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Direito ·
Teoria Geral do Estado
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Copyright by Perry Anderson 1974 Título original em inglês Lineages of the Absolutist State Copyright da tradução brasileira Editora Brasiliense S A Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada armazenada em sistemas eletrônicos fotocopiada reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia da editora ISBN 8511130497 Primeira edição 1985 3a edição 1995 2a reimpressão 2004 Tradução Suely Bastos Apêndice A e Paulo Henrique Britto Apêndice B Revisão Suely Bastos e Mareia Copola Capa Depto de Arte Brasiliense Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Anderson Perry Linhagens do Estado absolutista Perry Anderson tradução João Roberto Martins Filho São Paulo Brasiliense 2004 Título original Lineages of the absolutist statc 2a reimpr da 3a ed de 1994 Bibliografia ISBN 8511130497 l Despotismo 2 Despotismo Estudo de casos I Título 048040 CDD3216 índices para catálogo sistemático l Absolutismo Ciência política 3216 2 Estado absolutista Ciência política 3216 editora brasiliense sa Rua Airi 22 Tatuapé CEP 03310010 São Paulo SP FoneFax Oxxll 61981488 Email brasilienseedituolcombr wwweditorabrasiliensecombr livraria brasiliense sa Rua Emília Marengo 216 Tatuapé CEP 03336000 São Paulo SP FoneFax Oxxll 66750188 Sumário Prefácio 7 Primeira parte EUROPA OCIDENTAL O Estado absolutista no Ocidente 15 Classe e Estado problemas de periodização 42 Espanha 58 França 84 Inglaterra 112 Itália 143 Suécia 173 Segunda parte EUROPA ORIENTAL O absolutismo no Leste 195 Nobreza e monarquia a variante oriental 221 Prússia 236 Polônia 279 Áustria 299 Rússia 328 A Casa do Islã 361 Conclusões 395 APÊNDICES A O feudalismo japonês B O modo de produção asiático 433 461 Prefácio O propósito deste trabalho é tentar um estudo comparado da natureza e do desenvolvimento do Estado absolutista na Europa Suas características gerais e seus limites enquanto reflexão sobre o passado foram expostos no prefácio ao estudo que o precede1 É preciso agora acrescentar algumas observações específicas sobre a relação entre a pesquisa empreendida neste volume e o materialismo histórico Conce bido como um estudo marxista do absolutismo o presente trabalho si tuase deliberadamente en a dois planos diversos do discurso marxista em geral separados por uma distância considerável Nas últimas déca das tornouse comum que os historiadores marxistas autores de um já impressionante corpo de investigações nem sempre estivessem di retamente preocupados com os problemas teóricos relativos às implica ções suscitadas por seus trabalhos Ao mesmo tempo os filósofos mar xistas que procuraram elucidar ou resolver as questões teóricas básicas do materialismo histórico fizeramno com freqüência consideravel mente afastados dos resultados específicos expostos pelos historiado res Aqui fezse uma tentativa de explorar um terreno intermediário entre aquelas posições É possível que sirva apenas como exemplo nega tivo De todo modo o objetivo deste estudo é examinar simultanea mente o absolutismo europeu em geral e em particular vale dizer tanto as estruturas puras do Estado absolutista que o constituem 1 Passages from Ântiquity to Feudalism Londres 1974 pp 79 10 PERRY ANDERSON geralmente se restringe a uma época delimitada Em qualquer dos ca sos o tempo histórico não parece apresentar normalmente nenhum problema seja nos estudos narrativos à moda antiga seja nos mo dernos estudos sociológicos os acontecimentos e as instituições pa recem mergulhar numa temporalidade mais ou menos contínua e ho mogênea Embora os historiadores estejam naturalmente cientes de que os índices de mudança variam nas diferentes camadas ou setores da sociedade o hábito e a conveniência mandam em geral que a forma de uma obra implique ou obedeça a um monismo cronológico Vale dizer seus materiais são tratados como se compartilhassem um ponto de partida comum e um mesmo ponto de chegada abarcados por um único espaço de tempo Neste estudo não há tal meio temporal uniforme pois os tempos dos absolutismos mais importantes da Eu ropa oriental ou ocidental foram precisamente caracterizados por uma enorme diversidade constitutiva ela mesma de sua natureza respectiva enquanto sistemas estatais O absolutismo espanhol sofreu a sua primeira grande derrota em fins do século XVI nos Países Bai xos o absolutismo inglês foi derrubado em meados do século XVII o absolutismo francês durou até o final do século XVIII o absolutismo prussiano sobreviveu até um período avançado do século XIX o abso lutismo russo só foi derrubado no século XX As amplas disjunções na datação dessas grandes estruturas correspondem inevitavelmente apro fundas distinções em sua composição e evolução Uma vez que o objeto específico deste estudo é o espectro global do absolutismo europeu não há temporalidade única capaz de abarcálo A história do absolutismo tem múltiplos e sobrepostos pontos de partida e pontos finais díspares e escalonados A sua unidade subjacente é real e profunda mas não é a de um cortiinuum linear A complexa duração do absolutismo europeu com suas múltiplas rupturas e deslocamentos de região para região determina neste estudo a apresentação do material histórico Assim omitese todo o ciclo de processos e acontecimentos que asseguraram o triunfo do modo de produção capitalista na Europa após o início da época moderna As primeiras1 revoluções burguesas ocorreram muito antes das últimas metamorfoses do absolutismo de um ponto de vista cronológico Contudo dentro dos propósitos deste trabalho ficam categoricamente em seguida às últimas e serão consideradas num es tudo subseqüente Assim fenômenos tão fundamentais como a acumu lação primitiva do capital a eclosão da Reforma religiosa a formação das nações a expansão do imperialismo ultramarino e o advento da industrialização que se inserem adequadamente dentro do âmbito formal dos períodos aqui tratados como contemporâneos de várias LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 11 fases do absolutismo na Europa não são discutidos ou explorados As suas datas são as mesmas os seus tempos são diferentes A história desconhecida e desconcertante das sucessivas revoluções burguesas não nos ocupa aqui o presente ensaio confinase à natureza e ao desenvol vimento dos Estados absolutistas aos seus antecedentes e adversários políticos Dois estudos ulteriores serão dedicados especificamente à ca deia das grandes revoluções burguesas da revolta dos Países Baixos à unificação da Alemanha e à estrutura dos Estados capitalistas contem porâneos que após um longo processo de evolução resultaram final mente delas Algumas das implicações teóricas e políticas das discus sões do presente volume só tomarão forma plena nessas continuações Uma última palavra é talvez necessária sobre a escolha do Estado como tema central de reflexão Hoje quando a história a partir de baixo tornouse senha reconhecida tanto em círculos marxistas como nãomarxistas e produziu já importantes benefícios para a nossa com preensão do passado é apesar de tudo necessário relembrar um dos axiomas básicos do materialismo histórico que a luta secular entre as classes resolvese em última instância no nível político da sociedade e não no nível econômico ou cultural Em outras palavras é a cons trução e a destruição dos Estados que sela as modificações básicas nas relações de produção enquanto subsistirem as classes Uma história a partir de cima do intrincado mecanismo da dominação de classe surge portanto como não menos essencial que uma história a partir de baixo na verdade sem aquela esta última tornase enfim unilateral embora do melhor lado Marx escreveu na sua maturidade A liberdade consiste na conversão do Estado de órgão sobreposto à sociedade em órgão completamente subordinado a ela e também hoje as formas do Estado são mais livres ou menos livres na medida em que restrinjam a liberdade do Estado Um século decorrido a abolição do Estado permanece ainda como uma das metas do socialismo revolu cionário Mas o supremo significado atribuído ao seu desaparecimento final testemunha todo o peso de sua presença anterior na história O absolutismo primeiro sistema de Estado internacional no mundo mo derno não esgotou de forma alguma os segredos ou lições que tem a revelarnos A finalidade deste trabalho é apresentar uma contribuição para a discussão de alguns deles Seus erros interpretações incorretas omissões solecismos e ilusões podem com segurança ser confiados à crítica do debate coletivo O Estado absolutista no Ocidente A longa crise da economia e da sociedade européias durante os séculos XIV e XV marcou as dificuldades e os limites do modo de pro dução feudal no último período da Idade Média1 Qual foi o resultado político final das convulsões continentais dessa época No curso do sé culo XVI o Estado absolutista emergiu no Ocidente As monarquias centralizadas da França Inglaterra e Espanha representavam uma ruptura decisiva com a soberania piramidal e parcelada das formações sociais medievais com seus sistemas de propriedade e de vassalagem A controvérsia sobre a natureza histórica destas monarquias tem per sistido desde que Engels numa máxima famosa declarouas produto de um equilíbrio de classe entre a antiga nobreza feudal e a nova bur guesia urbana Excepcionalmente contudo há períodos em que as classes em luta se equilibram Gleichgewicht halten de tal modo que o poder de Estado pretenso mediador adquire momentaneamente um certo grau de autonomia em relação a elas Assim aconteceu com a mo narquia absoluta dos séculos XVII e XVIII que manteve o equilíbrio gegeneinander balanciert entre a nobreza e a classe dos burgueses2 As múltiplas qualificações desta passagem indicam um certo malestar 1 Ver a discussão deste ponto em Passages from Antiquity to Feudalism Lon dres 1974 que precede o presente estudo 2 The Origin of the Family Private Property and the State em MarxEngels Selected Works Londres 1968 p 588 MarxEngels Werke vol 21 p 167 16 PERRY ANDERSON conceituai por parte de Engels Mas um exame cuidadoso das sucessi vas íormulações tanto de Marx como de Engels revela que uma con cepção similar do absolutismo foi com efeito um tema relativamente consistente em sua obra Engels repetiu a mesma tese básica em outra parte de forma mais categórica observando que a condição básica da velha monarquia absoluta era um equilíbrio Gleichgewicht entre a aristocracia fundiária e a burguesia3 Na verdade a classificação do absolutismo como um mecanismo de equilíbrio político entre a nobreza e a burguesia desliza com freqüência para a sua designação implícita ou explícita fundamentalmente como um tipo de Estado burguês en quanto tal Tal deslizamento é evidente sobretudo no próprio Mani festo Comunista onde o papel político da burguesia no período das manufaturas é caracterizado de um só fôlego como contrapeso Ge gengewicht da nobreza na monarquia semifeudal ou na absoluta pe dra angular Hauptgrundlage das grandes monarquias em geral4 A sugestiva transição de contrapeso para pedra angular tem eco em outros textos Engels podia referirse à época do absolutismo como a idade em que a nobreza feudal foi levada a compreender que o pe ríodo da sua dominação política e social chegara ao fim5 Marx por seu lado afirmou repetidamente que as estruturas administrativas dos novos Estados absolutistas eram um instrumento tipicamente burguês Sob a monarquia absoluta escreveu a burocracia era apenas o meio de preparar o domínio de classe da burguesia Em outra pas sagem Marx declarava O poder do Estado centralizado com os seus órgãos onipresentes exército permanente polícia burocracia clero e magistratura órgãos forjados segundo o plano de uma divisão do trabalho sistemática e hierárquica tem a sua origem nos tempos da monarquia absoluta quando serviu à sociedade da classe média nas cente como arma poderosa nas suas lutas contra o feudalismo6 Tais reflexões sobre o absolutismo eram todas mais ou menos casuais e alusivas uma teorização direta das novas monarquias centra lizadas que emergiram na Europa renascentista nunca foi efetuada por 3 Zur Wohnungsfrage em Werke vol 18 p 258 4 MarxEngels Selected Works p 37 Werke vol 4 p 464 5 Uber den Verfall dês Feudalismus und das Aufkommen der Bourgeoisie em Werke vol 21 p 398 A dominação política é explicitamente staatliche na frase aqui citada 6 A primeira formulação é de The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte em Selected Works p 171 a segunda é de The Civil War in France em Selected Works p 289 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 17 nenhum dos fundadores do materialismo histórico A sua importância exata foi deixada ao juízo das gerações posteriores Com efeito os his toriadores marxistas debatem até hoje o problema da natureza social do absolutismo A sua solução correta é na verdade vital para a com preensão da passagem do feudalismo para o capitalismo na Europa e dos sistemas políticos que a diferenciaram As monarquias absolutas introduziram os exércitos regulares uma burocracia permanente o sis tema tributário nacional a codificação do direito e os primórdios de um mercado unificado Todas essas características parecem ser emi nentemente capitalistas Uma vez que elas coincidem com o desapa recimento da servidão uma instituição nuclear do primitivo modo de produção feudal na Europa as descrições do absolutismo por Marx e Engels como um sistema de Estado correspondente a um equilíbrio entre a burguesia e a nobreza ou mesmo a uma dominação direta do capital sempre pareceram plausíveis No entanto um estudo mais detido das estruturas do Estado absolutista no Ocidente invalida inevi tavelmente tais juízos Pois o fim da servidão não significou aí o desa parecimento das relações feudais no campo A identificação de um com o outro é um erro comum Contudo é evidente que a coerção extra econômica privada a dependência pessoal e a associação do produtor direto com os instrumentos de produção não se desvanecem necessa riamente quando o sobreproduto rural deixou de ser extraído na forma de trabalho ou prestações em espécie e se tornou renda em dinheiro enquanto a propriedade agrária aristocrática impedia um mercado li vre na terra e a mobilidade efetiva do elemento humano em outras palavras enquanto o trabalho não foi separado de suas condições so ciais de existência para se transformar em força de trabalho as relações de produção rurais permaneciam feudais Precisamente em sua análise teórica da renda da terra em O Capital o próprio Marx o torna claro A transformação da renda em trabalho na renda em es pécie nada de fundamental altera na natureza da renda fundiária Por renda monetária entendemos aqui a renda fundiária que resulta de uma simples mudança de forma da renda em espécie tal como esta não é mais do que uma modificação da renda em trabalho A base deste tipo de renda embora se aproxime a sua dissolução continua a ser a mesma da renda em espécie que constitui o seu ponto de partida O produtor direto é ainda como antes o possuidor da terra através de herança ou de qualquer outro direito tradicional e deve efetuar ao seu senhor enquanto proprietário de sua condição de produção mais es sencial a prestação de trabalho excedente na forma de corvéia isto é trabalho nãopago pelo qual não se recebe equivalente na forma de um 18 PERRY ANDERSON sobreproduto transformado em dinheiro7 Os senhores que permane ceram proprietários dos meios de produção fundamentais em qualquer sociedade préindustriai eram certamente os nobres terratenentes Durante toda a fase inicial da época moderna a classe dominante econômica e politicamente era portanto a mesma da época me dieval a aristocracia feudal Essa nobreza passou por profundas meta morfoses nos séculos que se seguiram ao fim da Idade Média mas desde o princípio até o final da história do absolutismo nunca foi desa lojada de seu domínio do poder político As alterações nas formas de exploração feudal sobrevindas no final da época medieval estavam naturalmente longe de serem insig nificantes Na verdade foram precisamente essas mudanças que modi ficaram as formas do Estado Essencialmente o absolutismo era ape nas isto um aparelho de dominação feudal recolocado e reforçado destinado a sujeitar as massas camponesas à sua posição social tradi cional não obstante e contra os benefícios que elas tinham conquis tado com a comutação generalizada de suas obrigações Em outras pa lavras o Estado absolutista nunca foi um árbitro entre a aristocracia e a burguesia e menos ainda um instrumento da burguesia nascente contra a aristocracia ele era a nova carapaça política de uma nobreza atemorizada O consenso de uma geração de historiadores marxistas da Inglaterra e da Rússia foi resumido por Hill vinte anos atrás A monarquia absoluta foi uma forma de monarquia feudal diferente da monarquia dos Estados medievais que a precedera mas a classe domi nante permaneceu a mesma tal como uma república uma monar quia constitucional e uma ditadura fascista podem ser todas formas de dominação da burguesia8 A nova forma de poder da nobreza foi por sua vez determinada pela difusão da produção e troca de mercadorias nas formações sociais de transição do início da época moderna Neste 7 Capital III pp 774777 A exposição de Dobb sobre esta questão funda mental em sua Réplica a Sweezy no famoso debate dos anos 50 sobre a transição do feudalismo ao capitalismo é aguda e lúcida Science and Socieíy XIV n 2 primavera de 1950 pp 15767 esp 1634 A importância teórica do problema é evidente No caso de um país como a Suécia por exemplo os relatos históricos correntes sustentam que n3o teve feudalismo porque a servidão propriamente dita esteve ausente Na ver dade as relações feudais predominaram evidentemente na Suécia rural durante toda a última fase da era medieval 8 Christopher Hill Comentário sobre a transição do feudalismo ao capita lismo Science and Society XVII n 4 outono de 1953 p 351 Os termos desta crítica devem ser considerados com cuidado O caráter geral e de toda uma época do absolu tismo torna desapropriada qualquer comparação deste com os regimes fascistas locali zados e excepcionais LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 19 sentido Althusser especificou corretamente o seu caráter O regime político da monarquia absoluta é apenas a nova forma política neces sária à manutenção da dominação e da exploração feudais no período de desenvolvimento de uma economia mercantil9 Mas as dimensões da transformação histórica acarretada pelo advento do absolutismo não devem ser de forma alguma minimizadas Pelo contrário é essen cial apreender toda a lógica e significação da importante mudança ocorrida na estrutura do Estado aristocrático e da propriedade feu dal que produziu o fenômeno novo do absolutismo O feudalismo como modo de produção definiase por uma uni dade orgânica de economia e dominação política paradoxalmente dis tribuída em uma cadeia de soberanias parcelares por toda a formação social A instituição do trabalho servil como mecanismo de extração de excedente fundia a exploração econômica e a coerção políticolegal no nível molecular da aldeia O senhor por sua vez tinha normalmente o dever de vassalagem e de serviço militar para com o seu suserano se nhorial que reclamava a terra como seu domínio supremo Com a co mutação generalizada das obrigações transformadas em rendas mone tárias a unidade celular de opressão política e econômica do campe sinato foi gravemente debilitada e ameaçada de dissociação o final deste processo foi o trabalho livre e o contrato salarial O poder de classe dos senhores feudais estava assim diretamente em risco com o desaparecimento gradual da servidão O resultado disso foi um deslo camento da coerção políticolegal no sentido ascendente em direção a uma cúpula centralizada e militarizada o Estado absolutista Di luída no nível da aldeia ela tornouse concentrada no nível nacional O resultado foi um aparelho reforçado de poder real cuja função polí tica permanente era a repressão das massas camponesas e plebéias na base da hierarquia social Entretanto esta nova máquina política foi também por sua própria natureza dotada de uma força de coerção 9 Louis Althusser Montesquieu lê Politique et 1ffistoire Paris 1960 p 117 Tal formulação foi escolhida por ser recente e representativa A confiança no caráter capitalista ou quase capitalista do absolutismo ainda pode ser encontrada entretanto ocasionalmente Poulantzas comete a imprudência de classificar desse modo os Estados absolutistas na sua obra aliás importante Pouvoir Politigue et Classes Sociales pp 16980 embora o seu enunciado seja vago e ambíguo O recente debate sobre o absolu tismo russo nos periódicos soviéticos de história revelou exemplos similares isolados em bora cronologicamente mais nuançados ver por exemplo A Ya Avrekh Russkii Ab soliutízm J evo Rol v Utverzhdeníe Kapitalizma v Rossii Istoria SSSR fevereiro de 1968 pp 83104 que considera o absolutismo o protótipo do Estado burguês p 92 Os pontos de vista de Avrekh foram intensamente criticados no debate que se seguiu e não podem ser tomados como típicos do teor geral da discussão 20 PERRY ANDERSON capaz de vergar ou disciplinar indivíduos ou grupos dentro da própria nobreza Assim como veremos o advento do absolutismo nunca foi para a própria classe dominante um suave processo de evolução ele foi marcado por rupturas e conflitos extremamente agudos no seio da aris tocracia feudal cujos interesses coletivos em última análise servia Ao mesmo tempo o complemento objetivo da concentração política de poder no topo da ordem social numa monarquia centralizada foi a consolidação econômica das unidades de propriedade feudal em sua base Com a expansão das relações mercantis a dissolução do nexo primário de exploração econômica e coerção políticolegal conduziu não apenas a uma crescente projeção desta última sobre o vértice régio do sistema social mas também a um fortalecimento compensatório dos títulos de propriedade que garantiam a primeira Em outras palavras com a reorganização de todo o sistema político feudal e com a diluição do primitivo sistema de feudo a propriedade da terra tendia a tornar se progressivamente menos condicional à medida que a soberania se tornava correspondentemente mais absoluta O enfraquecimento das concepções medievais de vassalagem atuava em ambos os sentidos ao mesmo tempo que conferia novos e extraordinários poderes à mo narquia emancipava os domínios da nobreza das restrições tradicio nais A propriedade agrária da nova época era silenciosamente alodia lizada para fazer uso de um termo que viria por sua vez a se tornar anacrônico num ambiente jurídico modificado Os membros indivi duais da classe aristocrática que perderam constantemente direitos políticos de representação na nova época registraram ganhos econô micos na propriedade como o reverso do mesmo processo histórico O efeito último desta redisposição geral do poder social da nobreza foi a máquina de Estado e a ordem jurídica do absolutismo cuja coordena ção iria aumentar a eficácia da dominação aristocrática ao sujeitar um campesinato nãoservil a novas formas de dependência e exploração Os Estados monárquicos da Renascença foram em primeiro lugar e acima de tudo instrumentos modernizados para a manutenção do do mínio da nobreza sobre as massas rurais Simultaneamente porém a aristocracia tinha que se adaptar a um segundo antagonista a burguesia mercantil que se desenvolvera nas cidades medievais Viuse que foi precisamente a intercalação desta terceira presença que impediu a nobreza ocidental de ajustar suas con tas com o campesinato à maneira oriental esmagando a sua resistência para agrilhoálo ao domínio A cidade medieval fora capaz de desen volverse porque a dispersão hierárquica de soberanias no modo de produção feudal libertara pela primeira vez as economias urbanas da LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 21 dominação direta de uma classe dirigente rural10 Neste sentido as ci dades nunca foram exógenas ao feudalismo no Ocidente como vimos com efeito a própria condição de sua existência era a singular desto talização da soberania no interior da ordem políticoeconômica do feudalismo Daí a elasticidade das cidades do Ocidente durante a pior crise do século XIV que levou temporariamente à bancarrota tantas das famílias patrícias das cidades do Mediterrâneo Os Bardi e os Pe ruzzi arruinaramse em Florença Siena e Barcelona entraram em de clínio mas Augsburgo Genebra ou Valência estavam justamente no início de sua ascensão Indústrias urbanas importantes como as do ferro papel e têxteis cresceram durante toda a depressão feudal à dis tância tal vitalidade econômica e social atuava como uma interferência constante e objetiva na luta de classes centrada na terra e bloqueava qualquer solução regressiva proposta pelos nobres Na verdade é signi ficativo que os anos decorridos entre 1450 e 1500 testemunhas do sur gimento dos pródromos das monarquias absolutistas no Ocidente te nham sido também aqueles em que foi superada a longa crise da eco nomia feudal através de uma recombinação dos fatores de produção onde pela primeira vez os avanços técnicos especificamente urbanos desempenharam o papel principal O feixe de invenções que coincide com a articulação da época medieval com a época moderna é por demais conhecido sendo desnecessário discutilo aqui A descoberta do processo seiger para separar a prata do minério de cobre reabriu as 10 O celebrado debate entre Sweezy e Dobb com contribuições de Takahashi Hilton e Hill em Science and Svcieiy permanece até hoje como a única abordagem sis temática das questões centrais da transição do feudalismo ao capitalismo Num aspecto importante contudo ele girou em torno de uma falsa questão Sweezy argumentou na esteira de Pirenne que a força motriz na transição foi um agente externo de disso lução os enclaves urbanos que destruíram a economia agrária feudal através da ex pansão do intercâmbio de mercadorias nas cidades Dobb replicou que o ímpeto para a transição deve ser localizado no seio das contradições da própria economia agrária que geraram a diferenciação social do campesinato e a ascensão do pequeno produtor Num ensaio posterior sobre o tema Vilar formulou explicitamente o problema da transição como sendo o de definir a combinação correta das transformações agrárias endógenas e comerciaisurbanas exógenas ao mesmo tempo que ele próprio enfatizava a impor tância da nova economia comercial atlântica no século XVI Problems in the Formation oíCpitalhmPastandPresent n 10 novembro de 1956 pp 334 Em um importante estudo recente The Relation between Town and Country in the Transition from Feuda lism to Capitalism não publicado John Merrington resolveu efetivamente esta anti nomia ao demonstrar a verdade básica de que o feudalismo europeu longe de se constituir numa economia exclusivamente agrária foi o primeiro modo de produção na história a conceder um lugar estrutural autônomo à produção e à troca urbanas O crescimento das cidades era nesse sentido um processo tão interno como a disso lução do domínio feudal no feudalismo da Europa ocidental 22 PERRY ANDERSON minas da Europa central e restabeleceu o fluxo de metais para a eco nomia internacional a produção de moeda da Europa central quintu plicou entre 1460 e 1530 O desenvolvimento do canhão de bronze fun dido fez da pólvora pela primeira vez a arma decisiva na arte da guerra tornando obsoletas as defesas dos castelos senhoriais A inven ção dos tipos móveis possibilitou o advento da imprensa A construção do galeão de três mastros com leme à popa tornou os oceanos nave gáveis facilitando as conquistas ultramarinas11 Todas estas rupturas técnicas que assentaram os alicerces da Renascença européia concen traramse na segunda metade do século XV e foi então que a depressão agrária secular foi finalmente sustada por volta de 1470 na Inglaterra e na França Foi precisamente nesta época que ocorreu uma súbita e simul tânea restauração da autoridade e da unidade políticas num país após outro Do abismo de agudo caos e turbulência medievais das Guerras das Duas Rosas da Guerra dos Cem Anos e da segunda Guerra Civil de Castela as primeiras novas monarquias ergueramse pratica mente ao mesmo tempo durante os reinados de Luís XI na França Fernando e Isabel na Espanha Henrique VII na Inglaterra e Maxi miliano na Áustria Assim quando os Estados absolutistas se consti tuíram no Ocidente a sua estrutura foi fundamentalmente determi nada pelo reagrupamento feudal contra o campesinato após a dissolu ção da servidão mas ela foi secundariamente sobredeterminada pela ascensão de uma burguesia urbana que depois de uma série de avan ços técnicos e comerciais evoluía agora em direção às manufaturas préindustriais numa escala considerável Foi este impacto secundário da burguesia urbana sobre as formas do Estado absolutista que Marx e Engels procuraram apreender com as noções incorretas de contra peso ou pedra angular Engels com efeito expressou a relação de forças real com bastante precisão em mais de uma passagem ao discu 11 Quanto aos canhões e galeões ver Cario Cipolla Guns and Sails in the Early Phase of European Expansion 14001700 Londres 1965 Com relação à imprensa as reflexões recentes mais audaciosas embora prejudicadas por uma monomania comum nos historiadores da tecnologia são as de Elizabeth L Eisenstein Some Conjectures about the Impact of Printing on Western Society and Thought a Preliminary Report Journal of Modem History marçodezembro de 1968 pp 156 e The Advent oí Printing and the Problem of the Renaissance Past and Present n 45 novembro de 1969 pp 1989 As invenções técnicas capitais desta época podem ser vistas em um certo aspecto como variações de um campo comum o das comunicações Elas se referem respectiva mente ao dinheiro à linguagem às viagens e à guerra mais tarde todas presentes entre os grandes temas filosóficos do iluminismo LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 23 tir as novas descobertas marítimas e as indústrias manufatureiras da Renascença escreveu que esta poderosa revolução nas condições da vida econômica da sociedade não foi seguida entretanto por qualquer mudança imediata correspondente em sua estrutura política A ordem política permaneceu feudal ao passo que a sociedade tornavase cada vez mais burguesa12 A ameaça da inquietação camponesa incontes tavelmente constitutiva do Estado absolutista sempre se conjugou assim com a pressão do capital mercantil ou manufatureiro no seio das economias ocidentais em seu conjunto moldando os contornos do po der de classe aristocrático na nova era A forma peculiar do Estado absolutista no Ocidente deriva desta dupla determinação As forças duais que produziram as novas monarquias da Eu ropa renascentista encontraram uma condensação jurídica única O ref l crescimento do direito romano um dos grandes movimentos cultu rais da época correspondeu ambiguamente às necessidades de ambas as classes sociais cuja posição e poder desiguais moldaram as estrutu ras do Estado absolutista no Ocidente O conhecimento renovado da jurisprudência romana remontava em si à Alta Idade Média O denso 12 AntiDühring Moscou 1947 p 126 ver também as pp 19697 onde fór mulas corretas e incorretas estão presentes Estas páginas são citadas por Hill em seu Comentário para absolver Engels dos equívocos da noção de equilíbrio Em geral é possível encontrar passagens tanto de Marx como de Engels onde o absolutismo é en tendido de forma mais adequada que nos textos analisados atrás Por exemplo no pró prio Manifesto Comunista há uma referência direta ao absolutismo feudal Selected Works p 56 ver também o artigo de Marx Die moralisierende K ri ti k und die krití sierende Moral de 1847 em Werke vol 4 pp 347 35253 Seria surpreendente se fosse de outro modo dado que a conseqüência lógica de se batizarem os Estados abso lutistas como burgueses ou semiburgueses seria negar a natureza e a realidade das pró prias revoluções burguesas da Europa ocidental Mas não restam dúvidas de que em meio a uma confusão recorrente a tendência principal de seus comentários ia no sentido da concepção do contrapeso com o seu deslizamento concomitante na direção da de pedra angular Não há necessidade de escondelo O imenso respeito intelectual e político que devemos a Marx e Engels é incompatível com qualquer complacência para com eles Os seus erros tantas vezes mais esclarecedores que as verdades de outros não devem ser eludidos mas localizados e superados E aqui é necessário fazer uma advertência adicional Há muito tem sido moda depreciar a contribuição relativa de Engels à criação do materialismo histórico Para aqueles que ainda se acham inclinados a aceitar esta difundida noção é preciso dizer tranqüila e escandalosamente os juízos históricos de Engels são quase sempre superiores aos de Marx Ele possuía um conheci mento mais profundo da história européia e uma compreensão mais segura de suas estru turas sucessivas e relevantes Não há nada em toda a obra de Engels que se compare às ilusões e preconceitos de que Marx era às vezes capaz neste campo como a fantasma górica História Diplomática Secreta do Século XVIII A supremacia da contribuição global de Marx à teoria geral do materiaüsmo histórico não precisa ser reiterada A esta tura atingida por Engels em seus estudos históricos é precisamente o que faz com que valha a pena chamar a atenção para seus erros específicos 24 PERRY ANDERSON crescimento do direito consuetudinário jamais deixou morrer comple tamente a memória e a prática do direito civil romano na península onde sua tradição era mais antiga a Itália Foi em Bolonha que Irne rius a luz do direito reiniciou o estudo sistemático dos códigos de Justiniano no início do século XII A escola dos Glosadores por ele fundada reconstituiu e classificou metodicamente o legado dos juristas romanos durante os cem anos seguintes A eles se seguiram nos séculos XIV e XV os Comentadores mais interessados na aplicação con temporânea das normas jurídicas romanas que na análise erudita de seus princípios teóricos e no processo de adaptação do direito romano às condições drasticamente modificadas da época eles ao mesmo tem po adulteraram a sua forma primitiva e a depuraram de seus conteúdos particularistas13 A própria infidelidade de suas transposições da juris prudência latina paradoxalmente universalizoua ao eliminar as amplas partes do direito civil romano estritamente relacionadas às con dições históricas da Antigüidade por exemplo naturalmente o seu tratamento exaustivo da escravidão14 Fora da Itália os conceitos jurí dicos romanos começaram a difundirse gradualmente a partir de sua redescoberta original do século XII No final da Idade Média nenhum país importante da Europa ocidental escapara a este processo Mas a assimilação decisiva do direito romano o seu triunfo jurídico ge neralizado teria lugar na época do Renascimento concomitante mente à vitória do absolutismo As razões históricas de seu profundo impacto foram de duas ordens e refletiram a natureza contraditória do próprio legado romano original Do ponto de vista econômico a recuperação e a introdução do direito civil clássico foram fundamentalmente propícias à expansão do livre capital na cidade e no campo pois a grande marca distintiva do direito civil romano fora a sua concepção de propriedade privada abso luta e incondicional A concepção clássica da propriedade quiritária virtualmente se perdera nas sombrias profundezas dos primórdios do 13 Ver H D Ha ze l tine Roman and Canon Law in the Middle Ages The Cambrídge Medieval History V Cambridge 1968 pp 73741 O classicismo renascen tista propriamente dito viria conseqüentemente a ser muito crítico em relação à obra dos Comentadores 14 Agora que este direito foi transposto para situações de fato inteiramente estranhas desconhecidas na Antigüidade a tarefa de construir a situação de um modo logicamente impecável tornase a tarefa quase exclusiva Deste modo essa concepção de direito que ainda hoje predomina e que vê no direito um complexo de normas logi camente coerente e sem lacunas à espera de ser aplicado1 tornouse a concepção deci siva do pensamento jurídico Weber Economy and Society II p 855 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 25 feudalismo Como vimos o modo de produção feudal definiase preci samente pelos princípios jurídicos da propriedade escalonada ou condicional complemento de sua soberania parcelada Tal estatuto de propriedade adaptavase bem à economia predominantemente natural que surgiu na Idade das Trevas entretanto nunca fora totalmente ade quado ao setor urbano que se desenvolvera na economia medieval As sim o ressurgimento do direito romano durante a Idade Média já re sultará em esforços jurídicos no sentido de endurecer e delimitar noções de propriedade inspiradas nos preceitos clássicos então disponí veis Uma dessas tentativas foi a criação no final do século XII da dis tinção entre dominium directum e dominium utile para justificar a existência de uma hierarquia de vassalagem e portanto de uma mul tiplicidade de direitos sobre a mesma terra15 Outra foi a noção tipica mente medieval de seisin uma concepção intermediária entre a pro priedade e a posse latinas que garantia uma propriedade protegida contra eventuais apropriações e reivindicações conflituosas embora mantendo o princípio feudal dos títulos múltiplos sobre o mesmo ob jeto o direito de seisin não era nem exclusivo nem perpétuolb O res surgimento pleno da idéia de propriedade privada absoluta da terra foi um produto do início da época moderna Foi apenas quando a produ ção e a troca de mercadorias atingiram níveis globais tanto na agri cultura quanto nas manufaturas iguais ou superiores aos da Anti güidade que os conceitos jurídicos criados para codificálos puderam ganhar influência outra vez A máxima superfícies solo cedit pro priedade única e incondicional da terra tornouse então pela se gunda vez um princípio operacional na propriedade agrária embora de modo algum dominante precisamente devido à difusão das rela ções mercantis no campo que iria definir a longa transição do feuda lismo ao capitalismo no Ocidente Nas próprias cidades desenvolve rãse espontaneamente um direito comercial relativamente avançado du rante a Idade Média No seio da economia urbana como vimos a troca de mercadorias atingira já na época medieval um considerável dina mismo e em certos aspectos importantes as suas formas de expressão 15 Ver a discussão desta questão em JP Lévy Histoire de Ia Propriété Paris 1972 pp 446 Um outro efeito secundário irônico dos esforços no sentido de uma nova clareza jurídica inspirados pelas pesquisas medievais dos códigos romanos foi com cer teza o aparecimento da definição dos servos comoglebae adscrípti 16 Sobre a importação do conceito de seisin verP Vinogradoff Roman Law in Mediaeval Europe Londres 1909 pp 747 86 956 Lévy Histoire de Ia Propriété pp 502 toS TTK 26 PERRY ANDERSON jurídica eram mais avançadas que os próprios precedentes romanos por exemplo o primitivo direito das sociedades e o direito marítimo Mas também aí faltava uma estrutura uniforme de teoria e processos jurídicos A superioridade do direito romano para a prática mercantil nas cidades residia assim não somente em suas bem definidas noções de propriedade absoluta mas nas suas tradições de eqüidade em seus critérios racionais de prova e na ênfase dada a uma magistratura pro fissional vantagens que os tribunais consuetudinários normalmente não ofereciam7 A assimilação do direito romano na Europa do Renas cimento foi assim um indício da difusão das relações capitalistas nas cidades e no campo economicamente ela correspondia aos interesses vitais da burguesia comercial e manufatureira Na Alemanha país onde o impacto do direito romano foi mais dramático desbancando repentinamente os tribunais locais na pátria do direito consuetudinário teutônico no final do século XV e século XVI o impulso inicial para sua adoção ocorreu nas cidades do sul e do oeste e penetrou pela base através da pressão dos litigantes urbanos em prol de um direito de ex pressão clara aplicado por magistrados profissionais18 Entretanto foi rapidamente adotado pelos príncipes alemães e aplicado em seus terri tórios numa escala ainda mais impressionante a serviço de finalidades muito diversas Politicamente o reflorescimento do direito romano respondia às exigências constitucionais dos Estados feudais reorganizados da época Com efeito não restam dúvidas de que na escala européia a determi nante primordial da adoção da jurisprudência romana reside na ten dência dos governos monárquicos à crescente centralização dos pode 17 Há ainda muito a investigar sobre a relação entre o primitivo direito medie val e o direito romano nas cidades O avanço relativo das normas jurídicas que regiam as operações de commendatio e o comércio marítimo na Idade Média não causa surpresa o mundo romano como vimos não conhecia sociedades empresariais e compreendia um Mediterrâneo unitário Por conseguinte não havia razão para que desenvolvesse qual quer deles Por outro lado o estudo precoce do direito romano nas cidades italianas sugere que aquilo que no Renascimento aparecia como prática contratual medieval bem pode ter sido muitas vezes originalmente informado por preceitos jurídicos deri vados da Antigüidade Vinogradoff tinha certeza de que o direito contratual romano exercera uma influência direta sobre os códigos comerciais da burguesia urbana durante a Idade Média Roman Law in Mediaeval Europe pp 7980 131 A propriedade imobi liária urbana com as suas burgage tenures posses urbanas esteve sempre mais pró xima das normas romanas do que a propriedade rural da Idade Média evidentemente 18 Wolfgang Kunkell The Reception of Roman Law in Germany an Inter pretation e Georg Dahm On the Reception of Roman and Italian Law in Germany in G Strauss Org PreReformation Germany Londres 1972 pp 271 2746 278 28492 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 27 rés Não custa recordar que o sistema jurídico romano compreendia dois setores distintos e aparentemente contrários o direito civil que regulamentava as transações econômicas entre os cidadãos e o direito público que regia as relações políticas entre o Estado e os seus súditos O primeiro constituía o jus o último a lex O caráter juridicamente incondicional da propriedade privada consagrado em um encontrava o seu equivalente contraditório na natureza formalmente absoluta da soberania imperial exercida pela outra pelo menos a partir do Domi nato Foram os princípios teóricos deste imperium político que exerce ram uma profunda influência e atração sobre as novas monarquias da Renascença Se o ressurgimento das noções de propriedade quiritária ao mesmo tempo traduzia e fomentava a expansão geral da troca de mer cadorias nas economias de transição da época o revivescimento das prerrogativas autoritárias do Dominato expressavam e consolidavam a concentração do poder de classe aristocrático num aparelho de Estado centralizado que constituía a reação da nobreza àquele processo O duplo movimento social inscrito nas estruturas do absolutismo do Oci dente encontrou então a sua harmonia jurídica na reintrodução do direito romano A famosa máxima de Ulpiano quod príncipi placuit legis habet vicem a vontade do príncipe tem força de lei tornouse um ideal constitucional das monarquias do Renascimento em todo o Ocidente19 A noção complementar de que os reis e os príncipes eram eles próprios legibus solutus isto é isentos de restrições legais anterio res proporcionaram os protocolos jurídicos para a supressão dos privi légios medievais ignorando os direitos tradicionais e subordinando as imunidades privadas Em outros termos à intensificação da propriedade privada na base contrapôsse o incremento da autoridade pública no topo corpo rificada no poder discricionário do monarca Os Estados absolutistas ocidentais fundamentavam seus novos objetivos em precedentes clássi cos o direito romano era a mais poderosa arma intelectual disponível para o seu programa característico de integração territorial e centra lismo administrativo Com efeito não foi por acidente que a única mo narquia medieval que alcançou completa emancipação de quaisquer restrições representativas ou corporativas tenha sido o papado pri meiro sistema político da Europa feudal a utilizar a jurisprudência ro mana em grande escala com a codificação do direito canonico nos sé culos XII e XIII A reivindicação papal deplenitudo potestatis no seio 19 Um ideal mas de modo algum o único veremos que a prática complexa do absolutismo esteve sempre muito distante da máxima de Ulpiano 28 PERRY ANDERSON da Igreja estabeleceu o precedente para as futuras pretensões dos prín cipes seculares com freqüência realizadas precisamente contra a exor bitância religiosa daquela Além disso da mesma forma que os juristas canônicos do papado essencialmente construíram e operaram os seus amplos controles administrativos sobre a Igreja os burocratas semipro fissionais versados no direito romano constituíramse nos principais funcionários executivos dos novos Estados monárquicos As monar quias absolutistas do Ocidente contaram com uma camada especiali zada de juristas para prover as suas máquinas administrativas os le trados na Espanha os maitres de requêtes na França os doctores na Alemanha Imbuídos das doutrinas romanas da autoridade decretai do príncipe e das noções romanas de normas jurídicas unitárias tais buro cr atasjuristas foram os zelosos executores do centralismo monárquico no primeiro século crítico de construção do Estado absolutista Mais do que qualquer outra força foi a chancela deste corpo internacional de juristas que romanizou os sistemas jurídicos da Europa ocidental na Renascença Efetivamente a transformação do direito refletia inevita velmente a distribuição de poder entre as classes proprietárias da épo ca o absolutismo enquanto aparelho de Estado reorganizado de domi nação da nobreza foi o principal arquiteto da assimilação do direito romano na Europa Mesmo aí como na Alemanha onde as cidades autônomas iniciaram o movimento foram os príncipes que se apossa ram dele e o puseram à prova e onde como na Inglaterra o poder monárquico falhou em impor o direito civil ele não ganhou raízes no meio urbano20 No processo sobredeterminado do revi vê sei men to ro mano coube à pressão política do Estado dinástico a primazia as de mandas de clareza monárquica predominaram sobre as de certeza mercantil21 O acréscimo em racionalidade formal ainda extrema 20 O direito romano nunca se naturalizou na Inglaterra em grande parte de vido à centralização precoce do Estado anglonormando cuja unidade administrativa tornou a monarquia inglesa relativamente indiferente às vantagens do direito civil du rante a sua difusão medieval ver os pertinentes comentários de N Cantor Mediaeval History Londres 1963 pp 34549 No início da época moderna as dinastias Tudor e Stuart introduziram novas instituições jurídicas similares às do direito civil Câmara Es trelada Tribunal da Marinha Tribunal do Lord Chanceler mas estas foram incapazes de prevalecer sobre as do direito comum após violentos conflitos entre as duas no início do século XVII a Revolução Inglesa de 1640 consolidou a vitória das últimas Para algumas reflexões sobre este processo ver W Holdsworth A History of English Law IV Londres 1924 pp 2845 21 Estas foram as duas expressões usadas por Weber para designar os interesses respectivos das duas forças que trabalharam pela romanização Assim enquanto as classes burguesas procuram obter certeza na administração da justiça o corpo de fun LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUT1STA 29 mente imperfeita e incompleta dos sistemas jurídicos dos primórdios da Europa moderna foi preponderantemente obra do absolutismo aris tocrático O efeito supremo da modernização jurídica foi portanto o refor çamento da dominação da classe feudal tradicional O paradoxo apa rente de tal fenômeno refletiuse em toda a estrutura das próprias mo narquias absolutistas combinações exóticas e híbridas cuja moder nidade superficial trai freqüentemente um arcaísmo subterrâneo Este traço aparece claramente a partir de uma análise das inovações insti tucionais que anunciaram e caracterizaram o seu aparecimento exér cito burocracia tributação comércio e diplomacia Vale considerálos sumariamente nesta ordem Temse salientado muitas vezes que o Es tado absolutista foi o pioneiro do exército profissional que com a revo lução militar introduzida em fins do século XVI e no século XVII por Maurício de Orange Gustavo Adolfo e Wallenstein treinamento da infantaria de linha pelos holandeses salva de cavalaria e sistema de pelotão pelos suecos comando vertical unitário pelos tchecos cres ceu enormemente em volume22 Os exércitos de Felipe II montavam a cerca de 60 mil homens enquanto cem anos mais tarde os de Luís XIV atingiam 300 mil Todavia tanto a forma como a função destas tropas divergiam imensamente daquelas que depois se tornariam caracterís ticas do Estado burguês moderno Não eram normalmente uma força nacional formada por recrutas mas uma massa heterogênea na qual os mercenários estrangeiros desempenhavam um papel constante e cen tral Tais mercenários eram em geral recrutados nas áreas exteriores ao perímetro das novas monarquias centralizadas com freqüência regiões montanhosas especializadas em fornecêlos os suíços foram os gur khas da primeira fase da Europa moderna Os exércitos francês ho landês espanhol austríaco ou inglês incluíam suábios albaneses suí ços irlandeses valáquios turcos húngaros ou italianos23 Com cer teza a mais óbvia razão para o fenômeno mercenário foi a natural cionários está geralmente interessado na clareza e na ordem do direito Ver a sua excelente análise emEconomy andSociety II pp 8478 22 Michael Roberts The Military Revolution 15601660 em Essays in Swe dish History Londres 1967 pp 195225 um texto básico Gustavus Adolphus A History ofSweden 16111632 Londres 1958 vol II pp 16989 Roberts talvez superes time ligeiramente o crescimento quantitativo dos exércitos nessa época Gurkhas soldados do Nepal que serviram no exército britânico N T 23 Victor Kíernan Foreign Mercenaries and Absolute Monarchy Past and Present n 11 abril de 1957 pp 6686 republicado em T Aston Org Crisis in Europe 15601660 Londres 1965 pp 11740 constitui uma incomparável abordagem do fenômeno mercenário à qual pouco se acrescentou desde então 30 PERRY ANDERSON recusa da nobreza em armar os seus próprios camponeses em larga escala É praticamente impossível treinar todos os súditos de uma comunidade nas artes da guerra e ao mesmo tempo mantêlos obedien tes às leis e aos magistrados confidenciava Jean Bodin Foi esta tal vez a principal razão pela qual Francisco I dissolveu em 1534 os sete regimentos cada um com 6 mil soldados de infantaria que criara em seu reinado24 Em contrapartida podiase contar com as tropas mer cenárias ignorantes da própria língua da população local para esma gar a rebelião social Os Landsknechten alemães ocuparamse dos le vantes camponeses de 1549 no East Anglian na Inglaterra enquanto os arcabuzeiros italianos asseguraram a liquidação da revolta rural no West Country os Guardas Suíços ajudaram a reprimir os guerrilheiros boulonnais e camisardos de 1662 e 1702 na França A importância vital dos mercenários já cada vez mais visível no final da Idade Média do País de Gales à Polônia não foi apenas um expediente temporário do absohitismo na aurora da sua existência ela o marcaria até a sua própria extinção no Ocidente No final do século XVIII mesmo após a introdução do recrutamento obrigatório nos principais países da Eu ropa até dois terços de um dado exército nacional podiam se com por de soldadesca estrangeira contratada25 O exemplo do absolutismo prussiano que ao mesmo tempo convidava e raptava efetivos fora de suas fronteiras através de leilões ou de envolvimento serve para lem brarnos de que não havia necessariamente uma distinção nítida entre os dois Simultaneamente entretanto a função destas novas e vastas aglomerações de soldados era também visivelmente distinta daquela dos futuros exércitos capitalistas Não se dispõe até hoje de uma teoria marxista das variáveis funções sociais da guerra nos diferentes modos de produção Não é este o lugar para aprofundar o assunto No en tanto podese defender que a guerra era possivelmente o mais racional e rápido modo de expansão da extração de excedentes ao alcance de qualquer classe dominante sob o feudalismo A produtividade agrícola como vimos não foi de forma alguma estagnada durante a Idade Média como tampouco o foi o volume de comércio Mas ambos cres ceram bastante vagarosamente para os senhores em comparação com os súbitos e maciços rendimentos propiciados pelas conquistas terri toriais entre as quais as invasões normandas da Inglaterra e da Sicília 24 Jean Bodin Lês Six Livres de Ia Republique Paris 1578 p 669 25 Walter Dom CompetitionforEmpire Nova Iorque 1940 p 83 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 31 a captura de Nápoles pelos angevinos ou a conquista castelhana da Andaluzia constituiriam apenas os exemplos mais espetaculares Ê lógico portanto que a definição social da classe dominante feudal fosse militar A racionalidade econômica da guerra numa tal formação social é específica ela é uma maximização da riqueza cujo papel não se pode comparar ao que desempenha nas formas desenvolvidas do modo de produção subseqüente dominado pelo ritmo básico da acumulação de capital e pela transformação constante e universal Marx dos fundamentos econômicos de todas as formações sociais A nobreza era uma classe de proprietários de terra cuja profissão era a guerra a sua vocação social não era um acréscimo exterior mas uma função intrín seca de sua posição econômica O meio normal da competição inter capitalista é econômico e sua estrutura é tipicamente aditiva ambas as partes rivais podem expandirse e prosperar embora de forma desi gual ao longo de uma única confrontação porque a produção de mercadorias manufaturadas é intrinsecamente ilimitada O meio típico da rivalidade interfeudal ao contrário era militar e a sua estrutura era sempre potencialmente a do conflito de somazero do campo de bata lha através do qual perdiamse ou se conquistavam quantidades fixas de terra Porque a terra é um monopólio natural não pode ser indefi nidamente estendida apenas redividida O objeto explícito da domi nação da nobreza era o território independentemente da população que o habitava A terra como tal não a língua definia os perímetros naturais de seu poder A classe dominante feudal era portanto essen cialmente móvel num sentido em que uma classe dominante capitalista nunca o seria O próprio capital é par excellence internacionalmente móvel permitindo desse modo aos seus detentores fixaremse num plano nacional a terra é nacionalmente imóvel e os nobres tinham que viajar para tomar posse dela Assim um determinado baronato ou uma dinastia podiam transferir sem transtornos a sua residência de uma ponta para outra do continente As linhagens angevinas podiam gover nar indiferentemente na Hungria na Inglaterra ou em Nápoles as nor mandas na Antióquia na Sicília ou na Inglaterra as borgonhesas em Portugal ou na Zelândia as luxemburguesas na Renânia ou na Boê mia as flamengas no Artois ou em Bizâncío as dos Habsburgos na Áustria nos Países Baixos ou na Espanha Nestas várias terras não era necessário que os senhores e os camponeses compartilhassem de um mesmo idioma Os territórios públicos formavam um continuum com os domínios privados e o instrumento clássico para a sua aquisição era a força invariavelmente disfarçada com protestos de legitimidade reli giosa ou genealógica A guerra não era o esporte dos príncipes era a 32 PERRY ANDERSON sua sina Acima da diversidade finita das inclinações e personalidades individuais ela os chamava inexoravelmente como uma necessidade social da sua condição Para Maquiavel tal como ele via a Europa do início do século XVI a norma que lhes regia a existência era uma ver dade tão óbvia e incontestável como o céu acima de suas cabeças Um príncipe não deve portanto ter outro pensamento ou objetivo senão a guerra nem adquirir perícia em outra coisa que não seja a guerra a sua organização e disciplina porque a guerra é a única arte própria dos governantes6 Os Estados absolutistas refletiam esta racionalidade arcaica na sua mais íntima estrutura Eram máquinas construídas predominante mente para o campo de batalha É significativo que o primeiro imposto nacional e regular a ser instituído na França a taitte royale tenha sido criado para financiar as primeiras unidades militares regulares da Eu ropa as compagnies dordonnance de meados do século XV cuja primeira unidade foi constituída por aventureiros escoceses Por volta da metade do século XVI 80 por cento das rendas do Estado espanhol destinavase às despesas militares Vicens Vives pôde escrever que o impulso em direção ao tipo moderno de monarquia administrativa teve início na Europa ocidental com as grandes operações navais de Carlos V contra os turcos no Mediterrâneo ocidental a partir de 153527 Em meados do século XVII as despesas anuais dos principados do conti nente da Suécia ao Piemonte eram por toda a parte predominante e cansativamente dedicadas à preparação ou à condução da guerra agora imensamente mais custosa que na Renascença Um século mais tarde nas vésperas pacíficas de 1789 dois terços dos gastos do Estado francês eram ainda segundo Necker distribuídos para o sistema mili tar Parece evidente que esta morfologia do Estado não corresponde à racionalidade capitalista representa uma reminiscência formidável das funções medievais da guerra Tampouco foram preteridos os grandio sos aparatos militares do Estado feudal em sua última fase A virtual permanência do conflito armado internacional é uma das marcas re gistradas do clima geral do absolutismo A paz era uma exceção me teorológica nos séculos de seu predomínio no Ocidente Temse calcu lado que em todo o século XVI houve apenas 25 anos sem operações 26 Niccolò Machiavelli Príncipe e Discorsi Milão 1960 p 62 27 J Vicens Vives Estructura Administrativa Estatal en los Siglos XVI e XVII Xlème Congrès International dês Sciences Historiques Rapports IV Goteborg 1960 republicado agora em Vicens Vives Cojuntura Econômica y Reformismo Burguês Barcelona 1968 p 116 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 33 militares de larga escala na Europa28 no século XVII passaramse apenas sete anos sem guerras importantes entre Estados29 Tais calendá rios são estranhos ao capital embora como veremos este tenha even tualmente contribuído para eles O sistema fiscal e burocrático civil característico do Estado abso lutista não era menos paradoxal Parecia representar uma transição à administração r acionailegal de Weber em contraste com a selva de dependências particularistas da Alta Idade Média Todavia ao mesmo tempo a burocracia da Renascença era tratada como propriedade ven dável a indivíduos privados uma confusão central de duas ordens que o Estado burguês sempre distinguiu Assim o modo predominante de integração da nobreza feudal ao Estado absolutista no Ocidente assu miu a forma de aquisição de cargos0 Aquele que adquirisse por via privada uma posição no aparelho público do Estado poderia depois se ressarcir do gasto através do abuso dos privilégios e da corrupção sis tema de gratificações em uma espécie de caricatura monetarizada da investidura num feudo Com efeito o marquês dei Vasto governador espanhol de Milão em 1544 podia solicitar aositalianos detentores de cargos daquela cidade que pusessem as suas fortunas à disposição de Carlos V em sua hora de crise depois da derrota de Ceresole numa cópia exata das tradições feudais31 Tais funcionários que prolifera vam na França Itália Espanha GrãBretanha e Holanda poderiam contar com a realização de lucros de 300 a 400 por cento e talvez muito mais sobre a sua aquisição O sistema nasceu no século XVI e tornou se um esteio financeiro fundamental dos Estados absolutistas durante o século XVII O seu caráter flagrantemente parasitário é evidente em situações extremas a França durante a década de 1630 por exemplo poderia custar ao orçamento real em desembolsos via o arrendamento da coleta ou as isenções o mesmo que fornecia em remunerações A expansão da venda de cargos foi naturalmente um dos subprodutos mais surpreendentes da crescente monetarização das primeiras econo 28 R Ehrenberg Das Zeitalter der Fttgger lena 19221 p 13 29 G N Clark The Seventeenth Century Londres 1947 p 98 Ehrenberg com uma delimitação ligeiramente diversa fornece uma estimativa um pouco mais baixa 21 anos 30 A melhor abordagem deste fenômeno internacional é a de K W Swart Sale afOffíces in the Seventeenth Century Haia 1949 dos estudos nacionais o mais abran gente é de Roland Mousnier La Venaliíé dês Offices sous Henry IV et Louis XIII Ruão sd 31 Federico Chabod Scritti sul Rinascimento Turim 1967 p 617 Os funcio nários milaneses recusaram o pedido de seu governador mas os seus homólogos em outros lugares podem não ter sido tão resolutos 34 PERRY ANDERSON mias modernas e dascensão relativa no seio destas da burguesia mer cantil e manufatureira Não obstante em reforço ao que se disse a própria integração desta no aparelho de Estado através da aquisição privada e da herança de posições e honras públicas marcou a sua assi milação subordinada a uma organização política feudal na qual a no breza constituía sempre necessariamente o topo da hierarquia social Os officiers dos parlements franceses que jogavam com o republica nismo municipal e patrocinaram as mazarinadas nos anos de 1650 vieram a tornarse o baluarte mais obstinado da reação aristocrática na década de 1780 A burocracia absolutista tanto registrou a ascensão do capital mercantil como a impediu Se a venda de cargos era um meio indireto de aumentar os ren dimentos provenientes da nobreza e da burguesia mercantil em termos vantajosos para elas o Estado absolutista também e acima de tudo tributava evidentemente os pobres A transição econômica das obri gações em trabalho para as rendas em dinheiro no Ocidente foi acompanhada pelo surgimento dos impostos régios lançados para a guerra os quais na longa crise feudal do fim da Idade Média tinham sido um dos principais motivos dos desesperados levantes camponeses da época Uma cadeia de revoltas camponesas voltadas claramente contra a cobrança de impostos explodiu em toda a Europa Pouco havia a escolher entre os forrageadores e os exércitos amigos ou inimi gos uns levavam tanto como os outros Então apareciam os coletores de impostos e varriam o que podiam encontrar E por último os se nhores recuperavam de seus homens as quantias de ajuda que eles próprios eram obrigados a pagar para seu soberano Não há dúvida de que de todos os males que os afligiam os camponeses suportavam mais penosamente e com menos paciência os encargos de guerra e os impostos remotos32 Quase por toda a parte o peso esmagador dos impostos taüle egabelle na França ou servidos na Espanha re caía sobre os pobres Não existia a concepção jurídica do cidadão su jeito ao fisco pelo simples fato de pertencer à nação Na prática a classe senhoria estava em toda a parte efetivamente isenta de impos tos diretos Assim Porshnev denominou corretamente as novas taxas impostas pelos Estados absolutistas de renda feudal centralizada em oposição às obrigações senhoriais que constituíam a renda feudal local33 tal sistema duplo de exações conduziu a uma angustiada epi 32 Dudy Rural Economy and Country Life in lhe Mediaeval West p 333 33 B F Porshnev Lês Soulèvements Populaires en France de 1623 à 1648 Paris 1965 pp 3956 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 35 demia de rebeliões dos pobres na França do século XVII onde os no bres das províncias freqüentemente jogavam os seus próprios campo neses contra os coletores de impostos para melhor poderem extorquir lhes seus tributos locais Os funcionários do fisco tinham que ser guar dados por unidades de fuzileiros a fim de estarem aptos a desempenhar as suas funções nas zonas rurais reencarnações de tipo moderno da unidade imediata da coerção políticolegal com a exploração econô mica constitutiva do modo de produção feudal As funções econômicas do absolutismo não se esgotavam entre tanto no seu sistema tributário e de funcionalismo O mercantilismo foi a doutrina dominante da época e apresenta a mesma ambigüidade da burocracia destinada a impôlo com a mesma regressão subjacente a um protótipo anterior O mercantilismo requeria indubitavelmente a supressão de barreiras particularistas no interior da monarquia na cional e empenhavase em criar um mercado interno unificado para a produção de mercadorias Com o objetivo de aumentar o poder do Es tado diante dos outros Estados encorajava a exportação de mercado rias ao mesmo tempo que proibia exportações de ouro e prata e de moeda na crença de que existia uma quantidade fixa de comércio e riqueza no mundo Na famosa frase de Hecksher O Estado era o sujeito e o objeto da política econômica mercantilista 4 Na França as suas criações características foram as manufaturas reais e as corpora ções regulamentadas pelo Estado na Inglaterra as companhias privi legiadas A linhagem medieval e corporativa das primeiras dispensa comentários a reveladora fusão da ordem econômica com a política nas últimas era motivo de escândalo para Adam Smith Com efeito o mercantilismo representava as concepções de uma classe dominante 34 Hecksher defendeu que o objetivo do mercantilismo era aumentar o poder do Estado mais do que a riqueza das nações e isto significava uma subordinação das considerações de fartura às considerações de poder para usar as expressões de Bacon com base nisso Bacon louvava Henrique VII por ter limitado as importações de vinho aos navios ingleses Numa réplica vigorosa Viner não teve dificuldades em mos trar que a maior parte dos teóricos mercan ti listas conferiam ao contrário igual impor tância a ambos e acreditavam que os dois eram compatíveis Power versus Plenty as Objectives of Foreign Policy in the 17th and 18th Centuries World Politics l n I 1948 republicado em D C Coleman Org Revisions in Mercantilism Londres 1969 pp 6191 Ao mesmo tempo Viner subestimava claramente a diferença entre a teoria e a prática mercantilistas e as do laissezfaire que se seguiram Na verdade tanto Hecksher como Viner de maneiras diferentes deixaram passar o ponto essencial que é o da indis linção entre economia e sistema político na época de transição que gerou as teorias mer cantilistas Discutir qual dos dois teve primazia sobre o outro constitui um anacro nismo porque não havia na práticauma separação tão rígida entre eles até o advento do laissezfaire 36 PERRY ANDERSON feudal que se adaptara a um mercado integrado e preservara ainda a sua perspectiva essencial na unidade do que Francis Bacon denominou considerações de fartura e considerações de poder As doutrinas burguesas clássicas do laissezfaire com a sua rigorosa separação for mal entre os sistemas político e econômico viriam a constituir o seu antípoda O mercantilismo era precisamente uma teoria da intervenção coerente do Estado político no funcionamento da economia no inte resse comum da prosperidade de uma e do poder do outro Logica mente enquanto o laissezfaire era coerentemente pacifista1 insis tindo nos benefícios da paz entre as nações para o fomento do comércio internacional mutuamente lucrativo a teoria mercantilista Montchré tien Bodin era fortemente belicista enfatizando a necessidade e a rentabilidade da guerra35 E viceversa o objetivo de uma economia forte era a realização exitosa de uma política externa voltada para a conquista Colbert dizia a Luís XIV que as manufaturas reais eram os seus regimentos econômicos e as corporações os seus exércitos de re serva Este expoente máximo do mercantilismo que restaurou as fi nanças do Estado francês em dez miraculosos anos de intendência lançou assim seu soberano na fatídica invasão da Holanda em 1672 com este significativo conselho Se o rei submetesse todas as Provín cias Unidas à sua autoridade o comércio delas tornarseia o comércio dos súditos de sua majestade e nada mais haveria a reclamar0 Qua tro décadas de conflito europeu iriam seguirse a esta amostra de racio cínio econômico que capta perfeitamente a lógica social da agressão absolutista e dó mercantilismo predatório o comércio dos holandeses tratado como o território dos anglosaxões ou os domínios dos mouros um objeto físico a ser tomado e usufruído pela força militar como modo natural de apropriação e possuído permanentemente daí em diante A ilusão de ótica deste juízo particular não lhe retira a repre sentatividade era com esses olhos que os Estados absolutistas se con templavam As teorias mercantilistas da riqueza e da guerra estavam na verdade conceitualmente interligadas o modelo de comércio mun dial de somazero que inspirava seu protecionismo econômico deri vouse do modelo de política internacional de somazero inerente ao seubelicismo O comércio e a guerra não eram evidentemente as únicas ativi 35 E Silberner La Guerre dans Ia Penses Economique du XVIe au XVIIIe Siècle Paris 1939 pp 7122 36 Pierre Goubert LouisXJVet Víngt Millions de Français Paris 1966 p 95 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 37 dades externas do Estado absolutista no Ocidente O seu outro grande esforço era investir na diplomacia Esta foi uma das grandes invenções institucionais da época inaugurada na área miniatural da Itália do século XV institucionalizada aí com a Paz de Lodi