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PARTE II CARNAVAIS E MOBILIZAÇÃO NEGRA EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 161 10092018 111713 162 ESSA FINA GENTE DO MORRO OCUPAÇÃO CONFLITOS E REPRESENTAÇÕES DA MANGUEIRA 19101930 Lyndon de Araújo Santos Rio de ladeiras Civilização encruzilhada Cada ribanceira é uma nação1 A ESTAÇÃO DERRADEIRA O objetivo deste texto é mostrar como se deu a ocupação do morro da Mangueira e o surgimento de certas representações dos seus moradores por parte da imprensa nas primeiras décadas do século XX Essas representações estavam associadas às práticas da cultura negra no período pósAbolição como foram o batuque o samba a capoeiragem e as práticas religiosas de origens africanas alvos da repressão policial Situamos nosso estudo no limite tempo ral anterior à consagração tanto do samba como da Mangueira no contexto do carnaval carioca e da cultura mais ampla A ocupação da região e dos morros na Mangueira se deu por parte de libertos pósAbolição de descendentes de africa nos de migrantes de empobrecidos e de operários das fábricas do seu entorno Utilizando a linha férrea para o deslocamento rumo aos subúrbios sendo a estação de trem da Mangueira sua primeira parada estes sujeitos foram protagonistas num pro cesso desordenado e marcado por conflitos de várias ordens no qual o samba se insurgiu como expressão musical e cultural2 1 Parte da letra da música de Chico Buarque Estação derradeira 2 Segundo Sérgio Gramático Júnior o samba foi ali introduzido pelos idos de 19151916 por Elói Antero Dias Sérgio Gramático Júnior Maçu da Mangueira o 1º mestre sala do samba Rio de Janeiro Hama 2009 p 30 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 162 10092018 111713 163 Em que medida podemos então ver a Mangueira por meio das representações dos moradores que a fizeram de forma anônima e silenciosa no cotidiano mas não passiva e nem tão disciplinadamente como a ordem republicana desejava3 Tanto o morro como os seus moradores foram representados pela mídia impressa numa linguagem que os categorizava e os distinguia em termos sociais e raciais Na edição de 3 de março de 1926 o Correio da Manhã trazia a seguinte descrição sobre a Mangueira quando o morro se projetava com destaque na pai sagem urbana e social do Rio de Janeiro O Morro da Mangueira é subdividido em pequenos morros todos habitados por gente modesta que levanta ali o seu barracão mediante certo contrato com o proprie tário Entre os habitantes há indivíduos de bom caráter humanitários como o era a vítima de Aleijadinho e há também os maus afeitos ao crime que são os auto res das cenas sangrentas que ali se verificam frequente mente Assim o Morro da Mangueira é constituído dos morros dos Telégrafos do Pendura Saia da Matriz do Faria etc4 Notamos nessa descrição as características emergentes do seu contexto e geografia presentes no conjunto dos pequenos morros que a formavam da gente modesta dos barracões das ambiguidades morais de seus moradores e da violência que cha mava a atenção nos noticiários Até alcançar este destaque que se dava também na dimensão cultural do carnaval do samba dos cultos afro dos seus malandros e valentes destros na capoeira e na navalha a Mangueira passou por um processo de ocupa ção que bem demonstra o modo como a população composta de filhos e de netos de escravos da cidade do Rio de Janeiro foi submetida levandoa a elaborar seus próprios meios de sobrevi vência após a Proclamação da República e da Abolição 3 O cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada CERTEAU Michel de A invenção do cotidiano 1 artes de fazer 14 ed Trad Ephraim Ferreira Alves Petró polis RJ Vozes 2008 p 38 4 Jornal Correio da Manhã 3 de fevereiro de 1926 Ed 09518 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 163 10092018 111713 164 Segundo Adrelino Campos excluídos do mundo do tra balho discriminados e sem direitos reconhecidos os descenden tes de africanos herdaram os procedimentos de combate aos negros quilombolas do século anterior XIX5 O autor pro curou restabelecer a lógica das classes populares como sujeitos responsáveis pela ocupação socioespacial das cidades ao rela cionar os cortiços e as favelas como transmutações dos quilom bos periurbanos Estes espaços que tiveram expansão no período entre 1850 e 1888 foram sendo incorporados à cidade no seu novo processo de expansão do Centro para a periferia mas tam bém inversamente da periferia para o Centro Esta ocupação aconteceu não somente no morro ou no conjunto destes pequenos morros mas na própria região contí gua ao bairro de São Cristóvão e da Quinta da Boa Vista onde ficava a primeira parada dos trens vindos da Central do Brasil a estação primeira da Mangueira Nesta direção se deu uma das expansões da cidade na sequência dos trilhos da rede ferroviá ria em decorrência da suburbanização a partir de 18726 A região era servida por carris de bondes ruas estradas e linha férrea Bairros e regiões como São Cristóvão São Francisco Xavier Andaraí Engenho Novo Engenho de Dentro Cascadura e outros receberam o influxo de pessoas de famílias de desocupa dos e de trabalhadores em função das oportunidades de terrenos e de aluguéis baratos embora cada vez mais distantes dos locais de trabalho Toda esta área esteve sujeita também à especulação financeira de agentes imobiliários que foram privilegiados pelos governos em detrimento dos menos favorecidos e empobrecidos Entre as estações da Mangueira e de São Francisco Xavier era feito o desvio para o ramal da Pavuna com intenso trânsito das composições entre a Central do Brasil e os subúr bios O crescente número de passageiros e a necessidade de aperfeiçoamento da rede somados à imprudência dos usuários proporcionavam problemas recorrentes de horários de colisões 5 CAMPOS Andrelino Do quilombo à favela produção do espaço criminalizado no Rio de Janeiro 4 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2011 p 6364 6 ABREU Martha Campos Evolução urbana do Rio de Janeiro Rio de Janeiro IPPZahar p 5089 apud Andrelino Campus Do quilombo à favela p 67 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 164 10092018 111713 165 de avarias e de acidentes como atropelamentos e quedas das plataformas ou dos vagões A linha férrea se tornou o meio prin cipal do transporte desta gente e ao mesmo tempo um espaço de riscos permanentes Não poucas fábricas afluíram para esta região pela faci lidade dos acessos e de transportes disponibilidade de mão de obra preços baratos dos terrenos e pela concentração de investi mentos em infraestrutura urbana E de certa forma a ocupação do morro esteve ligada à presença delas nas suas imediações onde havia fábricas manufatoras de sapatos e chapéus cerâ micas e olarias onde trabalhavam muitos dos moradores da favela A origem dos barracos no morro era intrínseca à rotina de trabalho nessas fábricas já que Francisco de Paula Negreiros Saião Lobato o visconde de Niterói dono daquelas terras um presente do imperador Dom Pedro II as repassou para um dos donos das fábricas o português Tomás Martins O industrial construiu casas para alugar a seus empregados sendo que mais tarde gente sem ter onde morar chegava por lá e levantava seus barracos do jeito que era possível7 Uma das mais destacadas foi a Fábrica de Chapéus Fernandes Braga Cia que se instalou na região nos anos de 18961898 compondo assim a paisagem em formação no sopé da grande mangueira que demarcava a primeira parada do trem vindo da Central do Brasil Situada ao pé da árvore e próxima à estação de trem a fábrica passou a ser identificada assim como os seus chapéus como Fábrica de Chapéus Mangueira 7 MONTEIRO Denilson Divino Cartola uma vida em verde e rosa Rio de Janeiro Casa da Palavra 2012 p 29 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 165 10092018 111713 166 Figura 1 Construção da Fábrica Fernandes Braga Cia Fonte Acervo da Fábrica de Chapéus Mangueira Digitalização feita pela professora doutora Isis Fernandes Braga UFRJ A Fernandes Braga Cia ou a Fábrica de Chapéus Mangueira de diferentes formas esteve integrada a este processo e contexto pela presença de moradores do morro nos seus qua dros de empregados e pelas formas de prestação de serviços ao seu entorno Em 1918 funcionou nas suas dependências uma enfermaria provisória administrada pelo Exército durante as epi demias de varíola e febre amarela que atingiram a região ante a falta de leitos em hospitais8 Desde a sua construção nos finais do século XIX seguindo o padrão das fábricas inglesas foi construído um con junto de casas contíguas à fábrica para os seus empregados que de alguma forma contribuiu para esta ocupação e alteração da paisagem Certamente o apito e o relógio da fábrica passaram a determinar a relação com o tempo e as horas da população do entorno juntamente com os horários dos trens A fábrica fez parte da paisagem social durante as déca das seguintes e determinou as condições de vida de muitos traba lhadores moradores da Mangueira e bairros adjacentes a partir por exemplo dos salários que ainda eram diferenciados para os homens e para as mulheres que ganhavam menos insuficientes até para o alimento 8 Jornal Correio da Manhã 27 de outubro de 1918 Ed 12435 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 166 10092018 111714 167 EM MANGUEIRA Na estação de Mangueira trabalham centenas de operários NA FÁBRICA DE CHAPÉOS Os operários ganham de 5 a 5500 As operárias de 2500 a 3 O trabalho vai das 7 ás 16 horas Os extraordinários prolongamse até ás 17 12 horas Os salários não chegam para o alimento Tal situação não pode continuar A van guarda deve lutar contra o patronato apoiandose no único jornal operário escrevendo para ele sobre seus sofrimentos e aspirações NA FÁBRICA DE LADRILHOS Os salários na fábrica de ladrilhos da rua Visconde de Niterói regulam os mesmos da fábrica de Chapéus Mangueira Os patrões estabeleceram uma cozinha econômica com mercado ria fornecida pela feira livre Dão abono no dia 30 e pagam no dia 15 A exploração é demasiada FP9 Os valores citados pelo periódico referiamse a uma pos sível média equivalente à jornada diária de trabalho As diferen tes funções na cadeia da produção dos chapéus também deter minavam as desigualdades dos valores como o pagamento dos salários sempre menores das mulheres operárias Estas exerciam majoritariamente o serviço de forradeiras mas atuavam tam bém na tinturaria no polimento e em outros setores10 Tanto na estação como na fábrica a citação se refere a centenas de operários que a se considerar a veracidade da informação concentravamse no entorno deste núcleo produ tivo habitacional e de serviço Portanto se por um lado a ocu pação da região e do morro da Mangueira esteve ligada à produ ção fabril por outro não foi somente este o fator determinante para que a derradeira estação se tornasse um Rio de ladeiras de encruzilhadas de ribanceiras e de fronteiras enfim A CIVILIZAÇÃO ENCRUZILHADA Em 1917 o morro da Mangueira já era conhecido como sendo transformado em sucursal da Favela depois que para ali se 9 Jornal A Classe Operária 4 de julho de 1925 Ed 00010 10 Temos o exemplo de Rufina Avila de Mattos que trabalhou como forradeira de chapéus na Fábrica de Chapéus Mangueira executando serviços tanto na fábrica como em casa SANTOS Lyndon de Araújo A religião dos Mascates e das Forradeiras O cotidiano e os sujeitos no protestantismo primitivo brasileiro Séculos XIX e XX Revista PósHistória n 9 p 175198 2001 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 167 10092018 111714 168 transferiu o pessoal que residia no morro de S Antonio11 Entretanto não somente pela dispersão do morro de S Antonio a Mangueira recebeu pessoas oriundas de outras partes da cidade e do país12 A ida da família Oliveira do futuro Cartola se deu em 1919 quando havia por volta de 50 casas A maioria eram barracos feitos com madeira que se conseguia por perto O povo que ocupou a região era gente que teve suas casas derrubadas na reforma da Quinta da Boa Vista promo vida pela prefeitura em 1908 ou no incêndio do morro Santo Antônio em 1916 onde os barracos daquela que é considerada a primeira favela do país foram destruídos13 As fotografias a seguir tiradas no ano de 1920 retratam as condições de vida a construção rudimentar dos casebres e algumas crianças chamadas de moleques14 Foto 1 Casebre e moleques 11 Jornal do Brasil 26 de outubro de 1917 Ed 00298 12 Nordestinos buscando trabalho e habitação barata soldados despejados da grande reforma feita na Quinta da Boa Vista negros excluídos socialmente sofrendo as marcas recen tes da escravidão População marginalizada não marginal DIAS Elói Antero Sérgio Gramático Júnior Maçu da Mangueira o 1º mestre sala do samba Rio de Janeiro Hama 2009 p 29 13 MONTEIRO Denilson Divino Cartola uma vida em verde e rosa Rio de Janeiro Casa da Palavra 2012 p 29 14 Fotografias feitas por Henry George Wills um protestante ligado à Associação Cristã de Moços e aos proprietários da Fábrica de Chapéus Mangueira referindose aos moleques no verso das fotos Acervo da Fábrica de Chapéus Mangueira Digitalização feita pela professora doutora Isis Fernandes Braga UFRJ EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 168 10092018 111715 169 Foto 2 Moleques EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 169 10092018 111715 170 Foto 3 Casebres no Morro da Mangueira ao fundo o pico da Tijuca O jornal O Paiz descreveu o processo de ocupação do morro da Mangueira de forma negativa sujeita a enfrentamen tos e conflitos por parte do poder público Nesse morro está construída uma verdadeira Favela tantas são as casinhas de reboco e sapé sem água sem esgoto construídas sem licença da Prefeitura e ocupadas na maior parte por elementos perturbadores soldados desertores do exército polícia e marinha indivíduos sem ocupação definida que vieram tocados