRO mas os problemas de má utilização dos dados orais são possivelmente mais fáceis de serem localizados e resolvidos Além da má utilização que é evitável há dois problemas comuns de crítica da fonte que afetam o testemunho oral esses inevitáveis U m deles é a influência inconsciente da forma literária sobre o testemunho oral Isso ocorre inevitavelmente em culturas compostas Há a reinserção da hermenêutica de um ponto de vista escrito em um testemunho oral de um a pessoa analfabeta Isso é mais comum em contextos altamente saturados como aquele de um encontro colonial e o exemplo zimbabweano de reinserção da A ESCRITA DA HISTÓRIA 191 interpretação de Ranger na cultura oral já mencionado Há também um segundo aspecto de tal influência diferentemente sinistro quando a predominância da forma literária corrói e finalmente destrói os m odos orais de memória O s exemplos m ais conhecidos disso são musicais Ralph Vaughan W illiams Percy Grainger e Benjam in Britten estavam entre os muitos com positores do início do século vinte que coletaram eou utilizaram canções folclóricas em sua própria obra que traduzi ram e perpetuaram as canções originais até o mom ento de sua extinção nas regiões selvagens Além disso alguns dos mais fam osos colecionadores modernos como Ewan M cColl que resgatou e revigorou um grande número de cânticos de trabalho e baladas dos povos trabalhadores da Escócia e do norte da Inglaterra eram também compositores do gênero e suas canções novas e coletadas não são distinguidas pelos ouvintes e por outros intérpretes Assim o que é atualmente ouvido cantar em um bar em Kerry ou em Galloway quase certamente passou pelo ciclo da reinserção da hermenêutica M as esses problemas podem premeditadamente ser antecipados e acomodados na técnica crítica as fontes documentais como a corrente rankeana tornam se poluídas pela invenção da tradição antes mesmo de brotar do solo N o caso da reminiscência geral da vida do informante estruturada pelo que ele acredita ser importante podem os ter o que é comprovadamente o tipo mais puro de registro A bioquímica da memória é ainda muito pouco compreendi da M as testes sobre diferentes tipos de memória tendem a concordar que a memória de longo prazo especialmente em indivíduos que entraram naquela fase que os psicólogos chamam de revisão da vida podem ser notavelmente precisos As pessoas adquirem um poço de informações preenchido pelo relacionamento pessoal E circunscrito a seu contexto social obviamente forma a identidade pessoal e tem um a incrível estabilidade Isso observa David Lowenthal é especialmente verdadeiro em relação às reminiscências intensas e involuntárias da infância quando se vê e se recorda o que está lá não como 192 PETER BURKE fazem os adultos o que é esperado27 A revisão da vida é o produto final de uma vida de reminiscências U m a narrativa estável de revisão da vida no poço de informações é o início de uma tradição oral de longo prazo O fragmento apresentado no início sobre a época de meu avô na mansão de Cornish é um de tais cristais constituintes da tradição E justamente o uso de tal reminiscência que tem sido até agora a maior contribuição de historiadores como Paul Thompson Eles são historiadores sociais e utilizam os dados orais para darem voz àqueles que não se expressam no registro documental Embora não sejam inerentemente um instrumento de radicalização os dados orais na sociedade contemporânea têm sido extensivamente usados por historiadores com uma propensão radical à sua utilização pois como diz Thompson nas primeiras linhas de The Voice of the Past Toda história depende finalmente de seu propósito social e a história oral é a que melhor reconstrói os particulares triviais das vidas das pessoas comuns para aqueles que desejam realizar isso Está na tradição de Mayhew que registrou as vidas dos pobres de Londres na década de 1850 de Charles Booth que estudou a vida e o trabalho das pessoas em Londres entre 1889 e 1903 e do estudo da pobreza em York em 1901 realizado por Seebohm Rowntree Tal propósito tem sido proeminente na prática da história oral a partir da reminiscência na história italiana moderna28 O que a reminiscência pessoal pode proporcionar é um a atualidade e uma riqueza de detalhes que de outra maneira não podem ser encontradas Torna possível as histórias de grupo em pequena escala como o trabalho de Bill W illiams sobre os judeus de Manchester e as obras geograficamente em pequena escala histórias locais de aldeias ou de algumas ruas Isso dá aos historia 27 D Lowenthal The Past is a Foreign Country Cambridge 1985 p 2023 28 G Levi L Passerini e L Scaraffini Vita quotidiana in un quartieri operaio di Torino ira le due guerre lopporto delia storia orale p 20924 L Bergonzini Le fonti orali come verifica delle testimonianze scritte in una ricerca sui antifascismo e la resistenza bolognese p 2638 am bos em B Bernardi C Poni e A Triulzi ed Fonti Orale Antropologia e Storia Milão 1978 A ESCRITA DA HISTÓRIA 193 dores os meios para escrever o que o antropólogo Clifford Geertz chamou de descrição densa relatos ricamente tecidos que têm a profundidade e os contornos que permitem uma análise antropo lógica substancial Mas pondose de lado a simpatia ideológica ou o potencial para a análise estrutural mesmo que a história oral através da reminis cência seja muito poderosa para a história social os céticos ainda têm uma questão a colocar que eu mencionei no início deste capítulo Ela pode ser útil pode ser ilustrativa pode até ser historicamente libertadora mas é passível de explicação O teste munho oral pode permitir uma evocação descritiva bastante como vente do que provavelmente é um mexicano pobre através da obraprima de O scar Lewis The Children oSanchez mas em última análise certamente está confinado à pequena escala e não é lá que as forças propulsoras das teorias explanatórias dos historiadores devem ser encontradas29 U m bom teste para essa asserção é verificar a própria m ono grafia de Paul Thom pson The Edwardians Esta é uma tentativa de recriar a estrutura e a impressão da vida nos anos imediatamente anteriores à Grande Guerra E um período inundado de roman tismo corderosa na memória popular quando ainda existe mel para o chá quando o relógio da igreja de Grantchester ainda se mantém em dez para as três quando Deus estava em seu Céu e tudo estava certo com um m undo prestes a ser feito em pedaços pela guerra M as como deseja mostrar Thom pson não era assim tão simples para mais que bem poucos O recurso central do livro é uma série de cinco vinhetas de evocadas infâncias edwardianas escolhidas como representativas de cada nível da sociedade desde o muito rico até o muito pobre Estão intimamente ligadas ao registro de arquivos pelo procedi mento de amostragem que levou à seleção dos indivíduos Eles 29 O scar Lewis The Children of Sanchez Aurobiography of a Mexican Family Londres 1962 30 P Thom pson The Edwardians the Remaking of Brítish Society Londres 1975 A ESCRITA DA HISTÓRIA 195 confirmálos Eles também podem proporcionar detalhes insigni ficantes que de outra forma são inacessíveis e por isso estimu lar o historiador a reanalisar outros dados de maneiras novas Foi isso que ocorreu na discussão de classe de Thom pson em The Edwardians Foi isso que aconteceu quando o Sr Donald Reagan chefe de gabinete da C asa Branca do Presidente Reagan publicou seu relato autojustificativo de seu período de gabinete e de suas lutas com a Sra Nancy Reagan que revelou entre outras coisas concretas que a escolha do momento da assinatura do Tratado de Intermediação das Forças Nucleares na convocação das superpo tências em dezembro de 1987 foi na verdade orientada pelo astrólogo pessoal da Sra Reagan fato que não será encontrado nos papéis oficiais E isso que está acontecendo com o estudo prestes a ser publicado de Christopher Lee sobre a política de defesa britânica a partir de 1945 Essa é uma questão para a qual o registro documental oficial está de qualquer modo trancado sob a flexível lei britânica trinta e alguma coisa segundo a qual o governo da época pode se quiser prescrever um longo período de confinamentò para os papéis delicados do governo dos quais os assuntos de defesa são os exemplos supremos além do período normal de trinta anos Sabese que a opinião da Sra Thatcher é de que nada relacionado às atividades dos agentes da Inteligência britânica na Rússia czarista deve ser publicado a fim de não proporcionar ajuda ou consolo aos inimigos Ela e as emendas de 1989 ao Ato dos Segredos Oficiais assim o desejam N o caso de Lee seus muitos anos como Correspondente da Defesa da B B C o colocou em um a posição de conhecer e obter a confiança de seus temas As transcrições de suas entrevistas com todos os atores centrais na peça tornamse por si mesmas um a fonte documental vital Seu livro será um exemplar que nenhum historiador acadêmico poderia escrever Dará um alcance radicalmente diferente à nossa compreensão de um período vital de m udança no declínio do poder britânico O s materiais orais se situam naquilo que o Professor Hexter chama de registro secundário mais imediato que outros tipos de dados A compe 196 PETER BURKE tência de Lee para localizar ler e interpretar o registro principal é crucialmente afirmada por sua posse de um registro secundário altamente específico e raro31 Isso não o transforma em um novo tipo de historiador é antes o oposto Muitos historiadores do século dezenove eram amadores no sentido de que escreviam e viviam principalmente fora da academia Tanto no passado quanto no presente o trabalho de campo é um inestimável auxiliar à escrita de um livro Em segundo lugar há o efeito contrário A posse de um registro secundário rico e variado por exemplo antes por meio da experiência pessoal do que via uma entrevista pode tirar o historiador do campo das pessoas comuns O s historiadores das estradas de ferro são excelentes exemplos disso Adrian Vaughan trabalhou como sinaleiro da grande linha de Brunel de Londres para o oeste do país Ele atravessou o período de contração e fechamento nos anos 60 assistiu ao estrangulamento das antigas formas de trabalho e ao desprezo pelos peritos especializados tornouse várias vezes redundante e então decidiu registrar o mundo que havia perdido Suas primeiras obras Signalmans Morninge Signalmans Tmlight foram composições de reminiscên ciás M as à medida que se desenvolveu sua capacidade como historiador ele aprofundou sua análise e agora tornouse o autor de um a notável biografia recente do próprio Brunel enriquecida e informada pela educação de Vaughan na linha ferroviária de propriedade de Brunel32 Outro exemplo desta vez o último que mais um a vez tem sua origem na ira diante da destruição dos especialistas é encontrado em um surpreendente livro sobre arquitetura de autoria de um mestredeobras Roger Colem an vem de uma família de artesãos especializados do norte de Londres Tornouse mestredeobras mas no processo observou e sofreu a desespecialização do ramo 31 C R Lee WhitehallWarriors Postwar Deence Policy Decisionmakingaser publicado 32 A V aughan Signalm ans Morning Londres 1981 e Signaímans Twilight Londres 1983 A m bos os volum es em um a edição variada em brochura Londres 1984 idem lsambard Kingdom Brunel a ser publicado A ESCRITA DA HISTÓRIA 197 da construção Ficava encolerizado diante da arrogância e da incompetência técnica dos arquitetos cujo trabalho ele tinha de executar e que jamais pensavam em pedir sua opinião Assim se desenvolveu a sombria batalha semelhante às batalhas coloniais sobre a tradição inventada em que se alegava a ignorância do prático e se dispensava sua cooperação os arquitetos formados pelos livros e de mãos macias ditando as regras N ão foi sempre assim Estimulado por seu registro secundá rio Colem an iniciou uma longa investigação sobre arte e trabalho No processo assim como W illiam Morris ele adquiriu as habili dades convencionais da história e da crítica de arte M as em seu inflamado livro The Art of Work an Epitaph to Skill as passagens originais não poderiam ter sido escritas apenas por um aprendiz dos livros U m a passagem notável questiona por que W illiam of Sens foi o único homem atingido no acidente durante a restauração da Catedral de Canterbury A resposta que ele era ao mesmo tempo o empreiteirochefe mas também o artesão mais capacitado mostra que a divisão do trabalho não era na época como é agora Avança para um relato que passa pela recuperação de Colem an da cultura submersa dos carpinteiros escrita a partir de seu conheci mento obtido oralmente e do aprendizado com homens velhos e chega a um a exposição única em minha leitura de suas próprias habilidades Ele descreve os procedimentos práticos envolvidos na fabricação de um a janela nova Aprender sobre a característica e o uso de tirantes fitas de madeira com que o carpinteiro transfere as dimensões exatas do orifício na alvenaria para a estrutura da janela soa vulgar se é que tem utilidade M as o relato de Colem an surpreendentemente vai além disso O s tirantes dos carpinteiros unem em um a fraternidade William of Sens Villard de Honne court projetista e construtor da catedral cujos livros de instrução medievais são em certo sentido os precursores do próprio livro de Coleman os carpinteiros anônimos do século dezoito que trabalharam para Vanbrugh e John W ood o Jovem anônimos a m enos que se saiba procurar suas marcas escondidas os velhos professores de ofício de Colem an e a nova janela em questão A 198 PETER BURKE descrição da fabricação de sua nova janela contemporânea situa histórica e analiticamente cada aspecto das tarefas que são em geral invisíveis por serem subvalorizadas33 Alguns historiadores acham que seu oficio é descrever e talvez explicar por que as coisas ocorreram no passado Esta é uma justificativa necessária mas não suficiente Há dois outros compo nentes essenciais da tarefa do historiador A continuidade deve ser explicada A continuidade histórica especialmente nas culturas orais requer mais atenção do que mudança A tradição é um processo vive apenas enquanto é continuamente reproduzida E efervescentemente vital em sua aparente quietude Em segundo lugar a tarefa do historiador é proporcionar ao leitor confiança em sua competência metodológica Para demonstrar consciência das ciladas da tradição inventada e a partir daí das explicações oferecidas o historiador deve também revelar o que é provável que houvesse ali um poeta na Grécia homérica um aldeão na África anterior à chegada do homem branco um maquinista vitoriano esgotado um chefe de gabinete na C asa Branca do Sr Reagan ou se isso não puder ser feito dizer que não pode e explicar o motivo E para essas partes vitais da tarefa do historiador que a história oral tradição e reminiscência passado e presente com seu detalhe sua humanidade freqüentemente sua emoção e sempre seu muito desenvolvido ceticismo com relação a todo o empreen dimento historiográfico é principalmente dirigida Sem acesso a tais recursos os historiadores das sociedades modernas maciça mente alfabetizadas e industriais ou seja a maior parte dos historiadores profissionais vão consumirse em um poço de com preensão circunscrito por sua própria cultura como amantes abandonados colocados sob o círculo de luz tremulante de um poste isolado em uma rua escura e varrida pelo vento 33 R Colem an The Art of Work An Epitaph to Skill Londres 1988 HISTÓRIA DA LEITURA1 R obert Dam ton Ovídio nos aconselha sobre a maneira de se ler uma carta de amor Se sua amante lhe fizer propostas por meio de algumas palavras inscritas em placas entregues a você por um criado esperto medite com cuidado sobre elas examine suas expressões e tente adivinhar se seu amor é apenas simulado ou se suas súplicas partem na verdade de um coração sinceramente apaixonado E extraordinário O poeta romano poderia ser um de nós Referese a um problema que poderia surgir em qualquer época que parece existir independentemente do tempo Lendo sobre a leitura em The Art of Love parecenos ouvir um a voz que nos fala diretamente a um a distância de dois mil anos M as à medida que ouvimos mais a voz soa estranha Ovídio prossegue prescrevendo técnicas para a comunicação com uma amante às escondidas de seu marido De acordo com a moral e a lei uma mulher honesta deve temer seu marido e estar cercada por uma guarda rigorosa Mas se você tiver tantos Professor de História da Universidade de Princenton 1 Este artigo foi reimpresso de Australian Journal of French Stutiíes 23 p 530 1986 com perm issão do autor 200 PETER BIJRKE guardiães quanto Argus tem olhos pode enganálos a todos se sua vontade for bastante firme Por exemplo será que alguém pode impedir sua criada e cúmplice de carregar seus bilhetes no corpete dela ou entre o pé e a sola da sandália dela Suponhamos que seu guardião possa ver através de todos esses estratagemas Faça então com que sua confidente ofereça costas em lugar das placas e deixe que seu corpo se transforme numa carta viva2 Esperase que o amante dispa a criada e leia seu corpo não exatamente o tipo de comunicação que associamos hoje em dia a uma carta de amor Apesar de seu ar de ilusória atualidade The Art of Love nos lança em um mundo que dificilmente podemos imaginar Para compreender a mensagem devemos conhecer algo sobre a mitologia romana técnicas de escrita e vida doméstica Devemos ser capazes de nos supor como a esposa de um nobre romano e avaliar o contraste entre a moralidade formal e os hábitos de um m undo dado à sofisticação e ao cinismo em uma época em que o Sermão da M ontanha estava sendo pregado em um idioma bárbaro bem além do alcance do ouvido dos romanos Ler Ovídio é defrontarse com o mistério da leitura em si Ao m esmo tempo familiar e estranho é uma atividade que comparti lhamos com nossos ancestrais embora ela jamais possa ser a mesma que eles experimentaram Podemos desfrutar da ilusão de sair do tempo para entrar em contato com autores que viveram há séculos atrás Mas mesmo que seus textos tenham chegado intactos até nós uma impossibilidade virtual considerandose a evolução dos projetos e dos livros como objetos físicos nossa relação com esses textos não pode ser a mesma que aquela dos leitores do passado A leitura possui uma história M as como podemos recuperála Poderíamos começar buscando o registro dos leitores Cario Ginzburg encontrou um deles o de um humilde moleiro de Friuli no século dezesseis nos papéis da Inquisição Acusado de heresia 2 O vídio A rs Amatoria Livro 111 linhas 46972 e 61326 Segui a tradução de JH Mozley em The Art of Love and Other Poems Londres 1929 modificandoa em alguns locais de acordo com a versão m oderna de Héguin de Guerle LArt daimer Paris 1963 Todas as outras traduções neste ensaio são de m inha responsabilidade A ESCRITA DA HISTÓRIA 201 o inquisidor perguntou a sua vítima sobre sua leitura Menocchio respondeu com uma série de títulos e elaborados comentários sobre cada um deles Com parando os textos e os comentários Ginzburg descobriu que Menocchio havia lido uma grande quan tidade de narrativas bíblicas frônicas e livros de viagem do tipo que existia em muitas bibliotecas aristocráticas Menocchio não se limitou simplesmente a receber as mensagens transmitidas pela ordem social Ele leu de um m odo agressivo transformando os conteúdos do material à sua disposição em uma visão radicalmente nãocristã do mundo Se essa visão pode ser atribuída a uma tradição popular antiga como afirma Ginzburg é um a questão a ser discutida mas Ginzburg certamente demonstrou a possibilida de de se estudar a leitura como uma atividade entre as pessoas comuns há quatro séculos atrás3 Encontrei por acaso um leitor de classe média abastada em minha própria pesquisa sobre a França do século dezoito Era um comerciante de La Rochelle chamado Jean Ranson e um rous seauísta apaixonado Ranson não apenas leu Rousseau e se emo cionou ele incorporou as idéias de Rousseau na estrutura de sua vida quando montou seu negócio apaixonouse casouse e educou seus filhos A leitura e a vida corriam paralelas como motivos condutores em uma rica série de cartas que Ranson escreveu entre 1774 e 1785 e que mostram como o rousseauísmo foi absorvido no m odo de vida do burguês provinciano sob o Antigo Regime Rousseau recebeu um fluxo de cartas de leitores como Ranson após a publicação de La Nouvelle Héloise Foi acredito eu a primeira onda gigantesca de correspondência de admiradores na história da literatura embora Richardson já houvesse provocado algumas ondas impressivas na Inglaterra A correspondência revela que os leitores reagiram como Ranson em toda parte na França e além disso que suas reações estavam em conformidade com aquelas que Rousseau evocou nos dois prefácios de sua novela 3 C ario Ginzburg The Cheese and the Worms the Cosmos of a SixteentvCentur M iller trad de A nne e John Tedeschi Baltimore 1980 202 PETER BURKE Deu instruções a seus leitores de como lêla Atribuiulhes papéis e proveuos com uma estratégia para compreender sua novela O novo modo de ler funcionou tão bem que La Nouvelle Héloise tornouse o livro mais vendido do século a mais importante fonte isolada da sensibilidade romântica Essa sensibilidade está agora extinta Nenhum leitor moderno pode chorar dessa maneira através dos seis volumes de La Nouvelle Héloise como o fizeram seus predecessores há dois séculos atrás Mas em sua época Rousseau conquistou toda uma geração de leitores revolucionando a própria leitura4 O s exemplos de Menocchio e Ranson sugerem que a leitura e a vida a elaboração de textos e a compreensão da vida estavam muito mais intimamente relacionadas no início do período moder no do que estão hoje Mas antes de precipitar conclusões precisa mos examinar mais arquivos comparando os relatos dos leitores sobre sua experiência com os registros de leitura em seus livros e quando possível com seu comportamento Fui levado a crer que The Sorrows of Young Werther provocou uma onda de suicídios na Alemanha Será que não chegou a hora de uma nova avaliação da Wertherfieberl O s prérafaelitas na Inglaterra proporcionam exem plos similares da vida imitando a arte tema que pode ser rastreado desde Don Quixote até Madame Bovary e Miss Lonelyhearts Em cada caso a ficção poderia ser mais detalhada e comparada com docu mentos bilhetes reais de suicídio diários e cartas ao editor A correspondência dos autores e os papéis dos editores são fontes de informação ideais sobre os autênticos leitores Há dúzias de cartas de leitores na correspondência publicada de Voltaire e Rousseau e centenas nos papéis não publicados de Balzac e Zola5 4 Robert Darnton Readers Respond to Rousseau the Fabrication o f Romantic Sensitivity em Darnton The Great C at Massacre and other Episodes of French Cultural History Nova York 1984 p 21556 5 C om o exemplos desses temas ver Kurt Rothm an Erlâuterungen und Dokumente Johann Wolfgang Goethe Die Leiden des Jungen Werthers Stuttgart 1974 e Jam es Sm ith Allen History and the Novel Mentalité in M odem Popular Fiction History and Theory 22 p 23352 1983 A ESCRITA DA HISTÓRIA 203 Em sum a seria possível desenvolver um a história e também um a teoria da reação do leitor Possível m as não fácil pois os docum entos raramente m ostram os leitores em atividade m ol dando o significado a partir dos textos e os documentos são eles próprios textos o quê também requer interpretação Pou cos deles são ricos o bastante para propiciar um acesso ainda que indireto aos elementos cognitivos e afetivos da leitura e alguns poucos casos excepcionais podem não ser suficientes para se reconstruírem as dim ensões interiores dessa experiên cia M as os historiadores do livro sempre exibiram um a grande quantidade de informação sobre a história externa da leitura Tendo estudado a leitura com o um fenômeno social podem responder m uitas das perguntas de quem o que onde e quando o que pode ser de grande ajuda na abordagem dos m ais difíceis porquês e com os O estudo de quem lê o quê em diferentes épocas recai em dois tipos principais o macro e o microanalítico A macroanálise floresceu acima de tudo na França onde se nutre de uma poderosa tradição de história social quantitativa HenriJean Martin Fran çois Furet Robert Estivais e Frédéric Barbier traçaram a evolução dos hábitos de leitura desde o século dezesseis até os dias de hoje utilizando séries de longo prazo construídas a partir do dépôt legal dos registros de direitos do livro e da publicação anual da Bibliographie de la France Podemse observar muitos fenômenos intrigantes nas oscilações de seus gráficos o declínio do latim a ascensão da novela o fascínio geral pelo mundo imediato da natureza e os m undos remotos dos países exóticos que se dissemi naram por todo o público educado entre a época de Descartes e Bougaínville O s alemães elaboraram uma série ainda mais longa de estatísticas graças a uma fonte peculiarmente rica os catálogos das feiras do livro de Frankfurt e Leipzig que se estendem de meados do século dezesseis a meados do século dezertove O catálogo de Frankfurt foi publicado sem interrupção de 1564 a 1749 e o catálogo de Leipzig que data de 1594 pode ser substituído no período posterior a 1797 pelo Hinrichssche Verzeich 204 PETER BURKE nisse Embora os catálogos tenham seus inconvenientes forne cem um índex aproxim ado da leitura germânica desde a Renas cença e têm sido explorados por um a sucessão de historiadores alemães do livro desde que Johann Goldfriedrich publicou seu m onum ental Geschichte des deutschen Buchhandels em 1908 e 1909 O m undo da leitura em inglês não possui um a fonte com parável mas para o período posterior a 1557 quando Londres começou a dom inar a indústria da im pressão os docum entos da London Stationers Com pany proveram H S Bennet W W Greg e outros com um a enorm e quantidade de material que permitiu traçar a evolução do comércio do livro inglês Em bora a tradição britânica da bibliografia não tenha favorecido a compilação de estatísticas há um grande núm ero de inform ações quantitativas nos catálogos de títulos editados desde 1475 G iles Barber extraiu alguns gráficos sem elhantes aos franceses dos registros da alfândega e Robert W inans e G Thom as Tanselle avaliaram o início da leitura americana reexplorando a enorme American Bibliography de Charles Evans dezoito mil inscrições para o período de 16381783 incluindo infelizmente uma população indeterminada de fantasmas6 6 C om o exemplos dessa literatura que é muito vasta para ser citada aqui em detalhes ver HenriJean Martin Livre pouvoirs et société à Paris au XV IIe siècle 15981 701 Genebra 1969 2 v Robert Estivais La Statisdque bibliographique de la France sous la monarquie au XV lIle siècle Paris e Haia 1965 Frédéric Barbier The Publishing Industry and Printed O utput in NineteenthCentury France em Kenneth E Carpenter ed Books and Society in History Papers of the Association of College and Research Libraries Rare Books and Manuscripts Preconference 2428 June 1980 Boston Massachusetts Nova York e Londres 1983 p 199230 Johan Goldfriedrich Geschichte des deutschen Buchhandels Leipzig 18861913 4 v Rudolf Jentzsch Der deutsch lateinische Büchermarkt nach den Leipziger Ostermesskatalogen von 1 740 1 770 und 1800 in seiner Gliederung und Wandlung Leipzig 1912 H S Bennett English Books Readers 1475 to 1557 Cambridge 1952 Bennett English Books Readers 1558 to 1603 Cam bridge 1965 Bennett English Books Readers 1603 to 1640 Cam bridge 1970 Giles Barber Books from the O ld W orld and for the New the British International Trade in Books in the Eighteenth Century Studies on Voltaire and the Eighteentk Centura 151 p 1852241976 Robert B W inans Bibliography and the Cultural Historian Notes on the EighteenthCentury Novel em W illiam L Joyce David D Hall Richard D Brown e John B Hench ed Printingand Society in Early America W orcester 1983 p 17485 e G Thom as Tanselle Som e Statístícs A ESCRITA DA HISTÓRIA 205 T oda essa compilação e computação proporcionaram algumas orientações para os hábitos de leitura mas as generalizações parecem às vezes amplas demais para serem satisfatórias A novela como a burguesia parece sempre estar em ascensão e os gráficos caem nos pontos esperados mais especialmente durante a Guerra dos Sete Anos na feira de Leipzig e durante a Primeira Guerra Mundial na França A m aiorparte dos quantificadores classifica suas estatísticas em categorias vagas como artes e ciências e belleslettres que são inadequadas para se identificarem fenômenos particulares como a Controvérsia da Sucessão o Jansenismo o Iluminismo ou o Renascimento Gótico exatamente os temas que atraíram mais atenção entre os estudiosos de literatura e os historiadores culturais A história quantitativa dos livros precisará refinar suas categorias e aguçar seu foco antes de provocar um impacto importante nas correntes tradicionais da erudição M as os quantificadores descobriram alguns padrões estatísticos importantes e suas realizações teriam parecido ainda mais impres sionantes se houvesse um pouco mais de esforço ao se fazerem comparações de um país para outro Por exemplo as estatísticas sugerem que o renascimento cultural da Alemanha no final do século dezoito estava relacionado a uma febre tipo epidêmica pela leitura a chamada Lesewut ou Leseshucht O catálogo de Leipzig não alcançou o nível que havia atingido antes da Guerra dos Trinta Anos até 1764 quando incluía 1200 títulos de livros recémpubli cados C om a explosão de Sturm und Drang elevouse a 1600 títulos em 1770 depois 2600 em 1780 e 5000 em 1 8 0 0 0 francês seguiu um padrão diferente A produção de livros cresceu regular mente por um século depois da Paz de W estphalia 1648 um século de grande literatura desde Corneille até à Encyclopédie que coincidiu com o declínio na Alemanha M as nos cinqüenta anos seguintes quando as figuras alemãs se destacaram a ascensão da França parece relativamente modesta Segundo Robert Estivais as on American Printing 17641783 em Bernard Bailyn e John B Hench ed The Press the American Revolution Boston 1981 p 31564 t 206 V n rV PETER BURKE solicitações de autorizações para publicar novos livros privilèges e permissions tacites chegaram a 729 em 1764 a 896 em 1770 e apenas a 527 em 1780 e os novos títulos submetidos ao dépôt légal em 1800 totalizaram 700 Certamente tipos diferentes de docu mentos e padrões de medida poderiam produzir resultados dife rentes e as fontes oficiais excluem a enorme produção de livros franceses ilegais Mas sejam quais forem suas deficiências os dados indicam um grande salto para diante na vida literária alemã após um século de dominação francesa A Alemanha também teve mais escritores embora a população das áreas de língua francesa e alemã fosse mais ou menos a mesma U m almanaque literário alemão Das gelehrte Teutschland relacionou 3000 autores vivos em 1772 e 4300 em 1776 U m a publicação francesa comparável La France littéraire incluiu 1187 autores em 1757 e 2367 em 1769 Ainda que Voltaire e Rousseau estivessem próximos à velhice Goethe e Schiller passavam por uma onda de criatividade bem mais pode rosa do que se poderia imaginar considerandose apenas as histórias convencionais da literatura7 A s comparações estatísticas cruzadas também são úteis no mapeamento das correntes culturais Depois de tabular os direitos dos livros durante o século dezoito François Furet encontrou um marcante declínio nos antigos ramos de ensino especialmente da literatura humanista e da literatura latina clássica que haviam florescido um século antes segundo as estatísticas de HenriJean Martin O s gêneros mais novos como os livros classificados sob a rubrica de ciências e artes prevaleceram após 1750 Daniel Roche e Michel M arion anunciam uma tendência similar no exame dos arquivos notariais parisienses A s novelas os livros de viagem e as obras sobre história natural tenderam a tomar o lugar dos clássicos nas bibliotecas dos nobres e dos burgueses ricos Todos os estudos apontam para uma queda significativa na litera 7 Estivais La Statistique bibliographique p 309 Paul Raabe Buchproduktion und Lesepublikum in Deutschland 17701780 PKilobiblin eine Vieneljahrsschrift für Buch und Graphiksammler 21 p 216 1977 A s estatísticas comparativas sobre os escritores são baseadas em meus próprios cálculos A ESCRITA DA HISTÓRIA 207 tura religiosa durante o século dezoito Confirmam a pesquisa quantitativa em outras áreas da história social a de Michel Vovelle sobre os rituais funerários por exemplo e a pesquisa de Domini que Julia a respeito das ordenações clericais e das práticas de ensino8 r O s estudos temáticos da leitura alemã complementam aque les do francês Rudolf Jentzsch e Albert W ard encontraram nos catálogos das feiras de Leipzig e Frankfurt uma forte queda nos livros em latim e um a correspondente ascensão nas novelas Segundo Edward Reyer e Rudolf Schenda no final do século dezenove os empréstimos nas bibliotecas alemãs inglesas e americanas caíram em um padrão incrivelmente similar 70 a 80 dos fivros pertenciam à categoria de ficção leve na maioria novelas 10 eram livros de história biografias e relatos de viagem e menos de 1 pertencia à temática religiosa Em pouco mais de duzentos anos o mundo da leitura foi transformado A ascensão da novela contrabalançou um declínio na literatura religiosa e em quase todos os casos o ponto crítico poderia ser localizado na segunda metade do século dezoito especialmente a década de 1770 anos da Wertherfieber Die Leiden des jungen Werthers provocou na Alemanha uma resposta ainda mais espeta cular do que La Nouvelle Héloise na França ou Pamela na Inglaterra Todas as três novelas marcaram o triunfo de um a nova sensibi lidade literária e as últimas frases de Wertfier parecem anunciar o advento de um novo público leitor juntamente com a morte de uma cultura cristã tradicional Handuierker trugen ihn Kein Geistlicher hat ihn begleicet9 8 François Furet La líbraíríe du royaume de France au 18e siècle em Furet et al Livre et société dans la France du XVIIIe siècle Paris 1965 p 332 Daniel Roche N oblesses et culture dans la France d uX V IIIe les lectures de la noblesse em BwcK und Sammler Private und õffentliche Bibliotfieken im 18 Jahrhundert Colloquium der Arbeitsstelle 18 Jahrhundert Gesamthochschule Wuppertal Universitãt Münster vom 2628 September 1977 Heidelberg 1979 p 927 Michel M arion Recherclies sur les bibliotHèques privées à Paris au milieu du XV lIIe siècle 1 7501 759 Paris 1978 Michel Vovelle Piété baroque et déchristianisation en Provence au X V ÍIF siècle Les attitudes devam la mort daprès les clauses des testaments Paris 1973 9 Jentzsch Der deutschlateinische Büchermarkt Albert W ard Book Production Fiction 208 PETER BURKE Apesar de toda a sua variedade e ocasionais contradições os estudos microanalíticos sugerem algumas conclusões gerais algo semelhante à desmistificação do m undo de M ax Weber M as isso pode parecer por demais cósmico para servir de consolo Aqueles que preferem a precisão podem recorrer à microanálise embora esta em geral se dirija ao extremo oposto o excèsso de detalhes Podemos apresentar centenas de listas de livros nas bibliotecas desde a Idade Média até nossos dias mais do que qualquer um poderia conseguir ler Mas a maioria de nós concorda que um catálogo de uma biblioteca particular pode servir como um perfil do leitor ainda que não tenhamos lido todos os livros que nos pertencem e tenhamos lido muitos livros que nunca adquiri mos Esquadrinhar o catálogo da biblioteca de Monticello é inspecionar as provisões da mente de Jefferson10 E o estudo das bibliotecas particulares tem a vantagem de unir o o quê com o quem da leitura Tam bém nessa área os franceses assumiram a liderança O ensaio de Daniel Mornet Les enseignements des bibliothèques pri vées datado de 1910 demonstrava que o estudo dos catálogos das bibliotecas poderiam produzir conclusões que desafiavam alguns dos lugarescomuns da história literária Depois de tabular os títulos de quinhentos catálogos do século dezoito ele encontrou apenas um a cópia do livro que iria ser a Bíblia da Revolução Francesa o Contrato Social de Rousseau A s bibliotecas destacavam as obras de autores que tinham sido completamente esquecidos e não proporcionavam uma base para relacionar alguns tipos de literatura a obra dos filósofos por exemplo com algumas classes de leitores a burguesia Setenta anos mais tarde a obra de M ornet ainda parecia impressionante Mas uma vasta literatura desen and the Germ an Reading Public 17401800 Oxford 1974 Rudolf Schenda Volk ohne Buch Studien zur Sozialgeschichce der populàren Lesestoffe 17001910 Frankfurt am M ain 1970 p 467 10 Para o m odelo de Jefferson de um a biblioteca m ínim a para um cavalheiro educado m as não especialmente um erudito ver Arthur Pierce Middleton A Virgínia Gentlemans Library W illiam sburg 1952 A ESCRITA DA HISTÓRIA 209 volveuse à sua volta Agora temos estatísticas sobre as bibliotecas dos nobres magistrados padres acadêmicos burgueses artesãos e até de alguns criados domésticos Pesquisadores franceses estu daram a leitura através das camadas sociais de algumas cidades a Caen de JeanClaude Perrot a Paris de Michel M arion e através de regiões inteiras a Norm andia de Jean Quéniart a Languedoc de Madeleine Ventre Em sua maior parte eles se baseiam em inventaires après décès registros notariais de livros dos ben do falecido Assim sendo sofrem dos desvios apresentados nos documentos que geralmente negligenciam livros de pouco valor comercial ou se limitam a declarações vagas com o uma pilha de livros Masa visão notarial enganou a muitos na França bem mais que na Alemanha onde Rudolf Schenda considera os inventários lamentavelmente inadequados como um guia aos hábitos de leitura das pessoas comuns O estudo alemão mais completo é provavelmente a pesquisa realizada por W alter Witt m ann nos inventários a partir do final do século dezoito em Frankfurt am M ain Indicou que os livros pertenciam a 100 dos funcionários graduados 51 dos comerciantes 35 dos mestres artesãos e 26 dos artífices Daniel Roche encontrou um padrão similar entre as pessoas comuns de Paris apenas 35 dos trabalhadores assalariados e empregados domésticos que aparecem nos arquivos notariais por volta de 1780 possuíam livros M as Roche também descobriu muitas indicações de fami liaridade com a palavra escrita Em 1789 quase todos os em pre gados domésticos podiam assinar seus nom es nos inventários G rande parte deles possuía escrivaninhas amplamente equipa das com implementos de escrita e apinhadas de papéis de família A maior parte dos artesãos e dos lojistas passou vários anos de sua infância na escola Antes de 1789 Paris possuía 500 escolas primárias um a para cada mil habitantes todas mais ou menos gratuitas O s parisienses eram leitores conclui Roche mas a leitu ra não assum ia a forma dos livros que aparecem nos inventários Envolvia literatura popular críticas violentas cartazes cartas pessoais e até os letreiros nas ruas O s parisienses liam em suas 210 PETER BURKE caminhadas pela cidade e liam através de suas vidas mas seus processos de leitura não deixaram evidência suficiente nos ar quivos para que o historiador possa seguir de perto os seus calcanhares11 Ele deve por isso buscar outras fontes As listas de subscrição têm sido as preferidas embora em geral cubram apenas os leitores abastados Do final do século dezessete ao início do século dezeno ve muitos livros foram publicados por subscrição na GrãBretanha e continham listas dos subscritores O s pesquisadores do Projeto para a Biobibliografia Histórica de Newcasde upon Tyne utiliza ram essas listas para elaborar uma sociologia histórica do leitor Esforços similares estão em andamento na Alemanha especial mente entre os pesquisadores de Klopstock e Wieland Talvez um sexto dos novos livros alemães tenha sido publicado por subscrição entre 1770 e 1810 quando a prática atingiu seu ápice M as mesmo durante sua Blütezeit as listas de subscrição não proporcionam uma visão acurada do leitor Deixavam de lado os nomes de muitos subscritores incluíam outros que atuavam como patronos e não como leitores e normalmente representavam mais a venda de alguns empresários do que os hábitos de leitura do público educado segundo uma crítica um tanto devastadora que Reinhard W ittmann dirigiu contra a pesquisa das listas de subscrição O trabalho de Wallace Kirsop sugere que tal pesquisa pode ter mais resultado na França onde a publicação por subscrição também floresceu no final do século dezoito M as as listas da França como as outras em geral privilegiam os leitores mais abastados e os livros mais fantasiosos12 11 Daniel M ornet Les Enseignements des bibliothèques privées 17501780 Revue dhiscoire littérairede la France 17 p 449961910 Para um a visão geral da literatura francesa com referências bibliográficas ver HenriJean M artin e Roger Chartier ed Histoire de lédition française Paris 1982 da qual os dois primeiros volumes que cobrem o período até 1830 já foram publicados O estudo de W alter W ittmann e obras relacionadas estão discutidos em Schenda Volk ohne Bucli p 4617 Sobre o leitor com um parisiense ver Daniel Roche Le Peuple de Paris Essai sur la culture populaire au XVIUe Paris 1981 p 20441 12 Reinhard W ittmann Buchmarkt und Lektüre im 18 und 19 Jahrhunderc Beitrage zum literarischen Leben 1 7501880 Tübingen 1982 p 4668 W allace Kirsop Les A ESCRITA DA HISTÓRIA 211 O s registros das bibliotecas de empréstimo oferecem uma oportunidade melhor para se fazerem conexões entre os gêneros literários e as classes sociais mas poucos deles sobrevivem O s mais interessantes são os registros de empréstimo da biblioteca ducal de Wolfenbüttel que se estendem de 1666 a 1928 Segundo Wolf gang Milde Paul Raabe e John MacCarthy eles mostram uma importante democratização da leitura na década de 1760 o número de livros emprestados dobrou os empréstimos partiam das camadas sociais inferiores incluíam alguns porteiros lacaios e oficiais subalternos do exército e a temática da leitura tornouse mais leve deslocandose de volumes eruditos para novelas senti mentais imitações de Robinson Crusoe eram especialmente bem recebidas E curioso que os registros da Bibliothèque du Roi em Paris indicam que houve o mesmo número de usuários nessa época cerca de cinqüenta por ano incluindo um certo Denis Diderot O s parisienses não podiam levar os livros para casa mas desfruta vam da hospitalidade de uma época mais calma Embora o bibliotecário lhes abrisse as portas apenas duas manhãs por semana oferecialhes uma refeição antes de mandálos embora As condições são diferentes hoje em dia na Bibliothèque Nationale O s