e adotada na Espa nha França Inglaterra Alemanha e em toda a Europa durante o sé culo XVI A diplomacia foi com efeito a indelével marca de nascença do Estado renascentista com o seu surgimento nasceu na Europa um sistema política internacional no qual havia uma perpétua sondagem dos pontos fracos do meio ambiente de um Estado ou dos perigos pro venientes de outros Estados7 A Europa medieval nunca fora com posta por um conjunto claramente demarcado de unidades políticas homogêneas um sistema estatal internacional O seu mapa político compunhase de inextricáveis sobreposições e emaranhados onde ins tâncias jurídicas diversas se achavam geograficamente entretecidas e estratificadas e onde proliferavam múltiplas vassalagens suseranias assimétricas e enclaves irregulares38 Neste intrincado labirinto não havia possibilidade de surgimento de um sistema diplomático formal porque não havia uniformidade ou equivalência dos parceiros O con ceito de uma cristandade latina à qual pertenceriam todos os homens fornecia uma matriz ideológica universalista para os conflitos e deci sões reverso da extrema heterogeneidade particularista das próprias unidades políticas Desse modo as embaixadas eram viagens de cortesia esporádicas e nãoremuneradas que podiam ser trocadas tanto por vassalos ou subvassalos dentro de um dado território como entre príncipes de dois territórios ou entre um príncipe e seu suserano A contração da pirâmide feudal nas novas monarquias centralizadas da 37 B F Porshnev Lês Rapports Politiques de 1Europe Occidentale et de 1Europe Orientale à 1Êpoque de Ia Guerre de Trente Ans Xle Congrès Internacional dês Sciences Historiques Upsala 1960 p 161 uma incursão extremamente especulativa na Guerra dos Trinta Anos bom exemplo dos pontos fortes e das debilidades de Porsh nev Ao contrário das insinuações de seus colegas ocidentais não é um rigido dogmu tismo o que constitui a sua falha mais importante mas uma excessiva ingenuidade nem sempre adequadamente refreada pela disciplina da prova no entanto sob outro aspecto é esse mesmo traço que faz dele um historiador imaginativo e original São bem concebidas as breves sugestões do final de seu ensaio sobre o conceito de um sistema político internacional 38 Engels apreciava citar o exemplo da Borgonha Carlos o Temerário por exemplo era vassalo do imperador por uma parte de suas terras e vassalo do rei francês por outra por outro lado o rei da França seu suserano era ao mesmo tempo vassalo de Carlos o Temerário seu próprio vassalo quanto a certas regiões Ver seu importante manuscrito postumamente intitulado Uber den Verfall dês Feudalismus und das Auf kommen derBourgeoisie em Werke vol 21 p 396 38 PERRY ANDERSON Europa renascentista produziu pela primeira vez um sistema formali zado de pressão e intercâmbio entre Estados com o estabelecimento das novas instituições das embaixadas fixas e recíprocas no exterior chancelarias permanentes para as relações exteriores e comunicações e relatórios diplomáticos secretos amparados pelo recente conceito de extraterritorialidade9 O espírito resolutamente secular de egoísmo político que a partir de então inspirou a prática da diplomacia en controu límpida expressão em Ermolao Bárbaro o embaixador vene ziano que foi o seu primeiro teórico O primeiro dever de um embai xador é exatamente o mesmo de qualquer outro servidor de um go verno isto é fazer dizer aconselhar e pensar aquilo que possa melhor servir à preservação e ao engrandecimento de seu próprio Estado No entanto tais instrumentos da diplomacia embaixadores ou secretários de Estado não eram as armas de um moderno Estado na cional Enquanto tais as concepções ideológicas de nacionalismo eram estranhas à natureza mais íntima do absolutismo Os Estados monárquicos da nova era não desdenhavam a mobilização dos senti mentos patrióticos em seus súditos nos conflitos políticos e militares que a todo momento opunham reciprocamente os vários reinos da Europa ocidental Mas a existência difusa de um protonacionalismo popular na Inglaterra Tudor na França Bourbon ou na Espanha Habsburgo era basicamente um indício da presença burguesa no seio do sistema polí tico sempre manipulado pelos próceres ou soberanos ao invés de dominálos A auréola nacional do absolutismo no Ocidente freqüen temente muito acentuada na aparência Elizabete I Luís XIV era na realidade contingente e emprestada As normas dominantes da época situavamse em outro lugar A instância última de legitimidade era a dinastia não o território O Estado era concebido como o patrimônio do monarca e portanto os títulos de propriedade dele poderiam ser obtidos por uma união de pessoas felix Áustria O supremo estrata gema da diplomacia era assim o casamento espelho pacífico da guerra que tantas vezes a provocou Menos dispendiosa como acesso 39 Para o conjunto dessa evolução da nova diplomacia na primeira fase da Eu ropa moderna ver a grande obra de Garrett Mattingly Renaissance Diplomacy Lon dres l9SSpassim A citação de Bárbaro é mencionada na p 109 40 Evidentemente as próprias massas rurais e urbanas manifestavam formas espontâneas de xenofobia mas esta reação negativa tradicional às comunidades estran geiras era bastante distinta da identificação nacional positiva que começou a aparecer nos meios burgueses cultos no início da época moderna A fusão das duas poderia em situações de crise gerar explosões patrióticas na base de caráter incontrolável e sedi cioso os Comuneros na Espanha ou a Liga na França LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 39 para a expansão territorial que a agressão armada a manobra matri monial proporcionava resultados imediatos menores em geral apenas após uma geração e estava sujeita por conseguinte aos acasos impre visíveis da mortalidade no intervalo entre a consumação de um pacto nupcial e a sua fruição política Em vista disso a longa variante do casamento muitas vezes levava diretamente ao curto atalho da guerra A história do absolutismo está repleta de tais conflitos cujos nomes o testificam Guerras da Sucessão da Espanha Áustria ou da Baviera O seu resultado na verdade podia acentuar a flutuação de dinastias sobre os territórios que as ocasionara Paris podia ser derrotada no ruinoso conflito militar sobre a sucessão espanhola a casa de Bourbon herdaria Madri Também na diplomacia o índice de dominação feudal no Estado absolutista é evidente Imensamente ampliado e reorganizado o Estado feudal absolu tista era no entanto contínua e profundamente sob ré determina do pela expansão do capitalismo no seio das formações sociais compósitas do período moderno inicial Tais formações eram naturalmente uma combinação de diferentes modos de produção sob a dominância em declínio de um deles o feudalismo Todas as estruturas do Estado absolutista revelam portanto a influência à distância da nova econo mia em ação no quadro de um sistema mais antigo proliferavam as capitalizações híbridas de formas feudais cuja própria perversão das instituições futuras exército burocracia diplomacia comércio constituía uma apropriação de objetos sociais passados para repro duzilos No entanto as premonições de uma nova ordem social aí conti das não eram uma falsa promessa A burguesia no Ocidente já era forte o bastante para deixar a sua marca indistinta no Estado sob o abso lutismo Com efeito o paradoxo aparente do absolutismo na Europa ocidental era que ele representava fundamentalmente um aparelho para a proteção da propriedade e dos privilégios aristocráticos em bora ao mesmo tempo os meios através dos quais tal proteção era promovida pudessem simultaneamente assegurar os interesses básicos das classes mercantis e manufatureiras emergentes O Estado absolu tista centralizou crescentemente o poder político e esforçouse por criar sistemas jurídicos mais uniformes as campanhas de Richelieu contra os redutos huguenotes na França foram exemplos típicos Aboliu um grande número de barreiras internas ao comércio e patrocinou tarifas externas contra os concorrentes estrangeiros as medidas de Pombal no Portugal iluminista constituem um drástico exemplo Proporcionou ao capital usurário investimentos lucrativos ainda que arriscados nas fi 40 PERRY ANDERSON nanças públicas os banqueiros de Augsburgo no século XVI e os oli garcas genoveses no século XVII puderam fazer fortunas com os seus empréstimos ao Estado espanhol Mobilizou a propriedade rural por meio do confisco das terras eclesiásticas dissolução dos mosteiros na Inglaterra Propiciou rendimentos em sinecuras à burocracia a pau lette na França estabeleceu a posse estável delas Patrocinou em preendimentos coloniais e companhias de comércio ao mar Branco às Antilhas à baía de Hudson à Luisiana Em outras palavras cumpriu certas funções parciais na acumulação primitiva necessária ao triunfo ulterior do próprio modo capitalista de produção As razões que lhe permitiram desempenhar este papel dual residem na natureza espe cífica do capital mercantil ou manufatureiro já que nenhum deles as sentava na produção de massa característica da indústria mecanizada propriamente dita não exigiam por si uma ruptura radical com a ordem agrária feudal que ainda englobava a ampla maioria da popu lação o futuro mercado de trabalho e de consumo do capitalismo in dustrial Em outros termos podiam desenvolverse dentro dos limites estabelecidos no quadro do feudalismo reorganizado O que não quer dizer que o faziam em toda parte em conjunturas específicas conflitos políticos religiosos ou econômicos podiam converterse em explosões revolucionárias contra o absolutismo após um certo período de matu ração Entretanto sempre havia um campo de compatibilidade poten cial nesta fase entre a natureza e o programa do Estado absolutista e as operações do capital mercantil e manufatureiro Na competição in ternacional entre as várias nobrezas que produzia o estado de guerra endêmico daquela época o volume do setor de mercadorias no seio de cada patrimônio nacional era sempre de importância crítica para a sua força militar e política relativa Toda monarquia tinha interesse portanto em concentrar tesouros e em incentivar o comércio sob a sua própria bandeira na luta contra os seus rivais Daí o caráter progres sista que os historiadores subseqüentes tantas vezes conferiram às po líticas oficiais do absolutismo A centralização econômica o protecio nismo e a expansão ultramarina engrandeceram o Estado feudal tar dio ao mesmo tempo que beneficiaram a burguesia emergente Expan diram os rendimentos tributáveis de um fornecendo oportunidades comerciais à outra As máximas circulares do mercantilismo procla madas pelo Estado absolutista deram expressão eloqüente a esta coin cidência provisória de interesses Com bastante propriedade foi o du que de Choiseul quem declarou nas últimas décadas do ancien regime no Ocidente Da armada dependem as colônias das colônias o co mércio do comércio a capacidade de um Estado manter exércitos nu LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 41 merosos expandir sua população e tornar possíveis as mais gloriosas e úteis empresas41 No entanto como o indica a cadência final de gloriosas e úteis o caráter irredutivelmente feudal do absolutismo permanecia Era um Estado fundamentado na supremacia social da aristocracia e confinado aos imperativos da propriedade fundiária A nobreza podia confiar o poder à monarquia e permitir o enriquecimento da burguesia as mas sas estariam ainda à sua mercê Nunca ocorreu nenhuma derrogação política da classe nobre no Estado absolutista O seu caráter feudal acabava constantemente por frustrar ou falsificar as suas promessas ao capital Os Fuggers acabaram por ser arruinados pelas bancarrotas dos Habsburgo os nobres ingleses se apropriaram da maior parte das ter ras dos mosteiros Luís XIV destruiu os benefícios da obra de Richelieu ao revogar o Édito de Nantes os mercadores de Londres foram espo liados pelo projeto Cockayne Portugal reverteu ao sistema Methuen após a morte de Pombal e os especuladores parisienses foram defrau dados pela lei Exército burocracia diplomacia e dinastia continua ram a ser um complexo feudal fortalecido que governava o conjunto da máquina de Estado e guiava os seus destinos O domínio do Estado absolutista era o da nobreza feudal na época de transição para o capi talismo O seu fim assinalaria a crise do poder de sua classe o advento das revoluções burguesas e a emergência do Estado capitalista 41 Citado por Geralde Graham The Politics of Naval Supremacy Cambridge 1965 p17 Classe e Estado problemas de periodização O complexo institucional característico do Estado absolutista no Ocidente está agora delineado Resta esboçar muito brevemente al guns aspectos da trajetória desta forma histórica que sofreu como é natural modificações significativas nos três séculos ou mais de sua existência Ao mesmo tempo é preciso fazer referência à relação entre a nobreza e o absolutismo pois nada seria menos justificado do que pressupor que esta não apresentou problemas pautandose desde o início por uma harmonia natural Ao contrário podese sustentar que a periodização real do absolutismo no Ocidente encontrase no fundo precisamente na relação em transformação da nobreza com a monar quia e nas múltiplas modificações políticas subordinadas a ela rela cionadas De todo modo serão apresentadas abaixo uma periodização provisória do Estado e uma tentativa de traçar as relações entre este e a classe dominante As monarquias medievais como vimos eram uma combinação instável de suseranos feudais e reis ungidos As extraordinárias prerro gativas reais desta última função constituíam com certeza um contra peso necessário à fraqueza e às limitações estruturais dos primeiros a contradição entre esses dois princípios alternativos de realeza confi gurava a tensão central do Estado feudal na Idade Média O papel do suserano feudal no topo de uma hierarquia de vassalagem era em úl tima análise a componente dominante deste modelo monárquico como a luz retrospectiva lançada sobre ele pela estrutura contrastante do absolutismo viria a demonstrar Tal papel impôs limites muito es LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 43 treitos à base econômica da monarquia no início do período medieval Com efeito o governante feudal daquela época tinha que angariar seus rendimentos essencialmente nas suas próprias propriedades na sua qualidade de senhor de terra particular As prestações originárias de seus domínios seriam recebidas inicialmente em espécie e depois pro gressivamente em dinheiro1 Ao lado desta receita ele gozaria nor malmente de certos privilégios financeiros advindos de seu senhorio territorial sobretudo incidências feudais e auxílios especiais de seus vassalos ligados à investidura em seus feudos além dos tributos senhoriais cobrados nos mercados e nas rotas de comércio das contri buições de emergência da Igreja e dos rendimentos da justiça real sob a forma de multas e confiscos Naturalmente essas formas fragmen tadas e restritas de rendimentos logo se mostraram inadequadas mes mo para os exíguos deveres governamentais característicos da organi zação política medieval Podiase recorrer certamente ao crédito de banqueiros e comerciantes das cidades que controlavam reservas rela tivamente amplas de capital líquido este foi o primeiro e o mais difun dido expediente dos monarcas feudais confrontados com a escassez de receitas para a condução dos negócios do Estado Mas o empréstimo apenas postergava o problema desde que os banqueiros exigiam em geral garantias seguras sobre as receitas reais futuras em troca de seus empréstimos Assim a necessidade premente e permanente de adquirir somas substanciais fora da gama de seus rendimentos tradicionais levou vir tualmente todas as monarquias medievais a convocarem de tempos em tempos os Estados de seu reino a fim de elevarem os impostos Tais Estados adquiriram freqüência e relevância cada vez mais crescentes a partir do século XIII na Europa ocidental quando as tarefas do governo feudal tornaramse mais complexas e o volume financeiro ne las mobilizado tornouse correspondentemente mais exigente Em ne 1 A monarquia sueca já bem avançada a época moderna recebia efetivamente a maior parte de seus rendimentos em espécie tanto em obrigações como em impostos 2 Faz muita falta um estudo abrangente sobre os Estados medievais na Europa Atualmente a única obra com alguma informação internacional subsidiária parece ser a de Antônio Marongiu Parlamento in Itália nel Médio Evo e nettEtà Moderna Con tributo alia Storia delle istituzioni Parlamentari dellEuropa Occidentale Milão 1962 traduzida recentemente para o inglês e de um modo um tanto equivocado como Me dieval Parliaments a Comparative Study Londres 1968 Na verdade o livro de Maron giu como indica seu título original preocupase essencialmente com a Itália a única região na Europa onde os Estados estiveram ausentes ou tiveram relativamente pouca importância As suas breves passagens sobre outros países França Inglaterra ou Espa 44 PERRY ANDERSON nhuma parte elas adquiriram uma base regular de convocação inde pendente da vontade do governante e portanto a sua periodicidade variava enormemente de país para país e no interior de um mesmo país No entanto tais instituições não devem ser vistas como desenvol vimentos contingentes ou extrínsecos no corpo político medieval Ao contrário elas constituíram um mecanismo intermitente que era conse qüência inevitável da própria estrutura do Estado feudal inicial Preci samente porque a ordem econômica e a ordem política se fundiam numa cadeia de obrigações e deveres pessoais nunca existiu uma base legal para a tributação econômica geral por parte do monarca fora da hierarquia de soberanias intermediárias Com efeito é notável que a própria idéia de tributação universal tão fundamental para todo o edifício do Império Romano estivesse completamente ausente du rante toda a Idade das Trevas Assim nenhum rei feudal poderia de cretar impostos à sua vontade Todo governante deveria obter o con sentimento de corpos especialmente reunidos os Estados para maiores tributos sob a rubrica do princípio jurídico quod omnes tan git4 É sintomático que a maioria dos impostos gerais diretos que foram lentamente introduzidos na Europa ocidental sujeitos ao assentimento dos parlamentos medievais tenham sido criados pioneiramente na Itá lia onde a primitiva síntese feudal pendia mais para a herança romana e urbana Não só a Igreja cobrou impostos gerais aos fiéis para as Cru zadas os governos municipais conselhos compactos de patrícios sem estratificação de investiduras ou nível social não tiveram grandes dificuldades em impor taxas às suas próprias populações urbanas e menos ainda a um contado sob seu domínio A Comuna de Pisa tinha efetivamente impostos sobre a propriedade A península também inau gurou muitos impostos indiretos o monopólio do sal ou gabelle ori ginouse na Sicília Logo se desenvolvera um diversificado sistema fis cal nos países mais importantes da Europa ocidental Os príncipes in gleses contavam primordialmente com as taxas aduaneiras devido à sua situação insular os franceses com os impostos sobre o consumo e a taille e os alemães com a intensificação dos pedágios Tais taxas en tretanto não constituíam subsídios regulares Em geral permanece nha não chegam a constituir uma introdução satisfatória a eles e o livro ignora comple tamente a Europa setentrional e a oriental Além disso tratase de uma análise jurídica inocente de qualquer pesquisa sociológica 3 Carl Stephenson Mediaevallnstitutions pp 99100 4 Ab omnibus debet cotnprobari o que tange a todos deve ser aprovado por todos LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 45 ram como cobranças ocasionais até o final da Idade Média durante a qual poucos Estados cederam aos monarcas o direito de lançar impos tos gerais ou permanentes sem o consentimento de seus súditos Naturalmente a definição social de súditos era previsível Os estados do reino representavam habitualmente a nobreza o clero e os burgueses das cidades e estavam organizados seja numa assembléia diretamente tricurial seja num sistema um pouco diferente de duas câmaras magnatas e nãomagnatas5 Tais assembléias existiram pra ticamente em toda a Europa ocidental com exceção do norte da Itália onde a densidade urbana e a ausência de suserania feudal inibiu na turalmente a emergência delas Parlamento na Inglaterra ÉtatsGé néraux na França Landtage na Alemanha Cortes em Castela ou Por tugal Riksdag na Suécia etc Além de seu papel essencial como fontes fiscais do Estado medieval os Estados preenchiam outra função crítica na organização política feudal Eles eram expressões coletivas de um dos princípios mais profundos de hierarquia feudal no seio da nobreza o dever do vassalo prestar não apenas auxilium mas também consilium ao seu suserano em outros termos o direito de fornecerlhe seu con selho solene em assuntos de gravidade concernentes a ambas as partes Tal consulta não enfraquecia necessariamente o governante medieval nas crises externas oudomésticas poderia até fortalecêlo ao conceder lhe um apoio político bemvindo Fora do vínculo particular das rela ções pessoais de homenagem a aplicação pública desta concepção es teve inicialmente confinada ao restrito número de magnatas que cons tituíam os lugarestenentes do monarca formavam o seu séquito e es peravam ser por ele consultados nos negócios importantes do Estado Com a expansão dos Estados propriamente ditos no século XIII de vido às exigências fiscais a prerrogativa de consulta dos magnatas in árdua negotia regni ampliouse gradativamente a estas novas assem bléias e passou a compor uma parte importante da tradição política da classe nobiliária no seu conjunto que naturalmente dominava em toda a parte os Estados Assim a ramificação da organização polí tica feudal na Alta Idade Média em razão do crescimento das insti tuições de Estado derivadas de um tronco principal não modificou a 5 Esses padrões alternativos são analisados por Hintze em Typologie de Standischen Verfassungen dês Abendlandes Gesammelíe Abhandtungen vol I pp 11029 que continua a ser o melhor texto sobre os Estados feudais na Europa embora curiosamente inconclusivo em comparação com a maioria dos outros ensaios de Hintze como se as implicaçes completas de suas averiguações devessem ainda ser esclarecidas por ele próprio 46 PERRY ANDERSON relação entre a monarquia e a nobreza em qualquer sentido unilateral Essas instituições eram essencialmente convocadas a existir com o fim de expandir a base fiscal da monarquia mas embora preenchendo tal finalidade faziam crescer o controle coletivo da nobreza sobre aquela última Desse modo não devem ser vistas ou como empecilhos ou como instrumentos do poder real ao invés disso elas reduplicavam um equilíbrio primitivo entre o suserano feudal e seus vassalos num quadro de referência mais complexo e efetivo Na prática os Estados não perderam o caráter de acontecimen tos esporádicos e os impostos cobrados pelo monarca continuaram a ser relativamente modestos Uma razão importante para isso foi que o pro blema de uma burocracia extensa e profissional não havia ainda se interposto entre a monarquia e a nobreza Durante toda a Idade Mé dia o governo real baseouse numa medida considerável nos serviços de uma burocracia clerical muito vasta cujos altos funcionários po diam se dedicar integralmente à administração civil sem encargo finan ceiro para o Estado uma vez que já recebiam amplos salários de um aparelho eclesiástico à parte O alto clero que século após século for neceu tantos dos supremos administradores da organização política feudal da Inglaterra à França e à Espanha era ele próprio recrutado majoritariamente no seio da nobreza para a qual o acesso às posições episcopais e abaciais constituía um importante privilégio so cial e econômico A escalonada hierarquia feudal de homenagem e fi delidade pessoais as corporativas assembléias de Estados com o exer cício dos seus direitos de votar impostos e deliberar sobre os negócios do reino o caráter informal de uma administração parcialmente man tida pela Igreja uma Igreja cuja cúpula era geralmente ocupada pelos magnatas tudo isto formava um sistema político claro e familiar que ligava a classe nobiliária a um Estado com o qual apesar e através dos constantes conflitos com monarcas específicos estava de pleno acordo O contraste entre este padrão de monarquia de Estados medie vais e o do absolutismo moderno inicial é bastante nítido para os his toriadores de hoje Não o seria menos pelo contrário para os nobres que efetivamente o viveram Com efeito a grande e silenciosa força estrutural que impelia a uma completa reorganização do poder de classe feudal estava para eles inevitavelmente oculta No seio do seu universo categorial não era visível o tipo de causalidade histórica que atuava para dissolver a unidade original de exploração extraeconô mica na base do sistema social em seu conjunto devido à difusão da produção e do intercâmbio de mercadorias e para a sua recentrali zação no nível da cúpula Para muitos nobres individualmente ela sig LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 47 nificou novas oportunidades de fortuna e glória avidamente agarra das para muitos outros significou a indignidade e a ruína contra o que se revoltaram para a maioria implicou um processo difícil e de morado de adaptação e conversão através de sucessivas gerações até que a harmonia entre classe e Estado fosse precariamente restaurada No curso desse processo a aristocracia do final do período feudal foi obrigada a abandonar antigas tradições e a adquirir muitas aptidões novas6 Teve que deixar o exercício militar da violência privada os padrões sociais de lealdade do vassalo os hábitos econômicos de des preocupação hereditária os direitos políticos de autonomia represen tativa e os atributos culturais de ignorância iletrada Teve que aprender as novas ocupações de um oficial disciplinado um funcionário letrado um polido cortesão e um proprietário de terras mais ou menos pru dente A história do absolutismo ocidental é em grande parte a histó ria da lenta reconversão da classe dominante fundiária à forma neces sária de seu próprio poder político a despeito e contrariamente à maior parte de sua experiência e instintos anteriores A época do Renascimento assistiu assim à primeira fase na con solidação do absolutismo quando este estava ainda relativamente pró ximo do padrão monárquico precedente Os Estados sobreviveram na França em Castela ou nos Países Baixos até a metade do século e floresceram na Inglaterra Os exércitos eram relativamente pequenos formados basicamente por forças mercenárias com capacidade apenas para campanhas sazonais Eram pessoalmente chefiados por aristocra tasmagnatas de estirpe em seus respectivos reinos Essex Alba Conde ou Nassau O grande surto secular do século XVI provocado ao mesmo tempo pelo rápido crescimento demográfico e pelo advento do ouro da prata e do comércio da América facilitou o crédito para os príncipes europeus e permitiu grandes altas nas despesas sem uma cor 6 Lawrence Stone The Crisis of the Arislocracy 15581641 Oxford 1965 é o mais profundo estudo monográfico existente sobre as metamorfoses da nobreza eu ropéia nesta época As críticas se concentraram em sua tese de que a posição econômica do pariato inglês deteriorouse de maneira significativa no século examinado Entretanto este ponto é essencialmente secundário pois a crise foi mais ampla do que uma sim ples questão de quantidade de domínios feudais conservados pelos nobres foi um difuso trabalho de adaptação A análise de Stone sobre o problema do poder militar da aristo cracia neste contexto é particularmente valiosa pp 199270 A limitação do livro está sobretudo em seu confinamento ao pariato inglês uma elite muito pequena no seio da classe dominante fundiária além disso como se verá adiante a aristocracia inglesa era extremamente atípica na Europa ocidental em seu conjunto São muito necessários es tudos sobre as nobrezas continentais que pudessem contar com uma riqueza de material comparável 48 PERRY ANDERSON respondente expansão segura do sistema fiscal embora houvesse uma intensificação geral da tributação foi esta a idade de ouro dos finan cistas do sul da Alemanha Verificouse um crescimento constante da administração burocrática mas caracteristicamente esta foi por toda a parte vítima da colonização das grandes casas da nobreza que dispu tavam os privilégios políticos e os benefícios econômicos do cargo co mandavam clientelas parasitárias de nobres que eram infiltrados no aparelho de Estado e formavam redes rivais de apadrinhamento no seio deste uma versão modernizada do sistema de dependentes do úl timo período medieval com seus conflitos As rivalidades faccionárias entre as grandes famílias cada uma com o comando de um segmento da máquina do Estado e freqüentemente com uma sólida base regio nal no seio de um país tenuemente unificado ocupavam constante mente a antecena do palco político7 Na Inglaterra as virulentas riva lidades entre as casas Dudley e Seymour e Leicester e Cecil na França a mortífera guerra tripartida entre as linhagens Guise Montmorency e Bourbon na Espanha a brutal luta surda pelo poder entre os grupos Alba e Eboli deram o tom da época As aristocracias ocidentais tinham começado a adquirir a educação universitária e a fluência cultural até então reservada aos clérigos8 mas não estavam ainda de modo ne nhum desmilitarizadas em sua vida privada mesmo na Inglaterra sem falar da França Itália e Espanha Os monarcas reinantes tinham geralmente que contar com seus magnatas como uma força indepen dente à qual caberiam as posições apropriadas ao seu nível social os traços de uma pirâmide medieval simétrica ainda estavam visíveis nas abordagens do soberano Apenas na segunda metade do século os pri meiros teóricos do absolutismo começaram a difundir as concepções do direito divino que elevavam o poder real a uma altura decisivamente acima da fidelidade limitada e recíproca da suserania real medieva Bodin foi o primeiro e o mais rigoroso deles Mas o século XVI encer rouse nos principais países sem que a forma acabada do absolutismo existisse em qualquer deles mesmo na Espanha Filipe II foi impotente para enviar tropas através da fronteira de Aragão sem a permissão de seus senhores locais Na verdade o próprio termo absolutismo era uma denomina ção imprópria Nenhuma monarquia ocidental gozara jamais de poder 7 Para uma análise recente ver J H Elliott Europe Divided 15591598 Lon dres 1968 pp 737 8 J H Hexter The Education of the Aristocracy in the Renaissance em Reappraisals in History Londres 1961 pp 4570 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 49 absoluto sobre seus súditos no sentido de um despotismo sem entra ves9 Todas elas eram limitadas mesmo no máximo de suas prerroga tivas pelo complexo de concepções denominado direito divino ou natural A teoria da soberania de Bodin que dominou o pensamento político europeu por um século corporifica eloqüentemente essas con tradições do absolutismo Nesse sentido Bodin foi o primeiro pensador a romper sistemática e resolutamente com a concepção medieval da autoridade como o exercício da justiça tradicional e a formular a mo derna idéia do poder político como a capacidade soberana de criar no vas leis e de impor incontestável obediência a elas A marca principal da majestade soberana e do poder absoluto é essencialmente o direito de impor leis aos súditos sem o consentimento deles Existe na verdade uma distinção entre justiça e a lei pois uma implica a eqüi dade enquanto a outra implica o mando A lei não é senão o mando do soberano no exercício de seu poder10 Todavia ao mesmo tempo que enunciava esses axiomas revolucionários Bodin sustentava simulta neamente as mais conservadoras máximas feudais limitativas dos di reitos fiscais e econômicos básicos dos governantes sobre seus súditos Está fora da competência de qualquer príncipe no mundo cobrar im postos livremente de seu povo ou seqüestrar os bens de outra pessoa arbitrariamente pois desde que o príncipe soberano não tem pode res para transgredir as leis da natureza ordenadas por Deus de quem ele é a imagem na Terra não pode tomar a propriedade de outrem sem um motivo justo e razoável11 Assim a apaixonada exegese da recente idéia de soberania combinavase em Bodin com um apelo à revitalização do sistema de feudos ao serviço militar e com a reafirma ção do valor dos Estados A soberania do monarca não é de forma 9 Roland Mousnier e Fritz Hartung Quelques Problèmes Concernant Ia Mo narchie Absolue X Congresso Internazionale di Scienze Storici Rclazwni IV Fio rença 1955 esp pp 415 é a primeira e mais fundamental contribuição para o debate sobre este tópico nos últimos anos Já anteriormente alguns autores haviam apreendido a mesma realidade se bem que de uma maneira menos sistemática entre eles Engels A decadência do feudalismo e o desenvolvimento das cidades eram ambas forças descen tralizadoras que determinaram precisamente a necessidade da monarquia absoluta como poder capaz de soldar entre si as nacionalidades A monarquia tinha que ser abso luta justamente por causa da pressão centrífuga de todos esses elementos O seu absolu lismu entretanto não deve ser entendido num sentido vulgar Estava em conflito per manente com os Estados e com feudatários e cidades rebeldes em nenhum lugar ele aboliu completamente os Estados MarxEngels Werke vol 21 p 402 A última ora ção constitui evidentemente um exagero 10 Jean Bodin Lês Six Livres de Ia Republique Paris 1578 pp 10314 Tra duzi nessa passagem droit por justiça para salientar a distinção acima referida 11 LesSixLivres dela Republique pp 102 114 50 PERRY ANDERSON nenhuma modificada ou diminuída pela existência dos Estados pelo contrário a sua majestade é maior e mais ilustre quando o seu povo o reconhece como soberano mesmo se nessas assembléias os príncipes procurando não antagonizar os seus súditos garantem e permitem muitas coisas que não teriam admitido não fossem as solicitações sú plicas e justas queixas de seu povo 12 Nada revela mais clara mente a natureza efetiva da monarquia absoluta na última fase da Re nascença do que esta teorização autorizada Com efeito a prática do absolutismo correspondia à teoria de Bodin Nenhum Estado absolutista poderia jamais dispor livremente da liberdade ou da propriedade fun diária da própria nobreza ou da burguesia à maneira das tiranias asiáticas suas contemporâneas Nem tampouco conseguiram atingir uma centralização administrativa ou uma unificação jurídica comple tas os particularismos corporativos e as heterogeneidades regionais herdados da época medieval marcaram os Ancien Regimes até a sua destruição final Desse modo a monarquia absoluta no Ocidente foi sempre na verdade duplamente limitada pela persistência abaixo dela de corpos políticos tradicionais e pela presença sobre ela de um direito moral abrangente Em outras palavras o domínio do abso lutismo operava em última instância dentro dos limites necessários da classe cujos interesses ele assegurava No século seguinte com a des truição de muitos pontos de referência familiares aos nobres haveriam de eclodir agudos conflitos entre ambos Mas ao longo deles devese ter em mente que tal como nenhum poder absoluto foi exercido pelo Estado absolutistado Ocidente nenhum conflito entre esses Estados e as suas aristocracias poderia ser absoluto A unidade social de ambos determi nava o terreno e a temporalidade das contradições políticas entre eles Estas entretanto viriam a ter a sua própria importância histórica Os cem anos seguintes assistiram à completa instalação do Estado absolutista num século de depressão demográfica e agrária e de ten dência decrescente dos preços Foi então que os efeitos da revolução militar fizeramse sentir decisivamente Os exércitos multiplicaram rapidamente seus efetivos tornandose astronomicamente dispendio sos numa série de guerras em expansão incessante As operações de Tilly não foram muito mais vastas que as de Alba ambas tornamse pequenas diante das de Turenne O custo dessas massivas máquinas militares originou agudas crises de receita para os Estados absolutistas A coação fiscal sobre as massas de um modo geral intensificouse Ao 12 Lês Six Livres de Ia Republique p 103 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 51 mesmo tempo a venda de cargos públicos e honrarias tornouse agora um expediente financeiro fundamental para todas as monarquias e foi sistematizada de uma forma sem paralelo no século anterior O resul tado foi a integração de um número crescente de burgueses arrivistas nas fileiras de funcionários do Estado que tornaramse crescentemente profissionalizadas e a reorganização dos vínculos entre a nobreza e o próprio aparelho de Estado A venda de cargos não era meramente um artifício econômico destinado a aumentar as receitas às custas das classes proprietárias Ela cumpria também uma função política ao fazer da aquisição de po sições burocráticas uma transação de mercado e ao investir a sua pro priedade com direitos hereditários a venda de cargos bloqueava a for mação de sistemas de clientela da grande nobreza no interior do Es tado que dependeriam não de equivalentes financeiros impessoais mas das ligações e do prestígio pessoais de um grande senhor e da sua casa Richelieu sublinhou em seu testamento o papel esterilizador fundamental da paulette ao colocar o conjunto do sistema adminis trativo fora do alcance de linhagens aristocráticas tentaculares como a Casa de Guise Evidentemente um parasitismo apenas foi substituído por outro no lugar do apadrinhamento a venalidade Mas para os monarcas a mediação do mercado era mais segura que a dos grandes nobres os consórcios financeiros parisienses que fizeram empréstimos ao Estado arremataram impostos e compraram cargos no século XVII eram muito menos perigosos para o absolutismo francês que as dinas tias provinciais do século XVI que não somente tinham sob laços de obrigação setores da administração real como também podiam alinhar as suas próprias tropas armadas Por sua vez a maior burocratização da função pública produziu novos tipos de administradores dirigentes em geral recrutados na nobreza e ansiosos pelos benefícios convencio nais dos cargos mas imbuídos ao mesmo tempo de um rigoroso res peito pelo Estado enquanto tal e de uma firme determinação de sus tentar os seus interesses de longo prazo contra os conluios de vista curta da alta nobreza ambiciosa ou descontente Foram estes os austeros mi nistros reformadores do século XVII funcionários essencialmente civis carentes de base regional ou militar que dirigiam os negócios do Es tado a partir de seus gabinetes Oxenstierna Laud Richelieu Colbert ou Olivares O tipo complementar da nova era foi o íntimo pessoal e incapaz do soberano reinante o valido em que a Espanha foi tão pró diga de Lerma a Godoy Mazarino foi uma estranha combinação dos dois Foram estas gerações que estenderam e codificaram as práticas da diplomacia bilateral do século XVI no sentido de um sistema mui 52 PERRY ANDERSON tilateral internacional a que o Tratado de Vestfália serviu de diploma de criação e o âmbito amplificado das guerras do século XVII de ca dinho de experiências A escalada da guerra a burocratização dos cargos a intensifi cação dos impostos o desgaste do clientelismo tudo isso conduziria a uma mesma direção à decisiva eliminação daquilo que no século se guinte Montesquieu teorizaria nostalgicamente como os poderes in termediários entre a monarquia e o povo Em outros termos o sistema de Estados arruinouse progressivamente à medida que o poder de classe da nobreza assumia a forma de uma ditadura centrípeta exercida sob o signo real Como é evidente o poder efetivo da monarquia como instituição não correspondia necessariamente de forma alguma ao do monarca o soberano que efetivamente dirigia a administração e con duzia a política era tanto a exceção como a regra embora por razões óbvias a unidade e eficácia criativas do absolutismo alcançassem o seu ponto máximo quando as duas coincidiam Luís XIV e Frederico II O vigor e florescimento máximos do Estado absolutista significaram também necessariamente uma compressão sufocante dos direitos e da autonomia tradicionais da classe nobiliária que datavam da descen tralização medieval primitiva da organização política feudal e eram sancionados pelos venerandos costumes e interesses Os últimos Es tadosGerais antes da revolução reuniramse na França em 1614 as últimas Cortes de Castela antes de Napoleão em 1665 o último Land tag na Bavária em 1669 enquanto isso ocorria na Inglaterra o mais longo recesso do Parlamento em um único século de 1629 à Guerra Civil Esta época é assim não apenas a do apogeu político e cultural do absolutismo como também a do generalizado descontentamento e alie nação aristocráticos com relação a ele Os privilégios particularistas e os direitos consuetudinários não foram abandonados sem luta espe cialmente numa época de penetrante recessão econômica e de crédito inelástico Assim o século XVII foi repetidas vezes o cenário de revoltas das nobrezas locais contra o Estado absolutista no Ocidente que fre qüentemente se mesclaram com a incipiente sedição de juristas e mer cadores e às vezes utilizaram mesmo a fúria sofrida das próprias massas rurais e urbanas como arma temporária contra a monarquia A Fronda na França a República Catalã na Espanha a Revolução 13 O ensaio justamente célebre de TrevorRoper The General Crisis of the Seventeenth Century Past and Present n 16 novembro de 1959 pp 3164 agora modificado e republicado em Religion The Reformaíton and Social Change Londres LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 53 Napolitana na Itália a Revolta dos Estados na Boêmia e a própria Grande Revolta na Inglaterra tiveram todas algo deste caráter de re volta nobiliária contra a consolidação do absolutismo14 Como é natu ral esta reação nunca poderia transformarse num assalto unificado e de grande escala da aristocracia à monarquia pois ambas estavam li gadas por um cordão umbilical de classe tampouco se registrou algum caso de revolta puramente da nobreza naquele século O padrão carac terístico foi quase sempre o de uma explosão sobredeterminada na qual uma parcela regionalmente delimitada da nobreza erguia a ban deira do separatismo aristocrático e era apoiada por uma burguesia urbana descontente e por multidões plebéias em levantes gerais Ape nas na Inglaterra onde o componente capitalista da revolta foi predo minante tanto na classe proprietária rural como na urbana é que a Grande Revolta alcançou êxito Em todas as outras partes na França Espanha Itália e Áustria as insurreições dominadas ou contaminadas pelo separatismo da nobreza foram esmagadas reforçandose o poder do absolutismo E tal ocorria necessariamente Nenhuma classe domi nante feudal poderia permitirse alijar os avanços realizados pelo abso lutismo que constituíam a expressão de necessidades históricas pro fundas atuantes através de todo o continente sem colocar em risco a sua própria existência com efeito nenhuma foi jamais total ou majori tariamente conquistada para a causa da revolta Mas o caráter regional ou parcial de tais conflitos não minimiza o seu significado os fatores de autonomistno local meramente condensavam uma insatisfação difusa que existia muitas vezes em toda a nobreza e forneciamlhe uma for 1967 pp 4689 com todos os seus méritos restringe demasiado o alcance dessas re voltas ao apresentálas essencialmente como protestos contra as despesas e os desperdí cios da cortes pósrenascentistas Na realidade como já foi apontado por numerosos historiadores a guerra constituía um item muito maior do que a corte nos orçamentos do Estado no século XVII O sistema palaciano de Luís XIV foi muito mais pródigo que o de Ana da Áustria mas nem por isso foi mais impopular À parte isso a brecha funda mental entre aristocracia e monarquia não era realmente econômica embora os impostos de guerra pudessem desencadear como o fizeram amplas revoltas Erapolítica relacio nada com a posição total da nobreza numa organização política incipiente cujos contor nos eram ainda freqüentemente opacos para todos os atores envolvidos no drama 14 A sublevação napolitana no aspecto social o mais radical desses movimen tos o teve em menor parte Mas mesmo aí o primeiro sinal de tempestade da explosão antiespanhola foram as conspirações aristocráticas de Sanza Conversano e outros no bres hostis à fiscalização do vicerei e aos grupos de especuladores que vicejavam à sua sombra e que conspiravam com a França contra a Espanha desde 1634 As conjurações baroniais multiplicavamse em Nápoles no início de 1647 quando o tumulto popular liderado por Masaniello subitamente rebentou e conduziu o grosso da aristocracia napo litana de volta ao legalismo Para este processo ver a excelente análise em Rosário Vil lari La Rivolta AntiSpagnuola a Napoli Lê Origini1585l647 Bari 1967 pp 20116 54 PERRY ANDERSON ma políticomilitar violenta Os protestos de Bordéus Praga Nápoles Edimburgo Barcelona ou Palermo tiveram uma ressonância mais am pla A sua derrota final foi um episódio central no difícil esforço de vida do conjunto da classe nesse século à medida que esta se transformava lentamente para se adaptar às novas e indesejadas exigências de seu próprio poder de Estado Nenhuma classe na história compreende ime diatamente a lógica de sua própria situação histórica em épocas de transição um longo período de desorientação e confusão pode ser ne cessário para que ela aprenda as regras obrigatórias de sua própria soberania A nobreza ocidental na tensa época do absolutismo do sé culo XVII não constituiu uma exceção teve que ser amansada na se vera e inesperada disciplina de suas próprias condições de governo É esta essencialmente a explicação para o paradoxo aparente da trajetória ulterior do absolutismo no Ocidente Porque se o século XVII marca o zênite da turbulência e da desordem entre classe e Es tado no seio do sistema de domínio político da aristocracia o século XVIII é por comparação o ocaso dourado da sua tranqüilidade e re conciliação Sucedeuse uma nova harmonia e estabilidade à medida que a conjuntura econômica se modificava e cem anos de relativa pros peridade instalavamse na maior parte da Europa enquanto a nobreza recuperava a confiança em sua capacidade de dirigir os destinos do Estado Num país após outro tinha lugar uma rearistocratização refi nada da alta burocracia o que dava à época anterior por contraste ilusório a aparência de ter sido sortida emparvenus A Regência fran cesa e a oligarquia sueca dos Chapéus constituem os exemplos mais notáveis desse fenômeno que pode ser observado também na Espanha carolina e mesmo na Inglaterra georgiana ou na Holanda das Perucas onde revoluções burguesas efetivamente converteram o Estado e o modo de produção dominante ao capitalismo Faltam aos ministros de Estado que simbolizam o período a energia criativa e a força austera de seus predecessores mas eles estavam serenamente em paz com a sua classe Fleury ou Choiseul Ensenada ou Aranda Walpole ou Newcas tle são as figuras representativas desta época O desempenho civil do Estado absoluüsta no Ocidente na era do iluminismo reflete este padrão havia uma ornamentação de excessos e um refinamento de técnicas uma certa marca adicional de influências burguesas combinados com uma perda geral de dinamismo e criativi dade As extremas distorções originadas pela venda de cargos foram reduzidas e a burocracia tornouse correspondentemente menos venal mas muitas vezes ao preço de um sistema de empréstimos públicos para levantar receitas equivalentes o qual imitado dos países capita LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 55 listas mais avançados logo tendia a inundar o Estado com as dívidas acumuladas Ainda se pregava e se praticava o mercantilismo embora as novas doutrinas econômicas liberais dos fisiocratas que defen diam o livrecomércio e o investimento agrário tenham feito alguns progressos limitados na França na Toscana e em outras regiões Mas o processo talvez mais importante e interessante no seio da classe domi nante fundiária nos cem anos que antecederam a Revolução Francesa foi entretanto um fenômeno exterior ao âmbito do próprio Estado Tratase da difusão por toda a Europa do vincolismo o surto de expedientes aristocráticos para a proteção e consolidação da grande propriedade fundiária contra as pressões e caprichos do mercado capi talista15 A nobreza da Inglaterra depois de 1689 foi uma das pri meiras a seguir tal rumo com a criação do strict settlement que impe dia os proprietários rurais de alienarem a propriedade da família e conferia direitos apenas ao filho primogênito duas medidas destinadas a congelar todo o mercado de terras no interesse da supremacia aris tocrática Logo um após outro os principais países ocidentais desen volveram ou aperfeiçoaram as suas próprias variantes deste vincu lismo ou vinculação da terra a seus proprietários tradicionais O mayorazgo na Espanha o morgadio em Portugal fideicommissum na Itália e na Áustria e o maiorat na Alemanha todos cumpriam a mesma função preservar intatos os grandes blocos de propriedades da grande nobreza e os vastos latifúndios diante dos perigos da fragmentação ou venda em um mercado comercial aberto16 Grande parte da recupe rada estabilidade da nobreza européia no século XVIII foi devida sem dúvida ao suporte econômico proporcionado por tais artifícios jurí dicos Na verdade houve provavelmente menos reviravoltas sociais no seio da classe dominante nesta época do que nas precedentes quando famílias e fortunas flutuaram muito mais rapidamente em meio aos grandes levantes políticos e sociais17 15 Não há estudos exaustivos sobre este fenômeno É analisado de passagem inter alia por S J Woolf Stitdi sulla Nohiltà Piemontese nellÉpoca dellAssolutismo Turim 1963 que data a sua difusão do século anterior A maioria dos colaboradores de A Goodwin Org The European Nobility in the 18th Century Londres 1953 tocam também no assunto 16 O mayorazgo espanhol foi de longe o mais antigo desses artifícios datando de há mais de dois séculos mas cresceu constantemente tanto em número quanto em alcance chegando mesmo a incluir bens móveis O strict settlement inglês era na reali dade um pouco menos rígido que o padrão continental do fideicommissum uma vez que valia apenas para uma única geração na prática porém esperavase que os sucessivos herdeiros o reconhecessem 17 Toda a questão da mobilidade no seio da classe nobiliária da aurora do feudalismo ao fim do absolutismo ainda necessita de um grande esforço de pesquisa S6 PERRY ANDERSON Foi com este panorama de fundo que uma cultura de elite cos mopolita de corte e salão espalhouse por toda a Europa caracteri zandose pelo novo predomínio do francês como idioma internacional do discurso diplomático e intelectual Na verdade por baixo de seu verniz tal cultura estava mais profundamente que nunca penetrada pelas idéias da burguesia ascendente que agora encontravam uma ex pressão triunfante no iluminismo O peso específico do capital mer cantil e manufatureiro no seio da maioria das formações sociais ociden tais aumentara ao longo desse século que presenciou a segunda grande onda de expansão comercial e colonial ultramarina Mas isso apenas determinou a política do Estado nos lugares onde já ocorrera uma revo lução burguesa e o absolutismo fora derrubado como na Inglaterra e na Holanda Em outras partes não há sinal mais notável da continui dade estrutural do Estado feudal na sua última fase que a persistência de suas tradições militares A potência efetiva em tropas geralmente mantevese a mesma ou declinou um pouco na Europa ocidental de pois do Tratado de Utrecht o aparato físico da guerra deixara de au mentar ao menos em terra no mar era outra questão Mas a fre qüência e o seu caráter central para o sistema político internacional não se alterara seriamente Com efeito talvez durante este século tenham mudado de mãos mais territórios geográficos objeto clássico de todo conflito militar aristocrático que durante qualquer dos dois séculos precedentes Silésia Nápoles Lombardia Bélgica Sardenha e Polônia estavam entre as presas A guerra funcionou nesse sentido até o final áoancien regime No aspecto tipológico evidentemente as campanhas Atualmente só são possíveis hipóteses exploratórias quanto a fases sucessivas dessa longa história Duby registra a sua surpresa ao descobrir que a convicção de Bloch sobre uma descontinuidade radical entre as dinastias carolíngia e medieval na França estava equi vocada na verdade uma alta proporção das linhagens que forneceram os vassi dominici do século IX sobreviveu para se transformar nos barões do século XII Ver G Duby Une Énquête a Poursuivre Ia Noblesse dans Ia France Médievale Revue Historique CCXXVI 1961 pp 122 Por outro lado Perroy encontrou um alto nível de mobilidade entre a pequena nobreza do Condado de Forez a partir do século XIII aí a duração média de qualquer linha de nobreza era de três a quatro ou mais cautelosamente de três a seis gerações em grande medida devido aos acasos da mortalidade Edouard Per roy Social Mobility among French Noblesse in the Later Middle Ages Past and Pré sent n 21 abril de 1962 pp 2538 Em geral a fase final da Idade Média e o início da Renascença parecem ter sido períodos de modificações rápidas em muitos países de onde desapareceria a maior parte das grandes casas medievais Tal formulação é certa mente verdadeira na Inglaterra e na França provavelmente menos na Espanha A rees tabilização das fileiras da aristocracia parece igualmente evidente no fim do século XVII depois que a última e mais violenta das convulsões chegou ao fim na Boêmia Habsburgo durante a Guerra dos Trinta Anos Mas este tema pode ainda nos reservar surpresas LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 57 do absolutismo europeu apresentam uma certa evolução em e através de uma repetição básica A determinante comum a todas elas era a tendência territorialfeudal acima analisada cuja forma característica foi o conflito dinástico puro e simples do início do século XVI a dis puta HabsburgoValois pela Itália Sobreposto a esta por cem anos de 1550 a 1650 estava o conflito religioso entre as potências da Re forma e da ContraReforma que nunca iniciou mas com freqüência intensificou e exacerbou as rivalidades geopotíticas fornecendolhes o idioma ideológico da época A Guerra dos Trinta Anos foi a maior e a última destas lutas mistas18 Foi prontamente seguida pelo pri meiro conflito militar europeu de um tipo totalmente novo travado por objetivos diferentes num elemento diferente as guerras comerciais angloholandesas dos anos de 1650 e 1660 nas quais quase todas as batalhas foram marítimas Tais confrontos entretanto estavam confi nados aos Estados da Europa que haviam passado pela experiência das revoluções burguesas e constituíramse em disputas estritamente inter capitalistas A tentativa promovida por Colbert de adotar os obje tivos delas na França revelouse um fiasco na década de 1670 Todavia a partir da Guerra da Liga de Augsburgo o comércio tornouse quase sempre uma presença complementar nos mais importantes conflitos militares europeus em disputa pela terra quanto mais não fosse pela participação neles da Inglaterra cuja expansão geográfica ultramarina era agora de caráter inteiramente comercial e cuja meta efetiva era um monopólio colonial mundial Daí o caráter híbrido das guerras do final do século XVIII com a justaposição de dois tempos e de dois tipos diferentes de conflito em uma mêlée singular e estranha da qual a Guerra dos Sete Anos nos dá o mais claro exemplo a primeira guerra da história a ser travada através do globo embora como espetáculo secundário para a maior parte dos participantes para quem Manila ou Montreal representavam escaramuças remotas se comparadas com Leuthen ou Kunersdorf Nada revela melhor o fracasso da perspectiva feudal do ancien regime na França que a sua incapacidade para perce ber os verdadeiros interesses em jogo nestas guerras duais junto com seus rivais ela conservouse basicamente fixada à disputa tradicional pela terra até o final19 18 O capítulo de H G Koenigsberger The European Civil War in The Habsburgsin Europe Ithaca 1971 pp 21985 é um relato sucinto e exemplar 19 A melhor análise geral da Guerra dos Sete Anos é ainda a de Dorn Compe fition for Empire pp 31884 Espanha Tal era o caráter geral do absolutismo no Ocidente Entretanto os Estados territoriais específicos que vieram a existir nos diferentes países da Europa renascentista não podem ser simplesmente assimi lados a um tipo puro único Eles apresentavam com efeito amplas diferenças com conseqüências cruciais para a história ulterior dos paí ses considerados que ainda hoje se fazem sentir Um exame dessas variações aparece portanto como complemento necessário a qualquer abordagem da estrutura geral do absolutismo no Ocidente A Espanha primeira grande potência da Europa moderna constitui um ponto de partida lógico A ascensão da Espanha Habsburgo não foi meramente um episó dio num conjunto de experiências simultâneas e equivalentes de cons trução do Estado na Europa ocidental foi também uma determinante auxiliar de todo esse conjunto como tal Ela ocupa por isso uma po sição qualitativamente distinta no processo geral de absotutização Com efeito o alcance e o impacto do absolutismo espanhol foi num sentido estrito imoderado em relação às outras monarquias ocidentais da mesma época A pressão internacional por ele exercida atuou como uma sobredeterminação especial dos padrões nacionais nos outros pon tos do continente devido à desproporção de riqueza e poder de que dispunha a concentração histórica de tais recursos no Estado espanhol não poderia deixar de afetar a configuração geral e o sentido do sistema estatal que surgia no Ocidente A monarquia espanhola devia a sua su premacia a uma combinação de dois complexos de recursos por sua LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 59 vez projeções inesperadas de elementos comuns ao absolutismo ascen dente elevadas a uma dimensão excepcional Por um lado a sua casa reinante beneficiouse mais do que qualquer outra linhagem na Eu ropa dos pactos da política dinástica de casamentos O parentesco da família Habsburgo rendeu ao Estado espanhol uma escala de territórios e influência que nenhuma monarquia rival poderia igualar um arte fato supremo dos mecanismos feudais de expansão política Por outro lado a conquista colonial do Novo Mundo supriua com uma supera bundância de metais preciosos que lhe possibilitou um tesouro muito superior ao de qualquer um de seus adversários Conduzida e organi zada no interior de estruturas ainda notavelmente senhoriais a pilha gem das Américas foi no entanto ao mesmo tempo um dos atos mais espetaculares da acumulação primitiva do capital europeu durante a Renascença Assim o absolutismo espanhol buscou forças tanto no legado interno do engrandecimento feudal como no saque ultramarino de capital extrativo Nunca houve evidentemente qualquer dúvida quanto a que interesses sociais e econômicos o aparelho político da mo narquia espanhola atendia prioritária e permanentemente Nenhum outro grande Estado absolutista na Europa ocidental viria a ter um ca ráter tão aristocrático ou infenso ao desenvolvimento burguês O pró prio acaso de seu precoce controle das minas da América com a sua economia de extração tosca mas lucrativa desmotivouo de promover o crescimento das manufaturas ou de fomentar a difusão da empresa mercantil no seio de seu império europeu Em vez disso abateuse com um peso maciço sobre as comunidades comerciais mais ativas do conti nente ao mesmo tempo que ameaçava todas as outras aristocracias fundiárias num ciclo de guerras interaristocráticas que durou 150 anos O poder da Espanha sufocou a vitalidade urbana do norte ita liano e esmagou as florescentes cidades de metade dos Países Baixos as duas regiões mais avançadas da economia européia na virada do século XVI A Holanda conseguiu escapar ao seu controle após uma longa luta pela independência burguesa No mesmo período os Esta dos monárquicos do sul da Itália e de Portugal foram absorvidos pela Espanha As monarquias da França e da Inglaterra foram fustigadas por ataques hispânicos Os principados da Alemanha foram invadidos repetidas vezes por tercios de Castela Enquanto a armada espanhola cruzava o Atlântico ou patrulhava o Mediterrâneo os exércitos espa nhóis percorriam a maior parte da Europa ocidental de Antuérpia a Palermo de Regensburg a Kinsale A ameaça da dominação Habs burgo porém acabou por apressar as reações e fortalecer as defesas das dinastias agrupadas contra ela A primazia espanhola conferiu à mo 60 PERRY ANDERSON narquia Habsburgo um papel de consolidação do sistema relativo ao absolutismo ocidental em seu conjunto Mas ao mesmo tempo como veremos limitou criticamente a natureza do próprio absolutismo espa nhol no seio do sistema que ajudou a criar O absolutismo espanhol nasceu da União de Castela e Aragão efetivada pelo casamento de Isabel I e Fernando II em 1469 Começou com uma base econômica aparentemente firme Durante os períodos de escassez de mãodeobra provocada pela crise geral do feudalismo ocidental áreas crescentes de Castela foram convertidas a uma lucra tiva economia lanífera que a transformou na Austrália da Idade Mé dia1 e num parceiro importante do comércio flamengo enquanto isso Aragão era há muito tempo uma potência territorial e comercial no Mediterrâneo com o controle da Sicília e da Sardenha O dinamismo político e militar do novo Estado dual logo se revelaria dramaticamente numa série de extensas conquistas externas Granada o último reduto mouro foi destruída e completouse a Reconquista Nápoles foi ane xada Navarra absorvida e acima de tudo as Américas foram desco bertas e subjugadas O ramo Habsburgo em breve adicionou Milão o FrancheComté e os Países Baixos Esta súbita avalanche de sucessos fez da Espanha a primeira potência da Europa por todo o século XVI gozando de uma posição internacional que nenhum outro absolutismo do continente foi jamais capaz de igualar Todavia o Estado que pre sidia este vasto império era ele próprio uma armação em ruínas unida em última análise apenas pela pessoa do monarca O absolutismo es panhol tão terrível para o protestantismo setentrional externamente foi com efeito notavelmente modesto e limitado em seu desenvolvi mento interno As suas articulações internas eram talvez inigualável mente frágeis e heteróclitas As razões deste paradoxo devem ser sem dúvida procuradas essencialmente na curiosa relação triangular esta belecida entre o império americano o império europeu e as pátrias ibéricas Os reinos compostos de Castela e Aragão unidos por Fernando e Isabel representavam uma base extremamente diversa para a constru ção da nova monarquia espanhola no final do século XV Castela era 1 A expressão é de Vicens Ver J Vicens Vives Manual de História Econômica deEspana pp 112 231 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 61 um país com uma aristocracia de enormes propriedades e poderosas ordens militares tinha também um considerável número de cidades embora significativamente não tivesse ainda uma capital fixa A no breza castelhana se apoderara de vastas extensões de propriedade agrá ria pertencente à monarquia durante as guerras civis do final da Idade Média de 2 a 3 por centro da população controlavam então cerca de 97 por cento do solo Por sua vez mais da metade deste era propriedade de algumas poucas famílias de magnatas que se salientavam da nume rosa pequena nobreza hidalga2 A agricultura cerealífera era constan temente entregue à atividade pastoril nessas grandes propriedades O surto da lã que fornecera a base para as fortunas de tantas casas aris tocráticas estimulara ao mesmo tempo o crescimento urbano e o co mércio externo As cidades de Castela e os navios cantábricos benefi ciaramse da prosperidade da economia pastoril da última fase da Espanha medieval que estava ligada por um sistema comercial coín plexo à indústria têxtil de Flandres O perfil econômico e demográfico de Castela no seio da União era portanto desde o início vantajoso com uma população calculada entre 5 e 7 milhões e um animado co mércio marítimo com a Europa setentrional constituíase com facili dade no Estado dominante na península No aspecto político a sua constituição era curiosamente instável Castela e Leão tinham sido um dos primeiros reinos medievais da Europa a desenvolver um sistema de Estados no século XIII enquanto isso em meados do século XV a efe tiva ascendência da nobreza sobre a monarquia tornouse por certo tempo de grande projeção Mas o ganancioso poder da aristocracia medieval da última fase não estabelecera nenhum molde jurídico As Cortes na realidade permaneceram como assembléias ocasionais e pouco definidas talvez devido ao caráter migrante do reino castelhano conforme este se dirigia para o sul e embaralhava assim o seu padrão social nunca se desenvolverá aí uma institucionalização sólida e fixa do sistema de Estados Desse modo tanto a convocação como a compo sição das Cortes estavam sujeitas à decisão arbitrária do monarca daí resultando que as sessões eram espasmódicas e não resultaria delas nenhum sistema tricurial efetivo Por um lado as Cortes não detinham poder algum de iniciativa legislativa por outro lado a nobreza e o clero gozavam de imunidade fiscal O resultado era um sistema de Estados onde só as cidades tinham que pagar os impostos votados pelas Cortes os quais de resto recaíam quase que exclusivamente sobre as massas 2 J H Elliott Imperial Spain 14691716 Londres 1970 pp 1113 62 PERRY ANDERSON abaixo delas A aristocracia portanto não tinha interesse econômico direto em sua representação no seio dos Estados castelhanos que cons tituíam uma instituição relativamente frágil e isolada O corporati vismo aristocrático encontraria expressão própria nas ricas e temíveis ordens militares Calatrava Alcântara e Santiago que foram cria das pelas Cruzadas mas estas por sua própria natureza não dispu nham da autoridade coletiva de um Estado nobiliário propriamente dito O caráter econômico e político do reino de Aragão3 estava em agudo contraste com isso O interior montanhoso de Aragão abrigava o mais repressivo sistema senhorial da península ibérica a aristocracia local achavase investida com uma série completa de poderes feudais nas áridas zonas rurais onde ainda sobrevivia a servidão e um campe sinato morisco cativo mourejava para os seus senhores cristãos A Cata lunha por outro lado fora tradicionalmente o centro de um império mercantil no Mediterrâneo Barcelona era a maior cidade da Espanha medieval e o seu patriciado urbano a classe comercial mais rica da região A prosperidade catalã no entanto sofrerá penosamente du rante a longa depressão feudal As epidemias do século XIV fustigaram o principado com particular violência retornando repetidas vezes de pois da própria Peste Negra para devastar a população que decresce ria em mais de um terço entre 1365 e 14974 As bancarrotas comerciais foram aumentadas pela agressiva concorrência genovesa no Mediterrâ neo enquanto os pequenos mercadores e as corporações artesanais re voltavamse contra o patriciado nas cidades No campo o campesinato sublevarase para banir os maus costumes e apoderarse das terras abandonadas nas revoltas das remenças do século XV Finalmente uma guerra civil entre a monarquia e a nobreza que atraiu para seu torvelinho outros grupos sociais enfraqueceu ainda mais a economia catalã Entretanto as suas bases estrangeiras na Itália permaneceram intatas Valência a terceira província do reino situavase socialmente num plano intermediário entre Aragão e a Catalunha A nobreza explo rava o trabalho morisco durante o século XV verificouse o cresci mento de uma comunidade mercantil ao passo que a preponderância financeira descia a costa vinda de Barcelona O crescimento de Valên cia porém não compensou adequadamente o declínio da Catalunha 3 O Reino de Aragão era constituído pela união de três principados Aragão Catalunha e Valência 4 Elliott Imperial Spain p 37 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 63 A disparidade econômica entre os dois reinos da União criada pelo casamento de Fernando e Isabel evidenciase no fato de que a popu lação das três províncias de Aragão totalizava apenas l milhão de habitantes em comparação com os 5 a 7 milhões de Castela O con traste político entre os dois reinos por outro lado não era menos sur preendente pois no reino de Aragão encontravase talvez a estrutura de Estado mais sofisticada e bem entrincheirada de toda a Europa As três províncias da Catalunha de Valência e Aragão tinham cada uma as suas próprias Cortes Além disso cada uma delas possuía institui ções repressivas especiais de controle judicial e administração econô mica permanentes que dependiam das Cortes A Diputació catalã um comitê regular das Cortes era o seu exemplar mais efetivo Ade mais cada uma das Cortes devia estatutariamente reunirse em inter valos regulares e estava tecnicamente subordinada à norma da unani midade um esquema singular na Europa ocidental As Cortes arago nesas por sua vez tinham ainda o requinte adicional do sistema qua dricurial de magnatas pequena nobreza clero e burgueses5 In totó tal complexo de liberdades medievais apresentava uma perspectiva particularmente refratária à construção de um absolutismo centrali zado A assimetria das ordens institucionais de Castela e Aragão iria efetivamente traçar toda a carreira da monarquia espanhola a partir de então Compreensivelmente Fernando e Isabel optaram pela alterna tiva óbvia de