da Quinta da Boa Vista em virtude das demolições ali havidas por motivo da transformação que está sofrendo aquele parque Esses indivíduos se arrancharam em casebres construídos à la minuto segundo declararam as autoridades de higiene que lá foram por permissão verbal do prefeito como meio fácil de conseguir a desocupação das casas da Quinta a demolir A Saúde Pública que em 1906 conseguiu deso cupar e demolir quase todas as habitações toscas daquele morro com grande esforço assiste agora os seus esfor ços perdidos com a transformação súbita daquela aba do EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 170 10092018 111715 171 morro já saneada em uma verdadeira Favela Aí reside o foco do mal15 Remetendose à primeira década do século XX a ocu pação foi feita de forma gradativa e sujeita a conflitos territoriais e jurídicos mobilizando os órgãos públicos no enfrentamento dos problemas gerados pela ocupação sem licença O ministro da Justiça e dos Negócios Interiores Esmeraldino Bandeira encaminhou no dia 22 de abril de 1910 ao gabinete do prefeito do Distrito Federal Inocencio Serzedelo Correia um ofício soli citando a proibição do levantamento de casebres no morro dos Telégrafos bem como em outros pontos da cidade atendendo se à constante ameaça que para a saúde pública constituem essas edificações16 Informado pela DiretoriaGeral de Saúde Pública o ministro tomou ciência da construção abusiva e sem formalidade legal no morro dos Telégrafos a poucos metros das estações da Mangueira e de S Francisco Xavier de casebres de zinco cafuas de taboas de caixões velhos com cobertura de sapê que nada invejam aos que no morro da Favela e de Santo Antonio se encontram17 Os argumentos para a proibição fundamentavamse na questão da saúde e da higiene públicas no contraste com a esté tica das construções modernas e na injustiça quanto à ereção destes casebres naquele local quando a capital possuía distritos rurais com liberdade de edificação sem necessidade de pagar aluguel Mas nutriamse também dos preconceitos e dos prog nósticos pessimistas relativos ao destino das populações libertas no período pósAbolição18 As estações supra referidas têm nas suas proximidades ruas magníficas calçadas e iluminadas a gás que osten 15 Jornal O Paiz 25 de agosto de 1910 Ed 09455 16 Morro da Mangueira ou dos Telegraphos licença para obras 2241910 Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro AGCRJ 25333 fl 16 17 Morro da Mangueira ou dos Telegraphos licença para obras 2241910 op cit f16 18 ABREU Martha Campos Sobre mulatas orgulhosas e crioulos atrevidos conflitos raciais gênero e nação nas canções populares Sudeste do Brasil 18901920 Tempo n 16 p 4 2003 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 171 10092018 111715 172 tam prédios modernos higiênicos e construídos de acordo com as ultimas posturas municipais Esses prédios muito breve irão sofrer as consequências funestas dos casebres ora em construção visto como o morro dos Telégrafos não é abastecido de água nem é provido de esgoto19 Antes deste despacho o agente da Prefeitura no 17º Distrito no Engenho Novo havia informado que os barracões construídos sem licença no morro da Mangueira pertenciam a soldados do 13º Regimento da Cavalaria cujas construções o Exmo Sr Dr Prefeito deunos ordem pessoalmente para con sentir independente de licença20 Para o ministro o agente dissera sobre as pessoas que velhas sic buscavam habitação vinham do morro Santo Antonio e que recebera ordens para não as impedir21 Alguns moradores no entanto haviam solicitado for malmente a permissão de permanecerem no morro argu mentando que eram vítimas da ação das reformas urbanas da Prefeitura e da própria pobreza apelando para uma legislação imperial que isentava os pobres de pagamentos de sepulturas Ou seja o apelo era para que o governo repetisse a prática da isenção dos pobres de obrigações legais como impostos e taxas oriundos do período imperial Os abaixo assinados que eram moradores na Quinta da Boa Vista em São Cristóvão e cujas habitações foram demolidas por ordem de Vossa Excia para a construção do Parque tangidos pela necessidade para o abrigo de suas famílias construíram no morro alto com entrada pela rua Visconde de Niterói pequenos Barracões Tendo sido os suplicantes intimados pelo Snr Agente da Pre feitura do 17º Distrito venho nestes termos pedir a Vª Excia que por equidade lhes sejam dispensados tais emolumentos porquanto os suplicantes vivem na mais 19 Morro da Mangueira ou dos Telegraphos licença para obras 2241910 op cit f16 20 Morro da Mangueira ou dos Telegraphos licença para obras 2241910 op cit f16 21 O agente fiscal da Prefeitura Municipal no Distrito de Engenho Novo mandou inti mar todos os indivíduos que construíram barracões nos morros da Mangueira e Telégra fos a legalizálos ao prazo de cinco dias sob pena de multa e demolição Jornal O Paiz 12 de maio de 1910 Ed 09359 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 172 10092018 111715 173 pobreza e têm a seu favor as disposições do aviso de 18 de agosto de 1891 regulamentos de 1º de março de 1888 e aviso de 25 de setembro de 1862 Capi tal Federal 19 de maio de 1910 Raphael Ferreira CardosoRaphael S Cardoso Candido Carneiro de Souza Felix Fellipe de Albuquerque Joaquim Barboza de Souza Guilherme Gonçalves de Sá Ernesto Silva Hugo de Paula Macario Antonio Augusto da Cunha e Silva Candido Tomás da Silva João Carneiro de Souza Victal Ribeiro de Sousa João Pires22 Diante do abaixoassinado e da apelação a Prefeitura providenciou uma análise da situação dos barracões na qual vislumbramos a estrutura e a forma das edificações precárias então erigidas Não havia mais a possibilidade de uma ação paternalista por parte do poder público a exemplo do tempo da monarquia Os procedimentos agora obedeceriam a critérios técnicos racionais e impessoais que fundamentariam as decisões dos governantes Os barracões cujos proprietários subscrevem o requeri mento acima afastamse de todas as normas estabele cidas pelo regulamento da Prefeitura para tal tipo de construção São todos toscos em forma de chalé alguns assoalhados repousando os soalhos sobre o solo outros não Nenhum tem o pé direito regulamento sic tendo o que mais se aproxima do limite da lei 330m e o que mais se afasta 140m a partir do predial Há alguns que constam de um só compartimento outro apresenta a área interna subdividida em quartos e salas não havendo relação entre as respectivas áreas e as dos vãos exteriores Nos que apresentam divisões internas estas só a uma certa altura de modo a não isolar os compartimentos uns dos outros São todos de telha vã Tais são as habitações que a pobreza na premente 22 Morro da Mangueira ou dos Telegraphos licença para obras 2241910 op cit f16 As disposições os regulamentos e os avisos referidos na citação encontramse na Coleção das Decisões do Governo do Império do Brasil Rio de Janeiro Typographia Nacional 1862 p 355 Tomo XXV EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 173 10092018 111715 174 necessidade de se guardar das intempéries pode amos trar de acordo com a estreiteza das suas economias J Francisco de Paula 23 O desfecho do processo foi a autorização por parte do prefeito para derrubar os casebres no mês de julho de 1910 Não sabemos se esta ação ocorreu ou como ocorreu mas o fato é que a Mangueira foi sendo ocupada cada vez mais e tornouse uma região de conflitos movidos por supostos proprietários que disputaram a legitimidade da posse dos terrenos mesmo com a nova lei do inquilinato sancionada pelo presidente da República em 1921 No entanto isto não foi suficiente para pôr termo às disputas e aos conflitos entre os locatários e os inquilinos Em 1926 uma longa reportagem do jornal Correio da Manhã trazia fotografias do morro do Telégrafo sendo duas panorâmicas do morro com casebres construídos uma casa parcialmente derrubada e uma com homens mulheres e crian ças sobre os escombros de casas derrubadas O título dizia O pobre não tem direito a coisa alguma dando o enfoque a favor dos moradores do morro do Telégrafo obrigados a sair por uma ação de despejo executada Foram numerosas pessoas segundo o jornal que ficaram sem teto por conta da ação violenta impe trada contra os moradores por parte da polícia24 Segundo a reportagem a remodelação da Quinta da Boa Vista pelo presidente Nilo Peçanha transferiu moradores pobres com seus barracões e choças que ali estavam desde o período imperial para o morro do Telégrafo também de pro priedade nacional Com a falta de fiscalização apareceram pro prietários e locatários que impuseram aluguéis de 20 mil réis para cada terreno ocupado Medidas foram tomadas para o fim desta cobrança por parte do poder público comissão do cadastro e tombamento dos próprios nacionais beneficiando os operários residentes que deixariam de pagar tributo algum Mas uma nova disputa se deu a partir da ação movida pela viúva de um parente do estadista do império visconde de Niterói 23 Morro da Mangueira ou dos Telegraphos licença para obras 2241910 op cit f16 24 Jornal Correio da Manhã 31 de março de 1926 Ed 09565 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 174 10092018 111715 175 Juliete de Medeiros Sayão Lobato que invocando a tutoria de seu filho Décio José requereu o despejo dos moradores naquele morro pelo juízo da 6ª Pretoria Cível O juiz da 2ª Vara Federal garan tiu a permanência dos moradores pelo argumento de que aquelas eram terras do domínio nacional Um interdito proibitório pro tegia os moradores de qualquer ameaça de despejo Deuse então um conflito de jurisdição entre a ação na justiça local favorável aos moradores e a justiça federal Supe rior Tribunal Federal a favor de Juliete de Medeiros Sayão Lobato25 A proprietária acionou o despejo e se apossou dos case bres mas a reportagem argumentou contra a arbitrariedade da expedição do mandato de despejo diante da disputa na Corte de Apelação e justificou a abertura de inquérito contra a pre tensa proprietária entregue em mãos dos chefes de polícia26 Enquanto isso a picareta desumana destelhou e destruiu case bres do que resultou ficarem sem teto numerosas pessoas da classe mais humilde da cidade Pobre Claudionor27 Um cenário de dramas e de conflitos sociais gestou as condições para o surgimento de manifestações culturais peculia res dos morros cariocas sendo a Mangueira uma de suas princi pais representantes QUERO OUVIR SUA BATUCADA AI AI Não poucas manifestações culturais se desenvolveram nas décadas de 1910 a 1930 na região e no morro da Man gueira como espaços em construção de um modo de vida subur bano e de invenções de um cotidiano marcado por contradições O carnaval com o samba o teatro de revista as religiosidades de origens africanas as corridas de cavalos no TurfClub e o futebol com o Sport Club Mangueira sem falar nos pequenos clubes foram expressões da vida cultural e do lazer dos seus moradores 25 Nome de uma das principais travessas no morro da Mangueira relacionada a Fran cisco de Paula Negreiros Saião Lobato o visconde de Niterói que era também o nome da rua que cruzava o bairro 26 Jornal Correio da Manhã 31 de março de 1926 Ed 09565 27 Jornal Correio da Manhã 17 de junho de 1926 Ed 09580 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 175 10092018 111716 176 Tanto quanto um ritmo ou um estilo que se afirmou no cenário do mercado cultural e musical em formação com suas dis putas e concorrências migrando das rodas para o asfalto repre sentado pelos blocos ranchos e escolas o samba definiu uma sociabilidade gestada por afinidades étnicas e religiosas próprias da cultura negra Foi ao mesmo tempo o espaço do encontro da diversidade de ritmos em circulação como o batuque o lundu e o maxixe do improviso e da criatividade estimulados pela comida pela bebida e pela sensualidade enfim uma ambiência social pró pria das populações marginalizadas com as suas astúcias A figura do Claudionor tornouse emblemática e repre sentativa da Mangueira veiculada nos jornais nas revistas no teatro e no carnaval Ora malandro desalojado incendiário ou trabalhador o Claudionor encarnava a estética a linguagem a esperteza e o humor dos seus moradores desde uma dada repre sentação da Mangueira que se instituíra O morro da Mangueira que acabou de firmar a sua notabilidade no Carnaval do ano passado com o cele bre samba Fui num baile Lá no morro da Mangueira Uma cabrochaMe falou de tal maneiraNão vae fazer como fez o ClaudionorQue para sustentar a famíliaFoi bancar o estivador28 O malandro trazia consigo desde o século XIX as representações do vadio e do capadócio aquele que vivia em santo ócio associados à proscrita viola à cachaça e à prática das desordens sociais29 Presentes nas letras dos lundus estes per sonagens se fixaram nas práticas e nas linguagens sociais for mando o tipo social do malandro que passou a ser associado ao sambista nos anos de 1920 mas que não são exclusivos do con texto brasileiro30 As canções expressavam as distinções sociais em seus conflitos Numa sociedade onde se reorganizavam os mecanismos de dominação e controle social as canções mesmo em tom 28 Revista O Malho 13 de novembro de 1926 Ed 1261 29 SANDRONI Carlos Feitiço decente transformações do samba no Rio de Janeiro 19171933 2 ed Rio de Janeiro Zahar 2012 p 158160 30 SANDRONI Carlos Feitiço decente 2012 p 161 162 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 176 10092018 111716 177 de brincadeira não deixavam de expressar uma versão musical dos conflitos sociais raciais amorosos e cultu rais presentes no período Em alguns casos chegaram a divulgar uma forma de crítica e oposição frontal à nova disciplina de trabalho livre através do elogio ao crioulo malandro31 A construção do Claudionor como personagem coinci diu com os anos de 1925 a 1929 quando a Mangueira se tornou mais conhecida pelo samba e pelo carnaval