bibliotecários tiveram de aceitar uma lei básica de economia não há nada como um almoço gratuito13 O s microanalistas fizeram muitas outras descobertas tantas de fato que se defrontam com o mesmo problema dos macroquan tificadores como reunilas A disparidade da documentação catálogos de leilão registros notariais listas de subscrição registros de bibliotecas não tornam a tarefa mais fácil As diferenças nas conclusões podem ser atribuídas mais às peculiaridades das fontes do que ao comportamento dos leitores E as monografias freqüen temente anulam umas às outras os artesãos parecem alfabetizados aqui e nãoalfabetizados ali a literatura de viagem parece popular m écanismes éditoriaux em Histoire de 1édition française Paris 1984 v II p 312 13 Joh n A McCarthy Lektiire und Lesertypologie im 18 Jahrhundert 17301770 Ein Beitrag zur Lesergeschichte am Beispiel W olfénbüttels Intemationales Archiu für Sozialgeschichte derdeutschen Literatur 8 p 3582 1983 212 PETER BURKE entre alguns grupos em alguns lugares e impopular em outros U m a comparação sistemática dos gêneros ambientes sociais épocas e lugares pareceria uma conspiração de exceções tentando contestar regras Até agora apenas um historiador do livro foi ousado o bastante para propor um modelo geral Rolf Engelsing declarou que ocorreu um a revolução na leitura Leserevolution no final do século dezoito Segundo ele da Idade Média até algum tempo após 1750 os hom ens liam intensivamente Possuíam apenas alguns livros a Bíblia um almanaque uma ou duas obras de oração e os liam repetidas vezes em geral em voz alta e em grupo de forma que uma estreita variedade de literatura tornouse profundamente impressa em sua consciência Em 1800 os homens estavam lendo extensivamente Liam todo o tipo de material especialmente periódicos e jornais e os liam apenas üm a vez correndo para o item seguinte Engelsing não apresenta muita evidência para sua hipótese Na verdade a maior parte de sua pesquisa diz respeito apenas a uma pequena amostra de burgueses em Bremen M as possui um a sedutora simplicidade na relação temporal e apresenta uma fórmula cômoda para contrastar os modos de leitura muito precoces e muito tardios na história européia N o meu m odo de ver seu principal inconveniente é o caráter nãolinear A leitura não se desenvolveu em uma só direção a extensão Assum iu muitas formas diferentes entre diferentes grupos sociais em dife rentes épocas Hom ens e mulheres leram para salvar suas almas para melhorar seu comportamento para consertar suas máquinas para seduzir seus enamorados para tomar conhecimento dos acontecimentos de seu tempo e ainda simplesmente para se divertir Em muitos casos em especial entre os admiradores de Richardson Rousseau e Goethe a leitura tornouse mais intensiva não menos M as o final do século dezoito parece representar um ponto crítico quando se pode visualizar a emergência de uma leitura de m assa que iria atingir proporções gigantescas no século dezenove com o desenvolvimento do papel feito à máquina as prensas movidas a vapor o linotipo e um a alfabetização quase A ESCRITA DA HISTÓRIA 213 universal Todas essas mudanças abriram novas possibilidades não diminuindo a intensidade mas aumentando a variedade14 Devo por isso confessar algum ceticismo em relação ã revolu ção da leitura Embora um historiador do livro o americano David Hall tenha descrito uma transformação nos hábitos de leitura dos habitantes da Nova Inglaterra entre 1600 e 1850 quase exatamente nos mesmos termos que aqueles utilizados por Engelsing Antes de 1800 os habitantes da Nova Inglaterra liam pequenas coleções dos veneráveis sempre vendidos a Bíblia os almanaques o New England Primer Rise and Progress of Religion de Philip Doddridge Call to the Unconverted de Richard Baxter e os liam várias e várias vezes em vez alta em grupo e com excepcional intensidade Depois de 1800 foram inundados com novos tipos de livros novelas jornais variedades recentes e alegres de literatura infantil e os liam avidamente descartando uma coisa assim que podiam encontrar outra Embora Hall e Engelsing jamais tenham ouvido falar um do outro descobriram ambos um padrão similar em duas áreas bastante diferentes do mundo ocidental Talvez tenha ocor rido um deslocamento fundamental na natureza da leitura no final do século dezoito Pode não ter sido uma revolução mas marcou o fim de um Antigo Regime o reinado de Thom as a Kempis Johann A m d t e John Bunyam15 O onde da leitura é mais importante do que se poderia pensar pois a colocação do leitor em seu ambiente pode dar sugestões sobre a natureza de sua experiência N a Universidade de Leyden há um a gravura na parede datada de 1610 representando a biblioteca da universidade M ostra os livros pesados volumes infólio encadeados em altas estantes projetandose das paredes em um a seqüência determinada pelas rubricas da bibliografia 14 R olf Engelsing Die Perioden der Lesergechichte in der Neuzeit D as statisnsche A usm ass und die soziokulturelle Bedeutung der Lektüre Archiv für Geschickte des Buchsuiesens 1 0 1 9 6 9 col 9441002 e Engelsing DerBürgerals Leser Lesergeschichte in Deutschland 15001800 Stuttgart 1974 15 David Hall The U ses o f Literacy in New England 16001850 em Printing and Society in Early America p 147 214 PETER BURKE clássica Jurisconsulti Mediei Historiei etc Há estudantes espalha dos pela sala lendo os livros em balcões construídos ao nível dos ombros abaixo das estantes Eles lêem de pé protegidos contra o frio por grossas capas e chapéus com um dos pés apoiado em uma barra para aliviar a pressão sobre seus corpos A leitura não pode ter sido confortável na época do humanismo clássico Em quadros realizados um século e meio mais tarde La Lecture e La Liseuse de Fragonard por exemplo os leitores estão reclinados em canapés ou poltronas bem acolchoadas com suas pernas apoiadas em banquinhos São com freqüência mulheres usando vestidos folga dos conhecidos na época como liseuses Em geral seguram entre os dedos um duodécimo volume de formato elegante e exibem um olhar distante De Fragonard a Monet que também pintou uma Liseuse a leitura passa dos aposentos privados para o ar livre O leitor carrega os livros para os campos e para os topos das montanhas onde como Rousseau e Heine ele pode comungar com a natureza A natureza deve ter parecido se deslocar algumas gerações depois para as trincheiras da Primeira Guerra Mundial onde os jovens tenentes de Gòttingen e Oxford de algum modo encontraram espaço para alguns volumes leves de poesia U m dos livros mais preciosos de minha própria pequena coleção é uma edição do Hymnen an die Ideale der Menschheit de Hõlderlin com a inscrição A dolf Noelle Januar 1916 nordFrankreich pre sente de um amigo alemão que tentava justificar a Alemanha Ainda não estou certo de ter entendido mas creio que a compreen são geral da leitura avançaria se meditássemos mais diligentemente sobre sua iconografia e seus equipamentos incluindo a mobília e o vestuário16 O elemento humano no cenário deve ter afetado a compreen são dos textos Sem dúvida Greuze adotou um a atitude sentimen tal diante do caráter coletivo da leitura quando pintou Un père de famille qui lit la Bible à ses enfants Restif de la Bretonne provavel 16 Para observações similares sobre o estabelecimento da leitura ver Roger Chartier e Daniel Roche Les pratiques urbaines de rim prim é em Histoire de 1édition française v II p 40329 A ESCRITA DA HISTÓRIA 215 mente fez o mesm o nas leituras familiares da Bíblia em La vie de mon père Je ne saurais me rappeler sans attendrissement avec quelle attention cette lecture était écoutée comme elle communiquait à toute la nombreuse famille un ton de bonhomie et de fraternité dans la famille je comprends les domestiqúes Mon père commençait toujours par ces mots Recueillonsnous mes enfants cest lEsprit Saint qui va parler 17 M as apesar de todo o seu sentimentalismo tais descri ções procediam de uma mesma suposição para as pessoas comuns no início da Europa moderna a leitura era uma atividade social Ocorria nos locais de trabalho nos celeiros e nas tavernas Era quase sempre oral mas não necessariamente doutrinadora Assim Christian Schubart em 1786 descreveu o camponês na estalagem no campo com alguns matizes corderosa Und bricht die Abendzeit herein So trink ich halt mein Schòpple W ein D a liest der H err Sckulm eister mir 18 W as N eues au s der Zeitung fur A instituição de leitura popular mais importante sob o Antigo Regime era um encontro à beira do fogo conhecido como veillée na França e Spinnstube na Alemanha Enquanto as crianças brincavam as mulheres costuravam e os homens consertavam ferramentas um do grupo que podia decifrar um texto os regalaria com as aventuras de Les quatre fils Aymon Till Eulenspiegel ou algum outro favorito do repertório padronizado dos livros popula 17 Citado em francês no original A tradução é Eu não saberia me recordar sem ternura com que atenção era escutada aquela leitura como comunicava a toda a num erosa família um tom de bondade e de fraternidade na família eu incluo os criados M eu pai iniciava sempre com estas palavras V am os nos concentrar meus filhos é o Espírito Santo quem vai falar NT 18 Restif de la Bretonne La vie de mon père Ottawa 1949 p 21617 O poem a de Schubart está citado em Schenda Volk ohne Buch p 465 e pode ser assim traduzido When the evening time comes roundl aluiays drink my glass of wineThen the schoolmaster reads to meSomething new out of the newspaper Q uando a noite chegaSem pre bebo minha taça de vinhoEntão o mestreescola lê para mimAl gum a novidade do jornal 216 PETER BURKE res e baratos Algumas dessas primeiras brochuras indicavam que sua intenção era que eles entrassem nos ouvidos começando com frases como O que você vai ouvir N o século dezenove grupos de artesãos especialmente fabricantes de charutos e alfaiates revezavamse lendo ou ouvindo um leitor para se manterem entretidos enquanto trabalhavam Até hoje muitas pessoas to mam conhecimento das notícias através da leitura de um locutor de televisão A televisão pode ser menos um rompimento do passado do que geralmente se supõe Seja como for para a maioria das pessoas através da maior parte da história os livros tiveram mais ouvintes que leitores Foram mais ouvidos do que vistos19 A leitura era experiência mais reservada à minoria das pessoas educadas que podia se permitir comprar livros Mas muitos deles se associavam a clubes de leitura cabinets íittéraires ou Lesegesells chaften onde podiam ler quase tudo o que queriam em uma atmosfera sociável por um pequeno pagamento mensal Françoise ParentLardeur reconstituiu a proliferação desses clubes em Paris durante a Restauração20 mas eles remontam ao século dezoito O s livreiros provincianos muitas vezes transformavam seu esto que em um a biblioteca e cobravam taxas pelo direito de freqüen tála Boa luz algumas cadeiras confortáveis quadros na parede e subscrições para um a meiadúzia de jornais eram o suficiente para transformar qualquer livraria em um clube Assim estava anunciado o cabinet littéraire de PJ Bernard um pequeno livreiro 19 Sobre os livros populares e seu uso público na França ver Charles N isard Histoire des livres populaires ou de la littérature du colportage Paris 1854 2 v RobertM androu De laculture populaire aux 1 T et 18esiêcíes la bibliothèque bleuede Troyes Paris 1964 e para exemplos de estudos m ais recentes a série Bibliothèque bleue editada por Daniel Roche e publicada pelas Editions M ontalba O melhor relato sobre a literatura popular na Alem anha é ainda Schenda Volk ohne Buch em bora sua interpretação esteja sendo desafiada por alguns trabalhos m ais recentes especialmente Reinhart Siegett Aufklãrung und Volkslektüre exemplarisch dargestellt an Rudolph Zacharias Beclter und seinem Noth und HülsbücKlein Frankfurt am M ain 1978 C om o um exem plo de estudiosos que lêem um ao outro ver Sam uel Gom pers Seventy Years of Life and Labor An Autobiography Nova York 1925 p 801 20 Françoise ParentLardeur Les cabinets de lecture La íecture publique à Paris sous la Restauration Paris 1982 A ESCRITA DA HISTÓRIA 217 de Lunéville Une maison commode grande bien éclairée et chauf fée qui serait ouverte tous les jours depuis neuf heures du matin ju sq u à midi et depuis une heure jusquà dix ofrirai t dès cet instant aux amateurs deux mille volumes qui seraient augmentés de quatre cents par anée21 Em novembro de 1779 o clube tinha 200 associados a maior parte oficiais da gendarmerie local Pela modesta quantia de três libras por ano eles tinham acesso a 5000 livros treze jornais e salas especiais para conversar e escrever ver Apêndice Segundo Otto Dann os clubes de leitura alemães propiciaram a base social para um a variedade distinta de cultura burguesa no século dezoito em um a proporção espantosa especialmente nas cidades do norte Martin Welke estima que talvez um dentre cada 500 alemães adultos pertencia a uma Lesegesellschaft em 1800 Marlies Prüsener conseguiu identificar bem mais de 400 clubes e esboçar alguma idéia de seu tema de leitura Todos eles possuíam um suprimento básico de periódicos suplementado por séries irregulares de livros em geral sobre temas bem áridos como história e política Parecem ter sido uma versão mais séria dos cafés em si um a instituição importante para a leitura que se espalhou por toda a Alemanha a partir do final do século dezessete Em 1760 Viena possuía pelo menos sessenta cafés Eles forneciam revistas jornais e oportunidades sem fim para discussões políticas o que ocorreu em Londres e Amsterdã por m ais de um século22 Assim já sabemos bastante sobre as bases institucionais da leitura Tem os algumas respostas para as perguntas de quem o quê onde e quando M as os porquês e os com os nos escapam A inda não descobrimos uma estratégia para o entendi 21 Citado em francês no original A tradução é U m a casa cômoda grande bem ilum inada e aquecida que estará aberta todos os dias das nove horas da m anhã até o meiodia e da um a hora da tarde até às dez da noite oferecendo desde pgora aos am adores dois mil volum es que serão aum entados em quatrocentos por ano N T 22 O s estudos de Dann Welke e Prüsener juntamente com outras pesquisas interes santes estão reunidos em Otto D ann ed Lesegesellschaften und bürgerliche Eman zipation em europãischer Vergleich M unique 1981 218 PETER BURKE mento do prcesso interno através do qual os leitores compreen dem as palavras Nem mesmo entendemos a maneira como nós m esmos lemos apesar dos esforços dos psicólogos e dos neurolo gistas para traçarem os movimentos dos olhos e mapearem os hemisférios do cérebro Será que os processos cognitivos são diferentes para os chineses que lêem ideogramas e para os ociden tais que escandem linhas Para os israelenses que lêem palavras sem vogais movendose da direita para a esquerda e para as pessoas cegas que transmitem estímulos através de seus dedos Para os asiáticos do sudeste cujas línguas são desprovidas de tempos verbais e determinam espacialmente a realidade e para os índios americanos cujas línguas só recentemente foram reduzidas à escrita por estudiosos estrangeiros Para o homem devoto na presença da Palavra e para o consumidor que examina os rótulos em um supermercado As diferenças parecem infinitas pois a leitura não é simplesmente um a habilidade mas uma maneira de estabelecer significado que deve variar de cultura para cultura Seria estranho esperar encontrar uma fórmula que pudesse considerar todas essas variações M as deveria ser possível desenvolver um m odo de estudar as mudanças na leitura no interior da nossa própria cultura Eu gostaria de sugerir cinco abordagens ao problema Em primeiro lugar creio que seria possível aprender mais sobre os ideais e as suposições subjacentes à leitura no passado Podería mos estudar as descrições contemporâneas da leitura na ficção em autobiografias escritos polêmicos cartas pinturas e gravuras para descobrir algumas noções básicas daquilo que as pessoas imagina vam ocorrer quando liam Consideremos por exemplo o grande debate sobre a mania de leitura na Alemanha no final do século dezoito Aqueles que deploravam a Lesewut não se limitavam a condenar seus efeitos sobre a moral e a política Temiam que ela fizesse mal à saúde pública Em um folheto de 1795 JG Heinze m ann relacionou as conseqüências físicas da leitura excessiva suscetibilidade a resfriados dores de cabeça enfraquecimento dos olhos ondas de calor gota artrite hemorróida asma apoplexia doença pulmonar indigestão obstipação intestinal distúrbio ner A ESCRITA DA HISTÓRIA 219 voso enxaqueca epilepsia hipocondria e melancolia N o lado positivo do debate Johann Adam Bergk aceitou as premissas de seu oponente mas discordou de suas conclusões Considerou como estabelecido que nunca se deveria ler imediatamente depois de comer ou quando se está de pé Mas com uma disposição correta do corpo poderseía ler bastante indefinidamente A arte da leitura envolvia lavar o rost com água fria e fazer caminhadas ao ar livre assim como concentração e meditação Ninguém desafiava a teoria de que havia um elemento físico na leitura porque ninguém fazia uma distinção clara entre o mundo físico e o m undo moral O s leitores do século dezoito tentaram digerir os livros absorvêlos em todo o seu ser corpo e alma O aspecto físico do processo às vezes se projeta nas páginas O s livros da biblioteca de Samuel Johnson atualmente de propriedade da Sra Donald F Hyde são empenados e desgastados como se Johnson houvesse lutado para abrir o seu caminho através deles23 Desde o início da maior parte da história ocidental e especial mente nos séculos dezesseis e dezessete a leitura foi encarada acima de tudo como um exercício espiritual Mas como ela era realizada Seria possível buscar orientação nos manuais dos jesuítas e nos tratados de hermenêutica dos protestantes As leituras familiares da Bíblia ocorriam em ambos os lados da grande Unha divisória religiosa E como indica o exemplo de Restif de la Bretonne a Bíblia era abordada com temor mesmo entre alguns camponeses católicos E claro que Boccaccio Castiglione Cervantes e Rabelais desenvolveram outros usos da instrução para a elite M as para a maioria das pessoas a leitura permanecia uma atividade sagrada Colocava as pessoas diante da Palavra desvendava os mistérios 23 A s observações de Heinzemann estão citadas em Helm ut Kreuzer Gefãhrliche Lesesucht Bemerkungen zu politischer Lektürekritik im ausgehenden 18 Jahrhun dert em Rainer Gruenter ed Leser und Lcsen im 18 Jahrundert Colloquium der Arbeitsstelle Achzehntes Jahrhundert Gesamthochschule Wuppertal 242ÓOhoher 1975 Heidelberg 1977 As observações de Bergk estão espalhadas por todo o seu tratado Die Kunst Bücher zu Lesen Jena 1799 que também contém algumas observações características sobre a importância dos livros digestivos ver seu frontispício e p 302 220 PETER BURKE sagrados C om o hipótese de trabalho parece válido presumir que quanto mais se recua no tempo mais afastado se fica da leitura instrumental N ão somente o livro do como fazer se torna mais raro e o livro religioso mais comum mas também a própria leitura é diferente N a época de Lutero e Loyola ela promovia o acesso à verdade absoluta Em um nível mais mundano as hipóteses sobre a leitura poderiam ser delineadas através dos anúncios e dos prospectos dos livros Daí algumas observações típicas de um prospecto do século dezoito tomado ao acaso da rica coleção da Newberry Library um livreiro está oferecendo uma edição inquartou dos Commentaires sur la coutume dAngoumois uma obra excelente insiste ele tanto por sua tipografia quanto por seu conteúdo O texto do Coutume é im presso em tipo grosromain os resumos que precedem os comentários impressos em cicéro e os comentários são impressos em SaintAugustin Toda a obra é feita de um papel muito bonito fabricado em Angoulème25 Nenhum editor sonharia em mencionar o papel e o tipo ao anunciar hoje em dia um livro de direito N o século dezoito os anunciantes presumiam que seus clientes se preocupavam com a qualidade física dos livros Tanto compradores quanto vendedores compartilhavam do m esmo modo de um conhecimento tipográfico que atualmente está quase extinto O s relatórios dos censores também podem ser reveladores pelo m enos no caso dos livros do início da França moderna quando a censura era altamente desenvolvida além de extrema mente eficiente U m livro típico de viagem Nouveau voyage aux isles de VAmérique Paris 1722 de autoria de JB Labat contém quatro aprovações impressas por extenso próximo aos direitos U m censor explica que o manuscrito despertou sua curiosidade E difícil começar a lêlo sem sentir aquela moderada m as ávida curiosidade que nos impele a continuar a ler Outro o recomenda 24 Dizse do formato dos livros im pressos em folhas dobradas duas vezes N T 25 Newberry Libraty C ase W ing Z 4518 serla no 31 A ESCRITA DA HISTORIA 221 por seu estilo simples e conciso e também por sua utilidade Nada em minha opinião é tão útil aos viajantes aos habitantes daquele país aos comerciantes e àqueles que estudam história natural E um terceiro simplesmente o considerou uma boa leitura Experimentei grande prazer em lêlo Ele contém um número enorme de coisas curiosas O s censores não perseguiam apenas os livros hereges e revolucionários como tendemos a supor olhando para trás através do tempo da Inquisição e do Iluminis mo Concediam a uma obra o selo real de aprovação e assim fazendo apresentavam indicações de como ele poderia ser lido Seus valores constituíam um padrão oficial em comparação com o qual as leituras comuns poderiam ser avaliadas Mas como liam os leitores comuns M inha segunda sugestão para atacar esse problema diz respeito às maneiras como a leitura era ensinada A o estudar a instrução na Inglaterra do século dezessete Margaret Spufford descobriu que grande parte do apren dizado ocorria fora da escola em oficinas e nos campos onde os trabalhadores ensinavam a si mesmos e uns aos outros Dentro da escola as crianças inglesas aprendiam a ler antes de aprenderem a escrever em vez de adquirirem as duas habilidades ao mesmo tempo no início de sua educação como ocorre hoje Freqüente mente juntavamse à força de trabalho antes dos sete anos de idade quando tinham início as instruções na escrita Assim as avaliações da alfabetização baseadas na capacidade de escrever podem ser muito baixas e o público leitor pode ter incluído um grande número de pessoas que não podiam assinar seus nom es26 Mas a leitura para tais pessoas provavelmente significava algo completamente diferente daquilo que significa hoje N o início da 26 M argaret Spufford First Steps in Literacy The Reading and W riting Experiences ofth e H um blest seventeenthcentury Autobiographers Social History 4 p 40735 1979 e Spufford Smal Books and Pleasant Histories Popular Fiction and its Raadership in Seventeenthcentury England Athens Geórgia 1981 Sobre a leitura popular na Inglaterra dos séculos dezenove e vinte ver RK W ebb The BritísK Working Class Reader Londres 1955 e Richard D Altick The Engiish Common Reader A Social History ofthe M ass Reading Public 18001900 Chicago 1957 222 PETER BURKE França moderna os três Rs eram aprendidos em seqüência primeiro ler depois escrever depois aritmética27 assim como na Inglaterra e ao que parece em todos os outros países do Ocidente A s cartilhas mais comuns do Antigo Regime livros de alfabetiza ção como a Croix de Jésus e a Croix de par Dieu começavam como os manuais modernos com o alfabeto M as as letras tinham sons diferentes O aluno pronunciava uma vogal de apoio antes de cada consoante de forma que o p surgia como um ehp em vez de pe como é hoje Q uando ditas em voz alta as letras não se ligavam foneticamente em combinações que poderiam ser reconhe cidas pelo ouvido como sílabas de uma palavra Assim pat em pater soaria como ehpaheht M as a indistinção fonética realmente não importava porque as letras eram consideradas como estímulos visuais para acionar a memória de um texto que já havia sido aprendido de cor e o texto era sempre em latim Todo o sistema era construído na premissa de que as crianças francesas não deveriam começar a ler em francês Passavam diretamente do alfabeto para sílabas simples e daí para o Pater Nos ter a Ave Maria o Credo e o Benedicite Tendo aprendido a reconhecer essas orações comuns passavam para as respostas litúrgicas impressas nas brochuras padronizadas Nesse ponto muitas crianças deixavam a escola Já haviam adquirido domínio suficiente da palavra impres sa para preencherem as funções que a Igreja esperava delas ou seja participar de seus rituais M as jamais haviam lido um texto em uma língua que pudessem compreender Algumas crianças não sabemos quantas talvez uma minoria no século dezessete e uma maioria no século dezoito permane ciam na escola tempo suficiente para aprender a ler em francês M esm o assim no entanto a leitura era com freqüência uma questão de reconhecimento de algo já conhecido em vez de um processo de aquisição de um novo conhecimento Quase todas as escolas eram orientadas pela Igreja e quase todos os livros didáticos 27 C ham ados em inglês de três Rs porque uniting reading e arithmetics têm um som inicial de R NT A ESCRITA DA HISTÓRIA 223 eram religiosos em geral catecismos e livros de devoção como a Escole paroissiale de Jacques de Batencour No início do século dezoito os Frères des Ecoles Chrétiennes começaram a apresentar o mesmo texto a vários alunos e a ensinarlhes como um grupo primeiro passo para a instrução padronizada que irisrse tomar a regra cem anos mais tarde Ao mesmo tempo alguns preceptores nas famílias aristocráticas começaram a ensinar a ler diretaínente em francês Desenvolveram técnicas fonéticas e auxílios audiovisuais como as cartas brilhantes e ilustradas do abade Berthaud e o bureau typographique de Louis Dumas Em 1789 seu exemplo se difundiu para algumas escolas primárias progressistas Mas a maior parte das crianças ainda aprendia a Ler ficando de pé diante do professor e recitando passagens de seja qual fosse o texto em que conseguissem pôr as mãos enquanto seus colegas lutavam com uma coleção heterogênea de livretos nos bancos de trás Alguns desses livros didáticos iriam reaparecer à noite na vieillê porque eram livros populares muito vendidos da bibliothèque bleue28 Portanto a leitura ao pé do fogo tinha algo em comum com a leitura em uma sala de aula era uma récita de um texto que todos já conheciam Em lugar de abrir perspectivas sem limites de novas idéias ele provavelmente perma necia no interior de um circuito fechado exatamente onde a Igreja PósTridentina desejava mantêlo Provavelmente no entanto é a palavra principal nessa proposição Só podemos fãzer conjeturas diante da natureza dos primórdios da pedagogia lendo as primeiras cartilhas e as reminiscências ainda em menor número que sobreviveram dessa época N ão sabemos o que realmente acontecia na sala de aula E seja o que fosse que acontecesse os leitores e ouvintes camponeses podem ter construído tanto seu catecismo como suas narrativas de aventuras de maneira que absolutamente nos escapam29 28 C oleção de livros populares de capa azul publicada do século X V II a meados do século X IX em sua m aioria adaptações de romances medievais de cavalaria N T 29 Esta discussão é baseada na pesquisa de Dom inique Julia especialmente seú Livres de classe et usages pédagogiques em Histoire de lédition française v II p 46897 Ver tam bém Jean Hébrard Didactique de la lettre et soum ission au sens Note sur lhistoire des pédagogies de la lecture em Les textesdu Centre Alfred Binet Venfant et 1écrit 3 p 1530 1983 224 PETER BURKE Se a experiência da grande m assa de leitores está além do alcance da pesquisa histórica os historiadores deveriam ser capazes de captar algo do que a leitura significava para as poucas pessoas que dela deixaram um registro U m a terceira abordagem poderia começar com os muito conhecidos relatos autobiográficos aqueles de Santo Agostinho Santa Teresa de Ávila Montaigne Rousseau e Stendhal por exemplo e passar para fontes menos familiares JM Goulem ot utilizou a autobiografia de JamereyDuval para mostrar como um camponês podia ler e escrever sua trajetória nas fileiras do Antigo Regime e Daniel Roche descobriu um vidraceiro JacquesLouis Ménétra que transcreveu sua viagem em um circuito característico pela França Embora não levasse muitos livros na sacola às suas costas Ménétra constantemente trocava cartas com companheiros viajantes e com namoradas Esbanjou alguns soidos em manifestos em execuções públicas e até compôs versos burles cos para as cerimônias e as farsas que representava com os outros trabalhadores Q uando contou a história de sua vida organizou sua narrativa de modo picaresco combinando a tradição oral contos folclóricos e fanfarronadas estilizadas de reuniões masculi nas com gêneros de literatura popular as pequenas novelas da bibliothèque bleue Ao contrário de outros autores plebeus Restif Mercier Rousseau Diderot e Marmontel Ménétra jamais con seguiu um lugar na República das Letras Ele mostrou que a literatura tinha um lugar na cultura do homem comum30 Esse lugar pode ter sido à margem mas as margens em si fornecem indícios para a experiência dos leitores comuns No século dezesseis as notas lançadas à margem apareciam impressas sob a forma de glossários que orientavam o leitor através dos textos humanistas N o século dezoito o glossário deu lugar à nota de rodapé Com o o leitor seguia a peça entre o texto e o paratexto na base ou na lateral da página G ibbon criou uma distância irônica através do desdobramento magistral das notas de rodapé Um 30 JeanMarie Goulem ot ed Valentin JamereyDuval Mémoires Enfance et éducation d un paysan au XV U le siècle Paris 1981 Daniel Roche ed Journal ie ma vie JacquesLouis Ménétra compagnon vitrier au 18e siècle Paris 1982 A ESCRITA DA HISTÓRIA 225 estudo cuidadoso de cópias anotadas do século dezoito de The Decline and Fali of Roman Empire poderia revelar o m odo como a distância foi percebida pelos contemporâneos de Gibbon John Adam s cobriu seu livro de rabiscos Acompanhandoo através de sua cópia do Discourse on the Origin of Inequality de Rousseau podese ver o quanto a filosofia do Iluminismo parecia radical para um revolucionário isolado no clima maravilhoso de Quincy em Massachusetts Assim dizia Rousseau na primeira edição em inglês There was no kind of moral relation between men in th is State the State of nature they could not be either good or bad and had neither vices nor virtues It is proper therefore to suspend judgment about their situation until we have examined whether there are more virtues or vices among civilized men31 E Adam s na margem Wonders upon wonders Paradox upon Paradox What astonishing sagacity had Mr Rousseau Yet this eloquent coxcomb has with his affectation of singularity made men discontented ivith superstition and tyranny32 Christiane BerkvensStevelinck encontrou um excelente local para mapear a República das Letras nas notas à margem de Prosper M archand bibliófilo da Leyden do século dezoito Outros estudio sos levantaram as tendências da história literária tentando reler os grandes livros como os grandes escritores os haviam lido utilizan do as anotações de exemplares de colecionadores como a cópia de Diderot da Encyclopédie e a cópia de Melville dos ensaios de Emerson M as a pesquisa não precisa se restringir aos grandes livros ou aos livros em geral Peter Burke está atualmente estudando os graffiti da Itália renascentista Q uando se rabiscava na porta de um inimigo os rabiscos muitas vezes funcionavam como insultos 31 N ão havia qualquer espécie de relação moral entre os hom ens neste estado o estado da natureza eles não podiam ser bons ou ruins e nem possuíam vícios ou virtudes É conveniente portanto suspenderse o julgamento sobre sua situação n até que tenham os examinado se há m ais virtudes e vícios entre os hom ens civilizados NT 32 M aravilhas sobre maravilhas Paradoxo sobre paradoxo Q ue surpreendente saga cidade possuía o Sr Rousseau M as esta eloqüente pretensão com sua simulação de singularidade tornou os hom ens descontentes com a superstição e a tirania NT rituais que tleflniam as linhas do conflito social que dividia vizinhanças e clãs Q uando ligados à famosa estátua de Pasquino em Roma esses rabiscos públicos estabeleciam a tônica de uma cultura de rua intensamente política U m a história da leitura poderia ser capaz de avançar em grandes saltos da Pasquinade e da Com m edia deliArte até Molière de Molière até Rousseau e de Rousseau até Robespierre33 M inha quarta sugestão diz respeito à teoria literária Concordo que ela possa parecer desencorajadora especialmente para quem está de fora Aparece envolta em rótulos imponentes estrutura lismo desconstrução hermenêutica semiótica fenomenologia e desaparece tão rapidamente quanto surgiu pois as tendências substituem umas às outras com desconcertante velocidade Através delas todas entretanto segue uma preocupação que poderia con duzir a alguma colaboração entre os críticos literários e os historia dores do livro a preocupação com a léitura Seja desenterrando estruturas profundas ou demolindo sistemas de sinais os críticos têm cada vez mais tratado a literatura antes como uma atividade do que como um corpo estabelecido de textos Insistem em que o significado de um livro não está determinado em suas páginas é construído por seus leitores A ssim sendo a reação do leitor tornase o ponto chave em torno do qual gira a análise literária N a Alemanha esta abordagem conduziu a um renascimento da história literária como Rezeptionsàsthetik sob a liderança de Hans Robert Jauss e W olfgang Iser N a França provocou uma reviravolta filosófica na obra de Roland Barthes Paul Riccoeur Tzvetan Todorov e Georges Poulet N os Estados U nidos está ainda no estágio de fusão Wayne Booth Paul de Man Jonathan 33 A s notas à margem de Adam s estão citadas em Zoltán Haraszti John Adams the Prophets of Progress Cambridge M ass 1952 p 85 Sobre os glossários e as no tas de rodapé ver Lawrence Lipking The M arginal G loss Criticai Inquiry 3 p 620311977 eG W Bowersock The Art ofthe Footnote The American Scholar 53 p 5462198384 Sobre os manuscritos de Prosper M archand ver os dois artigos de autoria de Christiane BerkvensStevelinck LA pport de Prosper M archand au système des libraires de Paris e Prosper M archand trait dunion entre auteur et éditeur em De gulden Passer 56 p 2163 e 6599 1978 A ESCRITA DA HISTÓRIA 227 Culler Geofftey Hartman J Hillis Miller e Stanley Fish acrescen taram ingredientes para uma teoria geral mas nenhum consenso emergiu de seus debates Não obstante toda essa atividade crítica aponta para uma nova textologia e todos os críticos compartilham um modo de trabalho quando interpretam textos específicos34 Considerem os por exemplo a análise de W alter O ng das primeiras frases de A Farewell to Arms No final do verão daquele ano nós vivíamos em uma casa em uma aldeia que parecia atravessar o rio e a planície até chegar às montanhas No leito do rio havia seixos e pedregulhos secos e brancos ao sol e a água era clara moviase depressa e era azul nos canais Que ano Q ue rio pergunta Ong Hemingway não diz Pelo uso nãoortodoxo do artigo definido o rio em vez de um rio e do desdobramento esparso de adjetivos ele sugere que o lei tor não necessita de uma descrição detalhada da cena U m lembre te será suficiente porque imaginase que o leitor já esteve lá Hemingway dirigese a ele como se fosse um confidente e compa nheiro de viagem que apenas necessita ser lembrado das coisas para recuperar o brilho forte do sol o sabor vulgar do vinho e o cheiro fétido da morte na Itália da Primeira Guerra Mundial O leitor poderia objetar e podese imaginar muitas reações como Eu sou um a avó de sessenta anos de idade e não sei nada sobre os rios da Itália não ser capaz de acompanhar o livro M as se aceitar o papel que lhe é imposto pela retórica seu ser ficcionalizado pode se avolumar até às dimensões do herói de Hemingway e pode seguir a narrativa como um companheiro de armas do aütor35 34 Para pesquisas e bibliografias da crítica leitorresposta ver Susan R Suleim an e Inge C rosm an ed The Reader in the Text Essays on Audience and Interpretation Princeton 1980 e Jane P Tom pkins ed ReaderResponse Criticism From Formalism to PostStructuralism Baltimore 1980 U m a das obras mais importantes deste estilo de crítica é W olfgang Iser The Implied Reader Patterns of Communication in Prose Fiction from Bunyan to Beckett Baltimore 1974 35 W alter O ng The W riters Audience Is Always a Fiction PMLA 90 p 921 1975 228 PETER BURKE A retórica anterior em geral operava da maneira oposta Presumia que o leitor nada sabia sobre a história e necessitava ser orientado por ricas passagens descritivas ou observações introdu tórias Assim a abertura de Pride and Prejudice E uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro de posse de uma boa fortuna deva estar desejoso de uma esposa Por menos que se conheçam os sentimentos ou as opiniões de um tal homem que pode estar se introduzindo pela primeira vez em um ambiente esta verdade está tão arraigada nas mentes das famílias das cercanias que ele é considerado como propriedade de direito de uma ou outra de suas filhas Meu caro Sr Bennet disselhe sua esposa certo dia ouviu falar que Netherfield Park foi finalmente alugado Este tipo de narrativa movese do geral para o particular Coloca primeiro o artigo indefinido e ajuda o leitor a atingir seu rumo aos poucos M as sempre o mantém à distância porque se presume que ele entre na história como alguém de fora e que está lendo para se instruir para se divertir ou por algum propósito moral elevado Com o no caso da novela de Hemingway deve desempe nhar seu papel para que a retórica funcione mas o papel é completamente diferente O s escritores inventaram muitas maneiras de introduzir seus leitores nas narrativas U m a grande distância separa o Chameme Ismael de Melville do devoto de M ilton que reza por ajuda para justificar os caminhos de Deus até os hom ens M as toda narrativa pressupõe um leitor e toda leitura se inicia a partir de um título inscrito no texto O texto pode escavar a si mesmo e o leitor reagir contra a semente ou extrair novo significado de palavras familiares daí as infinitas possibilidades de interpretação propostas pelos desconstrutivistas e pelas leituras dos originais que moldaram a história cultural a leitura de Rousseau de Le Misanthrope por exemplo ou a leitura de Kierkegaard do Gênesis 22 M as seja o que for que se faça dela a leitura ressurgiu como o fato central da literatura A ESCRITA DA HISTÓRIA 229 Se é assim chegou o momento de se realizar uma união entre a teoria literária e a história dos livros A teoria pode revelar a variedade nas reações potenciais a um texto ou seja aos cons trangimentos retóricos que dirigem a leitura sem determinála A história pode mostrar que asleituras realmente ocorrem ou seja dentro dos limites de um corpo imperfeito de evidência Estando atento à história os críticos literários podem evitar o perigo do anacronismo pois eles às vezes parecem supor que os ingleses do século dezessete liam Milton e Bunyan como se fossem professores secundários do século vinte Levando em conta a retórica os historiadores podem encontrar indícios para o comportamen to que de outra forma seria desconcertante como as paixões despertadas de Clarissa até La Nouvelle Héloíse e de Werther até René Por isso eu argumentaria em prol de uma estratégia dupla que combinaria a análise textual com a pesquisa empírica Dessa maneira seria possível comparar os leitores implícitos dos textos com os leitores reais do passado e através dessas comparações desenvolver tanto uma história quanto uma teoria da reação do leitor Tal história poderia ser reforçada por um quinto modo de análise baseado na bibliografia analítica Estudando os livros como objetos físicos os bibliógrafos demonstraram que a disposição tipográfica de um texto pode em uma extensão considerável determinar seu significado e a maneira como foi lido Em um estudo notável de Congreve D F McKenzie mostrou que o dramaturgo neoelizabethano obsceno conhecido por nós pelas edições inquarto do final do século dezessete passou por um renascimento tipográfico em sua velhice e emergiu como o imponente autor neoclássico dos três volumes inoitavo36 das O bras publicadas em 1710 As palavras isoladas raramente m udam de um a edição para outra mas um a transformação no formato dos livros proporcionou às peças um sabor inteiramente 36 Dizse do formato de livro cuja folha dobradatrês vezes é composta de dezesseis páginas isto é oito de cada lado NT 230 PETER BURKE novo Acrescèntando divisões de cena personagens agrupados linhas realocadas e apresentando as liaisons des scènes Congre ve adapta seus antigos textos ao novo modelo clássico derivado do palco fracês Passar dos volumes inquarto para os volumes inoitavo é transferirse da Inglaterra elizabethana para a geor giana37 Roger Chartier encontrou implicações similares porém m ais sociológicas nas m etam orfoses de um clássico espanhol Historia de la vida dei Buscón de Francisco de Quevedo A novela foi originalmente destinada a um público sofisticado tanto na Espanha onde foi publicada pela primeira vez em 1626 quanto na França onde foi lançada em um a elegante tradução em 1633 M as em meados do século dezessete as editoras O udot e Garnier em Troyes começaram a publicar uma série de edições baratas em brochura que a tornaram durante duzentos anos a peça principal vital da literatura popular conhecida como bibliothèque bleue O s editores populares não hesitaram em remendar o texto m as concentraramse primeiramente no formato do livro o que Chartier chama de mise en livre Fragmentaram a narrativa em unidades simples encurtando as frases subdividindo parágrafos e multiplicando o número de capítulos A nova estrutura tipográ fica implicava um novo tipo de leitura e em um novo público as pessoas humildes a quem faltava a facilidade e o tempo para absorver longos trechos de narrativa O s episódios curtos eram autônom os N ão necessitavam ser unidos por subtemas comple xos e desenvolvimento de personagens porque proporcionavam material suficiente para preencher um a vieillée A ssim sendo o livro em si tornouse antes um a coleção de fragmentos do que um a narrativa contínua e poderia ser reunido por cada leitor ouvinte à sua própria maneira Exatamente como esta apropria ção ocorreu permanece um mistério porque Chartier se limita 37 D F McKenzie Typography and Meaning The C ase o f W illiam Congreve