concentrarse no estabelecimento de um poder real inque brantável em Castela onde as condições eram mais imediatamente propícias Aragão apresentava obstáculos políticos muito mais formi dáveis para a construção de um Estado centralizado Castela tinha uma população cinco ou seis vezes maior e a sua riqueza mais ampla não era protegida por barreiras constitucionais comparáveis Assim foi posto em execução pelos dois monarcas um programa metódico de reorgani zação administrativa As ordens militares foram decapitadas e anexa dos os seus vastos territórios e rendimentos Castelos baroniais foram demolidos expulsos os senhores das zonas de fronteira e proibidas as guerras privadas A autonomia municipal das cidades foi quebrada 5 O espírito do constitucionalismo aragonês estava expresso no impressionante juramento de vassalagem atribuído à sua nobreza Nós que somos tão bons como vós juramos a vós que não sois melhores que nós que vos aceitamos como nosso rei e sobe rano contanto que observeis todas as nossas liberdades e leis mas se assim não for não A fórmula em si talvez fosse lendária mas o seu sentido estava gravado nas ins tituições de Aragão 64 PERRY ANDERSON com a instalação de corregidores oficiais para administrálas a justiça real foi fortalecida e ampliada O Estado tomou a si o controle dos benefícios eclesiásticos separando o aparelho local da Igreja da alçada do papado As Cortes foram progressivamente domesticadas pela omis são efetiva da nobreza e do clero de suas reuniões depois de 1480 uma vez que o principal propósito para convocálas era o aumento dos im postos para financiar os gastos militares nas guerras de Granada e da Itália sobretudo e deles estavam isentos o primeiro e o segundo esta dos estes últimos tinham poucos motivos para resistir a tal restrição Os rendimentos fiscais elevaramse de modo impressionante a receita de Castela cresceu de 900 mil reates em 1474 para 26 milhões em 15046 O Conselho Real foi reformado e dele excluída a Influência dos grandes do reino o novo corpo consultivo foi provido com funcionários bacharéis ou letrados recrutados na pequena nobreza Secretários pro fissionais trabalhavam diretamente sob as ordens dos soberanos des pachando assuntos cada vez mais numerosos A máquina de Estado castelhana foi em outras palavras racionalizada e modernizada Mas a nova monarquia nunca a contrapôs à classe aristocrática no seu con junto As altas posições militares e diplomáticas sempre foram reserva das aos magnatas que mantiveram seus grandes vicereinados e gover nadorias ao passo que os nobres menores preenchiam as fileiras dos corregidores Os domínios reais usurpados desde 1454 foram recupe rados pela monarquia mas os que resultaram de apropriações anterio res a maioria foram deixados em mãos da nobreza em Granada novos domínios se acrescentaram a essas possessões e foi confirmada a imobilização da propriedade rural através do recurso do mayorazgo Além disso garantiramse deliberadamente amplos privilégios aos in teresses pastoris do cartel de aMesta na região rural dominado pelos latifundiários do sul entretanto medidas discriminatórias contrárias à cultura de cereais fixavam finalmente preços de varejo para as safras de grãos Nas cidades foi imposto à nascente indústria urbana um sis tema constritivo de corporações e a perseguição religiosa dos conversos conduziu ao êxodo de capitais dos judeus Todas estas medidas foram implementadas com grande energia e resolução em Castela Em Aragão por outro lado nunca se tentou aplicar um pro grama político de alcance comparável Aí ao contrário o máximo que Fernando pôde conseguir foi uma pacificação social e a restauração da 6 Para a obra de Fernando e Isabel em Castela ver Elliott Império Spain pp 8699 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 65 constituição medieval da última fase As prestações obrigatórias dos camponeses da remença foram enfim remidas com a Sentença de Gua dalupe em 1486 e a inquietação rural amainou O acesso à Diputació catalã foi ampliado com a introdução de um sistema de sorteio Ao lado disso o governo de Fernando confirmou sem ambigüidades a identi dade separada do reino oriental as liberdades catalãs foram expressa mente reconhecidas na sua integridade pela Observança de 1481 e novas salvaguardas contra as possíveis infrações reais foram efetiva mente adicionadas ao arsenal já existente de armas locais contrárias a qualquer forma de centralização monárquica Raramente residindo em sua região natal Fernando instalou vicereis nas três províncias a fim de que exercessem a autoridade em seu nome e criou o Conselho de Aragão quase sempre estabelecido em Castela para manter ligação com aqueles Aragão com efeito foi assim virtualmente deixada aos seus próprios meios mesmo os grandes interesses da lã todopode rosos depois do Ebro viramse impotentes para assegurar o consen timento de terras de pastagem através dos territórios agrícolas Uma vez que Fernando fora solenemente obrigado a reconfirmar todos os espinhosos privilégios contratuais da região não se colocava de modo algum a questão de uma fusão administrativa a qualquer nível entre Aragão e Castela Longe de criarem um reino unificado Suas Majes tades Católicas fracassaram mesmo em estabelecer uma moeda única7 sem falar de um sistema fiscal ou jurídico comum dentro de seus rei nos A Inquisição invenção singular na Europa daquela época deve ser entendida neste contexto ela foi a única instituição unitária espanhola na península um elaborado aparelho ideológico que compensava a divisão e a dispersão administrativas do Estado A ascensão de Carlos V iria complicar mas não iria alterar subs tancialmente tal esquema quando muito acabaria por acentuálo O resultado mais imediato do advento de um soberano Habsburgo foi uma nova corte formada basicamente por exilados sob o domínio de flamengos borgonheses e italianos As extorsões financeiras do novo regime logo suscitaram uma onda de intensa xenofobia popular em Castela Assim a partida do próprio monarca para o norte da Europa seria o sinal para uma ampla rebelião urbana contra o que era visto como o saque estrangeiro dos recursos e das posições de Castela A revolta dos comuneros de 152021 conquistou inicialmente o apoio de 7 O único passo no sentido de uma unificação monetária foi a cunhagem de três moedas de ouro de alto valor e equivalentes em Castela Aragão e na Catalunha 66 PERRY ANDERSON muitos nobres das cidades e invocou um conjunto tradicional de reivin dicações constitucionais Mas a sua força motriz foram as massas po pulares de artesãos urbanos sob a orientação dominante da burguesia urbana do norte e do centro de Castela cujos centros comerciais e ma nufatureiros tinham conhecido um surto econômico no período ante rior8 Encontrou pouco ou nenhum eco no campo seja entre o campe sinato seja entre a aristocracia rural o movimento nunca afetou seria mente aquelas regiões onde as cidades eram pouco numerosas ou fracas Galícia Andaluzia Estremadura ou Guadalajara O programa fe derativo e protonacional da junta revolucionária que as comunas castelhanas criaram durante a sua insurreição caracterizoua nitida mente como uma revolta do terceiro estado9 A sua derrota perante os exércitos do rei por trás dos quais reagrupouse o grosso da aristocra cia assim que o radicalismo potencial da sublevação tornouse evi dente constitui portanto um passo crítico na consolidação do absolu tismo espanhol O esmagamento do levante comunero serviu efetiva mente para eliminar os últimos vestígios de uma constituição contra tual em Castela e condenou as Cortes para as quais os comuneros reivindicavam sessões regulares trianuais à nulidade a partir de então Entretanto ainda mais significativo foi o fato de que a vitória mais fundamental da monarquia espanhola sobre a resistência organi zada ao absolutismo real em Castela na verdade o seu único conflito armado com qualquer tipo de oposição naquele reino tenha sido a derrota militar das cidades mais que a dos nobres Em nenhuma outra parte da Europa verificouse o mesmo em relação ao absolutismo nas cente o padrão comum era a supressão de revoltas aristocráticas e não das revoltas burguesas mesmo onde ambas encontravamse intima mente interligadas O triunfo sobre as comunas castelhanas no início de sua trajetória viria a separar a partir daí o curso da monarquia espanhola daquele das suas parceiras ocidentais O acontecimento mais espetacular do reinado de Carlos V foi evidentemente a sua vasta ampliação da órbita internacional Habs burgo Na Europa os Países Baixos o FrancheComté e Milão estavam agora anexados ao patrimônio pessoal dos governantes da Espanha ao passo que nas Américas o México e o Peru eram conquistados Du rante o período de vida do imperador toda a Alemanha foi um impor 8 Ver J A Maravall Lãs Comunidades de Castiüa Una Primera Revolución Moderna Madri 1963 pp 21622 9 Maravall Lãs Comunidades de Castitía pp 445 507 1567 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 67 tante teatro de operações a sobreporse a essas possessões hereditárias Esta súbita expansão territorial reforçaria inevitavelmente a tendên cia inicial do jovem Estado absolutista espanhol à delegação de pode res através de Conselhos e vicereis separados para as diferentes pos sessões da dinastia O chanceler piemontês de Carlos V Mercúrio Gat tinara inspirado pelos ideais universalistas de Erasmo esforçouse por dotar a massa indomável do império Habsburgo com um executivo mais compacto e eficaz ao criar certas instituições unitárias de tipo departamental notavelmente um Conselho de Finanças um Conse lho de Guerra e um Conselho de Estado tornandose este último teori camente o topo de todo o edifício imperial com responsabilidades globais de caráter transregional Estes seriam assistidos por um cres cente secretariado permanente de funcionários civis à disposição do monarca Mas ao mesmo tempo constituiuse progressivamente uma nova série de conselhos territoriais o próprio Gattinara criou o pri meiro deles para o governo das índias No final do século já seriam seis Os conselhos regionais de Aragão Castela índias Itália Portugal e Flandres Excetuando o de Castela nenhum deles tinha um corpo ade quado de funcionários locais na região onde a administração efetiva era confiada a vicereis sujeitos em geral a um precário controle e diri gidos à distância pelos conselhos10 Por sua vez os poderes dos pró prios vicereis eram habitualmente muito limitados Somente nas Amé ricas eles controlavam os serviços de sua burocracia mas mesmo aí eram secundados por audiências que os privavam da autoridade judi cial de que gozavam em outros lugares ao passo que na Europa ti nham que entenderse com as aristocracias residentes siciliana va lenciana ou napolitana que normalmente reivindicavam um direito de virtual monopólio dos cargos públicos Daí resultava um bloqueio a qualquer unificação real tanto do império em seu conjunto como das próprias terras ibéricas As Américas estavam juridicamente vincula das ao reino de Castela o sul da Itália ao reino de Aragão As econo mias atlântica e mediterrânea que cada um representava nunca se reu niriam num sistema comercial único A divisão entre os dois reinos originais da União dentro da Espanha era na prática reforçada pelas possessões ultramarinas a eles anexadas Para efeitos jurídicos a Cata lunha poderia ser simplesmente assimilada em seu estatuto à Sicília ou aos Países Baixos Na realidade por volta do século XVII o poder de Madri em Nápoles ou Milão era efetivamente maior que em Barcelona 10 J Lynch Spain under the Habsburgs II Oxford 1969 pp 1920 68 PERRY ANDERSON ou Saragoça Assim a própria dispersão do irrpério Habsburgo supe rou a sua capacidade de integração e ajudou a deter o processo de centralização administrativa dentro da própria Espanhall Ao mesmo tempo Carlos V inaugurava a fatídica seqüência de guerras européias que viria a ser o preço do poder espanhol no conti nente No teatro meridional de suas inumeráveis campanhas Carlos obteve triunfo esmagador foi durante esse período que a Itália caiu definitivamente sob a ascendência hispânica enquanto a França era afastada da península intimidavase o papado e conservavase à dis tância a ameaça turca A sociedade urbana mais avançada da Europa tornouse daí em diante uma vasta plataforma militar para o absolu tismo espanhol No teatro setentrional de suas guerras entretanto o imperador foi forçado a um dispendioso beco sem saída a Reforma mantevese invencível na Alemanha apesar das suas repetidas tentati vas para esmagála ou levála a um acordo e a hereditária inimizade Valois sobreviveu a todas as derrotas na França Além disso os encar gos financeiros de uma guerra constante no norte afetaram gravemente a lealdade tradicional dos Países Baixos no final do reinado prepa rando os desastres que atingiriam Filipe II nessa região O volume e o custo dos exércitos Habsburgo sofreram rápida e regular escalada du rante o governo de Carlos V Antes de 1529 as tropas espanholas na Itália nunca contaram com mais de 30 mil homens em 153637 havia 60 mil soldados envolvidos na guerra contra a França por volta de 1552 já seriam 150 mil os comandados do imperador na Europa12 Os empréstimos financeiros e as pressões fiscais cresceram em medida correspondente à época de sua abdicação em 1556 as receitas de Car los V tinham triplicado13 e todavia os débitos reais eram tão elevados que o seu herdeiro teve que declarar oficialmente a bancarrota do Es 11 Marx estava ciente do paradoxo do absolutismo Habsburgo na Espanha Após afirmar que a liberdade espanhola desapareceu sob o fragor das armas as chuvas de ouro e as terríveis iluminações dos autosdefé ele indagava Mas como considerar o singular fenômeno de que depois de quase três séculos de dinastia Habsburgo a que se seguiu a dinastia Bourbon cada uma delas capaz de esmagar um povo as liber dades municipais da Espanha ainda sobrevivessem Como explicar que precisamente no país onde de todos os Estados feudais nasceu pela primeira vez a monarquia absoluta em sua forma mais imoderada a centralização nunca tenha conseguido criar raízes K Marx e F Engels Revolutionary Spain Londres 1939 pp 2425 Faltoulhe no entanto uma resposta adequada à questão 12 G Parker The Army of Flanders and the Spanish Road 15671659 Cam bridge 1972 p 6 13 Lynch Spain under the Habsburgs l Oxford 1965 p 128 evidentemente os preços também tinham subido muito nesse intervalo de tempo LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 69 tado um ano mais tarde Sempre dividido no aspecto administrativo o império espanhol herdado por Filipe II no Velho Mundo começava a tornarse economicamente insustentável em meados do século caberia ao Novo Mundo reabastecer o seu tesouro e prolongar a sua desunião Efetivamente a partir de 1560 os múltiplos efeitos do império americano sobre o absolutismo espanhol passaram a ser cada vez mais determinantes para o seu futuro embora seja necessário não confundir os diferentes níveis em que estes se revelavam A descoberta das minas de Potosí aumentara agora enormemente o fluxo do tesouro colonial para Sevilha O suprimento de imensas quantidades de prata das Amé ricas tornouse doravante uma facilidade decisiva para o Estado espanhol em ambos os sentidos do termo pois provia o absolutismo hispânico com um rendimento extraordinário e abundante que se si tuava totalmente fora do âmbito convencional das receitas estatais na Europa Isto significava que o absolutismo na Espanha poderia ainda continuar por muito tempo a prescindir da lenta unificação fiscal e administrativa que constituía uma condição prévia para o absolutismo de outros países a obstinada recalcitrância de Aragão era compensada pela complacência ilimitada do Peru As colônias em outras palavras podiam atuar como substituto estrutural das províncias numa organi zação política onde as províncias ortodoxas foram substituídas pelos patrimônios autárquicos Não há nada mais surpreendente a este res peito do que a ausência completa de qualquer contribuição proporcio nal para o esforço de guerra na Europa durante os séculos XVI eXVII por parte de Aragão ou mesmo da Itália Castela tinha que suportar praticamente sozinha o encargo fiscal das intermináveis campanhas militares no exterior é precisamente por trás dela que estão as minas das índias A incidência total do tributo americano nos orçamentos da Espanha imperial foi evidentemente muito menor do que vulgarmente se pensava na época no auge das frotas de prata os metais preciosos coloniais respondiam apenas por 20 a 25 por cento de suas receitas M O grosso da parte restante das receitas de Filipe II era fornecido pelos encargos domésticos de Castela o tradicional imposto sobre as vendas ou alcabala os servidos especiais cobrados aos pobres a cruzada co brada com a sanção da Igreja ao clero e aos leigos e as obrigações Em inglês o termo facility usado no plural significa também meios ou re cursos N T 14 J H Elliott The Decline of Spain Past and Present a 20 novembro de 1961 republicado em T Aston Org Crisis in Europe 15601660 p 189 Imperial Spain pp 2856 70 PERRY ANDERSON públicas ou juros vendidos aos proprietários Entretanto o metal americano desempenhou sua parte na sustentação da base fiscal metro politana do Estado Habsburgo os níveis fiscais extremamente elevados de sucessivos reinados eram indiretamente amparados pelas transfe rências privadas de metais para Castela cujo volume alcançava em média o dobro dos influxos públicos15 o notável sucesso dos juros como recurso para a obtenção de fundos o primeiro caso de amplo uso de tais obrigações por uma monarquia absoluta na Europa é sem dúvida explicável em parte pela sua capacidade de sangrar essa nova riqueza monetária Além disso a contribuição colonial aos rendi mentos reais constituía por si só um fator decisivo para a condução da política externa espanhola e para a natureza do Estado espanhol Com efeito ela chegava sob a forma de espécie líquida que podia ser utili zada diretamente para financiar movimentos de tropas ou manobras diplomáticas através da Europa e proporcionava excepcionais oportu nidades de crédito aos monarcas Habsburgo que podiam levantar no mercado monetário internacional somas a que nenhum outro príncipe poderia aspirar16 As enormes operações militares e navais de Filipe II do canal da Mancha ao Egeu e de Túnis a Antuérpia somente foram possíveis em razão da extraordinária flexibilidade financeira propi ciada pelo excedente da América Ao mesmo tempo porém o impacto dos metais americanos na economia espanhola enquanto distinta ôx Estado castelhano não era menos importante embora de modo diverso Na primeira metade do século XVI o modesto nível de carregamentos com uma elevada por centagem de ouro forneceu um estímulo às exportações de Castela que rapidamente respondeu pela inflação de preços que se seguiu ao advento do tesouro colonial Uma vez que os 60 a 70 por cento destes metais que não iam diretamente para os cofres do rei tinham que ser comprados como uma mercadoria como qualquer outra aos empreen dedores locais nas Américas desenvolve use um próspero comércio com as colônias principalmente de têxteis azeite e vinho O controle monopolista deste mercado cativo beneficiou inicialmente os produto res castelhanos que nele podiam vender a preços inflacionários em bora os consumidores metropolitanos em breve se queixassem amarga mente do custo de vida interno17 Todavia havia neste processo duas 15 Lynch analisa muito bem este ponto Spain under the Habsburgs l p 129 16 Pierre Vilar Oro y Moneda en Ia Historia 14501920 Barcelona 1969 pp 78 1658 17 Vilar Oro y Moneda pp 1801 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 71 distorções fatais para o conjunto da economia castelhana Em primeiro lugar a crescente demanda colonial conduziu a novas conversões de terras dedicadas à produção cerealífera que passaram à cultura da vinha e da oliveira Isso reforçou a já desastrosa tendência encorajada pelo monarca no sentido de uma contração da produção de trigo à custa da de lã a indústria lanífera espanhola ao contrário da inglesa não era sedentária mas de transumância e portanto extremamente destrutiva da cultura de arado O resultado conjunto dessas pressões faria da Espanha um grande importador de cereais pela primeira vez na década de 1570 A estrutura da sociedade rural de Castela era agora já diferente de qualquer outra na Europa ocidental Os arrendatários dependentes e os pequenos proprietários camponeses constituíam uma minoria no campo No século XVI mais da metade da população rural da Nova Castela talvez mesmo 60 a 70 por cento eram trabalha dores agrícolas ou jornaleros1 e a proporção era talvez mais elevada na Andaluzia Havia um desemprego indiscriminado nas aldeias e pe sadas rendas feudais nas terras senhoriais E ainda mais surpreen dente os censos de 1571 e 1586 revelaram uma sociedade na qual ape nas um terço da população masculina estava engajada na agricultura ao passo que dois quintos eram alheios a qualquer forma de produção econômica direta um prematuro e inchado setor terciário da Es panha absolutista que prefigurava a estagnação secular vindoura19 Mas o dano máximo causado pelo vínculo colonial não se limitava à agricultura o ramo dominante da produção interna naquela época O fluxo de metais preciosos do Novo Mundo produziu também um para sitismo que progressivamente minou e paralisou as manufaturas do país A inflação acelerada elevou os custos de produção da indústria têxtil que operava dentro de limites técnicos muito rígidos a tal ponto que os tecidos castelhanos passaram a ter preços proibitivos tanto para o mercado colonial como para o metropolitano Atravessadores holan deses e ingleses passaram a suprir a melhor fatia da demanda ameri cana enquanto manufaturados estrangeiros mais baratos invadiam a 18 Noel Salomon La campagne de Nouvelle Castille à Ia fin du XVIe Siècle Paris 1964 pp 2578 266 Quanto às dízimas obrigações e rendas ver pp 227 2434 250 19 Foi um historiador português quem sublinhou as implicações deste extraor dinário padrão ocupacional que ele acredita ser válido também para Portugal Vitorino Magalhães Godinho A Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa Lisboa 1971 pp 859 Como ele salienta uma vez que a agricultura era o setor principal da produção econômica em toda sociedade préindustrial um desvio de força de trabalho desta pro porção resultaria inevitavelmente numa estagnação a longo prazo 72 PERRY ANDERSON própria Castela Assim no fim do século os produtos têxteis caste lhanos tornavamse vítimas da prata boliviana Um grito então se ele vou Espana son Ias índias dei extranjero a Espanha transformara se na América da Europa um escoadouro para mercadorias estrangei ras De tal modo não apenas a economia agrária mas também a ur bana foram afinal atingidas pelo esplendor da riqueza americana como lamentaram inúmeros contemporâneos20 O potencial produtivo de Castela estava sendo sabotado pelo mesmo império que injetava re cursos no aparato militar do Estado para aventuras sem precedentes no exterior Havia no entanto uma íntima relação entre os dois efeitos Na verdade se o império americano representava a desagregação da eco nomia espanhola o seu império europeu significou a ruína do Estado Habsburgo e o primeiro tornou a extensa luta pelo último financei ramente possível Sem os carregamentos de metais para Sevílha o co lossal esforço de guerra de Filipe II teria sido impensável Entretanto seria precisamente tal esforço que viria a derrubar a estrutura original do absolutismo espanhol O longo reinado do rei Prudente que cobriu quase toda a segunda metade do século XVI não foi propriamente uma série uniforme de fracassos externos apesar das imensas despesas e dos reveses punitivos em que incorreu na arena internacional O seu padrão básico com efeito não diferiu do de Carlos V êxito no sul derrota no norte No Mediterrâneo a expansão naval turca foi definiti vamente detida em Lepanto em 1571 uma vitória que efetivamente confinou daí em diante as frotas otomanas às suas águas nacionais Portugal foi tranqüilamente incorporado ao bloco Habsburgo através da diplomacia dinástica e de uma oportuna invasão a sua absorção acrescentou as numerosas possessões lusitanas na Ãsia África e Amé rica às colônias espanholas das índias Por sua vez o império ultra marino espanhol foi aumentado pela conquista das Filipinas no Pací fico a mais audaciosa conquista colonial do século no aspecto logístico como no cultural O aparelho militar do Estado espanhol foi aprimo rado até atingir um alto grau de perícia e eficácia a sua organização e sistema de abastecimento tornaramse os mais avançados da Europa A tradicional disposição dos hidalgos castelhanos de servir nos tercios enrijeceu os seus regimentos de infantaria21 enquanto as províncias da 20 Para as reações dos contemporâneos na virada do século XVII ver o exce lente ensaio de Vilar Lê Temps du Quichotte Europe XXXIV 1956 pp 316 21 De forma característica Alba comentava Em nossa nação nada é mais importante que introduzir na infantaria cavalheiros e homens de posses a fim de que não LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 73 Itália e da Valônia se revelavam um reservatório seguro de soldados quando não de impostos para as políticas internacionais dos Habs burgo sintomaticamente os contingentes multinacionais dos exércitos Habsburgo combatiam melhor no estrangeiro do que em solo nativo permitindo a sua própria diversidade um grau relativamente menor de dependência dos mercenários estrangeiros Pela primeira vez na Eu ropa moderna conseguiuse manter um grande exército regular alonga distância da pátria imperial por décadas a fio A partir da chegada de Alba o exército de Flandres contou em média com 65 mil homens por todo o período restante da Guerra dos Oitenta Anos com a Holanda um fato sem precedentes22 Por outro lado a presença permanente dessas tropas nos Países Baixos contou a sua própria história A Ho landa onde já ressoava o descontentamento à época das exações fiscais e das perseguições religiosas de Carlos V explodiu naquilo que viria a ser a primeira revolução burguesa na história sob a pressão do centra lismo tridentino de Filipe II A Revolta dos Países Baixos constituiu uma ameaça direta a interesses vitais da Espanha pois as duas econo mias estreitamente ligadas desde a Idade Média eram ampla mente complementares a Espanha exportava lã e metais preciosos para os Países Baixos e importava tecidos ferragens cereais e provi sões navais Flandres além disso assegurava o cerco estratégico da França e era uma peçachave da supremacia internacional Habsburgo Todavia apesar dos imensos esforços o poder militar espanhol não foi capaz de quebrar a resistência das Províncias Unidas Ademais a intervenção armada de Filipe II nas Guerras Religiosas na França e o seu ataque naval à Inglaterra duas extensões fatais do teatro original da guerra em Flandres foram ambos repelidos a dispersão da Ar mada e a ascensão de Henrique IV marcaram a dupla derrota de sua política de avanço no norte No entanto o balanço internacional no final de seu reinado era ainda aparentemente formidável para o risco de seus sucessores a quem legou um sentimento não diminuído de estatura continental O sul dos Países Baixos fora reconquistado e fortificado As frotas lusoespanholas foram rapidamente reconstituí das depois de 1588 e enfrentaram com êxito os assaltos da Inglaterra às rotas atlânticas do metal A monarquia francesa foi em última análise negada ao protestantismo No plano interno por outro lado o legado de Filipe II na virada seja deixada aos trabalhadores e lacaios Parker The Army ofFlanders and the Spanish Roadç41 22 Parker The Army of Flanders and the Spanish Road pp 2731 74 PERRY ANDERSON do século XVII foi visivelmente mais sombrio Castela tinha agora pela primeira vez uma capital estável em Madri o que facilitava um go verno central O Conselho de Estado dominado pelos grandes do reino e voltado para as questões políticas mais importantes era mais que contrabalançado pela acentuada relevância do secretariado real cujos diligentes funcionáriosbacharéis proviam o confinado monarca com os instrumentos burocráticos de governo mais adequados a ele A unifi cação administrativa dos patrimônios dinásticos não foi entretanto perseguida com coerência Impuseramse reformas de caráter absolu tista nos Países Baixos onde resultaram em desastre e na Itália onde obtiveram um nível modesto de êxito Na própria península ibérica ao contrário não se tentou seriamente nenhum progresso neste sentido A autonomia constitucional e jurídica dos portugueses foi escrupulosa mente respeitada nenhuma interferência castelhana perturbou a or dem tradicional desta aquisição ocidental Nas províncias orientais o particularismo aragonês forneceu truculenta provocação ao rei escon dendo o seu secretário Antônio Perez da justiça real com o recurso a levantes armados em 1591 uma força invasora submeteu esta ruidosa sedição mas Filipe abstevese de qualquer ocupação permanente de Aragão e evitou qualquer modificação importante em sua constitui ção23 A oportunidade de uma solução centralista foi deliberadamente perdida Enquanto isso a situação econômica tanto do país como da monarquia deterioravase funestamente no final do século Os embar ques de prata atingiram níveis máximos de 1590 a 1600 mas as despe sas de guerra eram agora tão elevadas que um novo imposto de con sumo cobrado basicamente sobre os alimentos o mittones foi de cretado em Castela tornandose desde então mais um pesado encargo que caía sobre os trabalhadores pobres nas cidades e no campo No fim de seu reinado as receitas de Filipe II tinham mais que quadru plicado21 mesmo assim a bancarrota oficial o surpreendeu em 1596 Três anos mais tarde abateuse sobre a Espanha a mais terrível peste da época dizimando a população da península À ascensão de Filipe III seguiramse a paz com a Inglaterra 1604 uma nova bancarrota 1607 e depois a relutante assinatura de um armistício com a Holanda 1609 O novo regime era dominado 23 Filipe II limitouse a reduzir os poderes da Diputació local onde a norma da unanimidade foi abolida e do departamento de Justicia bem como a introduzir vice reis nãonaturais em Aragão 24 Lynch Spain under the Habsburgs II pp 123 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 75 pelo aristocrata valenciano Lerma umprivado frívolo e venal que esta belecera ascendência pessoal sobre o rei A paz trouxe consigo um pró digo aparato de corte e a multiplicação das honrarias a influência polí tica abandonou o velho secretariado ao passo que a nobreza caste lhana se congregava outra vez com vistas ao centro do Estado agora suavizado As duas únicas decisões governamentais de Lerma dignas de nota foram o uso sistemático das desvalorizações para desembaraçar as finanças regias inundando o país com o aviltado vellón de cobre e a expulsão em massa dos mariscos da Espanha o que apenas serviu para debilitar a economia rural de Aragão e Valência inflação de preços e escassez de mãodeobra foram o resultado inevitável Entretanto muito mais grave a longo prazo foi a modificação silenciosa que então ocorria no conjunto das relações comerciais entre a Espanha e a Amé rica Desde por volta de 1600 as colônias americanas tornavamse cada vez mais autosuficientes quanto aos bens primários que tradicional mente importavam da Espanha cereais azeite e vinho os tecidos grosseiros começavam também a ser produzidos localmente a constru ção naval desenvolviase com rapidez e o comércio intercolonial pros perava Tais transformações coincidiriam com o crescimento de uma aristocracia crioula nas colônias cuja riqueza derivava mais da agri cultura que da mineração25 As próprias minas estavam sujeitas a uma profunda crise desde a segunda década do século XVII Em parte de vido ao colapso demográfico da força de trabalho índia em razão das devastadoras epidemias e da superexploração dos trabalhadores do subsolo em parte devido à exaustão dos veios a produção de prata co meçou a decair O declínio desde o apogeu do século precedente foi de início gradual Mas a composição e a orientação do comércio entre o Novo e o Velho Mundo alteravase irreversivelmente em detrimento de Castela O padrão das importações coloniais tendia para os bens manu faturados mais sofisticados que a Espanha não poderia fornecer tra zidos como contrabando pelos mercadores ingleses ou holandeses o capital local passa a ser reinvestido no lugar em vez de ser transferido para Sevilha e a navegação nativa americana aumentava a sua parti cipação nos fretes atlânticos O resultado direto foi um calamitoso de créscimo no comércio espanhol com as suas possessões americanas cuja tonelagem total caiu em 60 por cento entre 160610 e 164650 Na época de Lerma as conseqüências últimas de tal processo 25 Lynch Spain underthe Hahsburgs II pp 11 76 PERRY ANDERSON ocultavamse ainda no futuro Mas o declínio relativo da Espanha nos mares e a ascensão das potências protestantes da Inglaterra e da Ho landa às suas custas já eram visíveis A reconquista da República da Holanda e a invasão da Inglaterra fracassaram ambas no século XVI Mas desde aquela data os dois inimigos marítimos da Espanha haviani se tornado mais prósperos e poderosos enquanto a religião reformada continuava a avançar na Europa central Por isso a cessação das hosti lidades por uma década no governo de Lerma serviu meramente para convencer a nova geração de generais e diplomatas imperialistas Zuniga Gondomar Osufla Bedmar Fuentes de que se a guerra era custosa a Espanha não podia custear a paz A ascensão de Filipe IV trazendo o autoritário condeduque de Olivares ao poder máximo em Madri coincidiria com a sublevação nas terras da Boêmia do ramo austríaco da família Habsburgo apresentouse então diante deles a chance de esmagar o protestantismo na Alemanha e acertar contas com a Holanda um objetivo interrelacionado dada a necessidade estratégica de dominar o corredor da Renânia para as movimentações de tropas entre a Itália e Flandres Assim na década de 1620 a guerra européia eclodiu mais uma vez por procuração de Viena mas por ini ciativa de Madri O curso da Guerra dos Trinta Anos reverteu curio samente o padrão das duas grandes lutas travadas pelas armas Habs burgo no século anterior Enquanto Carlos V e Filipe II tinham con quistado vitórias iniciais no sul da Europa e sofreram uma derrota final no norte as forças de Filipe IV obtiveram um êxito precoce no norte apenas para experimentarem desastres definitivos no sul O volume da mobilização espanhola para este terceiro e último engajamento foi for midável em 1625 Filipe IV chamou às suas ordens 300 mil homens2t Os Estados da Boêmia foram esmagados na batalha da Montanha Branca com o auxílio de subsídios e veteranos espanhóis e a causa do protestantismo foi permanentemente batida em terras tchecas Os ho landeses foram forçados ao recuo por Spinola com a captura de Breda O contraataque dos suecos na Alemanha após derrotarem os exércitos austríacos ou da Liga foi neutralizado pelos tercios hispânicos sob o comando do cardealinfante em Nordlingen Mas foram precisamente essas vitórias que afinal forçaram a França a entrar nas hostilidades inclinando decisivamente o equilíbrio militar em prejuízo da Espanha o contraataque de Paris a Nordlingen foi a declaração de guerra de 26 Parker The Army of Flanders andthe Spanish Road p 6 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 77 Richelieu em 1635 Os resultados logo ficariam evidentes Breda foi retomada pelos holandeses em 1637 Um ano depois caía Breisach a chave das estradas para Flandres No espaço de mais um ano o gros so da frota espanhola foi a pique em Downs um golpe muito mais grave para a marinha Habsburgo que o destino sofrido pela Armada Finalmente em 1643 o exército francês pôs fim à supremacia dos ter cios em Rocroi A intervenção militar da França Bourbon revelouse muito diferente das lutas Valois do século anterior agora era a nova natureza e importância do absolutismo francês que abarcava o declínio do poder imperial espanhol na Europa Se no século XVI Carlos V e Filipe II se beneficiaram da fraqueza interna do Estado francês utili zando descontentamentos provinciais para invadir a própria França invertiamse agora os termos um absolutismo francês maduro estava em condições de explorar a sedição aristocrática e o separatismo regio nal na península ibérica para invadir a Espanha Na década de 1520 as tropas espanholas tinham marchado sobre a Provença na de 1590 sobre o Languedoc a Bretanha e a lie de France em aliança ou com o apoio tácito de dissidentes locais Na década de 1640 tropas e navios franceses lutavam conjuntamente com rebeldes antiHabsburgo na Ca talunha em Portugal e em Nápoles o absolutismo espanhol estava em apuros em seu próprio território Efetivamente a longa cadeia de conflitos internacionais no norte manifestouse enfim na própria península ibérica A bancarrota do Es tado foi outra vez declarada em 1627 o vellón foi desvalorizado em 50 por cento em 1628 seguiuse em 162931 uma queda brusca no co mércio transatlântico os galeões de prata deixaram de chegar em 164027 As enormes despesas de guerra conduziram a novos impostos sobre o consumo contribuições cobradas ao clero confiscos dos juros dos títulos públicos apresamento de embarques privados de metais aumento das vendas de honrarias e especialmente de jurisdições senhoriais à nobreza Entretanto todos esses expedientes mostraram se inadequados para levantar as somas necessárias ao prosseguimento da luta pois os seus custos ainda eram suportados quase que exclusi vamente por Castela Portugal não rendia quaisquer rendimentos a Madri já que os subsídios locais estavam destinados aos objetivos de defesa das colônias portuguesas Flandres era cronicamente deficitária Nápoles e a Sícília tinham contribuído com excedentes modestos mas 27 Eliott ImperialSpain p 343 78 PERRY ANDERSON respeitáveis para o tesouro central no século precedente Agora no entanto o custo da cobertura dada a Milão e da manutenção aos pre sídios da Toscana absorviam todos os seus rendimentos apesar dos impostos cada vez mais elevados da venda de cargos e das alienações de terras a Itália continuava a fornecer um material humano inesti mável mas não mais dinheiro para a guerra28 Navarra Aragão e Valência quando muito consentiram em realizar alguns pequenos empréstimos à dinastia em momentos de emergência A Catalunha região mais rica da parte oriental do reino e a mais parcimoniosa de todas as províncias nada pagava não permitindo o dispêndio de im postos ou o emprego de tropas fora de suas fronteiras O preço histórico do fracasso do Estado Habsburgo em harmonizar os seus reinos já era patente no início da Guerra dos Trinta Anos Olivares ciente dos agu dos perigos colocados pela ausência de uma integração central do sis tema político e pela proeminência isolada e arriscada de Castela em seu interior propusera a Filipe IV uma reforma abrangente de todo o sis tema num memorando secreto de 1624 efetivamente uma equali zação simultânea dos encargos fiscais e das responsabilidades políticas entre os diferentes patrimônios dinásticos o que teria possibilitado aos nobres aragoneses catalões e italianos o acesso regular às mais altas posições no serviço real em troca de uma distribuição mais uniforme das responsabilidades fiscais e da aceitação de leis unificadas inspira das nas de Castela29 Este projeto de um absolutismo unitário era de masiado audacioso para que fosse publicamente difundido por temor da reação castelhana e nãocastelhana Mas Olivares também elaborou um segundo projeto mais limitado a União das Armas para a cria ção de um exército de reserva comum de 140 mil homens a ser mantido e recrutado em todas as possessões espanholas para sua defesa co mum Tal esquema oficialmente anunciado em 1626 foi frustrado em todos os sentidos pelo particularismo tradicional A Catalunha 28 Para a crônica financeira das possessões italianas ver A Domínguez Ortiz Política y Hacienda de Felipe IV Madri 1960 pp 1614 De modo geral o papel das componentes italianas do império espanhol na Europa tem sido menos estudado embora seja evidente que é impossível uma abordagem satisfatória do sistema imperial em seu conjunto até que esta lacuna seja sanada 29 A melhor análise deste esquema é oferecida por Elliott The Revolt of the Catalans Cambridge 1963 pp 199204 Domínguez defendeu que Olivares não tinha uma política interna estando exclusivamente preocupado com os negócios externos La Sociedad Espanola en ei SigloXVI l Madri 1963 p 15 Tal ponto de vista é des mentido tanto pelas suas reformas internas iniciais como pela amplitude de suas reco mendações no memorando de 1624 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 79 em particular recusouse a qualquer comprometimento com ele que na prática permaneceu letra morta Mas à medida que o conflito militar se desenrolava e a posição da Espanha ia piorando as pressões para conseguir alguma ajuda ca talã tornavamse cada vez mais desesperadas em Madri Olivares deci diu então forçar a Catalunha à guerra atacando a França através de suas fronteiras meridionais em 1639 o que colocava defacto a provín cia não cooperante na linha de frente das operações espanholas Esta jogada temerária voltouse desastrosamente contra a Espanha30 A sec tária e morosa nobreza catalã faminta de cargos remunerados e ato lada no banditismo das montanhas enfureciase com os comandantes de Castela e com as baixas sofridas diante dos franceses O baixo clero excitava o fervor regionalista O campesinato saqueado pelas ordens de alojamento e pelas requisições levantavase contra as tropas numa ampla insurreição Trabalhadores e desocupados rurais que afluíram às cidades desencadearam violentos tumultos em Barcelona e outras cidades31 A Revolução Catalã de 1640 congregou os agravos de todas as classes sociais com exceção de um punhado de grandes nobres numa explosão irreprimível O poder Habsburgo na província desinte grouse Para afastar os perigos do radicalismo popular e impedir uma reconquista por Castela a nobreza e o patriciado incitaram à ocupação francesa Pelo espaço de uma década a Catalunha tornouse um pro tetorado da França Enquanto isso do outro lado da península Portu gal organizava a sua própria revolta poucos meses após a rebelião ca talã A aristocracia local ressentida com a perda do Brasil para os ho landeses e segura dos sentimentos anticastelhanos das massas não teve dificuldades em reafirmar sua independência uma vez que Olivares cometera o erro crasso de concentrar os exércitos reais contra o leste pesadamente defendido onde saíram vitoriosas as forças francocata lãs em vez de os levar para o oeste comparativamente desmilitari zado32 Em 1643 caía Olivares quatro anos depois por sua vez Ná 30 Olivares estava ciente da magnitude dos riscos que corria Minha cabeça não pode suportar a luz de uma vela ou de uma janela A meu ver isto porá tudo a perder irremediavelmente ou poderá salvar o barco Aí estão religião reino nação tudo e se nossas forças forem insuficientes deixainos morrer com empenho Melhor morrer e mais justo que cair sob o domínio de outros sobretudo de hereges como considero serem os franceses Ou tudo está perdido ou então Castela ficará a testa do mundo como já o está à testa da monarquia de Vossa Majestade Citado em Elliott The Revolt ofthe Catalans p 310 31 Elliott The Revolt ofthe Catalans pp 4608 4736 4867 32 A Domínguez Ortiz The Golden Century of Spain 15561659 Londres 1971 p103 80 PERRY ANDERSON poles e a Sicília livravamse do domínio espanhol O conflito europeu esgotara o tesouro e a economia do império Habsburgo no sul e desin tegrara a sua organização política compósita No cataclismo dos anos 1640 enquanto a Espanha chegava à derrota na Guerra dos Trinta Anos seguida pela bancarrota a pestilência o despovoamento e a in vasão tornavase inevitável que a colcha de retalhos dos patrimônios dinásticos se desfizesse as revoltas separatistas de Portugal da Cata lunha e de Nápoles foram um atestado da fraqueza do absolutismo espanhol Este tinha se expandido demasiado rapidamente cedo de mais graças à sua fortuna ultramarina sem ter jamais consolidado as suas fundações metropolitanas Finalmente a eclosão da Fronda salvou a Catalunha e a Itália para a Espanha Mazarino já por si preocupado com as turbulências internas renunciou à primeira depois que o baronato napolitano re descobriu a lealdade ao seu soberano na última onde os pobres da cidade e do campo tinham irrompido numa ameaçadora revolta social e a intervenção francesa foi abreviada A guerra entretanto arrastou se ainda por mais quinze anos mesmo depois da retomada da última província mediterrânea contra os holandeses os franceses os ingle ses e os portugueses Na década de 1650 houve novas perdas em Flan dres A lenta tentativa de reconquistar Portugal durou mais que todas as outras Nesta altura a classe hidalga castelhana já tinha perdido o gosto pelo campo de batalha reinava entre os hispânicos uma universal desilusão militar As derradeiras campanhas fronteiriças seriam trava das sobretudo com recrutas italianos reforçados por mercenários irlan deses ou alemães33 O seu único resultado foi a ruína da maior parte da Estremadura e a redução das finanças governamentais a um nadir de fútil manipulação e déficit A paz e a independência de Portugal não foram aceitas antes de 1688 Seis anos depois o FrancheComté foi perdido para a França O reinado paralítico de Carlos II presenciou a retomada do poder político central pela classe dos grandes nobres que asseguraram a dominação direta do Estado com oputsch aristocrático de 1677 quando D João José da Áustria seu candidato à regência conduziu vitoriosamente um exército aragonês até Madri E tam bém experimentou a mais negra depressão econômica do século com a paralisação das indústrias o colapso da moeda o retorno à troca di reta a escassez de alimentos e os motins da fome Entre 1600 e 1700 33 Lynch Spain under the Habsburgs II pp 1223 Domínguez Ortiz The Golden Century of Spain pp 3940 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 81 a população total da Espanha caiu de 85 milhões para 7 milhões o maior recuo demográfico do Ocidente Por volta do final do século o Estado Habsburgo estava moribundo em todas as chancelarias estran geiras aguardavase a sua extinção na figura de seu espectral gover nante Carlos II El Hechizado como o sinal de que a Espanha se tor naria o espólio da Europa Com efeito o resultado da Guerra da Sucessão Espanhola reno vou o absolutismo em Madri ao destruir as suas ingovernáveis guardas avançadas A Holanda e a Itália estavam perdidas Aragão e a Catalu nha que cerraram fileiras com o candidato austríaco foram derrota dos e subjugados na guerra civil dentro da guerra internacional Uma nova dinastia francesa foi instalada A monarquia Bourbon levou a cabo o que os Habsburgo não tinham conseguido fazer Os grandes do reino muitos dos quais haviam desertado para o campo angloaustría co durante a Guerra da Sucessão foram submetidos e excluídos do poder central Com a importação da experiência e das técnicas mais avançadas do absolutismo francês os funcionários civis expatriados criaram um Estado unitário e centralizado no século XVIII34 Os sis temas de Estados de Aragão Valência e Catalunha foram eliminados e o seu particularismo suprimido Introduziuse o esquema francês dos intendants reais para o governo uniforme das províncias O exército foi drasticamente remodelado e profissionalizado com uma base semire crutada e um comando rigidamente aristocrático A administração das colônias foi arrochada e reformada livres de suas possessões européias os Bourbons demonstraram que a Espanha poderia gerir o seu império americano de forma competente e lucrativa Na verdade este foi o sé culo no qual uma Espanha coesa por fim gradualmente surgiu em oposição à se m iuniversal monarquia espanola dos Habsburgos35 Todavia a obra da administração carolina que racionalizou o Estado espanhol não podia revitalizar a sociedade espanhola Era O Enfeitiçado N T 34 Ver Henry Kamen The War of Succession in Spain 17001715 Londres 1969 pp 84117 O principal artífice da nova administração foi Bergeyck um flamengo de Bruxelas pp 23740 35 Foi nesta época que uma bandeira e um hino nacionais foram adotados A máxima de Domínguez é característica Menor que o Império maior que Castela a Espanha excelsa criação de nosso século XVIII emergiu da bruma e adquiriu forma sólida e tangível À época da Guerra da Independência a imagem simbólica e plás tica ideal da Nação tal como a conhecemos hoje estava essencialmente completada Antônio Domínguez Ortiz La Sociedad Espanola en ei Siglo XVIII Madri 1955 pp 413 a melhor obra sobre o período 82 PERRY ANDERSON agora demasiado tarde para um desenvolvimento comparável ao da França ou da Inglaterra A outrora dinâmica economia castelhana re cebera o seu golpe final com Filipe IV Embora se verificasse uma re cuperação demográfica real a população elevouse de 7 para 11 mi lhões e uma considerável extensão do cultivo de cereais na Espanha apenas 60 por cento da população estava ainda empregada na agricul tura ao passo que as manufaturas urbanas tinham sido virtualmente amputadas da formação social metropolitana Depois do colapso das minas americanas no século XVII houve um novo surto de prata mexi cana no século XVIII mas na ausência de uma indústria doméstica de dimensões razoáveis este beneficiou provavelmente mais a expansão francesa que a espanhola36 Tal como anteriormente o capital local era desviado para as rendas públicas ou para a terra A administração do Estado não era numericamente muito ampla mas continuava abun dante em empleomania a caça aos cargos pela pequena nobreza empo brecida Os vastos latifúndios tocados pelo trabalho em turmas no sul proporcionavam as fortunas de uma grande nobreza senhorial estag nada estabelecida nas capitais das províncias37 A partir de meados do século ocorreu um refluxo da alta nobreza para os cargos ministeriais enquanto as facções civil e militar lutavam pelo poder em Madri a posse do aristocrata aragones Aranda correspondeu ao ponto mais alto da influência direta dos magnatas na capital38 Entretanto o im pulso político da nova ordem estava se esgotando Por volta do final do século a própria corte Bourbon estava em plena decadência que recor dava a da sua antecessora sob o controle negligente e corrupto de Go doy o último privado As limitações da recuperação do século XVIII cujo epílogo seria o ignominioso colapso da dinastia em 1808 sempre estiveram patentes na estrutura administrativa da Espanha Bourbon Mesmo após as reformas carolinas a autoridade do Estado absolutista detinhase no nível municipal em vastas áreas do país Até a invasão napoleônica mais de metade das cidades na Espanha não se encontra vam sob jurisdição monárquica mas sim senhorial ou clerical O re gime dos senorios uma relíquia medieval que datava do século XII e XIII tinha uma importância mais diretamente econômica que política para os nobres que controlavam tais jurisdições no entanto assegu 36 Vilar OroyMoneda pp 34861 3157 37 Um memorável retrato desta classe pode ser encontrado em Raymond Carr Spain em Goodwin Org The European Nobility in the Eighteenth Century pp 4359 38 Domínguez Ortiz La Sociedad Espanola en ei Siglo XVIII pp 93 178 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 83 ravalhes não apenas lucros como também poder administrativo e ju diciário local39 Essas combinações de soberania e propriedade cons tituíam uma sobrevivência vigorosa dos princípios do senhorio territo rial na época do absolutismo O ancien regime preservou suas raízes feudais na Espanha até o dia de sua morte 39 Domínguez oferece uma ampla pesquisa sobre o modelo dos sctittrit no seu capítulo El Ocaso dei Régimen Senorial La Sociedad Espanola en ei Sifjlo X V I I I pp 30042 onde ele os descreve com a frase citada acima França A França apresenta uma evolução muito diversa do padrão his pânico Aí o absolutismo não dispôs de vantagens iniciais semelhantes às da Espanha na forma de um lucrativo império ultramarino Nem por outro lado defrontouse com os permanentes problemas estrutu rais da fusão de dois reinos distintos no interior de um mesmo país portadores de legados políticos e culturais radicalmente contrastantes A monarquia Capeto como se viu estendera vagamente os seus direi tos de suserania para fora de sua base original na Tle de France num movimento gradual de unificação concêntrica durante a Idade Média até que atingissem de Flandres ao Mediterrâneo Nunca teve que en frentar outro reino territorial de idêntica categoria feudal dentro da França havia apenas uma realeza nas terras gaulesas à parte o pe queno Estado semiibérico de Navarra no remoto sopé dos Pireneus Os mais distantes ducados e condados da França sempre renderam vassalagem nominal à dinastia central mesmo se vassalos inicialmente mais poderosos do que o seu suserano real permitindo uma hierar quia jurídica propícia à posterior integração política As diferenças so ciais e lingüísticas que separavam o sul do norte embora persistentes e acentuadas jamais foram tão amplas como as que distinguiam o leste do oeste na Espanha A língua e o sistema jurídico distintos do Midi não coincidiram para a sorte da monarquia com a principal fissura militar e diplomática que dividiria a França no final da Idade Média a casa de Borgonha o mais importante poder rival alinhado contra a LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 85 dinastia Capeto era um ducado setentrional O particularismo medie val no entanto permaneceu como uma força constante e latente no início da época moderna assumindo formas camufladas e aparências renovadas nas sucessivas crises O controle político efetivo da monar quia francesa nunca foi territorialmente uniforme ele sempre decli nava nas extremidades do país decrescendo progressivamente nas pro víncias de aquisição mais recente a maior distância de Paris Ao mes mo tempo o mero volume demográfico da França colocava formidáveis obstáculos para a unificação administrativa 20 milhões de habitantes faziam dela um país duas vezes mais populoso que a Espanha no século XVI A rigidez e a clareza das Carreiras internas a um absolutismo uni tário na Espanha eram por conseguinte compensadas pela espessa profusão e variedade de vida regional existentes no seio da organização política francesa De tal modo não se registraria um avanço constitu cional linear após a consolidação dos Capeto na França medieval Ao contrário a história da construção do absolutismo francês seria a de um progresso convulsivo em direção ao Estado monárquico centrali zado repetidamente interrompido por recaídas na desintegração e na anarquia provinciais às quais se seguiam uma reação intensificada no sentido da concentração do poder real até que finalmente conseguiu se chegar a uma estrutura extremamente sólida e estável As três gran des rupturas da ordem política foram certamente a Guerra dos Cem Anos no século XV as Guerras Religiosas no século XVI e a Fronda no século XVII A transição da monarquia medieval à absoluta foi de cada vez primeiro detida e depois acelerada por tais crises cujo resul tado último seria a criação de um culto da autoridade real na época de Luís XIV que não encontra paralelo em nenhuma outra parte da Eu ropa ocidental A lenta centralização concêntrica dos reis Capeto discutida an teriormente chegou a um final abrupto com a extinção da linhagem em meados do século XIV o que constituiu o sinal para a eclosão da Guerra dos Cem Anos A explosão de violentos conflitos internos no seio da alta nobreza da França sob o frágil domínio Valois levaria enfim ao ataque angloborgonhês à monarquia francesa do início do século XV que despedaçou a unidade do reino No ponto mais alto das vitórias dos ingleses e borguinhões na década de 1420 o território tra dicional da monarquia no norte da França caiu virtualmente sob con trole estrangeiro enquanto Carlos VII era forçado à fuga e ao exílio no sul A história geral da recuperação posterior da monarquia francesa e da expulsão dos exércitos ingleses é bem conhecida Para os nossas propósitos o legado mais importante da longa ordália que foi a Guer 86 PERRY ANDERSON rã dos Cem Anos seria a sua contribuição final à emancipação fiscal e militar da monarquia em relação aos limites da primitiva organização política medieval A guerra só foi vencida porque foi abandonado o sistema do ban senhorial para a convocação dos cavaleiros que provara ser desastrosamente ineficaz contra os arqueiros ingleses com a criação de um exército remunerado e regular cuja artilharia se revelou a arma decisiva para a vitória Para erigir tal exército a aris tocracia francesa consentiu no primeiro imposto nacional de importân cia a ser cobrado pela monarquia a taille royale de 1439 que se tornaria a taille dês gens darmes regular na década de 1440 A no breza o clero e algumas cidades estavam isentas dela e no curso do sé culo seguinte a definição jurídica de nobreza na França passou a ser a isenção hereditária da taille Assim a monarquia emergiu fortalecida no final do século XV na medida em que podia agora contar com um exército regular embrionário configurado nas compagnies dordon nance chefiadas pela aristocracia e com um tributo direto não sujeito a qualquer controle representativo Por outro lado Carlos VII abstevese de tentar o endurecimento da autoridade dinástica central nas províncias setentrionais da França quando aquelas foram sucessivamente reconquistadas na verdade in centivou as assembléias regionais dos estados e transferiu os poderes financeiros e judiciais para as instituições locais Assim como os gover nantes Capelos tinham combinado a sua extensão do controle monár quico com a concessão de apanágios aos príncipes os primeiros reis Valois associariam a reafirmação da unidade monárquica com a devo lução das províncias a uma aristocracia bem entrincheirada Em am bos os casos a razão era a mesma a evidente dificuldade administra tiva de gerir um país do tamanho da França com os instrumentos de governo com que podia contar a dinastia O aparato repressivo e tribu tário do Estado central era ainda muito limitado as compagnies dor donnance de Carlos VII nunca chegaram a ter mais que 12 mil homens em armas uma força absolutamente insuficiente para controlar e re primir uma população de 15 milhões de pessoas2 Dessa forma a no breza conservou poder local autônomo em virtude de suas próprias es Convocação do vassalo do reí para o serviço militar N T 1 P S Lewis Later Mediaevaí France the Polity Londres 1968 pp 1024 2 Quanto a este ponto ver J Russel Major Representative Institutions in Re naissanceFrance 14211559 Madison 1960 p 9 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 87 padas das quais dependia em última instância a estabilidade do con junto da estrutura social O advento de um modesto exército real serviu para aumentar ainda mais os seus privilégios econômicos com a insti tucionalização da taille assegurando aos nobres uma completa imuni dade fiscal até então inexistente A convocação dos EstadosGerais por Carlos VII uma instituição que estivera em decadência durante séculos na França inspirouse assim precisamente na necessidade de se criar um fórum nacional mínimo no qual o rei pudesse persuadir os vários estados provinciais e cidades a aceitar os tributos ratificar tratados e fornecer conselhos sobre os assuntos externos entretanto as suas ses sões raramente garantiram a satisfação dessas exigências De tal modo a Guerra dos Cem Anos legou à monarquia francesa impostos e tropas permanentes mas pouco fez por uma nova administração civil em es cala nacional A intervenção inglesa foi afastada do solo da França as ambições borgonhesas permaneceram Luís XI que subiu ao trono em 1461 enfrentou tanto a oposição interna como a externa contra o poder Valois com implacável resolução A sua pronta recuperação de apaná gios provinciais como Anjou a acumulação sistemática de governos municipais nas cidades mais importantes a cobrança arbitrária de pe sados impostos e a neutralização das intrigas aristocráticas fizeram crescer de forma significativa o poder e o tesouro reais na França An tes de mais nada Luís XI assegurou todo o flanco oriental da monar quia francesa levando a bom termo a decadência de seu mais perigoso rival e inimigo a dinastia de Borgonha Ao incitar os cantões suíços contra o ducado vizinho financiou a primeira grande derrota européia da cavalaria feudal por um exército de infantaria com o fragoroso re vés de Carlos o Temerário diante dos lanceiros suíços em Nancy em 1477 o Estado borgonhês entrou em colapso e Luís XI anexou a maior parte do ducado Nas duas décadas seguintes Carlos VIII e Luís XII incorporaram a Bretanha o último dos grandes principados indepen dentes através de casamentos sucessivos com sua herdeira O reino da França reunia agora pela primeira vez todas as províncias vassalas da época medieval sob um único soberano A extinção da maioria das grandes casas da Idade Média e a reintegração de seus domínios às terras da monarquia colocou em grande relevo a dominação aparente da dinastia Valois Na realidade contudo a nova monarquia inaugurada por Luís XI estava longe de ser um Estado centralizado ou integrado A França foi redividida em doze governos cuja administração foi confiada a príncipes reais ou nobres proeminentes os quais exerceram legalmente uma ampla gama de direitos soberanos até o final do século e puderam 88 PERRY ANDERSON efetivamente atuar como potentados autônomos até o século seguinte3 Além disso desenvolveuse então também um conjunto faparlaments locais cortes provinciais criadas pela monarquia com suprema autori dade judicial em suas regiões cujo número e importância cresceu rapi damente nesta época entre a ascensão de Carlos VII e a morte de Luís XII foram fundados novos parlements em Toulouse Grenoble Bor deaux Dijon Rouen e Aix Tampouco as liberdades urbanas foram seriamente reduzidas embora a posição da oligarquia patrícia em seu seio tenha sido reforçada às custas das corporações e dos pequenos mestres A razão essencial para estas amplas limitações do Estado cen tral continuava a ser os insuperáveis problemas organizacionais de imposição de um aparelho efetivo de governo monárquico sobre todo o país em meio a uma economia carente de um mercado unificado ou de um sistema de transportes modernos na qual a dissociação das rela ções feudais primárias ao nível da aldeia estava longe de se completar A base social para a centralização política vertical não estava ainda organizada apesar dos avanços notáveis registrados pela monarquia Foi em tal contexto que os EstadosGerais encontraram nova vida após a Guerra dos Cem Anos não em contraposição mas conjuntamente ao reflorescimento da monarquia Na França como em outras partes o impulso inicial para a convocação dos Estados era dado pela necessi dade dinástica de apoio fiscal ou na política externa por parte dos súditos do reino4 Aí no entanto a consolidação dos EstadosGerais como uma instituição nacional permanente foi bloqueada pela mesma diversidade que obrigou a monarquia a aceitar uma ampla delegação de poderes mesmo no momento de sua vitória unitária Não que os três estados estivessem especialmente divididos no aspecto social quando se reuniam a moyenne noblesse dominava os seus trabalhos sem muito esforço Mas as assembléias regionais que elegiam os seus deputados aos EstadosGerais sempre se recusavam a conferirlhes mandato para votar impostos nacionais e uma vez que a nobreza estava isenta do fisco existente havia pouco incentivo para que ela pressionasse pela 3 Major Representative Institutions in Renaissance France p 6 4 Há uma defesa particularmente aguda da tese geral de que os EstadosGerais na França e noutros países quase sempre serviram e não impediram a promoção do poder real na Renascença no excelente estudo de Major Representative Institutions in Renaissance France pp 1620 Na realidade Major talvez force um tanto unilateral mente a argumentação com certeza tornarseia rapidamente menos verdadeiro no decorrer do século XVI se é que o fora antes que os monarcas não temiam as assem bléias dos estados p 16 Mas este é inegavelmente um dos mais iluminados estudos específicos sobre o tema em qualquer língua LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 89 convocação dos EstadosGerais5 A conseqüência foi que os reis fran ceses já que não podiam conseguir as contribuições financeiras alme jadas dos estados da nação cessaram gradualmente de convocálos Foi portanto o entrincheiramento regional do poder senhorial local mais que uma tendência centralista da monarquia que frustrou o sur gimento de um Parlamento nacional na França da Renascença A curto prazo isso iria contribuir para uma quebra completa da autoridade real a longo prazo viria facilitar certamente a tarefa do absolutismo Na primeira metade do século XVI Francisco I e Henrique II presidiram um reino próspero e em crescimento Verificouse uma rá pida diminuição da atividade representativa os EstadosGerais entra ram novamente em decadência depois de 1517 as cidades não foram mais consultadas e a política externa tendia a tornarse mais exclusiva mente uma prerrogativa real Funcionários judiciais os maitres de requêtes estenderam gradualmente os direitos jurídicos da monar quia e os parlements passaram a ser intimidados por sessões especiais na presença do rei ou lits de justice O controle das nomeações na hierarquia eclesiástica foi conquistado pela Concordata de Bolonha assinada com o papa Todavia nem Francisco I nem Henrique II po diam ser vistos como governantes autocráticos ambos se consultavam freqüentemente com as assembléias regionais e mantinham um cuida doso respeito aos privilégios tradicionais da nobreza As imunidades econômicas da Igreja não foram atingidas pela mudança de padroado sobre ela ao contrário do que ocorria na Espanha onde o clero era pesadamente tributado pela monarquia Os éditos reais ainda reque riam em princípio o registro formal pelos parlements para que se tor nassem leis As receitas fiscais duplicaram entre 1517 e a década de 1540 mas o nível dos impostos ao final do reinado de Francisco I não era apreciavelmente superior ao de Luís XI sessenta anos antes em bora os preços e os rendimentos tivessem sofrido grande elevação nesse intervalo6 de tal maneira o rendimento fiscal direto em relação à ri queza nacional efetivamente declinara Por outro lado a emissão de obrigações públicas para rentiers a partir de 1522 ajudou a manter o tesouro real confortavelmente Enquanto isso o prestígio dinástíco in terno era auxiliado pelas constantes guerras externas na Itália para as 5 Ver as opiniões convergentes de Lewis e Major P S Lewis The Failure of the French Mediaeval States Past and Present n 23 novembro de 1962 pp 324 e J Russell Major The EstatesGeneral ofl560 Princeton 1951 pp 75 11920 6 Major Representative Institutions in Renaissance France pp 1267 90 PERRY ANDERSON quais os governantes Valois levavam a sua nobreza estas se tornariam uma sólida válvula de escape para a perene belicosidade da pequena nobreza O longo esforço francês com vistas a conseguir ascendência na Itália iniciado por Carlos VIII em 1494 e concluído pelo Tratado de CateauCambrésis em 1559 resultou em fracasso A monarquia espa nhola política e militarmente mais avançada dispondo do controle estratégico das bases Habsburgo na Europa setentrional e superior no aspecto naval graças a sua aliança com Gênova eliminou facilmente o seu rival francês do controle da península transalpina A vitória nesta luta pertenceu ao Estado cujo processo de absolutização era mais an tigo e mais desenvolvido Em última análise contudo a derrota nesta primeira aventura externa serviu provavelmente para assegurar funda mentos mais firmes e sólidos para o absolutismo francês forçado ao recuo em seu próprio território Do ponto de vista imediato por outro lado o término das guerras italianas combinado às incertezas de uma crise sucessória iria revelar o quanto a monarquia Valois estava inse guramente alicerçada no país A morte de Henrique II precipitou a França em quarenta anos de luta cruenta As guerras civis que grassaram após CateauCambrésis foram evidentemente desencadeadas pelos conflitos religiosos resultantes da Reforma Mas elas forneceram uma espécie de radiografia do orga nismo político da nação no final do século XVI no sentido em que expuseram as múltiplas tensões e contradições da formação social fran cesa na época da Renascença Com efeito a luta entre os huguenotes e a Santa Liga pelo controle da monarquia na prática politicamente vaga após a morte de Henrique II e a regência de Catarina de Médicis serviu como uma arena para a aglutinação de virtualmente todos os tipos de conflitos políticos internos característicos da transição para o absolutismo Do princípio ao fim as Guerras Religiosas foram condu zidas pelas três grandes linhagens rivais de Guise Montmorency e Bourbon cada uma com o controle de um território senhorial vasta clientela influência dentro do aparelho de Estado tropas leais e cone xões internacionais A família Guise era senhora do nordeste da Lo rena à Borgonha a linhagem MontmorencyChâtillon tinha suas bases em terras hereditárias que se estendiam por toda a parte central do país os bastiões Bourbon localizavamse essencialmente no sudoeste A disputa interfeudal entre essas casas da nobreza foi intensificada pelo agravamento da situação dos fidalgos rurais empobrecidos em toda a França os quais estavam antes acostumados às incursões de pilhagem na Itália e agora eram