Ao lado de outras canções e marchas de sucesso os seus sambas foram destaque no carnaval de 1926 A revista Amor sem Dinheiro publicação ligada ao Teatro Recreio divulgava a apresentação de Claudionor do Morro da Mangueira representado pelo popular cômico Hen rique Chaves que executará o samba acompanhado de violão flauta e cavaquinho32 A comédia de Paulo Magalhães Flor da Rua encenada neste mesmo ano demonstrava a vida dos malan dros do morro da Mangueira uma comedia essencialmente nacional muito brasileira que com o nome de Flor da Rua está em cena no Trianon desde anteontem O assunto que Paulo Maga lhães desenvolveu com muita graça é um caso de inte resse do qual se aproveitam com habilidade os malandros nele envolvidos o Cutuca o Claudionor e a Flor três representantes da fina gente do morro da Mangueira a conhecida Favela suburbana33 Tais práticas culturais foram associadas a uma possível identidade nacional em construção com personagens comuns mas que traziam o misto da ingenuidade e da sagacidade de quem morava no morro sem o conteúdo da violência O artigo de Gonçalo Jorge criticava as normas de um concurso de modi 31 ABREU Martha Campos Sobre mulatas orgulhosas e crioulos atrevidos conflitos raciais gênero e nação nas canções populares Sudeste do Brasil 18901920 Tempo n 16 p 11 2003 32 Jornal Correio da Manhã 1926 Ed 09514 33 Jornal Correio da Manhã 1926 Ed 09777 O Jornal do Brasil divulgou a apresentação com cenas da vida dos vagabundos do Morro da Mangueira interpretadas pelos artis tas Brandão Sobrinho Sylvia Rertini e Palmeirim Silva Jornal do Brasil 2 de dezembro de 1926 Ed 00287 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 177 10092018 111716 178 nhas que exigiam a correção poética nas letras das músicas O crítico enfatizou a procura por uma genuína arte brasileira e apontou o morro da Mangueira como o lugar da arte brasileira feita pelo povo AS CANÇÕES POPULARES Enquanto isso o povo o povo sem cultura sem abc não precisa de coisa nenhuma para encontrar o seu gênio José Clemente assegura que o morro da Mangueira muito mais cons cientemente do que o Sr Guilherme de Almeida ou o Sr Ronald de Carvalho o que seja a arte brasileira34 Cutuca Claudionor e Flor eram representantes da fina gente do morro da Mangueira a conhecida Favela suburbana O samba intitulado Lá no morro da Mangueira tornouse um padrão que era reproduzido e parodiado a exemplo do Samba Carnava lesco de 1927 Os Quitutes de João composto por M Machado e oferecido ao Prazer das Morenas da rua da caridade A mulher que não se preza É quitute pra João Se é branca fica parda Se é parda vira carvão Quando sai pelo seu braço É panela no fogão A mulher que não se preza É quitute pra João Se ele banca o almofadinha Com óculos de argolão Ella banca a melindrosa Ao lado do negralhão No jantar só comem beiços Ou só língua com feijão A mulher que não se preza Só serve para João 34 Jornal do Brasil 1926 Ed 00287 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 178 10092018 111716 179 Na carapinha trás o negro Pimentinha pimentão Ella quebra o seu cabelo Pra dá ares de João O nariz tem ele chato Tem orelha á rabecão Ella é roxa por mulato Ou mesmo por um João Os negrinhos quando nascem Saltam logo para o chão Tácachimbi gritam logo Pois são filhos de João Mas a mãe toda afobada Chama logo o negralhão Dá aos filhos a chupar Os beiços do pai João35 No carnaval de 1926 e antes da divulgação impressa da sua música o samba Lá no Morro da Mangueira composto por Manuel Dias e Alberico de Souza o Béquinho já era conhecido e can tado nas batalhas nos clubs e nos choros O samba era considerado uma manifestação pitoresca do engenho e inspiração dos musi cistas despreocupados de outra consagração que a popula ridade o caráter de composição musical mais sugestivo e divulgado entre nós principalmente pelo Carnaval época em que atinge o milagre de forçar uma população avessa a cantar nos momentos de maior expansão e repetir letras 35 Jornal Correio da Manhã 1927 Ed 09840 Sobre as figuras das mulatas e dos crioulos nas canções populares diznos Martha Campos Abreu Evidentemente a valorização das mulatas e dos crioulos nas canções populares foi sempre polissêmica e envolveuse com várias questões Esteve presente no mundo artístico cômico e carnavalesco envol veuse com as projeções de intelectuais sobre a identidade nacional e sobre os seus dese jos sexuais Sem dúvida serviu como uma nova forma de controle e exploração do corpo das mulheres afrobrasileiras reproduzindo hierarquias sociais e raciais muito antigas ABREU Martha Campos Sobre mulatas orgulhosas e crioulos atrevidos conflitos raciais gênero e nação nas canções populares Sudeste do Brasil 18901920 Tempo n 16 p 25 2003 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 179 10092018 111716 180 fantasiosas cujo sentido muita vez ignora o irresistível samba carioca de gênese no geral obscura é ainda a mais sensível demonstração de que o Carnaval continua a ser cultuado com apaixonado carinho na cidade36 A revista O Malho projetou também em 1928 as repre sentações do morro nas imagens caricaturadas de sua paisagem e seus personagens Figura 2 O Malho Junho de 1928 Ed 1342 As poucas nuvens sobre as formações do morro num dia ensolarado e de calor com espaços vazios entre os barracos ou casas eram indícios de que a ocupação ainda estava em curso Alguns casebres possuem duas janelas na fachada enquanto outros contam 36 Jornal do Brasil 1926 Ed 00025 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 180 10092018 111716 181 também com uma porta de entrada tal como eram na simplici dade da construção Aparece um botequim com uma figura parada na porta e uma negra levando uma lata na cabeça O problema crônico de abastecimento de água no morro obrigava os morado res a descerem até a estação para adquirir seu suprimento diário Abaixo à esquerda dois crioulos jogam cartas concentrados37 um deles espera o outro jogar com um olhar de expectativa Na página seguinte temse a figura de um negro forte de chapéu caído para um lado do rosto encobrindo um dos olhos de camiseta sem mangas com listras horizontais as mãos no bolso a calça larga e os pés descalços numa postura estereo tipada de malandro mas com um jeito que impõe autoridade seria um tipo do Claudionor Abaixo um violeiro sentado com seu violão em posição de estar tocando seu instrumento e cantando descalço e ladeado por uma mulata com as mãos nos quadris lenço na cabeça num gesto de quem está sambando O articulista descreveu como o morro saiu de um anoni mato e das notícias de violência para uma condição de prestígio cultural por causa do samba e de seus personagens moradores O morro da Mangueira foi descrito como sendo o decantado reduto do Claudionor que aparece como uma figura emblemá tica e representativa Desde então o Claudionor passou para o rol dos homens notáveis deste país de notabilidades e o Morro da Man gueira favela humilde e ignorada armou cordões de bandeirinhas de papel e deu a todos os seus habitantes um direito de equiparação aos colegas da Favela e do Morro do Pinto38 No início do ano seguinte os preparativos para o carna val já eram feitos por um grupo musical prestigiado denominado de velha guarda A VELHA GUARDA DO MORRO DA MAN GUEIRA APRESTASE PARA AS GRANDES 37 Provavelmente um jogo de monte Os termos crioulo e mulata foram utilizados pelo jornal como identificação racial carregada de preconceito e de estratificação social 38 A reportagem foi escrita especial para O Malho por Tito André Revista O Malho 1928 p 11 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 181 10092018 111716 182 PUGNAS Cheio de tradições carnavalescas o Grupo da Velha Guarda do Morro da Mangueira já está em pre paros para as velhas pugnas de Momo O grupo musical ficou assim constituído Armandinho flauta Ravalzinho saxofone Saturnino Segundo bandolim Pedro tram bone Waldemar violão Olegário violão Botelão violão Polycarpo violão João cavaquinho Oswaldo pandeiro e Alcides ganzá39 SÃO SEBASTIÃO CRIVADO As nações de cada ribanceira sobretudo as imigradas da Favela de Santo Antonio e dos quilombos periurbanos cariocas criaram suas próprias linguagens e formas de expressões cultu rais No entanto para além desta projeção por vezes romântica presente nas músicas e nas charges o cotidiano dos moradores da Mangueira estava marcado pela dura sobrevivência por meio do trabalho no comércio nas fábricas e nos bicos praticados numa variedade de prestações de serviços não oficiais e não reconheci das como profissões Parte dos seus moradores era composta de operários estivadores Figura 3 O Malho Junho de 1928 Ed 1342 39 Jornal Correio da Manhã 5 de janeiro de 1929 Ed 00149 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 182 10092018 111719 183 Mas esta informalidade era praticada na visão dos órgãos públicos e dos jornais por uma horda de desocupados preguiçosos malandros e biscateiros fonte dos piores males que assolavam a sociedade como a permissividade moral a sensua lidade os roubos os suicídios e toda sorte de violência40 Para completar este cenário decadente identificado no morro da Man gueira havia as recorrentes epidemias que atingiam principal mente estas populações desassistidas As ocorrências policiais relativas ao morro da Man gueira se tornaram mais numerosas a partir de 1920 coinciden tes com o processo de construção de uma cultura do samba e das figuras dos malandros sambistas Elas se referiam às diferentes formas de conflitos e de violências que envolviam embriaguês roubos brigas de casais crimes passionais vinganças e rixas pes soais incêndios provocados em barracões disputas de terrenos jogo de monte com a utilização de paus navalhas canivetes facas barras de ferro e também de revólveres Um dos pontos principais de conflitos era a travessa Sayão Lobato lugar de intensa concentração de transeuntes de comércio de jogos e de casas além de outros lugares tidos como perigosos a exemplo do Buraco Quente Havia também conhecidos nomes de moradores famo sos pela violência como Ruído Alzira de Souza Espírito Mau João Francisco Delphini o Moleque Allyrio Gaguinho ou Manoel Oliveira Antonio Submarino e Moleque Francisco Estes e outros formavam os renomados valentes da Mangueira temidos pela forma como agiam nas lutas e nas capoeiras com navalhas e facas No morro da Mangueira esse morro imortalizado por ter sido teatro de terríveis cenas sangrentas ocorreu no 40 Para muitos juristas médicos e políticos preocupados com a normalização e a mora lização dos costumes populares a realização desta tarefa era um enorme desafio posto que consideravam os populares em geral e os afrodescendentes em particular como portadores dos supostos vícios da escravidão e da pobreza Para os reformadores estes segmentos da população eram propensos à doença não possuíam hábitos de poupança tendiam à ociosidade não se preocupavam com a educação dos filhos e por extensão não valorizavam os laços de família os do casamento e a honra feminina ABREU Martha Campos Sobre mulatas orgulhosas e crioulos atrevidos conflitos raciais gênero e nação nas canções populares Sudeste do Brasil 18901920 Tempo n 16 p 19 2003 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 183 10092018 111719 184 domingo último mais um crime estupido e covarde O autor do mesmo não foi o celebre Claudionor das canções carnavalescas mas um indivíduo desalmado e perigoso como o é a maioria dos que ali habitam41 A polícia investia com regularidade para coibir tais formas de violência e proibir também as manifestações religiosas dos cultos de origem africana a exemplo do delegado Dr Dulcidio Gonçal ves do 18º distrito que agiu contra os pais de santo e os adeptos de Ogum chamados de macumbeiros nos morros da Mangueira do Vintém e do Jacaré42 Em outra ocorrência uma dúzia de homens e meia de mulheres foram presos numa macumba quando faziam funcionar uma macumba o pai de santo José de tal e com ele 11 homens e seis mulhe res sendo todos metidos no xadrez Na casa do chefe da macumba foram apreendidos oito punhais e uma posta de carne que estava sobre uma mesa à volta da qual se faziam os trabalhos43 Verificase a presença de alguns objetos dos rituais pra ticados como punhais carne e uma mesa44 Mulheres e homens eram liderados pelo pai de santo identificado como José de tal citado sem o sobrenome como uma forma de menosprezo pela desconfiança ante a sua ação religiosa Os trabalhos referiamse a estes rituais conduzidos pelo líder religioso por meio de cânticos invocações incorporações sacrifícios de animais e atendimento às necessidades dos participantes A macumba habitava tanto o espaço recluso escondido e proibido dos cultos africanos como os lugares de visibilidade ligados ao samba Na seção Casos de Polícia da edição de 5 de maio de 1918 de O Paiz foi feito um meticuloso relato sobre o rancho do caboclo Urubatão onde uma macumba fora interrompida pela 41 Jornal Correio da Manhã 1927 Ed 09881 42 Jornal do Brasil 16 de maio de 1933 Ed 00114 43 Jornal Correio da Manhã 1 de dezembro de 1927 Ed 10087 44 O mesmo podese dizer das listas das bugigangas apreendidas nos antros por oca sião das batidas policiais em que aparecem os búzios ao lado das cartas de jogar ima gens de santos ao lado de orixás e de objetos de uso universal da magia tais como pedras cabelos bonecos punhais roupas ossos terra etc NEGRÃO Lísias Nogueira Magia e religião na Umbanda Revista USP n 31 p 78 1996 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 184 10092018 111719 185 polícia com a prisão de 24 pessoas e a apreensão de vários ape trechos de feitiçaria45 A reportagem lamentava o crescimento ilimitado pelas ruas suburbanas de antros de feitiçaria e de macumbas lideradas por charlatães que se utilizam das ciências ocultas para enganar os crentes Além dos distúrbios da razão que faziam com que os