em Giles Barber e Bernhard Fabian ed Buch und Buchhandel in Europa im achtzehnten Jahrhundert Ham burgo 1981 p 81126 A ESCRITA DA HISTÓRIA 231 a analisar o livro como um objeto físico M as mostra como a tipografia se abre para a sociologia como o leitor implícito do autor tornouse o leitor implícito do editor descendo a escala social do Antigo Regime e penetrando no mundo que seria reconhecido no século dezenove como o grande público38 Poucos bibliógrafos e historiadores do livro aventureiros começaram a especular sobre as tendências de longo prazo na evolução do livro Argumentam que os leitores reagem mais diretamente à organização física dos textos que ao ambiente social que os rodeia Assim pode ser possível aprender algo sobre a história remota da leitura praticandose uma espécie de arqueolo gia textual Se não podemos saber precisamente como os romanos liam Ovídio podemos supor que assim como a maior parte das inscrições romanas os versos não continham pontuação parágra fos ou espaços entre as palavras As unidades de som e significado provavelmente estavam mais próximas dos ritmos da fala do que as unidades tipográficas os prefixos as palavras e as linhas da página impressa A página em si como uma unidade do livro data apenas do terceiro ou quarto século dC Antes disso tinhase que desenrolar um livro para lêlo U m a vez que as páginas reunidas o codex substituíram os rolos voumen os leitores podiam facilm ente se m ovim entar para trás e para diante através dos livros e os textos tornaram se divididos em segm entos que podiam ser lim itados e indexados M as m uito tem po depois dos livros terem adquirido sua form a m oderna a leitura continuou a ser um a experiência oral apresentada em públi co Em um m om ento indeterm inado talvez em alguns m os teiros no século sétim o e certamente nas universidades do século treze os hom ens com eçaram a ler silenciosam ente e sozinhos A m udança para a leitura silenciosa pode ter envol vido um ajustam ento m ental maior que a mudança para o texto 38 Roger Chartier Figures de la gueuserie Paris 1982 V er também as reflexões gerais de Chartier em seu ensaio U ne histoire de la lecture estclle possible Du livre au lire quelques hypothèses a ser publicado nas transações do Colloque de Saint M axim in outubro de 1982 232 PETER BURKE impresso pois ela transformou a leitura em uma experiência individual interior39 E claro que a impressão fez diferença mas provavelmente foi menos revolucionária do que em geral se acredita Alguns livros tinham frontispício índice índex paginação e editores que pro duziam muitas cópias a partir do original para um grandè público leitor antes da invenção do tipo móvel Durante o primeiro meio século de sua existência o livro impresso continuou a ser uma imitação do livro manuscrito Sem dúvida era lido pelo mesmo público da mesma maneira M as após 1500 livros panfletos manifestos mapas e cartazes impressos atingiram novos tipos de leitores e estimularam novos tipos de leitura Cada vez mais padronizado em seu formato mais barato em seu preço e espalhado em sua distribuição o novo livro transformou o mundo Ele simplesmente não supria mais informação Proporcionava uma forma de entendimento uma metáfora básica do sentido da vida Portanto foi durante o século dezesseis que os homens toma ram posse da Palavra Durante o século dezessete começaram a decodificar o livro da natureza E no século dezoito aprenderam eles próprios a ler C om a ajuda dos livros Locke e Condillac estudaram a mente como uma tabula rasa e Franklin formulou um epitáfio para si mesm o40 39 Paul Saenger M anières de lire médiévales Histoire de ledition française v I p 13141 e Sanger From O ral Reading to Silent Reading Vi ator 13 p 367414 1982 E claro que se podem encontrar casos excepcionais de indivíduos que liam silenciosamente muito antes do século dezessete o mais famoso sendo Santo Am brósio com o está descrito nas Confessions de Santo Agostinho Para um a discussão adicional da leitura e do início da história do livro ver HenriJean Martin Pour une histoire de la lecture Revue française dhistoire du livre nova série n 16 p 5836101977 40 Sobre a história de longo prazo da idéia do m undo como um livro a ser lido ver H ans Blumenberg Die Lesbarkeit der Welt Frankfurt am M ain 1981 O epitáfio de Franklin na verdade não aparece em seu m ausoléu Ele provavelmente o escreveu em 1728 quando era um jovem tipógrafo e um talento do Junto club ver The Papers of Benjamin Franklin Leonard W Labaree ed New Haven 1959 v 1 p 10911 A linguagem é ligeiramente diferente em cada um dos três textos autografados A ESCRITA DA HISTÓRIA 233 O Corpo de B Franklin Impressor Como a capa de um velho Livro Seu Conteúdo é arrancado E despido de sua Inscrição Brilho Aqui jaz Alimento para os Vermes Mas a Obra não será perdida Pois como ele acreditava Vai aparecer uma vez mais Em uma Edição nova e mais elegante Corrigida e melhorada Pelo Autor N ão quero interpretar muito a metáfora pois Franklin já se empenhou nisso até a morte mas antes voltar a um ponto tão simples que pode escapar à nossa observação A leitura tem uma história N ão foi sempre e em toda parte a mesma Podemos pensar nela como um processo direto de se extrair informação de uma página m as se a considerássemos um pouco mais concordaríamos que a informação deve ser esquadrinhada retirada e interpretada O s esquemas interpretativos pertencem a configurações culturais que têm variado enormemente através dos tempos Com o nossos ancestrais viviam em mundos mentais diferentes devem ter lido de forma diferente e a história da leitura poderia ser tão complexa quanto a história do pensamento Seria tão complexa de fato que os cinco passos aqui sugeridos poderiam conduzir a direções disparatadas ou nos pôr circulando indefinidamente em torno do problema sem penetrar em seu âmago N ão há caminhos diretos ou atalhos porque a leitura não é uma coisa distinta como uma constituição ou uma ordem social que pode ser rastreada através do tempo E um a atividade que envolve uma relação peculiar por um lado o leitor por outro o texto Embora os leitores e os textos tenham variado segundo circunstâncias sociais e tecnológicas a história da leitura não deve ser reduzida a uma cronologia dessas 234 PETER BURKE variações Deveria ir além para confrontar o elemento de relação no cerne da questão como as funções variadas do leitor interpre tavam textos desiguais A questão soa obscura mas muita coisa depende disso C on sideremos a freqüência com que a leitura mudou no curso da história a leitura que Lutero fez de Paulo a leitura que Marx fez de Hegel a leitura que M ao fez de Marx Esses pontos se sobres saem em um processo muito mais profundo muito mais vasto o esforço eterno do homem para encontrar significado no m undo que o cerca e no interior de si mesmo Se pudéssemos compreender como ele tem lido poderíamos nos aproximar de um entendimen to de como ele compreende a vida e dessa maneira da maneira histórica poderíamos até satisfazer parte de nossa própria ânsia de significado Apêndice um Cabinet littéraire provinciano em 1779 A circular que se segue apresenta um raro vislumbre de um cabinet littéraire ou clube de leitura na França prérevolucioná ria Foi enviada por PJ Bernard um livreiro de Lunéville para os oficiais da gendarmerie local em setem bro de 1779 Bernard queria convencer os gendarmes a se associarem a seu cabinet e por isso enfatizava a sua utilidade para os militares M as provavelmente se parecia com estabelecimentos sim ilares disse m inados através da França provinciana A circular provém do arquivo de Bernard localizado entre os docum entos da Société typographique de Neuchâtel na Bibliothèque publique et uni versitaire de Neuchâtel na Suíça Sua ortografia não foi m oder nizada ou corrigida A ESCRITA DA HISTÓRIA 235 A Messieurs les Gendarmes Messieurs Le Sr Bernard propriétaire du Cabinet Littéraire de la Gendarmerie autorisé par Monsieur le Marquis dAutichamp a 1honneur de vos représenter quencouragé par le suffrage de tes abonnés il désireroit fonder un écablissement plus étendu et plus utile II voudroit quau moyen dun a bonnement certain inmriable M essieurs les Gendarmes trouvassent cves lui tous les secours littéraires quils peuvent désirer Une maison commode grande bien éclairée chauffée que seroit ouverte tous le jours depuis neuf heures du matin jusquà midi depuis une heure jusquà dix offriroit dès cet instant aux amateurs deux mille volumes qui seroient augmentés de quatre cens par année Les livres seroient à la disposicion de Messieurs les Gendarmes qui cependant ne pourront les sortir de la bibliothèque Le Sr Bernard sengage à se procurer par chaque ordinaire Deux journaux de Linguet Deux M ercures Deus Journaux militaires Deus Journaux des affaires de VAmérique de VAngleterre Deux Esprits des journaux Deux Gourriers de 1Europe Deux Gazettes de France Deux Gazettes de Leyde Deux Gazettes de la Haye Deux Gazettes de Bruxelles Deux Courriers du Bas Rhin Deux Courriers de DeuxPonts Deux Bulletins Auxquels seront joints les ouvrages Instruments de mathématiques les cartes géographiques les ordonnances militares tout ce que concerne un officier Le Sr Bernard aussi sensible au plaisir dêtre utile quà son interêt particulier se bornera pour chaque abonnement à trois livres par an Voilà quel sera 1ordre de sa m aison Une salle au rais de chaussêe sera destinée pour la conversation ainsi quune chambre au premier étage íes autres seront abandonnées aux íecteurs des gazettes des ouvrages de littérature etc II ne sera question daucun jeu quelconque sous tel prétexte que ce soit La reconnaissance que le Sr Bernard a vouée à la Gendarmerie lui fait saisir tous le moyens de lui être agréable II se iate que Messieurs les Gendarm es voudront bien jetter sur son projet un coup doeil favorable le mettre à portée dajouter aux obligations quil leur a deja 1hommage dune éternelle reconnaissance NB Le Sr Bernard prie ceux de ces Messieurs les Gendarmes qui lui seront favorables de vouloir bien lui accorder leur signature1 236 PETER BURKE 41 Citado em francês no original A tradução é A os Senhores Gendarm es Senhores O Sr Bernard proprietário do Cabinet Littéraire de la Gendarmerie autorizado pelo Sr M arquês dAuticham p tem a honra de comunicarlhes que encorajado pela aprovação de seus subscritores desejaria fundar um estabelecimento dê m aior alcance e mais útil Ele gostaria que mediante um a subscrição Certa e invariável os senhores Gendarm es encontrassem em seu estabelecimento todos os recursos literários que pudessem desejar U m a casa cômoda grande bemiluminada e aquecida que estaria aberta todos os dias das nove da m anhã ao meiodia e da um a da tarde às dez da noite ofereceria desde agora aos amadores dois mil volumes que seriam aum entados em quatrocentos a cada ano O s livros estariam à disposição dos senhores Gendarm es que entretanto não poderiam retirálos da biblioteca O Sr Bernard se compromete a conseguir habitualmente D ois jornais de Linguet dois Mercures dois Journaux militaires dois Journaux des affaires de lAm érique dAngleterre dois Esprits des jornaux dois Courriers de 1Europe duas Gazettes de France duas Gazettes de Leyde duas Gazettes de La Haye duas Gazettes de Bruxelles dois Courriers du Bas Rhin dois Courriers de DeuxPonts dois Bulletins aos quais seriam acrescentados obras e instrumentos de matemática m apas geográficos editos militares e tudo o que diz respeito a um oficial O Sr Bernard tão sensível ao prazer de ser útil quanto ao seu interesse particular limitará cada subscrição a três libras por ano Assim será a disposição da casa U m a sala ao résdochão será destinada à conversação assim como um aposento no primeiro andar os outros ficarão à disposição dos leitores das gazetas das obras de literatura etc N ão será permitido nenhum jogo por qualquer pretexto O reconhecimento de que o Sr Bernard tem devotado ao C orpo dos Gendarm es faz com que ele utilize todos os meios para serlhe agradável Está convencido de que os senhores Gendarm es vão considerar favoravelmente o seu projeto e acrescenta às obrigações que já lhes deve a homenagem de um eterno reconhecimento N B O Sr Bernard roga aos senhores Gendarm es que apoiarem seu projeto queiram concederlhe sua assinatura N T HISTÓRIA DAS IMAGENS Ivan Gaskell Material visual Embora os historiadores utilizem diversos tipos de material como fonte seu treinamento em geral os leva a ficarem mais à vontade com documentos escritos Conseqüentemente são muitas vezes mal equipados para lidar com material visual muitos utili zando as imagens apenas de maneira ilustrativa sob aspectos que podem parecer ingênuos corriqueiros ou ignorantes a pessoas profissionalmente ligadas à problemática visual Mas é claro que isso não ocorre sempre Alguns historiadores têm proporcionado valiosas contribuições à nossa visão do passado e do local em que nele está inserido o material visual usando as imagens de uma forma sofisticada e especificamente histórica N ão obstante é raro que a opinião do historiador seja levada em conta quando as imagens são debatidas em um contexto mais amplo Essa carência não continuaria a existir se os historiadores fossem informados de algumas das preocupações que dominam os pensamentos e a C urador de Pinturas do M useu Margaret S W inthrop dos M useus de Aros da Universidade de Harvard 238 PETER BURKE prática daqueles que lidam com material visual É isso que eu espero fazer no presente capítulo no contexto de uma discussão de uma seleção de obras recentes em um campo de pesquisa terrivelmente vasto Para evitar possíveis malentendidos antes de prosseguir vou definir meu uso dos termos Por história entendo antes o discurso realizado pelos historiadores do que o passado Por arte entendo aqueles artefatos e às vezes os conceitos a eles associados produ zidos por aqueles designados como artistas seja por si próprios por seus contemporâneos ou retrospectivamente por outros Tam bém deveriam estar incluídos aqueles meios desenvolvidos pelos artistas para escaparem da arte como um artefato especialmente estando entre eles a arte da representação embora esta não vá ser aqui tratada Mas minha discussão não está limitada à arte ainda que eu desconheça algum termo isolado para descrever a ampla variedade de material visual a que desejo me referir Este inclui a arte como acabou de ser definida mas também primeiramente aqueles constituintes do ambiente visual feito pelo homem que são ou foram avaliados por outras razões além de seu propósito prático ostensivo se é que possuem um seja por sua destinação desde o início por exemplo a cadeira não simplesmente designada para ser sentada ou retrospectivamente o objeto encontrado ou coletável investido de um a nova importância pela designação em segundo lugar aqueles constituintes do ambiente visual feito pelo homem que são primariamente comunicativos incluindo o desenho gráfico e a fotografia Vou denominar essa m assa um tanto nebulosa que inclui a arte de material visual Este capítulo tem o título de História das Imagens em vez de História da Arte pela simples razão de que eu desejo considerar as questões relacionadas ao material visual além dos limites da arte assim como em seu interior N a verdade a distinção entre a arte e os outros materiais visuais sugere não somente questões de terminologia mas também a relativa posição ou privilégio dos diferentes tipos de material A história da arte é em grande parte relacionada apenas à arte e à percepção das hierarquias A ESCRITA DA HISTÓRIA 239 qualitativas em seu interior embora este aspecto discriminatório da disciplina esteja sendo cada vez mais questionado por alguns profissionais nos últimos anos Todavia tanto a história da arte quanto outras formas de estudo do material visual são em grande parte e legitimamente ahistóticas No presente contexto parece importante salientar que a história da arte não é uma subdisciplina da história Além disso muito trabalho interpretativo relacionado à arte e a outros materiais visuais não assume a forma escrita ou apenas a forma escrita N a verdade muitos daqueles mais intimamente envolvidos com a consideração do material visual desconfiam ou mesm o rejeitam o discurso acadêmico e a reivindicação implícita de precedência interpretativa com freqüência tem propiciado isso A apresentação e a interpretação implícita de tal material por museus e galerias em mostras e no interior da arte em si são igualmente ou até mais importantes N a cultura ocidental três instituições interligadas são centrais à definição pela prática daquilo que constitui material visual e de igual importância seus limites e hierarquias internos Estas instituições são primeiro os negociantes os leiloeiros e os cole cionadores segundo as diretorias dos museus e das galerias públicas e por trás delas os burocratas dos fundos públicos em terceiro os historiadores de arte acadêmicos os editores e como companheiros mais novos os críticos Embora alguns membros de cada grupo individual possam reivindicar permanecer à parte dos outros há um considerável intercâmbio entre os três em muitos níveis desde aquele das idéias e das suposições até aquele do dinheiro N a verdade os dois primeiros são claramente inter dependentes por exemplo o patrocinador de um a exibição pode deslizar entre eles Fora dessa tríade central tendo uma influência limitada sobre ela podem estar situados os artistas e os professores de arte Sua prática quase não tem efeito imediato sobre a discussão do material visual prémoderno nessa tríade e em certo sentido apenas um efeito limitado sobre a discussão das questões contem porâneas O que os artistas fazem podé ser facilmente ignorado e 240 PETER BURKE eles não podem ter uma voz independente efetiva pois seu trabalho e até certo ponto eles próprios são tratados como propriedade dos membros da tríade E difícil formularse uma análise da opinião recebida subjacente à constituição hierárquica do material visual devido à complexi dade do material e à falta de consenso verdadeiro Entretanto o que se segue pode servir como um amplo guia geral Dentro deste vasto corpo de material a distinção primária a ser feita é entre arte e outros N a arte há uma distinção baseada em critérios humanistas renascentistas classicamente derivados entre arte erudita como uma expressão da criação humana individual e arte decorativa ou aplicada termos que têm sido parcialmente supera dos por design quando se refere à época moderna Estabelecida paralelamente aparece uma atividade cuja posição mudou um pouco até se tornar ambígua a arquitetura Escritores renascentistas italianos como Leon Battista Alberti e Giorgio Vasari seguiram o arquiteto e teórico romano Vitruvius na concep ção da arquitetura como o pináculo das artes visuais devido a sua combinação de constituintes funcionais e abstratos dando espaço à criatividade individual Em muitas análises subseqüentes da história da arte a ênfase é colocada menos sobre a função prática ou social dos edifícios do que sobre a criação por tratarem as estruturas e os planos a elas relacionados quase exclusivamente como veículos de expressão artística individual uma abordagem também basicamente derivada de Vitruvius De architectura II ii Por outro lado a prática atual da arquitetura é em geral encarada como a preservação de uma profissão separada cujos membros e cujos críticos tendem a tratar ambiguamente a definição do relacio namento entre as considerações práticas e as expressivas Há uma tendência a tratar a prática corrente da arquitetura não como uma arte erudita como pode ter sido concebida quando Michelangelo alternadamente esculpiu estátuas pintou quadros e projetou edifí cios mas como o design em uma grande escala embora mantendo vestígios do prestígio de suas associações anteriores preservadas em A ESCRITA DA HISTÓRIA 241 parte pela obra dos historiadores de arte que escrevem sobre arquitetura Tam bém entre arte e outros em uma situação de categoria curiosamente não resolvida embora de uma maneira completa mente diferente daquela da arquitetura está a fotografia Embora a variedade de imagens que pode ser produzida por essa técnica em certo sentido não seja muito grande seu espectro de significação cultural é importante sendo considerada em um extremo como um meio transparente de transmissão de informação e em outro como um meio de arte opaco O impacto cultural da fotografia sobre os últimos cento e cinqüenta anos tanto em si mesma quanto na forma da imagem visual em movimento a que ela também deu origem tem sido imenso alterando completamente o ambiente visual e os meios de troca de informação de uma grande parte da população do globo A fotografia transformou sutil radical e diretamente a disciplina da história da arte e a prática de todos os membros da tríade acima definida não importando se seus objetos de preocupação foram criados antes ou depois de sua invenção Quase todos fazem uso diário tia fotografia seja como ilustrações auxílios à memória ou como substitutos de objetos descritos através dela Entretanto a maior parte dos membros dessas profissões tem evitado explicitamente considerar as conse qüências da fotografia à medida que ela afeca o seu próprio trabalho bem como em uma escala mais ampla A categoria inadequadamente designada acima como outros é na prática em grande parte definida pelos museus e pelo comércio U m a preocupação com o passado local durante muito tempo transformou os museus locais em depósitos de objetos Itens domésticos obsoletos evocando práticas rotinas e até relaciona mentos sociais do passado passaram a ser expostos em acréscimo às obras de arte arqueologia e história natural que caracterizavam os museus locais fundados na GrãBretanha nos anos fcue se seguiram ao Ato dos M useus de 1845 A partir da década de 1970 um a preocupação maior com a cultura popular revestiu esses artefatos de uma significação ampliada e mais estritamente orien 242 PETER BURKE tada do pontode vista histórico devido a mudanças nas técnicas de exposição Toda a área foi estimulada a partir das ondas de estudos folclóricos para assumir seu lugar no interior de um estudo revificado da cultura popular intimamente relacionado aos desen volvimentos concomitantes na escrita da história representada na GrãBretanha pela Popular Culture in Early Modem Europe 1978 de Peter Burke A nova posição conferida ao estudo do material remanescente dos setores externos à elite das sociedades passadas está resumida em termos claros pela construção suntuosa do Musée National des Arts et des Traditions Populaires em Paris Enquanto vitrinas apresentam implementos agrícolas ou instrumentos pro fissionais exibindo a variação regional e o valor do trabalho anônimo a sala de pintura é um repositório de folhetos e ninharias predominantemente anônimos produzidos para o consumo po pular do século dezesseis em diante O engajamento do comércio com essa ampla variedade de outros materiais visuais certamente não está definido por uma participação erudita em debates relativos à importância cultural de tais objetos N a verdade o impacto do comércio sobre esta área do ambiente visual e sobre a percepção que as pessoas têm do passado é provavelmente mais considerável que aquele do saber das dire torias dos museus e dos historiadores sociais M esm o os principais leilões têm tido problemas consideráveis para desenvolver a área conhecida como colecionáveis potes cartazes de propaganda de cigarro brinquedos etc Esta área reflete a intersecção de várias preocupações Primeiro apela para um sentido de ordenação e serve como uma técnica de recreação equivalente às técnicas comerciais de contabilidade e câmbio mas ao contrário dos interesses do colecionador ela promete uma conclusão e um encerramento final O s colecionadores de selos são o seu paradig ma Segundo os colecionáveis apelam para outro impulso comercial a atribuição do valor na conclusão de conjuntos defini dos e a expectativa de um retorno sobre o investimento Terceiro a coleção é postulada sobre a noção implícita de que o conheci mento relativo aos objetos é ostensivamente finito a possibilidade A ESCRITA DA HISTÓRIA 243 de interpretação não faz parte da atitude mental Certa vez eu visitei um a casa de campo paladiana1 em que muitos aposentos estavam desprovidos de mobília e decoração mas os assoalhos estavam cobertos de bules de chá O s bules um diferente do outro estavam colocados de um extremo a outro nos corredores e em partes das escadas tornandoas intransitáveis Para o proprietário esse não era um arranjo expressando oú convidando à interpretação mas simplesmente uma questão de conveniência Quarto e mais importante para o historiador as coleções deste tipo implicam um relacionamento particular com o passado Dois de seus ele mentos são a nostalgia baseada nas qualidades sinedóquicas observadas em um objeto um brinquedo em miniatura evocando um a infância dos anos 50 por exemplo e a suposta aderência de um a qualidade imutável devida ao contato pessoal com uma pessoa ou com pessoas celebradas ou reverenciadas um par de botas que pertenceu a Elvis Presley ou ao primeiro Duque de Wellington por exemplo N a verdade quando esta atitude evocativa de mágica sedutora é institucionalizada o que ocorre de uma maneira cada vez mais disseminada podemos nos surpreender se for possível fazerse um a distinção entre digamos assim Graceland e Apsley House pois ambas implicam uma atitude profundamente não analítica em relação a um passado dominado por grandes homens cuja essência pode ser conhecida através do exame dos objetos com os quais eles se cercaram Tendo realizado algumas incursões na vasta m assa de material visual arte temas de categoria nãoresolvida como a arquitetura 1 O estilo paladiano é aquele estilo de arquitetura inaugurado por Palladio arquiteto italiano do século XVI um a das maiores influências dns nrtcs plásticas O estilo de Palladio é um a adaptação das regras da arquitetura greeoromana às necessidades e conveniências da aristocracia na Renascença conferindo à vida cotidiana um a solenidade quase religiosa sobretudo na construção de palácios residenciais e grandes casas de campo O estilo paladiano dom inou toda a arquitetura dbs séculos dezessete e dezoito sobretudo na Inglaterra onde a Villn Rotondo foi várias vezes imitada A partir da segunda metade do século dezenove começouse a desprezar esse estilo tachado de pseudodássico Esboçase atualmente um movimento de reabilita ção do estilo paladiano NT 244 PETER BURKE e a fotografia e outros incluindo algumas categorias de artefato e colecionáveis a chegada à conjunção de todos esses fenôme nos na apresentação institucionalizada de heróis Presley como o Rei W ellington como o Duque de Ferro pode ser o ponto em que se deve falar no problema de como o conhecimento do material visual pode ser estabelecido de forma a poder ser exibido com vários propósitos diversão propaganda negócio e relação do presente com o passado Tentarei explorar apenas três dos vários aspectos da especulação com referência à obra recente selecionada a autoria a canonicidade e a interpretação Autoria Buscar estabelecer a autoria não é simplesmente uma conse qüência dos valores do mercado de arte como sustentam os céticos ou seja um quadro de Van Gogh valerá incomparavelmente mais que uma pintura que parece ser de V an Gogh mas não o é É antes um a conseqüência da concepção do artista e da percepção do relacionamento dele e muito ocasionalmente dela com a arte na tradição ocidental Com o um corolário a autoria do material visual não considerado arte produtos artesanais ou industriais é em geral julgada de pequena importância embora o desenvolvi mento do design como uma estratégia para subordinar os elementos imediatamente exploráveis da arte para propósitos diretamente comerciais esteja conduzindo a uma transferência parcial da prer rogativa do artista para o designer Aqui no entanto dificil mente existe o campo de discórdia a ser encontrado no campo da arte especialmente em seu subgrupo prémoderno ou do velho mestre de pintura e desenho O connoisseurism o2 técnica pela qual a autoria das obras de arte individuais é em geral reconhecida é o id do ego da 2 Connoisseurism no original Derivado da palavra francesa connoisseur que indica pessoa com profundo conhecimento de algum assunto principalmente em questões A ESCRITA DA HISTÓRIA 245 história da arte como expressou Gary Schwartz em uma crítica recente3 M uitos historiadores de arte que estão longe de ser radicais em suas opiniões reconhecem a base intelectualmente insegura do connoisseurism o e concentramse em outras áreas de pesquisa iconografia patronato O s apologistas do connois seurism o não podem ajudar mas revelam suas contradições internas Em 1985 a casa de leilões Sothebys de Londres e o M useu Fitzwilliam da Universidade de Cambridge uniramse para produzir a Primeira M ostra Sotheby Fitzwilliam Seu tema era The Achievement of a Connoisseur Philip Pouncey que durante um a longa carreira trabalhou tanto em museus quanto no comércio primordialmente no que dizia respeito aos desenhos da Renascen ça italiana Descrevendo o trabalho de Pouncey na introdução do catálogo que acompanhava a mostra4 John Gere descreveu a clareza a acurácia a concisão e a exatidão de expressão atenção às nuanças de significado a distinção entre hipótese e fato e o relevante e o irrelevante além da expressão de concordância e discordância em termos graduados Ele continua dizendo que O Sr Pouncey é um estudioso para quem a acurácia não é uma virtude mas um dever Entretanto por toda a página Gere revela os estranhos padrões duplos do connoisseurism o decla rando que U m a coisa é realizar uma atribuição satisfatória mas outra completamente diferente é justificála satisfatoriamente mais adiante descrevendo o uso de Pouncey do gestual na resposta a este problema Inesquecível mesmo depois de trinta anos foi sua maneira de demonstrar o correggiosismo do n2 19 na presente mostra colocandose ele mesmo na posição de São Sebastião no desenho Para muitos historiadores de arte a incapacidade de de arte O neologismo foi utilizado no inglês e optam os por mantêlo em português aspas nossas um a vez que não existem em am bas as línguas palavras correspon dentes indicando o significado preciso do termo francês N T 3 Connoisseurship the penalty o f ahistoricism International Journal of Museum Management and Curatorship 7 p 2618 1988 4 The Achievement of a Connoisseur Philip Pouncy Italian Old Master Drawings de Julíen Stock e David Scrase Fitzwilliam M useum Cam bridge 1985 sem paginação expressão que permite a pantomima e mais seriamente as anotações resumidas nos montes de desenhos como sendo o principal modo de expressão do connoisseur descrito por Gere como o monumento tangível de seu de Pouncey notável trabalho de um a vida está intrincadamente sujeito ao autoritarismo pois se afasta do argumento racional e apela para a reputação pessoal Muitos encontram dificuldade em aceitar a pura afirmação de um estudioso Em conseqüência disso vários historiadores de arte e teóricos radicais denigrem abertamente o connoisseurismo como uma atividade inerentemente de direita limitada que simplesmen te sustenta o mercado de arte e estimula a evasão de questões importantes concentrandose nas minúcias discretas e insignifican tes Em contraposição muitos connoisseurs desconsideram os his toriadores de arte cujas especulações se relacionam a outras questões além da autoria Existe uma polarização ideológica O connoisseurism o merece antes um a avaliação mais cuida dosa que uma rejeição Gere na introdução acima citada apresenta uma excelente definição da concepção tradicional de connoisseu rism o digna de ser citada integralmente Eu numero os critérios de Gere para facilitar a subseqüente referência O connoisseurismo no sentido técnico da identificação dos autores de obras de arte não é exatamente uma ciência interpretada como um sistema racional de inferência a partir de dados comprováveis nem é exatamente uma arte Está situado em algum lugar entre ambas e requer uma combinação particular de qualidades do espirito algumas mais científicas que artísticas outras mais artísticas que científicas 1 uma memória visual para as composições e os detalhes de composições 2 um conhecimento exaustivo da escola ou do período em questão 3 a consciência de todas as respostas possíveis 41 uma percepção da qualidade artística 5 uma capacidade para estabelecer a evidência e 6 um poder de empatia com o processo criativo de cada artista individualmente além de 7 uma concepção positiva do artista como uma personalidade artística individual Se se aceita que o connoisseurismo é uma atividade necessá ria o que eu aceito mas como um meio para uma variedade de fins não como um fim em si mesmo os critérios de números 1 A ESCRITA DA HISTÓRIA 247 2 e 5 parecem incontestáveis O de número 3 no entanto é um a impossibilidade racional da forma como está expresso e espero não prejudicar Gere sugerindo que a qualidade que percebo estar ele desejando transmitir está realmente compreendida tanto quan to o racionalmente possível por seus dois primeiros critérios O de número 4 pode ser considerado como supondo várias questões vitais mas nem a menor delas poderia ser aceita nas presentes circunstâncias O s verdadeiros problemas estão nos critérios de números 6 e 7 o último especialmente sendo básico para o connoisseurism o como é em geral concebido A idéia de que cada artista individual inevitavelmente se revela de uma maneira única por seus traços estilísticos inconscientes que o connoisseur pode reconhecer compõe a verdadeira base do connoisseurism o Gere admite que o connoisseurismo dos desenhos italianos é baseado quase inteiramente na evidência interna estilística portan to apenas o refinamento e a discussão das inconsistências percebidas no interior de um conjunto de argumentos circularmente definidos estão abertos ao participante E essencialmente um sistema fechado autoratificado e por isso demonstravelmente não é nada além de uma ficção Não estou negando no entanto que uma ficção possa expressar uma verdade Além disso a contradição subjacente aos critérios de números 6 e 7 não é em si demonstrável O s parâmetros estilísticos no interior dos quais um artista individual trabalha podem concebivelmente ser bem mais amplos do que permitiria o princípio de um sistema de connoisseurismo baseado na diferen ciação ostensiva entre minúcias inexplicáveis Vários agrupamentos de obras podem ser feitos tendose como base as semelhanças e as diferenças observadas mas isso em si não proporciona motivo necessário ou suficiente para atribuir aquelas que exibem caracterís ticas semelhantes do mesmo artista Fazer isso é aceitar um sistema arbitrário não reconhecido não necessariamente correspondente à realidade Isso pode se tornar inevitável mas eu proponho primeiro que a posição de tal sistema deva ser reconhecida por seus pVofissio nais segundo que quaisquer reivindicações relativas à sua vincula ção com o mundo devam ser examinadas com cuidado em exemplos 248 PETER BURKE individuaise terceiro que a pesquisa recente relativa à percepção e à cognição seja levada em conta Atualmente têm sido feitos grandes esforços para evitar esse problema embora não se reconhecendo explicitamente que ele exista Ainda que permanecendo silenciosos a respeito do mito do olho refinado e sofisticado que funciona de maneira explicita mente reconhecida como algo muito próximo da intuição os novos connoisseurs colocam sua fé no exame técnico e científico Isso tem se tornado possível graças aos desenvolvimentos na prática da conservação e à aplicação de técnicas científicas às análises dos componentes das obras de arte especialmente das pinturas a óleo O problema deste tipo que provavelmente recebeu mais atenção pública nos últimos anos não se relaciona a um objeto de arte como tal mas a um item de material visual cuja situação incerta como uma verdadeira relíquia ou uma imagem feita pelo homem tem sido de interesse geral o Sudário de Turim Em 1988 fragmentos foram analisados em três laboratórios na Suíça na GrãBretanha e nos Estados U nidos simultaneamente através de técnicas de datação de carbono os resultados sugerindo que o material era do final da Idade Média ao invés de ter uma origem páleocristã Esta experiência pode nos lembrar que a prática antiqüíssima do exame e da subseqüente certificação ou rejeição das supostas relíquias pelas autoridades eclesiásticas poderia bem ser considerada como o antecedente intelectual do connoisseurismo atual Entreos respeitáveis projetos atuais de connoisseurism o o Projeto de Pesquisa Rembrandt é preeminente Durante mais de vinte anos um pequeno grupo de estudiosos holandeses trabalhan do em conjunto examinou pinturas atribuídas a Rembrandt van Rijn e reuniu quantidades consideráveis de informações técnicas Está prestes a ser publicado um catálogo cronológico das obras aceitas com uma consideração das duvidosas e de algumas obras previamente aceitas rejeitadas pelo grupo5 Entretanto a premissa 5 J Bruyn B Haak SH Levie PJJ van Thiel e E van de Wetering A Corpus of Rembrandt Paintings v 1162516311982 v 2163116341986 v 3163416391989 A ESCRITA DA HISTÓRIA 249 básica de todo o projeto em si parece cada vez mais questionável ou seja a suposição de que é tão desejável quanto possível definir um conjunto da obra produzida pelo próprio Rembrandt distinta daquela de seus alunos assistentes seguidores e imitadores con temporâneos E interessante observar que tanto o desejo quanto a viabilidade parecem consideravelmente menos seguros agora do que devem ter sido para os iniciadores do Projeto em grande parte e inadvertidamente graças ao trabalho do próprio grupo A questão agora é se o Rembrandt é o produto de um grupo de trabalho que compreende um número de membros flutuante em que o próprio Rembrandt é o único constante seria realmente apropria do tentar identificar as pinturas de autoria apenas de Rembrandt mesmo que isso fosse possível dadas as limitações das técnicas de connoisseurism o que neste momento só podem se basear na estilística interna e na evidência técnica Entretanto estamos culturalmente relutantes em renunciar ou pelo menos em qualificar a concepção do artista como um criador essencialmente individual cuja atividade o processei criativo e caráter personalidade artística singulares podem ser discernidos pelo observador em pático comparar com os critérios de Gere de números 6 e 7 citados anteriormente Grande parte do exame técnico é realmente uma busca acen tuada dos traços ostensivamente únicos tio artista seu toque suas abreviaturas pessoais Embora o local de uma obra no interior de categorias amplas como a data aproximada e provavelmente o local de produção possa ser proveitosamente estabelecido os resultados em geral só autorizam as declarações negativas a análise tem demonstrado que não é empregado nenhum material anacrônico em um quadro do século dezessete A análise comparativa pode estabelecer padrões de prática de grupo de trabalho Por exemplo é improvável que uma tela sem um campo duplo distintivo discernível em cortes transversais da camada de pintura realizados para exame microscópico tenha sido preparada na oficina de trabalho de Rembrandt Todas as técnicas disponíveis desde a autoradiografia até a análise de difração de Raio X podem ser e 250 PETER BURKE são utilizadas para estabelecer parâmetros dentro dos quais as obras podem ser discutidas através de processos legítimos de compara ção e exclusão Não obstante o principal objetivo na interpretação de tais resultados pelos historiadores e curadores de arte permanece sendo o estabelecimento ou a desqualificação do conjunto da obra de um artista individual O processo da tomada de decisões do connoisseurism o permanece fundamentalmente inalterado e a única diferença é que mais dados estão à disposição do connoisseur A importância disso contudo raramente é precisa o suficiente para suas dele ou dela exigências Hoje em dia o uso da análise técnica está se intensificando sem a devida consideração às implicações epistemológicas Algu mas das hipóteses de trabalho publicadas do Projeto de Pesquisa Rembrandt foram recentemente postas em dúvida como resultado do exame técnico e científico do acervo de Rembrandt da National Gallery de Londres o exame mais completo de um conjunto de obras associadas ao grupo de trabalho de Rembrandt está ainda comprometido6 Sua insinuação foi a de que a informação técnica extensiva e detalhada utilizada pelo Projeto de Pesquisa Rembrandt é na verdade inadequada Se assim for onde se deve parar e em que ponto as decisões podem ser tomadas A autoradiografia por ativação de nêutron que efetivamente revela a disposição dos constituintes da pintura individual em uma série de imagens radiográficas não era uma técnica disponível para o grupo da National Gallery mas uma série de pinturas atribuídas a Rem brandt em número suficiente para proporcionar material compa rativo foi analisada por esse procedimento Será que um exame similar das pinturas da National Gallery atrapalharia suas hipóteses atributivas recentemente publicadas O u de preferência as limita ções do connoisseurism o por mais extensivos que fossem os dados técnicos à disposição do connoisseur deveriam ser exami nadas e todo o projeto de especulação atributiva verificado em 6 Art in the Making Rembrandt por David Bom ford Christopher Brown e A shok Roy National Gallery Londres 19889 A ESCRITA DA HISTÓRIA 251 seguida em uma nova base base esta em que a hipótese é reconhecida pelo que ela é e a opinião não é apresentada como um conhecimento seguro O problema da posição epistemológica do conhecimento derivado do connoisseurism o tornase mais agudo quando aquela informação necessariamente insegura é empregada na construção de argumentos complexos da história da arte em associação com o conhecimento estabelecido por processos mais dignos de confiança por exemplo inferências extraídas de fontes mutuamente corroborativas Se a evidência do connoisseuris m o tiver um peso igual àquela sustentada por uma evidência estabelecida de m odo mais seguro em tais estruturas essas estruturas devem ser frágeis M ais que a qualidade da evidência apenas nas circunstâncias individuais deve ser levada em conta a qualidade da natureza da evidência Através dessa avaliação a evidência do connoisseurism o por sua própria natureza não pode ser tão persuasiva quanto algumas outras formas de evidên cia O reconhecimento disso não conduziria à rejeição ou exclu são da evidência do connoisseurism o mas