atingidos pela inflação de preços esse estrato social propiciava quadros militares prontos para prolongadas opera LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 91 ções na guerra civil totalmente desvinculados das filiações religiosas que a dividiam Além disso à medida que a luta se desenrolava as próprias cidades separaramse em dois campos muitas das cidades meridionais juntaramse aos huguenotes ao passo que as cidades se tentrionais do interior tornaramse quase sem exceção baluartes da Liga Temse afirmado que orientações comerciais diferentes voltadas para o mercado ultramarino ou o doméstico influenciaram tal divi são7 Parece mais provável contudo que o modelo geográfico geral do huguenotismo refletisse um separatismo regional de antiga tradição no sul que sempre estivera a maior distância da terra natal dos Capelo na lie de France e onde os potentados territoriais locais haviam conser vado por mais tempo a sua independência No início o protestantismo se difundira geralmente da Suíça para a França através dos impor tantes sistemas fluviais do Ródano Loire e Reno8 propiciando uma distribuição regional bastante uniforme da fé reformada Mas uma vez que cessara a tolerância oficial ele reconcentrouse rapidamente no Delphiné Languedoc Guyenne Poitou Saintonge Béarn e Gasconha regiões montanhosas ou litorâneas além do Loire muitas delas ári das e pobres cujas características comuns não eram tanto a vitalidade comercial mas o particularismo senhorial O huguenotismo sempre congregou artesãos e burgueses em suas cidades mas a apropriação do dízimo pelos notáveis calvinistas garantiu que o apelo do novo credo entre os camponeses fosse muito limitado Na realidade a influência social huguenote faziase sentir basicamente na classe proprietária onde podia reclamar talvez metade da nobreza da França na década de 1560 ao passo que nunca superou mais que 10 a 20 por cento do conjunto da população9 No sul a religião abrigouse nos braços da dissidência aristocrática Assim o impacto geral do conflito confessio nal simplesmente rompeu a tênue tessitura da unidade francesa ao longo de sua costura intrinsecamente mais frágil 7 Esta tese é avançada no estimulante ensaio de Brian Pearce The Huguenots and the Holy League Class Politics and Religion in France in the Second Half of the Sixteenth Century inédito que sugere que as cidades do norte estavam conseqüente mente mais interessadas na consolidação da unidade nacional da França No entanto muitos dos principais portos do sul e do oeste também permaneceram católicos Bordéus Nantes e Marselha alinharamse com a Liga Marselha sofreu as conseqüências com as medidas próespanholas que a privaram de seu tradicional comércio levantino G Livet Lês Guerres de Religion Paris 1966 pp 1056 8 Livet Lês Guerres de Religion pp 78 9 J H Elliott Europe Divided 15592598 Londres 1968 p 96 que inclui inter alia uma inteligente narrativa sobre este período da história da França no contexto das lutas políticas internacionais da época 92 PERRY ANDERSON Uma vez posta em marcha porém a luta libertou conflitos so ciais mais profundos que os do secessionismo feudal Perdido o sul para Conde e os exércitos protestantes abateuse sobre a coligação das ci dades católicas do norte uma carga redobrada de impostos reais para a guerra A miséria urbana que resultou desse processo na década de 1580 provocaria uma radicalização da Santa Liga nas cidades à qual se juntou o assassinato de Guise por Henrique III Enquanto os duques do clã Guise Mayenne Aumale Elbeuf Mercoeur separavam a Lorena Bretanha Normandia e Borgonha em nome do catolicismo e os exércitos espanhóis chegavam de Flandres e da Catalunha para au xiliar a Liga explodiam revoluções municipais nas cidades do norte Em Paris o poder foi tomado por um comitê ditatorial de clérigos e bacharéis com o apoio das massas plebéias esfaimadas e de uma fa lange fanática de frades e pregadores10 Orléans Bourges Dijon e Lyon vieram a seguir Quando o protestante Henrique de Navarra se tornou o legitimo sucessor à monarquia a ideologia dessas revoltas urbanas começou a guinar para o republicanismo Ao mesmo tempo a tremenda devastação do campo provocada pelas constantes campanhas militares dessas décadas impeliu o campesinato do centrosul Li mousin Périgord Quercy Poitou e Saintonge a ameaçadores le vantes nãoreligiosos na década de 1590 Foi esta dupla radicalização na cidade e no campo que finalmente reagrupou a classe dominante a nobreza cerrou fileiras tão logo colocouse o perigo de uma sublevação a partir de baixo Henrique IV aceitou taticamente o catolicismo jun touse aos patronos aristocráticos da Liga isolou os Comitês e suprimiu as revoltas camponesas As guerras religiosas terminaram com a reafir mação do Estado monárquico O absolutismo francês tornavase adulto com relativa rapidez embora ainda viesse a ocorrer um contratempo radical antes que ele 10 Para uma sociologia política da liderança municipal da Liga em Paris no auge das Guerras Religiosas ver J H Salmon The Paris Sixteen 15841594 The Social Analysis of a Revolutionary Movement Journal of Modem History 44 n 4 dezembro de 1972 pp 54076 Salmon mostra a importância de que gozavam no Conselho dos Dezesseis os setores médios e baixos da profissão jurídica e enfatiza a manipulação das massas plebéias ao lado de medidas de reparação econômica durante a sua ditadura Há um breve esboço da análise comparativa em H G Koenigsberger The Organiza tion of Revolutionary Parties in France and the Netherlands during the Sixteenth Cen tury Journal of Modem Hisíory 27 dezembro de 1955 pp 33551 Mas há ainda muito a dizer sobre a Liga um dos fenômenos mais complexos e enigmáticos do século o movimento que inventou as barricadas urbanas ainda está à procura de seu historiador marxista LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 93 estivesse definitivamente estabelecido Os grandes artífices de sua ad ministração no século XVII seriam naturalmente Sully Richelieu e Colbert O tamanho e a diversidade do país ainda estavam em grande medida inconquistados quando eles iniciaram a sua obra Continua ram a existir príncipes reais ciumentos do monarca muitas vezes de tentores de governos regionais hereditários Qsparlements provinciais formados por uma combinação de pequena nobreza rural e bacharéis representavam bastiões do particularismo tradicional Crescia em Paris e em outras cidades uma burguesia comercial que controlava o poder municipal As massas francesas tinham sido despertadas pelas guerras civis do século precedente quando ambos os lados em diferentes mo mentos recorreram a elas em busca de apoio e retiveram a lembrança da insurreição popular11 O caráter específico do Estado absolutista francês que emergiu no grand siècle estava destinado a ajustarse e a dirigir tal complexo de forças Henrique IV estabeleceu pela primeira vez o poder e a presença reais em Paris reconstruindo a cidade e trans formandoa na capital permanente do reino A pacificação civil fezse acompanhar da preocupação oficial com a recuperação agrícola e com o incentivo ao comércio externo O prestígio popular da monarquia foi restaurado pelo magnetismo pessoal do próprio fundador da nova di nastia Bourbon O Édito de Nantes e seus artigos complementares con tiveram o problema do protestantismo ao concederlhe autonomia re gional limitada Não houve convocação dos EstadosGerais apesar das promessas nesse sentido feitas durante a guerra civil A paz externa foi mantida e com ela a economia administrativa Sully o chanceler hu guenote duplicou as receitas líquidas do Estado recorrendo basica mente às taxas indiretas ao mesmo tempo que racionalizava a co brança de impostos e cortava despesas A mais importante inovação institucional do reino foi a introdução áapaulette em 1604 a venda de cargos no aparelho de Estado prática comum por mais de um século foi estabilizada pela decisão de Paulet de tornálos hereditários em troca do pagamento de uma pequena porcentagem anual sobre o seu valor de compra uma medida destinada não apenas a aumentar a receita da monarquia como também a preservar a burocracia da in fluência da alta nobreza Sob o regime frugal de Sully a venda de cargos ainda representava apenas 8 por cento das receitas do orça 11 Este ponto é salientado por J H Salmon Venality of Office and Popular Seditionin ITthCentury France Past andPresent julho de 1967 pp413 94 PERRY ANDERSON mento12 Mas a partir da minoridade de Luís XIII essa proporção rapidamente se modificaria O recrudescimento do facciosistno da no breza e da agitação religiosa marcado pela última e inócua reunião dos EstadosGerais 16141615 antes da Revolução Francesa e pela pri meira intervenção agressiva do Parlement de Paris contra o governo monárquico conduziu à breve dominação do duque de Luynes As pensões para subornar capciosos grandes nobres e a retomada da guer ra contra os huguenotes no sul aumentaram consideravelmente as des pesas do Estado Daí em diante a burocracia e o judiciário veriam pulular um volume de transações venais inigualável na Europa A França tornouse a pátria clássica da venda de cargos à medida que um número sempre crescente de sinecuras e prebendas era criado pela monarquia com propósitos financeiros Por volta de 162024 o tráfico destas fornecia cerca de 38 por cento dos rendimentos reais13 Além disso os direitos de cobrança eram agora leiloados entre grandes finan cistas cujos sistemas de coleta podiam sangrar até dois terços das re ceitas fiscais em seu percurso para o Estado O rápido aumento das despesas com as políticas externa e interna na nova conjuntura inter nacional da Guerra dos Trinta Anos além disso era de tal ordem que a monarquia tinha que recorrer constantemente a empréstimos forçados a taxas de juros elevadas junto às sociedades de seus próprios coletores de impostos os quais ao mesmo tempo eram officiers que tinham adquirido postos no setor financeiro do aparelho de Estado14 Este cír culo vicioso de improvisação nas finanças elevava inevitavelmente ao máximo a confusão e a corrupção A multiplicação de cargos venais onde agora se alojava uma nova noblesse de robe impedia qualquer controle dinástico firme sobre as principais agências da justiça e da finança públicas e dispersava o poder burocrático tanto central como localmente Todavia foi nessa mesma época que curiosamente entremeados em tal sistema Richelieu e seus sucessores deram início à construção de uma máquina administrativa racionalizada capaz pela primeira vez de efetivar o controle e a intervenção diretos da monarquia em 12 Mentia Prestwich From Henry III to Louis XIV em H TrevorRoper Org TheAgeofExpansion Londres 1968 p 199 13 Prestwich From Henry III to Louis XIV p 199 14 Uma boa análise deste fenômeno pode ser encontrada em D A Lublins kaya French Absolutism The Crucial Phase 16201629 Cambridge 1968 pp 23443 quanto ao volume da coleta da taitte que era apropriada pelos arrendadores de impostos ver p 308 13 milhões num total de 19 milhões de livres na metade da década de 1620 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 95 toda a França Governando o país defacto a partir de 1624 o cardeal procedeu prontamente à liquidação das fortalezas huguenotes rema nescentes no sudoeste com o cerco e a captura de La Rochelle esma gou sucessivas conspirações aristocráticas com execuções sumárias aboliu as mais altas dignidades militares medievais derrubou castelos da nobreza e proibiu os duelos e suprimiu os estados sempre que a resistência local o permitiu Normandia Acima de tudo Richelieu criou o sistema de intendant Os Intendants de Justice de Police e de Finances eram funcionários despachados para as províncias com amplos poderes inicialmente em missões temporárias ou ad hoc que depois se tornariam comissários permanentes do governo central através da Fran ça Designados diretamente pela monarquia os seus cargos eram revo gáveis e não sujeitos à venda recrutados em geral entre os antigos mai tres de requêtes pertencendo eles próprios à pequena ou à média no breza no século XVII representavam o novo poder do Estado abso lutista nas regiões mais afastadas do reino Extremamente impopulares junto à camada dos officiers cujas prerrogativas locais eles invadiam foram usados com cautela no início e conviveram com os tradicionais governos de províncias Contudo Richelieu rompeu o caráter quase hereditário desses senhorios regionais há longo tempo presa caracte rística dos mais altos magnatas da aristocracia de forma que no final de seu governo apenas um quarto deles ainda permanecia em mãos de homens que ali estavam antes de sua chegada ao poder Ocorreu assim uma evolução simultânea e contraditória dos gruposde officiers e de commissaires no seio da estrutura global do Estado durante esse período Enquanto o papel dos intendants tornavase progressivamente mais proeminente e autoritário a magistratura dos vários parlements do país campeões do legalismo e do particularismo constituíase no portavoz mais sonoro da resistência dos officiers àqueles confinando intermitentemente as iniciativas do governo real A forma composta da monarquia francesa viria assim a adquirir tanto na teoria como na prática uma extrema e pomposa complexi dade Kossmann descreveulhe os contornos através da consciência das classes proprietárias da época numa passagem notável Os contempo râneos sentiam que o absolutismo de modo algum excluía aquela tensão que lhes parecia inerente ao Estado e não modificava sequer uma das suas idéias de governo Para eles o Estado se comparava a uma igreja barroca na qual um grande número de concepções diferentes se mis turam entrechocamse e são finalmente absorvidas num único e mag nífico sistema Os arquitetos tinham descoberto recentemente a forma oval e o espaço ganhou vida nos engenhosos arranjos que dela fizeram 96 PERRY ANDERSON por toda a parte o esplendor das figuras ovais cintilando em cada ângulo projetava sobre toda a construção uma energia e influência flexíveis ritmos incertos acalentados pelo novo estilo15 Tais princí pios estéticos do absolutismo francês contudo correspondiam a propósitos funcionais A relação entre os impostos e as obrigações na época tradicional como se viu tem sido considerada como uma tensão entre a renda feudal centralizada e local Esta duplicação eco nômica foi em certo sentido reproduzida nas estruturas políticas do absolutismo francês Com efeito seria precisamente a complexidade da arquitetura do Estado que permitiria uma lenta embora inexorável unificação da própria classe nobre que adaptouse gradualmente a um novo molde centralizado sujeito ao controle público dos intendants enquanto ainda ocupava posições de apropriação privada dentro do sistema de officiers e a autoridade local nos parlements provinciais Além disso simultaneamente conseguiu a proeza de integrar a nas cente burguesia francesa no circuito do Estado feudal Nesse sentido a compra de cargos representava um investimento tão lucrativo que o capital era perpetuamente atraído das aventuras mercantis e manufa tureiras para um conluio de usura com o Estado absolutista Sinecuras e gratificações cobranças e empréstimos honrarias e obrigações pú blicas tudo isso afastava da produção a riqueza da burguesia A aqui sição de títulos de nobreza e de imunidade fiscal tornouse uma meta empresarial normal para roturiers A conseqüência social desse fato foi a criação de uma burguesia que tendia a tornarse cada vez mais assimilada à própria aristocracia via isenções e privilégios dos cargos O Estado por sua vez patrocinou manufaturas regias e companhias oficiais de comércio que de Sully a Colbert proporcionavam alterna tivas de negócios para essa classe16 O resultado foi desviar a evolu ção política da burguesia francesa por 150 anos O peso de todo esse aparato recaía sobre os pobres O Estado feudal reorganizado passou a fustigar sem piedade as massas rurais e urbanas No caso francês é possível ver com aguda clareza até que 15 Ou para mudar a metáfora se a autoridade real era um sol que brilhava havia um outro poder que refletia concentrava e temperava sua luz uma sombra que escondia esta fonte de energia sobre a qual nenhum olho humano poderia pousar sem ficar cego Referimonos aos Parlements principalmente ao Puriement de Paris Ernst Kossmann La Fronde Leyden 1954 p 23 Denominação dada aos que não eram nobres na sociedade feudal e no antigo regime N T 16 B F Porshnev Lês Soulèvements Populaires en France de 1623 à 1648 pp 54760 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 97 ponto a comutação local das obrigações e a expansão de uma agricul tura monetarizada foram compensados pela extração centralizada de excedentes aos camponeses Em 1610 os agentes fiscais do Estado co letaram 17 milhões de libras com a taille Por volta de 1644 a cobrança desse imposto tinha triplicado para 44 milhões de libras O total dos impostos coletados quadruplicou efetivamente na década que se se guiu a 163017 A razão deste crescimento súbito e enorme dos encargos fiscais foi sem dúvida a intervenção militar e diplomática de Richelieu na Guerra dos Trinta Anos Inicialmente mediada por subvenções à Suécia e depois pela contratação de mercenários alemães esta culmi nou com grandes exércitos franceses no campo de batalha O efeito internacional foi decisivo A França traçou o destino da Alemanha e destruiu a supremacia da Espanha O Tratado de Vestfália quatro anos depois da histórica vitória francesa em Rocroi estendeu as fron teiras da monarquia francesa do rio Mosa ao Reno As novas estruturas do absolutismo francês foram assim batizadas no fogo da guerra euro péia Com efeito o êxito francês na luta contra a Espanha coincidiu com a consolidação interna do complexo burocrático dual que comple tou o Estado Bourbon As emergências militares do conflito facilitaram a imposição da intendência nas zonas invadidas ou ameaçadas o seu gigantesco custo financeiro exigiu vendas de cargos sem precedentes e ao mesmo tempo rendeu fortunas espetaculares às associações de ban queiros Os custos reais da guerra foram sofridos pelos pobres em cujo meio esta provocou a devastação social As pressões fiscais do absolu tismo do tempo da guerra geraram vagas constantes de desesperadas revoltas das massas rurais e urbanas por décadas e décadas Houve motins urbanos em Dijon Aix e Poitiers em 1630 jacqueries na zona rural de Angoumois Saintonge Poitou Périgord e Guyenne em 1636 37 e uma grande rebelião plebéia e camponesa na Normandia em 1639 Os levantes regionais mais importantes alternavamse com cons tantes irrupções menores de rebeldia contra os coletores de impostos em amplas áreas da França muitas vezes patrocinadas pela pequena nobreza local As tropas reais eram regularmente deslocadas para a repressão interna enquanto o conflito internacional continuava no exterior Sob certos aspectos a Fronda pode ser considerada como uma alta crista da onda prolongada de revoltas populares18 na qual por 17 Prestwich From Henry III to Louis XIV p 203 Mousnier Peasant Upri sings Londres 1971 p 307 18 Esta é a opinião de Porshnev em Lês Soulèvements Populaires en France 98 PERRY ANDERSON um breve espaço de tempo setores da alta nobreza da magistratura detentora de cargos e da burguesia municipal lançaram mão do des contentamento das massas para seus próprios fins contra o Estado absolutista Mazarino que sucedeu Richelieu em 1642 conduziu com habilidade a política externa da França até o final da Guerra dos Trinta Anos e a aquisição da Alsácia No entanto após a Paz de Vestfália Mazarino provocou a crise da Fronda ao estender a guerra antiespa nhola até o teatro do Mediterrâneo onde como italiano aspirava à separação de Nápoles e da Catalunha A extorsão fiscal e a manipula ção financeira destinadas a sustentar o esforço de guerra no estran geiro coincidiram com sucessivas más colheitas em 16471649 e 1651 A fome e a fúria popular combinaramse com uma revolta dos officiers liderados pelo Parlement de Paris contra o sistema de intendants que foi apressada pela exasperação com a guerra com o descontentamento dos rentiers diante da desvalorização de emergência das obrigações pú blicas e com o ciúme de poderosos pares do reino perante um aven tureiro italiano que manipulava uma minoria vinculada ao rei O des fecho seria um entrevero confuso e penoso no qual uma vez mais o campo pareceu desintegrarse à medida que as províncias se desliga vam de Paris os exércitos privados perambulavam saqueando pelo país as cidades estabeleciam ditaduras municipais rebeldes e comple xas intrigas e manobras dividiam e reuniam os príncipes rivais que competiam pelo controle da corte Os governadores provinciais procu ravam acertar suas contas com os parlements locais enquanto as auto ridades municipais aproveitavam a oportunidade para atacar os magis trados regionais19 Assim a Fronda reproduzia muitos elementos do padrão que caracterizara as Guerras Religiosas Desta vez a insurrei ção urbana mais radical coincidiria com uma das regiões rurais tradi cionalmente mais insatisfeitas a Ormée de Bordeaux e o extremo su doeste foram os últimos centros de resistência aos exércitos de Maza rino Mas a tomada do poder pelo povo em Bordeaux e Paris ocorreria demasiado tarde para que pudesse afetar o resultado dos conflitos en trecruzados da Fronda o huguenote mantevese em geral cuidadosa dosamente neutro no sul e a Ormée não produziu nenhum programa político coerente que superasse a hostilidade instintiva da burguesia bordalesa local20 Em 1653 Mazarino e Turenne tinham eliminado os últimos redutos da revolta O progresso da centralização administra 19 Quanto a este aspecto ver Kossman La Fronde pp 11738 20 Kossmarin La Fronde pp 20 24 2502 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 99 tiva e da reorganização de classe concluído no seio das estruturas mis tas da monarquia francesa no século XVII revelara a sua eficácia Embora a pressão social vinda de baixo fosse provavelmente mais ur gente a Fronda fora na realidade menos perigosa para o Estado mo nárquico do que as Guerras Religiosas porque as classes proprietárias estavam agora mais unidas Apesar de todas as contradições existentes entre os sistemas dos officiers e dos intendants ambos os grupos eram predominantemente recrutados entre a noblesse de robe ao passo que os banqueiros e os coletores de impostos contra os quais protestavam os parlements mantinham efetivamente estreitas relações pessoais com eles O processo de tempera possibilitado pela coexistência dos dois sistemas no seio de um único Estado acabou assim por assegurar uma solidariedade mais imediata contra as massas A própria profundidade da inquietação popular revelada pela Fronda abreviou o último rompi mento emocional da aristocracia dissidente com a monarquia embora viessem a ocorrer novos levantes camponeses no século XVII a con fluência da rebelião do topo e da base nunca mais voltaria a se dar A Fronda custou a Mazarino as suas projetadas conquistas no Mediter râneo Mas quando a guerra com a Espanha terminou com o Tratado dos Pireneus o Roussillon e o Artois tinham sido anexados à França e uma seleta elite burocrática estava treinada e pronta para impor a or dem administrativa no reinado seguinte A aristocracia a partir de então iria encontrar sossego sob o absolutismo consumado e solar de Luís XIV O novo soberano assumiu pessoalmente o comando de todo o aparelho do Estado em 1661 Uma vez reunidas num único governante a autoridade real e a capacidade executiva todo o potencial político do absolutismo francês realizouse rapidamente Os Parlements foram si lenciados e a sua exigência de apresentar objeções aos éditos reais antes do registro foi anulada 1673 As outras cortes soberanas foram redu zidas à obediência Os estados provinciais não mais podiam discutir e regatear os impostos a monarquia impôs exigências fiscais precisas que eles se viram compelidos a aceitar A autonomia municipal das bonnes villes foi restringida enquanto as prefeituras eram subordina das e instalavamse nelas guarnições militares Os cargos de gover nador passaram a ser concedidos por apenas três anos e os seus deten tores foram com freqüência obrigados a residir na corte o que os tornava meramente honoríficos O comando das cidades fortificadas nas regiões fronteiriças foi submetido ao sistema de rodízio Assim que o complexo palaciano foi terminado a alta nobreza foi obrigada a re sidir em Versalhes 1682 e viuse divorciada do senhorio efetivo sobre 100 PERRY ANDERSON os seus domínios territoriais Tais medidas contra o particularismo re fratário das instituições e dos grupos tradicionais provocaram eviden temente ressentimentos tanto entre os príncipes e os pares do reino como entre a pequena nobreza da província Mas não alteraram o vín culo objetivo entre a aristocracia e o Estado a partir daí mais eficaz do que nunca na proteção dos interesses básicos da classe nobiliária O grau de exploração econômica garantido pelo absolutismo francês pode ser avaliado com base em um cálculo recente segundo o qual durante todo o século XVII a nobreza 2 por cento da população apro priavase de 20 a 30 por cento do rendimento total da nação21 O meca nismo central do poder monárquico estava agora portanto concen trado racionalizado e ampliado sem maior resistência da aristocracia Luís XIV herdou os seus ministroschave de Mazarino Lê Tel lier encarregado dos assuntos militares Colbert que chegou a reunir a gestão das finanças reais dos assuntos internos e da marinha Lionne que dirigiu a política exterior e Séguier que como chanceler cuidava da segurança interna Esses competentes e disciplinados administra dores constituíam a cúpula da ordem burocrática agora à disposição da monarquia O rei presidia pessoalmente as deliberações do pequeno Conseil den Haut que compreendia os seus auxiliares políticos de maior confiança e excluía os príncipes e os grandes do reino Tal con selho viria atornarse o corpo exclusivo supremo do Estado enquanto o Conseil dês Dépêches tratava das questões provinciais e nacionais e o recémcriado Conseil dês Finances supervisionava a organização eco nômica da monarquia A eficácia administrativa desse sistema relati vamente rígido mantido coeso pela incansável atividade do próprio Luís XIV era muito maior que a da incômoda parafernália conciliar do absolutismo Habsburgo na Espanha com sua disposição semiterrito rial e as suas intermináveis ruminações coletivas Abaixo dele a rede dê intendants cobria toda a França a última província a receber um comissário em 1689 foi a Bretanha22 O país foi dividido em 32géné ralités em cada uma das quais o intendant real tinha agora autoridade suprema assistido por subdélégués e investido com novos poderes so bre a coleta e a supervisão da taille atribuições vitais transferidas dos antigos officiers tesoureiros que antes as controlavam O total dos funcionários do setor civil do aparelho político central do absolu 21 Pierre Goubert Lês Problèmes de Ia Noblesse au XVIIe Siècle XUIth International Congress of HistoricalSciences Moscou 1970 p 5 22 Pierre Goubert Louis XIVet Vingt Millions de Français pp 164 166 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 101 tismo francês no reinado de Luís XIV era ainda muito modesto talvez mil funcionários responsáveis ao todo contandose a corte e as pro víncias23 Mas eles eram amparados por uma máquina repressiva maci çamente aumentada Uma força permanente de polícia foi criada em Paris 1667 para manter a ordem e reprimir os motins estendendose depois por toda a França 169899 O volume do exército aumentou enormemente durante o reinado subindo de 30 a 50 mil homens para os 300 mil do final do período24 Lê Tellier e Louvois introduziram o soldo regular o treinamento e os uniformes o armamento e as forti ficações militares foram modernizados por Vauban O crescimento desse aparato militar significava o desarmamento final da nobreza das províncias e a capacidade de esmagar rebeliões populares com presteza e eficácia25 Os mercenários suíços que proveram o absolutismo Bour bon de suas tropas de repressão interna ajudaram a dar cabo dos cam poneses boulonnais e camisards os novos dragões operaram a evacua ção dos huguenotes da França O incenso ideológico que cercava a mo narquia generosamente dispensado pelos escritores e clérigos a soldo do regime encobria a repressão armada sobre a qual este se assentava mas não podia ocultála O absolutismo francês consumou a sua apoteose institucional nas últimas décadas do século XVII A estrutura do Estado e a correspon dente cultura dominante aperfeiçoadas no reinado de Luís XIV viriam a tornarse o modelo para o restante da nobreza européia a Espanha Portugal o Piemonte e a Prússia foram apenas os exemplos posterio res mais diretos de sua influência Mas o rayonnement político de Ver salhes não constituía um fim em si as realizações organizacionais do absolutismo Bourbon estavam destinadas na concepção de Luís XIV a servir a um propósito específico o objetivo supremo da expansão militar A primeira década do reino de 1661 a 1672 foi essencialmente dedicada à preparação interna das futuras aventuras externas Nos as pectos administrativo econômico e cultural estes seriam os anos mais fulgurantes do governo de Luís XIV quase todas as suas realizações mais duradouras dataram dessa fase Sob a hábil superintendência do jovem Colbert a pressão fiscal foi estabilizada e incentivouse o comér 23 Goubert Louis XIV et Vingt Millions deFrançais p 72 24 J Stoye Europe Unfolding 16481688 Londres 1969 p 223 Goubert Louis XIVet Vingt Millions de Français p 186 25 Roland Mousnier Peasant Uprisings Londres 1971 p 115 enfatiza com justeza este ponto e comenta que as rebeliões de 1675 na Bretanha e em Bordéus cons tituíram os últimos levantes sociais importantes do século 102 PERRY ANDERSON cio As despesas do Estado foram cortadas pela supressão maciça dos novos cargos criados a partir de 1630 as espoliações dos arrendadores de impostos foram drasticamente reduzidas ainda que a própria coleta não tenha sido reassumida pelo Estado os domínios territoriais da mo narquia foram sistematicamente recuperados A taille personelle foi rebaixada de 42 para 34 milhões de libras enquanto isso a taille réette subia cerca de 50 por cento nospays détats onde era mais leve a tri butação a receita dos impostos indiretos cresceu cerca de 60 por cento com o controle vigilante sobre o sistema de arrecadação Os rendimen tos líquidos da monarquia dobraram entre 1661 e 1671 e passouse a conseguir um excedente orçamentário regular26 Entretanto lançava se um ambicioso programa mercantilista para acelerar o crescimento manufatureiro e comercial na França e a expansão colonial ultrama rina as subvenções reais fundaram novas indústrias tecidos vidro tapeçaria ferragens criaramse companhias privilegiadas para explo rar o comércio das índias Orientais e Ocidentais os estaleiros foram amplamente subsidiados e finalmente impôsse um sistema tarifário extremamente protecionista Foi precisamente tal mercantilismo con tudo que levou diretamente à decisão de invadir a Holanda em 1672 com o intuito de suprimir a concorrência de seu comércio que pro vara ser facilmente superior ao comércio francês através da incor poração das Províncias Unidas aos domínios da França A guerra com a Holanda foi inicialmente bemsucedida as tropas francesas cruza ram o Reno estabeleceramse a uma distância surpreendente de Ams terdam e tomaram Utrecht Entretanto formouse rapidamente uma coligação internacional em defesa do status quo principalmente a Espanha e a Áustria enquanto isso a dinastia de Orange recuperava o poder na Holanda forjando uma aliança matrimonial com a Ingla terra Sete anos de luta culminaram com a França em posse do Fran cheComté e uma fronteira ampliada no Artois e em Flandres mas com as Províncias Unidas intatas e a tarifa antiholandesa de 1677 revo gada um balanço modesto no exterior No plano interno a compressão fiscal de Colbert caminhava para o naufrágio a venda de cargos mul tiplicavase mais uma vez os antigos impostos eram aumentados in ventavamse novos os empréstimos sofriam flutuações e os subsídios eram queimados Daí em diante a guerra dominaria praticamente todos os aspectos do reino7 A miséria e a fome causadas pelas exações 26 Goubert Louis XIVet Vingt Mittions de Français pp 902 27 Mesmo num certo sentido os seus ideais culturais A simetria e a ordem recémadquiridas da praça de armas constituíam para Luís XIV e seus contemporâneos LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 103 do Estado e por uma série de más colheitas levaram a renovados le vantes do campesinato na Guyenne e na Bretanha em 167475 e à su pressão armada sumária dos mesmos desta vez nenhum senhor ou cavaleiro tentou usálos para seus próprios fins A nobreza aliviada dos encargos financeiros que Richelieu e Mazarino tinham tentado lhe impor manteve a sua lealdade durante todo o tempo28 Entretanto a restauração da paz por dez anos na década de 1680 apenas acentuou a arrogância do absolutismo Bourbon O rei estava agora enclausurado em Versalhes a qualidade do ministério de clinava à medida que a geração escolhida por Mazarino dava lugar a sucessores mais ou menos medíocres que por cooptação hereditária provinham do mesmo grupo de famílias interrelacionadas da noblesse de robe canhestras atitudes antipapais vieram juntarse à insensata expulsão de protestantes para fora do reino lançouse mão de gritantes artimanhas legais para uma série de pequenas anexações no nordeste Internamente prosseguia a depressão agrária embora o comércio ma rítimo se recuperasse e sofresse um novo boom para a apreensão dos mercadores ingleses e holandeses A derrota do candidato francês ao Eleitorado de Colônia e a elevação de Guilherme III à monarquia in glesa seriam os sinais para a retomada do conflito internacional A Guerra da Liga de Augsburgo 168997 alinhou virtualmente toda a Europa central e ocidental contra a França Holanda Inglaterra Áustria Espanha Sabóia e a maior parte da Alemanha Os exércitos franceses foram mais que duplicados em potência alcançando cerca de 220 mil homens na década da intervenção O máximo que puderam fazer foi levar a coligação a um custoso empate os esforços de guerra de Luís XIV frustraramse por toda a parte O único ganho registrado pela França no Tratado de Ryswick foi a aceitação européia da absor ção de Estrasburgo garantida antes da eclosão da luta todos os de mais territórios ocupados tiveram que ser evacuados enquanto a ar mada francesa era afastada dos mares Para financiar o esforço de o modelo ao qual a vida e a arte deviam igualmente conformarse e o pás cadencé de Martinet cujo nome é por si só um programa ecoava outra vez na monotonia majestática de intermináveis alexandrinos Michael Roberts The Military Revolution 15601660 Essays in Swedish History Londres 1967 p 206 28 Os cardeais tentaram submeter a aristocracia a impostos disfarçados sob a forma de comutações do ban militar devido nos feudos Tais medidas provocaram grande descontentamento entre a pequena nobreza e foram abandonadas por Luís XIV Ver Pierre Deyon A Propôs dês Rapports Entre Ia Noblesse Française et Ia Monarchie Absolue Pendant Ia Première Moitié du XVIIe Siècle Revue Hisiarique CCXXXf 1964 pp 3556 UFMS 104 PERRY ANDERSON guerra criouse uma cascata de novos cargos à venda leiloaramse tí tulos multiplicaramse os empréstimos forçados e as rendas públicas manipularamse os valores monetários e pela primeira vez foi lançado um imposto de capitação ao qual nem a própria nobreza escapouK A inflação a fome e o despovoamento fustigavam os campos Contudo no espaço de cinco anos a França foi de novo mergulhada no conflito europeu pela sucessão espanhola Mais uma vez a inépcia diplomática e as rudes provocações de Luís XIV maximizaram a coligação contra a França no conflito militar decisivo que agora se travava o vantajoso testamento de Carlos II fora menosprezado pelo herdeiro francês Flan dres ocupada pelas tropas da França a Espanha dirigida por emissá rios franceses os contratos de comércio de escravos com as suas colô nias americanas foram incorporados pelos mercadores franceses e o pretendente Stuart exilado ostensivamente saudado como monarca da Inglaterra A determinação Bourbon de monopolizar a totalidade do império hispânico recusando qualquer partilha ou diminuição da vasta presa espanhola uniria inevitavelmente a Áustria Inglaterra Holanda e a maior parte da Alemanha contra ela Por tudo querer o absolu tismo francês acabou por não conseguir virtualmente nada de seu su premo esforço de expansão política Os exércitos Bourbon agora com a potência de 300 mil homens equipados com rifles e baionetas foram dizimados em Bleinheim Ramillies Turim Oudernade Mal plaquet A própria França foi golpeada pela invasão enquanto no plano interno os impostos entravam em colapso a moeda sofria desva lorização eclodiam na capital os tumultos do pão e a fome e o frio entorpeciam a zona rural No entanto à parte o levante huguenote local em Cévennes o campesinato permaneceu tranqüilo Acima dele a classe dominante cerrava compactas fileiras em torno da monarquia mesmo em meio à sua autocrática disciplina e aos desastres estrangei ros que abalavam a sociedade inteira A tranqüilidade apenas chegou com a derrota definitiva na guer ra A paz foi mitigada pelas divisões no seio da coligação vitoriosa con tra Luís XIV o que permitiu ao ramo jovem da dinastia Bourbon con servar a monarquia na Espanha sob o preço de uma separação política da França Sob outros aspectos a desastrosa ordália não rendera ne nhum benefício ao absolutismo gaulês Limitarase a estabelecer a Áus tria nos Países Baixos e na Itália e a fazer da Inglaterra senhora do comércio colonial na América espanhola Na verdade o paradoxo do 29 Goubert LouisXIVet Vingt Millions deFrançais pp 15862 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 105 absolutismo francês consistiu em que o ápice de seu florescimento in terno não coincidiu com o ápice de sua supremacia internacional ao contrário foi a estrutura política ainda defeituosa e incompleta de RÍ chelieu e Mazarino marcada por anomalias institucionais e dilacerada por sublevações internas que consumou espetaculares êxitos externos ao passo que a monarquia consolidada e estável de Luís XIV com sua autoridade e sua força militar enormemente aumentadas fra cassou solenemente em imporse à Europa ou realizar conquistas terri toriais notáveis A construção institucional e a expansão internacional estiveram defasadas e invertidas no caso francês A razão disso certa mente reside na aceleração de um tempo distinto daquele do conjunto do absolutismo nos países marítimos Holanda e Inglaterra O abso lutismo espanhol deteve a dominação européia durante cem anos posta em xeque inicialmente pela Revolução Holandesa a sua supremacia seria enfim destruída pelo absolutismo francês em meados do século XVII com a ajuda da Holanda Contudo o absolutismo francês não gozou de um período comparável de hegemonia na Europa ocidental No espaço de vinte anos após o Tratado dos Pireneus a sua expansão já tinha sido contida A derrota final de Luís XIV não se deveu a seus numerosos erros estratégicos mas à alteração da posição relativa da França no seio do sistema político europeu que resultará do advento das revoluções inglesas de 1640 e 168830 Foi a ascensão econômica do capitalismo inglês e a consolidação política de seu Estado no final do século XVII que surpreenderam o absolutismo francês mesmo na época de sua própria ascensão Os verdadeiros vencedores da Guerra da Sucessão Espanhola foram os comerciantes e os banqueiros de Lon dres esta anunciou um imperialismo britânico de escala mundial O Estado feudal espanhol da última fase fora derrubado pelo seu equiva lente e rival francês com o auxílio do jovem Estado burguês da Ho landa O Estado feudal francês da última fase foi barrado em seu curso por dois Estados capitalistas de poder desigual Inglaterra e Holanda assistidos por seu parceiro austríaco O absolutismo Bourbon foi intrinsecamente mais forte e unificado do que o fora o absolutismo 30 Como é evidente Luís XIV mostrouse incapaz de avaliar esta mudança donde os seus constantes disparates diplomáticos A fraqueza temporária da Inglaterra na década de 1660 quando Carlos II era hóspede da França levouo constantemente a subestimar a ilha mesmo quando a sua importância política central na Europa ocidental era já óbvia Assim a falha cometida por Luís XIV por não oferecer nenhum tipo de auxílio preemptivo a Jaime II em 1688 antes do desembarque de Guilherme III viria a ser um dos erros mais fatais de uma carreira bem suprida deles 106 PERRY ANDERSON espanhol mas as forças contra ele dispostas foram também mais pode rosas Os diligentes preparativos internos do reinado de Luís XIV com vistas à dominação externa revelaramse inúteis Aparentemente tão próxima na Europa da década de 1660 a hora da supremacia de Ver salhes nunca chegou a soar Em 1715 o advento da Regência anunciou a reação social a esse fracasso Liberando subitamente os seus ressentimentos contra a auto cracia real até então contidos a alta nobreza preparou uma reaparição imediata O regente assegurou a concordância do Parlement de Paris para pôr de lado o testamento de Luís XIV em troca da restauração de seu direito tradicional de reclamação o governo passou às mãos dos pares que prontamente puseram fim ao sistema ministerial do rei fale cido assumindo eles próprios o poder direto no chamado polysyno die Assim tanto unoblesse dépée como a noblesse de robe foram ins titucionalmente reintegradas pela Regência A nova época viria efeti vamente acentuar o aberto caráter de classe do absolutismo o século XVIII presenciaria à regressão da influência nãonobre no aparelho de Estado e a dominação coletiva de uma alta aristocracia cada vez mais unificada O controle dos magnatas sobre a própria Regência não du raria muito sob Fleury e depois sob os dois frágeis monarcas que o sucederam o sistema decisório na cúpula do Estado reverteu ao antigo modelo ministerial agora não mais dirigido por um monarca impera tivo Mas a partir daí a nobreza manterseia firmemente aferrada aos mais altos cargos do governo de 1714 a 1789 apenas três ministros não eram aristocratas com título31 Da mesma forma a magistratura ofi cial áosparlements formaria agora um restrito estrato nobiliário tanto em Paris como nas províncias do qual estavam excluídos os plebeus Os intendants reais outrora o flagelo dos proprietários rurais das pro víncias transformaramse por seu turno numa casta quase hereditá ria durante o reinado de Luís XVI catorze deles eram filhos de antigos intendants2 Na Igreja todos os bispos e arcebispos eram de origem nobre na segunda metade do século e a maior parte das abadias prio ratos e canonicatos estavam sob controle da mesma classe No exército os mais altos comandos militares estavam solidamente ocupados pelos grandes nobres a compra de companhias por roturiers foi abolida na 31 Albert Goodwin The Social Structure and Economic and Polítical Alti tudes of the French Nobility in the 18th Century Xllth International Congress of His toricalSciences Rapports I p 361 32 J McManners France em Goodwin Org TheEuropean Nobility in the 18th Century pp 335 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 107 década de 1760 quando se tornou necessário dispor de inquestionável origem nobre para qualificarse ao grau de oficial A classe aristocrá tica em seu conjunto conservou um rigoroso estatuto da última fase feudal constituía uma ordem juridicamente definida com cerca de 250 mil pessoas isenta do grosso dos impostos e com o monopólio dos mais elevados escalões da burocracia do judiciário do clero e do exército As suas subdivisões eram agora meticulosamente definidas do ponto de vista teórico e entre os altos pares e os mais inferiores hobereaux rurais existia um grande abismo Mas na prática lubrificantes como o dinheiro e o casamento fizeram das suas mais altas instâncias em mui tos aspectos um grupo distinto mais flexível que nunca A nobreza da França na época do iluminismo possuía uma completa segurança de seu domínio no interior das estruturas do Estado absolutista Todavia subsistia entre ambos um sentimento irredutível de desconforto e atrito mesmo neste último período de união ótima entre aristocracia e monar quia Pois o absolutismo independentemente da congenialidade de seus servidores ou dos atrativos de seu serviço continuava a ser um poder inacessível e irresponsável exercido por sobre a cabeça da no breza em seu conjunto A condição de sua eficácia enquanto Estado estava na sua distância estrutural em relação à classe na qual se recru tara e cujos interesses defendia O absolutismo na França nunca alcan çaria confiança e aceitação inquestionáveis por parte da aristocracia em que se baseava as suas decisões não podiam ser atribuídas à ordem titular que lhe deu vida e tal característica era necessária como veremos em razão da natureza inerente da própria classe e também arriscada devido ao perigo de ações impensadas ou arbitrárias do Exe cutivo que teriam repercussões sobre ela A plenitude do poder real mesmo quando exercido com brandura alimentava reservas dos se nhores diante dele Montesquieu presidente do Parlement de Bor déus no complacente regime de Fleury deu expressão incontestável ao novo tipo de oposicionismo aristocrático característico do século Na verdade a monarquia Bourbon do século XVII efetuou bem poucos movimentos de tipo nivelador contra os poderes interme diários que Montesquieu e seus consortes tanto elogiavam Na França o ancien regime preservou a sua selva desconcertante de jurisdições divisões e instituições heteróclitas pays détatspays dêléctions par lements sénésckaussés généralités até a revolução Após Luís XIV Nome dado na França à pequena nobreza que tiranizava os seus campo neses N T 108 PERRY ANDERSON quase não ocorreu nenhuma racionalização adicional do sistema polí tico nunca foram criados tarifas alfandegárias nem sistema fiscal co dificação de leis ou administração local com caráter uniforme A única tentativa da monarquia de impor uma nova conformação a um corpo coletivo foi o seu persistente esforço para assegurar a obediência teo lógica do clero através da perseguição ao jansenismo vigorosa e invariavelmente combatido pelo Parlement de Paris em nome do gali canismo tradicional A anacrônica querela em torno dessa questão ideológica tornouse o principal ponto de destaque nas relações entre o absolutismo e a noblesse de robe desde a Regência à época de Choi seul quando os jesuítas foram formalmente expulsos da França por iniciativa dosparlements numa vitória simbólica do galicanismo Mui to mais sério porém seria o impasse que se estabeleceu por fim entre a monarquia e a magistratura Luís XIV deixara um Estado totalmente afundado em dívidas a Regência as reduzira à metade com o recurso às moratórias mas os custos da política externa a partir da Guerra da Sucessão da Áustria aliados à extravagância da corte mantiveram o erário em déficit veloz e cada vez mais profundo Experiências suces sivas de lançar novos impostos rompendo a imunidade fiscal da aris tocracia foram alvo de resistência ou sabotagem nos Parlements e nos Estados das províncias mediante a recusa do registro dos éditos ou a apresentação de protestos indignados As contradições objetivas do ab solutismo manifestavamse aí em sua forma mais direta A monarquia procurava taxar a riqueza da nobreza enquanto esta reivindicava o controle sobre as políticas da monarquia a aristocracia na verdade recusavase a alienar os seus privilégios econômicos sem conquistar di reitos políticos sobre a condução do Estado monárquico Na sua luta contra os governos absolutistas nesse campo a oligarquia judicial dos Parlements passou cada vez mais a utilizarse da linguagem radical àosphilosophes as errantes noções burguesas de liberdade e represen tação passaram a freqüentar a retórica de um dos ramos da aristocracia francesa mais marcados pelo conservadorismo inveterado e pelo espí rito de casta33 Nas décadas de 1770 e 1780 tornavase nítida na Fran ça uma curiosa contaminação cultural de seções da nobreza pelo estado situado abaixo dela O século XVIII assistira nesse ínterim a uma rápida expansão das fileiras e das fortunas da burguesia local A época posterior à Re 33 Para as atitudes dos Parlements nos últimos anos do ancien regime ver J Egret La PréRevolution Française 17871788 Paris 1962 pp 14960 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 109 gência foi de modo geral marcada pelo crescimento econômico com constante aumento de preços relativa prosperidade agrária pelo me nos no período de 1730 a 1774 e recuperação demográfica a popula ção da França subiu de 1819 para 2526 milhões de habitantes entre 1700 e 1789 Enquanto a agricultura continuava a ser o ramo ampla mente dominante da produção as manufaturas e o comércio registra vam notáveis avanços A indústria francesa apresentou um crescimento em sua produção da ordem de 60 por cento durante esse séculoM no setor têxtil começaram a aparecer verdadeiras fábricas lançaramse os alicerces das indústrias do ferro e do carvão Muito mais rápido po rém seria o progresso do comércio sobretudo no plano internacional e colonial O comércio exterior propriamente dito quadruplicou de 1716 20 a 178488 com um excedente regular de exportações O intercâmbio colonial conseguiu um crescimento mais rápido com o desenvolvimento das plantações de açúcar café e algodão nas Antilhas nos anos que precederam a revolução chegaria a dois terços do comércio externo da França35 O surto comercial naturalmente estimulava a urbanização houve uma onda de novas construções nas cidades e pelo final do sé culo as cidades provinciais da França ainda suplantavam as da Ingla terra em número e tamanho a despeito do nível muito mais elevado da industrialização no outro lado do canal Enquanto isso decrescia a venda de cargos com o cerco aristocrático ao aparelho de Estado O absolutismo do século XVIII recorria crescentemente aos empréstimos públicos o que não criava um mesmo grau de intimidade com o Es tado os rentiers não recebiam o enobrecimento ou a imunidade fiscal como acontecera com os officiers O grupo específico de maior riqueza no seio da classe capitalista francesa continuava a ser o dosfinanciers cujos investimentos especulativos colhiam os imensos lucros dos con tratos com o exército das arrecadações de impostos e dos empréstimos fornecidos ao rei Mas de um modo geral a diminuição do acesso dos comuns ao Estado feudal simultaneamente ao desenvolvimento de uma economia comercial externa a este emancipara a burguesia de sua dependência subalterna frente ao absolutismo Os comerciantes donos de manufaturas e armadores da época do iluminismo e os juristas e jornalistas que cresceram com eles prosperavam agora cada vez mais fora do âmbito do Estado com resultados inevitáveis para a autonomia política da classe burguesa no seu conjunto 34 A Soboul La Révolutian Française I Paris 1964 p 45 35 J Lough An Introduction to 18th Century France Londres 1960 pp 713 110 PERRY ANDERSON A monarquia por sua vez mostrouse incapaz de proteger os interesses burgueses mesmo quando estes coincidiam nominalmente com os do próprio absolutismo Em nenhuma outra parte isso foi tão claro como nas políticas externas do Estado Bourbon da última fase As guerras daquele século seguiram um padrão infalivelmente tradicio nal As pequenas anexações de território na Europa sempre adquiriam na prática maior prioridade que a defesa ou aquisição de colônias ul tramarinas o poder marítimo e comercial foi sacrificado ao militarismo territorial36 Propenso à paz Fleury assegurou o êxito da absorção da Lorena nas breves campanhas em torno da sucessão da Polônia em 1730 das quais a Inglaterra se manteve afastada Contudo a Guerra da Sucessão da Áustria veria a frota britânica castigar os navios fran ceses desde o Caribe ao oceano Indico infligindo à França imensas perdas comerciais enquanto Saxe conquistava o sul dos Países Baixos numa campanha territorial bem realizada mas fútil a paz restaurou o status quo ante em ambos os lados mas Pitt na Inglaterra assimilara bem as lições estratégicas A Guerra dos Sete Anos 175663 na qual a França comprometeuse a apoiar um ataque austríaco à Prússia con trário a qualquer interesse dinástico racional levou ao desastre o im pério colonial Bourbon Desta vez os exércitos franceses lutaram apa ticamente na guerra continental na Vestfália ao passo que a guerra na val desencadeada pela Inglaterra varria o Canadá a índia a África ocidental e as índias ocidentais Com a Paz de Paris a diplomacia de Choiseul recuperou as possessões Bourbon nas Antilhas mas a chance da França presidir um imperialismo mercantil em escala mundial es tava terminada A Guerra da Independência Americana permitiu a Paris alcançar uma revanche política contra Londres por procuração mas o papel da França na América do Norte embora vital para o su cesso da Revolução Americana foi essencialmente uma operação de pilhagem que trouxe poucos ganhos positivos à França Na verdade foram os custos da intervenção Bourbon na Guerra da Independência Americana que precipitaram a derradeira crise fiscal do absolutismo francês no plano interno Em 1788 a dívida do Estado era tão grande apenas o pagamento dos juros significava quase 50 por cento das despesas correntes e o déficit orçamentário era tão sério que os últi mos ministros de Luís XVI Calonne e Loménie de Brienne resolveram 36 O orçamento naval nunca ultrapassou a metade do da Inglaterra Dorn Competition for Empire p 116 Dorn apresenta um relato revelador sobre as deficiên cias gerais das frotas francesas na época LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 111 impor à nobreza e ao clero um imposto territorial Os Parlements re sistiram furiosamente a tais planos a monarquia em desespero de cretou a sua dissolução em seguida recuando perante a comoção sur gida no seio das classes proprietárias acabou por restabelecêlos e finalmente capitulando às exigências dos Parlements que queriam a convocação dos EstadosGerais antes da aprovação de qualquer re forma fiscal chamou os três estados em meio à desastrosa escassez de cereais ao desemprego generalizado e à miséria popular de 1789 A reação aristocrática contra o absolutismo passou com isso à revolução burguesa que o derrubaria Apropriadamente o colapso histórico do Estado absolutista francês estava diretamente ligado à inflexibilidade de sua formação feudal A crise fiscal que detonou a revolução de 1789 foi provocada por sua incapacidade jurídica em taxar a classe que re presentava A própria rigidez do vínculo entre Estado e nobreza aca baria por precipitar a sua derrocada comum Inglaterra Durante a Idade Média a monarquia feudal da Inglaterra ioi de modo geral muito mais poderosa que a da França As dinastias anglonormanda e angevina criaram um Estado monárquico sem rival em autoridade e eficácia em todo o Ocidente europeu Foi precisa mente a força da monarquia medieval inglesa que permitiu as suas am biciosas aventuras territoriais no continente em detrimento da França A Guerra dos Cem Anos ao longo da qual sucessivos reis ingleses ao lado de sua aristocracia tentaram conquistar e subjugar vastas áreas da França atravessando uma arriscada barreira marítima representou um feito militar sem similares na Idade Média sinal agressivo da supe rioridade organizacional do Estado insular Contudo a mais forte mo narquia medieval do Ocidente foi justamente aquela que produziu o absolutismo mais fraco e de menor duração Enquanto a França se tor nava a terra natal do mais formidável Estado absolutista da Europa ocidental a Inglaterra experimentava uma variante de governo absolu tista particularmente acanhada em todos os sentidos A transição da época medieval para o início da época moderna correspondeu assim na história inglesa apesar de todas as lendas locais sobre uma inque brantável continuidade a uma inversão profunda e radical de muitos dos traços mais característicos do primitivo desenvolvimento feudal Naturalmente certos padrões medievais de grande importância também foram preservados e ficaram como herança foi precisamente a fusão contraditória das forças novas e tradicionais que definiu a parti cular ruptura política ocorrida na ilha durante a Renascença LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 113 A precoce centralização administrativa do feudalismo normando determinada pela primitiva conquista militar e pela modesta extensão do país originou como vimos uma classe nobre invulgarmente limitada e regionalmente unificada sem potentados territoriais semi independentes comparáveis aos do continente As cidades segundo as tradições anglosaxônicas sempre fizeram parte dos domínios do rei e por isso gozavam de privilégios comerciais sem a autonomia política das comunas do continente na época medieval nunca foram bastante numerosas ou fortes para desafiar o seu status subordinado Tam pouco os senhores eclesiásticos chegariam a adquirir enclaves senho riais sólidos ou de grande extensão De tal modo a monarquia me dieval da Inglaterra foi poupada dos perigos inerentes ao governo uni tário que os governantes feudais tiveram de enfrentar na França Itália ou Alemanha Resultaria daí uma centralização concorrente tanto do poder real como da representação nobre no seio do conjunto da orga nização política medieval Esses dois processos eram na realidade não opostos mas complementares Dentro do sistema parcelar da sobera nia feudal o poder monárquico situado fora da suserania só encon trava apoio em geral no consentimento de assembléias de vassalos de caráter excepcional capazes de votarem ajuda econômica ou política fora da hierarquia mediatizáda das dependências pessoais Por esse motivo como já foi salientado os Estados medievais quase nunca po diam se contrapor diretamente à autoridade monárquica eles eram amiúde a precondição de sua existência A administração e a autori dade reais da Inglaterra angevina não tinham qualquer equivalente fiel em toda a Europa do século XII Mas o poder pessoal do monarca logo foi seguido o que reforça nossa argumentação por precoces insti tuições de caráter coletivo da classe dominante feudal com caracterís ticas singularmente unitárias os Parlamentos A existência na Ingla terra desses parlamentos medievais a partir do século XIII não cons tituía evidentemente uma peculiaridade nacional O que os distinguia era mais o fato de se tratarem de instituições ao mesmo tempo únicas11 e conglomeradas Em outras palavras havia apenas uma assem 1 Weber em sua análise das cidades inglesas medievais aponta entre outras coisas quanto é significativo que elas nunca tenham passado pela experiência de revo luções municipais ou corporativas como aconteceu no continente Economy and Só ciety III pp 127681 Houve em Londres uma breve conjuratio insurrecional em 12635 ver a este respeito Gwyn Williams Mediaeval London From Commune to Ca pital Londres 1963 pp 21935 Mas tratouse de um episódio excepcional ocorrido no contexto mais vasto da Revolta dos Barões 2 As primeiras funções judiciais do Parlamento inglês eram também inusita 114 PERRY ANDERSON bléia deste tipo cujos limites coincidiam com os do próprio país e não uma para cada província e no seio dessa assembléia não existia a divi são tripartida de nobres clero e burgueses geralmente predominante no continente Desde a época de Eduardo III os cavaleiros e as cidades dispunham de representação regular no Parlamento inglês lado a lado com os barões e os bispos O sistema bicameral de Lordes e Comuns desenvolveuse depois e não dividiu o Parlamento segundo os estados marcando basicamente uma distinção interna à classe nobiliária Uma monarquia centralizada produzia uma assembléia unificada A precoce centralização da organização política feudal inglesa gerou duas outras conseqüências Os Parlamentos unitários que se reuniam em Londres não alcançaram o mesmo grau de controle fiscal meticuloso nem os direitos de convocação regular que mais tarde ca racterizariam alguns dos sistemas de estados do continente Mas con seguiram assegurar uma tradicional limitação negativa do poder legis lativo do rei que teria grande importância na época do absolutismo depois de Eduardo I passou a ser aceito que nenhum monarca poderia decretar novos estatutos sem o consentimento do Parlamento Do ponto de vista estrutural este direito de veto correspondia estritamente às exigências objetivas do poder de classe da nobreza Com efeito uma vez que a administração real centralizada era desde o início geográ fica e tecnicamente mais fácil na Inglaterra que em qualquer outra região havia uma necessidade proporcionalmente menor de se equipar com uma autoridade decisória inovadora impossível de se justificar pelos riscos inerentes ao separatismo regional e à anarquia ducal De tal modo embora os poderes executivos reais dos monarcas medievais ingleses fossem habitualmente muito maiores que os dos reis franceses precisamente por essa razão eles nunca conquistaram a relativa auto nomia legislativa eventualmente desfrutada por estes Um outro traço comparável do feudalismo inglês foi a fusão invulgar entre monarquia e das este atuava como uma suprema corte encarregada das petições o que preenchia a maior parte de suas funções no século XIII quando se achava dominado principal mente por servidores do rei Para a origem e a evolução dos parlamentos medievais ver G O Sayles The Mediaeval Foundations afEngland pp 44857 G A Holmes The Later Middle Ages Londres 1962 pp 838 3 O significado último de tal limitação foi sublinhado por J P Cooper Dif ferences Between English and Continental Governments in the Early Seventeenth Cen tury em J J Bromley e E H Kossmann Orgs Britaín and the Netherlands Lon dres 1960 pp 6290 esp 6571 Como ele nota daí resultaria que o surgimento de uma nova monarquia no início da época moderna fosse precedido por um direito positivo inglês a limitála e não apenas o direito natural ou divino da teoria da sobe rania de Bodin LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 115 nobreza nos planos judicial e administrativo locais Enquanto no con tinente o sistema de tribunais achavase caracteristicamente dividido em jurisdições monárquicas e senhoriais separadas na Inglaterra a sobrevivência dos tribunais tribais préfeudais propiciara uma espécie de terreno comum no qual foi possível chegar a uma mistura de ambas Nesse sentido os sheriffs que presidiam os tribunais dos condados eram nomeados pelo rei em caráter n aohereditário todavia eram se lecionados no seio da pequena nobreza local e não em uma burocracia central ao passo que os próprios tribunais conservavam vestígios de seu caráter original de assembléias jurídicas populares nas quais os homens livres da comunidade rural compareciam perante os seus iguais Daí resultaria um bloqueio ao desenvolvimento posterior quer de um sistema abrangente de bailli da justiça real profissionalizada quer de uma extensa haute justice baronial em vez disso surgiria nos conda dos uma autoadministração aristocrática e nãoremunerada que de pois evoluiria para os juizes de paz do início da época moderna No próprio período medieval naturalmente o contrapeso dos tribunais de condado coexistia com os tribunais senhoriais e com algumas franquias senhoriais de tipo feudal ortodoxo como as que se encontravam por todo o continente Ao mesmo tempo a nobreza da Inglaterra na Idade Média cons tituía uma classe tão militarizada e predatória como qualquer outra da Europa na verdade distinguiase entre as suas parceiras pela ampli tude e constância de suas agressões externas Nenhuma outra aristo cracia feudal da Alta Idade Média irradiouse tão longe e tão livre mente enquanto o conjunto de uma ordem a partir de sua base terri torial As sucessivas pilhagens da França durante a Guerra dos Cem Anos foram os feitos mais espetaculares deste militarismo mas a Escó cia e Flandres a Renânia e Navarra Portugal e Castela foram também atravessadas por expedições militares vindas da Inglaterra no século XIV Nesta época os cavaleiros ingleses lutaram fora de seu país desde o Forth até o Ebro A organização militar de tais expedições refletia o desenvolvimento local de um feudalismo bastardo monetarizado O último exército feudal propriamente dito convocado com base na posse da terra foi recrutado em 1385 para o ataque de Ricardo II à Escócia A Guerra dos Cem Anos foi travada essencialmente por companhias contratadas alistadas com base em pagamentos em dinheiro por ini ciativa dos grandes senhores para servir à monarquia Deviam obe diência aos seus próprios capitães recrutamentos nos condados e mer cenários estrangeiros forneceram as forças suplementares Não houve a participação de um exército profissional e a escala das expedições era 116 PERRY ANDERSON numericamente modesta as tropas despachadas para a França nunca alcançaram muito mais que 10 mil homens Os nobres que chefiaram as sucessivas incursões em território Valois conservaram basicamente uma perspectiva de pirataria Os saques privados a busca de reféns e de terra eram os objetivos de sua ambição e os capitães mais bem sucedidos enriqueceramse maciçamente com as guerras nas quais as forças inglesas bateram repetidas vezes exércitos franceses muito maio res reunidos para expulsálas A superioridade estratégica dos agres sores ingleses durante a maior parte do conflito não se baseava como pode sugerir uma ilusão retrospectiva no controle do poder marítimo Com efeito as frotas dos mares do norte não passavam de transportes improvisados de tropas compostas em sua maioria por barcos comer ciais temporariamente apresados eram incapazes de patrulhar regu larmente o oceano Os barcos de guerra propriamente ditos confina vamse ainda em grande parte no Mediterrâneo onde a galera mo vida a remo era a arma das verdadeiras guerras marítimas As batalhas travadas no mar eram por conseguinte naquela época desconhecidas nas águas atlânticas os embates navais ocorriam de modo geral em baías ou estuários pouco profundos Sluys ou La Rochelle onde os navios em combate podiam engatarse para as lutas corpo a corpo entre os soldados a bordo Era impossível então o controle estratégico do mar Desse modo as costas de ambos os lados do canal não dispu nham de defesa contra os desembarques armados Em 1386 a França reuniu o maior exército e a mais ampla frota de toda a guerra para uma invasão em grande escala da Inglaterra os planos de defesa da ilha sequer chegaram a contemplar a possibilidade de deter esta força no mar mas confiavam em manter a frota inglesa fora da rota da agres são no Tâmisa a fim de atraila a uma decisão no interior À última hora a invasão foi cancelada mas a vulnerabilidade inglesa diante dos ataques marítimos foi amplamente demonstrada durante a guerra na qual os destrutivos ataques navais desempenharam um papel equiva lente às chevauchées militares em terra As frotas da França e de Caste la utilizando galeras de tipo meridional muito mais ágeis capturaram saquearam ou queimaram uma formidável lista de portos ingleses por toda a parte de Devon a Essex entre outras cidades Plymouth South hampton Portsmouth Lewes Hastings Winchelsea Rye Gravesend e Harwjch todas foram tomadas e pilhadas no decorrer do conflito 4 Quanto a este episódio revelador ver J J Palmer England France and Christendom 13371399 Londres 1972 pp 746 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 117 Assim a supremacia inglesa durante a maior parte da Guerra dos Cem Anos que determinou como campo de batalha permanente com todo o seu cortejo de danos e desolação o território francês não foi um resultado do poder marítimo5 Foi produto da integração e da solidez política muito maiores da monarquia feudal inglesa cuja capa cidade administrativa para explorar seu patrimônio e convocar sua no breza foi até o momento final da guerra muito maior que a da mo narquia francesa assolada por vassalos desleais na Bretanha ou na Borgonha e enfraquecida por sua primitiva incapacidade de desalojar o feudo inglês na Guiana Por sua vez a lealdade da aristocracia inglesa foi cimentada nas vitoriosas campanhas externas às quais foi levada por uma série de príncipes marciais Apenas quando a organização política feudal da França foi ela própria reorganizada sobre uma nova base militar e fiscal no governo de Carlos VII surgiram as condições para a mudança da maré Derrotados os seus aliados borgonheses as forças da Inglaterra logo passaram a ser enfrentadas por exércitos fran ceses cada vez maiores e melhor equipados A amarga conseqüência do colapso final do poder inglês na França seria a eclosão das Guerras das Duas Rosas dentro do país Uma vez que não mais existia uma auto ridade real vitoriosa para manter unida a alta nobreza a arcaica má quina de guerra medieval voltase sobre si própria enquanto as rivali dades entre os grandes senhores feudais liberavam por todo o país os seus embrutecidos dependentes e bandos de soldados contratados e usurpadores rivais engalfinhavamse na luta pela sucessão Uma gera ção de guerra civil acabou finalmente com a fundação da nova dinas tia Tudor em 1485 no campo de Bosworth O reinado de Henrique VII preparava agora gradualmente o aparecimento de uma nova monarquia na Inglaterra Durante o re gime Lancaster anterior desenvolveramse livremente as facções aristo cráticas que manipularam o Parlamento para seus próprios fins ao passo que os governantes da Casa York esforçaramse em meio à anar quia dominante no sentido de concentrar e fortalecer de novo as insti tuições centrais do poder real Sendo ele próprio um Lancaster por afi nidade Henrique VII desenvolveu essencialmente a prática adminis trativa