manicômios se enchessem de internos havia a influência moral dos sortilégios e dos males físicos cau sados pelas beberagens Frequentados por pessoas oriundas de todas as classes e condições sociais os cultos causavam o estra nhamento por parte do jornal e do articulista questionando como pessoas esclarecidas poderiam se sujeitar a tais práticas numa ordem republicana considerada instituída46 Eram estes os motivos para a perseguição policial das macumbas que negociavam a peso de ouro os serviços presta dos aos incultos e ignorantes Elementos produtos apetrechos e materiais utilizados nos rituais foram descritos tais como a florzinha seca a galinha preta a faquinha pontiaguda de ferro os punhais os manipansos ídolos africanos ou objetos sagra dos os amuletos os rosários as figas as velas de cera as raízes medicinais a vara de condão o peixe de papelão prateado de um metro os cinco barris de cortes diferentes os colares grandes e pequenos as varas os arcos as flechas além das estátuas em tamanho natural do caboclo Urubatão e de Santo Onofre este com um punhal atravessado no peito O relato nos ajuda a compreender o universo dos prati cantes da macumba no início do século XX no Rio de Janeiro mesmo sob a constante repressão policial associada à segregação 45 Jornal O Paiz 5 de maio de 1928 Ed 12260 46 Ivonne Maggie afirma que desde a promulgação deste Código Penal e ao longo do século XX inúmeros acusados de serem maus espíritas macumbeiros ou pais e mães de santo foram levados à prisão em quase todos os estados da federação No Rio de Janeiro não foi diferente Mas quem eram os praticantes do espiritismo da magia e de seus sortilégios perseguidos pela polícia em uma cidade cuja crença em espíritos e feitiçarias ocorria entre pessoas de todas as classes MAGGIE Ivonne O arsenal da Macumba Dispo nível em httpwwwrevistadehistoriacombrsecaocapaoarsenaldamacumba Acesso em 18 fev 2016 grifo nosso EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 185 10092018 111719 186 racial47 Eram de diferentes classes sociais idades sexo e locali dades reunidos em torno dos donos da macumba que prestavam serviços espirituais em troca de pagamentos de diversas formas Os rituais praticados utilizavam elementos e materiais oriundos das tradições africanas e indígenas junto com os do cristianismo católico48 Os batuques os cantos e os sapateados serviam para a invocação das entidades e para a consulta ao principal caboclo do terreiro Urubatão Esta repressão também se mostrava nas censuras às letras e às músicas no carnaval como uma das funções da polícia a exemplo da canção Macumba de Padre proibida no carna val de 1925 dada a sua comicidade imprópria49 Por outro lado a palavra macumba estava associada a outras práticas culturais e não somente religiosas de curandeirismo e de cultos como o candomblé e a umbanda Associavase ao carnaval ao ritmo do batuque e aos blocos carnavalescos a exemplo do samba Chora na Macumba de grande sucesso Encontramos o nome macumba atribuído a um club ou a um time de futebol amador atuante nos idos de 192050 como também em encenações com personagens teatrais cômicos51 47 Exatamente na conjuntura pósabolicionista é que temos a radicalização de uma política que segregou mais explicitamente o espaço urbano carioca justamente quando a cidade negra do período colonialimperial foi desarticulada Os morros sobretudo foram constituindose em áreas de refúgio para a população desalojada pelas reformas urba nas A rejeição às propostas de urbanização destas áreas vigente até os dias de hoje e a manifestação de um estado psicossocial de pânico das elites em relação aos moradores das áreas quilombadas desde os primeiros anos da República afinamse com o autoritarismo da segregação imposta NEDER Gizlene Cidade identidade e exclusão social Tempo n 3 p 107108 1997 BRETAS Marcos Luiz Ordem na cidade O do cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro 19071930 Rio de Janeiro Rocco 1997 HOLLOWAY Thomas Polícia no Rio de Janeiro Repressão e resistência numa cidade do século XX Rio de Janeiro FGV 1993 SOUZA Rafael Pereira de Batuque na cozinha sinhá num quer Repressão e resistência cultural dos cultos afrobrasileiros no Rio de Janeiro 18701890 Dissertação de Mestrado UFF 2010 48 Lísias Negrão afirma a existência de sincretismos com elementos europeus no con texto paulista Ao mesmo tempo em que o europeu e seus descendentes adotavam ele mentos dos cultos negros em seus rituais o inverso também se dava com a incorporação de crenças e práticas mágicas de extração europeia em seu universo mágicoreligioso NEGRÃO Lísias Nogueira Magia e religião na Umbanda Revista USP n 31 p 78 1996 49 Jornal O Paiz 22 de fevereiro de 1925 Ed 14735 50 Jornal O Paiz 1 de agosto de 1920 Ed 13079 51 Como o encontrado na propaganda de uma encenação e chora macumba reconstituição da macumba com todos os seus mistérios no qual os personagens cômi cos da peça se verão nas mais hilariantes situações Jornal O Paiz 9 de novembro de 1927 Ed 15725 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 186 10092018 111719 187 As formas de violência por parte dos homens se mani festavam nos frequentes assédios e agressões às mulheres que reagiam de diferentes maneiras como os revides as tentativas de suicídio pela ingestão de creolina e de outros venenos e ateando fogo ao corpo embebido em querosene As mulheres eram des critas como portadoras de sensualidade aguçada buliçosas e travessas deixando os homens enciumados tornandose assim objetos de desejo descartável e responsáveis pelas atitudes mas culinas descontroladas ante as paixões não correspondidas52 Constatamos a representação do morro como um lugar proscrito mas habitado por gente que defendia o próprio espaço e era solidária entre si quando ameaçada ou depreciada As notas preconceituosas veiculadas pela imprensa criticavam a linguagem própria utilizada no morro com palavras que assu miam outros sentidos como ser igual morador do morro estraga denuncia parceiro conivente amigo comparsa aliado e batendo a sujeira expondo o que é negativo Consideradas palavras de baixo calão e gírias estas expressões estavam presentes nas falas dos moradores dos operários estivadores e dos sambas carnava lescos mas eram repudiadas para o uso formal das conversas e dos glossários oficiais53 O morro era representado como reduto de desordeiros malandros e desocupados que se reuniam para um samba que se caracterizava pelo batuque pela dança pelo canto e o extrava samento das emoções e dos prazeres É habito todas as noites reuniremse os moradores do famoso morro em determinados lugares e entregaremse ao samba Cantam e dançam durante muitas horas e nisso sentem imenso prazer levando o seu divertimento ás vezes até pela madrugada alta À proporção que o samba toma desenvolvimento vão os sambistas entrando na branquinha que a tendinha mais próxima vende para gáudio do seu proprietário que tira com isso grandes lucros Domingo dia em que todos estão de folgando pois no morro da Mangueira habitam muitos trabalhadores 52 Jornal Correio da Manhã 1920 Ed 07968 e Jornal Correio da Manhã 1924 Ed 09153 53 Jornal do Brasil 22 de fevereiro de 1930 Ed 00047 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 187 10092018 111719 188 principalmente estivadores formouse em frente à Ten dinha do Manuel próximo á Visconde de Niterói um samba de arromba no dizer dos que nele tomaram parte para festejar o aniversario natalício de um dos sambistas decorrido no sábado54 O sentido da malandragem e da valentia destes perso nagens se confundia com as práticas culturais e religiosas Per cebese o surgimento de lideranças carismáticas que transitavam entre os espaços da música da religião da capoeira e do não trabalho que construíam uma rede de relações estabelecidas pela maestria das suas habilidades e pelo temor e respeito con quistados Estes sujeitos circulavam nesses interstícios como per sonagens de um agudo drama social ao mesmo tempo dentro e fora da ordem um Rio do lado sem beira cidadãos inteira mente loucos com carradas de razão A trajetória de Cartola ainda anônimo e desconhe cido na época mas ligado a figuras importantes como Carlos Cachaça bem demonstra o ambiente de relações sociais e cultu rais um tanto caricaturado na sua biografia Além do seu inseparável amigo Carlos Cachaça Cartola também conheceu a nata da malandragem mangueirense os valentes Marcelino José Claudino o Mestre Açu também conhecido como o can can da Praça XI quem segundo diziam jamais caíra em pernada alguma além de Chico Porrão Antonico e Indalécio Três notáveis valentes do morro mestres na roda de pernada que não levavam desaforo pra casa Chico Porrão espécie de xerife da favela usava um pesado anel no dedo anular direito para dar cascudos nos moleques que não andavam na linha Grifo nosso55 Contudo a relação com a violência também demarcava a vivência desses valentes no cotidiano dos morros Para o articulista do Jornal do Brasil falando sobre o bairro de D Clara que havia se tornado uma sucursal de Favela do morro do Salgueiro e morro 54 Jornal do Brasil 1928 Ed 00057 55 MONTEIRO Denilson Divino Cartola uma vida em verde e rosa Rio de Janeiro Casa da Palavra 2012 p 40 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 188 10092018 111719 189 de Santo Antônio os valentes eram homens dispostos mas traba lhadores e honestos Eram conhecidos ao mesmo tempo como malandros que idolatravam a bebida e os jogos de cartas mas tinham ojeriza aos ladrões56 D Clara não era mais o reduto de valentões ladrões facínoras e criminosos de toda espécie por causa da ação dos valentes malandros Tratavase de uma posição de prestígio alcan çada na comunidade que chegava ao registro da imprensa igno rando a condição e a presença das forças de segurança57 A expressão valente entretanto era também usada em outras referências como a dos carnavalescos que compunham sambas e dos foliões participantes dos diferentes blocos ranchos e pequenas sociedades com suas falanges nas batalhas de confetes e lançaperfume Da mesma forma os sportmen ou os jogadores de futebol os nadadores ou os remadores recebiam o adjetivo junta mente com os artistas58 A palavra pertencia a diferentes espaços sociais interligados de alguma forma com sujeitos e personagens que transitavam por entre as práticas sociais e culturais No contexto dos morros em processo de ocupação a figura desses valentes passava por mudanças na relação com as formas de convivência social e nas modalidades da própria violência percebidas na descrição inicialmente harmônica e ao mesmo tempo conflituosa do cotidiano dos morros Vivese ali como em família Todos se conhecem todos se dão e se estimam o que não impede que de vez em quando haja um desaguisado qualquer e que da discussão em vez de nascer a luz saia um sangrangu medonho vencendo sempre o mais habilitado no manejo da arma branca ou de fogo porque já se foi o tempo em que os valentes se entendiam desar mados era vencedor quem tivesse mais destreza nas mãos nas pernas e na cabeça Um rabo de arraia uma tapona de sustância um ponta pé de rijo no guardacomida do camarada convidava um freguês Era isto nos tempos 56 As bebidas eram chamadas de orelha da nota cabrito da Dindinha ou água que passarinho não bebe Os tipos de jogos de cartas recebiam os nomes de monte sete e meio e vermelhinha 57 Jornal do Brasil 1 de janeiro de 1920 Ed 00001 58 Jornal do Brasil janfev de 1920 Ed 0003000033 00098 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 189 10092018 111719 190 da capoeiragem em que se punha em prova a valentia do indivíduo Hoje tudo mudou mais valente é aquele que mais depressa aperta o dedo no gatilho da pistola Uma cousa extraordinária no Castello há valentes não há ladrões59 Sendo assim não podemos projetar numa tipificação ahistórica desses sujeitos que cumpriam uma função social no aparente ambiente de anomia das favelas e dos morros cariocas nas primeiras décadas do século XX A citação acima descreve também as habilidades dos valentes que intervinham quando eclodia algum sangrangu medonho valendose não só do corpo como instrumento de luta como no tempo da capoeiragem mas de arma branca ou de fogo A clássica capoeiragem representada nos termos designativos dos golpes dava lugar ao gatilho da pis tola símbolo da ampliação das práticas da violência CONSIDERAÇÕES FINAIS As representações do morro e dos moradores da Man gueira estavam diretamente relacionadas ao processo de exclu são e de racialização das populações negras no período pósAbo lição60 A linguagem dos jornais reproduzia os preconceitos os temores das classes dirigentes e a necessidade de sua separação espacial e de sua estigmatização levados a efeito pelas políti cas de ocupação desordenada em direção aos subúrbios e aos morros Ela colocava como sendo natural a diferenciação entre brancos e negros mestiços pardos mulatos ao associar suas disposições e comportamentos negativos à pele escura e à origem racial O racismo assim além de essencializar e categorizar essa população subordinada justificava essa subordinação61 59 Jornal do Brasil 28 de agosto de 1921 Ed 00235 60 Racializar ou seja pôr a ideia de raça em ação estabelecer distinções a partir de concepções de raça foi exercício político recorrente naquele ambiente de incertezas e mudanças sociais profundas ALBUQUERQUE Wlamyra R de A vala comum da raça emancipada abolição e racialização no Brasil breve comentário Revista História Social n 19 p 104 2010 O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 61 Apropriamonos do debate teórico feito por Karl Monsman Racialização racismo e mudança um ensaio teórico com exemplos do pósabolição paulista Disponível em httpsnh2013anpuhorgresourcesanais271364748564ARQUIVOMonsma trabalhopdf Acesso em 19 fev 2016 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 190 10092018 111719