antes à sua utilização adequada discreta A s questões sobre o peso relativo de diferentes tipos de evidência não surgem da mesma maneira quando se consideram formas de argumento em que apenas o connoisseurism o está envolvido M as reconhecer as limitações epistemológicas do con noisseurism o dificilmente interessaria aos direitos adquiridos do m undo da arte U m deslocamento da ênfase é improvável porque as obras de arte funcionam como objetos individuais mais que como componentes indeterminados no contexto determinante o mercado e seu companheiro e dependente o museu Dentro deste contexto é altamente desejável que a posição de cada objeto individual não deva ser duvidosa Em conseqüência disso a falta de conhecimento é regularmente compensada pela apresentação de opinião corroborada por reputação e autoridade à guisa de um conhecimento seguro U m a confissão de ignorância é muito freqüentemente encarada como uma falha indesculpável uma 252 PETER BURKE atitude que envergonha a prática no campo Somente aqueles a quem grande autoridade foi atribuída podem prosseguir com ocasionais adm issões de ignorância se realizadas de maneira sensata tais confissões podem realmente confirmar quelas posi ções de grande autoridade Muito está em jogo para os partici pantes reconhecerem este estado de coisas posição prestígio tanto individual quanto institucional e acima de tudo dinhei ro C om o em qualquer outro mercado capitalista a confiança e a credulidade passam de mão em mão Aqueles cujo principal meio de troca é a idéia em vez da moeda estão em considerável desvantagem D o ponto de vista daqueles preocupados com o relaciona mento entre o presente e o passado deveríamos observar que a definição da prática passada estabelecida apenas pelo connoisseu rism o deve ser considerada uma ficção embora ela seja convin cente quando bem argumentada Deferíam os também notar que aqueles argumentos da história da arte que depositam muito peso no connoisseurism o devem ser tratados com muito cuidado pois provavelmente devem conter elementos frágeis se não absolutas imperfeições U m a das conseqüências de uma aceitação deste argumento provavelmente será que a questão da autoria individual tornarseá menos premente do que antes Mas se aceitamos que as mudanças na prática dos artistas resultam pelo menos em parte de escolhas intencionalmente motivadas realizadas por indivíduos que são subseqüentemente divulgados por influência o que pode compreender a imitação e a emulação a questão da autoria individual não será inteiramente suplantada C anonicidade A diferenciação retoricamente exagerada entre conhecimento e opinião apresentada no tópico anterior está evidentemente longe de ser a adequada para a análise do procedimento crítico e histórico a que a consideração do material visual está relacionada A ESCRITA DA HISTÓRIA 253 Libertar o conhecimento da opinião não é uma questão simples como declarou Frank Kermode em Forms of Attention 1985 ao examinar a formação e perpetuação dos cânones tanto na literatu ra quanto nas artes visuais Ele demonstrou que a opinião malinformada e a moda pddem mais que o julgamento critico erudito criar as circunstâncias em que um artista pode ser redes coberto e sua obra adm itidano cânone do tema material para repetidos reexames de estudiosos e críticos Kermode descreveu o caso de Sandro Botticelli cujas pinturas foram em grande parte ignoradas entre o século dezesseis e o final do século dezenove Ele convincentemente argumentou que nem o interesse de Herbert Horne quç se esforçou muito para definir o conjunto das pinturas de Botticelli através do connoisseurismo e de pesquisa de arquivos7 nem aquele de Aby W arburg que examinou aspectos da obra de Botticelli no contexto de suas próprias teorias sistemá ticas de história cultural8 teriam percebido que não havia ocorrido uma mudança cultural popular que acomodasse um gosto pela obra atribuída a Botticelli Tanto Horne quanto W arburg estavam na verdade nadando com a corrente do findesiècle Em conseqüência disso a obra de Botticelli foi em termos gerais adequadamente distinguida daquela de seus contemporâneos alunos e imitadores e possuía um a personalidade artística definida9 Aquelas pinturas designadas como as obrasprimas de Botticel li especialmente o Nascimento de Vênus e a Primavera ambas na Galleria degli Uffizi em Florença reuniramse ao grupo totOmico de imagens maciçamente reproduzidas familiares a um amplo público através de muitas formas de reprodução A Primavera chegou à sua apoteose como o definitivo maior tesouro da Galeria Uffizi com suas figuras femininas centrais aparecendo na 7 Aíessandro Filipepi called Sandro Botticelli Painter of Florence 1908 nova ediçíío com uma introdução de John PopeHennessy 1980 8 Sandro Botticellis Geburt der Venus und Frühling Ei ne Untersuchung über die Vorstellungen von derAntike in der italienischen Friihrenaissance 1893 9 Ronald Lightbown Sandro Botticelli Life and Works and Complete Catalogue 2 v 1978 é atualmente o texto padrão 254 PETER BURKE capa do guia de turistas publicado em vários idiomas U m a longa e extensiva restauração dessa pintura foi concluída em 1982 Foi apresentada ao público como o clímax da mostra Método e scienza Operatività e ricerca nel restauro Palazzo Vecchio Florença 19823 quando foi exibida sozinha em um aposento escuro dramatica mente iluminado como uma tela de cinema um espetáculo pro positadamente impressionante A introdução no catálogo que acompanhava sua exibição p 20750 foi a mais longa até então dedicada nessa forma de publicação à descrição técnica de uma única pintura Já vimos que a informação técnica é empregada a serviço do connoisseurism o Entretanto a apresentação ao pú blico de achados técnicos embora ostensivamente desmistificado ra é entre outras coisas um meio moderno importante de se aumentar a mística e a posição de uma obra de arte apresentando publicamente seu tratamento especial Enquanto há duzentos anos atrás os visitantes da Uffizi esperavam admirar a Venus de Mediei como seu maior tesouro a Sala Botticelli agora tomou o lugar da Tribuna apesar de sua restauração historicista recente como o objetivo final da peregrinação artística popular sendo a Primavera sua peça central Este é pelo menos em parte um desenvolvimento perfeitamente calculado em que a direção da galeria intencional mente desempenhou um papel preponderante10 Podemos ver assim que várias questões interligadas comple xas são levantadas quando se considera a canonicidade Duas destas estão intimamente vinculadas ao débito da história da arte a seu reconhecido texto básico Lives of the Artists de Giorgio Vasari11 São elas em primeiro lugar sua coincidência com os estudos literários tratando predominantemente o trabalho da vida 10 Isto ficou claro durante a mesa redonda entre os diretores de várias importantes galerias européias e americanas e outros estudiosos que concluiu a conferência de 1982 sobre a história e o futuro da Galeria Uffizi U m a transcrição da reunião foi subseqüentemente publicada em Cli Uffizi Quattro secoli di una galleria editada por Paola Barocchi e Giovanna Ragioneri 1983 v 2 p 557635 11 Principalmente em sua segunda edição Le vi te de piú eccellenti pittori seultori ed architettori 1568 A ESCRITA DA HISTÓRIA 255 de um indivíduo como uma unidade básica a ser considerada C om o já vimos esta abordagem é sustentada pelas suposições subjacentes de grande parte do connoisseurismo Segundo o cânone baseado na autoria é perpetuado entre outros meios escrevendose à maneira de Yasari O cânone está também sujeito à modificação o próprio Vasari estabeleceu o precedente na segunda edição de suas Lives O s artistas são acrescentados à medida que suas carreiras se desenvolvem com ou sem tendências nacionais por van Mander Bellori de Piles O s artistas ou as escolas em que são agrupados são ocasionalmente abandonados como G uido Reni e os bolonheses do século dezessete ou descobertos como Botticelli ou mais recentemente Caravaggio Essas alterações afetam e são afetadas pelas mudanças ocorridas nas instituições de arte o mercado e o museu U m modo de tratar essas mudanças e aferir as disparidades em qualquer época entre as atitudes de eruditos em relação ao cânone e a um estado de coisas públicas como é expresso primeiramente pelas coleções é a área de estudo que tem crescido consideravelmente nos últimos anos a história do gosto O principal expoente da história do gosto é Francis Haskell Suas Rediscoveries in Art Some Aspecls of Taste Fashion and Collecting in England and France 1976 e com Nicholas Penny Taste and the Antique The Lure of Classical Sculpture 15001900 1981 ajudaram a engendrar uma consciência de que os cânones da excelência artística observada são historicamente contingentes e determinados por uma variedade de fatores alguns dos quais necessariamente não têm de início nada a ver com as questões artísticas Haskell lida com a vida dos objetos subseqüente às circunstâncias de sua criação preocupação em recuperar a história da arte a ser discutida mais adiante e anteriores a seus possíveis efeitos ativos no presente a matériaprima da crítica M as longe de simplesmente intensificar uma atitude histórica às circunstân cias em que a arte atua esta obra tem ajudado a efetuar uma reavaliação crítica completa da apresentação da arte do passado no museu Esse desenvolvimento nas instituições públicas de arte pode ser encarado como uma abordagem inerente e às vezes explicitamente nãomodernista à canonicidade Por exemplo seria difícil imaginar o renascimento de interesse sério pela arte acadê mica francesa do século dezenove sem a obra de entre outros Francis Hàskell e Albert Boim e12 que culminou com a elaboração de um século dezenove nãomodemista no novo Musée dOrsay em Paris A teleologia que sustentava o projeto modernista concedendo um privilégio crítico retrospectivo a Courbet a Manet aos impres sionistas e a Cézanne decididamente não é mais apoiada Para uma nova geração de visitantes de galerias os nomes de Couture Gérôme e Bouguereau podem atingir uma posição canônica O desenvolvimento da história do gosto também ajudou a sancionar uma atitude regressiva em relação às coleções O s provedores e a direção dos museus estão menos propensos a argumentar contra a aceitação de presentes ou doações de coleções com a condição de que elas só sejam exibidas intactas em vez de dispersas entre os acervos do museu como as direções julgam adequado Tem estado em andamento um a tentativa de retornar as coleções abertas ao público nos ambientes originais de suas disposições originais Talvez o exemplo mais bemsucedido na GrãBretanha seja a Wallace Collection em Londres que de forma alguma é uma coleção morta nada pode ser acrescentado ou retirado mesmo que temporariamente como empréstimo Entre tanto uma abordagem muito pouco exigente a essa questão pode conduzir a uma falta de consciência crítica da função social das coleções como monumentos a um supostamente grande homem ou ocasionalmente mulher e acredito ser dever dos curadores tratar essa questão por seu direito próprio ou pelo menos reco nhecer sua natureza problemática A subordinação da obra de arte individual a um esquema geral é inerente em qualquer disposição de galeria mas quando aquela disposição é escolhida devido a sua iluminação ao gosto do indivíduo de uma maneira não crítica e é 12 Albert Boim e The Academy and French Painting in the Nineteenth Century 1971 idem Tkomfls Couture and tive Eciectic Vision 1980 A ESCRITA DA HISTÓRIA 257 instituída como uma disposição permanente não temporária um autoritarismo petrificante parece inerente ao projeto A posição é ainda pior quando a suposta restauração das disposições originais ocorre em uma coleção variável e além disso é falsificada O exemplo maiS notável desse tratamento é a nova remodelação da National Gallery da Escócia em Edimburgo que foi asperamente censurada por Caroline Elam em um editorial da conservadora revista de arte Burlington M agazine13 O motivo aparente da restauração da autenticidade do século dezenove é desm entido pela arcaização artificial da am pliação do mezanino em 1970 com na descrição detalhada de Elam guarnições de márm ore lam bris cornijas tapetes pseudovitorianos otoma nas de veludo cotelê franjado e painéis de seda de Lyons violentam ente coloridos extraindo a cor até dos V an G oghs Ela observou que nas galerias principais um pendente duplo ou tripo indica que são necessários binóculos para os quadros pendurados dem asiado alto Concluindo Elam sugeriu que a m oda atual de decoração autêntica e historização dos quadros pendurados é apenas uma manifestação da incerteza contem po rânea sobre os valores estéticos quando abordam os o segundo m ilênio O desenvolvimento da história do fosto implica uma nova atitude para com a canonicidade paradoxalmente unindo um novo ecletismo crítico alguns poderiam chamá lo de não critico que implicitamente desafia o cânone teológico da historia da arte c uma atitude que pode encorajar uma petríficaçao autoritária das coleções individuais para produzir um critério alternativo de canonicidade a coleção em si Outras forças estão também em açao modificando ou minando tanto o cânone quanto a idéia de canonicidade Algumas dessas estão centradas em noções de ínterpretaçao signi ficado e intenção 13 The hangings too good for them Burlington Magazine 1 51 p 3 4 1989 258 PETER BURKE Interpretação Partindo do cânone definido pela autoria e do cânone definido pela coleção voltome agora para o significado e a interpretação pictórica Aqui mais uma vez vamos nos confrontar com alguns temas agora familiares Se o historicismo prevalecer escreveu Caroline Elam em seu editorial do Burlington Magazine acima mencionado a obra de arte individual fica trancada em seu período e não pode aparecer para encontrar a visão contemporâ nea A apresentação direta do material visual está cada vez mais afetada pela aplicação dos critérios da história do gosto Contudo no discurso acadêmico este tem um lugar pequeno as linhas de batalha são obviamente entre a recuperação histórica a tentativa de interpretar o material visual como deveria ter ocorrido quando ele foi feito seja pelo autor por seus contemporâneos ou por ambos e o engajamento crítico direto de vários tipos com freqüên cia mutuamente irreconciliáveis Esses incluem em primeiro lugar a abordagem que admite a possibilidade de acesso intuitivo direto à personalidade artística e ao processo criativo que já encontramos no tópico sobre o connoisseurism o segundo uma preocupação teoricamente engajada pósestruturalista com a her menêutica visual e terceiro uma abordagem que enfatiza a conti nuidade essencial da arte de forma que a arte de qualquer período do passado não possa ser compreendida além do contexto de sua relação com a prática corrente na arte e por extensão em nenhum meio visual Estes conflitos de interpretação têm sido cada vez mais politi zados nos últimos anos Em um artigo apaixonado intitulado The Death of British Art History14 o historiador de arte acadêmico Michael Rosenthal reviu as tônicas políticas de alguns aconteci mentos recentes do m undo dá arte no contexto de uma denúncia dos acadêmicos britânicos por seu fracasso no engajamento ao debate cultural e político em amplas bases Rosenthal reexaminou 14 Art Monthly n 125 p 38 abril de 1989 A ESCRITA DA HISTÓRIA 259 o furor de 1982 sobre a exibição da Galeria Tate da obra de um pintor de paisagens britânico do século dezoito Richard W ilson David Solkin fez uma tentativa discreta na própria mostra e deuma maneira completa e erudita no catálogo que a acompanhava para situar as paisagens ideais deWilson dentro do contexto social e cultural de sua criação e de seu consumo inicial15 Isso foi denun ciado em vários órgãos influer es incluindo um editorial do Daily Telegraph como subversão marxista Dois anos antes o estudioso de literatura John Barrell havia publicado um exame histórico igualmente questionador das pinturas de temas rurais do século dezoito em The Dark Side ofthe Landscape The Rural Poor in English Painting 17301840 1980 Barrell examinou a ideologia implí cita na representação dos trabalhadores rurais nas pinturas de Thom as Gainsborough George M orland e John Constable suge rindo que sua condição é mostrada antes como sendo natural do que como socialmente determinada Ele opôs uma mitologia nostálgica a um apelo à história argumentando que devemos olhar duas vezes para um conceito de natureza através do qual parece natural que alguns homens deveriam trabalhar enquanto outros não16 Sendo simplesmente um texto acadêmico e além disso não especialmente bem informado sobre o papel da tradição artística na geração das imagens o livro de Barrell poderia ser ignorado pelo comércio e pelas galerias Podemos reconhecer com Michael Rosenthal que o texto acadêmico é acima de tudo uma atividade socialmente marginal na GrãBretanha Neil McWilliam e Alex Potts explicaram claramente porque a contribuição de Solkin para a história da arte social não foi da mesma forma simplesmente ignorada17 Solkin rompeu as regras infiltrando a 15 Richard Wilson The Landscape ofRcaction por David Solkin Tnte Gnlleiy I m ires 1982 16 p 164 17 Na nova seção introdutório a wu ortiijo Tlc I ainlínH of lUnutiom Ruimrd Wilson 1713M 782 e suas Crfticns em The New Art I hitmy ediiiiilo iot A l Rees c Francês Borzello 1986 p 10 6 1 9 ortjimliveme puhluíulo em ffisiory Worlcshop 16 p 1715 1983 260 PETER BURKE instituição da prestigiosa exibição do velho mestre em uma galeria nacional importante McWilliam e Potts prosseguiram Ainda que os tesouros culturais declinassem como o deleite inglês diante da paisagem e o suposto gosto e refinamento da época georgiana teriam de ser defendidos se desafiados no território onde ainda parecessem vagamente dignos de crédito A abordagem histórica do material visual não está restrita à atribuição de significação ideológica como ela foi percebida correta ou erroneamente por Barrell e Solkin A significação na época da produção vai além de uma conformidade muitas vezes inconscien te com a ideologia sociopolítica do consumidor para acompanhar os modos de percepção que não são inclinados a provocar uma atenção politicamente motivada nos dias de hoje Sua elucidação tem uma historiografia longa e importante que foi examinada em um contexto artehistórico mais amplo por Michael Podro em The Criticai Historians of Art 1982 U m dos primeiros profissionais desse tipo de recuperação da história da arte é Michael Baxandall cujo livro Painting and Experience in Fifteenth Century Italy 1972 tem o notável subtítulo de A Primer in the Social History of Pictorial Style Baxandall procurou ir além da simples análise iconográfica Ele escreveu Parte do equipamento mental com que um homem organiza sua experiência visual é variável e grande parte desse equipamento variável é culturalmente relativo no sentido de ser determinado pela sociedade que influenciou sua experiência Por isso a tarefa do historiador é recuperar a visão do período a maneira de ver culturalmente específica peculiar a digamos assim os escultores de madeira calcárea do sul da Alemanha no início do século dezesseis e aos seus clientes como Baxandall tentou em The Limewood Sculptors of Renaissance Germany 1980 Outros estudio sos aplicaram suas próprias versões da abordagem de Baxandall a outras culturas visuais uma das mais controvertidas sendo o exame de Svedana Alpers da arte holandesa no século dezessete The Art of Describing 1983 Alpers declarou que era característico dos holandeses no século dezessete buscar conhecer o m undo taxono micamente através de descrição pictórica detalhada compreenden A ESCRITA DA HISTÓRIA 261 do mapeamento microscopia e transcrição representacional realís tica da realidade observada Isso afirmou ela deveria assumir precedência sobre qualquer alusão ou alegoria na interpretação do material visual holandês um ponto de vista que provocou um vigoroso debate com outros estudiosos da área18 Este debate demonstrou que a especulação nos processos cognitivos suplanta dos pode ser mais controvertida que a busca de elucidação do significado pictórico original das obras individuais através da comparação das imagens visuais umas com as outras e com os textos contemporâneos procedimento hoje em dia artehistorica mente ortodoxo entre os acadêmicos ainda que isso não ocorra entre as figuras proeminentes dos museus e do mercado de arte Todas essas formas de recuperação da história da arte estão atualmente sob ataque por três ilustres direções Alguns daqueles interessados na hermenêutica visual questionam a noção de que a significação cultural pode ser codificada em material visual e subseqüentemente decodificada por uma interpretação posterior para produzir um significado adequado Hans Belting por exemplo em Das Ende der Kunstgeschichte 1983 observou como este processo ostensivamente simétrico de codificação e decodifica ção degenera no jogo de salão humanista da iconologia renas centista enquanto as imagens pictóricas tendem a ser interpretadas com referência a textos literários ostensivamente equivalentes freqüentemente programas ideados por estudiosos humanistas para tradução para termos pictóricos em esquemas decorativos Além disso o modelo de interpretação pictórica derivado da distinção de Erwin Panofsky entre os níveis préiconográfico iconográfico e iconológico19 foi há muito tempo teoricamente 18 Para a reação hostil a Alpers pelo renom ado iconologista holandês Ed de Jongh ver sua crítica em Simiolus 14 p 5191984 M inha própria crítica foi julgada por outros como simpática a Alpers m as é na verdade crítica em bora não ao longo das linhas do partido Oxford Art Journal 7 n 1 p 5760 1984 Para uma visão geral ver Egbert HaverkampBegemann The State o f research in northern baroque art Art Bulletin 69 p 510191987 especialmente p 51011 19 Erwin Panofsky Introductory em Studies in Iconology Humanistic Themes in the 262 PETER BURKE superado peia compreensão de que a indicação é afinal indistin guível da conotação e que mesmo o significado mais simples a imagem de um cachimbo para significar um cachimbo por exemplo é culturalmente contingente Ver por exemplo a seção de abertura de Roland Barthes SZ 1970 e Michel Foucault Ceei nest pas une pipe 1973 Talvez a posição mais interessante adotada hoje em dia seja a de que o material visual do passado especifica mente a sua arte só pode ser adequadamente interpretado através da criação de novo material visual a arte como parte de um campo de comportamento representacional que seja rigorosa e concei tualmente disciplinado O teórico cultural e o artista podem se tornar um só e o mesmo por exemplo Victor Burgin artista escritor teórico e acadêmico cujo trabalho foi competentemente descrito por Chris Miller como o contraabuso ideológico da imageria apropriada a partir da propaganda20 e cujas publicações incluem Betuieen 1986 e The End of Art Theory Criticism and Postmodernity1986 Algum questionamento da recuperação da história da arte surge também de fontes artehistóricas mais ortodoxas entre elas Michael Baxandall Em Patterns of Intention On the Historical Explanation of Pictures 1985 Baxandall descreve o uso de Giorgio Vasari do que é provavelmente uma ficção histórica para fazer uma observação puramente crítica sobre o aparecimento dos tecidos nas pinturas de Piero delia Francesca Art o f the Renaissance 1939 e do mesm o autor Iconography and Iconology an Introduction to the Study o f Renaissance Art em Meaning in the Visual Arts 1955 O préiconográfico diz respeito ao reconhecimento do espectador de um objeto ou de um ato representado o iconográfico ao lugar de um a representação dentro de um conjunto de convenções para produzir significação especifica reconhecível por exemplo as características individuais dos santos o iconológico diz respeito ao manejo inovador ou singular do artista do tema dentro de parâmetros culturalmente contingentes para gerar um a significação implícita requerendo um a reação imagina tiva do espectador para sua elucidação 20 European Photography 8 n 3 p 47 1987 A ESCRITA DA HISTÓRIA 263 Piero gostava muito de fazer modelos despidos que ele vestiria com tecidos úmidos dispostos em muitas dobras e daí o uso para o desenho e para propósitos similares Qualquer leitor atento de Vasari aprende a reconhecer este tipo de observação à medida que Vasari arrisca sua arma inferencial é improvável que ele tivesse o tipo de evidência para esta prática que atualmente faria com que nos sentíssemos felizes por fazer a declaração de maneira tão firme Isso não importa O próprio caráter genérico de Vasari situa sua observação no que ela é uma verdade crítica por assim dizer como a vemos quando nos defrontamos com ela assim como o anjo branco do meio no Batismo de Cristo e nenhum leitor da própria época de Vasari teria tido um sentido falso de sua historicidade Na verdade a agilidade de Vasari entre o crítico e o histórico é invejável mas vivemos em épocas mais muscularmente hipertrofiadas nessas questões e se eu dissesse tal coisa agora sobre Piero de modo tão franco vocês estariam autoriíados a esperar que eu tivesse um subsídio real de uma espécie que eu não poderia produzir p 117 Em seu ensaio sobre o connoisseurismo Gary Schwartz observou que O s historiadores de arte treinados desde o início para se articularem para trás e para diante entre as abordagens históricas e ahistóricas da arte nunca parecem observar as contra dições básicas entre elas21 Podese inferir do texto de Baxandall que esta contradição pode ser reconciliada pelo reconhecimento de que a veracidade histórica é contingente e que a aplicação de critérios históricos para o estudo do material visual produz ficções que não são necessariamente epistemologicamente distinguíveis dos comentários críticos ahistóricos Por isso situar a discussão da arte dentro de uma estrutura histórica não é mais do que o que Baxandall denomina de um gosto especial a recuperação histó rica e a avaliação crítica não são inerentemente melhores uma que a outra na verdade na medida em que a recuperação histórica é baseada em critérios contingentes não é nada mais que uma forma especial de avaliação crítica Podese por isso sugerir que a crítica que abertamente se ocupa das atuais preocupações culturais e sociais e que não reivindica um acesso improvável a verdades universais e perpétuas pode estar menos propensa a interpretar mal os 21 G Schwartz Connoisseurship 1988 p 265 264 PETER BURKE expectadorese leitores do que poderiam ostensivamente os relatos puramente históricos Talvez só possam os sempre conhecer a arte do presente parte da qual é o que sobrevive do passado propor cionando apenas o acesso mais tênue e incerto àquele passado O significado do material visual se modifica as interpretações diferem através dos limites cronológicos e culturais aqueles que conhece m os só podem ser sempre aqueles que nós próprios geramos Consideravelmente mais preocupantes que as dúvidas expres sas e sugeridas pelos historiadores de arte propensos à história são as tentativas de interpretar o passado ou como prontamente acessível pela resposta emocional do momento ao material visual ou pela indústria da herança em que a resposta emocional do mom ento é com freqüência explorada A crítica mais cáustica do desenvolvimento da herança como um fator social e cáda vez mais político nos últimos anos é The Heritage Industry Britain in a Climate of Decline 1987 de Robert Hewison Eu mencionarei apenas dois pontos levantados pelo livro de Hewison a herança é profundamente não analítica e implica que a história como um processo de mudança está ou deveria estar superada A produção de uma população capaz de enxergar o passado apenas em termos de nostalgia e patriotismo ajuda a assegurar a docilidade política O material da herança é um tesouro e seu paradigma é a casa de campo A casa de campo está investida não somente de uma mística social mas de uma mística estética Por exemplo a frase A casa de campo como uma obra de arte coletiva é um a das contribuições britânicas mais importantes à civilização ocidental pode ser encontrada na contracapa do catálogo que acompanha a enorme mostra The Treasure Houses of Britain Five Hundred Years of Private Patronage and Art Collecting National Gallery of Art W ashington D C 19856 Essa mostra foi descrita no Economist como um palavrório de vendedor desavergonhado em favor da herança britânica22 Outros buscam solicitar dinheiro de uma 22 Citado por Robert Hewison The Heritage Industry 1987 p 52 A ESCRITA DA HISTÓRIA 265 forma menos direta inspirando simpatia pela sugestão de que a casa de campo é uma instituição ameaçada com freqüência em termos políticos levemente velados As palavras iniciais do primei ro ensaio do catálogo que acompanha a mostra ligada ao Fundo Memorial de Herança N adonal do Museu Britânico em 19889 Treasures for the Nation Conserving our Heritage são Dificilmente decorre um a semana sem qüe vejamos o anúncio de um leiloeiro da venda e dissolução iminente de alguma grande propriedade pública Continuando a citar W G Hoskins Marcus Binney prossegue A casa é confiscada pelos empreiteiros da demolição seu parque é invadido e danificado e assim por diante Essa mitologia da destruição patrocinada por nobres do museu como Roy Strong na mostra e em seu catálogo The Destruction of the Country House Victoria Albert Museum Londres 1974 e políticos como Patrick Corm ack Heritage in Danger 1976 pro porciona uma cortina de fumaça conveniente atrás da qual o poder e o privilégio continuam a operar Em The Latest Country Houses 1984 John Martin Robinson revelou que mais de duzentas novas casas de campo foram construídas na GrãBretanha desde a Segunda Guerra Mundial Isso é pelo menos politicamente pru dente e poderia trazer vantagens de impostos para aqueles que desfrutam de riqueza privada para desempenhar o papel de guar diães de um a herança nacional parte da qual é exibida ao público como a síntese do bom gosto e de um passado invariavelmente bom que deveria ser preservado acriticamente para todo o sempre N ão há interpretação apenas uma acumulação que sanciona um status quo social e estético A fotografia é o meio visual em que os acontecimentos passados são com freqüência tornados mais acessíveis pela res posta emocional do momento Isto porque a fotografia traz em si um a relação material e causai com seu sujeito Parte de nossa resposta é para o fotógrafo como um traço real de um aconteci mento O s apologistas do fotojornalismo vão adiante para sugerir que a informação sobre qualquer acontecimento com uni cado por um fotógrafo nos proporciona o conhecimento vital 266 PETER BURKE desse acontecimento N a verdade o passado recente é cada vez mais conhecido através de imagens parcialmente fortuitas e instantâneas C om o expressou o editor de jornal Harold Evans N ossas impressões dos acontecimentos importantes e comple xos podem ser permanentemente m oldadas por um único repór ter fotográfico observação citada no painel introdutório na m ostra Eyewitness 30 Years of World Press Photography no M useu Nacional de Fotografia Cinem a e Televisão em Bradford 1989 Entretanto alguns pontos são agora óbvios e têm sido repetida mente relatados e não apenas nas mostras permanentes daquele museu o momento captado necessita comunicar ao observador pouco ou nada de um acontecimento que ocorre no tempo os fotógrafos estão sujeitos a muitas formas de manipulação a excisão de figuras cortes e atenuações para alterar a interpretação do observador e o significado prontamente legível muitas vezes é apenas gerado pela combinação com um a legenda Legendas diferentes para a mesma fotografia com freqüência produzem significados radicalmente diferentes ou até contraditórios A informação correta fornecida por uma fotografia pode ser de uso tangencial em um relato analítico de um acontecimento passado mas preservandose um detalhe que de outro m odo poderia ser ignorado podem ser reveladas novas linhas de curiosidade não necessaria e estritamente históricas sobre o passado Por que por exemplo a mulher que administrou o juramento presidencial a Lyndon Johnson a bordo do Airforce O ne em 22 de novembro de 1963 em seguida ao assassinato de John F Kennedy colocou seu polegar sobre o dedo mínimo da mão com que ele segurava a Bíblia como pode ser visto na fotografia de Cecil Stoughton do acontecimento U m a das áreas de discussão atuais mais interessantes em relação á imprensa e à documentação fotográfica diz respeito ao papel do fotógrafo nos acontecimentos que ele ou ela descreve Podese argumentar que a idéia do olho inocente não é mais defensável e que a câmera é sempre uma presença intrusa U m a fotografia como aquela de Sadayuki Mikami da dor dos parentes A ESCRITA DA HISTÓRIA 267 dos passageiros mortos a bordo do vôo 007 da Korean Airlines tirada em setembro de 1983 em um barco no local em que o aeroplano submergiu no mar poderia ser interpretada tanto como uma intromissão quanto como seu assunto as lentes são um impacto nas faces dos parentçs em pranto incluindo por implica ção o autor dessa fotografia E uma estocada de baioneta no estômago de um a vitima porque um fotógrafo Michel Laureat está presente ou aquilo de qualquer forma teria ocorrido ou será que a presença de um fotógrafo desencorajaria prováveis assaltantes de investir outros golpes de baioneta em outros estômagos Seja qual for a resposta em qualquer exemplo dado é difícil não se considerar o fotógrafo como um participante História Pelo que já foi dito o leitor pode deduzir que eu não acredito que o historiador esteja mais bem situado para tratar da imagem visual ele ou ela está antes de tudo preocupado com a interpretação do passado não com a prática visual e com as questões críticas atuais N o entanto os historiadores levantaram questões sobre o material visual de maneiras proveitosas que podem lembrar àqueles de nós que estão primeiramente ligados à critica e aos assuntos culturais atuais que todo o material do passado é potencialmente admissível como evidência para o historiador For the Sake of Simple Folíc Popular Propaganda for the German Reformation 1981 de Bob Scribner ó um exemplo do efeito de nivelação atual que o olhar de um historiador pode lançar a uma mistura de material xilogravuras alemãs do início do século dezessete que os historiadores de arte não podem evitar exceto tratando do assunto de uma maneira hierárqu ica segu ndo o mérito artístico percebido Scribner tentou elucidar as convenções icono gráficas e formais que permitiam que a propaganda pictórica para e contra a Reforma religiosa fosse entendida pelas pessoas comuns Por sua vez a imagem é tomada pará revelar seus limites de 268 PETER BURKE entendimento cultural e as idéias em seu interior o Anticristo o m undo virado de cabeça para baixo a que os reformadores poderiam recorrer E adequado para ele tratar as obras de Dürer e os Cranachs nos mesmos termos que as gravuras de seus contem porâneos que os historiadores de arte poderiam rejeitar como inferiores e de pouco interesse intrínseco ainda que quando o sucesso da imagem seja estabelecido em termos da imitação ou da emulação dos motivos e dos artifícios visuais a qualidade o senso artístico e o papel da tradição visual existente devam também ser considerados como o seriam diferentes mercados prováveis para imagens de qualidade diferente U m segundo exemplo de um livro em que um historiador faz um uso sofisticado do material visual é The Embarassment of Riches An Interpretation of Dutch Culture in the Golden Age 1987 de Sim on Schama Em sua descrição dos hábitos sociais e das crenças da classe média holandesa com respeito à identidade nacional à probidade doméstica aos deveres das mulheres e dos empregados domésticos e à educação das crianças Schama convoca à ação uma grande variedade de material incluindo a poesia a coreografia os relatos dos viajantes os documentos notariais os registros dos tribunais os impressos e as pinturas Assim fazendo mostrou uma consciência dos atuais debates artehistóricos relativos à interpreta ção da arte holandesa e produziu o que já descrevi como sendo um a reorganização magistral do antiquarismo anedótico do século dezenove ao longo de linhas antropológicas à luz de uma erudição moderna histórica e artehistórica 23 Embora eu sinceramente espere que os historiadores cada vez mais voltem sua atenção para o material visual lamento que poucos até agora tenham demonstrado suficiente percepção das questões necessariamente envolvidas ou das habilidades particulares neces sárias para se enfrentar tal material A contribuição para o estudo do material visual que o historiador está provavelmente mais bem equipado para realizar é a discussão de sua produção e de seu 23 Burlington Magazine 130 p 6367 1988 A ESCRITA DA HISTÓRIA 269 consum o como atividades sociais econômicas e politicas U m a área em que os historiadores já realizaram um considerável pro gresso diz respeito a uma forma especial de consumo de imagens a destruição deliberada ou o iconoclasmo Para a maior parte dos historiadores de arte o iconoclasmo continuará sendo marginal porque os objetos não sobrevivem ou são curiosidades prejudica das24 Isso contudo não desencoraja o historiador da religião ou o historiador social N o estudo do iconoclasmo da Reforma os historiadores sociais determinaram a iniciativa pois esta é uma atividade em que não apenas a teoria da elite mas as noções analfabetas e populares especialmente em relação à mágica da imagem e o comportamento relativo ao carnaval ou à festividade freqüentemente parecem ser acessíveis Isso levou a uma tendência a tratar o iconoclasmo como um fenômeno invariável sendo dada mais atenção a fatores comuns em momentos variados do que às diferenças entre eles Atualmente os historiadores sociais estão cada vez mais voltados para aquilo que tem sido chamado de micropo lítica ou o estudo dos acontecimentos individuais à luz dos quais eles estão aprendendo a modificar as estruturas teóricas permitin do uma maior atenção às nuanças Isso pode ser visto por exemplo na obra de Lee W andel sobre o iconoclasmo em Zurich por ela apresentada em um simpósio que teve lugar na Herzog August Bibliothek em Wolfenbüttel em 198625 Este simpósio também marcou uma prontidão para reunir especialistas de dife rentes disciplinas historiadores literários sociais religiosos e de arte para discutirem o fenômeno do iconoclasmo a partir de pontos de partida complementares U m exemplo menos dramático embora não menos compen sador do que o historiador pode fazer para situar o material visual em um contexto socioeconômico de produção e consumo é pro porcionado pela obra do economista John Michael Montias Seu 24 U m a exceção é David Freedberg por exemplo seu Iconoclasts and their Motives 1985 25 Iconoclasts in Zurich em Biláer und Bildersturm im Spàtmittelalter und in derfrühen Neuzeit ed Bob Scribner e M artin W arnkç Wolfenbütteler Forschungen 46 1990 p 12 5 4 1 270 PETER BURKE estado Artists and Artisans in Delft A Socioeconomic Study of the Seventeenth Century 1982 recorda aos leitores que a pintura da arte erudita era uma questão de oportunidade financeira determi nada pela classe tanto para o comprador quanto para o autor Além de delinear as fortunas dos pintores de Delft Montias descreveu a organização capitalista protoindustrial de seus impres sores e fabricantes de porcelana Em contraste com os profissionais das duas últimas especialidades os pintores precisavam de pouco em termos de investimento de capitai mas antes de ser uma profissão aberta M ontias descobriu que o gasto do aprendizado de seis anos efetivamente limitava os aprendizes apenas aos filhos dos artesãos mais prósperos dos notários dos advogados e dos próprios pintores As crianças patrocinadas pela Câm ara dos Órfãos ao contrário tinham muito menos probabilidade de ser aprendizes de um porcelanista e embora pertencentes à mesma corporação dos pintores era pouco provável que ascendessem das fileiras de um nascente proletariado Concluindo portanto podemos ver que nenhuma profissão tem ou em minha opinião deveria ter um m onopólio sobre a interpretação do material visual incluindo a história das imagens Se os historiadores têm muito a aprender nesta área têm pontos importantes também a ensinar Inadequações muito piores têm sido descritas na prática daqueles que lidam profissionalmente com a arte O s historiadores de arte se desenvolveram acostumados a ouvir que muitos deles ainda não haviam captado as questões levantadas pela semiótica pela comunicação de m assa e pela teoria da mídia ficando à mercê de se informarem de como prosseguir lutando com a fotografia com a arte da representação o cinema a televisão e o vídeo O historiador e o curador de arte por exemplo podem parecer se refugiarem em problemas aparentemente mais imediatos o refinamento a aplicação imediata e a transmissão de técnicas analíticas experimentadas incluindo o connoisseuris m o o refinamento dos cânones e diferentes formas de interpre tação pictórica Embora assumindo um a visão crítica não acredito que pudéssem os simplesmente ser impacientes com aqueles que A ESCRITA DA HISTÓRIA 271 praticam essas especialidades Eles não são úteis apenas ao mercado e ao museu Algumas questões que devem ser levantadas à luz das preocupações contemporâneas e não do futuro antecipado só podem ser respondidas com a sua ajuda Enquanto isso atualmente vivemos em um clima mental de fragmentação de dessistematízação do conhecimento descrito por Jean Baudrillard26 em que versões do passado são constantemente recicladas em potenciais permanentemente presentes reutilizáveis alternadamente como pontos de informação N osso relacionamen to com o passado não é mais primeiramente definido pela história mas antes por uma variedade de prática grande parte dela visual mente baseada sujeita a análises em termos do visualismo e do olhar expandido27 em que os historiadores e a maior parte dos historiadores de arte em geral se sentem muito longe de casa a propaganda a televisão o fotojornalismo a arquitetura e algumas áreas da arte As palavraschave agora são fragmento e ruína28 nenhuma delas mencionada no manual cultural de meados dos anos 70 as Keyivords A Vocabulary of Culture and Society 1976 de Raymond W illiams E o leitor atento irá observar que por todo este capítulo eu não utilizei nem uma vez o termo pós moderno 29 26 L a précession des sim ulacres Simulacres et Simulation 1981 27 Por exemplo N orm an Bryson The gaze in the expanded field em Vision and Visuality