York Antes das Guerras das Duas Rosas os Parlamentos eram virtualmente anuais e durante a primeira década da reconstrução de 5 Ver os pertinentes comentários de C F Richmond The War at Sea em K Fowler ÍOrg The Hundred Years War Londres 1971 p 117 e English Naval Power in the Füteenth Century History LII n 174 fevereiro de 1967 pp 45 Os estudos sobre este tema ainda estão no início 118 PERRY ANDHRSON pois de Bosworth isso voltou a ocorrer Mas uma vez aprimorada a se gurança interna e consolidado o poder Tudor Henrique VII descartou se da instituição de 1497 a 1509 os últimos doze anos de seu reinado esta tornou a reunirse apenas mais uma vez O governo real cen tralizado era exercido através de uma pequena roda seleta de conse lheiros pessoais e homens de confiança do monarca O seu objetivo pri mário foi a sujeição do poder dos magnatas que estivera em ascensão no período anterior com seus bandos uniformizados de dependentes armados o suborno sistemático de jurados e as constantes guerras pri vadas Este programa porém foi aplicado com muito maior persistên cia e êxito do que na fase York A suprema prerrogativa de justiça foi imposta à nobreza com o recurso à Star Chamber um tribunal conci liar que se tornaria o principal instrumento da monarquia contra mo tins ou sedição A turbulência regional no norte e no oeste onde os senhores fronteiriços reclamavam direitos de conquista e não a enfeu dação pelo monarca foi sufocada pela criação de conselhos especiais delegados para controlar tais áreas in situ Os ampliados direitos de asilo e os privilégios privados semireais foram gradualmente limitados proibiramse as tropas particulares uniformizadas A administração local foi subordinada ao controle monárquico com o recurso à seleção e supervisão vigilantes dos juizes de paz rebeliões de usurpadores rein cidentes foram esmagadas Criouse um pequeno corpo de guarda no lugar da polícia armada6 Os domínios reais foram muito ampliados pela retomada de terras cuja receita forneceu à monarquia um total quadruplicado durante o reinado as incidências feudais e os tributos alfandegários foram igualmente explorados ao máximo Por volta do final do governo de Henrique VII os rendimentos gerais da monarquia tinham quase triplicado e existia uma reserva de tesouro que ia de l a 2 milhões de libras7 De tal modo a dinastia Tudor efetivara um começo promissor no sentido da construção de um absolutismo inglês na vi rada do século XVI Henrique VIII herdou um Executivo poderoso e um próspero erário Os primeiros vinte anos do governo de Henrique VIII trouxeram poucas mudanças à posição de segurança interna da monarquia Tudor A administração política de Wolsey não foi marcada por inovações ins titucionais relevantes no máximo o cardeal concentrou em suas mãos 6 S T Bindoff Tudor England Londres 1966 pp 5666 fornece um bom resumo de todo o processo 7 G R Elton England under the Tudors Londres 1956 pp 49 53 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 119 poderes sem precedentes sobre a Igreja como legado papal na Ingla terra Tanto o rei como o ministro mostravamse preocupados princi palmente com os negócios externos As limitadas campanhas travadas contra a França em 151214 e 152225 constituiriam os principais acontecimentos do período para acudir aos custos de tais operações militares no continente foram necessários dois breves arremedos de convocação parlamentar8 Depois disso uma tentativa de taxação arbi trária promovida por Wolsey levantou uma oposição das classes pro prietárias contra Henrique VIII suficiente para desestimulála Não havia ainda sinais de qualquer desenvolvimento espetacular na orienta ção da política monárquica na Inglaterra Foi a crise matrimonial de 152728 causada pela decisão real de se divorciar de sua esposa espa nhola com o subseqüente impasse com o papado sobre uma questão que afetava a sucessão interna que viria subitamente alterar toda a situação política Para lidar com a obstrução papal inspirada pela hostilidade dinástica do imperador ao planejado novo casamento foi necessário recorrer a novas e mais radicais leis e reunir apoio político nacional contra Clemente VII e Carlos V Assim em 1529 Henrique convocou aquele que seria o Parla mento de maior duração a fim de mobilizar a classe fundiária a seu favor no conflito com o papado e o império e assegurar o endosso dela ao confisco político da Igreja por parte do Estado na Inglaterra Entre tanto tal renascimento de uma instituição até aí desprezada estava longe de representar uma capitulação constitucional de Henrique VIII ou de Thomas Cromwell que se tornou seu planejador político em 1531 não significou um enfraquecimento do poder real mas apenas um novo impulso no sentido de sua intensificação Com efeito os Par lamentos da Reforma não só aumentaram grandemente o padroado e a autoridade da monarquia ao transferir o controle de todo o aparelho eclesiástico para suas mãos Sob a direção de Cromwell eles também suprimiram a autonomia dos privilégios senhoriais destituindoos do poder de designar juizes de paz integraram os senhores fronteiriços aos condados e incorporaram o País de Gales jurídica e administrativa 8 C Russcll The Crísis of Paríiaments Oxford 1971 pp 412 afirma cate goricamente que o Parlamento inglês deste período com as suas breves sessões rara mente convocadas era uma força em declínio por outro lado enfatiza corretamente que o pacto constitucional entre a monarquia e o Parlamento baseavase na unidade de classe dos dirigentes do país Quanto à base social do parlamentarismo inglês ver as agudas observações de Penry Williams The Tudor State Past and Presení n 24 julho de 1963 pp 3958 120 PERRY ANDERSON mente ao reino da Inglaterra Ainda mais significativo foi o fato de os mosteiros terem sido dissolvidos e a sua vasta riqueza fundiária expro priada pelo Estado No ano de 1536 a combinação governamental de centralização política e reforma religiosa provocaria um levante poten cialmente perigoso no norte a Peregrinação da Graça uma reação re gional particularista contra um Estado real reforçado de tipo seme lhante às que ocorriam na Europa ocidental nesta época9 A rebelião foi dispersada e criouse um novo e permanente Conselho do Norte com o objetivo de controlar os territórios situados além do Trent En quanto isso Cromwell ampliava e reorganizava a burocracia central convertendo o cargo de secretário do rei no mais alto posto ministerial e criando os primeiros elementos de um conselho privado regular10 Logo após a sua queda o Conselho Privado foi formalmente instituciona lizado como a agência executiva mais íntima da monarquia e desde então tornouse o cerne da máquina política Tudor Um Estatuto das Proclamações aparentemente destinado a conferir poderes legislativos extraordinários à monarquia libertandoa para o futuro do beneplá cito do Parlamento foi por fim neutralizado pelos Comuns Tal re cusa evidentemente não impediu Henrique VIII de levar a cabo san guinários expurgos de ministros e magnatas ou criar um sistema de polícia secreta para delações e prisões sumárias O aparelho repressivo do Estado cresceu rapidamente ao longo do reinado ao seu final ti 9 Encontrase uma minuciosa análise sobre as implicações da Peregrinação da Graça em geral subestimadas em J J Scarisbricke Henry VIII Londres 1971 pp 4445 452 10 As asserções exageradas sobre a revolução administrativa de Cromwell feitas por Elton em The Tudor Revolution in Government Cambridge 1953 pp 160 427 e em England under the Tudors pp 12737 16075 1804 foram reduzidas a pro porções mais modestas por entre outros G L Harris Mediaeval Government and StateCraft Past and Present n 24 julho de 1963 pp 2435 para um comentário recente e representativo ver Russell The Crisis ofParliaments p 111 11 Nessa época debateramse também planos para um exército permanente e um pariato juridicamente privilegiado duas medidas que se implementadas teriam modificado o curso da história inglesa nos séculos XVI e XVII Na verdade nenhuma delas podia ser aceita por um Parlamento que apoiava o controle da Igreja pelo Estado e a paz do reino no campo mas conhecia a lógica das tropas profissionais e era adverso à constituição de uma hierarquia jurídica no seio da nobreza a qual atuaria social mente contra muitos de seus membros O projeto de um exército permanente prepa rado em 153637 e encontrado nos arquivos do gabinete de Cromwell é analisado em L Stone The Political Programme of Thomas Cromwell Bulletin of the Institute of Historical Research XXIV 1951 pp 118 Quanto à proposta de um estatuto jurídico privilegiado da propriedade fundiária para a nobreza titular ver Holdsworth A Histvry ofEnglish Law IV pp 4503 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 121 nham sido aprovadas nove diferentes leis sobre traição12 O uso que Henrique VIII fez do Parlamento do qual ele esperou e recebeu poucos incômodos foi de abordagem confiantemente legalista era um meio necessário aos fins do rei Dentro da estrutura herdada da organização política feudal inglesa que conferira poderes singulares ao Parlamento estava em construção um absolutismo nacional que na prática nada ficava a dever ao de qualquer de seus parceiros continentais Durante o seu período de vida o poder pessoal efetivo de Henrique VIII no seio de seu reino foi perfeitamente igual ao de seu contemporâneo Francisco I na França Apesar disso a nova monarquia Tudor funcionava no interior de uma limitação fundamental que a distinguia de suas congêneres no exterior faltava a ela um aparelho militar substancial Para compreen der por que o absolutismo inglês tomou a forma peculiar assumida no século XVI e no início do século XVII fazse necessário ultrapassar a herança original de um Parlamento legislador a fim de alcançar todo o contexto internacional da Europa renascentista Nesse sentido en quanto o Estado Tudor era construído com êxito no plano interno a posição geopolítica da Inglaterra no exterior sofrerá rápida e silencio samente uma drástica mudança Na época Lancaster o poder externo da Inglaterra podia enfrentar ou sobrepujar o de qualquer outro país do continente devido à natureza avançada da monarquia feudal na Inglaterra Mas por volta do início do século XVI o equilíbrio de for ças entre os Estados ocidentais mais importantes modificarase por completo A Espanha e a França ambas vítimas de invasões inglesas no período precedente eram agora monarquias dinâmicas e agres sivas que disputavam entre si a conquista da Itália A Inglaterra fora rapidamente superada por elas Todas as três monarquias tinham atin gido um nível comparável de consolidação interna mas foi justamente tal equiparação que possibilitaria que as vantagens naturais das duas grandes potências continentais da época se tornassem pela primeira 12 Joel Hurstfield Was there a Tudor Despotism after ali Transactions of the Royal Historical Society 1967 pp 83108 critica com eficácia os anacronismos apologéticos em que se baseiam até hoje os escritos sobre esse período Hurstfield põe em relevo o impulso real que estava por trás do Estatuto das Proclamações dos Atos sobre Traição e da censura e propaganda oficiais do reino A noção outrora aceita de que a monarquia Tudor não constituía uma forma de absolutismo não sobrevive à aná lise de Mousníer Quelques Problèmes Concernant Ia Monarchie Absolue pp 216 A atitude de Henrique para com o Parlamento achase bem exposta em Henry V77 pp 6534 122 PERRY ANDERSON vez decisivas A população da França era quatro ou cinco vezes supe rior à da Inglaterra A Espanha tinha o dobro da população inglesa para não falar de seu império americano e de suas possessões euro péias Esta superioridade demográfica e econômica era acentuada pela necessidade geográfica que tinham ambos os países de desenvolver exércitos modernizados e de caráter permanente para a guerra perpé tua daqueles tempos A criação das compagnies dordonnance e dos tercios o emprego de infantaria mercenária e da artilharia pesada tudo isso conduziu a um novo tipo de aparelho militar da monarquia muito maior e mais caro do que o que se conhecia no período medie val Para as monarquias da Renascença a construção de forças mili tares na área metropolitana era uma condição indispensável à sua pró pria sobrevivência O Estado Stuart foi poupado deste imperativo de vido à sua situação insular Por um lado o rápido aumento do custo e do tamanho dos exércitos no início da época moderna junto aos pro blemas de transporte de embarque e aprovisionamento de um grande número de soldados por via marítima tornaram o tipo medieval de expedições ultramarinas nas quais a Inglaterra tanto se destacara cada vez mais anacrônicas A preponderância militar das novas potên cias territoriais baseada em seus recursos financeiros e humanos muito mais amplos impediu toda a repetição vitoriosa das campanhas de Eduardo III ou Henrique V Por outro lado tal ascendência continen tal não se fez traduzir em uma idêntica capacidade de combate no mar não ocorrera ainda qualquer transformação importante na arte bélica naval e assim a Inglaterra continuava relativamente imune ao risco de uma invasão marítima Em decorrência disso na grave conjuntura da transição rumo a uma nova monarquia na Inglaterra não foi neces sário nem possível ao Estado Tudor construir uma máquina militar comparável às do absolutismo francês ou espanhol No aspecto subjetivo porém Henrique VIII e sua geração no seio da nobreza inglesa eram ainda incapazes de apreender a nova situação internacional O orgulho marcial e as ambições continentais de seus antecessores da última fase medieval ainda estavam vivos na memória da classe dominante inglesa da época O ultracauteloso Hen rique VII reavivara ele próprio as pretensões lancasterianas à monar quia francesa lutara para impedir a anexação da Bretanha pelos Va lois e planejara ativamente a conquista da sucessão de Castela Wolsey que dirigiu a política externa inglesa durante os vinte anos seguintes posou de árbitro da concórdia européia com o Tratado de Londres e aspirou nada mais nada menos ao próprio papado italiano Por sua vez Henrique VIII alimentou esperanças de se tornar imperador da LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 123 Alemanha Essas grandiosas aspirações foram descartadas como ilu sões fantasmagóricas pelos historiadores subseqüentes com efeito elas expressavam a dificuldade perceptual dos governantes ingleses em adaptarse à nova configuração diplomática na qual a estatura da In glaterra tanto diminuíra em termos reais precisamente numa época onde o seu próprio poder interno aumentava sensivelmente Na ver dade fora exatamente tal perda de posição internacional ignorada pe los protagonistas ingleses que esteve por trás de todo o erro de cálculo do divórcio real Nem o cardeal nem o rei compreenderam que o pa pado era praticamente obrigado a submeterse à pressão superior de Carlos V devido à hegemonia do poder Habsburgo na Europa A In glaterra fora marginalizada pelo conflito francoespanhol pela Itália espectador impotente os seus interesses pesavam pouco na Cúria A surpresa da descoberta iria impelir o Defensor da Fé para a Reforma Todavia as desventuras da política externa de Henrique VIII não se limitaram a este calamitoso revés diplomático Por três vezes a monar quia Tudor tentou intervir nas guerras ValoisHabsburgo no norte da França através de expedições que cruzaram o canal Os exércitos des pachados nestas campanhas de 151214 152225 e 154346 foram na turalmente de volume considerável compostos por recrutas ingleses reforçados com mercenários estrangeiros 30 mil em 1512 40 mil em 1544 Faltou em seu emprego um objetivo estratégico sério e não se conseguiu nenhum ganho significativo a retirada inglesa das linhas se cundárias da luta entre Espanha e França provouse tão custosa como fútil Contudo estas guerras a esmo de Henrique VIII cuja falta de propósito coerente já foi tantas vezes destacada não foram meramente o produto de um capricho pessoal correspondiam precisamente a um curioso intervalo histórico em que a monarquia inglesa tinha perdido a sua antiga importância militar na Europa mas não encontrara ainda o futuro papel marítimo que a aguardava Não deixaram de ter para a própria Inglaterra as suas conse qüências fundamentais O último ato importante de Henrique VIII a sua aliança com o império e o ataque à França em 1543 viria a ter conseqüências fatais para o destino ulterior da monarquia inglesa A intervenção militar no estrangeiro foi mal conduzida seus custos cres ceram muitíssimo chegando a totalizar dez vezes mais que os da pri meira guerra do seu reinado com a França para cobrilos o Estado não recorreu apenas a empréstimos compulsórios e ao aviltamento da moe da mas começou também a descarregar no mercado o imenso fundo de propriedade agrária que acabara de adquirir dos mosteiros e que significava talvez um quarto do território do reino A venda dos domí 124 PERRY ANDERSON nios da Igreja pela monarquia multiplicouse à medida que a guerra se arrastava até a morte de Henrique Mas quando a paz foi restaurada o grosso do resultado deste grande golpe de sorte estava exaurido13 e com ele a única grande chance que teve o absolutismo inglês de cons truir uma sólida base econômica independente da tributação parlamen tar Tal transferência de fundos não apenas enfraqueceria o Estado a longo prazo fortaleceria também em grande escala a pequena no breza que constituiu os principais compradores destas terras e cujo nú mero e riqueza cresceu rapidamente daí em diante Assim uma das guerras mais inconseqüentes e sem brilho da história inglesa teve conse qüências enormes ainda que ocultas sobre o equilíbrio interno de for ças na sociedade inglesa As duas facetas deste episódio final do governo henriquino pres sagiavam na verdade a maior parte da evolução da classe fundiária inglesa no seu conjunto Nesse sentido o conflito militar da década de 1640 foi na prática a última guerra de agressão travada pela Ingla terra no continente até o fim do século As ilusões de Crêcy e Agincourt se desvaneceram Mas o desaparecimento gradual de sua vocação tra dicional alterou profundamente o semblante da nobreza da Inglaterra A ausência da pressão limitadora causada pela possibilidade constante de uma invasão permitiu à aristocracia inglesa dispensar um aparelho militar modernizado na época da Renascença não estava diretamente ameaçada pelas classes feudais rivais no estrangeiro e tinha relutância como qualquer outra nobreza num estádio de evolução similar em sub meterse à construção maciça do poder real no plano interno conse qüência lógica de um grande exército regular No contexto isolacionista do reino insular houve assim uma desmilitarização excepcionalmente precoce da própria classe nobre Em 1500 todo par do reino inglês portava armas à época de Elizabeth já se calculou apenas metade da aristocracia possuía alguma experiência de combate14 Nas vésperas da guerra civil do século XVII pouquíssimos nobres dispunham de al gum passado militar Verificavase uma progressiva dissociação da no breza com respeito à função militar básica que a definia na ordem social medieva num processo muito mais precoce do que qualquer outro do continente tal fato necessariamente teria importantes reper 13 No final do remado dois terços dos domínios monásticos haviam sido alie nados a receita da venda das terras eclesiásticas alcançava em média 30 por cento a mais que a das rendas das terras retidas pelo rei Ver F Dietz English Government Finance 14851558 Londres 1964 pp 147 149 158 214 14 Stone The Crísis ofthe Aristocracy pp 2656 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 125 cussões na própria classe fundiária No seu contexto marítimo pecu liar a derrogação propriamente dita sempre ligada a um intenso sentimento das virtudes da espada e codificada contra as tentações da bolsa nunca chegou a ocorrer Isso permitiria por sua vez uma conversão gradual da aristocracia às atividades comerciais muito antes de qualquer outra classe rural européia do mesmo gênero A predomi nância da criação de gado lanífero setor em crescimento na agricultura do século XV acelerou naturalmente tal tendência ao passo que a indústria têxtil rural contígua àquela proporcionava alternativas na turais ao investimento da pequena nobreza A trajetória econômica que conduziu das metamorfoses da renda feudal nos séculos XIV e XV à emergência de um setor capitalista rural em expansão no século XVII estava pois aberta Uma vez iniciada tornouse praticamente impos sível sustentar o caráter juridicamente separado da nobreza inglesa Durante a Idade Média a Inglaterra tal como a maioria dos outros países experimentou uma tendência acentuada no sentido de uma estratificação formal de camadas no seio da aristocracia com a introdução de novos títulos uma vez que a hierarquia feudal primitiva de vassalos e suseranos tinha sido minada pelo surgimento das relações sociais monetarizadas e pela dissolução do sistema feudal clássico Por toda a parte a nobreza sentiu a necessidade de novos e mais abun dantes graus nobiliárquicos já que as dependências pessoais tinham em geral declinado Na Inglaterra os séculos XIV e XV presenciariam a adoção de novos graus duques marqueses barões e viscondes no interior da nobreza os quais juntamente com os expedientes desti nados a garantir o direito de primogenitura da herança separariam pela primeira vez um pariato distinto do restante da classe15 Daí em diante tal estrato compreenderia sempre o grupo mais poderoso e opulento da aristocracia Ao mesmo tempo formouse um Colégio He ráldico que deu definição jurídica à pequena nobreza limitandoa às famílias detentoras de escudos de armas e estabelecendo os procedi mentos necessários para a investigação das pretensões a esse estatuto 15 A transição do baronato do início da Idade Média para o pariato do final desse período e a evolução concomitante da classe dos cavaleiros para a pequena no breza estão traçadas em N DenholmYoung En Remontant lê Passe de rAristocracie Anglaise lê Moyen Age Annales maio de 1937 pp 25769 O próprio título de barão adquiriria novo significado como grau de direito em fins do século XIV pas sando a ser usado de forma distinta A consolidação do sistema de pariato é analisada por K B Macfarlane The English Nobility in the Later Middle Ages XUth Inter national Congress ofHistorical Sciences Viena 1965 Relatórios I pp 33745 que sa lienta o seu caráter novo e a sua descontinuidade 126 PERRY ANDERSON Dessa maneira bem podia terse desenvolvido na Inglaterra como aconteceu noutros países uma ordem aristocrática mais rigorosa e de dupla linhagem juridicamente demarcada dos roturíers abaixo dela Mas a crescente propensão nãomilitar e protocomercial do conjunto da nobreza estimulada pela venda de terras e pelo surto agrário da época Tudor tornou impossível um tribunal de derrogação Em conseqüência o critério estritamente heráldico tornouse em grande medida inoperante Daí a peculiaridade então surgida pela qual a aris tocracia social inglesa não coincidia com o pariato patenteado que era o único setor dela a dispor de privilégios jurídicos e a pequena nobreza sem títulos e os filhos mais jovens dos pares podiam dominar uma assim chamada Câmara dos Comuns Assim as idiossincrasias da classe fundiária inglesa na época do absolutismo viriam a ser historica mente entrelaçadas ela era inusitadamente civil em sua formação co merciante por profissão e plebéia de linhagem O correlato dessa classe era um Estado com uma pequena burocracia um fisco limitado e sem um exército regular A tendência inerente à monarquia Tudor era como vimos surpreendentemente homóloga à de suas opositoras do conti nente até mesmo quanto às semelhanças de personalidade tantas ve zes notadas entre Henrique VII Luís XI e Fernando II e Henrique VIII Francisco I e Maximiliano I mas os limites de seu desenvolvi mento estavam estabelecidos pelo caráter da nobreza que a circundava Enquanto isso o legado imediato da última incursão de Henri que VIII na França foi um agudo desespero popular no campo à me dida que a depreciação monetária levava à insegurança rural e a uma temporária depressão comercial A minoridade de Eduardo VI assistiu assim a uma rápida regressão na estabilidade da autoridade política do Estado Tudor com as previsíveis trapaças entre os grandes senhores territoriais pelo controle da corte numa década marcada pela inquie tação camponesa e por crises religiosas Os levantes rurais em East Anglia e no sudoeste foram esmagados por mercenários contratados na Itália e na Alemanha17 Mas logo a seguir em 1551 essas tropas profis sionais foram dissolvidas para aliviar o erário a última explosão agrá 16 É preciso não esquecer que a própria oi de dérogeance foi uma criação tar dia da Renascença francesa que data apenas de 1560 Enquanto a função da nobreza era nitidamente militar tal medida foi desnecessária assim como os próprios títulos graduados ela se constituía numa reação à nova mobilidade social 17 O governo não podia confiar na lealdade dos recrutamentos feitos nos con dados durante essa crise W K Jordan Edward VI The Young King Londres 1968 p 467 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 127 ria de relevância em quase trezentos anos tinha sido reprimida pela última força importante de soldados estrangeiros que esteve no plano interno à disposição do monarca Neste ínterim a rivalidade entre os duques de Somerset e de Northumberland com as suas respectivas clientelas de nobres menores funcionários e homens em armas con duzia a golpes e contragolpes velados no Conselho Privado em meio à tensão religiosa e à incerteza dinástica A unidade do aparelho de Es tado Tudor parecia temporariamente ameaçada Entretanto não seria apenas a morte do jovem soberano que cortaria pela raiz o perigo de uma real desintegração era improvável que se desenvolvesse um fac símile fiel dos conflitos aristocráticos na França devido à ausência de tropas leais à disposição dos magnatas em luta O desfecho do inter regno de governo de Somerset e Northumberland viria meramente radi calizar a Reforma local e fortalecer a dignidade monárquica contra os grandes nobres A breve passagem de Maria Tudor com sua subordi nação dinástica à Espanha e a efêmera restauração católica quase não deixou nenhum traço político O último ponto de apoio inglês no conti nente foi perdido com a reconquista francesa de Calais O longo reinado de Elizabeth na última metade do século iria res taurar e desenvolver em seguida o status quo ante no plano interno sem recorrer a inovações radicais O pêndulo religioso oscilou outra vez na direção de um protestantismo moderado com o estabelecimento de uma Igreja anglicana obediente No aspecto ideológico a autoridade real foi grandemente acentuada à medida que a popularidade pessoal da rainha atingia o ápice No aspecto institucional entretanto houve comparativamente pouco progresso Na primeira metade do reino o Conselho Privado concentrouse e se estabilizou sob o longo e firme secretariado de Burghley A rede de espionagem e polícia ocupada principalmente com a repressão às atividades católicas foi ampliada por Walsingham Se comparada ao reinado de Henrique VIII a ati vidade legislativa reduziuse muito18 As rivalidades de facções no seio da alta nobreza assumiam agora a forma de intrigas de corredor em busca de honrarias e cargos na corte A última e vulgar tentativa de putsch armado da alta nobreza a rebelião promovida por Essex o Guise inglês no final do reinado foi facilmente derrotada Por outro lado a influência e a prosperidade políticas da pequena nobreza que 18 Ver os estudos comparados dos estatutos elaborados por Elton em The Political Creed of Thomas Cromwell Transactions of the Royal Histórica Socieiy 1956 p 81 128 PERRY ANDERSON os Tudor haviam inicialmente apoiado como um contrapeso do pa riato eram agora cada vez mais um obstáculo evidente à prerroga tiva real Convocado por treze vezes em 45 anos basicamente em vir tude de emergências externas o Parlamento começava a revelar inde pendência na crítica às medidas do governo Ao longo do século a Câ mara dos Comuns aumentou grandemente em volume passando de 300 para 460 membros entre os quais a proporção de fidalgos rurais crescia rapidamente à medida que os assentos dos burgos eram apro priados pelos cavaleiros rurais ou seus patronos19 A dilapidação moral da Igreja ao termo do predomínio secular e dos ziguezagues doutriná rios dos cinqüenta anos anteriores permitiu a difusão gradual de um puritanismo de oposição em setores consideráveis dessa classe Assim os últimos anos de dominação Tudor seriam marcados por nova recal citrância e rebeldia do Parlamento cuja importunação religiosa e obs trução fiscal levariam Elizabeth a efetuar novas vendas de terras reais a fim de minimizar a dependência em relação a ele A máquina repres siva e burocrática da monarquia permaneceu muito exígua se compa rada com o seu prestígio político e autoridade executiva Acima de tudo faltavalhe o motor de propulsão das guerras por territórios que acelerara o desenvolvimento do absolutismo no continente Evidentemente o impacto da guerra renascentista não ignorou a Inglaterra elizabetana Os exércitos de Henrique VIII mantiveram um caráter híbrido e improvisado o arcaico recrutamento aristocrático realizado no país ainda se combinava com a utilização de mercenários flamengos borgonheses italianos e alemães contratados fora do país20 O Estado elizabetano agora confrontado com perigos externos reais e constantes da época de Alba e Farnese recorreu a uma extensão ilegal do sistema tradicional de milícias inglês a fim de reunir forças adequadas para as suas expedições ultramarinas Tecnicamente pre parados apenas para servir como uma guarda nacional cerca de 12 mil homens receberam treinamento especial voltado principalmente para a defesa dentro do país Os restantes geralmente arrebanhados entre a população vadia foram empregados para a ação no estrangeiro O de senvolvimento de tal sistema não produziu um exército permanente ou profissional mas proporcionou um fluxo regular de tropas em escala 19 J E Neale The Elizabethan House ofCummons Londres 1949 pp 140 1478 302 20 C Oman A History of the Art of War in tke Sixteenth Century Londres 1937 pp 28890 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 129 modesta para os numerosos compromissos externos do governo de Eli zabeth Os governadores dos condados adquiriram maior importância como autoridades encarregadas do recrutamento gradualmente foi introduzida a organização em regimentos e as armas de fogo venceram o apego nativo ao arco e flecha21 De modo geral mesmo os contingen tes das milícias eram combinados com soldados mercenários escoceses ou alemães Nenhum dos exércitos despachados para o continente che garia a ultrapassar 20 mil homens metade do tamanho da última expedição henriquina e a maioria era consideravelmente menor O de sempenho desses corpos nos Países Baixos e na Normandia foi geral mente marcado pelo desperdício O seu custo era desproporcional mente alto em relação a sua utilidade o que desencorajou qualquer progresso semelhante na mesma direção22 A inferioridade militar do absolutismo inglês continuou a impedir qualquer expectativa expansio nista no continente Dessa maneira a política externa de Elizabeth ficou largamente limitada a finalidades negativas prevenção da recon quista espanhola das Províncias Unidas prevenção da ocupação fran cesa dos Países Baixos prevenção da vitória da Liga na França Neste caso tais objetivos limitados seriam alcançados ainda que o papel dos exércitos ingleses no resultado final dos intrincados conflitos europeus do período tenha sido bastante secundário A vitória decisiva da Ingla terra na guerra com a Espanha teve origem em outro fator a derrota da Armada mas não pôde ser capitalizada em terra A ausência de qual quer estratégia continental positiva resultou nas perdulárias e inúteis diversões militares da última década do século A longa guerra com a Espanha depois de 1588 que custou à monarquia inglesa tão caro em riqueza nacional terminou sem aquisições de território ou tesouro Apesar disso o absolutismo inglês alcançaria uma importante conquista militar neste período Incapaz de enfrentar frontalmente as grandes monarquias continentais o expansionismo elizabetano atirou os seus maiores exércitos contra a pobre e primitiva sociedade de clãs da Irlanda A ilha celta permanecera como a mais arcaica formação social do Ocidente até o final do século XVI talvez mesmo em todo o 21 C G Cruickshank Elizabeth Armv Oxford 1966 pp 123 1920 24 10 513 285 22 Cruickshank sugeriu que a ausência de um soberano adulto do sexo mascu lino que comandasse pessoalmente as tropas em campanha durante aproximadamente Mísenta anos após Henrique VIII pode ter contribuído para o nãosurgimento de uni xército regular nesta época Army Royal Oxford 1969 p 189 130 PERRY ANDERSON continente O último dos filhos da Europa23 na expressão de Bacon ficara fora do mundo romano não fora tocada pelas conquistas germâ nicas tinha sido visitada mas não subjugada pelas invasões vikings Cristianizada no século VI o seu sistema rudimentar de clãs conse guira sobreviver de forma peculiar à conversão religiosa sein a cen tralização política a Igreja preferiu adaptarse à ordem social local nesse distante posto avançado da fé deixando de lado a autoridade episcopal em troca da organização monástica comunitária Chefes e nobres hereditários exerciam o domínio sobre camponeses livres agru pados em unidades de parentesco ampliado e a eles vinculados por laços comendatários A economia pastoril dominava o campo Não ha via uma monarquia centralizada e as cidades eram inexistentes em bora uma cultura letrada tenha florescido do século VII ao IX o nadir da Idade das Trevas nos outros países nas comunidades mo násticas Sucessivos ataques escandinavos durante os séculos IX e X desintegrariam tanto a vida cultural como o localismo clânico na ilha Os enclaves nórdicos criaram as primeiras cidades da Irlanda sob a pressão estrangeira acabaria por surgir no interior uma autoridade monárquica central com o objetivo de expulsar o perigo viking no iní cio do século XI A precária alta realeza da Irlanda logo viria a se fragmentar outra vez em federações antagônicas incapazes de resistir a uma invasão mais avançada No final do século XII a monarquia an gevina na Inglaterra adquiriu do papado o senhorio da Irlanda e forças de barões anglonormandos atravessaram o mar para subjugar e colonizar a ilha O feudalismo inglês com a sua pesada cavalaria e fortes castelos estabeleceu gradualmente o controle formal sobre a maior parte do país com a exceção do extremo norte nos cem anos seguintes Mas a densidade do povoamento anglonormando nunca foi suficiente para estabilizar o seu sucesso militar No último período me 23 A Irlanda é o último exfiliis Europae a ser resgatada à desolação e ao de serto em muitas partes para o povoamento e o cultivo e aos costumes selvagens e bár baros para a humanidade e a civilidade The Works of Francis Bacon Londres 1971 vol IV p 280 Para outros exemplos destes mesmos sentimentos coloniais ver pp 4428 Bacon como todos os seus contemporâneos estava agudamente consciente das vantagens materiais da missão civilizadora da Inglaterra na Irlanda Isto direi con fiantemente se Deus der a este reino a sua bênção de paz e justiça nenhum usurário pode estar tão certo de dobrar o seu capital no espaço de dezessete anos a juros sobre juros como este reino na mesma medida de tempo de dobrar as suas reservas de ri queza e de população Não é fácil nem mesmo em todo o continente achar tal confluência de bens como se a m3o do homem andasse a par com a mão da natureza pp 280 444 Notese a clareza da concepção que vê a Irlanda como uma saída alterna tiva à expansão para o continente LINHAGENS DO ESTADO ABSOLU TIS IA 131 dieval enquanto as energias da monarquia e da nobreza inglesas esta vam totalmente envolvidas na França a sociedade clânica da Irlanda recuperou terreno rapidamente O perímetro do domínio inglês restrin giuse ao pequeno Pale em redor de Dublin fora do qual ficavam as difusas liberdades dos magnatas territoriais de origem anglonor manda agora cada vez mais gaelicizados cercados por sua vez pelas renascentes chefias tribais celtas cujas zonas de controle abarcavam de novo a maior parte da ilha24 O advento de um Estado Tudor renovado no início da época moderna trouxe consigo os primeiros esforços importantes no sentido da reafirmação e fortalecimento da suserania inglesa sobre a Irlanda em um século Henrique VII enviou o seu auxiliar Poynings para que brar em 149496 a autonomia do Parlamento dos barões locais No entanto o potentado da dinastia Kildare estreitamente vinculado por laços de casamento às principais famílias gaélicas continuou a dispor de um poder feudal predominante revestido da dignidade de Lord Representante Com Henrique VIII a administração de Cromwell ini ciou a introdução de instrumentos burocráticos de governo mais regu lares no Pale em 1534 Kildare foi deposto e foi esmagada uma rebe lião liderada por seu filho Em 1540 Henrique VIII depois de rom per com o papado que havia originalmente investido a monarquia in glesa na suserania da Irlanda como um feudo de Roma assumiu o novo título de rei da Irlanda Na prática porém a maior parte da ilha ficou fora de qualquer controle Tudor dominada seja pelos chefes Velhos Irlandeses seja pelos senhores Velhos Ingleses a eles rela cionados tanto uns como outros adeptos da fé católica ao passo que a Inglaterra experimentava a Reforma Até o período de Elizabeth havia apenas dois condados fora do Pale Depois disso viriam a eclodir vio lentas rebeliões em 155966 Ulster em 156972 Munster e em 157983Leinster e Munster à medida que a monarquia tentava impor sua autoridade e instalar colônias de Novos Ingleses para apaziguar o país Finalmente em 1595 durante a longa guerra entre Inglaterra e Espanha o chefe do clã Ulster ONeill desencadearia uma insurreição em toda a ilha contra a opressão dos Tudor apelando ao auxílio do Papa e da Espanha Decidido a conseguir uma resolução definitiva para o problema irlandês o regime de Elizabeth mobilizou os maiores exércitos de seu reinado para a reocupação da ilha e a anglicização do 24 Para a situação no início do século XVI ver M MacCurtain Tudor and Stuart Ireland Dublin 1972 pp 15 18 3941 132 PERRY ANDERSON país de uma vez por todas As táticas de guerrilha adotadas pelos ir landeses defrontaramse com impiedosas medidas de extermínio25 A guerra durou nove anos antes que toda a resistência fosse pulverizada pelo comandante inglês Mountjoy Quando morreu Elizabeth a Ir landa achavase milítarmente anexada No entanto essa notável operação iria permanecer como um triunfo solitário das armas Tudor em terra vencida com os maiores esforços contra um inimigo préfeudal ela não poderia se repetir em outras arenas O avanço estratégico decisivo para o caráter geral da classe fundiária inglega e seu Estado não estaria aí e sim na lenta reo rientação no sentido do aparelhamento e da expansão navais durante o século XVI Por volta de 1500 a tradicional divisão vigente no Medi terrâneo entre a galera longa movida a remo e construída para a guerra e a sua congênere redonda movida a vento e utilizada para o comércio começava a ser superada nos mares setentrionais com a construção de grandes navios de guerra equipados com armas de fo go26 No novo tipo de vasos de guerra as velas tomaram o lugar dos remos e os soldados começaram a ser substituídos pelos canhões Ao construir a primeira doca seca inglesa em Portsmouth em 1496 Hen rique VII mandou fazer dois desses navios Entretanto seria Henrique VIII o responsável pela expansão sistemática e sem precedentes do poder naval inglês2 nos primeiros cinco anos depois de sua ascensão ao trono ele acrescentou 24 navios de guerra à marinha através da compra ou da construção no país quadruplicando o seu volume Ao final de seu reinado a monarquia inglesa possuía 53 navios e um Gabi nete da Marinha criado em 1546 As imensas carracas desta fase com os seus mal equilibrados castelos de gávea e a sua recéminstalada arti lharia constituíam ainda artefatos pouco aprimorados As batalhas navais continuava a ser essencialmente disputas corpo a corpo entre tropas sobre a água e na última guerra de Henrique VIII as galeras 25 Para alguns traços das táticas usadas para a submissão dos irlandeses ver C Falls Elizabeths Irísh Wars Londres 1950 pp 3269 341 343 345 A fúria in glesa na Irlanda foi provavelmente mais letal que a fúria espanhola nos Países Baixos com efeito não há indícios de que tenha sido restringida por considerações como aque las que por exemplo impediram a Espanha de destruir os diques da Holanda uma medida considerada genocida pelo governo de Filipe II Ver a comparação em Parker The Army ofFlanders and the Spanish Road pp 1345 26 Para este processo ver Cipolla Guns and Saih in the Early Phase of Euro pean Expansion pp 7881 M Lewis The Spanish Armada Londres 1960 pp 6180 que atribui à Inglaterra uma prioridade talvez duvidosa 27 G J Marcus A Naval History of England I The Formative Ceníuries Londres 1961 p 30 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 133 francesas detiveram ainda a iniciativa ao atacar o Solent Durante o reinado de Eduardo VI construiuse em Chatham uma nova doca mas houve por outro lado uma nítida diminuição do poder marítimo Tu dor nas décadas seguintes quando o desenho naval dos portugueses e espanhóis passou à frente dos ingleses com a invenção do galeão muito mais rápido Mas de 1579 em diante a gestão de Hawkins no Gabi nete da Marinha presenciaria uma rápida expansão e modernização da frota real os galeões de baixo calado foram equipados com canhões de longo alcance o que os transformava em plataformas de tiro com grande capacidade de manobra projetadas para afundar os equipa mentos estrangeiros a grande distância no curso de uma batalha A eclosão de uma guerra marítima com a Espanha longamente ensaiada pela pirataria inglesa na costa setentrional da América do Sul viria demonstrar a superioridade técnica desses novos navios Em 1588 Elizabeth I era senhora da marinha mais poderosa que a Europa ja mais conhecera A Armada foi vencida pelas meiacolubrinas ingle sas e perdeuse em meio à tempestade e à névoa Asseguravase assim a segurança insular ao tempo em que se lançavam as bases para um futuro imperial O novo domínio dos mares conquistado pela Inglaterra teve re sultados decisivos em dois campos A substituição da guerra terrestre pela guerra naval tendia a especializar e a segregar a prática da violência armada deslocandoa prudentemente para os mares Os navios que a transportavam constituíamse evidentemente prisões flutuantes onde o trabalho forçado era explorado com particular crueldade Ao mesmo tempo o interesse da classe dominante pelas atividades navais condu ziria proeminentemente a uma orientação comercial Com efeito en quanto o exército sempre fora uma instituição com uma única finali dade a marinha por sua própria natureza era um instrumento de dupla utilidade relacionado não apenas à guerra como também ao comércio29 Ao longo do século XVI a frota inglesa era ainda consti tuída basicamente por navios mercantes convertidos aos objetivos béli cos pela adição de canhões mas ainda passíveis de retomarem as fim 28 Garrett Mattingly The Defeat of the Spanish Armada Londres 1959 p 175 29 Na verdade por volta do século XVIII quando o almirantado represen tava o departamento mais dispendioso do governo a marinha não apenas contava com a City para pressionar pela aprovação de seu orçamento tinha que barganhar com ela sobre que interesses mercantis ou estratégicos deveriam ter precedência na determina ção das rotas de navegação de suas esquadras Ver Daniel Baugh Naval Âdministra tion in lhe Age of Walpole Princeton 1965 p 19 134 PERRY ANDERSON ções comerciais Naturalmente o Estado incentivava tal adaptabili dade dando preferência aos navios cujo desenho as servisse Desse modo a marinha não apenas se tornaria o instrumento adulto do aparelho repressivo do Estado inglês mas também o seu artefato am bidestro com profundas conseqüências para a configuração da classe dirigente30 pois os custos da construção e da manutenção navais em bora fossem mais altos por unidade31 eram muito inferiores ao preço de um exército permanente Nas últimas décadas do reinado de Eliza beth a proporção das despesas era de um para três E todavia os seus rendimentos mirante os próximos séculos seriam muito superiores o império colonial britânico seria o somatório de todos eles A grande colheita desta vocação naval ainda viria a ocorrer Mas foi em grande medida por sua causa que já no século XVI a classe fundiária pôde desenvolverse não em antagonismo mas em aliança com o capital mercantil dos portos e dos condados Em 1603 com a extinção da linhagem Tudor e o advento da di nastia Stuart criouse uma situação política fundamentalmente nova para a monarquia pois a subida ao trono de Jaime I permitiu que a Escócia pela primeira vez ficasse ligada à Inglaterra numa união pes soal Duas organizações políticas radicalmente distintas combinavam se agora sob a mesma casa reinante O impacto da Escócia sobre o padrão de desenvolvimento inglês mostrouse inicialmente muito tê nue devido precisamente à distância histórica entre as duas formações sociais mas a longo prazo viria a se revelar de grande importância para os destinos do absolutismo inglês A Escócia tal como a Irlanda permanecera como uma fortaleza celta fora dos limites do controle ro mano O seu variegado mapa clânico que recebera na Idade das Tre 30 Hintze comentou laconicamente talvez com simplismo excessivo Segura em sua insularidade a Inglaterra não necessitava de um exército regular ou pelo menos de um exército com as dimensões similares aos do continente mas apenas de uma marinha que poderia servir os interesses do comércio e os objetivos da guerra em razão disso não desenvolveu um absolutismo E acrescenta de forma característica O poderio terrestre produz uma organização que domina o próprio corpo do Estado e lhe dá uma forma militar O poder marítimo é meramente um braço armado que se arremessa contra o mundo à sua frente não se pode usálo contra um exército inter no Gesammelte Abhandlungen I pp 59 72 O próprio Hintze um ardente defen sor do imperialismo naval guilhermino antes da Primeira Guerra Mundial tinha suas razões para dar atenção à história marítima inglesa 31 No século seguinte os custos per capita eram duas vezes maiores no mar que em terra além disso evidentemente a marinha necessitava de uma indústria de suprimentos e de manutenção muito mais avançada Ver Clark The Seventeenth Cen tury p 119 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 135 vás um misto de imigrações irlandesas germânicas e escandinavas en contravase sujeito a uma monarquia centralizada cuja jurisdição al cançava todo o país com a exceção do noroeste durante o século XI Na Alta Idade Média o choque do feudalismo anglonormando refor mularia também aí a configuração do sistema político e social indígena mas enquanto na Irlanda este tomou a forma de uma precária con quista militar que em breve seria varrida com o refluxo celta na Escó cia foi a própria dinastia nativa dos Canmore que importou colonos e instituições inglesas promovendo casamentos mistos da nobreza meri dional e imitando as estruturas do reino mais avançado do outro lado áoBorder com os seus castelos sheriffs camareiros e magistrados O resultado foi uma feudalização muito mais profunda e completa da sociedade escocesa A normandização autoimposta eliminou as an tigas divisões étnicas do país e criou uma nova linha de demarcação social e lingüística entre as Lowlands onde a língua inglesa se fixou ao lado dos domínios e dos feudos e as Highlands onde o gaélico conti nuou a ser o idioma dos atrasados clãs de pastores Ao contrário do que ocorria na Irlanda o setor puramente celta foi reduzido a uma mino ria confinada ao noroeste Durante o último período medieval não logrou consolidar uma disciplina real sobre os seus domínios Uma contaminação recíproca entre os padrões políticos das Lowlands e das Highlands conduziu à semisenhorialização nas chefias dos clãs celtas nas montanhas e inoculou características clânicas na organização feu dal escocesa das planícies32 Além disso as constantes guerras de fron teira com a Inglaterra golpeavam repetidas vezes o Estado monárquico Nas condições de anarquia dos séculos XIV e XV em meio às inces santes turbulências na fronteira os barões apropriaramse do controle hereditário sobre os xerifados e estabeleceram jurisdições privadas os magnatas extorquiram regalias provinciais à monarquia e uns e outros patrocinaram redes de parentesco vassalizadas A dinastia Stuart que se sucederia atormentada por menorida des instáveis e governos de regência mostrouse incapaz de realizar qualquer avanço contra a desordem endêmica do país nos 150 anos seguintes enquanto a Escócia tornavase cada vez mais amarrada à aliança diplomática com a França como escudo contra as pressões da Inglaterra Em meados do século XVI a dominação direta da França 32 Para esse processo ver T C Smout A History ofthe Scottish Peopte Fj60 1830 Londres 1969 pp 447 que inclui uma análise social aguda da Escócia anterior à Reforma 136 PHRRY ANDERSON através da regência Guise suscitou uma xenofobia aristocrática e po pular que constituiu a grande força motriz da Reforma local as cida des os lairds e os nobres se rebelaram contra a administração francesa cujas vias de comunicação com o continente foram cortadas pela mari nha inglesa em 1560 o que asseguraria o sucesso do protestantismo escocês Mas a transformação religiosa que daí em diante iria separar a Escócia da Irlanda pouco contribuiu para alterar a configuração política do país As Highlands gaélicas única região a manterse fiel ao catolicismo viriam a tornarse ainda mais selvagens e turbulentas com o passar do século Enquanto as mansões rurais envidraçadas passa vam a ser a nova marca da paisagem Tudor no sul castelos maciça mente fortificados continuavam a ser construídos na região do Border e nas Lowlands As disputas armadas de caráter privado foram freqüen tes durante todo o reinado Somente a partir de 1587 com a ascensão de Jaime VI ao poder é que a monarquia escocesa melhoraria seria mente a sua posição Jaime VI com o recurso a uma mistura de conci liação e coerção incrementou um poderoso Conselho Privado favore ceu os grandes magnatas ao mesmo tempo que os jogava uns contra os outros criou novos pariatos introduziu gradualmente novos bispos na Igreja fez crescer a representação dos pequenos barões e burgos no Parlamento local subordinou este último através da criação de fecha das comissões de trabalho os Lords ofArticles e pacificou a fronteira Na virada do século XVII a Escócia era aparentemente um país re construído No entanto a sua estrutura sóciopolítica ainda apresen tava um notável contraste em relação à da Inglaterra contemporânea A população era escassa cerca de 750 mil pessoas as cidades eram pequenas pouco numerosas e dominadas por pastores As maiores casas da nobreza compreendiam potentados rurais de um tipo desco nhecido na Inglaterra Hamilton Huntly Argyll Angus com o controle de vastas regiões do país plenos poderes reinantes escoltas militares e clientelas de dependentes Os domínios senhoriais eram abundantes entre os barões menores os juizes de paz prudentemente enviados pelo rei haviam sido neutralizados A numerosa classe dos pequenos proprietários de terras estava habituada a pequenas querelas armadas O campesinato oprimido livre da servidão desde o século XIV nunca ensaiara uma rebelião importante Economicamente pobre e culturalmente isolada a sociedade escocesa era ainda marcada por 33 G Donaldson Scotland James V to James VII Edímburgo 1971 pp 21528 28490 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 137 um caráter acentuadamente feudal o Estado escocês era pouco mais forte que a monarquia inglesa após Bosworth A dinastia Stuart transplantada para a Inglaterra perseguiu no entanto os ideais da realeza absolutista que eram então regra geral de todas as cortes da Europa ocidental Jaime I habituado a um país onde os magnatas territoriais faziam a sua própria lei e o Parlamento pouco valia defrontavase agora com um reino onde o militarismo da alta nobreza tinha sido vergado mas não conseguiu enxergar que por outro lado o Parlamento representava o lugar central do poder da nobreza Assim o caráter muito mais avançado da sociedade inglesa fez com que por um certo tempo esta lhe parecesse ilusoriamente mais fácil de ser governada O regime jacobiano com o seu desprezo e incompreen são perante o Parlamento não realizou qualquer tentativa para aplacar o temperamento crescentemente oposicionista da pequena nobreza in glesa As extravagâncias da corte combinaramse a uma política ex terna imobilista que procurava a reaproximação com a Espanha am bos esses aspectos gozariam de igual impopularidade junto à maioria da classe fundiária As doutrinas do direito divino da monarquia riva lizavam com o ritualismo religioso áaHigh Church Usavase a justiça prerrogativa contra o direito comum a venda de monopólios e cargos contra a recusa do Parlamento a novos impostos Mal recebida na In glaterra a orientação do governo monárquico não encontrou porém uma resistência similar na Escócia e na Irlanda onde as aristocracias locais foram persuadidas por uma política de clientela astutamente exercida pelo rei e a colonização em massa do Ulster a partir das Low lands assegurou o predomínio do protestantismo Mas por volta do final do reinado a posição política da monarquia Stuart achavase pe rigosamente isolada no seu reino central Com efeito a estrutura social subjacente na Inglaterra começava a escapar de seu controle à medida que se perseguiam objetivos institucionais que estavam sendo atingidos com êxito em quase todo o continente No século seguinte à dissolução dos mosteiros enquanto a popu lação da Inglaterra duplicava a nobreza e a pequena nobreza tripli cavam em volume e a sua parcela da riqueza nacional crescia mais que proporcionalmente com um salto particularmente notável no início do século XVII quando a elevação das rendas venceu o aumento dos pre ços beneficiando toda a classe fundiária o rendimento líquido da pe quena nobreza deve ter quadruplicado nos cem anos posteriores a Do rei Jaime I da Inglaterra 138 PERRY ANDERSON 153034 O sistema tripartido de senhores de terra rendeiros e trabalha dores rurais futuro arquétipo da área rural inglesa já se prenun ciava nas zonas mais ricas da Inglaterra rural Ao mesmo tempo veri ficavase em Londres uma concentração sem precedentes de comércio e manufaturas tornandoa sete ou oito vezes maior no reinado de Carlos I do que o fora no de Henrique VIII a capital mais influente da Europa na década de 1630 No final do século a Inglaterra já constituíra algo semelhante a um mercado interno unificado35 O capitalismo agrário e mercantil registrara portanto progressos muito mais rápidos que em qualquer outra nação à exceção dos Países Baixos e importantes filei ras da própria aristocracia inglesa o pariato e a pequena nobreza conseguiram adaptarse a ele com sucesso Desse modo o refortaleci mento político de um Estado feudal deixara pois de corresponder ao caráter social da maior parte da classe em que teria inevitavelmente de se basear Tampouco estava presente um perigo social proveniente das camadas inferiores que compelisse ao estreitamento dos vínculos entre a monarquia e a pequena nobreza Como não havia necessidade de manter um grande exército os níveis fiscais na Inglaterra conservaram se notavelmente baixos talvez um terço ou um quarto de seu equiva lente na França no início do século XVII36 Poucos desses encargos re caíam sobre as massas rurais ao passo que os pobres das paróquias recebiam uma caridade preventiva dos fundos públicos Daí resultaria uma relativa paz social no campo em seguida à inquietação rural de meados do século XVI Além disso o campesinato não apenas estava sujeito a uma carga fiscal mais suave que em outros países como tam bém apresentava uma diferenciação interna muito maior Por sua vez com o impulso adicional do comércio esta estratificação tornou pos sível e proveitoso o quase abandono da cultura dominial em troca do arrendamento da terra por parte da aristocracia e da pequena nobreza O resultado foi a consolidação de um estrato kulak relativamente prós pero yeomanry e de um grande número de trabalhadores rurais assa lariados lado a lado com as massas camponesas Dessa forma a situa 34 L Stone The Causes ofthe English Revolutíon 15291642 Londres 1972 pp 725 131 Esta obra admirável na sua sobriedade e em seu poder de síntese é de longe a melhor visão geral da época 35 E J Hobsbawm The Crisis of the Seventeenth Century em Aston Org Oísíí in EurQpe 15601660 Londres 1965 pp 479 36 Christopher Hill The Century ofRevolution Londres 1961 p 51 Em 1628 Luís XIII extraiu da Normandia rendimentos equivalentes à receita fiscal total de Carlos l na Inglaterra L Stone em Discussions of TrevorRopers General Crisis Past and Present n 18 novembro de 1960 p 32 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 139 cão nas aldeias era relativamente segura para a nobreza que já não tinha a temer a insurreição rural e portanto não tinha interesse numa poderosa máquina repressiva à disposição do Estado Ao mesmo tem po o modesto nível fiscal que tanto contribuíra para esta calma agrária impediu o aparecimento de uma grande burocracia erigida para gerir o sistema tributário Uma vez que a aristocracia assumira as funções administrativas locais desde a Idade Média a monarquia viuse sempre privada de qualquer funcionalismo regional A orientação Stuart no sentido de um absolutismo desenvolvido contou assim com impor tantes trunfos já em seus primeiros passos Em 1625 Carlos I de forma consciente embora inepta tomou a si a tarefa de construir um absolutismo mais avançado com os mate riais pouco promissores de que dispunha As auras divergentes de su cessivas administrações da corte não ajudavam a monarquia a combi nação peculiar de corrupção jacobiana e austeridade carlista de Bu ckimgham a Laud provou ser extremamente desagradável a grande parte da pequena nobreza37 Os caprichos da política externa contri buíram também para enfraquecêla no início do reinado o fracasso de uma intervenção inglesa na Guerra dos Trinta Anos combinouse a uma guerra desnecessária e malsucedida com a França confusa inspi ração de Buckimgham Uma vez terminado esse episódio porém a orientação geral da política dinástica tornouse relativamente coerente O Parlamento que denunciara a conduta na guerra e o ministro res ponsável por ela foi dissolvido indefinidamente Na década de poder pessoal que se seguiu a monarquia tendia de novo a aproximarse da alta nobreza ao revigorar a hierarquia formal de nascimento e posição no seio da aristocracia através da concessão de privilégios ao pariato agora que o risco do militarismo senhorial na Inglaterra estava afas tado Nas cidades os monopólios e os benefícios seriam reservados ao estrato superior dos mercadores urbanos que constituía tradicional mente o patriciado municipal O grosso da pequena nobreza e os novos interesses mercantis foram excluídos do concerto monárquico As mes 37 Esses aspectos do governo Stuart fornecem o colorido mas não os contornos do crescente conflito político do início do século XVII São evocados com grande brilho por TrevorRoper em sua penetrante análise desses anos Historical Essays Londres 1952 pp 13045 Entretanto é um erro pensar que os problemas da monarquia Stuart pudessem ser solucionados apenas com o recurso a uma superior habilidade e compe tência política como ele sugere Na prática nenhum erro Stuart foi tão fatal como a imprevidente venda de terras feitas pelos seus predecessores Tudor Não seria a falta de habilidades pessoais mas de bases institucionais o que impediria a consolidação da absolutismo inglês 140 PERRY ANDERSON mas preocupações estavam evidentes na reorganização episcopal da Igreja efetuada durante o reinado de Carlos I que restaurou a disci plina e a moral do clero às custas de uma ampliação da distância religiosa entre os ministros locais e os cavaleiros Contudo os êxitos do absolutismo Stuart confinaramse largamente ao aparelho ideológico clerical do Estado o qual tanto sob Jaime I como sob Carlos I passou a inculcar o direito divino e o ritual hierático Mas o aparelho econô micoburocráüco permaneceu sujeito a agudas restrições fiscais O Par lamento controlava o direito de taxação propriamente dito e desde os primeiros anos do reinado de Jaime I resistia a todos os esforços no sentido de ignorálo Na Escócia a dinastia podia aumentar os impos tos à sua livre vontade especialmente nas cidades pois não existia ne nhuma forte tradição de negociação das concessões nos Estados Na Irlanda a administração draconiana de Strafford recuperou terras e rendimentos da pequena nobreza aventureira que para lá se mudara depois da conquista elizabetana e fez da ilha pela primeira vez uma fonte lucrativa de recursos para a Estado38 Mas na própria Inglaterra onde se situava o problema central tais remédios não eram exeqüíveis Tolhido pela anterior prodigalidade Tudor com os domínios reais Car los I recorreu a todos os expedientes feudais e neofeudais disponíveis em busca da receita fiscal capaz de sustentar uma máquina de Estado ampliada fora do controle do Parlamento renovação da tutela multas para as obrigações dos cavaleiros direito de fornecimento multiplica ção dos monopólios inflação das honrarias Foi particularmente nesses dias que a venda de cargos tornouse pela primeira vez uma impor tante fonte de rendimentos para a monarquia 30 a 40 por cento e ao mesmo tempo a remuneração dos detentores de cargos uma parte relevante das despesas do Estado39 Todos esses artifícios revelaramse inadequados a sua profusão serviu apenas para antagonizar a classe fundiária a maior parte da qual aferravase a uma aversão puritana tanto à nova corte como à nova Igreja Sintomaticamente o último gesto de Carlos I para a criação de uma base fiscal de importância foi uma tentativa para estender o único imposto tradicional de defesa exis tente na Inglaterra o pagamento do imposto naval pelos portos para a 38 O significado do regime de Strafford em Dublin e a reação por este provo cada no seio da classe senhorial dos Novos Ingleses são discutidos por T Ranger Strafford ín Ireland a Revaluation em Aston Org Crísis in Europe 15601660 pp 27193 39 G Aylmer The Kings Servants The Civil Service of Charles I Londres 1961 p248 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 141 manutenção da Marinha No espaço de poucos anos este seria sabo tado pela recusa dos juizes de paz locais em cobrálo A escolha deste sistema e a sua sina revelavam en creux os ele mentos que impediam uma versão inglesa de Versalhes O absolutismo continental fora construído sobre os seus exércitos Por uma estranha ironia o absolutismo insular só podia existir com os seus parcos ren dimentos conquanto não tivesse que erguer um exército Com efeito apenas o Parlamento poderia propiciar os recursos para tanto e uma vez convocado em breve começaria a desmantelar a autoridade Stuart Todavia pelas mesmas razões históricas a nascente revolta política contra a monarquia na Inglaterra não dispunha de instrumentos ime diatos para uma insurreição armada a oposição da pequena nobreza não contava sequer com um foco para o assalto constitucional ao domí nio pessoal do monarca pois o Parlamento não era convocado O im passe entre os dois antagonistas foi rompido na Escócia Em 1638 o clericalismo carlista que já ameaçara a nobreza escocesa com a reto mada das terras e dos dízimos eclesiásticos secularizados acabou por provocar uma sublevação religiosa com a imposição da liturgia angli canizada Os Estados escoceses uniramse na sua rejeição e a Conven ção que assinaram contra ela adquiriu imediata força material pois na Escócia a aristocracia e a pequena nobreza não tinham sido desmili tarizadas As estruturas sociais arcaicas do reino Stuart originário pre servavam os vínculos guerreiros de uma organização política da última fase medieval A Convenção conseguiu armar um formidável exército em poucos meses para enfrentar Carlos I Os grandes nobres e os pro prietários de terra chamaram às armas a sua clientela os burgos forne ceram fundos para a causa os veteranos mercenários da Guerra dos Trinta Anos preencheram os postos de oficiais O comando desse exér cito sustentado pelo pariato foi confiado a um general que servira na Suécia40 A monarquia inglesa não poderia reunir uma força militar comparável Assim havia uma lógica subjacente ao fato de a invasão escocesa de 1640 ter finalmente posto fim ao domínio pessoal de Carlos I O absolutismo inglês pagou o tributo de sua falta de armas O seu desvio das normas da última forma de Estado feudal apenas serviu 40 Os coronéis do exército eram nobres os capitães lairds e os soldados rasos robustos e jovens lavradores que trabalhavam como seus arrendatários Donalàson Scotland James Vto James VII pp 1002 Alexander Leslie comandante do exército da Convenção era um exgovernador Vasa de Stralsund e de FrankfurtonOder com ele e com seus colegas a experiência européia da Guerra dos Trinta Anos veio para a Ingla terra 142 PERRY ANDERSON como confirmação negativa da necessidade delas O Parlamento con vocado in extremis pelo rei para ocuparse da derrota militar frente aos escoceses procedeu à supressão de todas as vantagens obtidas pela mo narquia Stuart proclamando o retorno a um quadro constitucional mais primitivo Um ano depois a rebelião católica irrompia na Ir landa41 O segundo elo mais frágil da paz Stuart se quebrara A luta pelo controle do exército inglês forçado a se reunir para esmagar a insurreição irlandesa lançou o Parlamento e o rei na Guerra Civil O absolutismo inglês foi levado à crise pelo particularismo aristocrático e pelo desespero dos clãs em sua periferia forças que historicamente se situavam atrás dele Mas foi derrubado no centro da nação por uma pequena nobreza mercantilizada um grande centro urbano capita lista um artesanato e uma pequena burguesia rural plebeus forças que o empurravam para frente Antes que pudesse chegar à sua matu ridade o absolutismo inglês foi interrompido por uma revolução bur guesa 41 Ê possível embora não seja certo que Carlos I tenha deflagrado inadverti damente o levante Old frish no Ulster com as suas negociações clandestinas com os notáveis Velhos Ingleses na Irlanda em 1641 ver A Clarke The Old English in Ireland Londres 1966 pp 2279 Itália O Estado absolutista nasceu na era da Renascença Muitas das suas técnicas essenciais tanto administrativas como políticas foram criadas pela primeira vez na Itália Colocase assim a questão por que razão a própria Itália nunca construiu o seu absolutismo nacional É evidente que as instituições medievais do papado e do império com seu caráter universalista atuaram no sentido de frustrar o desenvolvimento de uma monarquia territorial ortodoxa na Itália e na Alemanha Na Itália o papado resistiu a toda tentativa de unificação territorial da península Todavia por si só este fator não bastaria para bloquear tal resultado pois o papado foi notoriamente frágil durante longos perío dos Um rei francês poderoso como Filipe o Belo não teve dificuldades para lidar com ele manu militari com meios simples e óbvios se qüestro em Anagni cativeiro em Avignon Foi a ausência na Itália de um poder com tal ascendência que permitiu ao papado as suas mano bras políticas É preciso buscar noutra parte o determinante funda mental que possibilitou a formação de um absolutismo nacional Este reside precisamente no desenvolvimento prematuro do capital mercan til nas cidades do norte da Itália que impediu o surgimento de um poderoso Estado feudal reorganizado no nível nacional A riqueza e a vitalidade das comunas da Toscana e da Lombardia derrotaram o es forço mais importante de construção de uma monarquia feudal unifi cada que poderia ter fornecido a base para um posterior absolutismo a tentativa realizada por Frederico II no século XIII para expandir o seu Estado baronial relativamente avançado a partir de sua base no sul 144 PERRY ANDERSON O imperador dispunha de muitos recursos para seus projetos O sul da Itália era a única parte da Europa ocidental onde uma hie rarquia feudal piramidal implantada pelos normandos combinarase com um forte legado bizantino de autocracia imperial O Remo da Sicilia caíra em abandono e confusão nos últimos anos do domínio nor mando quando os barões locais se apropriaram dos poderes provin ciais e das propriedades reais Frederico II marcou a sua chegada ao sul da Itália com a promulgação das leis de Cápua em 1220 que rea firmaram um formidável controle centralizado do Regno Os bailios do rei substituíram os prefeitos nas cidades Os castelos mais importantes foram retomados dos nobres a herança de feudos ficou sujeita à super visão do monarca foram canceladas as doações de terras dominiais e restaurados os tributos feudais para a manutenção da frota1 As leis de Cápua foram impostas na ponta da espada e complementadas uma década depois pelas Constituições de Melfi 1231 que codificaram o sistema jurídico e administrativo do reino suprimindo os últimos vestí gios de autonomia urbana e restringido severamente os senhorios cle ricais Nobres prelados e cidades foram subordinados à monarquia graças a um apurado sistema burocrático que compreendia um corpo de magistrados reais com função de