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PARTE II CARNAVAIS E MOBILIZAÇÃO NEGRA EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 161 10092018 111713 162 ESSA FINA GENTE DO MORRO OCUPAÇÃO CONFLITOS E REPRESENTAÇÕES DA MANGUEIRA 19101930 Lyndon de Araújo Santos Rio de ladeiras Civilização encruzilhada Cada ribanceira é uma nação1 A ESTAÇÃO DERRADEIRA O objetivo deste texto é mostrar como se deu a ocupação do morro da Mangueira e o surgimento de certas representações dos seus moradores por parte da imprensa nas primeiras décadas do século XX Essas representações estavam associadas às práticas da cultura negra no período pósAbolição como foram o batuque o samba a capoeiragem e as práticas religiosas de origens africanas alvos da repressão policial Situamos nosso estudo no limite tempo ral anterior à consagração tanto do samba como da Mangueira no contexto do carnaval carioca e da cultura mais ampla A ocupação da região e dos morros na Mangueira se deu por parte de libertos pósAbolição de descendentes de africa nos de migrantes de empobrecidos e de operários das fábricas do seu entorno Utilizando a linha férrea para o deslocamento rumo aos subúrbios sendo a estação de trem da Mangueira sua primeira parada estes sujeitos foram protagonistas num pro cesso desordenado e marcado por conflitos de várias ordens no qual o samba se insurgiu como expressão musical e cultural2 1 Parte da letra da música de Chico Buarque Estação derradeira 2 Segundo Sérgio Gramático Júnior o samba foi ali introduzido pelos idos de 19151916 por Elói Antero Dias Sérgio Gramático Júnior Maçu da Mangueira o 1º mestre sala do samba Rio de Janeiro Hama 2009 p 30 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 162 10092018 111713 163 Em que medida podemos então ver a Mangueira por meio das representações dos moradores que a fizeram de forma anônima e silenciosa no cotidiano mas não passiva e nem tão disciplinadamente como a ordem republicana desejava3 Tanto o morro como os seus moradores foram representados pela mídia impressa numa linguagem que os categorizava e os distinguia em termos sociais e raciais Na edição de 3 de março de 1926 o Correio da Manhã trazia a seguinte descrição sobre a Mangueira quando o morro se projetava com destaque na pai sagem urbana e social do Rio de Janeiro O Morro da Mangueira é subdividido em pequenos morros todos habitados por gente modesta que levanta ali o seu barracão mediante certo contrato com o proprie tário Entre os habitantes há indivíduos de bom caráter humanitários como o era a vítima de Aleijadinho e há também os maus afeitos ao crime que são os auto res das cenas sangrentas que ali se verificam frequente mente Assim o Morro da Mangueira é constituído dos morros dos Telégrafos do Pendura Saia da Matriz do Faria etc4 Notamos nessa descrição as características emergentes do seu contexto e geografia presentes no conjunto dos pequenos morros que a formavam da gente modesta dos barracões das ambiguidades morais de seus moradores e da violência que cha mava a atenção nos noticiários Até alcançar este destaque que se dava também na dimensão cultural do carnaval do samba dos cultos afro dos seus malandros e valentes destros na capoeira e na navalha a Mangueira passou por um processo de ocupa ção que bem demonstra o modo como a população composta de filhos e de netos de escravos da cidade do Rio de Janeiro foi submetida levandoa a elaborar seus próprios meios de sobrevi vência após a Proclamação da República e da Abolição 3 O cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada CERTEAU Michel de A invenção do cotidiano 1 artes de fazer 14 ed Trad Ephraim Ferreira Alves Petró polis RJ Vozes 2008 p 38 4 Jornal Correio da Manhã 3 de fevereiro de 1926 Ed 09518 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 163 10092018 111713 164 Segundo Adrelino Campos excluídos do mundo do tra balho discriminados e sem direitos reconhecidos os descenden tes de africanos herdaram os procedimentos de combate aos negros quilombolas do século anterior XIX5 O autor pro curou restabelecer a lógica das classes populares como sujeitos responsáveis pela ocupação socioespacial das cidades ao rela cionar os cortiços e as favelas como transmutações dos quilom bos periurbanos Estes espaços que tiveram expansão no período entre 1850 e 1888 foram sendo incorporados à cidade no seu novo processo de expansão do Centro para a periferia mas tam bém inversamente da periferia para o Centro Esta ocupação aconteceu não somente no morro ou no conjunto destes pequenos morros mas na própria região contí gua ao bairro de São Cristóvão e da Quinta da Boa Vista onde ficava a primeira parada dos trens vindos da Central do Brasil a estação primeira da Mangueira Nesta direção se deu uma das expansões da cidade na sequência dos trilhos da rede ferroviá ria em decorrência da suburbanização a partir de 18726 A região era servida por carris de bondes ruas estradas e linha férrea Bairros e regiões como São Cristóvão São Francisco Xavier Andaraí Engenho Novo Engenho de Dentro Cascadura e outros receberam o influxo de pessoas de famílias de desocupa dos e de trabalhadores em função das oportunidades de terrenos e de aluguéis baratos embora cada vez mais distantes dos locais de trabalho Toda esta área esteve sujeita também à especulação financeira de agentes imobiliários que foram privilegiados pelos governos em detrimento dos menos favorecidos e empobrecidos Entre as estações da Mangueira e de São Francisco Xavier era feito o desvio para o ramal da Pavuna com intenso trânsito das composições entre a Central do Brasil e os subúr bios O crescente número de passageiros e a necessidade de aperfeiçoamento da rede somados à imprudência dos usuários proporcionavam problemas recorrentes de horários de colisões 5 CAMPOS Andrelino Do quilombo à favela produção do espaço criminalizado no Rio de Janeiro 4 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2011 p 6364 6 ABREU Martha Campos Evolução urbana do Rio de Janeiro Rio de Janeiro IPPZahar p 5089 apud Andrelino Campus Do quilombo à favela p 67 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 164 10092018 111713 165 de avarias e de acidentes como atropelamentos e quedas das plataformas ou dos vagões A linha férrea se tornou o meio prin cipal do transporte desta gente e ao mesmo tempo um espaço de riscos permanentes Não poucas fábricas afluíram para esta região pela faci lidade dos acessos e de transportes disponibilidade de mão de obra preços baratos dos terrenos e pela concentração de investi mentos em infraestrutura urbana E de certa forma a ocupação do morro esteve ligada à presença delas nas suas imediações onde havia fábricas manufatoras de sapatos e chapéus cerâ micas e olarias onde trabalhavam muitos dos moradores da favela A origem dos barracos no morro era intrínseca à rotina de trabalho nessas fábricas já que Francisco de Paula Negreiros Saião Lobato o visconde de Niterói dono daquelas terras um presente do imperador Dom Pedro II as repassou para um dos donos das fábricas o português Tomás Martins O industrial construiu casas para alugar a seus empregados sendo que mais tarde gente sem ter onde morar chegava por lá e levantava seus barracos do jeito que era possível7 Uma das mais destacadas foi a Fábrica de Chapéus Fernandes Braga Cia que se instalou na região nos anos de 18961898 compondo assim a paisagem em formação no sopé da grande mangueira que demarcava a primeira parada do trem vindo da Central do Brasil Situada ao pé da árvore e próxima à estação de trem a fábrica passou a ser identificada assim como os seus chapéus como Fábrica de Chapéus Mangueira 7 MONTEIRO Denilson Divino Cartola uma vida em verde e rosa Rio de Janeiro Casa da Palavra 2012 p 29 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 165 10092018 111713 166 Figura 1 Construção da Fábrica Fernandes Braga Cia Fonte Acervo da Fábrica de Chapéus Mangueira Digitalização feita pela professora doutora Isis Fernandes Braga UFRJ A Fernandes Braga Cia ou a Fábrica de Chapéus Mangueira de diferentes formas esteve integrada a este processo e contexto pela presença de moradores do morro nos seus qua dros de empregados e pelas formas de prestação de serviços ao seu entorno Em 1918 funcionou nas suas dependências uma enfermaria provisória administrada pelo Exército durante as epi demias de varíola e febre amarela que atingiram a região ante a falta de leitos em hospitais8 Desde a sua construção nos finais do século XIX seguindo o padrão das fábricas inglesas foi construído um con junto de casas contíguas à fábrica para os seus empregados que de alguma forma contribuiu para esta ocupação e alteração da paisagem Certamente o apito e o relógio da fábrica passaram a determinar a relação com o tempo e as horas da população do entorno juntamente com os horários dos trens A fábrica fez parte da paisagem social durante as déca das seguintes e determinou as condições de vida de muitos traba lhadores moradores da Mangueira e bairros adjacentes a partir por exemplo dos salários que ainda eram diferenciados para os homens e para as mulheres que ganhavam menos insuficientes até para o alimento 8 Jornal Correio da Manhã 27 de outubro de 1918 Ed 12435 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 166 10092018 111714 167 EM MANGUEIRA Na estação de Mangueira trabalham centenas de operários NA FÁBRICA DE CHAPÉOS Os operários ganham de 5 a 5500 As operárias de 2500 a 3 O trabalho vai das 7 ás 16 horas Os extraordinários prolongamse até ás 17 12 horas Os salários não chegam para o alimento Tal situação não pode continuar A van guarda deve lutar contra o patronato apoiandose no único jornal operário escrevendo para ele sobre seus sofrimentos e aspirações NA FÁBRICA DE LADRILHOS Os salários na fábrica de ladrilhos da rua Visconde de Niterói regulam os mesmos da fábrica de Chapéus Mangueira Os patrões estabeleceram uma cozinha econômica com mercado ria fornecida pela feira livre Dão abono no dia 30 e pagam no dia 15 A exploração é demasiada FP9 Os valores citados pelo periódico referiamse a uma pos sível média equivalente à jornada diária de trabalho As diferen tes funções na cadeia da produção dos chapéus também deter minavam as desigualdades dos valores como o pagamento dos salários sempre menores das mulheres operárias Estas exerciam majoritariamente o serviço de forradeiras mas atuavam tam bém na tinturaria no polimento e em outros setores10 Tanto na estação como na fábrica a citação se refere a centenas de operários que a se considerar a veracidade da informação concentravamse no entorno deste núcleo produ tivo habitacional e de serviço Portanto se por um lado a ocu pação da região e do morro da Mangueira esteve ligada à produ ção fabril por outro não foi somente este o fator determinante para que a derradeira estação se tornasse um Rio de ladeiras de encruzilhadas de ribanceiras e de fronteiras enfim A CIVILIZAÇÃO ENCRUZILHADA Em 1917 o morro da Mangueira já era conhecido como sendo transformado em sucursal da Favela depois que para ali se 9 Jornal A Classe Operária 4 de julho de 1925 Ed 00010 10 Temos o exemplo de Rufina Avila de Mattos que trabalhou como forradeira de chapéus na Fábrica de Chapéus Mangueira executando serviços tanto na fábrica como em casa SANTOS Lyndon de Araújo A religião dos Mascates e das Forradeiras O cotidiano e os sujeitos no protestantismo primitivo brasileiro Séculos XIX e XX Revista PósHistória n 9 p 175198 2001 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 167 10092018 111714 168 transferiu o pessoal que residia no morro de S Antonio11 Entretanto não somente pela dispersão do morro de S Antonio a Mangueira recebeu pessoas oriundas de outras partes da cidade e do país12 A ida da família Oliveira do futuro Cartola se deu em 1919 quando havia por volta de 50 casas A maioria eram barracos feitos com madeira que se conseguia por perto O povo que ocupou a região era gente que teve suas casas derrubadas na reforma da Quinta da Boa Vista promo vida pela prefeitura em 1908 ou no incêndio do morro Santo Antônio em 1916 onde os barracos daquela que é considerada a primeira favela do país foram destruídos13 As fotografias a seguir tiradas no ano de 1920 retratam as condições de vida a construção rudimentar dos casebres e algumas crianças chamadas de moleques14 Foto 1 Casebre e moleques 11 Jornal do Brasil 26 de outubro de 1917 Ed 00298 12 Nordestinos buscando trabalho e habitação barata soldados despejados da grande reforma feita na Quinta da Boa Vista negros excluídos socialmente sofrendo as marcas recen tes da escravidão População marginalizada não marginal DIAS Elói Antero Sérgio Gramático Júnior Maçu da Mangueira o 1º mestre sala do samba Rio de Janeiro Hama 2009 p 29 13 MONTEIRO Denilson Divino Cartola uma vida em verde e rosa Rio de Janeiro Casa da Palavra 2012 p 29 14 Fotografias feitas por Henry George Wills um protestante ligado à Associação Cristã de Moços e aos proprietários da Fábrica de Chapéus Mangueira referindose aos moleques no verso das fotos Acervo da Fábrica de Chapéus Mangueira Digitalização feita pela professora doutora Isis Fernandes Braga UFRJ EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 168 10092018 111715 169 Foto 2 Moleques EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 169 10092018 111715 170 Foto 3 Casebres no Morro da Mangueira ao fundo o pico da Tijuca O jornal O Paiz descreveu o processo de ocupação do morro da Mangueira de forma negativa sujeita a enfrentamen tos e conflitos por parte do poder público Nesse morro está construída uma verdadeira Favela tantas são as casinhas de reboco e sapé sem água sem esgoto construídas sem licença da Prefeitura e ocupadas na maior parte por elementos perturbadores soldados desertores do exército polícia e marinha indivíduos sem ocupação definida que vieram tocados da