ed Hal Foster 1988 28 Por exemplo Douglas Crim p O n the M useum s Ruins em Postmoclern Culture ed H al Foster 1985 e Arthur Kroker e David Cook The Postmodem Scenc Excremental Culture and HyperAesthetics 1986 Excurses on the Post Nouveau The body in ruins Science in ruins theory in ruins philosophym ruins history in ruins 29 Gostaria de agradecer a Patricia Rubin por seus aguçados eoinentilrk sobre um esboço anterior deste ensaio HISTÓRIA DO PENSAMENTO POLÍTICO Richard Tuck N o decorrer da década de 60 vários historiadores do pensa mento político por uma coincidência agradável e conveniente muitos deles vinculados à U niversidade de Cambridge publicaram suas reflexões de caráter geral sobro sua atividade profissional Três destes ensaios conseguiram unia reputação duradoura The History of Political Thought A Meilwdological Enquiry1 de John Pocock The Identity of the History of Ideas de John Dunn e M eaning and Understanding ín the History of Ideas3 de Quentin Skinner E desses três foi o de Skinner que provocou mais discussão em parte devido a sua extensão e abrangência muito maiores mas sobretudo porque ao contrário de Pocock e Dunn ele tornou seus objetivos muito precisos e especificouos O prin cipal objetivo e aquele que os escritores subseqüentes estiveram Assistente de História da Universidade de Cambridge e M em bro do Jesus College 1 Em Philosophy Politics and Socíety série II ed Peter Laslett e W G Runciman Oxford 1962 p 183202 2 Em Philosophy 43 p 85104 1968 reeditado em D unn Political Obligation in its Historical Context Cambridge 1980 p 1328 3 Em History and Theory 8 p 353 1969 reeditado em Jam es Tully ed Meaning and Context Oxford 1988 p 2667 274 PETER BURKE mais propensos a defender foi descrito por Skinner na seguinte passagem Antes de mais nada vou considerar a metodologia ditada pela reivin dicação de que o próprio texto deve compor o objeto autosuficiente de pesquisa e de entendimento Pois essa é a suposição que continua a orientar o maior número de estudos levantar as mais amplas questões filosóficas e dar margem ao maior número de confusões Esta abordagem em si está logicamente ligada na história das idéias não menos do que em estudos mais estritamente literários a uma forma particular de justificativa para a condução do próprio estudo E característico dizerse que o objetivo fundamental do estudo de obras passadas de filosofia ou de literatura deve ser o fato de elas conterem em uma expressão aprovatíva elementos atemporais sob a forma de idéias universais até mesmo uma ciência não datada com aplicação universal Atualmente o historiador que adota tal ponto de vista já está na verdade ele próprio comprometido com a questão de como melhor obter uma compreensão de tais textos clássicos Pois se o objetivo fundamental de tal estudo é concebido em termos da recuperação das perguntas e respostas atemporais colocadas nos grandes livros e assim demonstrar sua continuada relevância não deve ser apenas possível mas essencial que o historiador se concentre simplesmente naquilo que cada um dos escritores clássicos disse a respeito de cada um desses conceitos fundamen tais e questões permanentes O objetivo deve ser em suma promover uma reavaliação dos escritos clássicos deixando de lado o contexto do desenvolvimento histórico como tentativas perenemente importantes para se estabelecerem proposições universais sobre a realidade política Para sugerir em vez disso que um conhecimento do contexto social seja uma condição necessária para um entendimento dos textos clássicos é equiva lente a negar que eles realmente contêm quaisquer elementos de interesse atemporal e perene e é por isso equivalente a remover o objetivo funda mental de se estudar o que eles disseram p 30 U m grande número de cientistas políticos em sua maioria americanos foi relacionado nas notas de rodapé para esta passagem Peter Merkl Hans J Morgenthau Mulford Q Sibley William T Bluhm G E G Cadin Andrew Hacker R G McCloskey Karl Jaspers Leonard Nelson Charles R N McCoy Leo Strauss e Joseph Cropseh4 4 Ibid p 2912 A ESCRITA DA HISTÓRIA 275 Em bora D unn não apresente nenhuma relação comparável de pessoas é claro que ele tinha em mente seu tipo de abordagem quando no ano anterior se queixou de que poucos ramos da história das idéias têm sido escritos como a história de uma atividade Estruturas complicadas de idéias dispostas de uma maneira quase tão restrita quanto é possível freqüentemente mais restritas do que a evidência permite para os sistemas dedutivos têm sido examinadas em pontos diferentes no tempo e sua morfologia tem atravessado os séculos Reconstruções reificadas das idéias mais acessíveis de um grande homem têm sido comparadas àquelas de outros grandes homens daí a tendência estranha de muitos escritos mais especialmente na história do pensamento político serem compostos daquelas proposições daqueles grandes livros que recordam aquelas proposições daqueles outros grandes livros p 15 C om o uma alternativa para isso tanto Skinner quanto Dunn enfatizaram que a maneira adequada de se ler um texto histórico é como um produto histórico em que as verdadeiras intenções do autor à medida que elas podem ser razoavelmente reconstruídas devem ser nosso principal guia como o porquê de o texto ter assum ido a forma particular que assumiu embora é claro que nenhum deles supusesse que a intenção fosse um guia suficiente o fracasso também necessita de reconhecimento e explicação A inda que um argumento desse tipo não tenha sido a primeira intenção de Pocock seu ensaio de seis anos antes poderia ser restabelecido nessa causa e Skinner sempre reconheceu generosa mente a influência de Pocock juntamente com aquela de RG Collingwood Alasdair Macintyre e Peter Laslett O ensaio de Pocock era na verdade um apelo no interior da profissão da história das idéias para se levar a sério como o material a ser compreendido e explicado todo o conjunto de escritos ou outros produtos sobre política disponíveis de uma sociedade particular o que ele chamou de estereótipos e linguagens e o que subseqüentemen te nomeou de paradigmas Sua própria obra Thè Ancieút Cons titution and the Feudal Law 1957 tem sido um a ilustração brilhante do que ele queria dizer que os principais filósofos políticos só poderiam ser lidos em contraposição a uma estrutura minuciosamente especificada e historicamente particular de práti cas lingüísticas neste caso a prática de suposições históricas dentro da tradição forense e que somente dessa maneira poderiam ser compreendidas sua originalidade ou convencionalidade Era ver dade reconheceu Pocock que como a linguagem empregada na discussão política tomouse de crescente generalidade teórica então o êxito de persuasão dos argumentos do pensador se apóia menos em seu êxito na invocação dos símbolos tradicio nais do que na coerência racional das declarações que ele é levado a fazer em algum campo do discurso político em que as declarações de ampla generalidade teórica são consideradas possíveis Aqui mais cedo ou mais tarde nosso historiador deve abandonar seu papel de estudante do pensamento como a linguagem de uma sociedade e tomarse um estudante do pensamento como filosofia ou seja em sua capacidade de fazer declarações gerais inteligíveis Mas como o historiador aproximouse de seu filósofo através de um estudo da linguagem mais ampla ele agora pode considerar o nível de abstração em que a linguagem do pensador tende a fazer com que ele opere e o nível de abstração em que as preocupações do pensador tendem a fazer com que ele use sua linguagem Agora pode dar alguma precisão de significado à expressão vaga todo pensador opera dentro de uma tradição pode estudar as exigências que pensadore tradição fazem um ao outro p 2001 Este relato sobre os anos 60 tem sido atualmente feito muitas vezes os estudantes têm à sua disposição copiosos resumos das questões envolvidas neste debate metodológico das faculdades5 Têm havido muitas reações levemente impertinentes a Dunn a Pocock e a Skinner e algumas tréplicas defensivas por parte dos próprios autores M as para aqueles de nós que pertencem a uma geração mais jovem para quem esta luta tinha a qualidade curio samente remota que as questões dos irmãos mais velhos sempre possuem a dificuldade sempre foi compreender qual tem sido o objetivo do estudo nãohistórico no sentido de Dunn da história das idéias Era óbvio para nós que como colocou Collingwood 5 O s m elhores são John G unnell Political Theory Tradition and Interpretation C am bridge M ass 1979 C onal Condren The Status and Appraisal of Classic Texts Princeton N J 1985 e Jam es Tully ed Meaning and Context Oxford 1988 A ESCRITA DA HISTÓRIA 277 devastadoramente trinta anos antes se alguém quisesse compreen der a história de algo teria realmente que realizar o relevante trabalho de pesquisar a evidência e elaborar o que as pessoas preocupadas com ela seriam capazes de fazer Maldição diz Hamlet você acha que eu sou mais facil de ser tocado do que uma flauta Aqueles eminentes filósofos Rosencrantz e Guildenstem acham tout bonnement que podem descobrir o que Parmenides está fazendo simplesmente o lendo mas se você os levar até o portão sul de Housesteads e disser Por favor distinga os vários períodos de construção aqui e explique que propósitos tinham em mente os construtores de cada período eles protestariam Acrediteme eu não posso Será que eles acham que Parmenides é mais fácil de ser entendido do que um fortim romano podre Maldição6 Se isso era tão óbvio em 1939 por que necessita ser dito novamente agora embora com um conjunto diferente de conside rações filosóficas em 1969 Dos comentadores dessas questões apenas Gunnell tratou desse problema encarandoo corretamente como um problema sobre o caráter da ciência política do século vinte M as a resposta particular que Gunnell deu à questão foi menos plausível e vou sugerir um a diferente Com o parte de seu tratamento do tema Gunnell esboçou uma história em que o desenvolvimento do behaviourismo na ciência política durante as décadas de 50 e 60 levou a ataques sobre a escrita da história do pensamento político como uma atividade de pouca importância Gunnell citou David Easton em 19 51 queixandose de que o pensamento político ocidental tradicional havia sido substituído por investigações na história do pensamento político atividade que vivia parasitaria mente das idéias passadas e não mais buscava promover uma ciência política empírica adequada ou construir uma estrutura apreciável de referência p 4 6 R G Collingwood An Autobiography Oxford 1970 p 3 9 4 0 278 PETER BURKE O behaviourismo significa aqui7 uma ampla noção de uma ciência política empírica marcada por estudos com freqüência quantitativos de leis gerais quase científicas do comportamento humano e por um divórcio rigoroso entre fatos e valores a avaliação ética e a explicação empírica envolvem dois tipos de proposições que para garantir a clareza devem ser fnantidas analiticamente distintas Gunnell p 7 Gunnell considerava o objetivo principal da crítica de Easton da história do pensamento político como um chamado implícito para a ciência política empí rica tornarse o m odo de pensamento dominante sobre política ele conjecturou que a reação dos historiadores de teoria política ao desafio dos behaviouristas em relação à importância de se estudar a tradição não era apenas para reafirmar que ela é relevante tanto para a ciência política quanto para a política mas para sustentar que ela era agora absolutamente crucial p 26 A idéia de uma grande tradição do debate político na Europa Ocidental tornouse hoje em dia declarou Gunnell o locus para uma crítica do tipo de atitude moderna representada por Easton e companhia seu repúdio à história do pensamento político transformouse em um antagonismo histórico entre um m odo de pensar sobre política expressável apenas na linguagem da civilização captada nos textos clássicos de Platão até Marx e um m odo de pensar expresso na pseudociência da análise dos sistemas ou seja do que for que a teoria behaviourista fosse a favor Escritores como Strauss Voegelin ou Arendt foram os principais exemplos de Gunnell de teóricos que abraçaram essa idéia da tradição e é claro pelo menos no caso de Strauss que a existência dessa tradição e a irredutibilidade de seu conteúdo a algum conjunto diretamente objetivo e moderno de expressões era na verdade central para uma visão política Gunnell assim explicou o movimento que Skinner D unn e Pocock atacaram como uma resposta à hostilidade da ciência 7 C om o o próprio Easton reconheceu ver David Easton A Framework o Political Analysis Englewood Cliffs NJ 1965 p 1922 A ESCRITA DA HISTÓRIA 279 política do pósguerra ao escrito de histórias do pensamento político e como uma asserção da continuada relevância de uma ciência política não quantitativa não behaviourista Houve no entanto dois problemas com o relato de Gunnell O primeiro foi que ele supôs que fosse esta idéia de uma tradição o principal objetivo de Skinner e dos outros e conseqüentemente criticou suas observações sobre a metodologia como uma falha em descobrir o objetivo da crítica da modernidade e da ciência política moderna implícito nos escritos de pessoas como Strauss p 24 De fato como vimos embora suas observações fossem aplicáveis a Strauss ou a Arendt os verdadeiros objetos de sua crítica explícita foram mais comumente as figuras mundanas dos anos 60 que escreveram sobre a história do pensamento político de um ponto de vista científicopolítico convencional como Merkl e Hacker O segundo problema sobre o relato de G unnel foi que ele m esm o reconheceu e documentou amplamente o fato de que o rei da escrita sobre a história do pensamento político que Easton atacava era em si o fruto de uma visão positivista e virtualmente behaviourista da política remontando pelo menos ao início do século vinte Há vários exemplos notáveis disso um dos melhores sendo a obra de George Catlin um dos autores escolhidos por Skinner para ser alvo de ataque em 1969 que escreveu tanto um a história dos filósofos políticos8 quanto também alguns trabalhos surpreendentemente positivistas sobre a possibilidade de um estudo genuinamente científico da política Conseqüen temente como admitiu Gunnell é difícil discernir nesta litera tura até o final dos anos 40 a fonte da retratação de Easton tanto do caráter do saber na história da teoria política quanto das intenções e preocupações que lhe deram origem p 21 o que deixa tanto a suposta investida behaviourista na história do pensamento político nos anos 50 quanto a retaliadora insis tência sobre um a grande tradição pelos antipositivistas parecen do sem significado 8 George Catlin A H istory of the Political Philosophers Londres 1950 280 PETER BURKE O erro de Gunnell e aquele cometido por muitos autores que escrevem sobre essas questões foi o de não levar a sério as reivindicações de behaviouristas como Easton de que o estudo da política tinha de envolver tanto fatos quanto valores mas que estes pertencem a dois reinos logicamente distintos a distinção fatovalor que remonta em sua forma drástica a Kant e que é uma base essencial para as ciências humanas modernas É verdade que a maioria dos cientistas humanistas conduzia sua prática profissio nal cotidiana para ser a exploração do aspecto fato desta distin ção mas todos reconheciam em seus momentos de maior reflexão que os valores políticos também tinham de ser produzidos de algum modo A combinação desse reconhecimento com uma tentativa muito débil de realmente considerar como os valores deveriam aparecer ou ser justificados é o aspecto mais notável da ciência política angloamericana e particularmente a americana na primeira metade do século vinte Poderíamos descrevêla como um kantianismo sem a teoria ética de Kant embora os próprios participantes9 mais freqüentemente a descrevessem como um hum anism o ou seja uma aceitação da distinção lógica entre declarações empíricas e valorativas mas uma rejeição da dedução transcendental de moralidade na verdade a ser encontrada no Groundwork of the Metaphysics of Morais M ais comumente esses cientistas humanistas supuseram que de algum m odo mais ou menos inespecífico a cidadania iria decidir A beleza está no olhar do espectador é um aforismo que nos recorda que os julgamentos de melhor ou pior envolvem avaliações subjetivas Mas isso não nega que o nariz de uma pessoa possa ser objetivamente mais curto que o de outra Similarmente há elementos de realidade válidos em uma dada situação econômica por mais difícil que possa ser reconhecêlos e isolálos Não há uma teoria da economia para os republicanos e outra para os democratas uma para os trabalhadores e outra para os empregadores uma para os russos e outra ainda para os chineses Em muitos princípios 9 George Sabine A History of Política Thought 3 ed Londres 1983 p v A ESCRITA DA HISTÓRIA 281 concernentes aos preços e ao emprego a maior parte não todos dos economistas está em quase total acordo Essa declaração não significa que os economistas concordem rigorosa mente no campo da política O economista A pode ser a favor do total emprego a qualquer custo O economista B pode não considerálo de importância tão vital quanto estabilidade dos preços Questões básicas relacionadas com os objetivos certos e errados a serem buscados não podem ser estabelecidas pela mera ciência como tais Elas pertencem ao reino da ética e dos julgamentos de valor A cidadania pode finalmente decidir tais questões O que o técnico pode fazer é apontar as alternativas factíveis e os custos reais que podem estar envolvidos nas diferentes decisões Mas a mente ainda deve se render ao âmago que está no domínio do coração Pois como disse Pascal o coração tem razões que a própria razão desco nhece10 Essa notável passagem ilustra aquela idéia de valores dos cientistas humanistas do início do século vinte como essencial mente questões do coração mais que da razão que não poderia haver uma base sistemática e racional para eles M as todos os homens os possuiriam e como cidadãos os utilizariam em suas decisões D ada esta opinião era obviamente de alguma importân cia prática que a cidadania não colhesse seus valores do ar ao acaso um a vez que não pudesse deriválos de uma dedução transcenden te e o principal propósito de se estudar a história do pensamento político o que manual após manual torna claro era prover o leitor que sendo em geral estudante de um colégio americano era encarado acima de tudo como um futuro cidadão de um conjunto de possíveis atitudes políticas que ele próprio não teria sido capaz de gerar elas eram o trabalho de gênios mas às quais poderia reagir e fazer sua escolha de um a maneira equilibrada e bem orientada Na verdade é impressionante quantos desses manuais eram muito avessos a se comprometerem com qualquer reivindicação sobre a verdade ou falsidade das teorias políticas que estavam considerando Sabine disse expressamente que encarada como 10 PaulSam uelson Economics Englewood Cliffs N J 1976 p 78 livrotcxto cm grande parte produzido nas décadas de 50 e 60 282 PETER BURKE um conjunto uma teoria política dificilmente poderia ser assumida como verdadeira11 O s autores que eles consideravam em geral não deveriam ter realizado reflexões em uma teoria verdadeira e nesse aspecto esses historiadores do pensamento político do início do século vinte diferiam de seus contemporâneos historiadores da ciência natural mas tendo constituído as fontes de uma tradição de pensamento político especificamente ocidental em que o leitor era levado a participar à medida que refletia sobre a amplitude das idéias descritas no m anual12 E importante reconhecer que essa visão negava a existência das teorias políticas genuinamente universais ou objetivamente verda deiras mas reivindicava a universalidade ou pelo menos a rele vância das questões de que os grandes textos tratavam foi isso que constituiu sua prolongada utilidade Devemos distinguir essa atitude daquela de escritores como Strauss ou Hans Morgenthau que insistiam explicitamente contra seus colegas nos departamen tos de política americanos em que eram verdades da teoria política não importa o tempo e o espaço 13 C ada visão implicava que os textos isolados deviam ser estudados pois representavam a respos ta de grandes mentes a um conjunto de problemas perenes tão familiares ao estudante do colégio americano dos anos 50 quanto ao cidadão da polis grega mas uma visão assumia um a abordagem mais neutra dos méritos das várias respostas ansiosa apenas para situálos na cultura ética ampla do Ocidente enquanto a outra visão tinha uma resposta própria clara aos problemas perenes Em geral a última abordagem tinha menos probabilidade de interessar à história da teoria política pois possuía um critério transhistórico de retidão moral e Morgenthau era por isso muito crítico da disciplina14 Strauss no entanto era um caso especial pois acreditava o que já observei antes que este critério estava dispo 11 Sabine Philosophical Tfieor p v 12 Este parece ter sido por exemplo o ponto de vista de Peter Merkl ver suas observações em Political Continuity and Change N ova York 1967 p 2656 13 H ans M orgenthau Dilemmas of Politics Chicago 1958 p 39 14 Ibid p 24 A ESCRITA DA HISTÓRIA 283 nível apenas às pessoas que haviam mergulhado no estudo da tradição e em seus textos A primeira destas duas visões era pelos padrões de uma cultura política de longo prazo uma abordagem curiosamente desengajada e estranha ao papel dos valorena vida política e foi provavelmente para seu caráter insatisfatório que Easton estava chamando a atenção em seu artigo de 195115 A idéia era de que um conjunto disparatado de valores seria inculcado na cidadania através de uma educação em um conjunto particular de textos plausíveis e não muito estapafúrdios que diferiam entre side um modo intelectual mente estimulante Esse conjunto disparatado poderia então ser harmonizado no interior da sociedade por algum tipo de processo institucional em que os cidadãos iriam decidir sobre os princípios pelos quais sua sociedade deveria ser governada A maior parte dos autores dos grandes textos eles mesmos teriam pensado ser uma visão absurda abordar os princípios políticos mas ela se com pro vou uma clara demonstração do interior da fortaleza das ciências humanas modernas de que era absurdo convencer os cientistas políticos angloamericanos Essa demonstração foi promovida por Kenneth Arrow16 ironicamente no mesmo ano do artigo de Easton 1951 com seu famoso teorema em que ele provou que não havia método de procedimento neutro de integração dos valores individuais em um conjunto de princípios sociais que não infringiam algumas suposições absolutamente óbvias e básicas que quase todos os cidadãos provavelmente fariam tais como aquela de que nenhum membro da cidade deveria ser um ditador sobre o restante A implicação da obra de Arrow era a de que aqueles que acreditavam que de algum modo uma burocracia neutra de técnicos em ciência política poderia fazer uso de sua cidadania para um a decisão efetiva sobre os valores a serem implementados no processo político poderiam agora ser vistos como assobiando no escuro 15 David Easton The Decline o f M odern Political Theory Journal of Politics 13 p 36581951 16 Kenneth Arrow Social Choice and Individual Valúes Londres 1951 284 PETER BURKE A obra de Arrow que se tornou particularmente influente depois da segunda edição revista de Collective Choice and Individual Values ser publicada em 1963 impressionou os mais inflexíveis dos cientistas políticos inflexíveis por seu rigor metodológico e os convenceu de que suas vagas suposições sobre o caráter social dos valores deveriam ser revistas A ssim fazendo ela se harmoni zou a uma visão de ajuste em meados dos anos 60 particularmente na América de que a filosofia política de um tipo aparentemente tradicional deveria ser mais uma vez escrita Creio não ser uma coincidência que o expoente mais proeminente de uma nova filosofia política John Rawls se considerasse e fosse amplamente considerado como um a espécie de kantiano pois o caminho mais provável para se extrair o cruel kantianismo da América na primeira parte deste século era pela construção de um novo e sofisticado kantianismo M as se a pluralidade de valores indeter minadamente estabelecidos não mais fizesse qualquer sentido no panoram a ético da ciência política americana então o papel tradicional da história do pensamento político naquela cultura estava minado Foi isso que Dunn e Skinner sentiram no final da década de 60 e sua polêmica contra a história tradicional do pensamento político prosseguiu com um sentido claro de que uma filosofia política moderna e sistemática era pelo menos possível Skinner disse precisamente isto17 Tudo em que eu desejo insistir é que quando se afirma que o objetivo do estudo histórico de tais questões é que possamos aprender diretamente a partir das respostas será percebido que o que conta como uma resposta em geral vai parecer em uma cultura ou período diferente tão diferente em si que dificilmente pode ser pelo menos útil até prosseguir pensando nas questões relevantes como sendo as mesmas no sentido absoluto requerido Mais rudemente devemos aprender a fazer a nossa parte pensando por nós mesmos A nova história do pensamento político era portanto a contrapartida da nova filosofia política do mundo de língua 17 Em Tully Meaning and Context p 66 A ESCRITA DA HISTÓRIA 285 inglesa nos anos 70 e 80 transferiu a carga de educar os cidadãos para os valores políticos para o fundo do corredor da academia e para os aposentos dos filósofos que estavam mais uma vez prontos para agarrálos Ironicamente na visão da teoria de Gunnell de que Strauss Voegelin e Arendt eram os primeiros alvos desta nova história escritores como Strauss e seus seguidores estavam como vimos mais bem situados para resistir a essa abdicação do que os aliados dos positivistas como Merkl A afirmação de que há objetivamen te uma única filosofia política verdadeira para ser extraída median te leituras esotéricas dos grandes textos a afirmação mais memo ravelmente associada a Strauss não é logicamente impossível nada além da reivindicação de que há uma fonte infalível de doutrina moral a ser encontrada na margem direita do Tibre Em certo sentido Strauss e Rawls estavam ambos tentando prover seus leitores com uma filosofia política única válida embora estivessem utilizando métodos muito diferentes para produzila A sobrevivên cia institucional do straussianismo nos departamentos de ciên cia política norteamericanos não é por isso de modo algum surpreendente Deveria ser dito que o ideal de uma nova filosofia política que proveria a América moderna e por implicação sociedades simi larmente situadas com um conjunto coerente de valores está parecendo muito menos plausível em 1990 que em 1970 Vinte anos de atividade filosófica impressionante serviram bastante para enfatizar a natureza disparatada dos valores modernos apesar de alguma complacência chocante a esse respeito por parte de alguns teóricos liberais A busca é mais uma vez como foi antes da obra de Arrow de uma teoria que possa acomodar o pluralismo radical dos valores embora ninguém atualmente suponha que a cidada nia irá ou poderia decidir a questão Nesse contexto não seria surpreendente se as pessoas passassem a acreditar que a reflexão em uma literatura política existente fosse o caminho para se pensar acerca dos valores políticos e trazer a variada população de uma sociedade liberal para algum equilíbrio intelectual amplo na 286 PETER BURKE verdade ist é mais ou menos o que Richard Rorty propõe embora a literatura relevante para ele seja muito mais ampla que aquela abrangida por Sabine Embora a retórica com que Rorty fala sobre o ironism o seja apropriadamente diferente do relativismo tími do de escritores como Sabine não é claro que haja um abismo intelectual tão grande quanto ele poderia supor18 O relato que eu estava fazendo é manifestamente sobre os teóricos de língua inglesa e o declínio da teoria política de língua inglesa no início do século vinte e seu renascimento no final dos anos 60 desempenham nele um papel crucial As questões em debate nas diferentes tradições intelectuais da França ou da Alema nha desempenharam de início um papel muito pequeno nessas discussões dos anos 60 e Skinner Dunn e Pocock sempre foram um pouco resistentes a qualquer tentativa de vincular seu trabalho àquele de teóricos como Hirsch que atirou contra esses debates ou Koselleck A principal razão disso foi que de seu ponto de vista o objetivo importante a ser estabelecido é a similaridade metodo lógica entre a história das idéias e a história de outras atividades humanas Foi isso que estava no âmago das repetidas tentativas de Skinner de analisar as afirmações políticoteóricas como atos do discurso e daí em diante a tratálas do mesmo modo como mais historiadores m undanos tratavam outros tipos de atos A questão mais ampla de como podemos alcançar uma compreensão histórica da atividade humana em geral não foi sua preocupação central N o continente no entanto essa era a questão chave e ò fato de a história humana consistir ao mesmo tempo do ato e da elocução era em geral aceitos como certos Dilthey por exemplo em The Construction of the Historical World in the Human Studies tornou claro que a compreensão e a interpretação principais temas da tradição hermenêutica estão relacionadas a três tipos de expressão conceitos julgamentos e estruturas maiores de pen samento ações e expressões emotivas 19 Sua orientação ou 18 Ver particularmente Richard Rorty Contingency lrony and Solidaricy Cambridge 1989 p 801 W nilthcy Selected Writings Cambridge ed HP Rickman 1976 p 219 A ESCRITA DA HISTÓRIA 287 mais propriamente a de Hegel foi seguida por todos os par ticipantes dos debates germânicos sobre hermenêutica O deba te metodológico inglês permaneceu assim oblíquo ao debate continental pois a assimilação de Skinner da elocução para a ação poderia encontrar um lar digamos assim ou no campo de Habermas ou naquele de Gadamer N a verdade com suas referên cias explícitas remontando a JCollingwood ele representava uma franca recuperação de um antigo respeito inglês pela hermenêutica germânica Por essa razão como recentemente observou David Hollin ger20 a crítica a Skinner de um ponto de vista pósestruturalista como as queixas derridaístas de David Harlan21 é falha pois se precisamos ter uma história desconstruída das idéias devemos pelo mesm o indício ter um a história desconstruída de tudo e Skinner provavelmente ficaria contente com esta conclusão assu mindo a premissa como verdadeira algo sobre o qual sua metodologia é estritamente falando neutra Por outro lado sua prática profissional e algumas de suas observações expressas suge rem que ele endossa pelo menos a possibilidade de se adquirir algum tipo de compreensão genuína do que os agentes históricos estão fazendo ou que uma compreensão deste tipo é uma suposi ção de procedimento tão profunda de se ter algo a ver com os outros seres hum anos a visão ínter alia de escritores como Davidson que questionar sua veracidade é simplesmente assumir o tipo de opinião radicalmente cética com a qual ninguém pode realmente conviver22 Agora podemos entender por que a história do pensamento político que realmente tem sido escrita contra esse fundamento metodológico muitas vezes tem parecido a seus detratores como 20 The Return o f the Prodigal The Persistence o f Historical Knowing American Historical Revieu 94 p 61021 1989 21 Intellectual History and the Return o f Literature American Historical Review 94 p 5816091989 22 Q uentin Skinner A Reply to my Critics em Tully Meaning and Context especialmente p 238 e 2468 288 PETER BURKE muito menos original e brilhante do que eles esperavam dos manifestos metodológicos Qualquer evidência que um historiador razoável aceitaria como parte de uma explicação do porquê um agente histórico fazia algo será aceitável para um historiador moderno do pensamento político e muitas vezes não haverá um método claro e simples para se determinar o que conta como evidência relevante U m bom exemplo disso é fornecido por um problema que os historiadores do pensamento político são em geral chamados a resolver a questão de haver ou não uma diferença substancial entre as obras produzidas pelo mesmo autor em diferentes épocas da sua vida Este é o problema do famoso coupure épistemologique nas considerações althusserianas de Marx é o problema do relacionamento entre o Príncipe de Maquiavel e seus Discursos entre as várias redações da teoria política de Hobbes entre os primeiros e os últimos escritos de Locke sobre a tolerância entre a República e as Leis de Platão etc como ilustra essa lista dificilmente há um teórico político importante em relação ao qual este não seja um problema significativo Evidentemente algumas leituras dos textos em questão os reconciliarão e outras exigirão que sejam mantidos separados A perspectiva de reconciliação pode em si parecer parte da justificativa para uma leitura particular mas o mesmo pode ocorrer com a perspectiva da separação por exemplo poderia explicar porque um autor teria abordado duas vezes o mesmo material Não há a priori uma suposição ou um modo e nesse aspecto a coerência entre os textos pode ser considerada diferente da coerência interna de um texto e nesse caso o ônus da prova fica por conta daqueles que consideram que um texto é internamente contraditório M as é difícil perceber o que seria adequado como um argumento a posteriori N ão é provável que nem a evidência interna nem a externa encerre o assunto O que conta como evidência interna irá se modificar se a bondade interpretativa solicitar que pretendamos uma coerência entre as obras enquanto a evidência externa na ausência de uma declaração inequívoca e confiável do próprio autor sobre o relacionamento entre as obras e eu desconheço tal A ESCRITA DA HISTÓRIA 289 declaração por parte de qualquer grande teórico não irá modificar qualquer leitura plausível delas Nenhum a teoria sobre a maneira de interpretar os textos cobrirá este caso pois o que está em jogo aqui é a verdadeira identidade de um texto Em uma visão possível o texto é o conjunto completo de afirmações de um autor sobre um tópico particular mente se como foi verdade por exemplo no caso de Maquiavel as obras em questão foram em certo momento difundidas simultaneamente pelo autor e em outra visão o texto de cada vez recebe um nome e tem repercussão separadamente Em ainda outra visão o texto tem cada elocução assumida separadamente Por que uma obra escrita durante tantos anos como O C apitai deveria ser considerada mais como uma unidade do que como várias peças separadas escritas em um período de tempo mais curto como o ensaio de Mill sobre a Liberdade e o Utilitarismo O objetivo dessas observações não é pôr em dúvida a possibi lidade de um a escrita inteligente e sensível da história do pensa mento político mas enfatizar que no final terá de haver algum julgamento por parte do historiador sobre como fazer seu relato particular e o que parece plausível como uma maneira de um ser hum ano se comportar nessas circunstâncias o que não pode ser decisivamente justificado contra uma variedade de outros julga mentos diferentes As qualidades intelectuais necessárias a um bom historiador antes de 1969 são aquelas necessárias após 1969 e não deveria ser surpreendente que as melhores histórias do pensamento político produzidas nas décadas de 70 e 80 tenham exibido muito claramente no todo seus comprometimentos me todológicos O que não foi mostrado claramente entretanto foi a convicção de que o que estavam escrevendo era história e não a exposição de um conjunto de valores para a cidadania do final do século vinte HISTÓRIA DO CORPO Roy Porter Eu disse que não éram os troncos nem pedras está muito bem Deveria ter acrescentado que também não som os anjos gostaria que fôssem os mas hom ens revestidos de corpos e governados por nossas imaginações Laurence Sterne Tristram ShancI Ressuscitando o corpo Em um livro provocativo1 Leo Steinberg chamou a atenção para dois fatos primeiro em um a tradição da pintura florescente durante a Renascença Cristo foi em geral retratado tocando ou senão cham ando a atenção para o seu pênis Segundo os histo riadores de arte consistentemente ignoraram essa notável forma de representação Steinberg explica a significação doutrinária do gesto ele foi designado para assinalar a humanidade do Filho o fato de Ele ter sido gerado não criado M as ele não está menos interessado Assistentesênior de História da M edicina do Instituto W ellcome em Londres 1 Leo Steinberg The Sexuality of Christ in Renaissance Art and Modem Oblivion Nova York 1983 292 PETER BURKE em explorar o ponto cego dos historiadores de arte A sexualidade do corpo de Cristo tornouse por assim dizer invisível porque os estudiosos operam tipicamente dentro de tradições interpretati vas para as quais os significados que são mentais espirituais e ideais assum em uma automática prioridade sobre as questões puramente materiais corpóreas e sensuais O ponto essencial de Steinberg aplicase de uma forma mais ampla Até há pouco tempo a história do corpo tem sido em geral negligenciada não sendo dificil se perceber o porquê Por um lado os componentes clássicos e por outro os judaicocristãos de nossa herança cultural avançaram ambos para uma visão fundamental mente dualista do homem entendida como uma aliança muitas vezes ansiosa da mente e do corpo da psiquê e do soma e ambas as tradições em seus caminhos diferentes e por razões diferentes elevaram a mente ou a alma e denegriram o corpo2 Esse é um aspecto totalmente familiar da metafísica jda nossa civilização que não necessita aqui de elaboração Ela se infiltra fundo e exerce um poder penetrante mesmo os escritores que buscaram resgatar o corpo da negligência ou da desonra ainda assim em geral perpe tuaram as velhas hierarquias Assim como sugere a minha epígra fe em meados do século dezoito Laurence Sterne podia defender os hom ens contra a calúnia de não serem puramente espirituais anjos mas apenas até o ponto de dizer que eles estão revestidos de corpos uma fórmula que preserva o dualismo tradicional e deixa o corpo de algum modo um tanto secundário e quase acidental3 Sterne não diz que os homens são seus corpos do modo que as feministas de hoje podem falar de Our Bodies Our Selves4 2 É claro que este é um m odo tolamente sim plista de se colocar um a situação bastante complicada Para as bases intelectuais dessas heranças culturais ver Bennett Sim on M ind and Madness in Ancient Greece Ithaca 1978 ER D odds The Greeks and the Irrational Berkeley e Londres 1951 e para o Cristianism o F Bottomley Attitudes to the Body in Western Christendom Londres 1979 3 Sobre Sterne ver Roy Porter Against the Spleen em Valerie GrosvenorMyer ed Laurence Sterne Riddles and Mysteries Londres e Nova York 1984 p 8499 Rodgers Ideas o f Life in Tristram Shandy Contem porary Medicine tese de PhD Universidade de East Anglia 1978 4 Para um a introdução às perspectivas feministas contem porâneas ver Susan Brown miller Femininity Londres 1984 A ESCRITA DA HISTÓRIA 293 A implicação dessa última observação é que atualmente há tentativas em movimento para demolir as velhas hierarquias culturais que privilegiaram a mente sobre o corpo e por força de analogia sancionaram sistemas inteiros de relações de poder reguladorregulado Esse processo desmistificador certamente está ocorrendo sendo fácil apontar as profundas mudanças culturais na última geração que subverteram a puritana e platô nica suspeição do corpo5 a revolução sexual e a permissividade em geral o capitalismo consumista as críticas acumuladas tanto pela contracultura dos anos 60 quanto pelo feminismo dos 70 e assim por diante6 Esta revolução cultural tem sido clara mente influente como sugere o caso do livro de Tenberg no redirecionamento da atenção dos estudiosos da m esm a maneira para longe das bem estabelecidas subdisciplinas idealistas como a história das idéias e no rumo da exploração da cultura material da qual faz parte a história do corpo Este novo empreendimento foi beneficiado por numerosos estímulos Graças a seu materialismo intrínseco o marxismo proporcionou uma matriz fértil e as obras nesta tradição como Rabelais and His World de Mikhail Bakhtin apresentaram mode los influentes do corpo encarado como um foco para a resistência e a crítica populares dos significados oficiais7 C om suas ambições de construir um a história total e simpatias pelo projeto de uma história científica biologicamente fúndamentada o saber Annaliste promoveu pesquisa em todas as dimensões da vida material desde 5 U m a depreciação evidentemente aumentada pelo recato tradicional pelo bowdleris mo etc V er P Fryer Mrs Grundy Studies in EnglisK Prudery Londres 1963 M Jaeger Before Victoria Londres 1956 6 Para interpretações críticas de tais processos com o m eras m odificações no interior do sistem a existente na verdade com o dessublim ação repressiva ver Hcrbcrt M arcuse One Dimensional M an Londres 1964 C Lasch The Culture oj Narcissism N ova York 1979 7 V er M Bakhtin Rabelais and his World Cam bridge M ass 1968 A Schmidt The Concept of Nature in Mane trad B Fawkes Londres 1971 294 PETER BURKE o berço até o túmulo8 A antropologia cultural tanto na teoria quanto na prática proporcionou aos historiadores linguagens para a discussão dos significados simbólicos do corpo em particular como contextualizados no interior de sistemas de mudança social9 e de um a maneira bem similar a sociologia10 e a sociologia médica acima de tudo11 encorajou os historiadores a tratarem o corpo como a encruzilhada entre o ego e a sociedade O feminismo acadêmico apontou para as questões costumeiramente negligencia das ou reprimidas do enfoque masculino e feminino da experiên cia12 E não menos o desenvolvimento maciço da demografia histórica durante a última geração nos impôs as rígidas estatísticas vitais de nascimento cópula e morte a serem encaradas como a chave para o entendimento de todos os aspectos de classe cultura e consciência13 Entretanto nós evidentemente não esperamos lançar com descuido todos estes ingredientes juntosem uma tigela do saber e verificar o surgimento automático de um a história do corpo como 8 Ver Peter Burke Revolutíon in Popular Culture em Roy Porter e M ikylás Teich ed Revolutíon in History Cam bridge 1986 p 20625 9 Para um exemplo de investigação ver Peter Burke The HistoricalAnthropologyofEarly Modem Italy Cambridge 1987 extremamente úteis são também Michael MacDo