comissários e de juizes nas provín cias que trabalhavam com documentos escritos e estavam sujeitos a um esquema de rodízio a fim de prevenir que se envolvessem com os interesses senhoriais locais2 Multiplicaramse os castelos para intimi dar as cidades e os senhores rebeldes A população muçulmana da Si cília ocidental que resistia nas montanhas tornandose um tormento constante para o Estado normando foi submetida e transferida para a Apúlia daí em diante a colônia árabe de Lucerna passou a fornecer a Frederico uma excelente força de tropas profissionais islâmicas para as suas campanhas na Itália No aspecto econômico não era menos ra cional a organização do Regno Abolidos os pedágios internos foi ins talado um severo serviço de alfândegas externas O controle pelo Es tado do comércio de grãos com o exterior permitiu grandes lucros para os domínios reais os maiores produtores de trigo da Sicilia Os impor tantes monopólios de mercadorias e os crescentes impostos regulares sobre a terra rendiam receitas fiscais consideráveis criouse até mesmo uma moeda de ouro com valor nominal A solidez e a prosperidade 1 G Masson Frederick IIofHohenstaufen Londres 1957 pp 7782 2 Para este corpo de funcionários judiciais ver E Kantorowicz Frederick the Second Londres 1931 pp 27279 3 Masson Frederick flof Hohenstaufen pp 16570 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 145 desta fortaleza Hohenstaufen no sul permitiram a Frederico II fazer a temível aposta da criação de um Estado imperial unitário que abran gesse toda a península Reclamando a herança de toda a Itália e contando com o apoio dos senhores feudais dispersos pelo norte à sua causa o imperador tomou a Marca e invadiu a Lombardia Por um breve período as suas ambições pareceram estar prestes a se realizarem em 123940 Frede rico estruturou um esquema para a futura administração da Itália como um Estado monárquico unificado dividido em províncias gover nadas por vigáriosgerais e capitãesgerais inspirados nos magistrados sicilianos e nomeados pelo imperador dentre a sua corte da Apúlia4 Os ventos mutantes da guerra impediram a estabilização desta estrutura mas a sua lógica e coerência eram inquestionáveis Até mesmo os reve ses finais e a morte do imperador não destruíram a causa gibelina Seu filho Manfredo ilegítimo e sem título imperial em breve estaria pronto a restaurar o predomínio estratégico do poder Hohenstaufen na penín sula depois de dispersar os guelfos florentinos em Montaperti alguns anos depois os seus exércitos ameaçaram capturar o Supremo Pontí fice em Orvieto numa ação que prefigurava o futuro coup de main francês em Anagni Os êxitos temporários da dinastia iriam porém revelarse ilusórios nas prolongadas guerras entre guelfos e gibelinos a linha Hohenstaufen foi finalmente derrotada e destruída O papado foi o vencedor formal desta disputa tendo orquestrado ruidosamente a luta contra o Anticristo imperial e a sua descendên cia Mas o papel diplomático e ideológico de sucessivos papas Ale xandre III Inocêncio IV e Urbano IV no ataque ao poder Hohens taufen na Itália nunca correspondeu à verdadeira força política e mili tar do papado Durante longo tempo faltaram à Santa Sé até os mo destos recursos administrativos de um principado medieval só no sé culo XII após a Questão das Investiduras com o imperador da Ale manha o papado adquiriu um aparato de corte normal comparável ao dos Estados Seculares da época com a constituição da Cúria Ro mana5 Daí em diante o poder papal seguiu caminhos curiosamente divergentes ao longo de sua trajetória dual eclesiástica e secular No seio da própria Igreja universal o papado construiu gradualmente uma autoridade autocrática e centralista cujas prerrogativas ultrapassavam em muito as de qualquer monarquia temporal da época A plenitude 4 Kantorowicz Frederick the Second pp 48791 5 G Barraclough The Mediaeval Papacy Londres 1958 pp 93100 146 PERRY ANDERSON de poder concedida ao papa estava totalmente isenta das restrições feudais costumeiras estados ou conselhos Os benefícios clericais de toda a cristandade passaram a ser controlados por ele as transações legais concentraramse nas suas cortes foi lançado com êxito um im posto geral sobre os rendimentos do clero6 Ao mesmo tempo porém a posição do papado como Estado italiano continuava a ser extrema mente frágil e ineficaz Esforços enormes foram dispendidos por suces sivos papas na tentativa de consolidar e expandir o Patrimônio de Pedro na Itália central Mas o papado medieval não conseguiu sequer estabelecer um controle sólido e confiável sobre a modesta região colo cada sob sua suserania nominal As pequenas cidades situadas nas co linas da Umbria e da Marca opuseramse vigorosamente à intervenção papal em seu governo enquanto a própria cidade de Roma foi muitas vezes desleal ou causava problemas7 Nenhuma burocracia viável foi criada para administrar o Estado pontifício cujas condições internas por conseguinte foram por longos períodos anárquicas e desorgani zadas As receitas fiscais do Patrimônio significavam apenas 10 por cento dos rendimentos totais do papado o custo de sua manutenção e proteção era provavelmente na maior parte do tempo muito superior ao rendimento que produzia O serviço militar a que estavam sujeitos os súditos papais as cidades e os feudatários dos territórios pontifí cios era também inadequado para suprir as necessidades de defesa existentes8 Financeira e militarmente o Estado pontifício como prin cipado italiano era uma unidade deficitária Confrontado isolada mente com o Regno do sul não tinha nenhuma chance A principal razão do fracasso Hohenstaufen em sua tentativa de unificar a península residia em outro fator na decisiva superioridade econômica e social do norte da Itália que possuía o dobro da popula ção do sul e a esmagadora maioria dos centros urbanos de produção comercial e manufatureira O Reino da Sicília tinha apenas três cida des com mais de 20 mil habitantes o norte tinha mais de vinte9 As exportações de cereais que constituíam a principal fonte de riqueza no sul eram na realidade um sintonia indireto da supremacia comercial do norte Com efeito as prósperas comunas da Lombardia Ligúria e 6 G Barraclough The MediaevalPapacy pp 1206 7 D Waley The Papal State in lhe Thirteenth Century Londres 1961 pp 6890 descreve a natureza e os principais acontecimentos relativos a tal atitude recalci trante das cidades 8 Waley The Papal State in Thirteenth Century pp 273 275 2956 9 G Procacci Storia degliltaliani I Bari 1969 p 34 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 147 Toscana importavam o cereal devido à sua avançada divisão de traba lho e concentração demográfica ao passo que os excedentes do Mezzo giorno eram pelo contrário indício de um fraco povoamento do cam po Os recursos das comunas eram portanto muito superiores aos que o imperador podia mobilizar na Itália embora aquelas se encontras sem com freqüência divididas e a sua própria existência como cidades repúblicas autônomas fosse ameaçada pela perspectiva de umamonar quia peninsular unitária A primeira tentativa Hohenstaufen de impor a soberania imperial na Itália quando Frederico II atravessou os Alpes vindo da Alemanha no século XII foi celebremente recha çada pela Liga Lombarda com a grande vitória de suas milícias ur banas sobre o exército de Barbaroxa em Legnago em 1160 Com a transferência da base dinástica do poder Hohenstaufen da Alemanha para a Sicília e a implantação da monarquia centralizada de Frederico II em solo do sul da Itália o risco de absorção real e senhorial cresceu para as comunas proporcionalmente Uma vez mais foram basica mente as cidades lombardas chefiadas por Milão que frustraram o avanço do imperador rumo ao norte com o apoio de seus aliados feu dais da Sabóia e do Vêneto Depois de sua morte a tentativa de recupe ração das posições gibelinas por Manfredo foi enfrentada com mais eficácia na Toscana Os banqueiros guelfos de Florença no exílio de pois de Montaperti foram os artífices financeiros da ruína final da causa Hohenstaufen Foram os seus maciços empréstimos 200 mil livres tournois ao todo que tornaram possível a conquista angevina do Regno10 enquanto por outro lado nas batalhas de Benevento e Togliacozzo foi a cavalaria florentina que contribuiu para dar aos franceses a sua margem de vitória Na longa luta contra o espectro de uma monarquia italiana unificada o papado forneceu regularmente os anátemas os fundos e a maioria das tropas foram fornecidos até o momento final pelas comunas As cidades da Lombardia e da Tos cana revelaramse suficientemente fortes para sufocar qualquer intuito de reagrupamento territorial de base feudalrural Por outro lado elas eram intrinsecamente incapazes de edificar por si próprias a unificação da península o capital mercantil não tinha naquela altura absoluta mente nenhuma possibilidade de dominar uma formação social de di mensões nacionais Assim embora a Liga Lombarda pudesse defender 10 E JordanZes Origines ae h DominationAngévineenltaíie Paris 1909 II pp 547 556 A fim de levantar as somas necessárias ao seu aliado francês junto aos banqueiros da Toscana e de Roma a Igreja teve que penhorar grande parte de suas propriedades fixas em Roma a título de garantia 148 PERRY ANDERSON vitoriosamente o norte contra as invasões imperiais não tinha capaci dade própria para conquistar o sul feudal os cavaleiros franceses ti veram que lançar o ataque ao Reino da Sicília Logicamente não fo ram as cidades da Toscana ou da Lombardia que herdaram o sul mas os nobres angevinos xs instrumentos necessários da vitória urbana que se apropriaram de seus frutos Logo a seguir a revolta das Vés peras sicilianas contra o domínio francês pôs fim à integridade do pró prio Regno Os territórios baroniais do sul se dividiram entre os preten dentes angevinos e aragoneses em luta num confuso conflito cujo re sultado final foi eliminar qualquer perspectiva de dominação da Itália a partir do sul O papado agora um simples hóspede da França foi deportado para Avignon abandonando totalmente a península por meio século As cidades do norte e do centro viramse assim em liberdade para promover o seu próprio e fascinante desenvolvimento políticocultural O eclipse simultâneo do império e do papado fez da Itália o elo mais fraco do feudalismo ocidental de meados do século XIV à metade do século XVI as cidades entre os Alpes e o Tibre viveram a revolucio nária experiência histórica a que os próprios homens chamaram Re nascença o renascimento da civilização da Antigüidade clássica após a escuridão intermediária da Idade Média A inversão radical de tempo implícita nestas definições em contradição com toda a crono logia evolucionista ou religiosa forneceu desde então os fundamentos das estruturas categoriais da historiografia européia a época que a posteridade veria como o principal marco divisório do passado traçou ela própria os limites que a separavam de seus predecessores e demar cou os seus antecedentes remotos dos imediatos uma realização cul tural sem precedentes Não houve um sentido de distância real a sepa rar a Idade Média da Antigüidade ela sempre viu a era clássica sim plesmente como a sua própria extensão natural no passado em direção a um mundo précristão ainda não redimido A Renascença descobriu a si própria com uma nova e intensa consciência de ruptura e de per da11 A Antigüidade habitava o passado remoto separada por toda a 11 A Idade Média deixou insepulta a Antigüidade e alternativamente reani mou e exorcizou o seu cadáver A Renascença chorou à sua sepultura e tentou ressus citarlhe a alma E num momento faüdicamente auspicioso conseguiu seu intento E Panofsky Renaissance and Renascenses in Western Art Londres 1970 p 113 a grande obra histórica sobre o renascimento da Antigüidade digna de seu tema De modo geral a moderna literatura sobre a Renascença italiana é curiosamente limitada e árida como se a própria magnitude de suas criações tivesse o efeito de desalentar os historia dores que dela se aproximassem A desproporção entre o tema e os estudos a ele dedi LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 149 obscuridade do médium aevum que se interpunha entre elas e no en tanto estava muito à frente do rude barbarismo preponderante nos sé culos subseqüentes O apelo apaixonado de Petrarca no limiar da nova época anunciava a vocação do futuro Este sono de esquecimento não durará para sempre uma vez dissipada a escuridão poderão os nossos netos retornar à pura radiação do passado A aguda percepção de uma longa ruptura de um hiato após a queda de Roma combinouse à firme determinação de atingir uma vez mais o paradigma exemplar dos antigos A recriação do mundo clássico seria a soberba inovação e o ideal do mundo moderno A Renascença italiana foi assim testemunha da revitalização e imitação deliberadas de uma civilização por outra em toda a amplitude de sua vida cívica e cultural sem exemplos ou continuação na história O direito e as magistraturas romanas já ti nham ressurgido nas comunas medievais da última fase a propriedade quiritária deixara por toda parte a sua chancela nas relações econômi cas das cidades italianas enquanto os cônsules latinos substituíam as autoridades episcopais no seu governo Em breve os tribunos da plebe serviam de modelo para os Capitães do Povo das cidades italianas O advento da Renascença propriamente dita que trouxe consigo as novas ciências da arqueologia epigrafia e crítica dos textos a fim de iluminar o passado clássico ampliou subitamente a lembrança e a emulação da Antigüidade numa escala enorme e explosiva Arquitetura pintura escultura poesia história filosofia teoria política e militar todas ansiavam por recuperar a liberdade e a beleza das obras antes destina das ao esquecimento As igrejas de Alberti derivam de seus estudos sobre Vitrúvio Mantegna buscou emulação em Apeles Piero di Co simo pintou painéis inspirados em Ovídio as odes de Petrarca basea vamse em Horácio Guicciardini aprendeu em Tácito a sua ironia o espiritualismo de Ficino descendia de Plotino os discursos de Maquia cados é particularmente evidente no legado de Marx e Engels sempre relativamente indi ferentes às artes visuais ou à música nem um nem outro viuse criativamente atraído pelos problemas apresentados ao materialismo histórico pela Renascença como Fenô meno total O livro de Panofsky tem um enfoque puramente estético toda a história econômica social e política do período passa à sua margem No entanto a sua qualidade e método estabelecem o manancial apropriado para o trabalho que ainda resta a ser feito nesse campo Acima de tudo Panofsky considerou com mais seriedade que qualquer outro historiador a relação retrospectiva entre a Renascença e a Antigüidade através da qual a própria época se concebia em sua obra o mundo clássico é um pólo ativo de comparação real e não meramente uma nomenclatura de aroma vago Na ausência dessa dimensão a história política e econômica da Renascença italiana está ainda por ser escrita com similar profundidade 150 PERRY ANDERSON vel eram um comentário sobre Tito Lívio os seus diálogos sobre a guerra uma invocação de Vegécio A civilização renascentista que se ergueu na Itália resplandescia com tal vitalidade que ainda hoje parece uma verdadeira réplica da Antigüidade a única Naturalmente o fato de ambas se assentarem em sistemas de cidadesEstados fornecia uma base objetiva para a su gestiva ilusão de encarnações correspondentes Os paralelismos entre o florescimento urbano da Antigüidade clássica e a Renascença italiana são bastante notáveis Ambas foram o produto original de cidadesre públicas compostas por cidadãos com consciência municipal Ambas foram no início dominadas por nobres e em ambas a maioria da cida dania primitiva possuía propriedades fundiárias nos territórios rurais que cercavam a cidade12 Ambas evidentemente eram intensos cen tros de trocas de mercadorias O mesmo mar oferecia a ambas as prin cipais rotas de comércio13 Ambas exigiam serviço militar de seus ci dadãos cavalaria ou infantaria segundo o grau de sua propriedade Até mesmo algumas das singularidades políticas da polis grega tinham os seus equivalentes próximos nas comunas italianas a altíssima pro porção de cidadãos que detinham temporariamente cargos no Estado ou o uso do sorteio para a escolha dos magistrados11 Todas essas ca racterísticas comuns pareciam formar uma espécie de sobreposição parcial de uma forma histórica na outra Na realidade evidentemente toda a natureza sócioeconômica das cidadesEstados antigas e da Re nascença era profundamente diversa As cidades medievais eram como vimos enclaves urbanos dentro do modo de produção feudal estrutu 12 DWaley The Italian CityRepublics Londres 1969 p 24 reconhece que na maior parte das cidades do final do século XIII cerca de dois terços das famílias pos suíam terras Ê preciso notar que esse padrão era especificamente italiano nem as ci dades alemãs nem as flamengas tinham na época um número semelhante de proprietá rios rurais Da mesma forma em Flandres e na Renânia não havia um equivalente real do contado controlado pelas cidades da Lombardia e da Toscana As cidades da Europa setentrional tiveram sempre um caráter mais exclusivamente urbano Para uma boa aná lise do fracasso das cidades flamengas em anexar a área rural que as circundava ver D Nicholas Towns and Countryside Social and Economic Tensions in Fourteenth Century Flanders Comparative Studies in Society and History X n 4 1968 pp 45885 13 Em comparação os custos mais favoráveis eram ainda de longe os do trans porte marítimo No século XV era possível enviar cargas de Gênova a Southampton por pouco mais de um quinto do que custava o seu transporte por tenra numa distância tão curta como a de Gênova a Asti J Bernard Trade and Finance in tke Middle Ages 900 1500 Londres 1971 p 46 14 Waley The Italian CityRepublics pp 634 836 1079 estima que talvez um terço dos cidadãos de uma típica comuna italiana tinham ocupado cargos num ano ou noutro LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 151 ralmente possibilitadas pelo parcelamento da soberania elas existiam essencialmente numa tensão dinâmica com o campo enquanto as ci dades antigas constituíam uma continuação simbólica dele As cidades italianas começaram como centros mercantis dominadas pela pequena nobreza e povoadas por semicamponeses que muitas vezes combina vam as ocupações rurais e urbanas a lavoura e os ofícios Mas elas rapidamente assumiram uma configuração inteiramente distinta de suas antecessoras clássicas Mercadores banqueiros artesãos e juristas viriam a formar a elite patrícia das cidadesrepúblicas ao passo que a grande maioria dos cidadãos passou a formarse de artífices em con traste polar com as cidades antigas onde a classe dominante sempre foi a aristocracia proprietária de terras e o grosso da população era consti tuído de pequenos lavradores ou plebeus despossuídos enquanto os escravos representavam a numerosa classe subalterna de produtores diretos totalmente excluída da cidadania15 As cidades medievais não apenas não faziam uso evidentemente do trabalho escravo na indús tria doméstica e na agricultura16 como também baniram a servidão em seu território O conjunto da orientação econômica das duas civiliza ções urbanas era portanto antípoda tfm seus aspectos principais Ainda que ambas representassem avançados núcleos de intercâmbio de mercadorias as cidades italianas eram fundamentalmente centros de produção urbana cuja organização interna assentava nas corporações de ofícios ao passo que as cidades antigas sempre foram primaria mente centros de consumo articuladas em associações clânicas ou ter ritoriais17 Nas cidades da Renascença a divisão do trabalho e o nível técnico das indústrias manufatureiras têxteis ou metalúrgicas eram em conseqüência muito mais desenvolvidos que os da Antigüi dade tal como os transportes marítimos O capital mercantil e ban 15 A primeira análise sistemática dessas antíteses sociais devese a Weber Eco nomy and Society III pp 134043 Apesar da compreensão oscilante que Weber tem das relações entre cidade e campo nas repúblicas italianas toda a parte intitulada A democracia antiga e a medieval que conclui a obra continua a ser até hoje a melhor B mais original análise da questão Se houve avanços subseqüentes em termos de pesqulia estes não foram compensados por idênticos benefícios na síntese 16 As colônias ultramarinas de Gênova e Veneza situadas no Mediterrlneo oriental empregavam o trabalho escravo nas plantações de açúcar de Creta e nas minai de alumínio de Fócea nessas cidades também os servidores domésticos eram multai vezes escravos na sua maioria mulheres em contraste com os da Antigüidade Neite sentido houve mesmo um certo recrudescimento da escravidão mas sem que esta adqui risse importância econômica no plano interno na Itália Para a natureza e os limitei de tal fenômeno ver C Verlinden The Beginnings of Modem Colonization Ithaca 1970 pp 2632 17 Wéber Economy and Society IIIpp 134347 152 PERRY ANDERSON cario sempre imperfeito no mundo clássico devido à ausência das ne cessárias instituições financeiras que assegurassem a sua sólida acumu lação expandiase agora de forma livre e vigorosa com o advento das sociedades por ações das letras de câmbio e da escritura contábil de duas colunas o artifício da dívida pública desconhecido nas cidades antigas aumentou tanto os rendimentos do Estado como as alterna tivas de investimento para os investidores urbanos Acima de tudo as bases completamente diversas dos modos de produção escravo e feudal evidenciavamse nas relações diametral mente opostas que se estabeleciam entre a cidade e o campo As cida des do mundo clássico formavam uma unidade cívica e econômica com o seu meio rural Os municipia compreendiam indistintamente o centro urbano e a sua periferia agrária e a cidadania jurídica era extensiva a ambos O trabalho escravo ligava os dois sistemas produtivos e não havia uma organização econômica especificamente urbana a cidade funcionava essencialmente como um simples aglomerado de consumi dores da produção agrária e da renda fundiária As cidades italianas em contraste achavamse nitidamente separadas de sua zona rural o contado rural era em geral um território subjugado cujos habitantes não tinham direito de cidadania na organização urbana Desse nome aliás derivouse a designação vulgar e desdenhosa de contadini para os camponeses As comunas combatiam habitualmente certas instituições centrais do feudalismo agrário a vassalagem era com freqüência ex pressamente banida nas cidades e a servidão foi abolida na área rural por elas controlada Ao mesmo tempo as cidades italianas exploravam de forma sistemática o seu contado em benefício do lucro e da produ ção urbana colhiam aí os cereais e os recrutas fixavam preços e im punham um meticuloso regime de culturas à população agrícola subju gada18 Esta política antirural era uma parte essencial das cidades repúblicas da Renascença cujo dirigismo econômico era totalmente estranho às suas antepassadas da Antigüidade O meio de expansão fundamental da cidade clássica era a guerra A pilhagem de riquezas terra e trabalho eram as metas econômicas perseguidas no modo de produção escravista e a estrutura interna das cidades gregas e romanas derivava em grande parte daí a vocação militar dos hoplitas ou assidui tinha importância central em sua constituição municipal A agressão armada era uma constante nas comunas italianas mas nunca chegou a 18 Waley Theltalian CityRepublics pp 935 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 153 adquirir uma primazia semelhante O Estado escapava de uma tal defi nição militar porque a competição comercial e manufatureira am parada e reforçada pela coerção extraeconômica as despesas de pro teção da épocal9 tornarase por seus próprios méritos um objetivo econômico da comunidade mercados e empréstimos eram mais impor tantes que prisioneiros a pilhagem tinha menos valor que o açambar camento As cidades da Renascença italiana como o demonstraria o seu destino final eram complexos organismos comerciais e industriais cuja capacidade beligerante em terra ou no mar iria se revelar relati vamente limitada Estes grandes contrastes sócioeconômicos tiveram inevitavel mente os seus reflexos no florescimento cultural e político em que as cidadesEstados da Antigüidade e da Renascença pareciam convergir mais estreitamente A infraestrutura artesanal livre das cidades renas centistas onde o trabalho manual nas corporações nunca foi contami nado com a degradação social servil produziu uma civilização na qual as artes plásticas e visuais como a pintura a escultura e a arquitetura ocupavam uma posição absolutamente predominante Os escultores e pintores organizavamse por sua vez em corporações artesanais e goza vam de início da posição social média conferida a atividades análogas acabariam por alcançar honra e prestígio incomparavelmente maiores que os seus predecessores gregos ou romanos As nove musas do mundo clássico omitiam significativamente as artes visuais20 A imaginação sensível foi o domínio supremo da Renascença produzindo uma ri queza e profusão artísticas que ultrapassaram a própria Antigüidade e disso orgulhosamente se aperceberam os próprios contemporâneos Por outro lado as realizações teóricas e intelectuais da cultura renascen tista na Itália foram muito mais restritas A literatura a filosofia e a ciência segundo a ordem descendente de suas contribuições não produziram um conjunto de obras comparável ao da civilização antiga A base escrava do mundo clássico que divorciou o trabalho manual do 19 A noção de renda de proteção foi desenvolvida por F C Lane Venise and History Baltimore 1966 pp 373428 para pôr em relevo as conseqüências econômicas da fusão característica entre guerra e negócios nos primeiros empreendimentos comer ciais e coloniais das cidadesEstados italianas tanto as incursões agressivas e a pira taria como a guarda defensiva e as escoltas eram inseparáveis das práticas comerciais da época 20 Só a música e a poesia eram admitidas em sua companhia que por outro lado incluía principalmente o que hoje se chama de ciências e humanidades Ver a notável análise sobre as modificações na ordem e na definição das artes em P O Krís Icller Renaissance Thought Nova Iorque 1965 pp 16889 154 PERRY ANDERSON cerebral de forma muito mais radical do que jamais o conseguiu a civi lização medieva produziu uma classe proprietária ociosa muito diversa do patriciado affairé das cidadesEstados da Itália As palavras e os números em sua abstração eram mais íntimos do universo clássico as imagens tiveram precedência em seu renascimento O humanismo literário e filosófico com as suas preocupações seculares e acadêmicas sempre esteve confinado a uma elite intelectual frágil e restrita durante a Renascença italiana21 a ciência faria breve e isolada aparição so mente em seu epílogo A vitalidade estética das cidades tinha raízes cívicas muito mais profundas e sobreviveria a ambas Galileu expiraria na solidão e no silêncio enquanto Bernini deslumbrava a capital e a corte que o haviam excluído Mas a evolução política das cidades renascentistas divergiria ain da mais de seus protótipos antigos do que a sua configuração cultural Até certo ponto havia acentuadas analogias formais entre as duas Depois da expulsão do poder episcopal uma préhistória que pode ser comparada à derrubada da realeza na Antigüidade as cidades italianas foram dominadas pela aristocracia fundiária Os regimes con sulares daí resultantes em breve dariam origem a um regime oligár quico com um sistema externo áepodestà que depois seria assaltado pelas guildas plebéias mais prósperas criadoras de suas próprias con trainstituições cívicas enquanto isso o estrato superior dos mestres deofício notários e mercadores que liderou a luta dopopolo aliouse à nobreza urbana para formar um único bloco municipal de poder e privilégio reprimindo e manipulando a massa de artesãos sob seu do mínio A forma e a composição exatas de tais lutas variou de cidade para cidade e a evolução política dos diferentes centros urbanos podia abreviar ou dilatar a sua seqüência Em Veneza o patriciado mercantil cedo colheu os frutos de uma rebelião de artesãos contra a velha aristo cracia e pôs freio a qualquer evolução política posterior cerrando rigi damente as suas fileiras aserrata de 1296 suspendeu a possibilidade de constituição de umpopolo Por outro lado em Florença os jornaleiros 21 Os dois alemães que trouxeram a imprensa para a Itália em 1465 e a leva ram a Roma dois anos depois foram à falência em 1471 simplesmente porque não havia mercado para as suas edições dos clássicos latinos Mesmo quando o Renascimento estava em seu apogeu só uma minoria muito restrita entendia e acalentava os seus ideais R Weiss The Renaissance Discovery of Amiquity Oxford 1969 pp 2056 Gramsci naturalmente foi intensamente tocado por esta falha no passado cultural de seu país mas como Marx e Engels antes dele tinha pouca sensibilidade plástica e tendia a ver a Renascença básica ou meramente como um iluminismo espiritual de dimensões rarefeitas LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 155 esfaimados um miserável proletariado que se situava abaixo da classe dos artesãos revoltaramse por sua vez contra um governo neoconser vador dirigido pelas corporações em 1378 sendo a rebelião esmagada Mas na maioria das cidades surgiram repúblicas urbanas com um sis tema formal de voto ampliado que eram efetivamente governadas por grupos restritos de banqueiros proprietários de manufaturas merca dores e senhores cujo denominador comum já não era o nascimento mas a riqueza a posse de capital fixo ou móvel A seqüência verificada na Itália de bispados para consulados e depodesteria parapopoo com os sistemas constitucionais mistos que daí resultaram faz sem dú vida lembrar em certos aspectos a trajetória da monarquia para a aristocracia e da oligarquia para a democracia ou tribunato com seus complexos resultados que teve lugar no mundo clássico Mas havia uma diferença nítida e central entre as duas ordens de sucessão Na Antigüidade as tiranias em geral sobrevieram no período que separou as constituições aristocráticas das populares como sistemas de transi ção destinados a ampliar as bases da organização política elas foram um prelúdio à ampliação dos direitos e das liberdades da agora Na Renascença ao contrário as tiranias encerravam o desfile das formas públicas as signorie representaram o último episódio das cidadesrepú blicas e significaram a sua derrocada final num autoritarismo aristo crático O destino final das cidadesEstados da Antigüidade e da Renas cença revela talvez melhor do que outro elemento em sua história o grande abismo que as separava As repúblicas municipais da época clássica podiam dar origem a impérios universais sem que ocorresse nenhuma ruptura básica em sua continuidade social pois o expansio nismo territorial era o prolongamento natural de sua vocação agrária e militar O campo foi sempre o eixo incontestável de sua existência por isso elas se achavam em princípio perfeitamente adaptadas a anexa ções de terra cada vez mais extensas e o seu crescimento econômico assentava na condução bemsucedida da guerra que sempre fora um objetivo cívico central A conquista militar revelouse assim uma via relativamente direta das repúblicas para os Estados imperiais e estes últimos podiam ser vistos como um ponto de chegada predestinado As cidades da Renascença por sua vez sempre foram centros urbanos divergentes do campo as leis de seu movimento estavam centradas na própria economia urbana cuja relação com a área rural circundante caracterizavase por um antagonismo estrutural O advento das signo rie ditaduras principescas com um vago passado agrário não con duziria assim a nenhum ciclo posterior de crescimento político ou eco 156 PERRY ANDERSON nômico relevante Em vez disso estas marcariam o fim da prosperi dade das cidades italianas no seu conjunto Com efeito as repúblicas renascentistas não tinham qualquer chance de realizar uma carreira de unificação e conquista imperiais precisamente devido a sua quintes sência urbana jamais poderiam congregar e comandar o conjunto das formações sociais feudais ainda dominadas nitidamente pelo campo Elas não dispunham de alternativa para a expansão política em escala peninsular Além disso as suas forças militares eram radicalmente ina dequadas para tal tarefa O surgimento da signoria como forma insti tucional foi um presságio de seu impasse futuro A Itália setentrional e central constituía uma exceção na econo mia européia da última fase da Idade Média a região mais avançada e próspera do Ocidente como vimos O apogeu das comunas no século XIII foi uma época de vigorosa explosão urbana e crescimento demo gráfico Essa situação de liderança logo propiciou à Itália uma posição peculiar no subseqüente desenvolvimento econômico do continente Como todos os outros países da Europa Ocidental ela foi assolada pelo despovoamento e pela depressão do século XVI o refluxo comercial e as falências dos bancos reduziram a produção manufatureira e prova velmente estimularam o investimento na construção de edifícios des viando o capital para os gastos suntuários e os domínios reais A traje tória da economia italiana no século XV é mais obscura22 A queda drástica na produção de tecidos de lã era agora compensada por uma mudança para a produção de seda embora seja difícil avaliar a exten são dos efeitos compensatórios Um novo aumento na população e pro dução deve ter permitido níveis gerais de atividade econômica ainda in 22 A opinião acadêmica achase nitidamente dividida quanto à questão do ba lanço geral da economia italiana do século XV Lopez com o apoio de Miskimin de fendeu que a Renascença foi essencialmente uma época de depressão entre outros índi ces o capital do banco dos Mediei na Florença do século XV era apenas a metade do dos Peruzzi cem anos atrás ao passo que os tributos alfandegários pagos a Gênova no início do século XVI eram ainda inferiores aos da última década do século XIII Cípolla pôs em dúvida a validade de efetuar deduções gerais a partir dessas evidências e sugeriu que a produção per capita deve ter crescido na Itália a par da divisão internacional do traba lho Para este debate ver R Lopez Hard Times and Investment in Culture republi cado em A Molho Org Social and Economic Foundations ofthe Renaissance Nova Iorque 1969 pp 95116 R Lopez e H Miskimin The Economic Depression of the Renaissance Economic History Review XIV n 3 abril de 1962 pp 40826 Cipolla Economic Depression of the Renaissance Economic History Review XVI n 3 abril de 1964 pp 51924 com réplicas de Lopez e Miskimin pp 5259 Uma análise mais recente que abarca a última parte do século XV e o início do século XVI apresenta um balanço de modo geral otimista do comércio das iinanças e das manufaturas P Laven Renaissance Italy 14641534 Londres 1966 pp 35108 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 157 feriores ao ápice atingido no século XIII No entanto parece provável que as cidadesEstados tenham superado a crise geral do feudalismo eu ropeu em melhores condições que qualquer outra região do Ocidente A flexibilidade geral do setor urbano e o caráter relativamente moderno do setor agrário pelo menos na Lombardia permitiram talvez à Itália setentrional recuperar o impulso econômico quase meio século antes que o restante da Europa ocidental por volta de 1400 Agora porém os mais rápidos ganhos demográficos pareciam se localizar no campo e não nas cidades e o investimento de capitais tendia a orientarse cada vez mais para a terra23 A qualidade das manufaturas tornouse gra dualmente mais sofisticada voltandose para as mercadorias de elite as indústrias da seda e do vidro situavamse entre os setores mais dinâ micos da produção urbana dessa época Além disso durante os cem anos que se seguiram a reanimação da demanda européia manteve as exportações italianas de bens de luxo em altos níveis Contudo certos limites iriam imporse à prosperidade comercial e industrial das ci dades Com efeito a organização corporativa que distinguiu as cidades renascentistas das cidades clássicas levantou por sua vez restrições inerentes ao desenvolvimento da indústria capitalista na Itália As cor porações de ofícios impediam a separação completa entre os produtores diretos e os meios de produção condição prévia do modo de produção capitalista no seio da economia urbana elas se definiam por uma uni dade persistente entre o artesão e os seus instrumentos de trabalho que não podia romperse dentro deste quadro A indústria de tecidos de lã em alguns centros avançados como Florença chegou a atingir em certa medida uma organização protofabril baseada no trabalho assalariado propriamente dito mas a norma geral nas manufaturas têxteis sempre foi o sistema de produção doméstica sob o controle do capital mercan til Num setor após o outro os artesãos rigidamente agrupados em guildas regulamentavam os seus métodos e ritmos de trabalho segundo as tradições e costumes das corporações o que representava um formi dável obstáculo ao progresso da técnica e da exploração do trabalho Veneza desenvolveu a última e mais competitiva indústria de tecidos de lã da Itália no século XVI quando tomou os mercados de Florença e Milão talvez o mais notável êxito comercial da época Todavia mesmo em Veneza as corporações de ofícios viriam a se revelar uma 23 C M Cipolla The Trends in Italian Economic History in the Later Middle Ages Economic History Review II n 21949 pp 1814 158 PERRY ANDERSON barreira insuperável ao progresso técnico também aí podese dizer que todo o conjunto da legislação corporativa tinha como finalidade impedir qualquer tipo de inovação24 Assim o capital manufatureiro propriamente dito operava num espaço restrito com pouca possibili dade de reprodução ampliada a concorrência das indústrias estrangei ras mais livres e localizadas em áreas rurais com menores custos de produção acabaria por leválo à ruína O capital mercantil sobreviveu por mais tempo pois o comércio não estava sujeito a tais restrições mas também esse viria a pagar o tributo da relativa inércia técnica quando o predomínio marítimo deslocouse da navegação mediterrânea para a atlântica com o advento de formas de transporte naval mais rá pidas e baratas desenvolvidas pelos holandeses e ingleses25 O capital financeiro manteve os seus níveis de lucratividade durante um tempo maior por estar mais dissociado dos processos materiais de produção Contudo a sua dependência parasitária das cortes e exércitos interna cionais o tornaria particularmente vulnerável às suas vicissitudes As carreiras de Florença Veneza e Gênova vítimas dos tecidos ingleses ou franceses da navegação portuguesa ou holandesa e das falências bancárias da Espanha ilustrariam bem estas sucessivas contingên cias A liderança econômica das cidades renascentistas da Itália reve louse precária Ao mesmo tempo a estabilização política das oligar quias republicanas que em geral emergiram das lutas entre os patricia dos e as guildas mostrouse muitas vezes difícil o ressentimento social da massa de artesãos e de trabalhadores pobres das cidades continuou a existir sob a superfície da vida municipal pronto a explodir a cada nova crise sempre que o círculo estabelecido dos poderosos se divi disse em facções26 Finalmente a grande expansão na escala e na in 24 C M Cipolla The Decline of Italy Economic History Review V n 2 1952 p 183 As corporações da indústria de tecidos para exportação mantiveram um alto nível de qualidade e resistiram às reduções de salários as suas fazendas nunca foram modificadas para adaptarse às exigências da moda O resultado foi que os tecidos ita lianos caros e fora de moda acabaram por ficar fora de preço e foram retirados do mercado 25 F Lane Discussion Journal of Economic History XXIV dezembro de 1964 n 4 pp 4667 26 A multiplicação dos contatos e das rivalidades políticas entre as cidades de sempenhou também um importante papel no surgimento das signoríe nesta época To das as signoríe do norte da Itália todas sem exceção nasceram com a ajuda direta ou indireta de forças estranhas à cidade que seria palco do novo senhorio E Sestan Lê Origini delle Signorie Cittadine Un Problema Storico Esaurito Bolletino delVIslituto Storico Italiano per II Médio Evo n 73 1961 p 57 Para o exemplo de Florença ver abaixo LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 159 tensidade da guerra com o advento da artilharia de campanha e da infantaria profissional de lanceiros tornou cada vez mais ultrapassadas as modestas capacidades de defesa das pequenas cidadesEstados As repúblicas italianas passavam a ser tanto mais vulneráveis quanto mais se desenvolvia o volume e o poder de fogo dos exércitos europeus do início da época moderna A conjugação dessas tendências visível em diferentes graus e em diferentes fases nas cidades do norte e do centro preparou a cena para a ascensão das signoríe O pano de fundo social para a aparição desses senhorios adven tícios sobre as cidades encontravase na hinterlândia feudal das zonas rurais A rede de comunas nunca chegou a cobrir inteiramente o norte e o centro da península entre elas persistiram vastos interstícios rurais dominados por nobres senhoriais Estes haviam fornecido grande parte do apoio aristocrático para as campanhas Hohenstaufen contra as ci dades dos guelfos e a origem das signoríe pode ser traçada até os alia dos ou lugarestenentes de Frederico II na nobreza nas regiões menos urbanizadas de Saluzzo ou do Veneto27 Na Romagna a própria ex pansão das comunas em direção ao campo através da criação dos con tados subjugados conduziu à conquista de cidades pelos senhores ru rais cujos territórios tinham sido incorporados àquelas28 A maior parte dos primeiros tiranos do norte era composta de feudatários ou condot tierí que tomavam o poder por serem detentores ásipodesteria ou capi taneria das cidades em muitos casos gozaram de uma temporária sim patia popular por terem suprimido as odiadas oligarquias municipais ou restaurado a ordem pública apôs surtos endêmicos de violência fac cionária entre as famílias anteriormente dominantes Quase sempre trouxeram ou criaram um aparelho militar ampliado e melhor adap tado às modernas necessidades da guerra As conquistas que efetua vam nas províncias tendiam assim por sua própria natureza a aumen tar a importância do componente rural das cidadesEstados que eles agora governavam29 27 Jordan Lês Origines de Ia Domination Angévine I pp 6872 274 28 J Larner The Lordsofthe Romagna Londres 1965 pp 1417 76 29 O contraste entre as cidades italianas e alemãs é neste aspecto particular mente notável no século XV As cidades do Reno e da Suábia nunca possuíram como veremos a periferia rural que distinguia as suas equivalentes da Lombardia e da Tos cana Em contrapartida o seu território econômico compreendia um complexo mineiro prata cobre estanho zinco e ferro de um tipo quase desconhecido na Itália e deu origem a uma indústria metalúrgica muito mais dinâmica que qualquer outra ao sul dos Alpes Assim enquanto as cidades italianas foram pródigas em criatividade artística as cidades italianas desta época foram o cenário do maior leque de invenções técnicas da 160 PERRY ANDERSON Com efeito o vínculo que ligava as signorie à terra de onde ex traíam as tropas e os rendimentos mantevese sempre estreito como o testemunhou o seu padrão de expansão Originandose das alas mais atrasadas da Itália setentrional ao longo dos passos alpinos no oeste e do delta do Pó a oriente o poder dos príncipes deslocouse para o so fisticado centro da cena política com a tomada de Milão antiga alma comunal da Liga Lombarda pelos Visconti no final do século XIII Desde essa data Milão passou a representar o principado mais estável e poderoso entre as mais importantes cidades italianas dada a especí fica composição interna do Estado Não era um porto marítimo nem um grande centro manufatureiro sendo as suas indústrias prósperas e numerosas mas também pequenas e fragmentárias por outro lado possuía a zona agrícola mais avançada da Itália com as campinas irri gadas da planície lombarda que iria resistir à depressão agrária do século XIV provavelmente melhor que qualquer outra região na Eu ropa Milão a cidade de maior riqueza rural entre os centros urbanos importantes da Itália seria o trampolim natural para a primeira signo ria de significado internacional no norte Pelo final do século XIII a maior parte da Itália além dos Apeninos tinha caído em mãos de pe quenos senhores ou aventureiros militares A Toscana resistiu ainda por cem anos mas no curso do século XV sucumbiu também às tira nias iluminadas Florença o maior centro bancário e manufatureiro da península escorregou finalmente para o sereno controle hereditário dos Mediei embora não sem recidivas republicanas foram necessárias a proteção diplomática e militar dos Sforza senhores de Milão30 e mais tarde a pressão dos papas Mediei em Roma para assegurar a vitória final do regime dos príncipes em Florença Na própria Roma o go verno do papa Delia Rovere Júlio II no início do século XVI impeliu pela primeira vez a estrutura militar e política do Estado papal a uma forma próxima à dos poderes rivais do alémTibre Como era de prever Europa imprensa refinação de minério fundição material bélico fabricação de reló gios praticamente todos os principais progressos tecnológicos da época foram criados ou aperfeiçoados no ambiente das cidades alemãs 30 A brandura e prudência da dominação de Cosimo de Mediei em Florença exercida indiretamente através da manipulação eleitoral correspondia à relativa fra queza das bases sociais do domínio da família Lorenzo somente aceitou pacificamente o poder devido à ameaça da intervenção de Milão caso não o fizesse Quanto ao caráter original do primado dos Mediei em Florença e do apoio que recebiam de Milão ver N Rubinstein The Government of Florence under íke Mediei 14341494 Oxford 1966 pp 12835 161175 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 161 us duas repúblicas marítimas Gênova e Veneza resistiram sozinhas contra o surgimento de um novo tipo de corte e de príncipe salva guardadas pela ausência relativa de cinturões rurais ao seu redor Con tudo a serrota veneziana gerou uma minúscula facção hereditária de governantes que congelaram a partir daí o desenvolvimento político da cidade e revelaramse incapazes de integrar os territórios metropolita nos que a República conseguiu adquirir num Estado moderno ou uni tário31 O patriciado genovês mercenário e antisocial sobreviveu no esteio do imperialismo hispânico Em todas as outras partes as cida de srepúblicas desapareceram No aspecto cultural naturalmente a Renascença atingiu o seu apogeu neste último ato da civilização urbana da Itália antes do que viria a ser visto como as novas invasões bárbaras vindas do outro lado dos Alpes e do Mediterrâneo Os príncipes e clérigos patronos dessas novas e suntuosas cortes da península investiram prodiga mente nas letras e nas artes arquitetura escultura pintura filologia e história todas se beneficiaram na tepidez de estufa de um ambiente abertamente aristocrático de erudição e etiqueta No aspecto econô mico a rasteira estagnação da técnica e das empresas foi encoberta pela explosão no resto da Europa ocidental que continuou a aumentar a demanda de artigos italianos de luxo mesmo depois das manufaturas terem deixado de inovar e garantiu a ostensiva riqueza das signorie Mas no aspecto político o potencial desses Estados submonárquicos mostrouse muito limitado O mosaico das comunas no norte e no cen tro dera lugar a um número menor de tiranias urbanas consolidadas que se engajaram então em constantes guerras e intrigas recíprocas em busca do predomínio na Itália Mas nenhum dos cinco principais Es tados da península Milão Florença Veneza Roma e Nápoles tinha poder suficiente para vencer os outros ou mesmo para absorver os numerosos principados e cidades menores O retorno forçado de Gian Galeazzo Visconti aos seus limites na Lombardia sob a pressão combinada de seus adversários na virada do século XV marcou o fim da mais bemsucedida aspiração de supremacia A incessante rivali dade política e militar entre os Estados de força intermediária chegaria por fim a um precário equilíbrio com o Tratado de Lodi em 1451 Nesta altura as cidades renascentistas já tinham desenvolvido o instru mental básico da arte do governo e da agressão que haveriam de legar ao absolutismo europeu uma herança cuja enorme importância já 31 Ver os agudos comentários de Procacci Storia degli Italiani l pp 14447 162 PERRY ANDERSON observamos As imposições fiscais as dívidas consolidadas a venda de cargos as embaixadas no estrangeiro e as agências de espionagem tudo isso surgiu pela primeira vez nas cidadesEstados italianas numa espécie de ensaio em pequena escala do grande sistema político inter nacional e de seus conflitos que estavam por vir32 No entanto o regime das signorie não podia alterar os parâme tros básicos do impasse a que chegara o desenvolvimento político ita liano instaurado após a derrota do projeto de uma monarquia imperial unitária na época Hohenstaufen As comunas tinham sido estrutural mente incapazes de alcançar a unificação da península devido à pró pria precocidade de seu desenvolvimento comercialurbano As signo rie representaram uma reafirmação política do meio ambiente rural e senhorial em que sempre estiveram inseridas Mas uma verdadeira vi tória social do campo sobre as cidades nunca foi possível na Itália se tentrional ou central a força de atração das cidades era muito maior ao passo que a classe fundiária local nunca chegou a constituir uma nobreza feudal coesa com uma tradição ancestral ou esprit de corps Os senhores que usurparam o poder nas repúblicas eram muitas vezes mercenários arrivistas ou aventureiros enquanto outros eram altos banqueiros ou mercadores Em decorrência disso a soberania exercida pelas signorie sempre foi ilegítima no sentido mais profundo31 ba seavase num poder recentemente adquirido e na fraude pessoal sem o respaldo de qualquer sanção coletiva no direito ou na hierarquia aris tocrática Os novos principados extinguiram a vitalidade cívica das ci dadesrepublicanas mas não podiam confiar na lealdade ou disciplina de um setor rural dominado por senhores Assim a despeito de seu modernismo aparentemente ousado de meios e de técnicas a sua famosa introdução da pura política da força enquanto tal as signorie eram na realidade inerentemente incapazes de gerar a forma estatal carac terística do início da época moderna um absolutismo monárquico uni tário Da confusa experiência histórica desses senhorios nasceu a teoria política de Maquiavel Convencionalmente apresentada como a culmi nância da moderna Realpolitik prenunciando a prática das monar quias seculares da Europa absolutista era na verdade um programa 32 Ver Mattingly Renaissance Diplomacy pp 5860 33 Evidentemente o tipo e o grau dessa ilegitimidade variavam na Romanha os tiranos locais adquiriram gradualmente uma certa regularidade dinástica por volta do século XV Larner The tords ofthe Romagna pp 78154 LINHAGFNS DO ESTADO ABSOLUTISTA 163 idealizado para uma signoria de toda a Itália talvez meramente da Itália central nas vésperas da superação histórica dessa forma34 A acurada inteligência de Maquiavel estava consciente da distância que existia entre os Estados dinásticos da Espanha ou da França e as tira nias provinciais da Itália Ele notou que a monarquia francesa estava cercada por uma poderosa aristocracia e baseavase numa veneranda legitimidade os seus traços distintivos eram a proeminência de nobres autônomos e de leis tradicionais O rei da França está cercado por uma companhia de nobres de tradicional linhagem reconhecidos e amados pelos seus próprios súditos eles têm as suas prerrogativas e o rei não pode priválos delas sempôr em risco a sua própria sorte O reino da França é mais regulamentado por leis que qualquer outro reino atual de que tenhamos conhecimento35 Mas não conseguiu compreender que o poder das novas monarquias territoriais fundamen tavase precisamente nesta combinação de nobreza feudal e legalidade constitucional para ele osparlements franceses não passavam de uma fachada para a intimidação da aristocracia e o apaziguamento das massas36 Na verdade a aversão de Maquiavel pela aristocracia era tão intensa e geral que o levava a considerar uma pequena nobreza fundiá ria incompatível com qualquer tipo de ordem política viável ou estável Aqueles Estados cuja vida política mantémse incorrupta não permi tem que os seus cidadãos sejam fidalgos ou vivam à moda dos fidalgos Para elucidar o termo direi que por fidalgo se entende aqueles que vivem ociosamente à custa dos abundantes rendimentos de seus domínios sem desempenhar qualquer papel no cultivo e sem efetuar qualquer das tarefas necessárias à vida Tal tipo de homens é perni cioso em toda república e em toda província mas ainda mais maléficos são aqueles que além das rendas de seus domínios controlam castelos e comandam súditos que os obedecem Homens deste jaez são to 34 Chabod a mais lúcida autoridade no tema considera que Maquiavel visava tão somente a última um poderoso principado na Itália centrai e não um Estado penin sular Scrittisu Machiavelli Turim 1965 pp 647 35 Niccolò Machiavelli ü Príncipe e Discorsi sopra Ia Prima Deca de Tito Livio introdução de Giuliano Procacci Milão 1960 pp 26 262 a melhor das edições re centes 36 II Príncipe e Discorsi pp 778 A compreensão que Maquiavel tinha sobre a natureza e o papel da nobreza francesa era na realidade basicamente insegura e con fusa Em seu Ritratto di Cose di Francia ele descreve a aristocracia francesa como ex tremamente dócil ossequentissimi diante da monarquia em total contradição com as suas afirmações anteriores acima citadas Ver Arte delia Guerra e Scritti Politici Minori Milão 1961 p 164 164 PERRY ANDERSON talmente inimigos de qualquer forma de governo cívico37 Mencio nando com inveja as cidades alemãs que não tinham periferia senho rial38 conservava um certo republicanismo nostálgico composto de vagas recordações da República de Soderini à qual servira e de uma reverência de antiquado pela idade heróica de Roma registrada por Tito Lívio Mas o republicanismo de Maquiavel nos Discursos era no fundo sentimental e fortuito Com efeito todos os regimes políticos eram do minados por um restrito círculo íntimo do poder Em todos os Esta dos seja qual for a sua forma de governo os verdadeiros governantes nunca são mais que quarenta ou cinqüenta cidadãos A grande massa da população abaixo desta elite cuidava apenas de sua própria segurança a esmagadora maioria daqueles que exigem Überdade ape nas deseja viver em segurança Um governo bemsucedido sempre po dia suprimir as liberdades tradicionais conquanto deixasse intata a propriedade e a família de seus súditos se tanto deveria promover os seus empreendimentos econômicos desde que isso contribuísse para o seu próprio proveito O príncipe pode sempre inspirar medo e contudo eximirse ao ódio se ele se abstém da propriedade de seus súditos e cidadãos e de suas mulheres Tais máximas valiam para qualquer tipo de sistema político principado ou república As constituições republicanas contudo serviam apenas à continuidade podiam pre servar uma organização existente mas não inaugurar uma nova41 A fim de fundar um Estado italiano capaz de resistir aos invasores bárba ros vindos da França Suíça e Espanha tornavase necessária a vontade concentrada e a energia implacável de um príncipe único Estava aí a verdadeira paixão de Maquiavel As suas recomendações dirigiamse essencialmente ao futuro arquiteto de um necessariamente parvenu domínio peninsular O Príncipe declara logo de início que irá exa minar os dois tipos de principado o hereditário e o novo e nunca chega a perder de vista a distinção entre eles Mas a candente preocu pação do tratado que domina do princípio ao fim o seu conteúdo é essencialmente a criação de um novo principado tarefa que Maquiavel termina por proclamar expressamente como a maior realização de 37 IlPhncipeeDiscorstp 256 38 Ibidpp 25556 39 Ibid p 176 40 Ibid p 70 41 Ibid p 265 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 165 qualquer governante O novo príncipe se observar com cuidado as lições expostas acima tomará a aparência de um governante tradicio nal e o seu governo logo se tornará mais firme e seguro do que se há longo tempo nele estivesse investido Pois que os feitos de um novo príncipe atraem muito mais notoriedade que os de um governante here ditário e quando as suas ações são de valor cativam e prendem os homens melhor que o sangue real O novo príncipe terá uma dupla glória Este desequilíbrio velado no enfoque do tema é evidente em todo o livro Assim Maquiavel declara que os dois principais fundamentos do governo são boas leis e boas armas mas acrescenta pronta mente que uma vez que a coerção cria a legalidade e não viceversa ele irá ocuparse apenas da coerção Os principais fundamentos de todo Estado novos antigos ou mistos são as boas leis e as boas armas e desde que não há boas leis sem que haja boas armas e onde houver boas armas é preciso que haja boas leis eu não me ocuparei das leis mas falarei das armas43 Na que é talvez a passagem mais famosa do Príncipe repete o mesmo e revelador deslize conceituai A lei e a força são respectivamente os modos naturais de conduta dos homens e dos animais e um príncipe deve ser um centauro que possa combi nar as duas Mas na prática a combinação principesca que ele ana lisa não é a do centauro metade homem e metade animal e sim num deslizamento imediato a de dois animais o leão e a ra posa a força e a astúcia Há duas formas de lutar pela lei e pela força A primeira é própria dos homens a segunda dos animais mas como a primeira forma é com freqüência inadequada é necessário re correr à segunda Por essa razão o príncipe deve saber fazer bom uso do animal e do homem Os autores antigos instruíam os príncipes nessa lição por meio de uma alegoria contavam como Aquiles e muitos ou tros governantes da Antigüidade foram na infância entregues a um cen tauro Quíron para serem educados e treinados por ele O sentido desta história de um mestre metade animal metade homem é o de que um príncipe deve adquirir a natureza de ambos se ele possuir as quali dades de um e não as de outro estará perdido Por esse motivo como o 42 Príncipe e Discorsi p 97 Comparese o tom aí usado com esta passagem de Bodin Aquele que por sua própria autoridade se fez príncipe soberano sem eleição direito hereditário ou sorteio apenas pela guerra ou por apelo divino é um tirano Tal governante pisa sobre as leis da natureza Lês Six Livres de Ia Republique pp 211 218 43 II Príncipe e Discorsi p 53 166 PERRY ANDERSON príncipe é forçado a saber agir como um animal deverá aprender com a raposa e o leão C44 O temor é sempre preferível à afeição dos súditos a violência e a fraude sempre superiores à legalidade como forma de controlálos Podese dizer dos homens em geral são ingra tos desleais falsos e mentirosos tementes do perigo e ávidos de di nheiro O amor é um vínculo de obrigação que essas miseráveis criaturas rompem assim que lhes convém ao passo que o temor os prende firmemente pelo receio do castigo que nunca se abandona45 Estes preceitos sumários eram com efeito as normas domésticas pelas quais se regiam as pequenas tiranias da Itália estavam muito afastados das realidades da estrutura ideológica e política muito mais complexa do poder de classe das novas monarquias da Europa ociden tal Maquiavel pouco percebia da imensa força histórica da legitimi dade dinástica na qual estavam as raízes do absolutismo emergente O seu mundo era o dos aventureiros transitórios e dos tiranos arrivistas das signorie da Itália o seu ponto de referência César Bórgia O resul tado do ilegitimismo calculado da perspectiva de Maquiavel foi o seu famoso tecnicismo a defesa do recurso a meios moralmente não san cionados para a consecução de fins políticos convencionais dissociados de imperativos e restrições éticas A conduta de um príncipe só podia ser uma longa lista de perfídia e crimes uma vez que se dissolviam todas as bases jurídicas e sociais da dominação Em épocas futuras este despojamento no exercício prático do poder de toda a ideologia feudal ou religiosa pareceu ser o segredo e a grandeza da modernidade de Maquiavel46 Na realidade porém a sua teoria política aparente mente tão moderna na sua intenção de racionalidade clínica padecia de forma significativa da ausência de um conceito sólido e objetivo de Estado Há em seus escritos uma constante ondulação do vocabulário em que os termos città governo republica ou stato alternamse de um modo incerto embora todos tendam a subordinarse à noção que dá nome à sua obra central O Príncipe que podia ser o senhor tanto de uma república como de um principado47 Maquiavel nunca dis 44 n Príncipe e Discorri p 72 45 II Príncipe e Discorsi pp 6970 46 Tampouco estavam errados evidentemente Em certo sentido foi precisa mente a falta de ancoragem nas correntes principais de sua própria época o que permitiu a Maquiavel produzir uma obra política com significado mais geral e perene depois da passagem delas 47 Para exemplos ver II Príncipe e Discorsi pp 12931 30911 35557 Ver os comentários de Chabod em Alcuni Questioni di Terminologia Stato Nazione Pátria nelLinguaggiodelCÍnquecentoiWeaíftVazíone Bari 1967 pp 14553 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 167 tinguiu completamente a figura pessoal do governante que podia em princípio cair em qualquer parte ao acaso César Bórgia ou os seus pares da estrutura impessoal de uma ordem política com território fixo48 A interconexão funcional entre ambos era bastante real na época do absolutismo mas Maquiavel não tendo apreendido o vínculo social necessário entre monarquia e nobreza que a mediava tendia a reduzir a sua noção de Estado meramente à de propriedade passiva do príncipe enquanto indivíduo ornamento acessório da sua vontade A conseqüência de tal voluntarismo foi o paradoxo curioso e central da obra de Maquiavel a sua denúncia constante dos mercenários e a apologia da milícia urbana como único tipo de organização militar capaz de executar os projetos de um príncipe poderoso que pudesse ser o fautor de uma nova Itália É este o tema da vibrante proclamação final de sua obra mais célebre dirigida aos Mediei Mercenários e auxiliares são inúteis e perigosos levaram a Itália à escravidão e à ignomínia querendo pois a vossa ilustre casa seguir o exemplo daqueles grandes homens que salvaram as suas províncias é necessá rio antes de mais nada proverse de tropas próprias49 Maquiavel dedicaria depois a Arte da Guerra à defesa de sua tese militar de um exército inteiramente composto de cidadãos reforçandoa com todos os exemplos disponíveis da Antigüidade Para Maquiavel os mercenários eram a ruína que causara a fra queza política da Itália e na qualidade de secretário da República ele próprio tentara armar os camponeses locais para a defesa de Florença O fato é que os mercenários eram a condição prévia dos novos exércitos monárquicos além dos Alpes enquanto as suas novas milícias comu nais eram desbaratadas com toda facilidade pelas tropas regulares50 A razão desse seu equívoco militar porém tinha raízes no cerne de seus princípios políticos pois Maquiavel confundia os mercenários eu 48 Há em Maquiavel algumas passagens fugazes que indicam uma consciência dos limites da sua concepção dominante de Estado Os governos que surgem de súbito como tudo o que na natureza nasce e cresce muito rápido não podem ter raízes e mem bros firmes e são derrubados à primeira rajada de vento H Príncipe e Discorsi p 34 Procacci na sua competente introdução tira grande partido dos termos barbe e carres pondenzie raízes e membros como prova de que Maquiavel possuía efetivamente uma noção objetiva do Estado principesco Intraduzione pp L e segs Mas o que é real mente mais notável nesta frase de grande propriedade é a ausência geral de ecos ou conseqüências dela em O Príncipe em seu conjunto 49 Príncipe e Discorsi pp 53 58 104 50 Quanto a este episódio ver Oman A History of War in the Sixteenth Cen tury pp 967 168 PERRY ANDERSON ropeus com o sistema italiano dos condottieri A diferença é precisa mente que os condottieri da Itália possuíam as suas próprias tropas podendo colocálas em hasta pública ou deslocálas de uma parte à outra nas guerras locais ao passo que os governantes reais além dos Alpes constituíam ou contratavam corpos de mercenários diretamente sob seu próprio controle a fim de construir os precursores dos exércitos regulares e profissionais Foi a combinação do conceito próprio de Ma quiavel do Estado como propriedade adventícia do príncipe com a sua aceitação dos aventureiros como príncipes que o induziu ao erro de conceber os voláteis condottieri como elementos típicos da guerra mer cenária na Europa O que ele não conseguiu ver foi a força da autori dade dinástica com raízes na nobreza feudal que tornava a utilização doméstica de tropas mercenárias não apenas segura como superior a qualquer outro sistema militar então disponível A incongruência ló gica de uma milícia de cidadãos sob o domínio de uma tirania usur pada como fórmula para a libertação da Itália era apenas um sinal desesperado da impossibilidade histórica de uma signoria peninsular Exceto isso restava apenas o receituário banal de trapaça e ferocidade que passou a levar o nome de maquiavelismo Tais conselhos do se cretário de Florença eram uma mera teoria da fraqueza política o seu tecnicismo um empirismo cego incapaz de identificar as causas so ciais mais profundas dos acontecimentos que registrava confinado à vã manipulação superficial dos fatos utópica e mefistofélica A obra de Maquiavel refletia pois fundamentalmente em sua estrutura interna o impasse final das cidadesEstados italianas na vés pera de sua absorção Continua a ser o melhor guia para o seu fim ine vitável Na Prússia e na Rússia como se verá surgiu um superabsolu tismo sobre um vazio urbano Na Itália e na Alemanha a oeste do Elba a densidade urbana produziu apenas uma espécie de microabsolu tismo uma proliferação de pequenos principados que cristalizou as divisões do país Esses Estados em miniatura não estavam em posição de resistir às monarquias feudais vizinhas e em breve a ação de con quistadores estrangeiros alinharia forçosamente a península às normas 51 Este aspecto da obra de Maquiavel que deu origem à sua fama sensa cional nos séculos subseqüentes é em geral desconsiderado por seus mais sérios comen tadores atuais por suposta falta de interesse intelectual Na realidade é conceitualmente inseparável da estrutura teórica de sua obra e não pode ser urbanamente ignorado ele constitui o resíduo lógico e necessário de seu pensamento Aquela que é de longe a me lhor e mais vigorosa anáüse do significado real do maquiavelismo encontrase em Georges Mounin Machiavel Paris 1966 pp 20212 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 169 européias A França e a Espanha travaram um debate pelo seu controle nas primeiras décadas de suas respectivas integrações políticas nos úl timos anos do século XV Incapaz de produzir um absolutismo nacio nal internamente a Itália estava condenada a sofrer o alheio a partir de fora No espaço de meio século decorrido entre a marcha de Carlos VIII sobre Nápoles em 1494 e a derrota de Henrique II em São Quin tino em 1557 os Valois foram repelidos pelos Habsburgo e o prêmio foi para as mãos da Espanha A partir de então o domínio espanhol sediado na Sicília em Nápoles e Milão coordenou a península e do brou o papado sob a bandeira da ContraReforma Paradoxalmente seria o avanço econômico da Itália setentrional que a condenaria depois a um longo ciclo de atraso político O resultado final uma vez conso lidado o poder Habsburgo foi a regressão também econômica a rura lização dos patriciados urbanos que em sua decadência abandona ram as finanças e as manufaturas para investir na terra Daí as cem cidades do silêncio às quais Gramsci aludiria seguidamente52 Por uma curiosa compressão de épocas históricas seria por fim a monar quia piemontesa a responsável pela unificação nacional na era das revoluções burguesas do Ocidente Com efeito o Piemonte dispunha da base lógica para tal unificação somente aí surgiu um verdadeiro absolutismo nativo claramente alicerçado numa nobreza feudal em uma formação social dominada pela servidão O Estado erigido por 52 Passato e Presente p 98 Note sul Machiavelli p 7 Rissórgimento p 95 A frase foi emprestada do período poético de DAnnunzio As análises de Gramsci sobre o problema da unidade italiana na Renascença com o qual estava profundamente preo cupado padecem do pressuposto implícito de que as novas monarquias européias que unificaram a França a Inglaterra e a Espanha tinham caráter burguês ou pelo menos oscilavam entre a burguesia e a aristocracia Ele tende assim a sobrepor de modo ilegí timo dois problemas históricos distintos a ausência de um absolutismo unitário na Re nascença e a falta posterior de uma revolução democrática radical no Risorgimento Ambos surgem como evidências do fracasso da burguesia italiana o primeiro devido ao corporativismo e à involuçao das comunas no final da época medieval e início da mo derna o segundo devido ao conluio dos moderados com os latifundiários meridionais no século XIX Na realidade como vimos o oposto é que é verdadeiro Foi a falta de uma nobreza feudal dominante que impediu o absolutismo peninsular e portanto um Estado unitário contemporâneo dos da França ou da Espanha e foi a presença regional de tal