Quinta da Boa Vista em virtude das demolições ali havidas por motivo da transformação que está sofrendo aquele parque Esses indivíduos se arrancharam em casebres construídos à la minuto segundo declararam as autoridades de higiene que lá foram por permissão verbal do prefeito como meio fácil de conseguir a desocupação das casas da Quinta a demolir A Saúde Pública que em 1906 conseguiu deso cupar e demolir quase todas as habitações toscas daquele morro com grande esforço assiste agora os seus esfor ços perdidos com a transformação súbita daquela aba do EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 170 10092018 111715 171 morro já saneada em uma verdadeira Favela Aí reside o foco do mal15 Remetendose à primeira década do século XX a ocu pação foi feita de forma gradativa e sujeita a conflitos territoriais e jurídicos mobilizando os órgãos públicos no enfrentamento dos problemas gerados pela ocupação sem licença O ministro da Justiça e dos Negócios Interiores Esmeraldino Bandeira encaminhou no dia 22 de abril de 1910 ao gabinete do prefeito do Distrito Federal Inocencio Serzedelo Correia um ofício soli citando a proibição do levantamento de casebres no morro dos Telégrafos bem como em outros pontos da cidade atendendo se à constante ameaça que para a saúde pública constituem essas edificações16 Informado pela DiretoriaGeral de Saúde Pública o ministro tomou ciência da construção abusiva e sem formalidade legal no morro dos Telégrafos a poucos metros das estações da Mangueira e de S Francisco Xavier de casebres de zinco cafuas de taboas de caixões velhos com cobertura de sapê que nada invejam aos que no morro da Favela e de Santo Antonio se encontram17 Os argumentos para a proibição fundamentavamse na questão da saúde e da higiene públicas no contraste com a esté tica das construções modernas e na injustiça quanto à ereção destes casebres naquele local quando a capital possuía distritos rurais com liberdade de edificação sem necessidade de pagar aluguel Mas nutriamse também dos preconceitos e dos prog nósticos pessimistas relativos ao destino das populações libertas no período pósAbolição18 As estações supra referidas têm nas suas proximidades ruas magníficas calçadas e iluminadas a gás que osten 15 Jornal O Paiz 25 de agosto de 1910 Ed 09455 16 Morro da Mangueira ou dos Telegraphos licença para obras 2241910 Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro AGCRJ 25333 fl 16 17 Morro da Mangueira ou dos Telegraphos licença para obras 2241910 op cit f16 18 ABREU Martha Campos Sobre mulatas orgulhosas e crioulos atrevidos conflitos raciais gênero e nação nas canções populares Sudeste do Brasil 18901920 Tempo n 16 p 4 2003 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 171 10092018 111715 172 tam prédios modernos higiênicos e construídos de acordo com as ultimas posturas municipais Esses prédios muito breve irão sofrer as consequências funestas dos casebres ora em construção visto como o morro dos Telégrafos não é abastecido de água nem é provido de esgoto19 Antes deste despacho o agente da Prefeitura no 17º Distrito no Engenho Novo havia informado que os barracões construídos sem licença no morro da Mangueira pertenciam a soldados do 13º Regimento da Cavalaria cujas construções o Exmo Sr Dr Prefeito deunos ordem pessoalmente para con sentir independente de licença20 Para o ministro o agente dissera sobre as pessoas que velhas sic buscavam habitação vinham do morro Santo Antonio e que recebera ordens para não as impedir21 Alguns moradores no entanto haviam solicitado for malmente a permissão de permanecerem no morro argu mentando que eram vítimas da ação das reformas urbanas da Prefeitura e da própria pobreza apelando para uma legislação imperial que isentava os pobres de pagamentos de sepulturas Ou seja o apelo era para que o governo repetisse a prática da isenção dos pobres de obrigações legais como impostos e taxas oriundos do período imperial Os abaixo assinados que eram moradores na Quinta da Boa Vista em São Cristóvão e cujas habitações foram demolidas por ordem de Vossa Excia para a construção do Parque tangidos pela necessidade para o abrigo de suas famílias construíram no morro alto com entrada pela rua Visconde de Niterói pequenos Barracões Tendo sido os suplicantes intimados pelo Snr Agente da Pre feitura do 17º Distrito venho nestes termos pedir a Vª Excia que por equidade lhes sejam dispensados tais emolumentos porquanto os suplicantes vivem na mais 19 Morro da Mangueira ou dos Telegraphos licença para obras 2241910 op cit f16 20 Morro da Mangueira ou dos Telegraphos licença para obras 2241910 op cit f16 21 O agente fiscal da Prefeitura Municipal no Distrito de Engenho Novo mandou inti mar todos os indivíduos que construíram barracões nos morros da Mangueira e Telégra fos a legalizálos ao prazo de cinco dias sob pena de multa e demolição Jornal O Paiz 12 de maio de 1910 Ed 09359 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 172 10092018 111715 173 pobreza e têm a seu favor as disposições do aviso de 18 de agosto de 1891 regulamentos de 1º de março de 1888 e aviso de 25 de setembro de 1862 Capi tal Federal 19 de maio de 1910 Raphael Ferreira CardosoRaphael S Cardoso Candido Carneiro de Souza Felix Fellipe de Albuquerque Joaquim Barboza de Souza Guilherme Gonçalves de Sá Ernesto Silva Hugo de Paula Macario Antonio Augusto da Cunha e Silva Candido Tomás da Silva João Carneiro de Souza Victal Ribeiro de Sousa João Pires22 Diante do abaixoassinado e da apelação a Prefeitura providenciou uma análise da situação dos barracões na qual vislumbramos a estrutura e a forma das edificações precárias então erigidas Não havia mais a possibilidade de uma ação paternalista por parte do poder público a exemplo do tempo da monarquia Os procedimentos agora obedeceriam a critérios técnicos racionais e impessoais que fundamentariam as decisões dos governantes Os barracões cujos proprietários subscrevem o requeri mento acima afastamse de todas as normas estabele cidas pelo regulamento da Prefeitura para tal tipo de construção São todos toscos em forma de chalé alguns assoalhados repousando os soalhos sobre o solo outros não Nenhum tem o pé direito regulamento sic tendo o que mais se aproxima do limite da lei 330m e o que mais se afasta 140m a partir do predial Há alguns que constam de um só compartimento outro apresenta a área interna subdividida em quartos e salas não havendo relação entre as respectivas áreas e as dos vãos exteriores Nos que apresentam divisões internas estas só a uma certa altura de modo a não isolar os compartimentos uns dos outros São todos de telha vã Tais são as habitações que a pobreza na premente 22 Morro da Mangueira ou dos Telegraphos licença para obras 2241910 op cit f16 As disposições os regulamentos e os avisos referidos na citação encontramse na Coleção das Decisões do Governo do Império do Brasil Rio de Janeiro Typographia Nacional 1862 p 355 Tomo XXV EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 173 10092018 111715 174 necessidade de se guardar das intempéries pode amos trar de acordo com a estreiteza das suas economias J Francisco de Paula 23 O desfecho do processo foi a autorização por parte do prefeito para derrubar os casebres no mês de julho de 1910 Não sabemos se esta ação ocorreu ou como ocorreu mas o fato é que a Mangueira foi sendo ocupada cada vez mais e tornouse uma região de conflitos movidos por supostos proprietários que disputaram a legitimidade da posse dos terrenos mesmo com a nova lei do inquilinato sancionada pelo presidente da República em 1921 No entanto isto não foi suficiente para pôr termo às disputas e aos conflitos entre os locatários e os inquilinos Em 1926 uma longa reportagem do jornal Correio da Manhã trazia fotografias do morro do Telégrafo sendo duas panorâmicas do morro com casebres construídos uma casa parcialmente derrubada e uma com homens mulheres e crian ças sobre os escombros de casas derrubadas O título dizia O pobre não tem direito a coisa alguma dando o enfoque a favor dos moradores do morro do Telégrafo obrigados a sair por uma ação de despejo executada Foram numerosas pessoas segundo o jornal que ficaram sem teto por conta da ação violenta impe trada contra os moradores por parte da polícia24 Segundo a reportagem a remodelação da Quinta da Boa Vista pelo presidente Nilo Peçanha transferiu moradores pobres com seus barracões e choças que ali estavam desde o período imperial para o morro do Telégrafo também de pro priedade nacional Com a falta de fiscalização apareceram pro prietários e locatários que impuseram aluguéis de 20 mil réis para cada terreno ocupado Medidas foram tomadas para o fim desta cobrança por parte do poder público comissão do cadastro e tombamento dos próprios nacionais beneficiando os operários residentes que deixariam de pagar tributo algum Mas uma nova disputa se deu a partir da ação movida pela viúva de um parente do estadista do império visconde de Niterói 23 Morro da Mangueira ou dos Telegraphos licença para obras 2241910 op cit f16 24 Jornal Correio da Manhã 31 de março de 1926 Ed 09565 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 174 10092018 111715 175 Juliete de Medeiros Sayão Lobato que invocando a tutoria de seu filho Décio José requereu o despejo dos moradores naquele morro pelo juízo da 6ª Pretoria Cível O juiz da 2ª Vara Federal garan tiu a permanência dos moradores pelo argumento de que aquelas eram terras do domínio nacional Um interdito proibitório pro tegia os moradores de qualquer ameaça de despejo Deuse então um conflito de jurisdição entre a ação na justiça local favorável aos moradores e a justiça federal Supe rior Tribunal Federal a favor de Juliete de Medeiros Sayão Lobato25 A proprietária acionou o despejo e se apossou dos case bres mas a reportagem argumentou contra a arbitrariedade da expedição do mandato de despejo diante da disputa na Corte de Apelação e justificou a abertura de inquérito contra a pre tensa proprietária entregue em mãos dos chefes de polícia26 Enquanto isso a picareta desumana destelhou e destruiu case bres do que resultou ficarem sem teto numerosas pessoas da classe mais humilde da cidade Pobre Claudionor27 Um cenário de dramas e de conflitos sociais gestou as condições para o surgimento de manifestações culturais peculia res dos morros cariocas sendo a Mangueira uma de suas princi pais representantes QUERO OUVIR SUA BATUCADA AI AI Não poucas manifestações culturais se desenvolveram nas décadas de 1910 a 1930 na região e no morro da Man gueira como espaços em construção de um modo de vida subur bano e de invenções de um cotidiano marcado por contradições O carnaval com o samba o teatro de revista as religiosidades de origens africanas as corridas de cavalos no TurfClub e o futebol com o Sport Club Mangueira sem falar nos pequenos clubes foram expressões da vida cultural e do lazer dos seus moradores 25 Nome de uma das principais travessas no morro da Mangueira relacionada a Fran cisco de Paula Negreiros Saião Lobato o visconde de Niterói que era também o nome da rua que cruzava o bairro 26 Jornal Correio da Manhã 31 de março de 1926 Ed 09565 27 Jornal Correio da Manhã 17 de junho de 1926 Ed 09580 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 175 10092018 111716 176 Tanto quanto um ritmo ou um estilo que se afirmou no cenário do mercado cultural e musical em formação com suas dis putas e concorrências migrando das rodas para o asfalto repre sentado pelos blocos ranchos e escolas o samba definiu uma sociabilidade gestada por afinidades étnicas e religiosas próprias da cultura negra Foi ao mesmo tempo o espaço do encontro da diversidade de ritmos em circulação como o batuque o lundu e o maxixe do improviso e da criatividade estimulados pela comida pela bebida e pela sensualidade enfim uma ambiência social pró pria das populações marginalizadas com as suas astúcias A figura do Claudionor tornouse emblemática e repre sentativa da Mangueira veiculada nos jornais nas revistas no teatro e no carnaval Ora malandro desalojado incendiário ou trabalhador o Claudionor encarnava a estética a linguagem a esperteza e o humor dos seus moradores desde uma dada repre sentação da Mangueira que se instituíra O morro da Mangueira que acabou de firmar a sua notabilidade no Carnaval do ano passado com o cele bre samba Fui num baile Lá no morro da Mangueira Uma cabrochaMe falou de tal maneiraNão vae fazer como fez o ClaudionorQue para sustentar a famíliaFoi bancar o estivador28 O malandro trazia consigo desde o século XIX as representações do vadio e do capadócio aquele que vivia em santo ócio associados à proscrita viola à cachaça e à prática das desordens sociais29 Presentes nas letras dos lundus estes per sonagens se fixaram nas práticas e nas linguagens sociais for mando o tipo social do malandro que passou a ser associado ao sambista nos anos de 1920 mas que não são exclusivos do con texto brasileiro30 As canções expressavam as distinções sociais em seus conflitos Numa sociedade onde se reorganizavam os mecanismos de dominação e controle social as canções mesmo em tom 28 Revista O Malho 13 de novembro de 1926 Ed 1261 29 SANDRONI Carlos Feitiço decente transformações do samba no Rio de Janeiro 19171933 2 ed Rio de Janeiro Zahar 2012 p 158160 30 SANDRONI Carlos Feitiço decente 2012 p 161 162 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 176 10092018 111716 177 de brincadeira não deixavam de expressar uma versão musical dos conflitos sociais raciais amorosos e cultu rais presentes no período Em alguns casos chegaram a divulgar uma forma de crítica e oposição frontal à nova disciplina de trabalho livre através do elogio ao crioulo malandro31 A construção do Claudionor como personagem coinci diu com os anos de 1925 a 1929 quando a Mangueira se tornou mais conhecida pelo samba e pelo carnaval Ao lado