nald Anthropological Perspectives on the History o f Science and M edicine em P C orsi e P W eindling ed Information Sources in the History and Medicine Londres 1983 p 6180 10 B S Turner The Body and Soáety Exploradons in Social Theory Oxford 1984 O livro de Turner é até agora a tentativa mais ousada de se criar um a sociologia do corpo H á um a estimulante descrição sobre a negligência do corpo na literatura no ensaio de Virginia W oolf O n being ill em Collected Essays Londres 1967 p 193203 v IV Para os próprios problemas de W oolf com a incorporação ver S Trombley Aií that Summer She Was M ad Virginia Woolf and her Doctors Londres 1981 11 A m elhor pesquisa e a mais atual é Bryan S Turner Medicai Power and Social Knowledge Beverly Hills e Londres 1987 12 C om o um verbete bibliográfico ver o ensaio de Joan Scott neste volume 13 Arthur Im hof esteve à frente na tentativa de relacionar a demografia histórica técnica a questões m ais am plas da existência social Ver por exemplo seu Methodological Problems in M odem U rban Geography Graphic Representations o f U rban Morta lity 17501850 em Roy Porter e Andrew W ear ed Problems and Methods in the History of Medicine Londres 1987 p 10132 A ESCRITA DA HISTÓRIA 295 um prato pronto A natureza e os conteúdos da história do corpo assim como os métodos pelos quais ela deve ser pesquisada são em si os pom os da discórdia Abordagens O s estudiosos advertiram de que seria simplista demais assu mir que o corpo humano existiu eternamente como um objeto natural não problemático com necessidades e desejos universais afetado de maneiras variadas pela cultura e pela sociedade em uma época reprimido em outra liberado etc Tal divisão grosseira entre natureza e cultura seria obviamente inútil e seria equivocado e irônico proporcionar ao velho dualismo m entecorpo uma nova vida tentandose estudar a história biológica do corpo independente das considerações culturais da experiência e da expressão na linguagem e na ideologia14 O ponto essencial está bem estabelecido Evidentemente deve m os enxergar o corpo como ele tem sido vivenciado e expresso no interior de sistemas culturais particulares tanto privados quanto públicos por eles mesmos alterados através dos tem pos15 Se para se apontar para uma questão bem berkeleyana os corpos estão presentes para nós apenas por meio da percepção que temos deles então a história dos corpos deve incorporar a história de suas percepções M as como certamente poderia ser argumentado ainda que seja assim isso não significa que a história do corpo antes de tudo com ponha um projeto na história das idéias ou em Vhistoire des mentalités preocupada com as representações do corpo como 14 A interpretação psicofisiológica do corpo é evidentemente por si m esm a importante Ver Jonathan Miller The Body in Question Londres 1978 Prossegue o debate sobre a possibilidade de as perspectivas sociobiológicas poderem iluminar a pesquisa histórica 15 W I W atson W hy IsnttheM indBody Problem Ancient etn Paul K hcyernbend e Grover Maxwell ed Mind Matter and Method Minnenpoli 1966 p 92 102 L J Rather Mind and Body in Eigiteen Century Medicine Unulrcs 196S 296 PETER BURKE distintas digamos assim das representações do trabalho ou do poder N a verdade têm sido feitas tentativas para interpretar a história do corpo essencialmente como a explicação de suas representações no discurso utilizandose as técnicas pósestru turalistas e desconstrutivistas da análise textual16 Acredito no entanto que há um perigo real em se levar muito longe esse repúdio teorizado do positivismo vulgar Algumas das explorações mais brilhantes da anatomia do corpo têm sido os trabalhos de críticos literários e estudiosos afins engajados na análise do discurso e na desconstrução textual desprezando as representações alteradas do ego incorporado M as o abandono irresponsável do empirismo em prol da teoria e da hermenêutica tem suas próprias ciladas em particular o risco de extrapolações descontextualizadas derivadas do uso acrítico de matérias não representativas de evidência U m exemplo de uma obra capturada nesta armadilha é The Tremulous Private Body de Francis Barker uma tentativa corajosa abrangendo cinco séculos de interpretar a história do corpo na verdade sua dissolução 17 Através de uma leitura desconstrutivista do que parece uma amostra puramente casual de textoschave selecionados da cultura erudita Hamlet Anatomy Lesson de Rembrandt Diary de Pepys etc Barker antecipa a generalização de que o corpo que foi um dia um objeto público tornouse privatizado com efeito o local da vergonha narcisista no interior da cultura burguesa N a verdade declara ele o corpo desapareceu completamente como um instrumento de erotismo sendo substituído pelo livro Essas são considerações poderosas realmente para deduzir de poucos textos examinados em gloriosa pesquisa a consideração da textura da história no sentido amplo Além disso Barker tem tanta fé em seu método de leitura hermética textual e concentrada que siste maticamente ignora as pesquisas de outros estudiosos uma idiossincrasia que como apontou JRR Christie entre outras 16 Ver R Barthes Le Plaisir du Texte Paris 1973 J Derrida Writing and Difference Londres 1978 17 F Baker The Tremulous Private Body Londres 1984 A ESCRITA DA HISTÓRIA 297 coisas transforma em uma bobagem sua avaliação da pintura de Rembrandt18 Outras interpretações recentes da história do corpo que se servem principalmente dos preceitos da análise textual parecem igualmente abertas à objeção The Female Body in Western Culture um volume de ensaios que se estende desde a Gênese até Gertrude Stein alardeia o local daquilo que o editor chama de Reescre vendo o C orpo e enfatiza o modo como o corpo deve ser encarado não como um objeto de carne e osso mas como uma construção simbólica 19 Muito bem M as muitos de seus colabo radores vão adiante na suposição que sustenta o livro de Barker de que a difícil elucidação de um pequeno corpus de textos clássicos proporcionará reflexões privilegiadas sobre os problemas e parado xos da experiência de maneira geral Essa é uma suposição dúbia para não dizer arrogante Assim um ensaio como Speaking Silences Womens Suicide deixa de examinar o que alguns novelis tas nos relatam da consciência física de suas heroínas suicidas para oferecer conclusões gerais sobre a experiência do suicídio feminino na vida real não levando em conta um corpo substancial de pesquisa empírica dos testemunhos de autênticas suicidas que na verdade contradizem os achados apresentados20 U m exemplo desse gênero não mais satisfatório é The Body in Pain que modestamente apresenta o subtítulo de The Making and Unmaking of the World de Elaine Scarry21 Com binando a análise filosófica com a literária Scarry examina as representações intelec tuais artísticas e culturais da dor fisicamente localizada a partir da 18 O saber de Barker é gloriosamente derrubado em JR R Christie Bad News for the Body Art History 9 p 26370 1986 19 S R Suleim an ed The Female Body in Western Culture Cambridge M ass 1986 2 introdução do editor 20 M argaret Higonnet Speaking Silences W om ens Suicide em Suleim an ed The Female Body p 6883 muitas das assertivas ali feitas sobre mulheres suicidas que são abandonadas por hom ens vão contra a cuidadosa análise empírica de Olive Anderson Suicide in Victorian and Eduiardian England Oxford 1987 21 Elaine Scarry The Body in Pain The Making and Unmaking of the World Nova York e Londres 1985 298 PETER BURKE Bíblia passando por Marx até chegar aos dias atuais O objetivo de seu texto substancial é estabelecer que é inerente à essência da dor o fato de ela ser inexprimível Ela nos apresenta essa conclusão não apenas como uma nova interpretação mas como uma reflexão privilegiada em um reino da experiência humana conhecido por todos mas compreendido apenas por poucos M as o elitismo rarefeito é certamente negado pelos verdadeiros relatos de dor que longe de serem inexprimíveis são com freqüência expressos com exatidão e eloqüência que as pessoas comuns no passado nos legaram em grande abundância E claro que para alguém que aspira à mais alta exegese intelectual a pesquisa empírica pode como o próprio corpo parecer grosseira e vulgar Entretanto para os historiadores realmente preocupados com a maneira como as pessoas reais sentem dor uma obra como Geschichte unter der Haut de Barbara Duden análise pioneira das experiências de doença de quase duas mil mulheres na Alemanha no início do século dezenove preservadas através dos registros médicos guardados por seu médico Dr Storch oferece um avanço esclarecedor22 Está certo que os estudiosos sensíveis insistam na complexida de conceituai da história do corpo M as é pelo menos tão impor tante evitar flutuar na estratosfera da análise do discurso e descon siderar os materiais disponíveis mais cotidianos e tangíveis E de fato precisamos não ser tão negligentes sobre as possibilidades de se investigar a história do corpo através do uso de métodos empíricos mundanos E claro que em muitas questões nossa informação é irremediavelmente escassa Que posições de coito as pessoas usavam no século dezesseis ou no dezoito23 Dificilmente sabemos O primeiro registro escrito de diários e cartas é em grande parte reticente e onde é eloqüente provavelmente não 22 Barbara D uden GescKicKte unter der Haut Stuttgart 1987 D uden tam bém mostra com o seu grupo de mulheres compartilhava de um a visão de seus próprios corpos como dinâm icos e poderosos os grandes centros da criação da vida 23 V er a discussão na introdução a G S Rousseau e Roy Porter ed Sexual Underworlds of the Enlightenment Manchester 1987 A ESCRITA DA HISTÓRIA 299 é representativo e ainda há razões óbvias para um ceticismo saudável em relação à utilização do testemunho de fontes como gravuras pornográficas ou manuais de aconselhamento24 Além disso mesm o quando temos disponíveis numerosas fontes estas requerem uma interpretação sutil e ainda assim podem mistificar Q uando lemos em registros de admissão hospitalar que as mulhe res eram comumente admitidas nas enfermarias nos séculos dezoito e dezenove sofrendo de histeria quase sempre não está claro o que precisamente se é que havia algo estava fisicamente errado elas podiam ter experimentado paralisia parcial somática ou psicossomática podiam sobretudo ter estado sobrecarregadas de trabalho ou subalimentadas a histeria apesar do estereótipo comum era um a condição comum tanto ao pobre quanto ao rico Isso pode provar um exemplo em que o rótulo da doença serviu como pouco mais que uma senha administrativa para assegurar a admissão Seria um empreendimento arriscado esperar que nossos registros de diagnóstico médico nos proporcionassem uma história das doenças confiável objetiva e epidemiológica25 A pesar de tais dificuldades uma enorme quantidade de infor mação suficientemente confiável sobrevive para permitir a cons trução de perfis seguros da estatística vital dos corpos no passado M ais fundamentalmente há é claro registros de batismos e enterros para muitas partes da Europa do início dos tempos modernos em diante a partir dos quais os estudiosos desenvolve ram técnicas para se extrair indícios confiáveis dos índices de natalidade e mortalidade fecundidade fertilidade crises de morta lidade relacionadas a doenças e assim por diante a lei de assistência pública e os registros hospitalares também abrem janelas para a história da resistência e da enfermidade e para o preço pago pelo 24 Para um a introdução a tais fontes ver R M accubbin ed Unauthorized Sexual Behavior during the Enlightenment publicação especial de Eighteenth Centura Life m aio de 1985 25 V er G Risse Hysteria at the Edinburgh Infirmary Medicai History 32 p 122 1988 300 PETER BURKE trabalho duro26 Mas além disso sobrevivem arquivos particulares que fornecem indicadores extremamente delicados Por exemplo existem inúmeros livros de admissão para orfa natos e escolas além de registros de recrutamento para o exército e a marinha abrangendo um período de vários séculos N o meio deles temos acesso à idade e ao peso de algumas dezenas de milhares de indivíduos Aqueles da Inglaterra que sobrevivem foram processados para proporcionar um perfil coletivo da propor ção idadepeso de meninos e rapazes alterada no decorrer das gerações Tendo como base a investigação controlada de tais dados físicos podem ser feitas extrapolações sobre mudanças na ingestão alimentar tanto qualitativa quanto quantitativa gradientes de adaptação etc O s aspectos físicos podem oferecer um índice mais confiável do que os salários para o estabelecimento das alterações no padrão real de vida27 D a mesma forma possuímos um registro fotográfico que documenta agora quase um século e meio dos aspectos físicos das pessoas U m a vez mais não há necessidade de ridicularizar as másinterpretações que resultariam de um a ingênua confiança na veracidade das imagens visuais é claro que a câmera mente ou mais precisamente as fotografias não são instantâneos da realida de mas como as pinturas compõem artefatos culturais que transmitem complicados sinais convencionais codificados aos lei tores de primeira linha28 M as este embargo se aplica mais a algumas fotografias que a outras Retratos posados captam como as pessoas desejam ser lembradas todas limpas e embonecadas em seu melhor aspecto domingueiro M as os fotógrafos vitorianos também gostavam de 26 V er dassicam ente EA Wrigley e RS Schofield The Population History of England 15411870 Londres 1982 27 Roderick Floud Kenneth W achter e Annabell Gregory Height Health and History Cam bridge 1990 28 Para os problem as de interpretação de tal evidência ver D M Fox e C Lawrence Photographing Medicine lmages and Power in Britam and America since 1840 Spring field C onn 1988 Para interpretações valiosas ver David Piper The English Face Londres 1957 e Personality and the Portrait Londres 1972 A ESCRITA DA HISTÓRIA 301 fazer documentários casuais de instantâneos de rua e esses captavam as pessoas em seus movimentos e atitudes do cotidiano como resultado registraram tais aspectos como linguagem do corpo e espaço social de uma maneira mais informativa que qualquer texto impresso O arquivo fotográfico revela e confirma muita coisa sobre as transformações físicas da condição humana nos tempos modernos envelhecimento deformidades má nutri ção etc e também o que Goffman chamou de apresentação do ser linguagem corporal gestos e a apropriação do espaço físico29 A s fotografias permanecem estranhamente subexploradas como um recurso histórico A busca da história do corpo não é portanto somente uma questão He triturar as estatísticas vitais sobre o físico nem apenas um conjunto de métodos para a decodificação das representa ções E antes um chamado para a compreensão da ação recíproca entre os dois N o mundo quando surpreendemos o olhar superior do rico sobre o pobre este gesto era tanto físico quanto simbólico os nobres acima de tudo suas altezas eram tipicamente centímetros mais altos uma vantagem ainda aumentada pelos trajes imponentes vestuário e adereços com que se permitiam adornar seus corpos Dada a abundância da evidência disponível permanecemos incrivelmente ignorantes sobre a maneira como os indivíduos e os grupos sociais experimentavam controlavam e projetavam seus egos incorporados Com o as pessoas interpretavam o elo miste rioso entre o ego e suas extensões C om o administravam o cor po como um intermediário entre o ego e a sociedade Algumas tradições intelectuais poderiam se comprovar frutíferas na promo ção de tais explorações O s sociólogos do corpo ainda consideram a obra de W eber valiosa pois uma das resistências estáveis de sua avaliação da ética protestante está na revelação de como o que poderia ser assumido 29 V er E Goffm an Stigma Notes on the Management of Spoiled Identity Harmonds worth 1968 idem The Presentation of Self in Everyday Life Londres 1959 idem Strategic Interacdon Oxford 1970 idem Interaction Ritual Londres 1972 302 PETER BURKE antes como comprometimentos questões de salvação e justificação doutrinários abstratos desencarnados tornaramse de tal forma internalizados para terem profundas implicações no controle e na disciplina pessoal do corpo30 Por outro lado a psicohistória nos moldes freudianos apontou para uma cadeia de conseqüências completamente inversa mostrando como as atitudes para com o m undo em geral são comumente projeções dos m odos como as pessoas lidam com suas próprias funções corporais revelando assim as lutas interiores entre a consciência acima de tudo o inconsciente e sua expressão física M esm o que grande parte da psicohistória permaneça viciada pelo dogmático reducionismo edipiano e seja extremamente especulativa sua integração temática do interior e do exterior do privado e do público é altamente sugestiva31 Além disso algumas outras abordagens no interior da socio logia parecem particularmente dignas da atenção dos historiadores A fenomenologia e a etnometodologia promoveram ambas progra mas para a análise de encontros íntimos interpessoais que ao contrário digamos assim do funcionalismo parsoniano prestam a devida atenção ao desempenho do corpo como um órgão de comunicação conversamos com nossos corpos E corajosas tenta tivas têm sido feitas para aplicar tais métodos a apresentações sistemáticas e públicas dos egos sociais em comunidades históricas específicas como por exemplo na análise de Rhys Isaac dos estilos de vida na Virgínia colonial32 M esmo assim a frente de pesquisa atualmente está quando muito irregular Poucas áreas particulares têm recebido atenção e a maioria de nós está no escuro 30 Para a construção do Ego ver PM Spacks ImaginingaSelf Cam bridge M ass 1976 especialmente capítulo 5 JN M orris Versions of the Sei Nova York 1966 SD C ox The Stranger Within Tfiee The Concept of Self in Late Eighteenth Centura Literature Pittsburgh 1980 JO Lyons The lnvention of the Self Carbondale 1978 31 V er Lioyd DeM ause The Neui Psychohistory N ova York 1975 Devid E Stannard Sfirinking History On Freud and the Failure of Psychohistory Nova York e Oxford 1980 afirmou que a psicohistória desapareceu 32 Ver por exemplo Rhys Isaac The Transformation of Virgínia 17001800 Chapei llill 1981 A ESCRITA DA HISTÓRIA 303 N o âmago deste artigo vou me dedicar a algumas áreas especiais do problema para iluminar alguns campos potencialmente frutí feros para uma história do corpo e para a avaliação das implicações da pesquisa atual Corpo e mente É de importância básica um a compreensão do local subordi nado destinado ao corpo nos sistemas de valor religioso moral e social da cultura européia tradicional Muito antes de Descartes um dualismo fundamental invadiu a mentalité ocidental ser huma no significava ser uma mente encarnada ou na formulação de Sir Thom as Browne um anfíbio E um dualismo que muitos pensadores consideram paradoxal e mistificador devido à radical incompreensibilidade das intersecções entre a mente e a carne Não obstante tal dualismo tem sido uma força profundamente mode ladora do uso lingüístico dos esquemas classificatórios da ética e dos sistemas de valor A mente e ao corpo têm sido designados atributos e conotações distintos A mente é canonicamente supe rior à matéria Ontologicamente por isso a mente o desejo a consciência ou o ego têm sido indicados como os guardiães e governantes do corpo e o corpo deve ser seu criado M as este esquema tem um corolário crucial quando como um servo desobediente o corpo se rebela não são os punhos pés ou dedos os ofensores necessariamente considerados culpados mas as fa culdades mais nobres cujo dever era têlos controlado adequada mente E um fato que cria profundas tensões para todos os sistemas de controle pessoal por exemplo regimes de educação ou pu nição33 Em aspectos mais importantes esta subordinação hierárquica do corpo à mente sistematicamente degrada o corpo seus apetites 33 Assim todas as formas de materialismo provocam dilemas sobre a responsabilidade pessoal Para o Ilum inism o ver Lester Crocker An Age of Crisis M an and World in Eighteenth Centura FrencK Thought Baltimore 1959 304 PETER BURKE e desejos são encarados como cegos obstinados anárquicos ou no Cristianismo radicalmente pecaminosos pode ser encarado como a prisão da alma Por isso o corpo facilmente ofende cometendo o mal ou atos criminosos M as devido a sua verdadeira natureza sendo imperfeito até bestial ele pode paradoxalmente ser prontamente desculpado a fraqueza da carne A mente o ego o desejo ou a alma ao contrário devido ao seu ofício mais nobre é obrigada a ascender acima de tal desordem de tal guerra civil interna se implicada a vontade idealmente livre e nobre parece ainda mais culpada de ofensa A questão de precisamente como atribuir honra e vergonha deveres e responsabilidades respectiva mente à mente e ao corpo tem sido crucial para a avaliação do homem como um ser racional e moral no interior de sistemas de teologia ética política e jurisprudência tanto teóricos quanto práticos34 No século dezessete uma mulher sofre de alucinações seu comportamento é excêntrico e bizarro O s contemporâneos con cordam que ela está doente na verdade que ela está atacada de melancolia ou loucura M as que espécie de aflição é essa Poderia ser um distúrbio da sua mente Nesse caso provavelmente seria encarado como alguma forma de possessão demoníaca35 M as a idéia de tal invasão satânica era claramente perigosa no caso de um a bruxa suspeita exigiria um julgamento ou mais geralmente implicava em danação Houve assim uma boa razão para se antecipar um contradiagnóstico em vez disso a loucura era vista como somática em sua origem talvez o produto de um ferimento na cabeça ou de uma enfermidade intestinal melancolia lite ralmente um excesso de bile negra Evidentemente era de qualquer modo humilhante ser diagnosticada como um problema dos intestinos Swift Pope e outros satíricos ridicularizaram os soidisant poetas de gênio de sua época como não sendo realmente 34 Roger Smith Trial by Medicine lnsanity and Responsibility in Victorian Trials Edinburgh 1981 35 DP W alker Spiritualand Demonic Magicfrom Ficino to Campanella Londres 1958 Keith Thom as Religion and the Decline of Magic Harm ondsworth 1978 A ESCRITA DA HISTÓRIA 305 possuídos por aflatos mas apenas sofrendo de flatulência mas ao contrário da possessão satânica a doença somática tinha a válvula de escape de não pôr automaticamente em risco um destino espiritual uma alma imortal Discutindo tais questões historiado res perspicazes da insanidade como Michael M acDonald dem ons traram os perigos do anacronismo O que para o século vinte parecia muito bem ser um sinal de doença mental e por isso parte do ramo da psiquiatria poderia ter sido interpretado como um a indisposição física há três séculos atrás os limites do corpo são fluidos36 Questões da relativa responsabilidade do corpo e da alma confundiam as tentativas de explicar e conter a enfermidade Nos julgamentos das bruxas nos séculos dezesseis e dezessete era crucial determinar se os fenômenos da possessão eram devidos à doença à fraude ou a Satã E a tendência fortemente defendida pela profissão médica era cada vez mais enfatizar as causas orgânicas para aquilo que agora chamaríamos sempre de doença mental A vontade era assim garantido um álibi e o corpo quando doente era mais prontamente desculpado precisamente porque era mais baixo do que a mente teria sido Dois séculos mais tarde as percepções das relativas responsa bilidades da mente e do corpo não haviam se alterado muito Na época vitoriana tanto os leigos quanto os profissionais eram mais inclinados a designar diretamente como perturbação mental o desarranjo da consciência C om o declínio da crença literal em Satã e no fogo do inferno e o fim dos julgamentos das bruxas em suma com um certo grau de secularização arriscarse a um tal diagnóstico não mais provocava tais espectros N a verdade a emergência da psicoterapia criou um novo otimismo de prognós 36 Para os contextos intelectuais e culturais dessas idéias de loucura ver Michel Foucault Madness and Civilization a Historj of lnsanity in the Age of Reason Çraduzido por Richard Howard Nova York 1965 Michael M acdonald Mystical Bedlam Madness Anxiety and Healing in Seventeenth Centura England Cam bridge 1981 fundamental aqui é G S Rousseau Psychology em G S Rousseau e Roy Porter ed The Ferment of Knowledge Cambridge 1980 tico as enfermidades da mente poderiam ser tratadas e curadas assim afirmavam os psiquiatras progressistas mais facilmente que aquelas do corpo É óbvio que a nova tendência a se atribuir a responsabilidade da insanidade a distúrbios da consciência poderia carregar com ela formas distintas de estigma e censura todos tinham o dever de governar sua mente Mas uma nova simpatia se desenvolveu paralelamente As sociedades por demais individua listas e pressionadoras era explicado criavam grandes expectativas e árduas responsabilidades viver na alta sociedade gerava alta ansiedade Assim sob circunstâncias apropriadas as perturbações mentais ou como foram mais tarde chamadas os colapsos nervo sos poderiam incluir isenção social e despertar simpatia ou mesm o distinção Por isso a passagem de dois séculos testemu nhou profundas mudanças nos mapeamentos da mente e do corpo e os reagrupamentos de suas relações com enormes implicações para a política e para a terapia N ão devemos confundir essas mudanças nas explicações com o progresso positivo da ciência médica nenhuma ruptura cientí fica com provou os respectivos papéis da mente e do corpo na ação direcionadora Elas antes deviam ser vistas como sinais de reorientações culturais que repensavam as características da mente e do corpo Este objetivo que se aplica a revisões culturais mais amplas é igualmente pertinente ao problema de interpretação de episódios particulares Tom em os Freud N o início de sua prática psiquiátrica Freud concluiu que muitas de suas pacientes neuróticas haviam sido atacadas sexualmente quando crianças isso foi o que elas lhe disseram Por razões complicadas algumas profissionais algumas pessoais Freud abandonou essa interpretação adotando em vez disso a opinião de que os relatos das mulheres não eram acima de tudo lembranças mas antes fantasias enraizadas no inconsciente sobre acontecimentos traumáticos que na verdade jamais ocorre ram Assim desenvolvendo um a teoria de desejos reprimidos Freud deu origem à psicanálise Por isso ele passou de uma explicação essencialmente somática o ataque verdadeiro da etio A ESCRITA DA HISTÓRIA 307 logia do distúrbio mental para uma explicação localizada apenas na mente e propôs um tratamento igualmente psiquiátrico a cura pela conversa A grande maioria dos observadores de Ernest Jones em diante elogiou Freud por sua reflexão supostamente profunda no direcionamento da atenção para longe da vida do corpo e para aquela da consciência Podemos contudo considerar este elogio como refletindo o arraigado privilégio do intelectual sobre o físico A interpretação da mudança das explicações de Freud é um a questão absolutamente mais complicada37 Assim sendo as relações mentecorpo não são inatas mas dependentes da cultura Este relativismo é exemplificado por uma notável distinção cultural entre a experiência ocidental e a chinesa na atribuição da enfermidade o que foi mostrado pelo historiador e antropólogo de medicina Arthur Kleinman U m americano do século vinte sentese deprimido ele não consulta um clínico geral mas um psicoterapeuta é diagnosticado como sofrendo de um distúrbio psiquiátrico algum tipo de neurose o terapeuta investiga sua história de vida para recuperar sua felicidade A pessoa equiva lente na China ao contrário atribui uma enfermidade comparável a uma desordem e a uma causa físicas Seu médico confirma que sua doença é orgânica pode ser chamada de neurastenia e prescreve remédios Apontado como vítima de uma doença somática é permitido ao chinês assumir o papel do doente e pode por isso merecer simpatia e atenção Ao contrário se ele alegasse como seu correspondente americano alguma forma de perturbação mental teria sido uma admissão terrível e debilitante de defeito e desvio de caráter o que lhe teria trazido estigma e desvantagens38 37 Sobre Freud ver H F Ellenberger The Discovery ofthe Unconscious the History and Evolution ofDynamic Psychiatry N ova York 1971 RW Clark Freud The M an and the Cause Londres 1982 FrankJ Sulloway Freud Biologist ofthe Mind Nova York 1979 eJM M asson The Assault on Truth Freuds Suppression ofthe Seduction Tfieory Nova York 1983 38 Arthur Kleinm an Social Origins of Distress and Disease Depression Neurasthenia and Pain in Modem China New Haven 1986 Ver também Carney Landis e Fred Metder Varieties of Psychopathological Experience Nova York 1964 Para um a discussão mais am pla do papel do doente ver D Mechanic The Concept o f Illness Behaviour Journal of Chronic Disease 15 p 18994 1962 308 PETER BURKE Em outras palavras como demonstra a discussão de Kleinman sobre as construções rivais somáticas e psiquiátricas da perturba ção mental o corpo não pode ser tratado pelo historiador simplesmente como biológico mas deve ser encarado como me diado por sistemas de sinais culturais A distribuição da função e da responsabilidade entre o corpo e a mente o corpo e a alma difere extremamente segundo o século a classe as circunstâncias e a cultura e as sociedades com freqüência possuem uma plurali dade de significados concorrentes O estabelecimento do caso individual é um tema para ser negociado Muita coisa tem dependido de tais atribuições como por exemplo a questão prática da culpabilidade legal O s historiadores de medicina forense como Roger Smith elucidaram os dilemas U m tiro de um homem mata outro E o proprietário daquele corpo que deve ser o responsável Sim se sua mente dirigiu o tiro ou seja se houve mens rea uma intenção culpada não teria achado um tribunal dos séculos dezoito ou dezenove se ele estivesse fora de sua mente talvez até fora de si em conseqüência de enfermidade somática Se contudo a responsabilidade for mantida como a reparação deve ser exigida Durante os últimos dois séculos ela foi dirigida principalmente contra o corpo através de punição corporal ou capital Mais uma vez no entanto mudaram os sistemas de valor intervenientes especialmente a partir do final do século dezoito os reformadores penais declararam que era mais nobre ou mais hum ano não punir o corpo mas corrigir ou reformar a mente nos termos de Mably a punição deve antes atingir a alma que o corpo C om o Michel Foucault e Michael Ignatieff particularmente enfatizaram a intenção terapêutica que sustenta o sistema penal m oderno ainda determina outro exemplo da condição variável do corpo aquela que poupando o corpo serve apenas para reiterar sua inferioridade39 39 V er M Foucault Discipline and Punish The Birth of the Prison Harm ondsworth 1979 M Ignatieff A Just Measure of Pain Londres 1978 A ESCRITA DA HISTÓRIA 309 Tomemos outro exemplo U m homem é morto não por um tiro de outro mas devido a um microorganismo difundido por um portador O portador deve ser considerado moral ou criminalmente responsável pelo risco ou pelo desastre que seu corpo provocou Essa questão temse comprovádo extremamente complicada central à política de regulamentação das populações de alta densidade por burocracias médicas desde as epidemias de peste bubônica na Idade Média O que é notável entretanto como foi enfatizado pelos historiadores recentes de saúde pública é como os sistemas jurídico políticos do Ocidente têm considerado pouco os indivíduos respon sáveis pela destruição da saúde descarregada por seus corpos Apesar da emergência de sociedades de bemestar cada vez mais policiadas durante os dois últimos séculos as questões de saúde têm sido deixadas surpreendentemente a cargo de relacionamentos contra tuais privados e confidenciais entre o indivíduo e seu médico Ereuihon a Utopia de Samuel Buder em que é um crime ficar doente embora a criminalidade seja desculpada como uma doença proporciona um espantoso contraste Apesar da medicalização da vida as compulsões de saúde têm sido poucas Por exemplo a vacinação contra varíola legalmente constrangedora foi brevemente introduzida na Inglaterra vitoriana mas encontrando feroz oposi ção a legislação foi derrubada o mesmo ocorreu para o tratamento compulsório das doenças venéreas40 Essa solução certamente incor pora um sentido da propriedade inalienável e individual do corpo solidamente adiantada nas formulações secularizantes da filosofia política liberal do século dezessete em diante A s políticas e as banalidades no cumprimento da lei na filosofia política e na administração social freqüentemente só serão inteiramente com preendidas se seu enraizamento nas doutrinas sobre a propriedade e a privacidade do corpo forem antes entendidas41 40 W M Frazer History of EnglisK Public Health 1 8 3 41939 Londres 1950p 7072 106112 P M cHugh Prostitution and Victorian Social Reform Londres 1981 e J Walkowitz Prostitution and Victorian Society Cambridge 1980 41 A s dim ensões pública e privada são exploradas em R Sennett The Fali of Public Man Cam bridge 1976 310 PETER BURKE Policiando o corpo Há um estereótipo cultural profundamente estabelecido arrebatador em Rabelais42 insultuoso no interior da teologia cristã que retrata o corpo como um chefe rebelde senhor do desregra mento símbolo do excesso de comida bebida sexo e violência incorporação do princípio que Freud mais tarde intelectualizou como o id O s historiadores recentemente exploraram as tenta tivas de grupos sociais dominantes para restringir reprimir e reformar a mutilação do corpo Essas estratégias obviamente assu miram formas distintas O s estudiosos focalizaram sua atenção primeiramente sobre as reformas que são autoinfligidas implementando aspirações para um melhor autocontrole associadas à educação e à disciplina familiar Manuais para comportamento adequado tanto religioso quanto civil espalhando as máquinas de impressão do século dezesseis compuseram grandes estoques sobre a submissão e a obediência do corpo e sobre o cultivo das boasmaneiras da decência e do decoro Foucault declarou que a crescente preocupação com a boa saúde e a vida longa originadas no Iluminismo proporcionam mais um sintoma43 Vigarello acentuou a importância de se cultivar interna mente o corpo anárquico através da higiene da limpeza e do vestuário e Norbert Elias em particular estudou o processo civiliza dor visível no desenvolvimento dos controles do corpo corpos limpos hábitos limpos conversa limpa mentes limpas Além disso a pesquisa de Schama sobre a pureza e a disciplina do corpo entre os calvinistas holandeses ilumina a eficácia tanto social quanto psicológica de tais estratégias na criação de um cordon sanitaire contra as ameaças morais e religiosas tanto o papismo quanto a profanação consideradas sujas perigosas e contagiosas44 42 M Bakhtin Rabelais and his World Cambridge M ass 1968 43 Ver M Foucault A History of Sexuality v 1 Introduction Londres 1978 JL Flandrin Un Temps pour embrasser Paris 1983 44 V er em geral N Elias The Civiliting Process Oxford 1983 e mais especificamente S Scham a The Unruly Realm Appetite and Restraint in SeventeenthCentury H olland Daedalus 108 p 103231979 A ESCRITA DA HISTÓRIA 311 Falar em decência delicadeza e recato automaticamente sugere os vitorianos mas o vitorianismo antecedeu muito aqueles que portam seu nome Thom as Bowdler era um georgiano foi Wesley que colocou a limpeza próxima à divindade e o comportamento adequado do corpo em uma sociedade educada nunca foi tão divulgado quanto na época de Addison Steele e Mandeville Em obras como The Virgin Unmaskd M andeville explorou de forma m açante os significados ambivalentes da repressão corporal em que ocultar o corpo poderia ser m ais excitante do que revelálo45 O autocontrole físico prosseguiu intimamente ligado ao desejo de policiar os corpos alheios assim como de assegurar uma melhor ordem social e moralreligiosa Sobretudo os historiadores do início da França moderna como Muchembled Flandrin e Delumeau enfatizaram especialmente as tentativas das autoridades religiosas e civis de regulamentarem os corpos das pessoas comuns através da persuasão da prescrição e finalmente da coerção física46 M u chembled acima de tudo declarou que na tradicional cultura camponesa quase pagã o corpo desfrutava de um a elevada posição como um instrumento potente e que suas partes e produtos sangue fezes o pênis e o útero possuíam poderes mágicos Embora vulnerável à fome à doença e à morte o corpo era também a energia dionisíaca subjacente à devassidão e aos excessos orgíacos Essa contracultura carnavalesca do corpo ficou no entanto cada vez mais sujeita à vigilância sistemática e à repressão efetiva através dos instrumentos dos julgamentos das bruxas das cortes eclesiás ticas e da confissão intensificada pela ContraReforma além de incutir uma nova moralidade sexual subordinada ao casamento e à legitimidade 45 Para um a opinião do início do período georgiano ver Fenella Childs Prescriptions for Manners in Eighteenth Century Courtesy Literature tese de PhD Oxford 1984 46 Jacques Donzelot The Policing of Families trad Robert Hurley Nova York 1979 eanLouis Flandrin Am our et marriage Dixhuitième Siêcle 12 p 16576 1980 Ver tam bém M Bakhtin Rabelais and His World trad H Iswolsky Cam bridge M ass 1968 e J Starobinski The Bodys M om ent em Montmgne Essays in Reaáing Yale French Studies n2 64 p 273305 1983 312 PETER BURKE O início da Inglaterra moderna também testemunhou movi mentos paralelos conduzidos pelos puritanos pela reforma reli giosa da moral e dos costumes47 Eles podem ter alcançado algum sucesso O s demógrafos históricos demonstraram que os persona gens da bastardia eram em número muitíssimo menor na época de Stuart do que se tornaram posteriormente no ambiente mais secular da primeira nação industrial sugerindo talvez que a disci plina moral fosse efetiva48 A Inglaterra georgiana testemunhou mais ataques a uma cultura corporal anárquica com a regulamen tação dos esportes sanguinários e das lutas profissionais uma nova desaprovação dos duelos e as tentativas dos empregadores capita listas de insistirem no trabalho regular e na disciplina de horário em sua força de trabalho49 O s corpos plebeus estavam tradicionalmente no extremo re ceptor da coerção física o chicote o pelourinho a forca M as como Foucault particularmente enfatizou os corpos das pessoas também se tornaram sujeitos a uma nova tecnologia política do corpo e esperavase eram por ela regenerados as rotinas do fundo da fábrica os exercícios da escola a fadiga das paradas as punições do reformatório Desde a infância e o treinamento esfincteriano no seio familiar passando pela escola até o exército e o recinto da fábrica o estado trabalhava para produzir súditos dóceis e uma força de trabalho obediente através da disciplina sistemática dos corpos das pessoas50 Só recentemente os historiadores do presen te século sugeriram que a lógica do capitalismo relaxou um pouco 47 K W rightson English Society 15801680 Londres 1982 EJ Bristow Vice and Vigilance Purity Movements in Britain since 1700 Dublin 1977 48 P Laslett ed Bastardy and its Comparative History Londres 1980 49 R M alcolm son Popular Recreations in English Society 17001850 Cam bridge 1973 50 A s obras mais importantes de Foucault são Madness and Civilization a History of Insanity in the Age of Reason Londres 1967 The Order of Tfvings an Archaeology of the Human Sciences Londres 1970 The Archaeology of Knowledge Londres 1972 The Birth ofthe Cíinic an Archaeology of Medicai Perception Londres 1973 Discipline and Punish the Birth ofthe Prison Harmondsworth 1979 The History of Sexuality v I lntroduction Londres 1978 V er também C G ordon ed M Foucault PowerKnowledge Brighton 1980 especialmente o ensaio BodyPower p 5562 A ESCRITA DA HISTÓRIA 313 esta severa ênfase chamada protestante sobre o corpo discipli nado e sobre um asceticismo tão m undano o imperativo recen temente havia mudado da m ão produtiva e disciplinada tipo máquina para o corpo como consumidor cheio de deficiências e de necessidades cujos desejos devem ser inflamados e encora jados51 Focalizar a atenção sobre o problema do corpo seus perigos e suas disciplinas seu potencial para a profanação mas também seus poderes produtivos ajuda a compreender os numerosos desenvolvimentos disparatados tão freqüentemente estudados no isolamento e anacrônicamente através das sinalizações das discipli nas modernas Com o declarou Catherine Gallagher interpreta mos mal Malthus se por exemplo o consideramos simplesmente como o pai da demografia moderna52 N a verdade ele propôs um enigma dramaticamente novo com respeito ao bemestar moral dos organismos políticos Tradicionalmente o corpo saudável era a garantia do estado saudável Ele produzia ele reproduzia Mas segundo a contrasugestão de Malthus o corpo saudável devido a seus altos poderes reprodutivos podia realmente se comprovar inimigo do estado Assim o corpo privado e o corpo público podiam estar em desacordo Ou como enfatizou EP Thom pson deixamos escapar metade da importância da disputa pela disciplina de horário nas fábricas se a encaramos apenas em termos de racionalidade econômica e de heróicos capitães de indústria antes de tudo ela era parte de uma tentativa muito mais ampla de governar as pessoas através do controle de seus corpos53 Similarmente uma história da educação que se concentra exclusivamente em atingir habilidades como a leitura e a escrita 51 M Featherstone The Body in Consum er Culture Theory Culture Society 1 p 18331982 52 Para um a discussão das preocupações mais am plas de Malthus ver Patricia Jam es Population Malthus His Life and Times Londres 1979 capítulo 2 parte 4 e RM Young M althus and the Evolutionists The C om m on Context of Biological and Social Theory Past and Present 43 1969 p 10945 53 EP Thom pson Time W orkDiscipline and Industrial Capitalism Past and Present 37 p 5697 1967 314 PETER BURKE deixará escapar uma das principais funções da escola para crianças pobres de caridade ou elementar do passado incutir a obediência física ou a educação como um processo para domesticar as crian ças54 Da mesma forma seria limitado estabelecer os objetivos dos sanitaristas e dos higienistas apenas em termos de miasmas e drenagens suas preocupações não eram menores com respeito à sujeira moral e à regulamentação do contágio e da contaminação sexual55 D o mesmo modo os rituais da medicina à beira do leito ou no hospital não podem ser inteiramente explicados pelos achados da ciência médica Questões