nobreza no Piemonte que permitiu a criação de um Estado que serviria de trampolim para uma unificação tardia na época do capitalismo industrial O equívoco de Gramsci reflete em grande parte a sua confiança em Maquiavel como o prisma básico através do qual ele via a Renascença e a sua convicção de que Maquiavel representava um jaco binismo precoce ver especialmente Note sul Machiavelli pp 67 146 Com efeito Maquiavel confundiu em sua própria época dois períodos históricos distintos ao imaginar que um príncipe italiano podia formar um Estado autocráüco poderoso re criando as milícias de cidadãos típicas das comunas do século XII há muito extintas 170 PERRY ANDERSON Emanuele Filiberto e Cario Emanuele na Sabóia era economicamente rudimentar se comparado a Veneza ou Milão precisamente por tal razão revelouse o único núcleo territorial capaz de realizar no futuro um avanço político A posição geográfica a cavaleiro dos Alpes foi fundamental para esse seu destino excepcional pois representou por três séculos a possi bilidade de Sabóia manter a sua autonomia e ampliar as suas frontei ras jogando uma contra a outra as duas mais importantes potências do continente primeiro a França contra a Espanha depois a Áustria contra a França Em 1460 nas vésperas das invasões estrangeiras que encerrariam a Renascença o Piemonte era o único Estado indepen dente na Itália com um sistema de Estados influente53 justamente por ser a formação social de caráter mais feudal da península Os Es tados organizavamse num sistema convencional de três cúrias domi nado pela nobreza Os rendimentos dos duques eram escassos e a sua autoridade limitada embora o clero proprietário de um terço do país fosse em geral seu aliado Os Estados recusaramse a conceder subsí dios para um exército permanente Então na década de 1530 tropas francesas e espanholas ocuparam as regiões ocidental e oriental do Pie monte respectivamente Na área francesa os Estados foram mantidos como états provinciais do reino Valois ao passo que na parte espa nhola seriam suprimidos depois de 1555 A administração francesa reorganizou e modernizou a arcaica organização política local o bene ficiário dessa obra foi o duque Emanuele Filiberto Educado na Espa nha combatente em Flandres este aliado Habsburgo e vencedor de São Quintino recuperou o conjunto de seu patrimônio em 1559 com o Tratado de CateauCambrésis O autoritário e vigoroso duque Testa di Ferro para os seus contemporâneos convocou os Estados pela última vez em 1560 levantou uma ampla subvenção para um exército regular de 24 mil homens e a seguir dissolveuos para sempre Depois disso as inovações institucionais de trinta anos de domínio Valois foram pre servadas e desenvolvidas um Conselho de Estado com função execu tiva parlamentos judiciais lettere di giussione reais isto é lits de jus tice um código de leis unitário cunhagem única de moedas um erá rio reorganizado e leis suntuárias Quintuplicando as suas receitas 53 Ao lado da Sicflia que era previsivelmente a outra região a possuir um poderoso sistema de estados embora fazendo parte então do reino aragonês H G Koe nigsberger The Parliaments of Piedmont during the Renaissance 15401560 Studies Presentedfor the International Commission for the History of Representaíive and Partia meníary Institutions IX Louvain 1952 p 70 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 171 Emanuele Filiberto criou uma nova e leal nobreza de corte com uma astuta distribuição de títulos e cargos Sob o governo de um duque que foi um dos primeiros governantes na Europa a proclamarse isento de restrições legislativas Noi come principi siamo da ogni legge sciolti e liberi54 o Piemonte caminhou rapidamente em direção a uma precoce centralização principesca A partir daí a dinastia piemontesa sempre tendia a tomar em prestados os mecanismos e as formas políticas do absolutismo francês ainda que resistisse a ser territorialmente absorvida por este O século XVII contudo presenciou recaídas prolongadas em anárquicas guer ras civis e em discórdia entre os nobres sob o reinado de governantes fracos os ecos mais graves e prolongados da Fronda Os múltiplos en claves e as incertas fronteiras do Estado numa região intermediária da Europa dificultavam um controle ducal mais sólido dos planaltos alpi nos O avanço rumo ao absolutismo centralizado foi decisivamente con cluído por Vitorio Emanuele II no início do século XVIII Uma habi lidosa mudança de lados na Guerra da Sucessão Espanhola da França para a Áustria garantiu ao Piemonte o condado de Montferrat e a ilha da Sardenha e o reconhecimento europeu de sua elevação de ducado para monarquia Sinuoso na guerra Vitorio Emanuele usou a paz que se seguiu para instalar uma severa administração copiada à de Colbert onde não faltavam sequer um Conselho e o sistema de intendants Ele então desenfeudou amplas faixas de terras da nobreza com o recurso a um novo registro cadastral a perequazione de 1731 aumentando desse modo as receitas fiscais já que os domínios alodiais estavam su jeitos a impostos55 construiu um amplo aparelho diplomático e militar 54 Nós como príncipe estamos de todas as leis soltos e libertos a proclama ção do duque era evidentemente uma versão direta da famosa máxima romana Para um relato das reformas de Emanuele Filiberto no Piemonte ver Vittorio de Caprariis LTtalia nellEtà delia Controriforma em Nino Valeri Org Storia dIíalia II Tu rim 1965 pp 52630 55 Aperequazione é analisada em S J Woolf Studi sulla Nobiltà Piemontese nellEpoca deirAssoluíismo Turim 1963 pp 6975 É bastante claro o significado deste gesto para a história geral do absolutismo Na organização medieval onde não existia um sistema fiscal centralizado o interesse econômico do governante era multiplicar o nú mero de feudos com o dever de serviço militar e tributos feudais e reduzir o número de alódios com o seu regime de posse incondicional e a conseqüente isenção de prestar obrigações a um superior feudal Com o advento de um sistema fiscal centralizado a situação se inverteu os feudos ficaram fora da tributação fiscal porque deviam um serviço militar que era agora meramente simbólico ao passo que as propriedades alodiais podiam ser tributadas como qualquer propriedade urbana ou camponesa Na Prússia praticamente à mesma época Frederico Guilherme I introduziu em 1717 uma reforma semelhante a fim de comutar o serviço militar dos cavaleiros em imposto convertendo 172 PERRY ANDERSON na qual se integrou a aristocracia extinguiu as imunidades do clero e subordinou a Igreja Além disso perseguiu um vigoroso mercantilismo protecionista que incluiu a abertura de estradas e canais a promoção das manufaturas de exportação e a construção de uma capital engran decida em Turim O seu sucessor Cario Emanuele III aliouse habil mente com a França contra a Áustria na Guerra da Sucessão Polonesa a fim de conquistar uma parte da planície lombarda e em seguida juntouse à Áustria contra a França na Guerra da Sucessão Austríaca com o objetivo de conservála O absolutismo piemontês foi portanto um dos mais coerentes e bemsucedidos de sua época Como as duas outras experiências setentrionais de um absolutismo forte e moderni zado em pequenos Estados o regime de Tanucci em Nápoles e o de Pombal em Portugal esteve cronologicamente em atraso o auge de sua criatividade ocorreu no século XVIII e não no século XVII Mas sob outros aspectos o seu modelo foi estreitamente semelhante ao de seus mentores mais vastos Na verdade na época de seu apogeu o absolutismo piemontês talvez dispendesse mais com o seu exército um corpo profissional altamente treinado que qualquer outro Estado da Europa ocidental6 Tal aparelho militar aristocrático viria a ser a ga rantia de seu futuro a propriedade feudal em propriedade alodial e com isso pondo efetivamente fim à imu nidade fiscal da nobreza A medida provocou uma tempestade de indignação entre os junkers56 G Quazza Lê Riforme in Piemoníe nella Prima Meta dei Settecento Mô dena 1957 pp 1036 Quazza considera provável que nesse século só a Prússia tenha igualado ou ultrapassado o Piemonte em despesas militares Suécia A súbita ascensão de um absolutismo sueco nos primeiros anos do século XVI numa passagem quase sem transição de um tipo de Es tado feudal medieval adiantado para um tipo moderno adiantado não teve nenhum equivalente real no ocidente da Europa O apareci mento do novo Estado foi precipitado a partir de fora Em 1520 o novo rei dinamarquês Cristiano II marchou com seus exércitos sobre a Sué cia para impor aí a sua autoridade derrotando e executando a facção oligárquica Sture que governara o país de facto como regência local nos últimos anos da União de Kalmar A perspectiva de imposição de uma poderosa monarquia estrangeira na Suécia reuniu a aristocracia local e setores do campesinato independente sob o comando de um nobre usurpador Gustavo Vasa que se insurgiu contra a dominação dinamarquesa e estabeleceu o seu próprio domínio sobre o país três anos mais tarde com o auxílio de Lübeck inimiga e rival hanseática da Dinamarca Gustavo uma vez instalado no poder procedeu pronta e implacavelmente à instalação das bases de uma monarquia estável na Suécia O seu primeiro e decisivo gesto foi pôr em andamento a expro priação da Igreja aproveitandose do oportuno pretexto da Reforma Iniciado em 1527 o processo veio a completarse efetivamente em 1544 quando a Suécia tornouse oficialmente um país luterano A Reforma Vasa foi sem dúvida a mais bemsucedida operação econômica dessa espécie levada a cabo por uma dinastia européia Com efeito em con 174 PERRY ANDERSON traste com os dispersos resultados obtidos pelos Tudor com o confisco dos mosteiros ou pelos príncipes alemães com a secularização das ter ras eclesiásticas na Suécia quase toda a fortuna dos domínios da Igre ja passou en bloc para as mãos da monarquia Por meio de tais confis cos Gustavo quintuplicou as terras da coroa além de anexar dois ter ços das dízimas anteriormente cobradas pelos bispos à população e além de se apropriar das maciças baixelas de prata provenientes das igrejas e dos mosteiros Com a exploração de minas de prata o incen tivo às exportações de lingotes e o controle minucioso dos rendimentos e receitas do reino Gustavo tinha acumulado um vasto excedente à época de sua morte sem um aumento correspondente dos impostos Ao mesmo tempo ampliou o aparelho administrativo real para a ges tão do país triplicando o número de bailios e ensaiando uma buro cracia central projetada para ele por conselheiros alemães A autono mia regional dos turbulentos distritos mineiros do Dalarna foi supri mida e Estocolmo permanentemente guarnecida de tropas A nobreza cuja rivalidade econômica com o clero servira para associála à expro priação das terras eclesiásticas passou a ser cada vez menos investida com o feudo direto de cavaleiro o antigo lãn pá tjãnst sendolhe em seu lugar concedido o novoòWawmg uma espécie de benefício semi ministerial de alcance muito mais limitado importando na alocação de rendimentos reais específicos em troca de tarefas administrativas par ticulares Tal medida centralizadora não descontentou a aristocracia que demonstrou uma solidariedade básica com o regime durante todo o reinado de Gustavo que se intensificou com a sua vitória sobre as re lações camponesas em Dalarna 1527 e Smalãnd 154344 e a sujei ção militar de Lübeck O tradicional rãd da alta nobreza foi preservado como órgão de consulta em questões de importância política mas ex cluído da administração de rotina A inovaçãochave da máquina polí tica Vasa foi antes o recurso constante na primeira fase do reinado de Gustavo à Assembléia dos Estados o Riksdag que foi convocado re petidas vezes a fim de legitimar os atos da nova dinastia emprestando às decisões reais a chancela da aprovação do povo Neste aspecto a mais importante realização de Gustavo foi assegurar em 1544 a acei tação pelos Estados em Vãsterâs do princípio de que a monarquia 1 Michael Roberts The Earfy Vasas Cambridge 1968 pp 1789 O leitor de língua inglesa tem a sorte de ter a seu dispor a ampla e notável oewvre deste historiador da Suécia do início da Idade Moderna LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 175 deixaria de ser eletiva e passaria a ser hereditária em benefício dos Vasa2 Os filhos de Gustavo I Érico e João herdaram assim um Estado vigoroso embora em certos aspectos primitivo que mantivera relações cordiais com a aristocracia impondo poucos encargos e respeitando os privilégios Érico XIV que subiu ao trono em 1560 reformou e am pliou o exército intensificando os deveres de serviço militar da no breza Criou também um novo sistema de títulos conferindo aos mag natas as dignidades de conde e barão e investindoos com feudos clás sicos hereditários No plano externo o seu reinado inaugurou o expan sionismo sueco no Báltico setentrional Frente ao colapso iminente da Ordem dos Cavaleiros Livonianos face ao ataque russo e à intervenção da Polônia para assegurar a sua sucessão a Suécia ocupou Reval do outro lado do golfo da Finlândia Seguiuse um conflito confuso e intri cado entre as potências bálticas pelo controle da Livônia Em 1568 Érico XIV alvo de violentas suspeitas por parte dos grandes nobres foi deposto como desequilibrado mental O seu irmão João III seu suces sor prosseguiu as guerras da Livônia com maior êxito voltandose para uma aliança com a Polônia contra a Rússia No fim da década de 1570 as forças polacas varreram o exército de Ivã IV até Pskov ao passo que as tropas suecas conquistavam a Estônia estavam lançados os alicerces do império ultramarino dos suecos Enquanto isso no plano interno verificouse um rápido incremento dos benefícios forlâ ning cada vez mais confiados pelo monarca aos novos funcionários e bailios até que por volta da década de 1590 apenas um terço deles estava nas mãos da nobreza3 Quando findou o século os atritos entre a monarquia e a aristocracia desenvolviamse visivelmente apesar dos êxitos Vasa nas guerras da Livônia A ascensão do filho católico de João III Segismundo em 1592 logo precipitou um período de agudos con flitos religiosos e políticos que ameaçaram toda a estabilidade do Es tado monárquico Segismundo um adepto fervoroso da ContraRe forma fora eleito rei da Polônia cinco anos antes em parte devido aos 2 A pétrea personalidade de Gustavo Vasa recorda inevitavelmente a da suces são de construtores de Estados os governantes da Europa ocidental que vieram antes dele Henrique VII Luís XI e Fernando II Da mesma forma o seu extravagante tilho mais velho Érico XIV guarda certa semelhança com a brilhante instabilidade de Henri que VIII e Francisco I O estudo sóbrio de tais agrupamentos e desvios generacionais pode às vezes revelarse de maior interesse que as biografias convencionais 3 Roberts The Earfy Vasas p 306 176 PERRY ANDERSON laços matrimoniais da dinastia Vasa com a agora extinta linhagem Ja gelônia Forçado pela nobreza sueca como condição de sua aceitação a respeitar o luteranismo na Suécia e a absterse de toda a unificação administrativa dos seus dois reinos residiu na Polônia como rei absen teísta por dez anos Na Suécia o seu tio Carlos duque de Sõderman land e o râd da alta nobreza governavam o país Segismundo foi man tido efetivamente afastado do seu reino do norte por uma aliança entre o duque e a nobreza O poder pessoal cada vez mais arbitrário que Carlos concentrou acabaria por gerar o antagonismo da alta aristocra cia que se juntou a Segismundo quando este regressou em 1604 a fim de reclamar o seu patrimônio usurpado pelo tio O confronto armado que se seguiu terminou com a vitória ducal com amplo respaldo da propaganda antipapal contra Segismundo apresentado como uma ameaça de recatolicização da Suécia A tomada do poder pelo duque que então tornouse Carlos IX foi assinalada pelo massacre judicial da alta nobreza constitucionalista do râd que alinhara com o contendor vencido no conflito dinástico Caracteristicamente a repressão e neutralização do râd por Carlos IX foram acompanhadas por uma onda de convocações do Riksdag que provouse mais uma vez um instrumento dócil e manipulável do abso lutismo sueco A nobreza foi mantida à distância da administração central e as suas obrigações militares foram aumentadas Para apazi guar o desprezo e o descontentamento da aristocracia com a sua usur pação o rei distribuiu as terras confiscadas aos magnatas da oposição que tinham fugido para o exílio com Segismundo e concedeu uma maior parcela de fõrlaningar à nobreza4 Mas à data de sua morte em 1611 o grau de suspeita e tensão existente entre a dinastia e os aristocratas acumulado durante anos revelouse com agudeza Á no breza aproveitouse imediatamente da oportunidade de ver a coroa em minoria para impor em 1612 uma Carta que condenava formalmente as ilegalidades do reinado anterior restaurava o poder do râd em ma téria de impostos e sobre os assuntos de Estado garantia o primado da nobreza nas indicações para a burocracia e dava segurança de posse e salário fixo aos funcionários do Estado O reinado de Gustavo Adolfo foi portanto precedido por um corpo constitucional cuidadosamente concebido para evitar a repetição das tiranias de seu pai Na realidade Gustavo Adolfo não mostrou inclinação de reverter a uma rígida auto 4 Roberts The Early Vasas p 440 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 177 cracia real O seu governo ao contrário presenciou a reconciliação e a integração da monarquia e da nobreza o aparelho de Estado deixou de ser um patrimônio dinástico rudimentar à medida que a aristocracia se alistava coletivamente na moderna e poderosa administração e no exército então construídos na Suécia O chanceler de Gustavo Adolfo o grande nobre Oxenstierna reorganizou todo o sistema executivo em cinco colégios centrais ocupados por burocratas originários da nobreza O râd tornouse um Conselho Privado regular para deliberação sobre as políticas públicas A composição e os procedimentos legislativos do Riksdag foram codificados em 1617 uma Ordenação dividiu juridica mente a aristocracia em três graus e concedeulhe uma Câmara espe cial ou Riddarhus em 1626 que se tornou a partir daí o ponto de convergência fundamental das assembléias dos Estados O país foi di vidido em 24 unidades provinciais designadas oficialmente lãn em cada uma das quais era instalado um landhòvding ou governador esco lhido entre a nobreza5 Incentivouse um moderno sistema educacio nal ao passo que a ideologia oficial exaltava a ascendência étnica da classe dominante sueca cujos ancestrais góticos tinham no passado dominado a Europa Enquanto isso as despesas com a frota cresciam seis vezes no decorrer do reinado de Gustavo Adolfo e os efetivos do exército quadruplicavam6 Essa súbita racionalização e refortaleci mento do absolutismo sueco no plano interno propiciou a plataforma para a expansão militar de Gustavo Adolfo externamente Desembaraçandose da malsucedida guerra com a Dinamarca que lhe fora legada por Carlos IX com a assinatura de uma custosa paz no início de seu reinado o rei concentrou as suas primeiras iniciativas no teatro do Báltico setentrional onde a Rússia sofria ainda as con vulsões da Época das Dificuldades e onde o seu irmão Carlos Filipe quase foi instalado como czar com apoio boiardo e cossaco Logo se consumaram conquistas de territórios às custas da Rússia Pelo Tra tado de Stolbova em 1617 a Suécia adquiriu a íngria e a Carélia o que lhe deu o controle total do golfo da Finlândia Quatro anos depois Gustavo Adolfo tomou à Polônia o porto de Riga Então em 162526 os exércitos suecos fizeram recuar as forças polonesas em toda a Livô nia conquistando a região A operação seguinte foi um ataque anfíbio 5 Michael Roberts Gusíavus Adolphus A History of Sweden 10111632 I Londres 1953 pp 26578 2937 31924 6 Pierre Jeannin LEurope du NordOuest et du Nord aux XVHe et XVIIIt Siècles Paris 1969 p 130 178 PERRY ANDERSON à própria Polônia onde ainda reinava Segismundo Foram tomadas as vias de aproximação estratégica à Prússia oriental com a anexação de Memel Pilau e Elbing e lançados pesados impostos sobre o comércio de cereais do sul do Báltico daí em diante O encerramento da cam panha polonesa em 1629 seria prontamente seguido pelo desembar que sueco na Pomerânia em 1630 que deu início à oportuna inter venção de Gustavo Adolfo na luta pela Alemanha durante a Guerra dos Trinta Anos Nessa altura o total dos efetivos do aparelho militar sueco compreendia cerca de 72 mil homens em armas dos quais mais da metade era constituída de soldados do país os planos de guerra para 1630 visavam o emprego de 46 mil homens na expedição à Ale manha mas na prática esta meta não foi atingida7 No entanto em dois breves anos Gustavo Adolfo levou seus exércitos vitoriosamente em um grande arco que ia de Brandenburgo à Baviera através da Renâ nia estilhaçando a posição Habsburgo no Império À morte do rei em 1632 no campo triunfal da Lützen a Suécia era o árbitro da Alemanha e a potência dominante em todo o norte da Europa O que tornou possível esta ascensão meteórica do absolutismo sueco Para compreender a sua natureza e dinâmica é necessário voltar os olhos às características distintivas da Escandinávia medieval ante riormente delineadas A peculiaridade central da formação social sueca nas vésperas da época Vasa era o caráter nitidamente incompleto da feudalização das relações de produção na economia rural Um pequeno campesinato de tipo préfeudal ainda ocupava metade das terras culti vadas no início do século XVI O que não quer dizer contudo que a Suécia nunca tenha conhecido o feudalismo como muitas vezes se afirma8 Com efeito a outra metade da agricultura sueca estava inse rida no complexo monárquicoclericalnobiliário onde se extraía um excedente de tipo feudal de um campesinato dependente embora neste setor os arrendatários nunca tenham sido juridicamente reduzidos à servidão os tributos e serviços eram extraídos por coação extraeconô mica como era costume em todo o Ocidente europeu nesta época Dessa maneira o setor predominante na economia sueca durante esse 7 Roberts Gustavus Adolphus A History of Sweden 16112632 II Londres 1958 pp 415 444 Na realidade o rei iniciou as suas campanhas alemãs com 26 mil homens8 Ver por exemplo E Hecfcsher An Economic History ofSweden Cambridge EUA 1954 pp 368 M Roberts Introduction a Ingvar Andersson A Hisíory of Sweden Londres 1956 p 5 o qual é refutado no próprio livro prefaciado compare as pp 434 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 179 período foi sempre sem dúvida a agricultura feudal propriamente dita uma vez que se havia uma igualdade aproximada entre a super fície cultivada dos dois setores podese afirmar com segurança que a produtividade e a produção eram de modo geral mais elevadas nos do mínios da monarquia e da nobreza regra geral na Europa ocidental Apesar disso o extremo atraso do conjunto da economia era à pri meira vista a sua característica mais surpreendente em qualquer pers pectiva comparativa Menos da metade do solo era adequado para o cultivo de arado A cevada era de longe a principal cultura cerealífera A consolidação dos domínios era muito limitada até meados do sé culo XVII apenas 8 por centç das terras eram unidades senhoriais9 Além disso a excepcional extensão da pequena produção nas aldeias leva a crer que o índice de comercialização na agricultura era provavel mente o mais reduzido do continente Em vastas áreas do país predo minava uma economia natural em tal proporção que até a década de 1570 apenas 6 por cento dos rendimentos da coroa impostos e rendas eram pagos em dinheiro enquanto a maior parte dos funcionários do Estado eram também remunerados em espécie10 Em tais condi ções em que a temperatura do intercâmbio monetário era subártica não havia possibilidade de uma economia urbana florescente As cida des suecas eram poucas e frágeis a maior parte delas de fundação e colonização alemã o comércio exterior era monopólio virtual dos mer cadores hanseáticos Prima fade esta configuração parece particular mente pouco propícia à súbita e bemsucedida emergência de um ab solutismo moderno Qual a explicação para o êxito histórico do Estado Vasa A resposta a esta questão levanos ao ponto central do caráter específico do absolutismo sueco A centralização do poder real nos sé culos XVI e XVII não constituiu uma resposta à crise da servidão e à desintegração de um sistema senhorial pela troca de mercadorias e a diferenciação social nas aldeias Tampouco foi o reflexo indireto do crescimento do capital mercantil local e de uma economia urbana O seu impulso inicial veio de fora foi a ameaça de uma rigorosa domi nação dinamarquesa que mobilizou a nobreza sueca sob o comando de Gustavo I e foi o capital de Lübeck que financiou o seu esforço de guerra contra Cristiano II Mas a conjuntura da década de 1520 não configurou a matriz fundamental do absolutismo sueco esta deve ser 9 Roberts Gustavus Adolphus II p 152 10 Ibid p 44 180 PERRY ANDERSON buscada na relação triangular das forças de classe dentro do país Para nossos propósitos o seu padrão social básico e determinante pode ser resumido numa fórmula breve O panorama característico do Ocidente no início da época moderna era o de um absolutismo aristocrático edi ficado sobre a base social de um campesinato nãoservil e cidades em ascensão o panorama típico do Leste era o de um absolutismo aristo crático edificado sobre a base de um campesinato servil e cidades sub jugadas O absolutismo sueco ao contrário foi construído sobre uma base peculiar porque pelas razões históricas esboçadas atrás combinava camponeses livres e cidades insignificantes em outras pa lavras um conjunto de duas variáveis contraditórias que se situava entre a linha divisória básica do continente Nas sociedades predomi nantemente rurais da época o primeiro termo do panorama particular da Suécia um campesinato livre de dominação pessoal era domi nante e assegurava a convergência fundamental da história sueca com a da Europa ocidental e oriental com os seus pontos de partida tão diferentes Mas o seu segundo termo a insignificância das cida des por sua vez corolário de um amplo setor camponês de subsistência que nunca fora sangrado por mecanismos feudais ortodoxos de extra ção de excedentes foi suficiente para conferir à nascente estrutura estatal da monarquia sueca o seu matiz característico Com efeito a nobreza embora em certo sentido contasse com um menor predomínio na área rural se comparada às suas parceiras das outras regiões da Europa ocidental era também objetivamente muito menos constran gida pela presença de uma burguesia urbana Havia poucas chances de uma inversão total da posição do campesinato pois o equilíbrio das forças sociais na economia rural inclinavase acentuadamente contra a possibilidade de uma imposição violenta da servidão As profundas raí zes e a ampla extensão da propriedade camponesa independente tor navam tal hipótese impraticável uma vez que a própria magnitude deste setor reduzira a um nível excepcionalmente baixo o contingente da nobreza situado fora dele É preciso lembrar sempre que a aristo cracia sueca durante todo o primeiro século de domínio dos Vasa era uma classe muito pequena com relação ao padrão europeu As sim em 1611 contava umas quatrocentas ou quinhentas famílias numa população total de l milhão e 300 mil pessoas No entanto pelo menos metade talvez dois terços dela compunhase de provin cianos modestos e rústicos ou knapar cujos rendimentos pouco di feriam dos de um camponês próspero Quando Gustavo Adolfo es tabeleceu um Riddarhusordning para fixar juridicamente os limites deste estado apenas 126 famílias passaram nos testes de ingresso nele LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 181 em 1626 Destas umas 25 ou 30 famílias constituíam o círculo fe chado de magnatas que fornecia tradicionalmente os conselheiros do ràd A parte mais importante da aristocracia sueca daquela época era assim estruturalmente inadequada para um assalto frontal ao campesinato Ao mesmo tempo não havia qualquer ameaça dos bur gos ao seu monopólio do poder político A ordem social sueca era portanto invulgarmente estável até que pressões externas viessem a abaterse sobre ela Vimos que foram precisamente tais pressões que precipitaram o advento inicial do domínio Vasa Neste ponto uma outra peculiaridade da situação sueca tornase importante Durante a Idade Média nunca existira no seio da aristocracia uma hierarquia feudal bem articulada com amplo parcelamento da soberania ou uma cadeia de subenfeuda mento O próprio sistema de feudos era tardio e imperfeito Por isso nunca se desenvolveram potentados territoriais ou separatismos feudais do tipo dos que existiam no continente E justamente porque o sistema de vassalagem era recente e relativamente superficial nunca produziu divisões regionais profundas entre a reduzida nobreza da Suécia Quan do pela primeira vez deuse o surgimento de um poder provincial fis síparo este foi uma criação subseqüente da própria monarquia unitá ria e não um obstáculo prévio a ela os apanágios ducais da Finlândia Õstergõtland e Sõdermanland que foram legados por Gustavo Vasa a seus filhos mais novos e desapareceram no século seguinte12 Como resultado uma vez que a degradação do campesinato era impraticável e não era difícil o controle das cidades a urgência interna de um abso lutismo centralizado não existia na Suécia e tampouco eram grandes os obstáculos à sua implantação por parte da classe dominante fundiária Uma nobreza pequena e compacta podia adaptarse com relativa faci lidade a uma monarquia centralizada O caráter pouco agudo das pres sões sociais da situação de classe básica subjacente ao absolutismo sue co que determinou a sua forma e evolução era visível no peculiar pa pel nele desempenhado pelo sistema de estados Com efeito por um 11 Ibid p 57 A estimativa acima inclui a Finlândia a Suécia tinha nesta época uma população total de uns 900 mil habitantes 12 A divisão do país com a criação desses perigosos apanágios decidida por Gustavo Vasa em seu leito de morte denota após toda uma vida de centralização mo nárquica uma característica tipicamente feudal de muitos dos fundadores do absolu tismo europeu Pode ser comparada às disposições testamentárias ainda mais drásticas para o desmembramento dos domínios Hohenzollerns deixadas pelo próprio Grande Eleitor supremo arquiteto do Estado prussiano Para aqueles governantes um patri mônio dinástico era sempre potencialmente passível de divisão 182 PERRY ANDERSON lado o Riksdag era no aspecto político excepcional com a inclusão de um estado camponês distinto em seu sistema quadricurial não ha via nada semelhante em nenhum outro país importante da Europa Por outro lado o Riksdag em geral e principalmente os seus delegados camponeses constituíram um corpo político curiosamente passivo para a época destituído de iniciativa legislativa e com uma complacência quase inabalável perante as petições reais Desse modo o governo Vasa pôde recorrer com tal freqüência ao Riksdag que sem paradoxo foi possível descrevêlo como o epítome do absolutismo parlamentar praticamente todos os incrementos relevantes do poder real desde a apropriação das terras da Igreja por Gustavo I em 1527 até a procla mação do direito divino por Carlos IX em 1680 foram solenizados por uma assembléia leal A resistência aristocrática à monarquia centrou se assim quase sempre no rad descendente direto de uma cúria regis medieval e não no Riksdag onde o soberano reinante podia habitualmente manipular contra ela os estados nãonobres em caso de conflito13 O Riksdag à primeira vista uma instituição audaciosa para a época era na realidade um órgão extraordinariamente inócuo A monarquia nunca teve qualquer dificuldade em usálo para os seus pro pósitos políticos Uni outro reflexo complementar da mesma situação social básica subjacente à docilidade dos estados encontravase no exér cito Graças precisamente à existência de um campesinato indepen dente o Estado sueco podia manter um exército de recrutas o único em toda a Europa renascentista O decreto de Gustavo Vasa que criou em 1544 o sistema utskrívning de alistamento rural nunca trouxe o risco de armar umjacquerie pois os homens assim recrutados nunca tinham sido servos a sua condição jurídica e material era compatível com a lealdade no campo de batalha Entretanto a questão permanece como o absolutismo sueco ad quiriu não apenas o seu equipamento políticoideológico mas os recur sos econômicos e militares necessários à sua exibição européia com uma população doméstica que não ultrapassava os 900 mil habitantes no início do século XVII Neste aspecto não se pode fugir à regra geral de que um absolutismo viável pressupõe um nível substancial de mone tarização Uma economia rural natural parecia impedilo Na Suécia porém existia um enclave crucial de produção de mercadorias cujos 13 A tradição e o papel do rad so examinados no ensaio de Roberts On Aristocratic Constitucionalism in Swedish History 15201720 Essays in Swedish His tory pp 145 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 183 lucros desproporcionados compensaram a comercialização abaixo da média da agricultura e proporcionaram as fortunas do Estado Vasa em sua fase de expansão externa Tratavase da riqueza mineral dos depó sitos de ferro e cobre de Bergslagen A extração de minérios ocupava em todos os países uma posição especial nas economias de transição do início da Europa moderna não apenas porque durante muito tempo representou a maior concentração de trabalhadores numa única forma de empresa mas porque sempre foi o esteio direto da economia mone tária ao suprir os metais preciosos sem contudo necessitar de um ín dice avançado de processo manufatureiro ou de demanda de mercado Além disso a tradição de prerrogativa real sobre a exploração do sub solo na Europa feudal significava que tal setor era sempre de um modo ou de outro um pertence dos príncipes O cobre e o minério de ferro suecos podem pois ser comparados à prata e ao ouro da Espanha quanto ao seu impacto sobre o absolutismo local Ambos permitiram a combinação de um Estado poderoso e agressivo com uma formação social que não dispunha nem de uma grande riqueza agrária nem de um relevante dinamismo mercantil a Suécia evidentemente sentia mais falta deles que a Espanha Com efeito o apogeu do surto do cobre na Suécia esteve diretamente relacionado ao colapso da moeda de prata em Castela Foi a emissão do novo vellôn de cobre por Lerma na desva lorização de 1599 que criou uma elevada demanda internacional para a produção de Kopparberg e Falun Gustavo Adolfo lançou pesados tributos régios sobre as minas de cobre organizou uma companhia real de exportação para monopolizar os fornecimentos e fixou níveis de preço ao mesmo tempo que conseguiu crédito considerável junto à Ho landa para financiar suas guerras com a garantia de sua riqueza mi neral Embora o vellôn tenha sido retirado de circulação em 1626 a Suécia continuou a deter o virtual monopólio do cobre em toda a Eu ropa Enquanto isso a indústria do ferro progredia rapidamente au mentando em cinco vezes a sua produção por volta do final do século XVII quando alcançou metade das exportaçõesH Tanto o cobre como o minério de ferro não eram ademais somente fontes diretas de receita líquida para o Estado absolutista constituíam também as matérias primas indispensáveis para a sua indústria bélica O canhão de bronze fundido era a arma decisiva da artilharia da época ao passo que todos os outros tipos de armamento exigiam ferro de primeira qualidade Com a chegada do legendário empreendedor valão Luís De Geer na 14 Stewart Oakley TheStory of Sweden Londres 1966 p 125 184 PERRY ANDERSON década de 1620 a Suécia em breve passaria a contar com um dos maio res complexos de produção de armamentos da Europa Assim as mi nas propiciaram oportunamente ao absolutismo sueco tanto a infra estrutura financeira como a militar necessária ao seu avanço no Bál tico Os tributos da Prússia o botim alemão e os subsídios da França completaram o seu orçamento militar durante toda a duração da Guer ra dos Trinta Anos e tornaram possível a contratação de grandes quan tidades de mercenários que chegaram mesmo a suplantar as próprias tropas expedicionárias suecas15 O império assim conquistado revelouse razoavelmente lucrativo ao contrário das possessões espanholas na Europa As províncias do Báltico em particular com os seus carregamentos de cereais para a Suécia sempre produziram uma receita fiscal considerável que dei xava um amplo excedente líquido uma vez deduzidas as despesas lo cais A sua participação nos rendimentos totais do reino representavam bem mais de um terço no orçamento de 1699 Além disso a nobreza sueca adquiriu domínios particularmente extensos com a conquista da Livônia onde a agricultura aproximavase muito mais de um padrão senhorial do que ocorria no interior da Suécia Os ramos ultramarinos da aristocracia desempenharam por sua vez um importante papel no preenchimento dos postos na dispendiosa máquina militar da expansão imperial sueca no início do século XVIII um em cada três oficiais de Carlos XII em suas campanhas da Polônia e da Rússia era oriundo das províncias bálticas Na realidade o absolutismo sueco funcionou com mais suavidade durante as fases de expansão externa agressiva ao longo dos reinados dos generalíssimos Gustavo Adolfo Carlos X e nos últimos anos do governo de Carlos XII a harmonia entre monar quia e nobreza foi habitualmente maior Mas os êxitos externos do absolutismo sueco nunca resolveram inteiramente as suas limitações internas Padecia de uma su b determinação fundamental devido à con figuração de classes relativamente inerte que existia na própria Suécia Dessa maneira ele permaneceu sempre como uma forma de governo facultativa para a própria classe nobiliária Em condições sociais 15 Gustavo Adolfo iniciou sua campanha na Alemanha com um exército em que metade dos efetivos tinha sido recrutada na Suécia À época de Breitenfeld estes haviam caído para um quarto À época de Lützen os recrutas suecos eram menos de um décimo 13 mil num total de 140 mil Roberts Gusíavus Adolphus II pp 2067 Assim o alistamento interno de modo algum bastava para eximir o absolutismo sueco das leis gerais ao militarismo europeu da época 16 Jeannin LEuropeduNordOuestetduNord p 330 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 185 atônicas o absolutismo tendia a acusar a ausência de pressão de uma necessidade vital de classe Daí a curiosa trajetória pendular do abso lutismo sueco distinta de qualquer outra na Europa Em vez de uma progressão através de contradições inicialmente graves até uma estabi lização e uma integração final e tranqüila da nobreza o que como vimos era a evolução normal nos outros países na Suécia a monar quia absoluta sofreu reveses periódicos todas as vezes em que teve lugar uma minoridade monárquica Não obstante recuperou com a mesma freqüência o terreno perdido às Cartas aristocráticas de 1611 1632 e 1720 que limitavam o poder real seguiuse o recrudescimento do po der absoluto nas décadas de 1620 e 1680 e nos anos 17728917 O mais surpreendente nessas oscilações é a relativa facilidade com que a aris tocracia conseguia adaptarse a uma ou a outra forma de Estado monárquica ou representativa Ao longo de seus três séculos de existência o absolutismo sueco sofreu várias recaídas institucionais mas nunca enfrentou uma verdadeira rebelião política da nobreza como as da Espanha França e Inglaterra Justamente porque no plano interno este era em certa medida um Estado facultativo para a classe dominante a aristocracia podia avançar ou recuar frente a ele sem sofrer muito comoção ou malestar A história da Suécia desde a morte de Gustavo Adolfo em 1632 até o putsch de Gustavo III em 1789 é em grande parte a desses sucessivos ajustamentos Naturalmente as divisões e conflitos no interior da própria no breza constituíam um dos mecanismos centrais de regulação dessas transformações periódicas Assim o Protocolo de Governo imposto por Oxenstierna sobre Lützen oficializou o domínio dos magnatas no rd preenchido agora com seus próprios parentes durante a regência de 163240 O chanceler em breve se defrontou com uma baixa estratégica na Alemanha a vitória imperial em Nordlingen em 1634 foí seguida pela deserção da maior parte dos príncipes protestantes em 1635 en quanto os lucrativos tributos prussianos de importância crítica para os esforços de guerra suecos prescreviam por tratado As receitas fiscais suecas cobriam apenas a manutenção da frota do Báltico tri plicada para noventa navios por Gustavo Adolfo e da defesa interna A partir daí os subsídios franceses tornaramse indispensáveis para que Estocolmo prosseguisse a luta em 1641 alcançaram um terço do 17 Roberts assinala que o constitucionalismo aristocrático nunca conseguiu uma vitória sobre um rei na maioridade era a relativa freqüência de herdeiros menores que lhe proporcionava oportunidades periódicas de reafirmação Essays in Swedish fíis tory p 33 186 PERRY ANDERSON rendimento doméstico do Estado18 Às campanhas na Alemanha du rante a metade final da Guerra dos Trinta Anos travadas com exér citos muito menores que as enormes hostes mobilizadas em Breitenfeld ou Lützen foram financiadas por empréstimos e subvenções estrangei ras e por somas extorquidas impiedosamente pelos comandantes em ação no estrangeiro Em 1643 Oxenstierna liberou Torstensson o melhor general sueco para uma campanha secundária contra a Di namarca O resultado desse ataque foi satisfatório conquistas provin ciais ao longo da fronteira com a Noruega e bases insulares no Báltico que puseram termo ao controle dinamarquês sobre as duas margens do Sund No conflito mais amplo as tropas suecas tinham já atingido Praga quando a paz foi restaurada em 1648 O Tratado de Vestfália consagrou a estatura internacional da Suécia como parceira da França na vitória final da longa disputa na Alemanha O Estado Vasa adquiriu a Pomerânia ocidental e Bremen na própria pátria alemã além do con trole da foz do Elba do Oder e do Veser os três maiores rios do norte da Alemanha Enquanto isso no entanto a ascensão de Cristina em 1644 levara formalmente à reafirmação do poder monárquico mas este foi usado pela insensata rainha para cumular de títulos e terras o estrato superior da aristocracia e o enxame de aventureiros burocráticomilitares que tinham sido chamados ao serviço da Suécia durante a Guerra dos Trin ta Anos Cristina multiplicou por seis o número de condes e de barões no estrato mais alto do Riddarhus e duplicou o tamanho dos dois estra tos inferiores Pela primeira vez a nobreza sueca adquiriu força numé rica apreciável recrutada principalmente no exterior mais de metade da aristocracia viria a ser de origem estrangeira por volta de 170019 Além disso por sugestão de Oxenstierna que advogava a transforma ção das tradicionais receitas estatais em espécie em fluxos monetários mais seguros a monarquia alienou em enorme escala as terras e os impostos reais a uma elite de funcionários e dependentes entre 1611 e 1652 a área total das propriedades fundiárias da nobreza duplicou ao passo que no reinado de Cristina as receitas do Estado despencaram na mesma proporção20 A transferência para os proprietários privados 18 Roberts Sweden and the Baltic 16111654 The New Cambridge Modem History IV p 401 19 R M Hatton CharlesXIIof Sweden Londres 1968 p 38 20 As receitas totais caíram em 40 por cento na década entre 1644 e 1653 Para uma descrição de todo o episódio ver o ensaio de Roberts Queen Christina and the General Crisisof the SeventeenthCentury Essays in Swedish History pp 11137 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 187 das receitas fiscais provenientes dos camponeses livres ameaçava redu zir estes últimos a uma dependência total diante dos primeiros o que provocou vigorosa reação do campesinato Mas foi a hostilidade da pequena nobreza que não se beneficiara da prodigalidade gratuita da rainha que assegurou a brevidade desta revolução nos padrões de pro priedade da Suécia Em 1654 Cristina abdicou a fim de abraçar o catolicismo depois de ter preparado a sucessão de seu primo O novo rei Carlos X re lançou imediatamente o expansionismo sueco com uma selvagem agres são à Polônia em 1655 Cortando o avanço russo a partir do leste e dispersando os exércitos poloneses as forças expedicionárias suecas to maram Potsdam Varsóvia e Cracóvia numa rápida sucessão a Prús sia oriental foi oficialmente declarada um feudo sueco e a Lituânia anexada Os sucessivos ataques da Holanda pelo mar e a recuperação polonesa afrouxaram o controle dessa ocupação espetacular mas foi o ataque direto da Dinamarca à Suécia na retaguarda do rei que anulou a conquista da Polônia Fazendo recuar rapidamente as suas tropas através da Pomerânia Carlos X marchou sobre Copenhagen e afastou a Dinamarca da guerra A vitória no Sund possibilitou a anexação da Scania A abertura de novas hostilidades para estabelecer o controle sueco sobre a passagem para o Báltico foi frustrada pela intervenção holandesa Em 1660 a morte de Carlos X pôs fim à aventura na Polô nia e ao conflito na Dinamarca Seguiuse uma outra regência da alta nobreza durante a minoridade de 166072 dominada pelo chanceler De La Gardie Os planos monárquicos de recuperação dasreceitas que Carlos X imaginara por breve tempo antes de suas precipitadas campa nhas ultramarinas foram abandonados Um inseguro governo da alta nobreza continuou a vender as propriedades da monarquia enquanto buscava uma política externa despretensiosa Significativamente foi nesta década que foram impostos pela primeira vez na história da Sué cia os códigos senhoriais degârdsratt que conferiam aos proprietários de terra a jurisdição privada sobre os seus próprios camponeses21 A eclosão de uma grande guerra européia com o ataque de Luís XIV à Holanda acabou por forçar este regime como aliado e cliente da Fran ça a um Letárgico conflito diversivo com o Brandenburgo em 1674 O fracasso militar na Alemanha desacreditou a camarilha de De La Gar die e pavimentou o caminho para a espetacular reascensão da monar 21 Foram de novo abolidos na década de 1670 Jeannin LEvrope du Nord Ouest et du Nord p 135 188 PERRY ANDERSON quia sob o novo soberano que atingira a sua maioridade durante as guerras Em 1680 Carlos XI serviuse do Riksdag para abolir os privi légios tradicionais do rãd e para recuperar as terras e rendimentos da dinastia que tinham sido alienadas contando com o apoio da baixa nobreza As reduções reais ocorreram em enorme escala 80 por cento de todos os domínios alienados foram recuperados pela monar quia sem compensações e a proporção de terras cultivadas nas mãos da nobreza sueca caiu para metade22 Foi proibida a criação de novas pro priedades isentas de impostos As reduções foram realizadas com minúcia particular nas possessões ultramarinas Não afetaram a conso lidação senhorial dentro das propriedades da aristocracia o seu resul tado final foi a restauração do status quo ante na distribuição da pro priedade agrária que vigorava no início do século23 Os rendimentos do Estado renovados por tal programa às custas do estrato mais alto da nobreza foram ainda mais aumentados com a elevação dos impostos cobrados ao campesinato O Riksdag assentiu submissamente a este crescimento sem precedentes do poder pessoal de Carlos XI que acom panhou a reduktion abdicando a virtualmente todos os seus direitos de controle ou limitação de seu governo Carlos XI aproveitou sua posição para reformar o exército através da implantação de um campesinato militar em terras especialmente distribuídas segundo o sistema de lo teamento chamado indelningsverket o que aliviou o tesouro dos paga 22 Quanto às reduções ver J Rosen Scandinavia and the Baltic The New Cambridge Modem History ofEurope V p 534 Em 1655 os nobres possuíam 23 das terras do país Por volta de 1700 a proporção era de 33 por cento para a nobreza 36 por cento para a coroa e 31 por cento para os camponeses que pagavam impostos As redu ções fizeram crescer as receitas da monarquia em 2 milhões de daleres por ano no final do reinado deste acréscimo 23 derivavam de reapropriações realizadas nas províncias ultramarinas 23 As dramáticas peripécias que caracterizaram as alienações e devoluções do patrimônio real sueco em meados do século XVII e que num breve espaço de tempo embaralharam todo o padrão de propriedade do país têm sido interpretadas como indício de uma profunda luta social pela terra na qual o campesinato sueco apenas se salvou de uma servidão livoniana graças às reduções Apesar de muito difundido tal ponto de vista é inaceitável Com efeito as origens deste interlúdio estão manifestamente relacio nadas aos caprichos pessoais de Cristina As suas temerárias doações foram feitas em tempo de paz e não correspondiam a qualquer necessidade objetiva da monarquia tam pouco resultavam de exigências ou pressões coletivas irrecusáveis provenientes da no breza Conquistadas sem esiorço pela alta aristocracia foram abandonadas sem resis tência Nunca houve um confronto pela terra com gravidade equivalente aos interesses formalmente envolvidos Podese afirmar que seria necessário mais que a liberalidade irresponsável de uma rainha para quebrar as liberdades do campesinato sueco LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 189 mentos em dinheiro às tropas estacionadas no país O aparelho militar permanente foi ampliado para uma força de 63 mil homens na década de 1680 dos quais mais de um terço eram unidades profissionais esta cionadas no exterior A frota foi cuidadosamente reconstruída por ra zões tanto estratégicas como comerciais A burocracia à qual a baixa nobreza tinha agora livre acesso foi adestrada e dinamizada A Scania e a Livônia foram submetidas a estreita centralização e suecização24 O poder real estava consumado na última década do reinado em 1693 o Riksdag acabou por aprovar uma servil resolução que declarava o di reito divino do rei à soberania absoluta sobre o seu reino como repre sentante ungido do criador Carlos XI que como Frederico Guilherme I da Prússia foi no exterior um monarca comedido e cauteloso não tolerou oposição a sua vontade dentro do país A melhor expressão de sua obra foi o espantoso reinado de seu filho Carlos XII que ultrapassou o pai em um poder autocrático ideo logicamente proclamado desde o dia em que subiu ao trono em 1697 Ultimo dos reis guerreiros da dinastia Vasa foi capaz de passar dezoito anos no exterior nove dos quais cativo na Turquia sem que na sua ausência a administração civil de seu país jamais se visse ameaçada ou interrompida Ê improvável que qualquer outro governante da época tenha sido tão confiante quanto a seu patrimônio Com efeito quase todo o reinado de Carlos XII foi ocupado com a sua longa odisséia na Europa oriental durante a Grande Guerra do Norte Por volta de 1700 o sistema imperial sueco no Báltico aproximavase de seu dia decisivo Apesar da rigorosa revisão administrativa por que passara recente mente sob o governo de Carlos XI a sua base econômica e demográfica era muito limitada para sustentar sua expansão contra a hostilidade combinada de seus vizinhos e rivais Uma população doméstica de tal vez l milhão e 500 mil pessoas atingia duplicandose 3 milhões de habitantes com a população ultramarina as suas reservas humanas e financeiras permitiram no máximo a mobilização de 110 mil soldados inclusive os mercenários estrangeiros na época de Carlos XII dos quais menos da metade esteve disponível para as suas mais importantes campanhas ofensivas25 A centralização Vasa provocara ademais uma reação particularista entre a nobreza semigermânica das províncias bálticas vítima especial das recuperações monárquicas do reinado an 24 Rosen Scandinavia and the Baltic pp 5357 25 O ataque à Rússia em 1709 foi lançado com cerca de 44 mil homens Hatton Charles XííofSweden p 233 190 PERRY ANDERSON terior A experiência da Catalunha e da Escócia seria agora reeditada na Livônia Por volta de 1699 a Dinamarca a Saxônia a Polônia e a Rússia congregaramse contra a Suécia o sinal para a guerra foi uma revolta separatista na Latívia conduzida pela nobreza local que defen dia a incorporação à Polônia Carlos XII atacou primeiro a Dina marca rapidamente derrotada com o auxílio naval angloholandês a seguir a Rússia onde uma pequena força sueca aniquilou o exército de Pedro I em Narva veio depois a Polônia onde Augusto II foi expulso do país após pesadas batalhas sendo instalado em seu lugar um prín cipe nomeado pela Suécia e por fim a Saxônia impiedosamente ocu pada e saqueada Após esta evolução militar em torno do Báltico o exército sueco penetrou profundamente na Ucrânia para se juntar aos cossacos de Zaporozhe e marchar sobre Moscou26 Entretanto o abso lutismo russo era agora algo mais que um simples exercício para as colunas de Carlos XII em 1709 em Poltava e Perevolotchna o império sueco foi destruído no ponto historicamente mais remoto de sua pene tração militar no Leste Uma década depois terminava a Grande Guerra do Norte com a Suécia arruinada e despojada da Ingria Caré lia Livônia e Pomerânia ocidental além de Bremen A autocracia imperial de Carlos XII desapareceu com ele Quan do os desastres da Grande Guerra do Norte desembocaram na morte do rei em meio a uma disputada sucessão a nobreza engendrou habil mente um sistema constitucional que fez dos estados o supremo órgão político e transformou temporariamente a monarquia num simples símbolo A Era da Liberdade de 1720 a 1772 estabeleceu um cor rupto regime de parlamentarismo aristocrático dividido por conflitos faccionários entre os partidos dos Chapéus e das Boinas manipulados por sua vez pela burocracia nobiliária e insuflados por gratificações e subvenções da Inglaterra França e Rússia A nova ordem perdeu o conteúdo de alta nobreza o grosso da média e da baixa nobreza que dominara o serviço público e o exército ganhou cada vez mais uma estatura própria Aboliuse a divisão do estado nobre em três ordens 26 É notório o erro crasso implícito nesta aventura Devese notar que o talento militar do absolutismo sueco esteve quase sempre associado à miopia política Seus go vernantes de modo geral empenharamse com consumada perícia em objetivos errôneos Gustavo Adolfo vagou em vão pela Alemanha quando os interesses de longo prazo da Suécia apontavam para a conquista da Dinamarca e o domínio do Sund Carlos XII investiu inutilmente sobre a Ucrânia incitado pela Inglaterra quando uma aliança com a França e o ataque à Áustria teria modificado todo o curso da Guerra da Sucessão Es panhola e salvo a Suécia de seu completo isolamento após o término da luta no Leste A dinastia jamais superou um certo provincianismo em sua visão estratégica LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUT1STA 191 No seu conjunto os privilégios sociais e econômicos da aristocracia fo ram ciosamente preservados estava proibido o acesso plebeu às terras da nobreza ou aos casamentos com nobres O Riksdag de cujo Co mitê Secreto foram excluídos os representantes camponeses tomou se o centro formal da organização política ao passo que a sua arena real passou a ser o Riddarhus21 Finalmente a crescente agitação so cial contra os privilégios da nobreza entre o baixo clero as cidades me nores e o campesinato ameaçava romper o círculo encantado de mano bras no interior do sistema Em 1760 o programa do Novo Partido da Boina embora associado a uma impopular deflação da economia ex primia a vaga crescente de descontentamento plebeu O alarme aristo crático diante da perspectiva de uma contestação vinda de baixo pro duziu então um súbito abandono final do parlamentarismo A ascensão de Gustavo III veio a ser o sinal para que mais uma vez a aristocracia se alinhasse a uma fórmula absolutista sem maiores percalços efetuouse umpittsch monárquico apoiado pelo corpo de guardas com a conivên cia da burocracia O Riksdag apaticamente deixou passar sem oposi ção uma nova Carta constitucional que de novo consagrava a autori dade da monarquia inicialmente sem retorno pleno ao absolutismo de Carlos XI ou de Carlos XII O novo monarca entretanto enveredou energicamente por um despotismo iluminado de modelo setecentista renovando a administração e reservando um poder cada vez mais arbi trário a sua pessoa Quando a nobreza resistiu a essa orientação Gus tavo III impôs ao Riksdag um Ato de União e Segurança como medida de emergência que restaurou em 1789 um absolutismo consumado A fim de atingir os seus objetivos o rei teve que prometer aos estados mais baixos o acesso ao serviço público e ao judiciário o direito de aquisição de terras da nobreza e outras reivindicações sociais de caráter igualitário Assim as horas finais do absolutismo sueco foram vividas numa anômala atmosfera de carreira aberta aos talentos e de restri ção dos privilégios da nobreza Com isso a racionalidade política da monarquia absoluta soltava as suas amarras mais importantes indício seguro de fim próximo Numa última e bizarra troca de papéis o auto crata radical tornouse o defensor europeu mais fervoroso da inter venção contrarevolucionária diante da Revolução Francesa enquanto os nobres descontentes adotavam os ideais republicanos dos Direitos do Homem Em 1792 Gustavo foi assassinado por um funcionário aristo 27 Ver Roberts Essays in Swedish History pp 2728 a interdição de compra de terras da nobreza pelos plebeus limitouse depois apenas aos camponeses ao passa que as restrições matrimoniais também foram atenuadas 192 PERRY ANDERSON crata dissidente A subdeterminação histórica do absolutismo sue co nunca foi tão visível como neste estranho clímax Um Estado fa cultativo encontrava aparentemente o seu fim numa absoluta casua lidade SEGUNDA PARTE Europa oriental O absolutismo no Leste É necessário agora que retornemos à metade oriental da Europa ou mais precisamente a essa parte poupada à invasão otomana que varreu os Bálcãs em sucessivas ondas invasoras submetendoos a uma história regional distinta da história do restante do continente Vimos já como a grande crise que abalou as economias européias nos séculos XIV e XV gerou uma violenta reação senhorial a leste do Elba A re pressão desencadeada pelos senhores de terra contra os camponeses cresceu em intensidade durante todo o século XVI O resultado político desse processo na Prússia e na Rússia foi um absolutismo no Leste contemporâneo do absolutismo do Ocidente porém de linhagem basi camente diferente O Estado absolutista do Ocidente foi o aparelho político recolocado de uma classe feudal que aceitara a comutação das obrigações Foi uma compensação pelo desaparecimento da servidão no contexto de uma economia crescentemente urbana que ele não con trolava completamente e à qual tinha de adaptarse O Estado absolu tista do Leste ao contrário foi a máquina repressiva de uma classe feudal que acabara de suprimir as tradicionais liberdades comunais da população pobre Foi um mecanismo para a consolidação da servidão num ambiente onde não existiam cidades autônomas ou uma resis tência urbana A reação senhorial no Leste significou que um nove mundo tinha que ser implantado de cima para baixo à viva força A dose de violência injetada nas relações sociais foi proporcionalmente muito maior O Estado absolutista do Leste nunca perdeu os sinais desta experiência originária 196 PERRY ANDERSON Não obstante ao mesmo tempo a luta de classes no seio das formações sociais do Leste e o resultado dela a imposição da servi dão ao campesinato não basta para explicar completamente o surgi mento de um tipo distinto de absolutismo na região A distância entre ambos pode ser cronologicamente medida na Prússia onde a reação senhorial da nobreza já derrubara a maior parte do campesinato com a difusão do Gutsherrschaft no século XVI cem anos antes do estabele cimento do Estado absolutista no século XVII Na Polônia a pátria clássica da segunda servidão jamais surgiu um Estado absolutista embora esta fosse uma falha pela qual a classe nobre pagaria com a sua própria existência nacional Aí também entretanto o século XVI pre senciaria a dominação feudal descentralizada regida por um sistema representativo totalmente controlado pela aristocracia e onde era frágil o poder dos príncipes Na Hungria a imposição definitiva da servidão ao campesinato foi consumada após a Guerra AustroTurca na virada do século XVII enquanto a nobreza magiar resistia com êxito à impo sição de um absolutismo Habsburgo1 Na Rússia a implantação do regime servil e a edificação do absolutismo foram mais estreitamente coordenados mas mesmo aí o aparecimento do primeiro precedeu à consolidação do segundo e posteriormente nem sempre acompanhou pari passu o seu desenvolvimento Uma vez que as relações servis de produção envolvem uma fusão direta de propriedade e soberania do mínio do poder e domínio da terra não há nada em si de surpreen dente em um Estado nobiliário policêntrico como o que existiu origi nalmente na Alemanha transelbiana na Polônia ou na Hungria depois da reação senhorial no Leste Para explicar a ascensão subseqüente do absolutismo é necessário em primeiro lugar reinserir todo o processo da segunda servidão no sistema político internacional da Europa feudal na última fase Vimos que tem sido muitas vezes exagerado o impacto da econo mia ocidental mais avançada sobre o Leste nessa época como a única ou principal força responsável pela reação senhorial Na realidade em bora o comércio de cereais tenha sem dúvida intensificado a exploração servil na Alemanha oriental ou na Polônia este não a inaugurou em nenhum desses países nem desempenhou qualquer papel no desenvol vimento paralelo da Boêmia ou da Rússia Em outras palavras se é 1 Ver Zs Pach Die ungarische Agrarentwicklung im 1617 Jahrhundert pp 3841536 quanto às fases desses processos eo impacto da Guerra dos Treze Anos sobre a condição dos camponeses LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 197 incorreto atribuir importância central aos vínculos econômicos do co mércio de exportação e importação entre o Leste e o Ocidente isso se deve a que o próprio modo de produção feudal de maneira alguma superado na Europa ocidental durante os séculos XVI e XVII era incapaz de criar um sistema econômico internacional unificado apenas o mercado mundial do capitalismo industrial conseguiu realizálo ao irradiarse a partir dos países mais avançados para moldar e dominar o desenvolvimento dos países atrasados As economias ocidentais compó sitas da época de transição que combinavam via de regra uma agricultura semimonetarizada e feudal pósservil com enclaves de ca pital mercantil e manufatureirp não dispunham dessa força com pulsiva O investimento estrangeiro era mínimo exceto nos impérios coloniais e em certa medida na Escandinávia O comércio externo ainda representava uma pequena porcentagem do produto nacional de todos os países com exceção da Holanda e de Veneza Desse modo era intrinsecamente implausível qualquer integração em bloco do Leste eu ropeu em um circuito econômico da Europa ocidental como pare cem sugerir certas expressões utilizadas pelos historiadores tais como economia colonial ou interesses da empresa agrícola quando se referem ao sistema Gutsherrschaft além do Elba Não se pretende afirmar entretanto que o impacto da Europa ocidental sobre a oriental não tenha sido determinante para as estru turas políticas que ai surgiram Com efeito a interação transnacional dentro do feudalismo sempre se realizou primordialmente no nível polí tico e não no econômico precisamente porque se tratava de um modo de produção fundado na coerção extraeconômica a conquista e não 2 O índice real de monetarização das diversas agriculturas da Europa ocidental nos séculos XVI e XVII era provavelmente muito inferior ao que vulgarmente se pensa Jean Meuvret nota que na França do século XVI o campesinato vivia praticamente por toda a parte num regime de quaseautarquia doméstica ao passo que a vida coti diana dos artesãos inclusive os pequenos burgueses era efetivamente regida pelo mesmo princípio nomeadamente o de viver sobretudo de alimentos cultivados no solo das terras que possuíam e apenas comprar e vender um mínimo pois para satisfazer as necessi dades ordinárias o uso das moedas de ouro ou de prata era completamente desnecessá rio Com efeito dado o número limitado de transações comerciais indispensáveis podia se muitas vezes passar sem o dinheiro Jean Meuvret Circulatíon Monétaire et Útil i sation Economique de Ia Monnaie dans Ia France du XVIe et du XVIIe siècle1 Êtudes dHistoire Moderne et Contemporaine 1947 vol I p 20 Porshnev caracteriza apro priadamente a situação geral ao definila como a contradição entre a forma monetária e a base natural da economia feudal na época e comenta que as dificuldades fiscais do absolutismo originavamse em toda a parte desta contradição Lês Soulèvements Popu laires en France p 558 198 PERRY ANDERSON o comércio era a sua forma básica de expansão O desenvolvimento desigual do feudalismo na Europa encontrou pois a sua expressão mais direta e característica não nas balanças de comércio mas no equi líbrio militar entre as diversas regiões do continente Em outros termos a mediação principal entre o Leste e o Ocidente nesta época era militar Foi a pressão internacional do absolutismo do Ocidente o aparelho político de uma aristocracia feudal mais poderosa que dominava socie dades mais avançadas que forçou a nobreza do Leste a adotar uma máquina de Estado identicamente centralizada para poder sobreviver De outra maneira a superioridade militar dos exércitos absolutistas ampliados e reorganizados cobraria inevitavelmente o seu tributo atra vés da forma habitual de competição interfeudal a guerra A própria modernização das tropas e das táticas efetuada pela revolução mili tar no Ocidente depois de 1560 tornara a agressão aos vastos espaços do Leste mais viável que nunca aumentando na mesma escala os riscos de uma invasão para as aristocracias daquela região Assim numa épo ca em que divergiam as relações de produção infraestruturais ocorria uma convergência paradoxal no nível das superestruturas nas duas zo nas da Europa o que constituía evidentemente um indício da exis tência de um modo de produção em última análise comum A forma concreta inicialmente assumida pela ameaça militar do absolutismo ocidental foi para a sorte das nobrezas orientais historicamente indi reta e transitória Em vista disso são ainda mais surpreendentes os efeitos imediatamente catalíticos que tiveram sobre o conjunto do pa drão político do Leste Na direção sul a frente entre as duas regiões foi ocupada pelo extenso duelo austroturco que por 250 anos desviou a atenção dos Habsburgo para os seus inimigos otomanos e seus vassalos da Hungria No centro a Alemanha constituía um labirinto de peque nos e frágeis Estados divididos e neutralizados por conflitos religiosos Foi portanto do norte relativamente primitivo que veio o ataque A Suécia o mais novo e surpreendente de todos os absolutismos oci dentais um país recente com uma população muito limitada e uma economia rudimentar revelouse o flagelo do Leste O seu impacto na Prússia Polônia e Rússia nos noventa anos que decorreram entre 1630 e 1720 exige a comparação com o da Espanha na Europa oci dental numa época anterior embora nunca tenha sido estudado com a mesma atenção Esse foi não obstante um dos maiores ciclos de ex pansão militar na história do absolutismo europeu No seu auge a ca valaria sueca entrou vitoriosamente em cinco capitais Moscou Var sóvia Berlim Dresden e Praga descrevendo um vasto arco de terri tórios na Europa oriental que excedia mesmo as campanhas dos tercios LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 199 espanhóis na Europa ocidental Na Áustria e na Prússia na Polônia e na Rússia os sistemas estatais sofreram sem exceção o seu impacto formativo A primeira conquista externa da Suécia foi a tomada da Estônia durante a longa Guerra da Livônia travada com a Rússia nas últimas décadas do século XVI Entretanto foi a Guerra dos Trinta Anos que produziu o primeiro sistema político internacional completamente for malizado da Europa que marcou com propriedade o início decisivo da irrupção sueca para leste A marcha espetacular dos exércitos de Gus tavo Adolfo sobre a Alemanha fazendo retroceder o poder Habsburgo para espanto da Europa revelouse o ponto crucial da guerra enquan to os êxitos posteriores de Baner e Torstensson frustraram qualquer recuperação a longo prazo da causa do Império A partir de 1641 as tropas suecas ocuparam permanentemente amplas áreas da Morávia3 e quando a guerra terminou em 1648 estavam acampadas na mar gem oriental do Vitava em Praga A intervenção sueca destruíra defi nitivamente a perspectiva de um Estado imperial Habsburgo na Ale manha daí em diante o curso e o caráter do absolutismo austríaco seria totalmente determinado por tal derrota que afastou qualquer possibilidade de instaurar uma sede territorial consolidada nos terri tórios tradicionais do Reich e às suas custas desviou o seu centro de gravidade para leste Ao mesmo tempo o impacto do poderio sueco sobre a evolução da Prússia menos visível no plano internacional foi no plano interno ainda mais decisivo Desde 1631 o Brandenburgo passou a ser ocupado por exércitos suecos e embora tecnicamente fosse um aliado da causa protestante foi imediatamente submetido a impla cáveis requisições militares e exações fiscais jamais conhecidas ante riormente os privilégios tradicionais dos Estados junkers foram des truídos sem demora pelos comandantes suecos4 O trauma desta expe riência associouse à aquisição da Pomerânia ocidental pela Suécia com o Tratado de Vestfália em 1648 que assegurou aos suecos uma ampla e permanente cabeça de ponte no litoral sul