de outras canções e marchas de sucesso os seus sambas foram destaque no carnaval de 1926 A revista Amor sem Dinheiro publicação ligada ao Teatro Recreio divulgava a apresentação de Claudionor do Morro da Mangueira representado pelo popular cômico Hen rique Chaves que executará o samba acompanhado de violão flauta e cavaquinho32 A comédia de Paulo Magalhães Flor da Rua encenada neste mesmo ano demonstrava a vida dos malan dros do morro da Mangueira uma comedia essencialmente nacional muito brasileira que com o nome de Flor da Rua está em cena no Trianon desde anteontem O assunto que Paulo Maga lhães desenvolveu com muita graça é um caso de inte resse do qual se aproveitam com habilidade os malandros nele envolvidos o Cutuca o Claudionor e a Flor três representantes da fina gente do morro da Mangueira a conhecida Favela suburbana33 Tais práticas culturais foram associadas a uma possível identidade nacional em construção com personagens comuns mas que traziam o misto da ingenuidade e da sagacidade de quem morava no morro sem o conteúdo da violência O artigo de Gonçalo Jorge criticava as normas de um concurso de modi 31 ABREU Martha Campos Sobre mulatas orgulhosas e crioulos atrevidos conflitos raciais gênero e nação nas canções populares Sudeste do Brasil 18901920 Tempo n 16 p 11 2003 32 Jornal Correio da Manhã 1926 Ed 09514 33 Jornal Correio da Manhã 1926 Ed 09777 O Jornal do Brasil divulgou a apresentação com cenas da vida dos vagabundos do Morro da Mangueira interpretadas pelos artis tas Brandão Sobrinho Sylvia Rertini e Palmeirim Silva Jornal do Brasil 2 de dezembro de 1926 Ed 00287 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 177 10092018 111716 178 nhas que exigiam a correção poética nas letras das músicas O crítico enfatizou a procura por uma genuína arte brasileira e apontou o morro da Mangueira como o lugar da arte brasileira feita pelo povo AS CANÇÕES POPULARES Enquanto isso o povo o povo sem cultura sem abc não precisa de coisa nenhuma para encontrar o seu gênio José Clemente assegura que o morro da Mangueira muito mais cons cientemente do que o Sr Guilherme de Almeida ou o Sr Ronald de Carvalho o que seja a arte brasileira34 Cutuca Claudionor e Flor eram representantes da fina gente do morro da Mangueira a conhecida Favela suburbana O samba intitulado Lá no morro da Mangueira tornouse um padrão que era reproduzido e parodiado a exemplo do Samba Carnava lesco de 1927 Os Quitutes de João composto por M Machado e oferecido ao Prazer das Morenas da rua da caridade A mulher que não se preza É quitute pra João Se é branca fica parda Se é parda vira carvão Quando sai pelo seu braço É panela no fogão A mulher que não se preza É quitute pra João Se ele banca o almofadinha Com óculos de argolão Ella banca a melindrosa Ao lado do negralhão No jantar só comem beiços Ou só língua com feijão A mulher que não se preza Só serve para João 34 Jornal do Brasil 1926 Ed 00287 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 178 10092018 111716 179 Na carapinha trás o negro Pimentinha pimentão Ella quebra o seu cabelo Pra dá ares de João O nariz tem ele chato Tem orelha á rabecão Ella é roxa por mulato Ou mesmo por um João Os negrinhos quando nascem Saltam logo para o chão Tácachimbi gritam logo Pois são filhos de João Mas a mãe toda afobada Chama logo o negralhão Dá aos filhos a chupar Os beiços do pai João35 No carnaval de 1926 e antes da divulgação impressa da sua música o samba Lá no Morro da Mangueira composto por Manuel Dias e Alberico de Souza o Béquinho já era conhecido e can tado nas batalhas nos clubs e nos choros O samba era considerado uma manifestação pitoresca do engenho e inspiração dos musi cistas despreocupados de outra consagração que a popula ridade o caráter de composição musical mais sugestivo e divulgado entre nós principalmente pelo Carnaval época em que atinge o milagre de forçar uma população avessa a cantar nos momentos de maior expansão e repetir letras 35 Jornal Correio da Manhã 1927 Ed 09840 Sobre as figuras das mulatas e dos crioulos nas canções populares diznos Martha Campos Abreu Evidentemente a valorização das mulatas e dos crioulos nas canções populares foi sempre polissêmica e envolveuse com várias questões Esteve presente no mundo artístico cômico e carnavalesco envol veuse com as projeções de intelectuais sobre a identidade nacional e sobre os seus dese jos sexuais Sem dúvida serviu como uma nova forma de controle e exploração do corpo das mulheres afrobrasileiras reproduzindo hierarquias sociais e raciais muito antigas ABREU Martha Campos Sobre mulatas orgulhosas e crioulos atrevidos conflitos raciais gênero e nação nas canções populares Sudeste do Brasil 18901920 Tempo n 16 p 25 2003 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 179 10092018 111716 180 fantasiosas cujo sentido muita vez ignora o irresistível samba carioca de gênese no geral obscura é ainda a mais sensível demonstração de que o Carnaval continua a ser cultuado com apaixonado carinho na cidade36 A revista O Malho projetou também em 1928 as repre sentações do morro nas imagens caricaturadas de sua paisagem e seus personagens Figura 2 O Malho Junho de 1928 Ed 1342 As poucas nuvens sobre as formações do morro num dia ensolarado e de calor com espaços vazios entre os barracos ou casas eram indícios de que a ocupação ainda estava em curso Alguns casebres possuem duas janelas na fachada enquanto outros contam 36 Jornal do Brasil 1926 Ed 00025 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 180 10092018 111716 181 também com uma porta de entrada tal como eram na simplici dade da construção Aparece um botequim com uma figura parada na porta e uma negra levando uma lata na cabeça O problema crônico de abastecimento de água no morro obrigava os morado res a descerem até a estação para adquirir seu suprimento diário Abaixo à esquerda dois crioulos jogam cartas concentrados37 um deles espera o outro jogar com um olhar de expectativa Na página seguinte temse a figura de um negro forte de chapéu caído para um lado do rosto encobrindo um dos olhos de camiseta sem mangas com listras horizontais as mãos no bolso a calça larga e os pés descalços numa postura estereo tipada de malandro mas com um jeito que impõe autoridade seria um tipo do Claudionor Abaixo um violeiro sentado com seu violão em posição de estar tocando seu instrumento e cantando descalço e ladeado por uma mulata com as mãos nos quadris lenço na cabeça num gesto de quem está sambando O articulista descreveu como o morro saiu de um anoni mato e das notícias de violência para uma condição de prestígio cultural por causa do samba e de seus personagens moradores O morro da Mangueira foi descrito como sendo o decantado reduto do Claudionor que aparece como uma figura emblemá tica e representativa Desde então o Claudionor passou para o rol dos homens notáveis deste país de notabilidades e o Morro da Man gueira favela humilde e ignorada armou cordões de bandeirinhas de papel e deu a todos os seus habitantes um direito de equiparação aos colegas da Favela e do Morro do Pinto38 No início do ano seguinte os preparativos para o carna val já eram feitos por um grupo musical prestigiado denominado de velha guarda A VELHA GUARDA DO MORRO DA MAN GUEIRA APRESTASE PARA AS GRANDES 37 Provavelmente um jogo de monte Os termos crioulo e mulata foram utilizados pelo jornal como identificação racial carregada de preconceito e de estratificação social 38 A reportagem foi escrita especial para O Malho por Tito André Revista O Malho 1928 p 11 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 181 10092018 111716 182 PUGNAS Cheio de tradições carnavalescas o Grupo da Velha Guarda do Morro da Mangueira já está em pre paros para as velhas pugnas de Momo O grupo musical ficou assim constituído Armandinho flauta Ravalzinho saxofone Saturnino Segundo bandolim Pedro tram bone Waldemar violão Olegário violão Botelão violão Polycarpo violão João cavaquinho Oswaldo pandeiro e Alcides ganzá39 SÃO SEBASTIÃO CRIVADO As nações de cada ribanceira sobretudo as imigradas da Favela de Santo Antonio e dos quilombos periurbanos cariocas criaram suas próprias linguagens e formas de expressões cultu rais No entanto para além desta projeção por vezes romântica presente nas músicas e nas charges o cotidiano dos moradores da Mangueira estava marcado pela dura sobrevivência por meio do trabalho no comércio nas fábricas e nos bicos praticados numa variedade de prestações de serviços não oficiais e não reconheci das como profissões Parte dos seus moradores era composta de operários estivadores Figura 3 O Malho Junho de 1928 Ed 1342 39 Jornal Correio da Manhã 5 de janeiro de 1929 Ed 00149 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 182 10092018 111719 183 Mas esta informalidade era praticada na visão dos órgãos públicos e dos jornais por uma horda de desocupados preguiçosos malandros e biscateiros fonte dos piores males que assolavam a sociedade como a permissividade moral a sensua lidade os roubos os suicídios e toda sorte de violência40 Para completar este cenário decadente identificado no morro da Man gueira havia as recorrentes epidemias que atingiam principal mente estas populações desassistidas As ocorrências policiais relativas ao morro da Man gueira se tornaram mais numerosas a partir de 1920 coinciden tes com o processo de construção de uma cultura do samba e das figuras dos malandros sambistas Elas se referiam às diferentes formas de conflitos e de violências que envolviam embriaguês roubos brigas de casais crimes passionais vinganças e rixas pes soais incêndios provocados em barracões disputas de terrenos jogo de monte com a utilização de paus navalhas canivetes facas barras de ferro e também de revólveres Um dos pontos principais de conflitos era a travessa Sayão Lobato lugar de intensa concentração de transeuntes de comércio de jogos e de casas além de outros lugares tidos como perigosos a exemplo do Buraco Quente Havia também conhecidos nomes de moradores famo sos pela violência como Ruído Alzira de Souza Espírito Mau João Francisco Delphini o Moleque Allyrio Gaguinho ou Manoel Oliveira Antonio Submarino e Moleque Francisco Estes e outros formavam os renomados valentes da Mangueira temidos pela forma como agiam nas lutas e nas capoeiras com navalhas e facas No morro da Mangueira esse morro imortalizado por ter sido teatro de terríveis cenas sangrentas ocorreu no 40 Para muitos juristas médicos e políticos preocupados com a normalização e a mora lização dos costumes populares a realização desta tarefa era um enorme desafio posto que consideravam os populares em geral e os afrodescendentes em particular como portadores dos supostos vícios da escravidão e da pobreza Para os reformadores estes segmentos da população eram propensos à doença não possuíam hábitos de poupança tendiam à ociosidade não se preocupavam com a educação dos filhos e por extensão não valorizavam os laços de família os do casamento e a honra feminina ABREU Martha Campos Sobre mulatas orgulhosas e crioulos atrevidos conflitos raciais gênero e nação nas canções populares Sudeste do Brasil 18901920 Tempo n 16 p 19 2003 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 183 10092018 111719 184 domingo último mais um crime estupido e covarde O autor do mesmo não foi o celebre Claudionor das canções carnavalescas mas um indivíduo desalmado e perigoso como o é a maioria dos que ali habitam41 A polícia investia com regularidade para coibir tais formas de violência e proibir também as manifestações religiosas dos cultos de origem africana a exemplo do delegado Dr Dulcidio Gonçal ves do 18º distrito que agiu contra os pais de santo e os adeptos de Ogum chamados de macumbeiros nos morros da Mangueira do Vintém e do Jacaré42 Em outra ocorrência uma dúzia de homens e meia de mulheres foram presos numa macumba quando faziam funcionar uma macumba o pai de santo José de tal e com ele 11 homens e seis mulhe res sendo todos metidos no xadrez Na casa do chefe da macumba foram apreendidos oito punhais e uma posta de carne que estava sobre uma mesa à volta da qual se faziam os trabalhos43 Verificase a presença de alguns objetos dos rituais pra ticados como punhais carne e uma mesa44 Mulheres e homens eram liderados pelo pai de santo identificado como José de tal citado sem o sobrenome como uma forma de menosprezo pela desconfiança ante a sua ação religiosa Os trabalhos referiamse a estes rituais conduzidos pelo líder religioso por meio de cânticos invocações incorporações sacrifícios de animais e atendimento às necessidades dos participantes A macumba habitava tanto o espaço recluso escondido e proibido dos cultos africanos como os lugares de visibilidade ligados ao samba Na seção Casos de Polícia da edição de 5 de maio de 1918 de O Paiz foi feito um meticuloso relato sobre o rancho do caboclo Urubatão onde uma macumba fora interrompida pela 41 Jornal Correio da Manhã 1927 Ed 09881 42 Jornal do Brasil 16 de maio de 1933 Ed 00114 43 Jornal Correio da Manhã 1 de dezembro de 1927 Ed 10087 44 O mesmo podese dizer das listas das bugigangas apreendidas nos antros por oca sião das batidas policiais em que aparecem os búzios ao lado das cartas de jogar ima gens de santos ao lado de orixás e de objetos de uso universal da magia tais como pedras cabelos bonecos punhais roupas ossos terra etc NEGRÃO Lísias Nogueira Magia e religião na Umbanda Revista USP n 31 p 78 1996 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 184 10092018 111719 185 polícia com a prisão de 24 pessoas e a apreensão de vários ape trechos de feitiçaria45 A reportagem lamentava o crescimento ilimitado pelas ruas suburbanas de antros de feitiçaria e de macumbas lideradas por charlatães que se utilizam das ciências ocultas para enganar os crentes Além dos distúrbios da razão que faziam com que os manicômios