mais amplas de tabus e decoros corporais também ditam a natureza e os limites dos exames diagnósticos do tratamento cirúrgico e da emergência de novas especialidades intervencionistas e sensíveis ao gênero como a obstetrícia humana56 Estas questões mais amplas mostram porque as políticas do corpo exigem atenção por direito próprio tais questões são muitas vezes negligenciadas se seguimos a demografia histórica a história da educação a história da medicina e assim por diante através de uma visão fechada isolada e estreita Permanece obscuro entretanto até que ponto é exato um retrato apresentado por historiadores como Muchenbled que encaravam as culturas populares do corpo como sendo triunfal mente suprimidas em nome do estado soberano e terapêutico e dos ditames da racionalidade capitalista As aspirações podem bem ter superado muito as realizações A cultura de elite não parece ter subjugado tanto a cultura popular como dela se separado desen volvendo sua própria linguagem corporal seus rituais e seus 54 Sobre as dim ensões mais am plas da educação ver B Haley The Healthy Body and Victorian Culture Cam bridge M ass 1978 55 Virginia Sm ith Physical Puritanism and Sanitary Science Material and Immaterial Beliefs in Popular Physiology 16501840 em W F Bynum and Roy Porter ed Medicai Fringe and Medicai Orthodoxy 1 7 5 0 1 8 5 0 Londres 1986 p 17497 56 Ver R L Engle e BJ Davis Medicai Diagnosis Present Past and Future Archives of Internai Medicine 112 p 51243 1963 A ESCRITA DA HISTÓRIA 315 refinamentos distintos desmaterializados e expressivos57 O s cos tumes sexuais do folclore popular por exemplo a tradição da relação sexual préconjugal seguida do casamento por gravidez e a magia médica popular comprovaramse imensamente elásticos diante da doutrinação e da infiltração vinda de cima Igualmente as políticas de controle do comportamento corpo ral à beira dos riscos colocados pela doença epidêmica e pelas sexualidades perigosas eram imensamente complexas N a Ingla terra as aspirações do movimento de saúde e higiene pública do início do período vitoriano associadas ao utilitarismo e a Edwin Chadwick foram diretas e estatais Nenhuma aliança desse tipo entre o governo central e a drenagem de esgotos pode ser encon trada entretanto em Paris M as mesmo na Inglaterra o empreen dimento do policiamento dos corpos pela medicina estatal rapida mente sossobrou naufragado nas rochas dos corredores de políti cos concorrentes inclusive grupos de puristas e feministas furiosos diante das tentativas dos legisladores do sexo masculino de contro lar os corpos das mulheres através do duplo padrão Por toda parte a idéia superficialmente atraente de que o crescimento do poder do estado tem sido dirigido para a subordinação social do corpo passa a ser ingênua e nada convincente58 O sexo o gênero e o corpo Se a sociedade européia através de la longue durée foi um patriarcado e ainda carrega pelo menos suas cicatrizes até que ponto o patriarcado em si foi um sintoma ou uma conseqüência direta da diferenciação entre os corpos masculino e feminino um a diferença digamos assim não simplesmente biológica mas 57 Para tais divisões ver P Burke Popular Culture in Early Modem Europe Londres 1978 H C Payne Elite versus Popular Mentality in the Eighteenth Century Studies in Eighteenth Century Culture 8 p 20137 1979 58 A m elhor e mais recente introdução está em Frank Mort Dangerous Sexualities MedicoPolitics in England since 1830 Londres 1987 316 PETER BURKE constituídano interior das realidades sociais Será que a razão para a tradicional subordinação das mulheres aos homens foi primária e essencialmente física devido às gestações sem fim que os maridos egoístas forçaram sobre elas na época anterior ã contra cepção efetiva algemaramnas às crianças e à vida doméstica ao envelhecimento prematuro à exaustão e freqüentemente à morte por doenças do parto e que além disso as confinavam em uma cultura de gueto apenas para mulheres manchada de sangue menstruai e das impurezas do parto Assim declarou Edward Shorter em sua History of Womens Bodies59 concluindo que as mulheres finalmente durante o último século se emanciparam de suas cadeias biológicas primárias pelo advento da gravidez segura da contracepção e do aborto legalizado que proporcionandolhes o controle sobre sua própria fertilidade pavimentaram o caminho para a família m oderna para a família igualitária e até para a sociedade pósfamília O que não se pode duvidar é que os tradicionais médicos teólogos e filósofos do sexo masculino atribuíam a subordinação das mulheres à sua condição biológica inferior dentro do esquema da Criação De acordo com Aristóteles e seus seguidores as mulheres eram machos defeituosos ou monstruosos seres nos quais a genitália designada para ser do lado exterior do Corpo por falta de calor ou de força falhou na extrusão Com sua natureza mais fria e mais fraca e sua genitália contida internamente as mulheres eram essencialmente equipadas para a criação de filhos não para uma vida racional e ativa dentro do fórum cívico As mulheres eram criaturas privadas os homens eram públicos60 Thom as Laqueur declarou que essa conceituação médica da natureza das mulheres foi corroída e substituída por volta do final do século dezoito610 sexo feminino deixou de ser visto literalmen 59 E Shorter The Making of the Modem Family Londres 1976 60 J M orsink Aristotle on the Generation of Animais W ashington 1982 61 T Laqueur O rgasm Generation and the Politcs o f Reproductive Biology em C Gallagher e T Laqueur ed The Making of the Modem Body Berkeley e Los Angeles 1987 p 141 Com parar com Pierre Darm on Le Mythe de la procréation à Vage baroque Paris 1977 A ESCRITA DA HISTÓRIA 317 te como uma versão inferior do masculino tornandose em vez disso encarado como essencialmente diferente mas complemen tar O s fisiologistas haviam acabado de afirmar que o aparato reprodutivo sexual feminino era radicalmente distinto daquele dos homens opinião confirmada pela descoberta das funções dos ovários e da natureza do ciclo menstruai Isso por sua vez indicava que não havia nenhuma boarazão biológica por que as mulheres devessem ser exclusivamente seres ativamente sexuais isto é eróticos ao contrário do dogma médico clássico não era necessá rio qualquer estímulo sexual para as mulheres conceberem elas tinham apenas de servir como receptáculos de sêmen Havia nascido a passiva e dessexualizada mulher vitoriana embora pace Laqueur deva ser destacado que Peter Gay e outros historia dores declararam que as mulheres vitorianas não eram absoluta mente vitorianas naquele sentido seria um grande erro confun dir com a realidade algumas prescrições para o comportamento feminino adequado62 Laqueur busca relacionar esta composição do corpo m oder n o à m udança de lugar das mulheres na sociedade Dessexuali zada a esposa tornouse o anjo da casa dócil frágil desapaixo nada e por isso seu relato encaixa bem com a recente análise da emergência de esferas separadas para os papéis domésticos m asculino e feminino63 Declarando que a ciência não emerge de um a sim ples lógica da descoberta mas proporciona um a forma articulada a pressões sócioideológicas Laqueur nega que a nova imagem do gênero fosse produto de pesquisa científica autôno ma M as surge assim um enigma ovogalinha Aceitamos como indica o argumento de Laqueur e muitos estudiosos feministas sugerem que as forças culturais isto é a ideologia patriarcal traduzida em poder institucional foram os primeiros responsá veis pelo encerramento das mulheres em casas de boneca Se 62 P Gay The Bourgeois Experience Victoria to Freud v 1 A Sentimental Educatíon v 2 The Tender Passion N ova York 1984 1986 63 Leonore D avidoffe Catherine Hall Family Fortunes Men and Women o the English Middle Class 1 7801850 Londres 1987 318 PETER BURKE assim for trnase urgente demonstrar por que se pensava que os anos imediatamente anteriores e posteriores a 1800 fossem essen ciais para a transformação da posição social das mulheres O u antes deveríamos seguindo Shorter subscrever um rela to mais materialista em que os grilhões biológicos gestações múltiplas etc principalmente explicam a prolongada servi dão das mulheres e se acredita que os achados biomédicos contracepção aborto etc fizeram mais pela emancipação das mulheres do que a agitação das feministas M as se com Shorter aceitarmos o dínam o biomédico da história como podemos explicar por que o fantasma do patriarcado continua a mandar m esm o hoje uma vez que a emancipação biológica foi suposta mente alcançada Talvez a resposta seja a de que não precisamos nos empalar nos chifres de um a falsa dicotomia a idéia de que as explicações para a identidade do gênero podem ser simplesmente sociocul turais ou simplesmente biocientíficas U m a via de escape é na verdade assinalada por relatos de Foucault e de outros sobre a transformação do discurso sobre o sexo durante o século deze nove64 Foucault destacou corretamente que a noção popular de que o sexo supostamente tão abertamente discutido durante o livre século dezoito65 foi silenciado no furtivo século dezeno ve é absolutamente falsa Nenhum século viu um a discussão do sexo tão extensiva quase obsessiva M as o foco da atenção mudou O s tratamentos iniciais como aquele encontrado no manual popular Aristotles Masterpíece consideravam o encontro sexual essencialmente como a ação de corpos de acordo com as urgências e os apetites da natureza primeiramente designada para assegurar 64 M Foucault The History of Sexuality v 1 lntroduction Londres 1978 65 Para a reivindicação do Ilum inism o de que o erótico é o saudável ver Hagstrum Sex and Sensibility Erotic Ideal and Erotic Lovefrom Milton to Motart Londres 1980 Roy Porter Mixed Feelings the Enlightenment and sexuality in Britain em PG Boucé ed Sexuality in Eighteenth Century Britain Manchester 1982 p 127 A ESCRITA DA HISTÓRIA 319 a perpetuação das espécies66 O discurso sexual do século dezenove pelo contrário presta uma extraordinária atenção às desordens à anormalidade e aos desvios sexuais Acima de tudo elaborou uma psicopatologia de perversões sexuais vinculando essas a práticas como a masturbação e a condições como a histeria O sexo foi visto portanto à luz da psiquiatria no espaço de uma nova construção teórica a sexualidade 67 Essa análise ilumina e ajuda a resolver o dilema levantado pelas análises divergentes de Shorter e Laqueur Pois poderia parecer que ao nos aplicarmos para a mudança das concepções das mulheres no século dezenove nossa atenção não deveria estar focalizada literalmente na história biomédica de seus corpos nem principal mente sobre as pressões em mutação no casamento e na família mas antes no desenvolvimento de uma nova metafísica do femini no Isto encontra uma matriz em uma psicofisiologia da materni dade e estava intimamente associado ao que Elaine Showalter corretamente nomeou de o padecimento da fêmea que era no caso extremo o padecimento de ser fêmea68 Este novo discurso finalmente enclausurado na teoria psicanalítica freudiana na ver dade recuperou o velho biologismo anatomia é destino mas o mascarou em uma nova roupagem fantasiosa a inveja do pênis estava acima de tudo apenas na mente N o caso do próprio Freud aspiravase à liberação das mulheres embora não a partir dos homens mas de suas próprias neuroses69 E por isso que apesar do tom eupéptico a emancipação biológica teve uma 66 Roy Porter Spreading Carnal Knowledge or Selling Dirt Cheap Nicolas Venettes Tableau De LAmour Conjugal in Eighteenth Century England Journal of European Scudies 14 p 233551984 PG Boucé Aspects o f sexual tolerance and intolerance in eighteenthcentury England British Journal of EighteentfiCentury Studies 3 p 180 1980 67 Para um a dim ensão desta nova psiquiatria sexual ver EH Hare Masturbatory Insanity The History o f an Idea Journal of Mentaí Science 108 p 125 1962 68 Elaine Showalter The Female Malady Nova York 1985 69 Foi feita um a tentativa de unir a psicanálise com o feminismo em Juliet Mitchel Psychoanalysis and Feminism Nova York 1974 Para um conjunto de opiniões muito mais céticas ver Charles Bernheimer e Claire Kahane ed In Doras Case Freud Hysteria Feminism Nova York 1985 320 PETER BURKE importância um pouco inconsistente para as mulheres deste século em vista da emergência de outras disciplinas as variedades da psicanálise que oferecem novas racionalizações para a inferioridade neuroses das mulheres70 Uma agenda Acabei de examinar três áreas chaves em que o nosso conhe cimento do corpo tanto na realidade quanto nas representações é crucial para interpretações mais amplas da mudança social Em cada uma delas o debate historiográfico já é intenso A guisa de coda para esta pesquisa superficial quero apontar sete outros ramos da história do corpo que merecem íntima atenção mencio nando nas referências as obras notáveis já publicadas 1 O Corpo como uma Condição Humana As religiões as filosofias e as literaturas do mundo fazem uma apreciação em coro sobre a condição humana sobre o nascimento a cópula e a morte71 M as com que especificidade e direcionamento as doutri nas religiosas predominantes ou as têmperas artísticas de determi nadas épocas se relacionam refletem compensam com as expe riências reais da vida encarnada72 Por exemplo será que a cultura obcecada com a morte que Huizinga chamou de o declínio da Idade M édia foi uma reação reflexa às realidades das epidemias de peste bubônica que assolaram a Europa no século quatorze Ou 70 Para perspectivas gerais úteis sobre a historiografia do sexo ver Jeffrey W eaks Sex Politics and Society Londres 1981 Michael Ignatieff H om o Sexualis London Review of Books p 89 m arço de 1982 71 Para atitudes em relação à morte ver J M cM anners Death and the Enlightenment Oxford 1981 P Ariés The Hour of our Death Harmondsworth 1981 e W F Bynum Health Disease and Medicai C are em G S Rousseau e Roy Porter The Ferment of Knowledge Cambridge 1980 p 21154 72 V er a discussão em J Broadbent The Image o f G od or Two Yards o f Skin em J Benthall e T Polhemus ed The Body as a Medium of Expression Londres 1975 p 30526 A ESCRITA DA HISTÓRIA 321 seguindo Camporesi podíamos considerar melhor os elementos macabros do final do Cristianism o medieval o fascínio por Cristo pregado na cruz os corpos incorruptíveis dos santos e assim por diante como uma expressão de um amor vibrante pela vida e uma absorção do espírito gela carne Ou tomandose um período posterior será que existe um elo genuíno como sugere Im hof entre a recente garantia de uma existência temporal mais segura e prolongada e por outro lado uma crença decadente na imortali dade pessoal Usandose a formulação de Imhof a expectativa de vida que foi um dia infinita está agora reduzida a cerca de setenta anos73 2 AJForma do Corpo N a arte na escrita criativa na ciência e na medicina mas não menos em provérbios74 frases feitas e metáforas o corpo assume uma forma visual ou visualizada Magro ou gordo bonito ou feio o espelho do universo o modelo dos animais a quintessência do pó cada quadro conta a sua história e incorpora um sistema de valor Poucos historiadores até agora prestaram muita atenção à linguagem como aquela contida por exemplo nas metáforas de vida e morte como um veículo para mensagens ocultas sobre o corpo Ainda menos historiadores gerais em oposição aos historiadores especialistas de arte ponde raram profundamente sobre a significação das imagens visuais verdadeiras dos corpos em retratos em efígies fúnebres anato m ias ou mesmo em álbuns de instantâneos como evidência histórica Muito freqüentemente os historiadores utilizam a evidên cia visual antes como meras ilustrações do que como coisas a serem explicadas U m a melhor integração das fontes escritas e visuais é um a remota prioridade75 73 P Cam poresi The lncorruptible Fíesh Bodily Mutation and Mortification in Reiigion and Folklore trad de T CroftMurray Cambridge 1988 74 Para os provérbios ver F Loux Sagesses du corps Paris 1978 75 Sobre o importante cam po da fisiognomia ver G Tyler Pfiysiognom in the European Novel Princeton 1982 M Shordand The Body in Question Some Perceptions Problems and Perspectives of the Body in Relation to Character c 1 7501850 Tese de PhD Universidade de Leeds 1985 322 PETER BURKE 3 A Anatomia do Corpo O s corpos são objetos para a contem plação externa eles enfrentam o mundo de fora M as são também subjetivos integrais ao ego interno Estranhamente contudo a maior parte dos relatos da história do ego76 do caráter e da psicologia pessoal tem muito pouco a dizer sobre como as pessoas têm compreendido seus próprios corpos e com eles se relacionado Precisamos saber muito mais sobre o modo como os indivíduos em particular e as culturas em geral atribuíram significado a seus membros e órgãos suas constituições seu corpo Qual é a topo grafia emocional e existencial da pele e dos ossos O que as pessoas queriam dizer quando falavam literal e figuradamente de seu sangue77 sua cabeça ou seu coração suas entranhas seus espíritos e seus humores Com o esses órgãos e funções incorporavam emoções experiências e desejos Com o se interrelacionavam os significados privados e os públicos as conotações subjetivas e as médicas Q uando alguém se sentia velho ou jovem ou na verdade jovem de coração e o que significava a sucessão de tais idades e períodos E como as pessoas pensavam em seus corpos seus incômodos e suas dores quando ficavam doentes O corpó é o sistema de comunicações primário mas os historiadores prestaram pouca atenção a seus códigos e chaves os antropólogos podem ter muito a nos ensinar aqui78 4 Corpo Mente e Alma Eu aludi anteriormente ao fato de que os territórios da mente e do corpo não são fixos menos ainda fixos pela biologia mas possuem limites sujeitos à negociação com sistemas particulares de valores julgamentos e deveres Este 76 V er nota 30 77 Richard M Titm uss The Gift Relationship From Human Blood to Social Policy Nova York 1971 e mais geralmente sobre a ressonância metafórica do corpo C G H elm an Feed a C old Starve a Fever Folk M odels o f Infection in an English Suburban Community and their Relation to Medicai Treatment Culture Medicine and Psychiatry II p 10737 1978 idem Culture Health and Illness Bristol 1984 JB Loudon ed Social Anthropology and Medicine Londres 1976 78 J Lane The Doctor Scolds M e The Diaries and Correspondence o f Patients in EighteenthCentury England em Roy Porter ed Patients and practitioners p 20747 A ESCRITA DA HISTÓRIA 323 sentido do ego uma totalidade dividida em capacidades e funções distintas um corpo espiritualizado e uma mente encarnada com freqüência mutuamente em desacordo obviamente tem sido cen tral às teorias éticas aos códigos de jurisprudência aos programas pedagógicos e mais geralmente às idéias do lugar do homem na natureza N a verdade podese dizer que as relações mentecorpo e ainda mais as relações corpoalm a não apenas constituem um problema interior à ética e à teologia mas geram o verdadeiro ímpeto com o mistério por trás delas para suas profundas especulações O s elos e as divisões entre a mente e o corpo a experiência e as lesões claramente não são menos centrais à história das doenças e dos remédios como testemunham as condições psicossomáticas como a histeria79 e a hipocondria80 Devemos nos lembrar de que as filosofias e as visões do mundo do homem e de sua natureza são em geral atributos de uma metafísica freqüentemente não mencionada do corpo hum ano81 5 Sexo e Gênero Graças às estudiosas feministas a constituição e a reconstituição do sexo e do gênero formam uma das muito poucas áreas de análise do corpo de modo específico o corpo feminino imediatamente atraente mas profanado desejável mas perigoso que tem sido pesquisada minuciosamente E absolutamente impossível discutir aqui a variedade dos tópicos cobertos nesta área ou mesmo relacionála nas referências82 U m a conclusão importante que parece 79 Para a histeria ver I Veith Hysteria the History of a Disease Chicago 1963 80 Para a hipocondria ver C M oore Backgrounds of English Literature 1 7001760 M inneapolis 1953 O Doughty The English Malady o f the Eighteenth Century Review of English Studies 2 p 257691926 E FischerHomberger Hypochondria sis o f the Eighteenth Century N eurosis o f the present Century Bulletin of the History of Medicine 46 p 3914011972 Roy Porter TheR ageofP arty a Glorious Revolutíon in English Psychiatry Medicai History 27 p 3550 1983 81 L J Rather Mind and Body in Eighteenth Century Medicine Londres 1965 W I M atson W hy Isnt the MindBody Problem Ancient em PK Feyerabend e G Maxwell ed Mind Matter and Method M inneapolis 1966 82 V er Carroll SmithRosenberg e Charles Rosenberg The Female Animal Medicai and Biological Views ofW om an and Her Role in NineteenthCenturyAmerica em Judith W Leavitt ed Women and Health in America M adison 1984 p 1227 Nancy F Cott Passionlessness an Interpretation o f Victorian Sexual Ideology 17901850 ibid p 5789 C arl N Degler W hat O ught to Be and W hat W as 324 PETER BURKE estar emergirído é digna de nota o fato de nenhuma atitude isolada e uniforme em relação à política do corpo feminino visàvis a socie dade existente ou uma sociedade reformada ter sido adotada pela opinião feminista As escritoras discordavam Por exemplo muitas mulheres militantes buscavam a emancipação sexual outras acha vam que o avanço está na emancipação do sexo Muitas feministas declararamse pela identidade essencial entre os homens e as mulhe res unidos pelo atributo comum da razão outras pela identidade construída sobre os aspectos singulares do corpo feminino por exemplo sua capacidade para engravidar A idéia de um movimen to feminista único progressivo precisa ser finalmente descartada O que permanece lamentavelmente ignorado é a história do machismo e da masculinidade muito tipicamente assum ida como normal e por isso normativa e não problemática Há alguns sinais de que isto está finalmente mudando83 6 O Corpo e o Corpo Político O s historiadores do pensamento político e da literatura investigaram muito a metáfora do corpo político e seus conceitos associados e derivados como Os Dois Corpos do Rei embora com freqüência tenham realizado isso de m odo um tanto impaciente ansiosos para ver essas metáforas há muito obsoletas retiradas do palco por uma linguagem mais filosoficamente rigorosa da política do século dezessete em diante84 W om ens Sexuality in the Nineteenth Century Ibid p 4056 L J Jordanova Natural Facts a Historical Perspective on Science and Sexuality em Nature Culture and Gender ed Caroline M acCorm ack e Marilyn Strathern Cambridge 1980 p 4269 83 V er Brian Easlea Science and Sexual Oppression Londres 1981 Jefftey W eeks Sex Politics and Society Londres 1981 Lesley H all Som ehow Very Distasteful Doctors M en and Sexual Problems Between the W ars Journey of Contemporary History 20 p 55374 1985 idem From Self Preseivation to Love Without Fear Medicai and Lay W riters o f Sex Advice from W illiam Acton to Eustace C hesser Society for the Social History of Medicine Bulletin 39 p 203 1986 84 W Greenleaf Order Empiricism and Politics Oxford 1964 Otto Gierke Political Theories of the Middle Age trad com introdução de FW Maidand Cambridge 1958 Paul Archambault The Analogy ofthe Body in Renaissance Political Literature Bibliothêque dHumanisme et Renaissance 29 p 2163 1967 Em st Kantorowicz The Kings Two Bodies Princeton 1957 GJ Schochet Patriarchalism in Political Thought Oxford 1975 A ESCRITA DA HISTÓRIA 325 O que tem recebido bem menos atenção são as maneiras pelas quais a autoridade política tem realmente tratado o corpo indivi dual O s elevados objetivos retóricos da política os direitos do homem são comumente expressos em termos abstratos intelec tualistas liberdade de expressão liberdade de consciência M as atrás desses estão suposições sobre liberdades e imunidades físicas fundamentais não apenas o habeas corpus em si M as permanece mos incrivelmente ignorantes quanto às circunstâncias e às racio nalizações sob as quais os estados dominaram ou arregimentaram o corpo no recrutamento militar na época da peste85 e na verdade na escravidão Há um enorme campo de ação para os historiadores políticos eos cientistas políticos serem mais sensíveis às realidades do poder produzidas pelo exercício da autoridade do estado sobre os corpos de seus súditos86 7 O Corpo a Civilização e seus Descontentes A História é um processo de civilização inacabado uma luta nos dizem os antropó logos para afirmar a distinção do homem da Natureza M as a escrita da história da civilização concentrouse muito tempo nos artefatos da cultura erudita Há uma necessidade de um tipo diferente de história da aculturação Chegamos nus ao mundo mas logo somos adornados não apenas com roupas mas com a roupagem metafórica dos códigos morais dos tabus das proibições e dos sistemas de valores que unem a disciplina aos desejos a polidez ao policiamento 85 Sobre o policiamento médico ver R Palmer The Church Leprosy and Plague in Medieval and Early M odem Europe em Shiels Church and Healing p 79100 AW Russell ed The Town and State Physician in Europe from the Middle Ages to the EnlightenmentWolfenbüttel 1981 D Armstrong Political Anatomy ofthe Body Medicai Knowledge in Britam in the Twentieth Century Cam bridge 1983 86 Sobre as mulheres e o poder médico ver Roy Porter A Touch o f Danger The Manmidwife as Sexual Predator em G S Rousseau e Roy Porter ed Sexual Underworlds ofthe Enlightenment Manchester 1987 JN Clarke Sexism Feminism and M edicalism A Decade Review o f Literature on Gender and Illness Sociology of Health and Illness 5 p 62821983 IK Zòla Medicine as an Institution o f Social C ontrol Sociological Review 20 p 487504 1972 BB Schnorrcnhcrj Is Child birth any Place for a W om an The Decline o f Midwifery in Eighteenth Century England Studies in EigfvteentK Century Culture 10 p 393408 1981 326 PETER BURKE A s histórias do vestuário da limpeza da alimentação dos cosmé ticos também foram deixadas por muito tempo a cargo de especia listas relativamente desinteressados das questões mais amplas das funções servidas por tais objetos e atividades na transformação dos indivíduos e das sociedades em cultura87 O objetivo deste artigo não foi propor uma nova indústria doméstica dedicada a tecer uma gigantesca tapeçaria da história do corpo Foi produzir uma recordação de como o corpo é uma presença suprimida muito freqüentemente ignorada ou esqueci da em muitos outros ramos mais prestigiosos do saber Um a consciência mais alerta de sua existência minaria as pretensões idealistas duradouras endossadas por aqueles a quem Nietzsche caracterizava como os Desprezadores do C orpo e ajudaria a sua ressurreição 87 Para algum as perspectivas mais am plas sobre a alimentação ver P Pullar Consuming Passions Beingan Historie ínquiry into Certain Englisk Appetites Boston M ass 1970 BS Turner The Governm ent o f the Body Medicai Regimens and the Rationali zationofD iet British Journal of Sociology 33 p 254691982 idem The Discourse o f Diet TKeory Culture and Society 1 p 2332 1982 Sobre a ornam entação do corpo ver R Brain The Decorated Body Londres 1979 H á comentários esclarece dores em John 0 Neill Five Bodies the Human Shape of Modem Society Ithaca 1985 A HISTÓRIA DOS ACONTECIMENTOS E O RENASCIMENTO DA NARRATIVA Peter Burke Narrativa versus estrutura A historiografia como a história parece se repetir com variações1 Muito antes do nosso tempo na época do Iluminismo já se atacava a hipótese de que a história escrita deveria ser uma narrativa dos acontecimentos O s críticos incluíam Voltaire e o teórico social escocês John Millar que escreveu sobre a superfície dos acontecimentos que prende a atenção do historiador com um Desse ponto de vista a chamada Revolução Copérnica liderada na historiografia por Leopold von Ranke no início do século dezenove parece muito mais uma contrarevolução no sentido de que trouxe os acontecimentos de volta ao centro do palco2 Docente de História Cultural da Universidade de Cambridge e membro do Emmanuel College 1 Este artigo originouse de um a conferência e a presente versão deve muito aos comentários de vários ouvintes de Cam bridge a Cam pinas de Tel Ayiv a Tóquio M eus agradecimentos pessoais a Cario Ginzburg Michael Holly Ian Kershaw Dom inick LaCapra e M ark Phillips 2 Tento apoiar este argumento em Ranke The Reactionary Syracuse Scholar 9 p 2530 1988 328 PETER BURKE U m segundo ataque à história dos acontecimentos ocorreu no início do século vinte N a GrãBretanha Lewis Namier e RH Tawney que concordavam em algo mais sugeriram quase ao mesm o tempo que o historiador em vez de narrar os acontecimen tos deveria analisar as estruturas N a França a rejeição do que era pejorativamente chamado de história dos acontecimentos histoi re événementielle em prol da história das estruturas era uma prancha importante na plataforma da chamada escola dos Arma les de Lucien Febvre a Fernand Braudel que da m esm a forma que Millar encaravam os acontecimentos como a superfície do oceano da história significativos apenas por aquilo que podiam revelar das correntes mais profundas3 Se a história popular permanecesse fiel à tradição da narrativa a história acadêmica tornarseia cada vez mais preocupada com os problemas e com as estruturas O filósofo francês Paul Ricoeur certamente tem razão quando fala do eclipse da narrativa histórica em nosso tempo4 Ricoeur prossegue declarando que toda a história escrita incluindo a chamada história estrutural associada a Braudel necessariamente assume algum tipo de forma narrativa De um m odo similar JeanFrançois Lyotard descreveu algumas interpreta ções da história especialmente aquela dos marxistas como gran des narrativas 5 O problema de tais caracterizações pelo menos para mim é que elas diluem o conceito da narrativa até que ela corra o risco de se tornar indistinguível da descrição e da análise Entretando não vou tratar desse assunto aqui preferindo concentrarme na questão mais concreta das diferenças no que poderia ser chamado de o grau de narrativa entre algumas obras contemporâneas de história e outras De alguns anos para cá tem havido sinais de que a narrativa histórica em um sentido bem 3 F Braudel The Mediterranean 2 ed rev trad S Reynolds Londres 19723 prefácio 4 P Ricoeur Time and Narrative trad de K M cLaughlin e D Dellauer 3 v Chicago 19848 l p 138f 5 JF Lyotard La condition post moderne Paris 1979 The PostModern Condition trad de C Bennington e B M acrum i Manchester 1984 A ESCRITA DA HISTÓRIA 329 estrito está realizando outro retomo M esm o alguns historiadores associados aos A nnales estão se movimentando nessa direção Georges Duby por exemplo que publicou um estudo da batalha de Bouvines e Emmanuel Le Roy Ladurie cujo Carnival trata dos acontecimentos que ocorrem na pequena cidade de Romans durante 1579 e 15806 A atitude explícita desses dois historiadores não está muito distante daquela de Braudel Duby e Le Roy Ladurie não focalizam os acontecimentos particulares por si sós mas pelo que revelam sobre a cultura em que ocorreram Do mesmo modo o fato de dedicarem livros inteiros a acontecimentos particulares sugere um a certa distância da posição de Braudel e seja como for Le Roy Ladurie já discutiu alhures a importância do que ele chama de acontecimento criador événement matrice que destrói as estruturas tradicionais e as substitui por novas7 A nova tendência que começou a afetar outras disciplinas especialmente a antropologia social foi discutida pelo historiador britânico Lawrence Stone em um artigo sobre The Revival of Narrative que atraiu muita atenção8 Stone dizia não estar fazendo mais do que tentar mapear as mudanças observadas de maneira histórica em vez de realizar julgamentos de valor A esse respeito algumas obras históricas mais conhecidas que surgiram nos anos 80 confirmaram suas observações Citizens de Sim on Schama por exemplo é um estudo da Revolução Francesa publicado em 1989 que descreve a si mesm o como um retorno à forma das crônicas do século dezenove9 6 G Duby The Legend of Bouvines trad de C Tihanyi Cambridge 1990 E Le Roy Ladurie Carnival trad de M Fenney Londres 1980 7 E Le Roy Ladurie Event and LongTerm in Social History trad de B e S Reynolds em seu Terricory ofthe Historian H assocks 1979 p 11132 8 L Stone The Revival o f Narrative Pasc and Present 85 p 324 1979 cf E H obsbaw m Som e Com m ents Past and Present 85 p 381980 Cf Boon The Anthropological Romance of Bali Cam bridge 1977 e EM Bruner Ethnography as Narrative em The Anthropology of Experience ed V Turner e E Bruner U rbana e Chicago 1986 capitulo 6 9 S Scham a Citizens Nova York 1989 p xv 330 PETER BURKE D o mesrtio modo é difícil não perceber a tristeza de Stone diante do que ele chama de a mudança do modo analítico para o descritivo da escrita da história O título de seu artigo assim como seus argumentos têm sido influentes Ele tem contribuído para transformar a narrativa histórica em um tema de debate10 M ais exatamente a narrativa histórica tornouse o tema de pelo menos dois debates que têm ocorrido independentemente apesar da relevância de um para o outro Vincular os dois é o objetivo principal deste capítulo11 Em primeiro lugar há a conhecida e longa campanha de oposição àqueles que afirmam como Braudel que os historiadores deveriam considerar as estruturas mais seria mente que os acontecimentos e aqueles que continuam a acreditar que a função do historiador é contar um a história Nesta campa nha ambos os lados estão agora entrincheirados em suas posições mas cada um deles tem feito algumas observações importantes à custa do outro12 De um lado os historiadores estruturais mostraram que a narrativa tradicional passa por cima de aspectos importantes do passado que ela simplesmente é incapaz de conciliar desde a estrutura econômica e social até à experiência e os m odos de pensar das pessoas com uns13 Em outras palavras a narrativa não é mais inocente na historiografia do que o é na ficção N o caso de uma narrativa de acontecimentos políticos é difícil evitar enfatizar os atos e as decisões dos líderes que proporcionam uma linha clara à história à custa dos fatores que escaparam ao seu controle N o caso das entidades coletivas a Alemanha a Igreja o Partido Conservador o Povo etc o historiador narrativo é forçado a 10 Cf B Bailyn The Challenge o f M odem Historiography American Historical Revieiv 87 p 124 1982 11 Cf Ricoeur M Phillips O n Historiography and Narrative University of Toronto Quarterly 53 p 1496519834 e H Kellner Language and Historical Representation M adison 1989 esp capítulo 12 12 Para um a discussão de pontos de vista diferentes ver Theorie uncl Erzühlung in der Geschicfite ed J Kocka e T Nipperdey M unique 1979 13 A última questão está bem observada em E Auerbach Mimesis trad W R Trask Princeton 1953 capítulos 2 e 3 discutindo Tacitus e Am m ianus Marcellinus A ESCRITA DA HISTÓRIA 331 escolher entre omitilos completamente ou personificálos e eu concordaria com Huizinga em que a personificação é uma figura de retórica que os historiadores deveriam tentar evitar14 Ela obscurece as distinções entre os líderes e os seguidores além de encorajar os leitores sem grande imaginação a suporem o consenso de grupos que estavam freqüentemente em conflito N o caso da história militar em particular John Keegan obser vou que a narrativa tradicional da batalha está levando a conclusões erradas com seu alto foco sobre a liderança e sua redução dos soldados a peões e necessita ser abandonada15 A dificuldade de se fazer isso pode ser ilustrada pelo caso do conhecido estudo de Cornelius Ryan sobre o DiaD16 Ryan pôsse a escrever sobre a guerra do soldado em vez daquela do general Sua história é uma extensão de seu trabalho como correspondente de guerra suas fontes são sobretudo orais Seu livro transmite muito bem o sentimento da batalha de ambos os lados E vivo e dramático na verdade como um drama clássico é organizado em torno de três unidades de lugar a Normandia de tempo 6 de junho de 1944 e de ação Por outro lado o livro é fragmentado em discretos episódios A s experiências dos diferentes participantes não têm coerência A única maneira de tornálas coerentes parece ser impor um esquem a provindo de cima e assim retomar à guerra dos generais de que o autor estava tentando escapar O livro de Ryan ilustra o problema mais claramente que a maioria mas o problema não é apenas dele Esse tipo de tendência pode ser inerente à organização da narrativa Por outro lado os defensores da narrativa observaram que a análise das estruturas é estática e assim em certo sentido nãohis tórica A o se tomar o mais famoso exemplo de história estrutural de nosso tempo embora o Mediterranean 1949 de Braudel 14 J Huizinga Two W restlers with the Angel em seu Men and Idfias trad de JS H olm es e H van Marle Londres 1960 Contrastar a defesa da personificação em Kellner esp capítulo 5 sobre Michelet 15 J Keegan The Face of Battle 1976 Harm ondsworth 1978 ed p 61f 16 C Ryan The Longest Day Londres 1959 332 PETER BURKE encontre espaço tanto para os acontecimentos quanto para as estruturas freqüentemente tem sido observado que o autor pouco faz para sugerir que aquilo que une poderia estar entre as três escalas de tempo que ele utiliza o longo o médio e o curto prazo Seja como for o M editerranean de Braudel não é um exemplo extremo de história estrutural17 Apesar de suas observações no prefácio sobre a superficialidade dos acontecimentos ele prosse guiu dedicandolhes várias centenas de páginas na terceira parte de seu estudo O s seguidores de Braudel entretanto têmse inclinado a reduzir seu projeto e não apenas no sentido geográfico enquanto o imitam O atual formato clássico de um estudo regional à maneira dos Annales inclui uma divisão em duas partes estrutura e conjun tura em outras palavras tendências gerais com pouco espaço para os acontecimentos no estrito senso O s historiadores desses dois campos estrutural e narrativo diferem não apenas na escolha do que consideram significativo no passado mas também em seus m odos preferidos de explicação histórica O s historiadores da narrativa tradicional tendem e isto não é exatamente contingente a exprimir suas explicações em termos de caráter e intenção individuais explicações do tipo as ordens chegaram tarde de Madri porque Felipe II não conseguia decidir o que fazer em outras palavras como diriam os filósofos a janela quebrou porque Brown atirou nela uma pedra O s historiadores estruturais por outro lado preferem explicações que tomam a forma a janela quebrou porque o vidro era frágil ou citando o famoso exemplo de Braudel as ordens chegaram tarde de M adri porque os navios do século dezesseis demoravam várias semanas para cruzar o Mediterrâneo C om o observa Stone o chamado renascimento da narrativa tem muito a ver com uma crescente desconfiança do segundo m odo de explicação histórica freqüentemente criticado como reducionista e determinista Mais uma vez o recente livro de Schama oferece um bom exemplo da 17 Ricoeur 1983 vai adiante para afirmar que é um a narrativa histórica com um quase enredo p 298 ff A ESCRITA DA HISTÓRIA 333 tendência O autor explica que escolheu para apresentar estes argumentos na forma de um a narrativa tendo em vista que a Revolução Francesa foi muito mais o produto da atuação humana do que de condicionamento estrutural18 Esta prolongada guetra de trincheiras entre os historiadores narrativos e os estruturais foi longe demais Alguma idéia do preço do conflito a perda do entendimento histórico potencial que ele envolve pode ser sentida ao se compararem dois estudos da índia do século dezenove que foram publicados em 1978 e focalizam o que se costumava chamar de Motim Indiano de 1857 agora conhecido como a Grande Rebelião19 Christopher Hibbert produ ziu uma narrativa tradicional uma história dividida em partes em grande estilo com capítulos intitulados M otim em Meerut O Motim se Espalha O Cerco de Lucknow O Ataque e assim por diante Seu livro é colorido na verdade prende a atenção mas é também superficial no sentido de não dar ao leitor muita idéia do porquê os acontecimentos ocorreram talvez por ser escrito do ponto de vista dos britânicos que foram tomados de surpresa Por outro lado Eric Stokes apresenta uma cuidadosa análise da geogra fia e da sociologia da revolta suas variações regionais e seus contextos locais mas se exime de uma síntese final Lendo os dois livros um imediatamente após o outro podese ficar assom brado como eu fiquei pelo fantasma de um potencial terceiro livro que pudesse integrar a narrativa e a análise e relacionar mais intima mente os acontecimentos locais às mudanças estruturais na socie dade Chegou o m om ento de se investigar a possibilidade de encon trar um m odo de escapar a este confronto entre narradores e analistas U m bom começo poderia ser criticar ambos os lados por uma suposição falsa do que eles têm em comum a suposição de que distinguir os acontecimentos das estruturas seja uma questão fácil Tendem os a utilizar o termo acontecimento de uma 18 Scham a 1989 p xv 19 C Hibbert The Great Mutiny Londres 1978 E Stokes The Peasant and the Raj Cam bridge 1978 334 PETER BURKE maneira muito vaga referindonos não somente a eventos que duraram poucas horas como a batalha de Waterloo mas também a ocorrências como a Revolução Francesa um processo desenrolado durante vários anos Pode ser útil empregar os termos acontecimen to e estrutura para se referir aos dois extremos de todo um espectro de possibilidades mas não deveríamos esquecer a existência do centro do espectro As razões para a chegada tardia das ordens de Madri não necessitam estar limitadas à estrutura das comunicações no Mediterrâneo ou ao fato de Felipe II não conseguir se decidir em uma determinada ocasião O rei pode ter sido cronicamente indeciso e a estrutura do governo por conselho poderia ter retardado mais ainda o processo de tomada de decisão Devido a essa imprecisão de definição deveríamos fazer o que M ark Phillips sugeriu e pensar nas variedades de m odos de narrativa e de nãonarrativa existentes ao longo de uma série contínua 20 Tam bém não deveríamos nos esquecer de questionar a relação entre acontecimentos e estruturas Trabalhando nesta área central pode ser possível ir além das duas posições opostas para alcançar um a síntese Narrativa tradicional versus narrativa moderna V isando a esta síntese as opiniões expressas no segundo debate podem proporcionar um a contribuição útil Este segundo debate teve início nos Estados U nidos nos anos 60 e ainda não foi levado tão a sério quanto merece pelos historiadores de outras