se enchessem de internos havia a influência moral dos sortilégios e dos males físicos cau sados pelas beberagens Frequentados por pessoas oriundas de todas as classes e condições sociais os cultos causavam o estra nhamento por parte do jornal e do articulista questionando como pessoas esclarecidas poderiam se sujeitar a tais práticas numa ordem republicana considerada instituída46 Eram estes os motivos para a perseguição policial das macumbas que negociavam a peso de ouro os serviços presta dos aos incultos e ignorantes Elementos produtos apetrechos e materiais utilizados nos rituais foram descritos tais como a florzinha seca a galinha preta a faquinha pontiaguda de ferro os punhais os manipansos ídolos africanos ou objetos sagra dos os amuletos os rosários as figas as velas de cera as raízes medicinais a vara de condão o peixe de papelão prateado de um metro os cinco barris de cortes diferentes os colares grandes e pequenos as varas os arcos as flechas além das estátuas em tamanho natural do caboclo Urubatão e de Santo Onofre este com um punhal atravessado no peito O relato nos ajuda a compreender o universo dos prati cantes da macumba no início do século XX no Rio de Janeiro mesmo sob a constante repressão policial associada à segregação 45 Jornal O Paiz 5 de maio de 1928 Ed 12260 46 Ivonne Maggie afirma que desde a promulgação deste Código Penal e ao longo do século XX inúmeros acusados de serem maus espíritas macumbeiros ou pais e mães de santo foram levados à prisão em quase todos os estados da federação No Rio de Janeiro não foi diferente Mas quem eram os praticantes do espiritismo da magia e de seus sortilégios perseguidos pela polícia em uma cidade cuja crença em espíritos e feitiçarias ocorria entre pessoas de todas as classes MAGGIE Ivonne O arsenal da Macumba Dispo nível em httpwwwrevistadehistoriacombrsecaocapaoarsenaldamacumba Acesso em 18 fev 2016 grifo nosso EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 185 10092018 111719 186 racial47 Eram de diferentes classes sociais idades sexo e locali dades reunidos em torno dos donos da macumba que prestavam serviços espirituais em troca de pagamentos de diversas formas Os rituais praticados utilizavam elementos e materiais oriundos das tradições africanas e indígenas junto com os do cristianismo católico48 Os batuques os cantos e os sapateados serviam para a invocação das entidades e para a consulta ao principal caboclo do terreiro Urubatão Esta repressão também se mostrava nas censuras às letras e às músicas no carnaval como uma das funções da polícia a exemplo da canção Macumba de Padre proibida no carna val de 1925 dada a sua comicidade imprópria49 Por outro lado a palavra macumba estava associada a outras práticas culturais e não somente religiosas de curandeirismo e de cultos como o candomblé e a umbanda Associavase ao carnaval ao ritmo do batuque e aos blocos carnavalescos a exemplo do samba Chora na Macumba de grande sucesso Encontramos o nome macumba atribuído a um club ou a um time de futebol amador atuante nos idos de 192050 como também em encenações com personagens teatrais cômicos51 47 Exatamente na conjuntura pósabolicionista é que temos a radicalização de uma política que segregou mais explicitamente o espaço urbano carioca justamente quando a cidade negra do período colonialimperial foi desarticulada Os morros sobretudo foram constituindose em áreas de refúgio para a população desalojada pelas reformas urba nas A rejeição às propostas de urbanização destas áreas vigente até os dias de hoje e a manifestação de um estado psicossocial de pânico das elites em relação aos moradores das áreas quilombadas desde os primeiros anos da República afinamse com o autoritarismo da segregação imposta NEDER Gizlene Cidade identidade e exclusão social Tempo n 3 p 107108 1997 BRETAS Marcos Luiz Ordem na cidade O do cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro 19071930 Rio de Janeiro Rocco 1997 HOLLOWAY Thomas Polícia no Rio de Janeiro Repressão e resistência numa cidade do século XX Rio de Janeiro FGV 1993 SOUZA Rafael Pereira de Batuque na cozinha sinhá num quer Repressão e resistência cultural dos cultos afrobrasileiros no Rio de Janeiro 18701890 Dissertação de Mestrado UFF 2010 48 Lísias Negrão afirma a existência de sincretismos com elementos europeus no con texto paulista Ao mesmo tempo em que o europeu e seus descendentes adotavam ele mentos dos cultos negros em seus rituais o inverso também se dava com a incorporação de crenças e práticas mágicas de extração europeia em seu universo mágicoreligioso NEGRÃO Lísias Nogueira Magia e religião na Umbanda Revista USP n 31 p 78 1996 49 Jornal O Paiz 22 de fevereiro de 1925 Ed 14735 50 Jornal O Paiz 1 de agosto de 1920 Ed 13079 51 Como o encontrado na propaganda de uma encenação e chora macumba reconstituição da macumba com todos os seus mistérios no qual os personagens cômi cos da peça se verão nas mais hilariantes situações Jornal O Paiz 9 de novembro de 1927 Ed 15725 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 186 10092018 111719 187 As formas de violência por parte dos homens se mani festavam nos frequentes assédios e agressões às mulheres que reagiam de diferentes maneiras como os revides as tentativas de suicídio pela ingestão de creolina e de outros venenos e ateando fogo ao corpo embebido em querosene As mulheres eram des critas como portadoras de sensualidade aguçada buliçosas e travessas deixando os homens enciumados tornandose assim objetos de desejo descartável e responsáveis pelas atitudes mas culinas descontroladas ante as paixões não correspondidas52 Constatamos a representação do morro como um lugar proscrito mas habitado por gente que defendia o próprio espaço e era solidária entre si quando ameaçada ou depreciada As notas preconceituosas veiculadas pela imprensa criticavam a linguagem própria utilizada no morro com palavras que assu miam outros sentidos como ser igual morador do morro estraga denuncia parceiro conivente amigo comparsa aliado e batendo a sujeira expondo o que é negativo Consideradas palavras de baixo calão e gírias estas expressões estavam presentes nas falas dos moradores dos operários estivadores e dos sambas carnava lescos mas eram repudiadas para o uso formal das conversas e dos glossários oficiais53 O morro era representado como reduto de desordeiros malandros e desocupados que se reuniam para um samba que se caracterizava pelo batuque pela dança pelo canto e o extrava samento das emoções e dos prazeres É habito todas as noites reuniremse os moradores do famoso morro em determinados lugares e entregaremse ao samba Cantam e dançam durante muitas horas e nisso sentem imenso prazer levando o seu divertimento ás vezes até pela madrugada alta À proporção que o samba toma desenvolvimento vão os sambistas entrando na branquinha que a tendinha mais próxima vende para gáudio do seu proprietário que tira com isso grandes lucros Domingo dia em que todos estão de folgando pois no morro da Mangueira habitam muitos trabalhadores 52 Jornal Correio da Manhã 1920 Ed 07968 e Jornal Correio da Manhã 1924 Ed 09153 53 Jornal do Brasil 22 de fevereiro de 1930 Ed 00047 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 187 10092018 111719 188 principalmente estivadores formouse em frente à Ten dinha do Manuel próximo á Visconde de Niterói um samba de arromba no dizer dos que nele tomaram parte para festejar o aniversario natalício de um dos sambistas decorrido no sábado54 O sentido da malandragem e da valentia destes perso nagens se confundia com as práticas culturais e religiosas Per cebese o surgimento de lideranças carismáticas que transitavam entre os espaços da música da religião da capoeira e do não trabalho que construíam uma rede de relações estabelecidas pela maestria das suas habilidades e pelo temor e respeito con quistados Estes sujeitos circulavam nesses interstícios como per sonagens de um agudo drama social ao mesmo tempo dentro e fora da ordem um Rio do lado sem beira cidadãos inteira mente loucos com carradas de razão A trajetória de Cartola ainda anônimo e desconhe cido na época mas ligado a figuras importantes como Carlos Cachaça bem demonstra o ambiente de relações sociais e cultu rais um tanto caricaturado na sua biografia Além do seu inseparável amigo Carlos Cachaça Cartola também conheceu a nata da malandragem mangueirense os valentes Marcelino José Claudino o Mestre Açu também conhecido como o can can da Praça XI quem segundo diziam jamais caíra em pernada alguma além de Chico Porrão Antonico e Indalécio Três notáveis valentes do morro mestres na roda de pernada que não levavam desaforo pra casa Chico Porrão espécie de xerife da favela usava um pesado anel no dedo anular direito para dar cascudos nos moleques que não andavam na linha Grifo nosso55 Contudo a relação com a violência também demarcava a vivência desses valentes no cotidiano dos morros Para o articulista do Jornal do Brasil falando sobre o bairro de D Clara que havia se tornado uma sucursal de Favela do morro do Salgueiro e morro 54 Jornal do Brasil 1928 Ed 00057 55 MONTEIRO Denilson Divino Cartola uma vida em verde e rosa Rio de Janeiro Casa da Palavra 2012 p 40 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 188 10092018 111719 189 de Santo Antônio os valentes eram homens dispostos mas traba lhadores e honestos Eram conhecidos ao mesmo tempo como malandros que idolatravam a bebida e os jogos de cartas mas tinham ojeriza aos ladrões56 D Clara não era mais o reduto de valentões ladrões facínoras e criminosos de toda espécie por causa da ação dos valentes malandros Tratavase de uma posição de prestígio alcan çada na comunidade que chegava ao registro da imprensa igno rando a condição e a presença das forças de segurança57 A expressão valente entretanto era também usada em outras referências como a dos carnavalescos que compunham sambas e dos foliões participantes dos diferentes blocos ranchos e pequenas sociedades com suas falanges nas batalhas de confetes e lançaperfume Da mesma forma os sportmen ou os jogadores de futebol os nadadores ou os remadores recebiam o adjetivo junta mente com os artistas58 A palavra pertencia a diferentes espaços sociais interligados de alguma forma com sujeitos e personagens que transitavam por entre as práticas sociais e culturais No contexto dos morros em processo de ocupação a figura desses valentes passava por mudanças na relação com as formas de convivência social e nas modalidades da própria violência percebidas na descrição inicialmente harmônica e ao mesmo tempo conflituosa do cotidiano dos morros Vivese ali como em família Todos se conhecem todos se dão e se estimam o que não impede que de vez em quando haja um desaguisado qualquer e que da discussão em vez de nascer a luz saia um sangrangu medonho vencendo sempre o mais habilitado no manejo da arma branca ou de fogo porque já se foi o tempo em que os valentes se entendiam desar mados era vencedor quem tivesse mais destreza nas mãos nas pernas e na cabeça Um rabo de arraia uma tapona de sustância um ponta pé de rijo no guardacomida do camarada convidava um freguês Era isto nos tempos 56 As bebidas eram chamadas de orelha da nota cabrito da Dindinha ou água que passarinho não bebe Os tipos de jogos de cartas recebiam os nomes de monte sete e meio e vermelhinha 57 Jornal do Brasil 1 de janeiro de 1920 Ed 00001 58 Jornal do Brasil janfev de 1920 Ed 0003000033 00098 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 189 10092018 111719 190 da capoeiragem em que se punha em prova a valentia do indivíduo Hoje tudo mudou mais valente é aquele que mais depressa aperta o dedo no gatilho da pistola Uma cousa extraordinária no Castello há valentes não há ladrões59 Sendo assim não podemos projetar numa tipificação ahistórica desses sujeitos que cumpriam uma função social no aparente ambiente de anomia das favelas e dos morros cariocas nas primeiras décadas do século XX A citação acima descreve também as habilidades dos valentes que intervinham quando eclodia algum sangrangu medonho valendose não só do corpo como instrumento de luta como no tempo da capoeiragem mas de arma branca ou de fogo A clássica capoeiragem representada nos termos designativos dos golpes dava lugar ao gatilho da pis tola símbolo da ampliação das práticas da violência CONSIDERAÇÕES FINAIS As representações do morro e dos moradores da Man gueira estavam diretamente relacionadas ao processo de exclu são e de racialização das populações negras no período pósAbo lição60 A linguagem dos jornais reproduzia os preconceitos os temores das classes dirigentes e a necessidade de sua separação espacial e de sua estigmatização levados a efeito pelas políti cas de ocupação desordenada em direção aos subúrbios e aos morros Ela colocava como sendo natural a diferenciação entre brancos e negros mestiços pardos mulatos ao associar suas disposições e comportamentos negativos à pele escura e à origem racial O racismo assim além de essencializar e categorizar essa população subordinada justificava essa subordinação61 59 Jornal do Brasil 28 de agosto de 1921 Ed 00235 60 Racializar ou seja pôr a ideia de raça em ação estabelecer distinções a partir de concepções de raça foi exercício político recorrente naquele ambiente de incertezas e mudanças sociais profundas ALBUQUERQUE Wlamyra R de A vala comum da raça emancipada abolição e racialização no Brasil breve comentário Revista História Social n 19 p 104 2010 O jogo da dissimulação abolição e cidadania negra no Brasil São Paulo Companhia das Letras 2009 61 Apropriamonos do debate teórico feito por Karl Monsman Racialização racismo e mudança um ensaio teórico com exemplos do pósabolição paulista Disponível em httpsnh2013anpuhorgresourcesanais271364748564ARQUIVOMonsma trabalhopdf Acesso em 19 fev 2016 EDUFFCulturaNegraVol1PBindd 190 10092018 111719