partes do mundo talvez por parecer meramente literário N ão está preocupado com a questão de escrever ou não escrever a narrativa mas com o problema do tipo de narrativa a ser escrita O historiador de cinema Siegfried Kracauer parece ter sido o primeiro a sugerir que a ficção moderna mais especialmente a decomposição da continuidade temporal em Joyce Proust e 20 Phillips O n Historiography 19834 p 157 A ESCRITA DA HISTÓRIA 335 Virgínia W oolf oferece um desafio e um a oportunidade aos narradores históricos21 U m exemplo ainda mais nítido dessa decomposição incidentalmente é Eyeless in Gaza 1936 de Aldous Huxley novela composta de curtos verbetes datados para o período de 190234 em uma ordem que embora lógica é determinadamente nãocronológica Hayden White atraiu mais atenção que Kracauer quando acusou a profissão histórica de negligenciar as reflexões literárias de sua própria época incluindo um sentido de descontinuidade entre os acontecimentos no mundo exterior e sua representação sob a forma narrativa e de continuar a viver no século dezenove a época áurea do realismo literário22 Em uma tônica similar Lionel G ossm an queixouse de que não é fácil para nós hoje em dia perceber quem é como escritor o Joyce ou o Kafka da historiografia m oderna 23 Talvez M esm o assim o historiador G olo M ann parece ter aprendido algo da prática narrativa de seu pai novelista N ão é inteiramente fantasioso compararse a inter pretação de G olo M ann dos pensamentos do idoso W allenstein com o célebre capítulo de Lotte in Weimar que evoca o fluxo de consciência de Goethe aparentemente um a tentativa de superar Joyce Em seu estudo que ele chama de um a novela excessiva mente verdadeira G olo M ann segue as regras da evidência histórica e deixa claro que está apresentando uma reconstrução hipotética A o contrário da maioria dos romancistas ele não pretende ler a mente de seu herói apenas suas cartas24 21 S Kracauer H istory the Last Tfiings beore the Last N ova York 1969 p 178f 22 H V W hite The Burden o f History History and Theory 5 1966 republicado em seu Tropics of Discourse Baltimore 1983 p 2750 Para um a defesa filosófica da continuidade entre as narrativas e os acontecimentos que eles relatam ver D Carr Narrative and the Real W orld an Argum ent for Continuity History and Theory 25 p 117311986 23 L G ossm an History and Literature em The Writing of History ed RH Canary e H Kozicki M adison 1978 p 339 24 G M ann Wallenstein Frankfurt 1971 p 984f 993ff T M ann Lotte in Weimar 1939 capítulo 7 Cf G M ann Pládoyer fürdie historische Erzàhlung em Kocka e Nipperdey 1979 p 4056 especialmente sua declaração de que a narrativa histórica não exclui o conhecimento da teoria 336 PETER BURKE Em contraste com W hite e Gossm an não estou afirmando que os historiadores sejam obrigados a se engajar em experiências literárias simplesmente por viverem no século vinte ou a imitar determinados escritores devido suas técnicas serem revolucioná rias O objetivo de buscarmos uma nova forma literária é certamen te a consciência de que as velhas formas são inadequadas aos nossos propósitos Algumas inovações são provavelmente mais bem evitadas pelos historiadores Neste grupo eu incluiria a invenção do fluxo de consciência por mais útil que pudesse ser pelas mesmas razões que levaram os historiadores a rejeitarem o famoso expediente clássico do discurso inventado Outras experiências no entanto inspiradas por uma variedade bem maior de escritores modernos do que já tem sido mencionado podem apresentar soluções para problemas com que os historiadores há muito vêm lutando três problemas em particular Em primeiro lugar poderia ser possível tom ar as guerras civis e outros conflitos mais inteligíveis seguindose o modelo dos romancistas que contam suas histórias partindo de m ais de um ponto de vista E estranho que esse expediente tão eficaz nas mãos de Huxley W illiam Faulkner em The Sound and the Fury 1931 e Lawrence Durrel em The Alexandria Quartet 195760 sem mencionar as novelas epistolares do século dezoito não tenha sido levado muito a sério pelos historiadores embora pudesse ser útil modificálo para lidar com pontos de vista coletivos e também individuais Tal expediente permitiria uma interpretação do con flito em termos de um conflito de interpretações Para permitir que as vozes variadas e opostas da morte sejam novamente ouvidas o historiador necessita como o romancista praticar a heteroglossia ver anteriormente p 1525 25 Cf G W ilson Plots and Motives in apan s M iji Restoration Comparatiue Studies in Society and History 25 p 40727 1983 que faz uso da terminologia de Hayden White m as está essencialmente vinculada à multiplicidade dos pontos de vista dos atores N H am pson The Life and Opinions ofM aximilian Robespiene Londres 1976 apresenta um diálogo entre diversas interpretações m odernas da Revolução Francesa A ESCRITA DA HISTÓRIA 337 Bastante curiosamente quando este ensaio estava prestes a ir para o prelo foi publicado um trabalho histórico desse tipo Richard Price apresenta seu estudo do Suriname do séculodezoito na forma de um a narrativa com quatro vozes simbolizadas por quatro padrões tipográficos aquela dos escravos negros transmi tida por seus descendentes os Saramakas a dos administradores holandeses a dos missionários moravianos e finalmente aquela do próprio historiador26 O objetivo do exercício é precisamente mostrar e também estabelecer as diferenças de pontos de vista entre o passado e o presente a Igreja e o Estado o negro e o branco os desentendimentos e a luta para impor definições particulares da situaçãq Será difícil imitar este towr de force de reconstrução histórica mas Price merece inspirar toda uma estante de estudos Em segundo lugar cada vez mais historiadores estão começan do a perceber que seu trabalho não reproduz o que realmente aconteceu tanto quanto o representa de um ponto de vista particular Para comunicar essa consciência aos leitores de história as formas tradicionais de narrativa são inadequadas O s narradores históricos necessitam encontrar um m odo de se tornarem visíveis em sua narrativa não de autoindulgência mas advertindo o leitor de que eles não são oniscientes ou imparciais e que outras interpretações além das suas são possíveis27 Em uma peça notável de autocrítica G olo M ann declarou que um historiador necessita tentar fazer duas coisas simultaneamente nadar com a corrente dos acontecimentos e analisar esses acontecimentos da posição de um observador posterior mais bem informado combinando os dois métodos para produzir uma aparência de homogeneidade sem que a narrativa fique de lado28 26 R Price A labis World Baltimore 1990 27 O problem a já foi discutido por Thierry e Michelet Ver G Pomata Overt and Covert Narrators in NineteenthCentury Historiography History Workshop 27 p 1171989 28 Prefácio para a tradução inglesa de seu Wallenstein de autoria de C Kessler Londres 1976 M ann confessa que a primeira abordagem prevalece em seu próprio livro O utro bom exemplo do que M ann defencle pode ser encontrado em T H Breen Imagining the Past East Hampton Histories Reading M ass 1989 338 PETER BURKE Aqui mais uma vez o novo livro de Price apresenta uma possível solução para o problema rotulando sua própria contribuição como um a voz entre outras Soluções alternativas também são dignas de consideração O s teóricos literários têm ultimamente discutido o expediente ficcional do narrador nada confiável de primeira pessoa 29 Tal expediente pode ser de algum uso também para os historiadores contanto que a nãoconfiabilidade seja explicitada M ais uma vez Hayden White sugeriu que as narrativas históricas sigam quatro planos básicos comédia tragédia sátira e romance Ranke por exemplo escolheu consciente ou inconscientemente escrever história com enredos de comédia em outras palavras seguindo um movimento ternário a partir de um a condição de paz aparente através da revelação do conflito até a resolução do conflito no estabelecimento de uma ordem social genuinamente pacífica 30 Se o m odo como a narrativa termina ajuda a determinar a interpretação do leitor então pode ser valioso seguir o exemplo de alguns romancistas como John Fowles e proporcionar finais alternativos U m a história narrativa da Primeira Guerra Mundial por exemplo vai nos dar um a impressão se a narrativa terminar em Versailles em 1919 outra se a narrativa se estender até 1933 ou 1939 A ssim sendo fechos alternativos tornam a obra mais aberta no sentido de encorajar os leitores a chegarem às suas próprias conclusões31 Em terceiro lugar e este é o tema principal deste capítulo um novo tipo de narrativa poderia melhor que as antigas fazer frente às demandas dos historiadores estruturais ao mesm o tempo em que apresenta um sentido melhor do fluxo do tempo do que em geral o fazem suas análises 29 W Riggan Pícaros Madmen Naifs and Clowns the Unreliable FirtsPerson Narrator N orm an 1981 30 H W hite Metahistory Baltimore 1973 p 176f 31 Cf M Torgovnick Closure in the Novel Princeton 1981 e U Eco The Poetics of the O pen W ork em seu The Role of the Reader Londres 1981 capítulo 1 U m movimento na direção de um a narrativa histórica m ais aberta é prevista por Phillips O n Historiography p 153 A ESCRITA DA HISTÓRIA 339 Densificando a narrativa Há alguns anos atrás o antropólogo Clifford Geertz inventou a expressão descrição densa para uma técnica que interpreta uma cultura alienígena através da descrição precisa e concreta de práticas ou acontecimentos particulares em seu caso a descrição das brigas de galo em Bali cf Giovanni Levi p 13432 Assim como a descrição a narrativa poderia ser caracterizada como mais ou menos fluida ou densa N o final fluido do espectro temos a observação crua em um volume dos anais como a Crônica AngloSaxônica de que Neste ano Ceolwulf foi destituído de seu reinado N o outro extremo encontramos narrativas raríssimas até agora que foram deliberadamente construídas para suportar um volume pesado de interpretações O problema que eu gostaria de discutir aqui é aquele de se fazer uma narrativa densa o bastante para lidar não apenas com a seqüência dos acontecimentos e das intenções conscientes dos atores nesses acontecimentos mas também com as estruturas instituições m odos de pensar etc e se elas atuam como um freio ou um acelerador para os acontecimentos Com o seria uma narrativa desse tipo Estas questões embora vinculadas à retórica não são em si retóricas É possível discutilas tendose como base textos e narra tivas produzidos por romancistas ou por historiadores N ão é difícil encontrar romances históricos que abordem esses problemas Poderíamos começar com War and Peace pois podese dizer que Tolstoi compartilhou a opinião de Braudel sobre a futilidade dos acontecimentos mas de fato muitos romances famosos estão vinculados a importantes mudanças estruturais em um a determi nada sociedade encarandoas em termos do seu impacto nas vidas de alguns indivíduos U m exemplo de destaque externo à cultura 32 C Geertz Thick Description Towards an Interpretative Theory of Culture e Deep Play Notes on the Balinese Cockfight em The Interpretation ofCultures Nova York 1973 340 PETER BURKE ocidental é Beore the Dawn 19326 de Shimakazi Toson33 A palavra despertar no título down é a modernização industrialização ocidentalização do Japão e o livro lida com os anos imediatamente anteriores e subseqüentes à restauração impe rial de 1868 quando não estava de m odo algum claro que caminho o país iria seguir O romance mostra em brilhantes detalhes como O s efeitos da abertura do Japão para o m undo estavam se fazendo sentir nas vidas de cada indivíduo34 Para fazer isso o autor escolheu um indivíduo Aoyama Hanzo que é o vigia de um posto dos correios em uma aldeia da principal rodovia entre Quioto e Tóquio Seu trabalho mantém Hanzo em contato com os aconte cimentos mas ele não se limita a observálos E membro do movimento de Instrução Nacional empenhado em uma solução autenticamente japonesa para os problemas do Japão O enredo do romance é em grande extensão narrativa do impacto da mudança social em um indivíduo e em sua família ponto enfati zado pela interrupção de Toson de sua narrativa de tempos em tempos para relatar os principais acontecimentos da história japonesa de 1853 a 1886 E provável que os historiadores possam aprender algo a partir das técnicas narrativas de romancistas como Tolstoi e Shimazaki Toson mas não o bastante para resolver todos os seus problemas literários Pois os historiadores não são livres para inventar seus personagens ou mesmo as palavras e os pensamentos de seus personagens além de ser improvável que sejam capazes de con densar os problemas de uma época na narrativa sobre um a família como freqüentemente o fizeram os romancistas Poderseia esperar que o chamado romance de nãoficção pudesse ter tido algo a oferecer aos historiadores desde In C old Blood 1965 de Trum an Capote até Schindlers Ark 1982 de Thom as Keneally que declaram usar a textura e os expedientes de um romance para contar um a história verdadeira Entretanto esses autores não 33 Shimazaki Toson Beore the Dawn H onolulu 1987 34 Ibid p 621 A ESCRITA DA HISTÓRIA 341 enfrentaram o problema das estruturas Parece que os historiadores teriam de desenvolver suas próprias técnicas ficcionais para suas obras factuais35 Felizmente os autores de algumas obras recentes de história também têm refletido sobre problemas como estes e seus estudos esboçam um a resposta ou mais exatamente várias respostas das quais pode ser útil destacaremse quatro U m dos modelos está bem a cam inho de se transformar em moda enquanto os outros três são representados por pouco mais de um livro cada um A primeira resposta poderia ser descrita como micronarrati va ao longo das linhas do novo termo microhistória E a narração de uma história sobre as pessoas comuns no local em que estão instaladas Em um certo sentido essa técnica é lugarcomum entre os romancistas históricos e isso desde o tempo de Scott e Manzoni cujo Betrothed 1827 foi atacado na época da forma que a história vista de baixo e a microhistória foram atacadas mais recentemente por escolher como seu tema a crônica miserável de um a aldeia obscura 36 Foi apenas muito recentemente no entanto que os historia dores adotaram a micronarrativa Exemplos recentes bemconhe cidos incluem a narrativa de Cario Cipolla sobre o impacto da peste de 1630 na cidade de Prato na Toscana e a história de Natalie Davis de Martin Guerre um filho pródigo do século dezesseis que retornou a sua casa no sul da França para descobrir que seu lugar na fazenda e também na cama de sua esposa havia sido tom ado por um intruso que afirmava ser o próprio M artin37 35 W R Siebenschuh Fictional Techniques and Factional Works 1983 discute como isso foi feito no passado com referência especial à vida de Johnson de autoria de Boswell C f RW Rader Literary Form in Factual Narrative the Example o f Boswells Johnson em Essays in EighteenthCentury Biography eçl PB Daghlian Bloom ington 1968 p 342 36 Citado em Letteratura Italiana ed A A sor Rosa 5 Turim 1986 p 224 37 C Cipolla Cristoano and the Plague Londres 1973 NZ Davis The Return of Martin Guerre Cam bridge M ass 1973 342 PETER BURKE A redução na escala não densifica em si a narrativa A questão é que os historiadores sociais voltaramse para a narrativa como um meio de esclarecer as estruturas as atitudes em relação à peste e às instituições para combatêla no caso de Cario Cipolla a estrutura da família camponesa do sul da França no caso de Natalie Davis e assim por diante Mais exatamente o que Natalie Davis queria fazer era descrever não tanto as próprias estruturas mas as esperanças e os sentimentos dos camponeses os m odos como sentiam a relação entre marido e mulher pais e filhos os m odos como experimentavam as restrições e as possibilidades em suas vidas38 O livro pode ser lido simplesmente como um a boa história e uma evocação viva de alguns indivíduos do passado mas a autora faz deliberadas e repetidas referências aos valores da sociedade Discutindo por exemplo porque a esposa de Martin Bertrande reconheceu o intruso como seu marido Davis comenta sobre a posição das mulheres na sociedade rural francesa e sobre seu senso de honra reconstruindo as restrições no interior das quais elas maquinavam Por outro lado os comentários são deliberadamente discretos C om o explica a autora Eu escolhi previamente meus argumen tos tanto pela ordenação da narrativa escolha de detalhes voz e metáfora literária quanto pela análise temática O objetivo era aquele de implantar esta história nos valores e nos hábitos da vida e das normas de uma aldeia francesa no século dezesseis e utilizálos para ajudar a compreender os elementos centrais na história e usar a história para comentálos de volta 39 A história de Martin pode ser encarada como um drama social no sentido em que os antropólogos utilizam o termo um acontecimento que revela conflitos latentes e assim esclarece as estruturas sociais40 A micronarrativa parece ter vindo para ficar cada vez mais historiadores estão se voltando para essa forma M esm o assim 38 Davis Martin Guerre p 1 39 NZ Davis O n the Lame American Historical Revieiv 93 p 575573 1988 40 Sobre este conceito V Turner Dramas Fields and Metaphors Ithaca 1974 capí tulo 1 A ESCRITA DA HISTÓRIA 343 seria um erro encarála como uma panacéia Ela não apresenta uma solução para todos os problemas delineados anteriormente e gera problemas próprios especialmente aquele de ligar a microhistória à macrohistória os detalhes locais às tendências gerais E por enfrentar diretamente esse problema importante que considero Gate of Heavenly Peace de Spence um livro exemplar Jonathan Spence é um historiador da China que há muito tempo tem se interessado pelas experiências sob forma literária U m de seus primeiros livros foi uma biografia do imperador KangHsi ou antes um retrato do imperador na verdade um tipo de autoretrato uma tentativa de explorar a mente de Kang Hsi fazendo uma espécie de mosaico ou montagem de suas observações pessoais encontradas dispersas entre os documentos oficiais dispondoas sob títulos como filhos governando ou envelhecendo O efeito não é diferente de umas Memoirs of Hadrian chinesas E difícil pensar em um estudo que melhor mereça a descrição de história vista de cima do que o autoretrato de um imperador mas Spence seguiuo com um ensaio comovente em história vista de baixo The Death of Woman Wang é uma peça de microhistória ao estilo de Cipolla ou Davis com quatro histórias contadas ou imagens descritas para revelar as condições na província de Shantung nos anos conturbados do final do século dezessete M ais recentemente em The Memory Palace of Matteo Ricci Spence organizou seu relato do famoso missionário jesuíta na China em torno de várias imagens visuais à custa de seqüência cronológica produzindo um efeito reminiscente do Eyeless in Gaza de Huxley The Gate of Heavenly Peace por outro lado parece mais uma peça de história convencional um relato das origens e do desen volvimento da Revolução Chinesa de 1895 a 198041 Mais uma vez contudo se afirma o interesse do autor pela biografia e pelos instantâneos históricos e seu livro é construído em torno de um 41 J Spence Emperor of China Londres 1974 The Death of Woman Wang Londres 1978 The Gate of Heavenly Peace Londres 1982 The Memory Palace of Matteo Ricci Londres 1985 344 PETER BURKE pequeno ijúmero de indivíduos especialmente o estudioso Kang Youwei o soldado e acadêmico Shen Congwen e os escritores Lu Xun e Ding Ling Esses indivíduos não desempenham um papel importante nos acontecimentos da revolução Desse ponto de vista podem ser comparados com o que o crítico húngaro Georg Lukács chamou de herói medíocre nas novelas de Sir Walter Scott um herói cuja vulgaridade permite que o leitor enxergue mais clara mente a vida e os conflitos sociais da época42 N o caso de Spence os protagonistas foram selecionados porque como sugere o autor eles descreveram suas esperanças e tristezas com particular sensi bilidade e também porque as experiências pessoais ajudam a definir a natureza dos tempos através dos quais eles viveram São encarados mais como passivos que como ativos N a verdade o autor fala das intrusões dos acontecimentos externos sobre seus personagens43 Sua preocupação com indivíduos diferentes implica um interesse em pontos de vista múltiplos ou uma multivocalidade mas em contraste com o livro de Price discutido anteriormente esta multivocalidade permanece abaixo da superfície da história Apresentar a história da China dessa maneira suscita proble mas A passagem de um indivíduo para outro corre ò risco de confundir o leitor assim como também as mudanças para trás e para diante entre o que poderia ser chamado de tempo público o tempo dos acontecimentos como a Grande Marcha ou a Revo lução de 1949 e o tempo privado dos principais personagens Por outro lado Spence comunica de um m odo vivo e comovente a experiência de vida ou na verdade de deixar de viver durante esses anos turbulentos Entre suas passagens mais memoráveis está seu relato da opinião de uma criança sobre a revolução de 1919 como é lembrada por Shen Congwen a reação de Lu Xun ao massacre dos estudantes em uma passeata em Beijing em 1926 e os ataques oficiais sobre Ding Ling em 1957 em seguida à supressão do Movimento das Cem Flores 42 G Lukács The Historical Novel trad de H e S Mitchell Londres 1962 p 30f 43 Spence 1982 p xiii A ESCRITA DA HISTÓRIA 345 Pode haver outras maneiras de se relacionar mais intimamente a estrutura aos acontecimentos do que em geral fazem os historia dores U m método possível é escrever a história de frente para trás como fez BH Sumner em sua Survey ofRussian History organizada por tópicos ou NormanJDavies em sua história recente da Polônia Heart of Europe 1984 narrativa que focaliza o que o autor chama de o passado na presentePolônia44 Com eça com O Legado da Humilhação a Polônia a partir da Segunda Guerra M undial e movese para trás através de O Legado da Derrota O Legado do Desencanto 191439 O Legado do Domínio Espiritual 17951918 e assim por diante Em cada ocasião o autor sugere que é impossível compreender os acontecimentos narrados em um capítulo sem conhecer o que o precedeu Esta forma de organização tem suas dificuldades mais obvia mente o problema de que embora os capítulos sejam dispostos em ordem inversa cada capítulo tem de ser lido para diante A grande vantagem da experiência por outro lado é permitir ou mesmo forçar o leitor a sentir a pressão do passado sobre os indivíduos e os grupos a pressão das estruturas ou dos acontecimentos que congelaram ou como diria Ricoeur se sedimentaram em estru turas Davies não explora esta vantagem tanto quanto poderia N ão faz qualquer esforço sério para relacionar cada capítulo com aquele que vem depois E difícil imaginar sua abordagem de andar para trás tornandose adaptável ao estilo da microhistória M esm o assim esta é uma forma de narrativa digna de ser seria mente considerada U m quarto tipo de análise da relação entre estruturas e acontecimentos pode ser encontrado na obra de um antropólogo social americano embora ela vá completar o ciclo que nos trará de volta aos Annales O antropólogo Marshall Sahlins que trabalha no Havaí e nas Ilhas Fuji é extremamente interessado no pensa mento moderno francês de Saussure a Braudel de Vourdieu a LéviStrauss mas considera mais seriamente os acontecimentos 44 N Davies Heart of Europe a Short History of Poland Oxford 1984 Jfl NQJ do que qualquer um desses pensadores45 Em seus estudos dos encontros entre as culturas no Pacífico Sahlins faz duas observa ções diferentes mas complementares Em primeiro lugar sugere que os acontecimentos especial mente a chegada de C ook no Havaí em 1778 portam traços culturais distintos que são regulados pela cultura nò sentido de que os conceitos e as categorias de uma cultura particular determinam os modos pelos quais seus membros percebem e interpretam seja o que for que aconteça em sua época O s havaia nos por exemplo perceberam o Capitão C ook como uma mani festação de seu deus Lono porque ele era obviamente poderoso e porque chegou na época do ano associada aos aparecimentos do deus O acontecimento pode por isso ser estudado como sugeriu Braudel como um a espécie de papel heliográfico que revela as estruturas da cultura Entretanto Sahlins também declara ao contrário de Braudel que há um relacionamento dialético entre os acontecimentos e as estruturas As categorias são postas em perigo cada vez que são utilizadas para interpretar o m undo em mutação N o processo de incorporação dos acontecimentos a cultura é reordenada O fim do sistema dos tabus por exemplo foi uma das conseqüências estruturais do contato com os britânicos Assim também o aumen to do comércio intercontinental É verdade em mais de um sentido que C ook não deixou o Havaí como o havia encontrado Sahlins contou um a história com uma moral ou talvez com duas morais A moral para os estruturalistas é aquela em que eles deveriam reconhecer o poder dos acontecimentos seu lugar no processo da estruturação O s defensores da narrativa por outro lado são encorajados a examinar a relação entre os acontecimentos e a cultura em que eles ocorrem Sahlins foi além da famosa justapo sição dos acontecimentos e das estruturas de Braudel N a verdade 346 PETER BURKE 45 M Sahlins Historical Metaphors and Mythical Realities A nn Arbor 1981 e lslands of History Chicago 1985 Cf P Burke Les iles anthropologiques et le territoire de lhistorien em Philosophie et histoire ed C Descam ps Paris 1987 p 4966 A ESCRITA DA HISTÓRIA 347 ele virtualmente resolveu ou dissolveu a oposição binária entre essas duas categorias Resum indo tenho tentado argumentar que historiadores como Tawney e Namier Febvre e Braudel foram justificados em sua rebelião contra uma forma tradicional da narrativa histórica que era mal adaptada à história estrutural que eles consideravam importante A escrita da história foi imensamente enriquecida pela expansão de seu tema e também pelo ideal da história total Entretanto muitos estudiosos atualmente consideram que a escrita da história também tem sido empobrecida pelo abando no da narrativa estando em andamento um a busca de novas formas de narrativa que serão adequadas às novas histórias que os historiadores gostariam de contar Estas novas formas incluem a micronarrativa a narrativa de frente para trás e as histórias que se movimentam para frente e para trás entre os m undos público e privado ou apresentam os mesm os acontecimentos a partir de pontos de vista múltiplos Se os historiadores estão procurando modelos de narrativas que justaponham as estruturas da vida comum pelos acontecimen tos extraordinários e a visão de baixo pela visão de cima podem muito bem ser aconselhados a voltar à ficção do século vinte incluindo o cinema os filmes de Kurosawa por exemplo ou de Pontecorvo ou de Jancsó Pode ser importante que uma das discussões mais interessantes da narrativa histórica seja a obra de um historiador do cinema a obra de Kracauer já citada O expediente de pontos de vista múltiplos é central ao Rashomon de Kurosawa46 Está implícita em The Red and the White de Jancsó um a narrativa da guerra civil russa em que os dois lados se revezam para capturar a mesma aldeia Quanto a Pontecorvo poderia ser dito que ele transformou o próprio processo histórico em si no tema de seus filmes em vez de simplesmente contar uma história sobre indivíduos em trajes 46 A história original de Akutagawa não adotava este expediente 348 PETER BURKE históricos47 É interessante observar que Jonatham Spence usa a linguagem de montagem e que The Return of Martin Guerre apareceu mais ou menos na mesma época como uma história e como um filme depois de Natalie Davis e Daniel Vigne terem trabalhado juntos no tema48 Visões retrospectivas cortes e a alternância entre cena e história essas são técnicas cinemáticas ou na verdade literárias que podem ser utilizadas de uma maneira superficial antes para ofuscar do que para iluminar mas podem também ajudar os historiadores em sua difícil tarefa de revelar o relacionamento entre os acontecimentos e as estruturas e apresen tar pontos de vista múltiplos Desenvolvimentos desse tipo se continuarem podem reivindicar ser vistos não apenas como mero renascimento da narrativa como denominou Stone mas como um a forma de regeneração 47 G Pontecorvo La battaglia di Algeri 1966 Queimada 1969 48 NZ Davis JC Carrière D Vigne Le retour de Martin Guerre Paris 1982 ÍNDICE REMISSIVO Acton Lord historiador britânico 15 A H A American Historical Association 70 72 Alexander W illiam historiador britânico 19 alfabetização 169170 Alltagsgeschichte 23 Alpers Svedana historiadora de arte ame ricana 260 am nésia estrutural 178 Annales revista histórica francesa 9 11 1 6 1 7 1 8 5 1 6 1 ss 1 02110 ss 117 180 328 329 antropologia 52 9 3 1 4 1 1 4 4 1 9 9 293 322 328 Ariès Philippe historiador francês 1116 arqueologia 2 8 1 5 8 arquitetura 241 Arrow Kenneth cientista político america no 283 autenticidade 244252 Bakhtin Mikhail teórico literário russo 15 293 Barker Francis 295297 Barrell John historiador literário britâni co 258260 Barth Fredrik antropólogo norueguês 137 Baxandall Michael historiador de arte britânico 260 262 263 behaviourismo 277279 Belting H ans historiador de arte alemão 261 bibliotecas 202204 Bloch Marc historiador francês 17 113 Bourdieu Pierre sociólogo francês 34 Braudel Fernand historiador francês 12 1 4 1 5 1 7 2 0 2 3 2 4 3 1 3 7 6 1 1 0 5 11 2 1 1 7 3 2 8 3 3 2 3 3 9 345 ss Brecht Bertold escritor alemão 40 Brunschwig Henri historiador francês 1 1 1 1 1 2 1 1 3 1 2 1 1 2 2 1 2 3 bruxaria 52 Burckhardt Jacob historiador suíço 18 Burke Peter colaborador 7 17 26 43 5 2 1 7 6 225 241 Cambridge Moáem Histor 15 Cannadine David historiador britânico 5 5 5 6 1 8 0 canonicidade 252 258 Capote Trum an escritor americano 340 C air EH historiador britânico 61 350 PETER BURKE Certeau Michel de sociólogo francês 23 78 79 Chartier Roger historiador francês 35 230 C ipolla Cario historiador italiano 341 classes subalternas 21 Clausewitz Karl von teórico militar ale mão 10 diom etria 29 C obb Richard historiador francês 80 Collingw ood RG filósofo e historiador britânico 14 276 colonialism o 102 Com te Auguste sociólogo francês 18 connoisseurism o 244 250 construção cultural 23 36 contexto contextualização 154 157 258 C ook Capitão explorador britânico 346 cortes 348 cotidiana 23 C ronon W illiam historiador americano 20 Crosby Alfred historiador britânico 20 cultura material 29 cultura popular 21 36 43 312 314 Darnton Robert colaborador 11 151 202 Davies N orm an historiador britânico 345 Davis Natalie historiadora americana 80 124 3 4 2 3 4 8 demografia 31 312 314 dependência teoria da 126 129 Derrida Jacques filósofo francês 63 76 descolonização 1 9 1 2 5 1 2 9 desconstrução ver pósestruturalismo descrição densa 141 descristianizaçâo 29 diferença 76 85 Dilthey W ilhelm filósofo alemão 286 Ding Ling escritor chinês 344 disciplina 310 313 docum entos históricos ver fontes dram a social 342 Duby Georges historiador francês 329 D unn John historiador intelectual britâ nico 273 276 283 287 Durkheim Emile sociólogo francês 17 1 5 4 1 7 3 Durrell Lawrence escritor britânico 336 Easton David cientista político america no 277 278 283 ecohistória 7 ecologia 20 educação 21 Elias Norbert sociólogo alemão 24 161 310 Engelsing Rolf historiador alemão 212 English Historical Review 16 Erikson Erik psicanalista americano 32 estratégias 158 estruturas história das 12 16 34 36 327 345 347 etnohistória 111 EvansPritchard Edward antropólogo bri tânico 179 180 explicação 31 35 332 Faulkner W illiam escritor americano 336 Febvre Lucien historiador francês 17 113 328 feminismo 19 63 95 294 322 filmes ver fotografia Finlay Robert historiador americano 80 Finley M oses historiador da antigüidade 28 177 Floud Roderick historiador britânico 57 119 fontes e crítica da fonte 1 2 1 4 2 5 3 0 4 2 1 6 5 1 7 0 1 8 9 1 9 1 2 9 9 301 visuais 27 268 269 320 formalização na história 156 158 fotografia 26 240 242 266 300 filmes 346 348 Foucault Michel teórico francês 8 66 149 262 3 0 8 3 1 9 Foum ier Jacques inquisidor francês 47 49 Fowles John escritor britânico 338 Freud Sigtnund 32 A ESCRITA DA HISTÓRIA 351 Fruin Robert historiador holandês 18 funcionalism o 3 4 1 5 4 1 5 5 Gallagher Jack historiador britânico 120 122 124 125 Gaskell Ivan colaborador 14 27 Gay Peter historiador americano 32 317 Geertz Clifford antropólogo arrfericano 57 58 95 138 141 142 144 145 146 147 148 150 151 155t 170 193 339 Gellner Ernest filósofo e antropólogo bri tânico 1 4 8 1 5 4 1 7 0 gênero 36 65 87 315 319322 325 Genovese Eugene D historiador america no 60 Gere John historiador de arte britânico 244 248 G ibbon Edward historiador britânico 19 Ginzburg Cario historiador italiano 25 2 7 4 9 5 0 5 7 5 9 1 4 0 1 5 3 1 5 8 1 6 0 200 Goffm an Erving sociólogo americano 23 300 Goody Jack antropólogo britânico 169 177 178 G ossm an Lionel crítico americano 336 gosto história do 255 257 Gram sci Antonio filósofo italiano 21 Grendi Edoardo historiador italiano cita do 1 58241 G under Frank André econom ista ameri cano 126 Gunnell John teórico político 277 279 Haberm as Jürgen filósofo alemão 286 hábito 35 Haldane JB S cientista britânico 11 Hall David historiador americano 212 213 H am pson N orm an historiador britânico 80 Hanawalt Barbara historiadora america na 50 Haskell Francis historiador de arte britâ nico 255 Hegel G W F filósofo alemão 101 109 14 6 1 6 4 287 Heidegger Martin filósofo alemão 145 Henige David historiador americano 180 herança 264 hermenêutica ver interpretação heteroglossia 15 336 343 Hibbert Christopher historiador britâni co 333 história ver cotidiano ecohistória educa ção gosto história cultural história econômica história do ltvro história militar história política história serial história social história do trabalho medicina menta lidades história dos acontecimentos 12 16 36 11 2 3 2 7 história cultural 17 21 37 história econômica 8 18 22 história nas escolas 182 184 história do livro 203 205 história da medicina 21 299 história militar 21 história das mulheres 17 36 63 história oral 26 49 111 163 198 história política 8 1 1 30 34 36 história serial 30 170 história social 36 43 54 81 204 207 história do trabalho 46 51 historiadores orientados por documentos 1 7 0 1 7 9 1 8 5 1 8 7 1 9 4 Historiscie Zeitschrift revista histórica ale mã 16 History Workshop Journal 16 54 Hider Adolf 32 33 Hobsbawm Eric historiador britânico 45 46 56 H obson JA teórico do imperialismo 1 2 0 1 2 2 1 8 1 Hoggart Richard crítico britânico 45 Hosking Geoffrey historiador britânico 182 Huizinga Johan historiador holandês 13 1 3 2 0 329 331 Huxley Aldous historiador britânico 335 343 352 PETER BURKE iconoclasm o 269 iconografia 260 261 identidade 88 ideologia 66 80 imperialismo 120 121 interpretação 144 259 262 287 289 Jam es Henry novelista americano 153 Jancsó M iklós diretor de cinem a húnga ro 347 Judt Tony historiador britânico 55 Kam m en Michael historiador americano 37 Kanghsi im perador chinês 343 Kang Youwei intelectual chinês 344 Kant Immanuel filósofo alemão 280 284 Kartodirdjo Sartono historiador indoné sio 107 Keegan John historiador militar britâni co 22 325 331 Kenneally Thom as escritor australiano 340 Kerm ode Frank crítico literário britânico 253 254 Khruschchev Nikita citado 182 Kleinm an Arthur antropólogo histórico americano 307 Koselleck Reinhart historiador alemão 286 Kracauer Siegfried historiador do cinema alemão 334 Kuhn Thom as historiador de ciência americano 10 Kurosawa Akira diretor de cinema japo nês 347 Lamprecht Karl historiador alemão 17 Laqueur Thom as historiador americano 316 3 1 7 3 1 9 Le Gofí Jacques historiador francês 9 Lênin V I 120 Le Roy Ladurie Emmanuel historiador francês 25 ss 47 49 50 59 329 Leur JC van historiador holandês 107 108 Levi Giovanni colaborador 3 1 1 3 3 1 3 9 1 4 0 1 5 6 literatura 1 6 9 1 7 0 livraria libraries 208 210 longo prazo longue durée 12 315 Lotman Juri semiótico russo 23 24 Lukács Georg crítico húngaro 341 Lu Xun escritor chinês 344 345 Lyotard JeanFrançois filósofo francês 328 M abillon Jean intelectual francês 18 31 Macfarlane Alan antropólogo histórico britânico 52 53 McKenzie Don bibliógrafo neozelandês 1 6 7 2 2 9 M ajum dar RC historiador indiano 106 M ann Golo historiador alemão 335338 M ann Thom as escritor alemão 336 Manzoni Alessandro escritor italiano 34 r marxism o marxistas 43 51 109 121 1 2 6 1 6 4 2 5 8 2 6 0 masculinidade 324 material proveniente de fórmulas 175 177 M einers Christoph historiador alemão 19 memória seletiva 176 191 Menocchio moleiro italiano 49 57 200 mentalidades 30 5 1 1 7 8 296 303 métodos quantitativos 14 28 30 158 204 205 207 299 301 microhistória 31 53 5 7 1 3 3 340 ss micropolítica 269 Millar John historiador britânico 327 Minow M artha teórica legal americana 77 79 montagem 348 M ontias JM econom ista americano 269 270 M õser Justus historiador alemão 19 M otim Indiano 331 Muchembled Robert historiador francês 314 multivocalídade ver heteroglossia m useus 238 242 A ESCRITA DA HISTÓRIA 353 N am ier Lewis historiador britânico 12 1 6 1 7 3 2 8 narrativa 1 5 2 1 5 4 1 7 6 1 7 9 1 8 7 328 N ehru Jawaharlal citado 105 N icolau I czar citado 12 nouvelle histoire 9 10 Oliver Roland historiador britânico 112 113 O pie lona e Peter folcloristas britânicos 187 Ovfdio poeta rom ano citado 199 ss Ozouf Jacques historiador francês 22 Panofsky Erwin historiador de arte ale mão 27 261 paradigm as 276 Philips M ark historiador canadense 334 Pocock JG A historiador intelectual 13 156 2 7 3 2 7 6 Políbio historiador grego 18 Pontecorvo Giulio diretor de cinema ita liano 347 pontos de vista múltiplos 336 346 Porter Roy colaborador 11 22 176 pósestruturalismo 88 93 286 295 Prebisch Raul econom ista argentino 126 Price Richard antropólogo histórico ame ricano 337 338 Prins Gwyn colaborador 14 163 176 processo civilizador 310 Proust Mareei novelista francês 334 provérbios usos de 175 psicanálise 88 psicohistória 32 34 303 Pugachev Em elian rebelde russo 12 Pushkin Alexander escritor russo 12 racionalidade 144 145 Ranger Terence historiador britânico ci tado 104 112 1 8 1 1 8 6 mencionado 287 Ranke Leopold von historiador alemão 1 0 1 3 1 5 1 6 1 8 1 0 1 1 6 4 3 2 7 3 3 8 Rawls John filósofo político americano 284 recepção história da 227 Reforma 267 269 312 relativismo cultural 10 12 15 23 142 14 6 1 4 8 260 286 306 representações 295 301 Revel Jacques historiador francês 155 1 5 6 1 5 9 1 6 0 Revolução Francesa 12 25 46 329 332 334 Ricoeur Paul filósofo francês 328 345 Robertson W illiam historiador britânico 19 Robinson Jam es Harvey historiador am e ricano 1 7 1 8 Robinson Ronald historiador britânico 1 2 0 1 2 1 1 2 2 1 2 4 1 2 5 1 2 8 Rodney W alter historiador africano 127 Romein Jan historiador holandês 102 Rosenthal Michael historiador de arte britânico 258 Rousseau JeanJacques 201 202 206 208 Ryan Cornelius jornalista e historiador irlandês 331 Sahlins M arshall antropólogo america no 345 347 Scarry Elaine crítica literária americana 297 Scham a Sim on historiador britânico 268 269 310 329 333 Schwartz Gary historiador de arte ameri cano 245 263 Scribner Bob historiador australiano 267 Scott Joan colaboradora 11 20 21 63 7 1 7 4 8 1 8 2 9 2 1 3 6 Scott W alter escritor britânico 341 344 Seeley John historiador britânico 10 senso comum da história visão do 10 sexualidade 292 315 319 Sharpe Jim colaborador 12 25 39 Shen Congwen soldadoacadêmico chi nês 344 Shorter Edward historiador americano 316 318 Showalter Elaine feminista americana 65319 354 PETER BURKE Sik Endre Kistyriador húngaro 1 0 9 1 1 0 Skinner Quentin historiador intelectual britânico 156 273 277 283 285 sociologia 53 Spence Jonathan historiador britânico 343 344 Spencer Herbert sociólogo britânico 18 Steinberg Leo historiador de arte ameri cano 291 Sterne Laurence citado 291 Stokes Eric historiador britânico 333 Stone Lawrence historiador britânico 80 1 5 2 3 2 9 330 Strauss Leo historiador intelectual ameri cano 274 279 282 283 Sum ner BH historiador britânico 345 suplemento conceito de 75 77 Tawney RH historiador britânico 17 55 328 Taylor AJP historiador britânico 32 citado 163 tempo conceitos de 170 179 teoria literária 226 227 Thom pson Edward historiador britânico 35 40 42 43 44 45 46 48 52 53 5 5 5 9 6 0 1 7 9 1 8 0 1 9 1 3 1 3 T hom pson Paul historiador britânico 2 6 1 6 5 1 6 6 1 7 3 1 9 3 Tolstoi Leon escritor russo 339 340 Toson Shimazaki escritor japonês 339 340 tradição 198 277 279 invenção da 180 191 TrevorRoper Hugh Lord Dacre historia dor britânico 32 52 5 3 1 1 0 1 6 4 Tuck Richard colaborador 13 V ansina Jan antropólogo histórico belga 2 6 1 1 1 1 1 3 1 6 5 1 6 6 1 7 2 1 7 3 1 7 8 185 188 194 Venturi Franco historiador italiano cita do 138 Veralltaglichung 24 Vico Giambattista filósofo da história ita liana 19 Vigne Daniel diretor de cinema francês 348 vitoríanísmo 315 Voltaire 19 202 206 327 W aitangi Tratado de 166 W aite Robert historiador americano 33 W allerstein Immanuel historiador ameri cano 1 1 7 1 1 8 1 1 9 1 3 1 W eber M ax sociólogo alemão 24 108 208 301 W esseling Henk colaborador 20 2197 1 0 3 1 1 3 1 2 6 1 2 9 1 6 4 1 8 1 W heeler W illiam soldado britânico 39 4 0 4 1 5 3 W hite Hayden historiador americano 335 338 W ind Edgar historiador de arte alemão 27 W ittgenstein Ludwig filósofo austríaco citado 1 3 3 1 3 6 m encionado 155 W oolf Virginia escritora britânica 75 76 334 SOBRE O LIVRO Coleção B iblioteca Básica Formato 14 x 21 cm M an ch a 25 x 44 paicas Tipologia G oudy O ld Style 1214 Papél P ólen 80 gm 2 m iolo C artão Suprem o 250 gm 2 capa J a edição 1992 E Q U IP E D Ê R E A L IZ A Ç Ã O Produção G ráfica Sidn ei Sim onelli Gerente Edição de Texto Fábio G on çalves Assistente Editorial Erandy Lopes Preparação de original Fernanda Spin elli Rossi Bernadete dos San tos A breu e D alila M aria P Lem os Revisão Editoração Eletrônica Lourdes G u acira da Silv a Supervisão Luiza O dete A n dré Digitação D uclera G Pires de A lm eida Diagramação Projeto V isual Lourdes G u acira da Silv a à PETER BURKE O R G A ESCRITA DA HISTÓRIA N O V A S P E R S P E C T I V A S Neste universo que se expande e se fragmenta há uma necessidade crescente de orientação O que é a chamada nova história Quando ela é nova É um modismo temporário ou uma tendência de longo prazo Ela irá ou deverá substituir a história tradicional ou as rivais podem coexistir pacificamente O presente volume é destinado a responder a essas questões Peter Burke