do Báltico As guar nições suecas controlavam agora o Odra colocando sob ameaça direta a até então desmilitarizada e descentralizada classe dominante do Brandenburgo uma região que praticamente não dispunha de exército 3 Ver J V Polisensky The Thirty Years War Londres 1971 pp 22431 4 Carsten The Oríginsof Prússia p 179 Gustavo Adolfo tomara alguns anos antes as estratégicas fortalezas de Memel e Pillau na Prússia oriental que controlavam o acesso a Kônigsberg e aí lançou tributos para a Suécia cp cit pp 2056 200 PERRY ANDERSON A construção do absolutismo prussiano a partir da década de 1650 por iniciativa do Grande Eleitor constituiu em grande medida uma res posta direta à latente ameaça dos suecos o exército permanente que seria a pedra de toque da autocracia Hohenzollern e o seu sistema fis cal foram aceitos pelos junkers em 1653 para acudir a uma situação de guerra iminente no teatro do Báltico e para resistir aos perigos exter nos Na verdade a Guerra SuecoPolaca de 165560 revelouse o ponto crucial na evolução política de Berlim que evitara o impacto da agres são sueca ao participar da luta como apreensivo parceiro menor de Estocolmo O próximo grande passo na construção do absolutismo prussiano foi dado uma vez mais em resposta ao conflito militar com a Suécia Durante a década de 1670 nos estertores das campanhas suecas contra o Brandenburgo que constituíram o teatro setentrional da guerra desencadeada pela França no Ocidente o notável General kriegskommissariat iria ocupar as funções do antigo conselho privado passando a moldar daí para a frente toda a estrutura da máquina de Estado Hohenzollern O absolutismo prussiano na sua configuração definitiva veio à luz durante a época e sob a pressão do expansionismo sueco Enquanto isso foi nessas mesmas décadas posteriores ao Tratado de Vestfália que se abateu sobre o Leste o mais forte dos ventos nórdi cos A invasão da Polônia pela Suécia em 1655 despedaçou rapida mente a tênue confederação aristocrática dos szlachta Caíram Varsó via e Cracóvia e todo o vale do Vístula foi lacerado pelas marchas e contramarchas das tropas de Carlos X A principal conseqüência estra tégica da guerra foi privar a Polônia de toda a suserania sobre o ducado da Prússia Mas os resultados sociais do devastador ataque sueco foram mais sérios o panorama econômico e demográfico polonês foi tão gra vemente afetado que a invasão sueca passou a ser conhecida como o Dilúvio que separou para sempre a anterior prosperidade da Rzecz pospolita da crise e do declínio irrecuperáveis nos quais esta se afundou desde então A última e breve recuperação das armas polonesas na década de 1680 quando Sobieski chefiou o auxílio a Viena contra os turcos foi logo seguida pela segunda devastação da Comunidade pelos suecos durante a Grande Guerra do Norte de 17011721 na qual o principal teatro da destruição foi uma vez mais a Polônia Quando os últimos soldados escandinavos deixaram Varsóvia a Polônia deixara de ser uma potência européia importante A nobreza polaca por razões que discutiremos depois não conseguiu gerar um absolutismo durante essas ordálias Com isso demonstrou na prática as conseqüências de não têlo feito para uma classe feudal do Leste incapaz de se recuperar LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 201 dos golpes mortais infligidos pela Suécia a Polônia acabou por deixar de existir como Estado independente A Rússia como sempre representa um caso algo diferente num terreno histórico comum Aí mais cedo que em qualquer outra região da Europa oriental tornouse nítido o impulso existente no seio da nobreza para uma monarquia militar Em parte tal se devia à pré história do Estado kieviano e à tradição imperial bizantina que este transmitiu através da caótica Idade Média russa por intermédio da ideologia da Terceira Roma Ivâ III casarase com a sobrinha do último imperador paleólogo de Constantinopla passando a reivindicar o título de czar ou imperador em 1480 A ideologia da translatio imperii era duvidosa porém menos importante do que a constante pressão exercida sobre a Rússia pelos pastores tártaros e turcomanos da Ãsia central A suserania política da Horda de Ouro sobreviveu até o final do século XV Os canatos de Kazã e Astrakã que a sucederam lançaram constantes incursões de captura de escravos a partir do Oriente até serem derrotados e anexados em meados do século XVI Nos cem anos seguintes os tártaros da Criméia então sob o domínio otomano varreram o território russo a partir do sul as suas expedições de pilhagem e escravizaçao fizeram da maior parte da Ucrânia uma região selvagem e despovoada5 No início da Idade Moderna faltava aos cavaleiros tártaros a capacidade de conquistar ou ocupar com cará ter de permanência Mas a Rússia sentinela da Europa tinha que suportar o impacto de seus ataques e o resultado foi um impulso no sentido de um Estado centralizado mais precoce e intenso no ducado da Moscóvia que no bem protegido Eleitorado do Brandenburgo ou na Comunidade polonesa Mas a partir do século XVI a ameaça militar do Ocidente foi sempre muito maior que no Leste já que a artilharia pesada e a infantaria moderna suplantavam agora com facilidade os arqueiros montados como armas de guerra Portanto também na Rússia as fases realmente decisivas da transição para o absolutismo ocorreram durante as etapas sucessivas da expansão sueca O reinado crucial de Ivã IV no final do século XVI foi dominado pelas longas Guerras da Livônia cujo vencedor estratégico foi a Suécia com a ane Território de um cã N T 5 Na véspera do ataque de Ivã IV ao canato tártaro de Kazan em 1552 estima se que haveria aí uns 100 mil escravos russos O número total de escravos capturados pelas incursões tártaras provenientes da Criméia na primeira metade do século XVII ultrapassa 200 mu G Vernadsky The Tsardom ofMoscow 15471682 Yale 1969 pp 12514 202 PERRY ANDERSON xação da Estônia pelo Tratado de Yam Zapolsky em 1582 um tram polim para o domínio do litoral norte do Báltico A Época das Dificul dades no início do século XVII que terminou com a importante as censão da dinastia Romanov viu a bandeira da Suécia desfraldarse nas longínquas reuniões da Rússia Em meio ao caos crescente uma unidade comandada por De La Gardie abriu caminho até Moscou para sustentar o usurpador Shuisky três anos depois um pretendente sueco o irmão de Gustavo Adolfo ficou a um triz da eleição para a própria monarquia russa sendo apenas bloqueado pela escolha de Mi khail Romanov em 1613 O novo regime foi prontamente forçado a ceder a Carélia e a íngria à Suécia que no espaço de mais uma década tomou toda a Livônia à Polônia o que lhe deu o controle virtualmente total do Báltico A influência sueca estendeuse também ao próprio sistema político russo nos primeiros anos da dominação Romanov E enfim evidentemente o maciço edifício estatal de Pedro I no início do século XVIII foi erguido na época e diante da suprema ofensiva militar sueca sobre a Rússia chefiada por Carlos XII que começou por dis persar os exércitos russos em Narva e por fim penetrou profundamente na Ucrânia O poder czarista foi pois forjado e testado no conflito internacional com o império sueco pela supremacia no Báltico O Es tado austríaco fora afastado da Alemanha graças à expansão sueca o Estado polonês totalmente desmembrado os Estados prussiano e russo ao contrário o enfrentaram e repeliram assumindo sua forma desenvolvida ao longo do conflito O absolutismo oriental foi por tanto fundamentalmente determinado pelas coações impostas pelo sistema político internacional em que as nobrezas de toda a região es tavam objetivamente integradas J Foi este o preço de sua sobrevivência numa civilização marcada pela incessante guerra territorial o desen volvimento desigual do feudalismo forçouas a confrontarse com as estruturas políticas do Ocidente antes de terem atingido um estágio semelhante de transição econômica para o capitalismo Não obstante este absolutismo foi também e inevitavelmente sobredeterminado pelo curso da luta de classes no seio das formações 6 J H Billington Thelcon and the Axé Londres 1966 p 110 este é um tema que convida a novas pesquisas 7 Para um reconhecimento desse fato por parte de um historiador russo ver A N Chistozvonov Nefcotorye Aspekty Froblemy Genezisa Absoliutizma Voprosy Is torii n 5 maio de 1968 pp 601 Embora contenha algumas opiniões extravagantes sobre a Espanha por exemplo este ensaio comparado é provavelmente a melhor aná lise soviética recente sobre as origens do absolutismo na Europa oriental e ocidental LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 203 sociais do Leste É necessário considerar agora as pressões endógenas que contribuíram para o seu surgimento Uma concordância inicial é surpreendente A decisiva consolidação econômica e jurídica da servi dão na Prússia Rússia e Boêmia ocorreu precisamente durante as mes mas décadas em que foram lançados os fundamentos seguros do Es tado absolutista Esta dupla evolução institucionalização da servi dão e inauguração do absolutismo esteve nos três casos estreita e nitidamente vinculada na história de cada uma destas formações so ciais No Brandenburgo o Grande Eleitor e os Estados firmaram o famoso acordo de 1653 consignado formalmente numa Carta por meio da qual a nobreza votava os impostos para um exército perma nente e o príncipe decretava ordenações que vinculavam irreversivel mente a força de trabalho rural à terra Os impostos seriam cobrados às cidades e aos camponeses e não aos próprioswwfrers ao passo que o exército seria o coração de todo o Estado prussiano Tratavase de um pacto que ao mesmo tempo aumentava o poder político da dinastia sobre a nobreza e o da nobreza sobre o campesinato A servidão da Alemanha oriental era assim normalizada e padronizada em todas as terras Hohenzollern do alémElba enquanto isso o sistema de Estados era implacavelmente suprimido pela monarquia província após pro víncia Por volta de 1683 o Landtage do Brandenburgo e da Prússia oriental tinha perdido todo o poder definitivamente8 Entretanto ocorria na Rússia uma conjuntura muito semelhante Em 1648 a Zems ky Sobor Assembléia da Terra reuniuse em Moscou para aprovar a histórica Sobornoe Ulozhenie que pela primeira vez codificou e uni versalizou a servidão para a população rural instituiu um estrito con trole estatal sobre as cidades e seus habitantes e ao mesmo tempo confirmou e instaurou a obrigação formal de todas as terras nobres prestarem serviço militar A Sobornoe Ulozhenie foi o primeiro código jurídico abrangente a ser publicado na Rússia e o seu advento marcou um importante acontecimento proporcionou efetivamente ao czarismo o corpo jurídico normativo para a sua consolidação como sistema polí tico Também aí a solene proclamação da passagem dos camponeses russos ao regime servil foi seguida pela rápida queda em desuso do sistema de Estados No espaço de uma década a Zemsky Sobor tinha efetivamente desaparecido enquanto a monarquia construía um gran 8 Quando os nobres reunidos adquiriram a melancólica convicção em Branden burgo de que os antigos privilégios dos Estados estavam virtualmente anulados e diluí dos de tal modo que nenhuma umbra libertatis parecia subsistir Citado por Carsten The QriginsofPrusxia p 200 204 PERRY ANDERSON de exército semipermanente que acabou por superar as antigas tropas recrutadas pela pequena nobreza A última e insignificante Zemsky Sobor passou ao esquecimento em 1683 quando já constituía um es pectral grupo da corte O pacto social entre a monarquia e a aristocra cia russas estava firmado estabelecendose o absolutismo em troca da consecução da servidão Um sincronismo semelhante ocorreu no desenvolvimento da Boê mia mais ou menos à mesma época se bem que no contexto diverso da Guerra dos Trinta Anos O Tratado de Vestfália que pôs fim em 1648 ao longo conflito militar consagrou a dupla vitória da monarquia Habsburgo sobre os Estados boêmios e da alta nobreza fundiária sobre o campesinato tcheco O grosso da antiga aristocracia tcheca fora eli minado após a Batalha do Monte Branco e com ela a constituição política que abrigava o seu poder local A Verneuerte Landesord nung que então entrou incontestavelmente em vigor concentrou todo o poder executivo em Viena os Estados uma vez extinto o seu tra dicional predomínio social foram reduzidos a um secundário papel protocolar A autonomia das cidades foi esmagada No campo segui ramse implacáveis medidas que reduziram à servidão os camponeses dos grandes domínios As amplas prescrições e confiscos sofridos pela antiga nobreza tcheca criaram uma nova e cosmopolita aristocracia de aventureiros e funcionários da corte que a partir daí conjuntamente com a Igreja passou a controlar quase três quartos das terras da Boê mia Houve imensas perdas demográficas após a Guerra dos Trinta Anos originandose dai graves crises de mãodeobra As prestações de serviços dos robot logo atingiram metade da semana de trabalho en quanto os tributos as dízimas e os impostos feudais chegavam a alcan çar dois terços da produção dos camponeses9 O absolutismo austríaco refreado na Alemanha triunfou na Boêmia e com tal triunfo extin guiamse as derradeiras liberdades do campesinato tcheco Portanto em todas as três regiões a consolidação do controle senhorial sobre os camponeses e a discriminação contra as cidades estiveram relacionadas a um acentuado incremento das prerrogativas da monarquia e foram seguidas pelo desaparecimento do sistema de Estados As cidades da Europa oriental como vimos foram de um modo geral despojadas e reprimidas na última depressão feudal O surto eco nômico que se verificou em todo o continente no século XVI alimentou porém um novo embora desigual crescimento das cidades em algu 9 Polisensky The Thirty Years War p 245 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 205 mas áreas do leste da Europa A partir de 1550 as cidades da Boêmia reconquistaram muito da sua prosperidade embora sob a égide de pa triciados urbanos estreitamente vinculados à nobreza por sua condição de proprietários das terras municipais e sem a vitalidade popular que outrora as distinguira na época hussita Na Prússia oriental Kõnigs berg permanecia como uma robusta guarda avançada da autonomia dos burgos Na Rússia Moscou florescera após a instauração formal do czarismo com Ivã III passando a beneficiarse largamente do comér cio de longa distância entre a Europa e a Ásia que atravessava a Rús sia do qual participavam também os antigos centros mercantis de Nov gorod e Pskov O amadurecimento dos Estados absolutistas no século XVII acabou por desferir um golpe fatal na possibilidade de um renas cimento da independência urbana no Leste As novas monarquias Hohenzollern Habsburgo e Romanov asseguraram de forma inaba lável a supremacia política da nobreza sobre as cidades A única pessoa jurídica seriamente capaz de resistir à Gleichshaltung do Grande Elei tor após o Recesso de 1653 foi a cidade de Kõnigsberg na Prússia oriental esta seria esmagada em 166263 e 1674 sob o olhar impávido âosjunkers locais10 Na Rússia a própria Moscou não dispunha de uma substancial classe burguesa sendo o comércio monopolizado pelos boiardos funcionários e um pequeno círculo de mercadores gostí que dependiam do governo quanto ao seu status e privilégios mas possuía muitos artesãos uma anárquica força de trabalho semirural e os tru culentos e corrompidos mosqueteiros da milícia streltsy A causa ime diata da convocação da fatídica Zemsky Sobor que promulgou a Sobor noe Ufozhenie foi a súbita explosão destes grupos heterogêneos As multidões amotinadas enraivecidas pelos crescentes preços das merca dorias básicas em razão dos aumentos nos impostos decretados pela administração Morozov tomaram Moscou e forçaram o czar a fugir da cidade enquanto o descontentamento ecoava nas províncias rurais na direção da Sibéria Uma vez recuperado o controle monárquico sobre a capital a Zemsky Sobor foi convocada e decretada a Ulozhenie Nov gorod e Pskov revoltaramse contra as exações fiscais e foram defini tivamente sufocadas deixando de ter qualquer importância econômica a partir daí Os últimos tumultos urbanos em Moscou ocorreram em 1662 quando os artesãos em revolta foram facilmente subjugados e em 1683 quando Pedro I liquidou finalmente astreltsy Desde então as cidades russas jamais criariam problemas à monarquia ou à aristo 10 Carsten The Originsof Prússia pp 2124 2201 206 PERRY ANDERSON cracia Nas terras tchecas a Guerra dos Trinta Anos abateu o orgulho e a prosperidade das cidades boêmias e morávias as incessantes devas tações e cercos durante as campanhas da guerra aliados ao cancela mento da autonomia municipal que as seguiu reduziramnas desde então a elementos passivos no interior do império Habsburgo Não obstante o mais importante fundamento interno do absolu tismo do Leste situavase no campo O seu complexo aparelho de re pressão dirigiase básica e primordialmente contra o campesinato O século XVII foi em quase toda a Europa uma época de queda de preços e de população No Leste as guerras e os desastres civis originaram crises de mãodeobra particularmente agudas A Guerra dos Trinta Anos infligira um acentuado recuo a toda a economia alemã a leste do Elba Em muitos distritos do Brandenburgo ocorreram perdas demo gráficas de até 50 por cento11 Na Boêmia a população total caiu de l milhão e 700 mil habitantes para l milhão à época da Paz de Vestfá lia12 Em terras da Rússia a pressão insuportável das Guerras da Li vônia e da Oprichnina conduziram à calamitosa evacuação e ao despo voamento da Rússia central nos últimos anos do século XVI de 76 a 96 por cento das povoacões da própria província de Moscou foram abandonadas13 A Época das Dificuldades com suas guerras civis in vasões estrangeiras e rebeliões rurais veio acrescentar a instabilidade e a escassez de força de trabalho à disposição da classe dos proprietários fundiários Assim a queda demográfica dessa época iria criar ou agra var uma escassez constante de trabalho rural para o cultivo dos domí nios Havia além disso um permanente pano de fundo regional para este fenômeno o endêmico problema do feudalismo do Leste configu rado na proporção terratrabalho existiam pouquíssimos campo neses espalhados por regiões extremamente vastas Uma comparação pode fornecer uma idéia aproximada do contraste de tais condições com as que existiam na Europa ocidental a densidade populacional da Rússia no século XVII era de três a quatro pessoas por quilômetro quadrado na mesma época em que na França chegava a quarenta ou seja dez vezes mais14 Nas férteis regiões agrícolas do sudeste da Polônia e da Ucrânia ocidental a mais rica região rural da Rzeczpos polita a densidade populacional era um pouco mais elevada entre 11 Stoye Europe Unfolding 16481688 p 31 12 Polisensky The Thirty Years War p 245 13 R H Hellie Enserfment mdMiütary Change in Muscovy p 95 14 R Mousnier Peasant Uprisings pp 157159 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 207 três a sete pessoas por quilômetro quadrado15 A maior parte da planí cie central da Bulgária situada agora na zona fronteiriça entre os impérios austríaco e turco era igualmente despovoada O principal objetivo da classe senhorial não era portanto como no Ocidente fixar o nível dos tributos a serem pagos pelo campesinato mas deter a mobi lidade dos aldeões e prendêlos aos domínios Inversamente em am plas áreas da Europa oriental a forma mais característica e eficaz de luta de classe empregada pelo campesinato era simplesmente a fuga o abandono coletivo da terra rumo a outras regiões desabitadas e inex ploradas Já descrevemos as medidas tomadas pelas nobrezas prussiana austríaca e tcheca para impedir tal mobilidade tradicional na última fase da Idade Média naturalmente estas foram intensificadas na épo ca inicial do absolutismo Quanto mais para leste na Rússia e na Po lônia mais sério ficava o problema Não havia fronteiras ou limites estáveis a definir a colonização nos vastos territórios do interior do Pon to entre os dois países as densas florestas do norte da Rússia foram tradicionalmente uma zona camponesa de terra negra fora do con trole senhorial ao passo que no Sudeste as regiões da Sibéria oci dental e do VolgaDon constituíam áreas de expansão remotas e des providas de caminhos ainda em processo gradual de ocupação A emi gração rural clandestina em todas essas direções oferecia a possibili dade de trocar a exploração senhorial pelo cultivo camponês indepen dente em condições pioneiras embora agrestes Ao longo do século XVII o longo e exaustivo processo de passagem à servidão sofrido pelo campesinato russo deve ser considerado tendo como pano de fundo este contexto natural rudimentar a existência de uma vasta margem friável em torno da sistema nobiliário de propriedade de terras Assim cons titui um paradoxo histórico o fato de que a Sibéria tenha sido em gran de parte desbravada por pequenos proprietários camponeses das comu nidades terra negra do norte em busca de maior liberdade indi vidual e de melhores oportunidades econômicas precisamente à época em que a grande massa do campesinato do centro afundava na mais abjeta servidão16 Esta ausência de uma fixação regular ao solo foi a responsável na Rússia pela surpreendente sobrevivência da escravi 15 P Skwarczyúski Poland and Lithuania The New Cambridge Modem History of Europe III Cambridge 1968 p 377 16 A N Sakharov O Dialektike Istoricheskovo Razvitiya Russkovo Krest yanstva Voprosy Istorii n l janeiro de 1970 pp 267 sublinha tal contraste 208 PERRY ANDERSON dão em escala considerável no final do século XVI os escravos ainda cultivavam entre 9 e 15 por cento dos domínios russos17 Com efeito como mostramos repetidamente a presença da escravidão rural numa formação social feudal sempre significa que o próprio sistema servil ainda não estava concluído e que um número considerável de produto res diretos estava ainda livre na área rural A posse de escravos era um dos principais bens da classe boiarda conferindolhes uma importante vantagem econômica em seus domínios frente à pequena nobreza de serviço18 tal deixou de ser necessário somente quando a rede da ser vidão colhera todo o campesinato russo no século XVIII Enquanto isso assistiase a uma feroz concorrência interfeudal pelo controle das almas necessárias ao cultivo das terras da nobreza ou da Igreja os boiardos e os mosteiros detentores de domínios mais lucrativos e ra cionais acolhiam muitas vezes servos fugidos de propriedades meno res obstruindo a sua recuperação pelos antigos senhores para a fúria da pequena nobreza fundiária Somente quando se estabeleceu uma estável e poderosa autocracia centralizada dispondo de um aparelho repressivo capaz de impor a vinculação à terra em toda a Rússia cessa ram estes conflitos Foi portanto a constante preocupação senhorial com o problema da mobilidade da mãodeobra no Leste o fator que esteve por trás de grande parte do impulso interno em direção do abso lutismo A legislação senhorial que vinculava o campesinato ao solo fora amplamente promulgada na época anterior Mas como vimos a sua implementação permaneceu habitualmente muito imperfeita os padrões reais da força de trabalho nem sempre correspondiam às provi dências dos livros legais Por toda a parte a missão do absolutismo foi converter a teoria jurídica em prática econômica Um aparelho repres sivo impiedosamente centralizado e unitário era uma necessidade obje tiva para a vigilância e a supressão da mobilidade rural generalizada em épocas de depressão econômica uma mera rede de jurisdições se 17 Mousnier Peasant Uprisings pp 1745 18 Ver a notável comunicação de Vernadsky Serfdom in Rússia X Con gressoInternazionalediScienzeStoriche Relazioni III Florença 1955 pp 24772 que salienta com acerto a importância da escravidão rural na Rússia como uma particulari dade do sistema agrário 19 Ê possível ter uma idéia aproximada da magnitude do problema para a clas se dominante russa a partir do fato de que ainda em 171819 muito tempo depois da consolidação jurídica da servidão geral o censo ordenado por Pedro I revelou nada me nos que 200 mil servos fugitivos o que ascendia a 34 por cento do total da população servil e que foram repatriados a seus antigos senhores Ver M Ya Volkov O Stanov lenii Absolitizmav Rossii Istoriya SSSR janeiro de 1970 p 104 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 209 nhoriais individualizadas por mais despótica que fosse já não conse guia enfrentar adequadamente o problema Neste aspecto as funções internas de polícia necessárias à segunda servidão no Leste foram mais exigentes que as requeridas pela primeira servidão no Ocidente O re sultado foi tornar possível um Estado absolutista que estava à frente das relações de produção nas quais se baseava contemporâneo ao do Ocidente na transição para relações pósservis A Polônia uma vez mais foi a exceção aparente à lógica desse processo Mas tal como no plano externo esta pagara o tributo do Dilúvio sueco por não ter gerado um absolutismo internamente o preço de seu fracasso foi a maior insurreição camponesa da época a ordália da Revolução Ucraniana de 1648 que lhe custou um terço do território e desferiu no moral e no orgulho da szlachta um golpe do qual esta nunca se recuperou completamente Este foi na verdade o prelú dio imediato à guerra contra a Suécia com a qual se encadeou O ca ráter particular da Revolução Ucraniana foi resultado direto do pro blema básico da mobilidade e do êxodo camponês no Leste20 Com efeito tratouse de uma rebelião desencadeada por cossacos relativa mente privilegiados do Dnieper originalmente camponeses russos e ru tênios fugitivos ou montanheses circassianos que haviam se estabele cido nas vastas regiões fronteiriças entre a Polônia a Rússia e o canato tártaro da Criméia Nessa terra de ninguém vieram a adotar um modo de vida seminômade e eqüestre semelhante ao dos tártaros contra os quais eles tradicionalmente lutavam Com o tempo desenvolveuse nas comunidades cossacas uma complexa estrutura social A sua sede polí tica e militar passou a ser a ilha fortificada sech abaixo das corredei ras do Dnieper criada em 1557 que formava um acampamento guer reiro organizado em regimentos que elegiam delegados a um conselho de oficiais ou starshina o qual por sua vez escolhia um comandante supremo ou Hetman Fora da sech de Zaporozhe bandos errantes de salteadores e homens das florestas mesclavamse às aldeias de lavra dores chefiados pelos anciãos A nobreza polaca ao depararse com tais comunidades em sua expansão na Ucrânia achou necessário tole rar a força armada dos cossacos de Zaporozhe limitandoa a alguns regimentos registrados e tecnicamente sob comando polonês Tropas cossacas foram utilizadas como cavalaria auxiliar nas campanhas da Polônia na Moldávia Livônia e Rússia e os oficiais vitoriosos chegaram 20 Para um relato completo sobre a estrutura social ucraniana e a revolução de 164854 ver Vernadsfcy The Tsrdom oMoscow I pp 43981 210 PERRY ANDERSON a constituir uma elite fundiária que dominava as fileiras cossacas por vezes chegando a tornarse membros da nobreza polaca Essa convergência social com a szlachta local que expandira gradualmente suas terras para leste não alterou a anomalia militar configurada na independência dos regimentos da sech com sua base semipopular de saqueadores tampouco afetou os grupos de lavradores cossacos que viviam entre a população servil dedicandose ao cultivo dos latifúndios da aristocracia polonesa na região A mobilidade cam ponesa deu pois origem nas pradarias do Ponto a um fenômeno sociológico praticamente desconhecido no Ocidente naquela época massas rurais plebéias capazes de reunir exércitos organizados contra a aristocracia feudal Á súbita amotinação das companhias registradas sob o comando de seu Hetman Khmelnitsky em 1648 estava por tanto profissionalmente qualificada para enfrentar os exércitos polo neses enviados contra ela A revolta por sua vez desencadeou um am plo levante geral dos servos da Ucrânia que lutaram lado a lado com o campesinato cossaco pobre para livrarse de seus senhores polacos Três anos depois os próprios camponeses da Polônia revoltaramse na região cracoviana de Podhale num movimento rural inspirado pela rebelião dos cossacos e servos ucraníanos Travouse na Galícia e na Ucrânia uma selvagem guerra social na qual os exércitos szlachta fo ram batidos repetidas vezes pelas forças de Zaporozhe À luta terminou com a fatídica transferência de vassalagem da Polônia para a Rússia jurada por Khmelnitsky pelo Tratado de Pereyaslavl em 1654 que colocou toda a Ucrânia alémDnieper sob o domínio dos czares e ga rantiu os interesses da starshina cossaca21 O campesinato ucraniano cossaco e nãocossaco foi a vítima principal dessa operação a pacificação da Ucrânia com a integração dos corpos de oficiais no Estado russo restabeleceu suas amarras Na verdade após uma longa evolução os esquadrões cossacos viriam a formar um corpo de elite da autocracia czarista O Tratado de Pereyaslavl simbolizou com efeito a parábola respectiva dos dois grandes rivais da região no século XVII O fragmentado Estado polonês revelouse incapaz de derrotar e subordi nar os cossacos tal como não soube resistir aos suecos A centralizada autocracia czarista realizou ambas as coisas repeliu a ameaça sueca e não apenas subjugou como afinal utilizou os cossacos como corpo de cavalaria na repressão de suas próprias massas 21 Para as negociações e cláusulas do Tratado de Pereyaslavl ver a sucinta exposição em C B OBrien Muscovy and the Ukraine BerkeleyLos Angeles 1963 pp 217 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 211 O levante ucraniano foi a mais formidável guerra camponesa de sua época no Leste Mas não foi o único Todas as principais nobrezas da Europa oriental defrontaramse numa ou noutra ocasião do século XVII com rebeliões servis No Brandenburgo ocorreram repetidas ex plosões de violência rural no distrito central de Prignitz durante a úl tima fase da Guerra dos Trinta Anos e a década que se lhe seguiu em 1645 1646 1648 1650 e de novo em 165622 A concentração do poder nas mãos do Grande Eleitor deve ser compreendida à luz deste pano de fundo de inquietação e desespero reinante nas aldeias O campesinato da Boêmia submetido à rápida degradação de sua posição econômica e jurídica após o Tratado de Vestfalia rebelouse contra os senhores por todo o país em 1680 quando tropas austríacas tiveram que ser envia das para dominálo Acima de tudo registrouse na própria Rússia um número jamais igualado de insurreições rurais que duraram desde a Época das Dificuldades na virada do século XVII à era do ilumi nismo no século XVIII Em 16067 camponeses plebeus e cossacos da região do Dnieper tomaram o poder provincial sob o comando do exescravo Bolotnikov os seus exércitos quase chegaram a instalar o Falso Dmitri como czar em Moscou Em 163334 servos e desertores da zona de luta de Smolensk revoltaramse sob a chefia do camponês Balash Em 167071 quase todo o sudeste de Astrakã a Simbirsk escorraçou o poder senhorial enquanto inumeráveis exércitos campo neses e cossacos subiam o vale do Volga tendo à frente o bandido Razin Em 17078 as massas rurais do Baixo Don seguiram o cossaco Bulavin numa violenta revolta contra a crescente carga de impostos e o trabalho forçado nos estaleiros imposto por Pedro I Finalmente em 17734 teve lugar a última e maior das insurreições a terrível suble vação das múltiplas populações exploradas desde os contrafortes dos Urais e os desertos de Bashkiria às margens do Cáspio sob a liderança de Pugachev que reuniu cossacos das estepes e das montanhas traba lhadores empregados em fábricas camponeses das planícies e tribos de pastores numa série de levantes que requereu todo o poderio do exér cito imperial da Rússia antes de se deixar derrotar Todas essas revoltas populares tiveram origem nas fronteiras in determinadas do território russo Galícia BieloRússia Ucrânia As trakã e Sibéria Com efeito aí o poder do Estado central perdia força e as massas errantes de aventureiros saqueadores e fugitivos mistura vamse com plantações de servos e propriedades da nobreza as quatro 22 Stoye Europe Vnfolding 16481688 p 30 212 PERRY ANDERSON maiores rebeliões foram comandadas por cossacos armados que forne ciam a experiência e a organização militares que as tornaram tão peri gosas para a classe feudal Significativamente foi apenas com o fecha mento definitivo das fronteiras da Ucrânia e da Sibéria no fim do sé culo XVIII uma vez completados os planos de colonização de Po temkin que o campesinato russo foi finalmente forçado a uma quie tude sombria Assim por toda a Europa oriental a intensidade da luta de classes no campo sempre latente sob a forma de êxodos rurais detonou também explosões camponesas contra a servidão através das quais ameaçou frontalmente o poder e a propriedade do conjunto da nobreza Á planura da geografia social da maior parte daquela região que a distinguia do espaço mais segmentado da Europa ocidental23 podia emprestar a essa ameaça formas particularmente graves O pe rigo geral advindo de seus próprios servos atuou portanto como uma força centrípeta generalizada sobre as aristocracias do Leste A ascen são do Estado absolutista no século XVII respondeu basicamente ao temor social o seu aparelho políticomilitar de repressão era a garantia da estabilidade da servidão Havia portanto para o absolutismo orien tal uma ordem interna que complementava as suas determinações ex ternas a função do Estado centralizado era defender a posição de clas se da nobreza feudal ao mesmo tempo contra os seus rivais estrangeiros e os seus camponeses dentro do pais A organização e a disciplina de uns e a fluidez e a contumácia de outros impuseram uma apressada unidade política O Estado absolutista foi assim reproduzido além do Elba tornandose um fenômeno europeu geral Quais as características específicas da variante oriental desta má quina feudal fortificada Duas peculiaridades básicas e interrelacio nadas podem ser salientadas Em primeiro lugar a influência da guer ra na sua estrutura era ainda mais preponderante que no Ocidente e assumiu formas sem precedentes A Prússia talvez represente o limite extremo atingido pela militarização na gênese deste Estado Aí a ên fase na função bélica reduziu efetivamente o incipiente aparelho de Estado a um subproduto da máquina militar da classe dominante O absolutismo do Grande Eleitor do Brandenburgo nasceu como vimos em meio à turbulência motivada pelas expedições suecas através do Báltico na década de 1650 A sua evolução e organização internas vi 23 O contraste entre a topografia plana e infindável do Leste que facilitava as fugas e o relevo mais acidentado e restrito do Ocidente que auxiliava o controle sobre os trabalhadores é salientado por Lattimore Feudalism in History pp 556 e Mousnier Peasant Uprisings pp 157 159 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 2L3 riam a representar uma efetivação expressiva da máxima de Treitschke A Guerra é o pai da cultura e a mãe da criação Com efeito toda a estrutura fiscal o serviço civil e a administração local do Grande Elei tor vieram à luz como sub departamento s técnicos do Generalkriegs kommissariat A partir de 1679 durante a guerra com a Suécia essa peculiar instituição tornouse sob a chefia de Von Grumbkow o órgão supremo do absolutismo Hohenzollern Em outras palavras a burocra cia prussiana nasceu como uma ramificação do exército O General kriegskommissariat constituía um onipotente ministério da guerra e das finanças que cuidava não apenas da manutenção do exército per manente como da coleta de impostos da regulamentação da indústria e da nomeação dos representantes do Estado brandenburguês nas pro víncias O grande historiador prussiano Otto Hintze assim descreveu o desenvolvimento desta estrutura ao longo do século seguinte Toda a organização do funcionalismo estava interligada com os objetivos mili tares e existia para servilos Os próprios oficiais da polícia provincial dependiam dos comissariados da guerra Todo ministro de Estado era simultaneamente intitulado ministro da Guerra todos os conselheiros das câmaras administrativas e fiscais eram ao mesmo tempo denomi nados conselheiros da guerra Os exoficiais tornavamse conselheiros provinciais e mesmo presidentes e ministros os funcionários admi nistrativos eram em sua maior parte recrutados entre os inspetores e os oficiaisintendentes dos regimentos as posições inferiores eram na me dida do possível preenchidas por oficiais nãocomissionados e inválidos de guerra Todo o Estado adquiriu assim um semblante militar Todo o sistema social foi posto ao serviço do militarismo Os nobres os bur gueses e os camponeses existiam apenas para servir ao Estado e tra vaillerpour lê rói de Ia Prusse24 cada qual em sua esfera Por volta do final do século XVIII a porcentagem da população engajada no exér cito era talvez quatro vezes superior à da França contemporânea25 habitualmente suprida por pelotões recrutados implacavelmente entre os camponeses e os desertores O controle dosjunkers sobre seu co mando era virtualmente absoluto Essa formidável máquina de guerra absorvia regularmente de 70 a 80 por cento das receitas fiscais do Es tado à época de Frederico II O absolutismo austríaco como se verá foi sempre de estrutura muito mais heteróclita apresentando uma combinação imperfeita das 24 Hintze Gesammelte Abhandlungen I p 161 25 Dorn CompetitionforEmpire p 94 26 A J P Taylor The Course oGerman History Londres 1961 p 19 214 PEKRY ANDERSON características ocidentais e orientais condizente com a sua base terri torial mista na Europa central Nunca se viu em Viena uma concentra ção comparável à que prevaleceu em Berlim Ê contudo visível que no seio do eclético sistema administrativo do Estado Habsburgo o sólido núcleo e a força inovadora de meados do século XVI até o fim do século XVIII derivaram em grande parte do complexo militar imperial Na verdade durante longo tempo foi este o único fator a fornecer uma realidade prática à unidade dinástica dos diferentes territórios sob do mínio Habsburgo De tal modo o Supremo Conselho de Guerra ou tíofkriegsrat foi a única agência do governo com jurisdição sobre todos os territórios que no século XVI pertenciam aos Habsburgos o único agente executivo que os unificava sob a linhagem dominante A par de suas tarefas de defesa contra os turcos o Hofkriegsrat era responsável diretamente pela administração civil de toda a faixa de terras ao longo da fronteira sudeste da Áustria com a Hungria guarnecida por milícias Grenzer a ele subordinadas O seu papel subseqüente no lento cresci mento da centralização Habsburgo e na edificação de um absolutismo desenvolvido teve sempre um caráter determinante Entre todos os órgãos centrais de governo foi sem dúvida o mais influente no auxílio à unificação dos vários territórios hereditários e todos eles inclusive a Boêmia e particularmente a Hungria para cuja proteção fora de início concebido aceitavam o seu controle supremo sobre os assuntos mili tares27 O exército profissional que surgiu após a Guerra dos Trinta Anos selou a vitória da dinastia sobre os Estados da Boêmia mantido pelos impostos coletados na Boêmia e na Áustria este se tornou o pri meiro aparelho permanente de governo em ambos os reinos permane cendo sem um equivalente civil efetivo por mais de um século Também nos territórios magiares foi a extensão do exército Habsburgo em dire ção à Hungria no início do século XVIII que finalmente operou uma estreita união política com as outras possessões dinásticas Aí o poder absolutista residia exclusivamente no ramo militar do Estado a Hun gria forneceu a partir de então acantonamentos e tropas para os exér citos Habsburgos os quais ocupavam áreas geográficas que de outro modo ficariam fora dos limites do restante da administração imperial Ao mesmo tempo os territórios recentemente conquistados aos turcos mais para leste foram colocados sob o controle do exército a Transil vânia e o Banat foram administrados diretamente pelo Supremo Conse 27 H F Schwarz The Imperial Prívy Councilin he Seventeentk Century Har vard 1943 p 26 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 215 lho de Guerra localizado em Viena que organizou e supervisionou a colonização sistemática dessas regiões por emigrantes alemães Por tanto a máquina de guerra foi sempre o esteio mais constante do de senvolvimento do absolutismo austríaco Não obstante os exércitos austríacos nunca ascenderam à posição de seus congêneres prussianos a militarização do Estado colidia com os limites de sua centralização A ausência básica de uma rigorosa unidade política nos domínios Habs burgos acabaria por impedir uma supremacia comparável do establish ment militar no seio do absolutismo austríaco Por outro lado o papel do aparelho militar na Rússia foi pouco menor que na Prússia Em sua análise sobre a especificidade histórica do império moscovita Kliuchevsky comentou A primeira dessas pe culiaridades foi a organização bélica do Estado O império moscovita era a Grande Rússia em armas28 Os artífices mais celebrados de tal edifício Ivã IV e Pedro I conceberam o seu sistema administrativo visando basicamente aumentar a capacidade bélica da Rússia Ivã IV procurou reorganizar todo o modelo de propriedade fundiária da Mos cóvia convertendoo em posse com obrigação de serviço militar e com prometendo cada vez mais a nobreza com tarefas militares permanen tes no Estado moscovita A terra tornouse o meio econômico para ga rantir ao Estado a autosuficiência de serviço militar ao passo que a posse de terras pela classe dos oficiais passou a ser a base de um sis 29 tema de defesa nacional A guerra foi ininterrupta durante a maior parte do século XVI com os suecos os poloneses os lituanos os tártaros e outros adversários Ivã IV lançouse finalmente nas longas Guerras da Livônia que resultaram numa catástrofe generalizada na década de 1580 A Época das Dificuldades e a subseqüente consolida ção da dinastia Romanov confirmaram entretanto a tendência básica a vincular a propriedade da terra à construção do exército Pedro I daria a este sistema a sua forma mais implacável e universal Todas as terras tornaramse sujeitas a obrigações militares e todos os nobres ti nham que iniciarse no serviço do Estado com quinze anos sem previ são de duração Dois terços dos membros de toda família nobre deviam ingressar no exército apenas o filho terceiro tinha permissão para ser vir na burocracia civil30 As despesas navais e militares de Pedro I tota 28 V O Kliuchevsky A History of Rússia II Londres 1912 p 319 29 Kliuchevsky op cit p 120 30 M Beloff Rússia in Goodwin Org TheEuropean Nobility in Century pp 1745 216 PERRY ANDERSON lizaram 75 por cento das receitas do Estado em 1724 um dos úni cos anos de paz em seu reinado Tal ênfase irresistível do Estado absolutista nos interesses da guer ra não era excessiva Correspondia a convulsões de expansão e conquis ta muito maiores do que as que tiveram lugar no Ocidente A carto grafia do absolutismo oriental correspondia estritamente a sua estru tura dinâmica Durante os séculos XV e XVI a Moscóvia multiplicou por doze a sua extensão original absorvendo Novgorod Kazan e Astra kã O Estado russo expandiuse rapidamente no século XVII anexan do a Ucrânia ocidental e parte da BieloRússia ao passo que no século XVIII tomou os territórios do Báltico o restante da Ucrânia e a Cri méia O Brandenburgo adquiriu a Pomerânia no século XVII o Estado prussiano duplicou o seu tamanho com a conquista da Silésia no sé culo XVIII O Estado Habsburgo com base na Áustria reconquistou a Boêmia no século XVII submeteu a Hungria no XVIII e anexou a Croácia a Transilvânia e a Oltênia nos Bálcãs Finalmente a Rússia a Prússia e a Áustria dividiram entre si toda a Polônia outrora o maior Estado da Europa Este desenlace final forneceu uma simétrica demonstração da lógica e da necessidade de um superabsolutismo no Leste através do exemplo de sua ausência A reação senhoria das no brezas prussiana e russa encontrou sua expressão acabada num absolu tismo aperfeiçoado A sua homóloga polaca após uma não menos feroz sujeição do campesinato fracassou em construílo Ao preservar zelo samente os direitos individuais do menor dos cavaleiros diante de seus iguais e os direitos de todos eles frente a qualquer dinastia a pequena nobreza polaca cometeu um suicídio coletivo O seu medo patológico de um poder político centralizado acabou por institucionalizar uma anarquia nobiliária O resultado era previsível a Polônia foi varrida do mapa por seus vizinhos que demonstraram no campo de batalha a suprema necessidade do Estado absolutista A extrema militarização do Estado esteve relacionada à segunda mais importante peculiaridade do absolutismo tanto na Prússia como na Rússia Esta reside na natureza da ligação funcional entre os pro prietários feudais e as monarquias absolutistas A diferença crítica en tre as variantes ocidental e oriental evidenciase nos respectivos modos de integração da nobreza na nova burocracia por elas criada Nem na Prússia nem na Rússia existiu a venda de cargos em grande escala Os junkers do alémElba caracterizaramse por sua cupidez em relação à 31 V O Kliuchevsky A History of Rússia IV pp 1445 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 21 coisa pública no século XVI quando era geral a corrupção a malver sação de fundos do Estado o culto de sinecuras e as manipulações dos créditos régios32 Esta seria a época da incontestada dominação do Herrenstand e do Ritterschaft e da debilitação de toda a autoridade pública central O advento do absolutismo Hohenzollern no século XVII modificou radicalmente tal situação O novo Estado prussiano imporia a partir de então uma crescente probidade financeira na sua administração Passou a ser proibida a compra de posições vantajosas na burocracia por parte dos nobres É significativo que apenas nos enclaves socialmente muito mais avançados de Clêves e da Marca na Renânia onde havia uma burguesia urbana florescente a venda de cargos tenha sido oficialmente sancionada por Frederico Guilherme I e seus sucessores33 Na própria Prússia o serviço público era notoria mente conhecido por seu profissionalismo consciencioso Na Rússia por sua vez as fraudes e o desvio de fundos constituíam doenças en dêmicas nas máquinas políticas dos Estados moscovita e Romanov que perdiam regularmente uma grande quantidade de receitas por essa via No entanto tal fenômeno era meramente uma variedade direta e primi tiva do peculato e do furto embora numa escala caótica e imensa A venda de cargos propriamente dita como sistema regulamentado e legal de recrutamento para a burocracia jamais se estabeleceu ver dadeiramente na Rússia Tampouco representou uma prática signifi cativa no relativamente mais avançado Estado austríaco o qual ao contrário de alguns dos principados vizinhos do sul da Alemanha nunca abrigou uma classe de funcionários que tivesse comprado os seus postos na administração As razões que determinaram esta dispa ridade oriental em relação ao padrão do Ocidente são óbvias O minu cioso estudo de Swart sobre a distribuição do fenômeno da venda de cargos salienta com justeza a sua conexão com a existência de uma classe comercial local34 Em outras palavras no Ocidente a venda de cargos correspondia à sobredeterminação do Estado feudal tardio pelo rápido crescimento do capital mercantil e manufatureiro A relação contraditória que se estabeleceu entre função pública e indivíduos pri vados refletia as concepções medievais de soberania e contrato nas quais não estava presente uma ordem cívica impessoal no entanto 32 Hans Rosenberg The Rise of the Junfcers in BrandenburgPrússia 1410 1563 American Histórica Review outubro de 1943 p 20 33 Hans Rosenberg Bureaucracy Aristocracy and Autocracy The Prussian Experiencel6801815 Cambridge 1958 p 78 34 K W Swart Saíe ofOffices in the Seveníeeníh Century p 96 218 PERRY ANDERSON tratavase simultaneamente de uma relação monetária a refletir a pre sença e a interferência de uma economia monetária e de seus futuros senhores a burguesia urbana Comerciantes juristas e banqueiros te riam acesso à máquina do Estado se pudessem desembolsar as somas ne cessárias à compra de posições em seu seio A natureza de troca da tran sação era também obviamente um índice das relações internas de clas se entre a aristocracia e o seu Estado a unificação pela corrupção e não pela coerção gerou um absolutismo mais brando e mais avançado Por sua vez no Leste não havia burguesia urbana para infletir o caráter do Estado absolutista este não tinha a temperálo um setor mercantil As asfixiantes medidas antiurbanas das nobrezas da Prússia e da Polônia já foram mencionadas antes Na Rússia os czares contro lavam o comércio freqüentemente através de seus próprios monopó lios e administravam as cidades De forma singular os habitantes das cidades eram também servos Em decorrência disso o fenômeno híbrido da venda de cargos era impraticável Princípios rigorosamente feudais iriam presidir à construção da máquina do Estado O expe diente da nobreza de serviço foi em muitos aspectos o correlato orien tal da venda de cargos do Ocidente A classe dos junkers prussianos foi diretamente incorporada ao Comissariado da Guerra e a seus serviços financeiros e fiscais por recrutamento do Estado Na burocracia civil sempre existiria um importante fermento de elementos nãoaristocrá ticos ainda que via de regra estes ascendessem à nobreza quando al cançavam posições em seu topo5 Na área rural os junkers detinham um rigoroso controle sobre a Gutsbezirke local dotandose assim de uma completa panóplia de poderes fiscais jurídicos de polícia e alis tamento sobre os seus camponeses Também os órgãos burocráticos provinciais do serviço civil do século XVIII sugestivamente intitulados KriegsundDomãnenKammern Câmaras da Guerra e dos Domí nios passaram a ser cada vez mais dominados por eles No próprio exército os postos dos oficiaisgenerais constituíam uma reserva profis sional da classe fundiária Só os jovens provenientes da nobreza eram admitidos nas companhias e escolas de cadetes que ele Frederico Gui lherme I fundou e os oficiais nobres nãocomissionados eram mencio nados pelo nome nos relatórios trimestrais apresentados a seu filho indicando que esses nobres estavam eo ipso na categoria de aspirantes a oficial Embora muitos plebeus tenham sido comissionados durante o esforço da Guerra da Sucessão Espanhola estes foram removidos logo 35 Roenberg Bureaucracy Aristocracy and Autocracy pp 13943 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 219 após o seu término Dessa maneira a nobreza se tornou uma nobreza de serviço ela identificava os seus interesses com os do Estado que lhe garantia posições honrosas e lucros Na Áustria não havia um entrosamento tão rigoroso entre o apa relho do Estado absolutista e a aristocracia a insuperável heterogenei dade das classes fundiárias dos reinos Habsburgo o impedia Não obs tante também aí se verificou um esforço drástico embora incompleto de criação de uma nobreza de serviço com efeito a reconquista da Boêmia pelos Habsburgos durante a Guerra dos Trinta Anos foi se guida pela destruição sistemática das antigas aristocracias tcheca e ale mã dos territórios boêmios repovoados com uma nova nobreza estran geira de fé católica e origem cosmopolita que devia os seus domínios e fortuna inteiramente à vontade da dinastia que a criara A partir daí a nova nobreza boêmia iria fornecer a maior parte dos quadros do Estado Habsburgo tornandose a base social mais importante do abso lutismo austríaco Mas o abrupto radicalismo de sua construção a par tir de cima não iria reproduzirse nas formas subseqüentes de sua inte gração à máquina do Estado a organização dinástica compósita gover nada pelos Habsburgos tornaria impossível uma cooptação burocrática uniforme ou regulamentada da nobreza para o serviço do absolu tismo37 Os cargos militares acima de certos postos ou ao fim de certos períodos de serviço conferiam automaticamente títulos no entanto fal tou uma vinculação geral ou institucionalizada entre o serviço do Es tado e a ordem aristocrática em detrimento do poderio internacional do absolutismo austríaco Por outro lado no ambiente mais primitivo que vigorava na Rús sia os princípios de uma nobreza de serviço iriam muito mais longe que na Prússia Ivã IV promulgou aí um decreto em 1556 que tornava obrigatório a todos os senhores o serviço militar e estabelecia com pre cisão os contingentes de soldados a serem fornecidos conforme a exten são das terras consolidando assim a classe pomeshchik da pequena nobreza que começara a formarse ao tempo de seu predecessor Em contrapartida só aqueles que se encontravam ao serviço do Estado po deriam a partir de então possuir formalmente a terra na Rússia à parte as instituições religiosas Este sistema nunca alcançou na prática a universalidade ou a eficácia que lhe eram conferidas pela letra da lei e 36 Carsten The Origins of Prússia p 272 37 Schwarz contudo comenta que a antiga alta nobreza do Estado Habsburgo devia a sua ascensão essencialmente ao serviço no Conselho Privado imperial durante o século XVII The ImperialPrivy Councilin the Seventeenth Century p 410 220 PERRY ANDERSON de modo algum acabou com o poder autônomo da antiga classe dos grandes nobres boiardos cujos domínios continuaram sob o regime alodial Todavia apesar dos muitos meandros e vicissitudes os suces sores de Ivã souberam herdar e desenvolver a sua obra É de Blum o seguinte comentário sobre o primeiro Romanov O Estado que Miguel foi chamado a governar constituía um tipo único de organização polí tica Era um Estado de serviço e o czar era o seu chefe absoluto As atividades e os deveres de todos os súditos do mais importante senhor ao mais humilde camponês eram determinados pelo Estado em aten ção à sua política e aos seus interesses Todos os súditos estavam vin culados a certas funções específicas destinadas a preservar e engran decer o poder e a autoridade do Estado Os senhores estavam vincula dos ao serviço no exército e na burocracia e os camponeses estavam vinculados aos senhores de forma a fornecerlhes os meios para desem penhar a sua função no Estado Quaisquer liberdades ou privilégios de que um súdito pudesse gozar cabiamlhe apenas porque o Estado lhos concedera como atributo das funções desempenhadas ao seu servi ço Esta passagem constitui uma evocação retórica das pretensões da autocracia czarista ou samoderzhavie não uma descrição da pró pria estrutura efetiva do Estado as realidades práticas da formação social russa estavam longe de corresponder ao sistema político onipo tente que ela sugere A ideologia do absolutismo russo jamais coincidiu com os seus poderes materiais que sempre foram muito mais limitados do que pensaram os observadores ocidentais contemporâneos em geral inclinados ao exagero típico dos viajantes Ê no entanto indiscu tível à luz de qualquer perspectiva européia comparativa a peculiari dade do complexo de serviço público moscovita No final do século XVII e início do XVIII Pedro I generalizou e radicalizou ainda mais os seus princípios normativos Anulando a distinção entre os domínios condicionais e os hereditários ele assimilou as classes pomeshchik e boiarda Daí para a frente todos os nobres tornaramse servidores per manentes do czar A burocracia do Estado foi dividida em catorze ní veis hierárquicos implicando os oito níveis superiores um status nobre hereditário e os seis inferiores um status aristocrático nãohereditário Deste modo fundiramse organicamente a ordem feudal e a hierarquia burocrática o sistema da nobreza de serviço fazia do Estado em prin cípio um simulacro virtual da estrutura da classe fundiária sob o po der centralizado de seu delegado absoluto 38 JeromeBlum Lord and Peasant in Rússia p 150 Nobreza e monarquia a variante oriental Resta ainda examinar a questão do significado histórico da no breza de serviço É observando o desenvolvimento da relação entre a classe feudal e seu Estado desta vez no Leste que melhor poderemos realizálo Vimos já que antes da expansão do feudalismo ocidental em direção ao Leste na Idade Média as principais formações sociais es lavas da Europa oriental não tinham chegado a produzir uma organi zação feudal integralmente articulada do tipo da que resultou da sín tese romanogermânica no Ocidente Todas elas se encontravam em bora em estágios diferentes na fase de transição das federações tribais rudimentares das colonizações originais para hierarquias sociais estra tificadas com estruturas estatais estabilizadas O padrão típico como se recordará combinava uma aristocracia dominante de guerreiros com uma população heteróclita de camponeses livres servos por divi das e escravos capturados ao passo que a estrutura do Estado era ainda muitas vezes próxima ao sistema de séquito do chefe militar tradicional Mesmo a Rússia kieviana a área mais avançada de toda a região não tinha produzido uma monarquia unitária e hereditária O impacto do feudalismo ocidental sobre as formações sociais do Leste já foi analisado no plano de seus efeitos sobre o modo de produção pre dominante nos domínios e nas aldeias e sobre a organização das ci dades Tem sido menos estudada a sua influência sobre a própria no breza mas como vimos é evidente que se verificou uma crescente adaptação às normas hierárquicas ocidentais no seio da classe domi nante A alta aristocracia da Boêmia e da Polônia por exemplo ga 222 PERRY ANDERSON nhou forma precisamente entre os meados do século XII e o início do século XIV o período do apogeu da expansão germânica Foi também por essa época que surgiram os rytiri e os vladky tchecos ou a classe dos cavaleiros ao lado dos grandes senhores ou barones enquanto isso o uso de armas e títulos vindo da Alemanha era adotado em ambos os países na segunda metade do século XIII1 Na verdade na maior parte dos países orientais o sistema de títulos foi importado dos usos germâ nicos ou mais tarde dinamarqueses designações como conde mar quês duque e outras foram sucessivamente naturalizadas nos idiomas eslavos Não obstante ao longo de toda a era de expansão econômica dos séculos XI ao XIII e de depressão nos séculos XIV e XV destacamse dois traços fundamentais das classes dominantes do Leste que remon tam à ausência da síntese feudal ocidental Em primeiro lugar a insti tuição da posse condicional o sistema do feudo propriamente dito nunca chegou a estabelecerse verdadeiramente alémElba2 Ê certo que inicialmente ele seguiu as pegadas da colonização germânica e teve sempre mais força nas terras transelbianas permanentemente ocupadas pelos junkers alemães que em quaisquer outras Mas os domínios ger mânicos com dever de serviço de cavalaria no Leste eram formalmente alodiais no século XIV embora prestassem obrigações militares3 Por volta do século XV as facções de direito eram virtualmente ignoradas no Brandenburgo e o Rittergut tendia a tornarse um domínio heredi tário neste aspecto o processo não diferia muito do que tinha lugar no ocidente da Alemanha Também em outras regiões a posse condi cional não chegou a criar raízes Na Polônia os domínios alodiais ul trapassavam os feudos durante a Idade Média mas tal como na Ale manha oriental ambos os tipos de propriedade tinham dever de serviço militar embora mais atenuado no primeiro Á partir da segunda me tade do século XV a pequena nobreza obteve sucesso ao transformar muitos domínios feudais em propriedades alodiais contra os esforços 1 F Dvornik The Slavs Their Early History and Civilization p 324 idem The Slavs in European History and Civilization pp 1218 2 Bloch apreendeu bem este aspecto embora propondo uma explicação erro neamente culturalista ao afirmar que os eslavos nunca conheceram a distinção entre a concessão em troca de serviço e a pura doação Ver a sua nota Féodalité et Noblesse Polonaises Annales janeiro de 1939 pp 534 Na verdade a concessão de terras em troca de serviço foi conhecida na Rússia ocidental do século XIV ao século XVI e reapa receu depois no sistema áopomeste 3 Hermann Aubin The Lands East oi the Elbe and German Colonization Eastwards em The Agrarian Life of theMiddle Ages p 476 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 223 da monarquia para inverter tal processo De 1561 a 1588 a Sejm aca bou por votar diversos atos que comutavam a posse feudal em alodial em toda parte4 Na Rússia como vimos a típica propriedade boiarda foi sempre a votchina alodial a imposição a partir de cima do sistema condicional dopomest e foi obra posterior da autocracia czarista Em todos estes países ademais havia poucos ou não havia senhorios inter mediários entre os cavaleiros e os monarcas grandes proprietários do tipo daqueles que desempenharam um papel tão importante nas com pactas hierarquias feudais do Ocidente Com efeito não se conheciam as complexas cadeias de retrovassalagem ou subenfeudação Por outro lado também a autoridade pública nunca chegou a ser tão limitada ou dividida juridicamente como no Ocidente medieval Em todos esses paí ses os cargos da administração local eram preenchidos mais por nomea ção que por direito hereditário e os governantes detinham o direito for mal de cobrar impostos sobre toda a população camponesa que não es capava ao domínio público por via de imunidades ou jurisdições priva das integrais embora na prática os poderes jurídicos e fiscais dos prín cipes ou duques fossem com freqüência muito limitados Daí resultaria umarede de relações interfeudais muito menos coesa do que no Ocidente Não restam dúvidas de que este padrão estava ligado à situação espacial do feudalismo oriental Na mesma medida em que os vastos e escassamente povoados territórios do Leste criavam à nobreza proble mas específicos para a exploração do trabalho dada a possibilidade de fugas também criavam problemas especiais para a integração hierár quica da nobreza pelos príncipes e suseranos O caráter fronteiriço das formações sociais do Leste tornava extremamente difícil para os gover nantes dinásticos o reforço dos laços de vassalagem dos colonos mili tares ou dos senhores de terra num ambiente desprovido de limites que convidava às aventuras armadas e às veleidades anárquicas Em conseqüência a solidariedade feudal vertical era muito mais frágil do que no Ocidente Havia poucos vínculos orgânicos a ligar internamente as várias aristocracias Tal situação não se alterou substancialmente com a introdução do sistema senhorial durante a grande crise do feuda lismo europeu O cultivo dos domínios e o trabalho servil aproximavam agora mais estreitamente a agricultura oriental das normas de produ ção do princípio da época medieval no Ocidente Mas a reação senho rial que os criou não reproduziu simultaneamente o característico sis 4 P Skwarczyiíski The Problem of Feudalism in Poland up to the Beginning of the 16thcentury Slavonic and East European Review 34 19556 pp 2969 224 PERRY ANDERSON tema de feudos que os complementava Uma das conseqüências disso evidentemente foi a concentração do poder senhorial sobre o campe sinato em proporções desconhecidas no Ocidente onde o parcelamento da soberania e a propriedade escalonada criaram uma multiplicidade de jurisdições sobre os vilões com confusões e superposições objetiva mente propícias à resistência camponesa Na Europa oriental ao con trário a dominação territorial pessoal e econômica fundiase numa única autoridade senhorial que exercia direitos cumulativos sobre os servos subjugados5 Esta concentração de poderes podia ir tão longe que na Rússia e na Prússia os servos podiam na realidade ser vendidos a outros proprietários separadamente dos domínios em que trabalha vam uma condição de dependência pessoal próxima da pura escra vidão Portanto o sistema senhorial não afetou inicialmente o tipo pre dominante de propriedade aristocrática da terra embora o ampliasse largamente às custas das antigas terras comuns e das pequenas pro priedades camponesas Ao contrário aumentou o poder local despótico no seio da classe senhorial As duas ordens de pressões que acabaram por criar o Estado absolutista no Leste já foram salientadas acima O que importa reter é que a transição para o absolutismo não poderia ter seguido um per curso idêntico ao do Ocidente não apenas por causa do anulamento das cidades e da redução do campesinato à servidão mas também de vido ao caráter peculiar da nobreza que as realizou Esta não passara pela longa e secular adaptação a uma hierarquia feudal relativamente disciplinada capaz de preparar a sua integração a um absolutismo aris tocrático E no entanto uma vez confrontada com os riscos históricos da conquista estrangeira ou das deserções camponesas a nobreza ne cessitava de um instrumento capaz de dotála ex novo de uma unidade de ferro O tipo de integração política realizada pelo absolutismo na Rússia e na Prússia sempre carregou as marcas dessa situação de classe original Até aqui enfatizamos a rapidez com que andava o relógio do absolutismo na Europa oriental até que ponto ele se constituía numa estrutura política à frente das formações sociais que lhe serviam de base por que se nivelava com os Estados ocidentais com os quais se defrontava É agora necessário destacar o reverso da mesma contradi ção dialética Precisamente a construção do edifício absolutista mo 5 Skizkin insiste acertadamente neste ponto Osnovnye Problemy tak Nazy vaemovo Vlnmvo Izdaniya Krepostnichestva v Srednei i Vostochnoi Evrope pp 99100 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 225 derno no Leste requeria a criação da arcaica relação de serviço ou trora característica do sistema feudal do Ocidente Tal relação nunca criara raízes profundas no Leste todavia à medida que ia desapare cendo no Ocidente com o advento do absolutismo ela aparecia no Leste por exigência do absolutismo O exemplo mais nítido desse pro cesso foi sem dúvida a Rússia Os séculos de Idade Média que se se guiram à queda do Estado kieviano conheceram a autoridade política mediatizada e relações recíprocas de vassalagem e suserania entre prín cipes e nobres mas ambas dissociadas do senhorio dominial e da posse da terra que permaneceu dominada pela votchina alodial da classe boiarda6 A partir do início da época moderna contudo todo o pro gresso do czarismo foi construído sobre a conversão das posses alodiais em posses condicionais com a implantação do sistema pomest e no século XVI o seu predomínio sobre a votchina no século XVII e a fusão final de ambos no século XVIII Pela primeira vez a terra era dada em troca do serviço prestado pelo cavaleiro ao suserano feudal o czar numa réplica formal do feudo do Ocidente medieval Na Prússia não se verificou uma alteração jurídica assim radical do regime de posse da terra à parte a ampla recuperação dos domínios reais que se seguiu às alienações do século XVI pois aí sobreviviam ainda os traços de um sistema feudal Mas também neste país a dispersão horizontal da classe junker foi rompida por uma rigorosa integração vertical no Es tado absolutista sob o imperativo ideológico do dever universal da classe nobre de servir o seu suserano feudal Na verdade o ethos do serviço militar ao Estado assumiria na Prússia uma profundidade muito maior que na Rússia e acabaria por originar talvez a aristocracia mais dedicada e disciplinada da Europa Havia portanto uma necessidade menor da reforma jurídica e da coerção material que o czarismo se viu forçado a aplicar tão implacavelmente em seus esforços para obrigar a classe fundiária russa ao serviço militar do Estado7 Não obstante em 6 Há uma excelente delimitação e análise do importante padrão histórico em terras da Rússia no ensaio extremamente lúcido de Vernadsky Feudalism in Rússia Speculum vol 14 1939 pp 30023 À luz do sistema posterior dopomeste é impor tante salientar que as relações de vassalagem do período medieval eram genuinamente contratuais e recíprocas como se pode verificar pelas homenagens da época Para um relato e exemplos ver Alexandre Eck Lê Moyen Age Russe pp 195212 7 Devese notar entretanto que o absolutismo prussiano não desdenhava a coerção quando a julgava necessária O ReiSargento proibiu todo o deslocamento dos junkers ao estrangeiro que não tivesse o seu consentimento expresso a fim de obrigálos a servir como oficiais no exército A Goodwin Prússia em Goodwin Org TheEuro pean Nobility in the I8th Cenlury p 88 226 PERRY ANDERSON ambos os casos o renascimento da relação de prestação de serviço na Europa operou na verdade uma drástica modificação neste Com efeito o serviço militar agora exigido já não era devido simplesmente a um suserano feudal na cadeia mediatizada de dependência pessoal que era a hierarquia feudal da época medieva ele era prestado a um Estado absolutista hipercentralizado Tal deslocamento da relação trouxe duas conseqüências inevitá veis Em primeiro lugar o serviço em questão já não consistia na pres tação militar ocasional e autônoma do cavaleiro convocado pelo seu superior feudal a convencional excursão eqüestre de quarenta dias no campo de batalha estipulada por exemplo pelo sistema feudal normando Tratavase da introdução num aparelho burocrático com tendência a tornarse vocacional e permanente O caso extremo foi o da legislação de Pedro I que tornou o dvoriantsvo juridicamente vincu lado ao serviço vitalício do Estado Uma vez mais a própria ferocidade e irrealismo de tal sistema refletiam a crescente dificuldade prática de integrar a nobreza russa no aparelho de Estado czarista e não um alto grau de êxito efetivo nessa integração Não havia necessidade de tais medidas extremas na Prússia onde a classe junker era desde o início menor e mais maleável Em ambos os casos é evidente que o serviço burocrático propriamente dito fosse militar ou civil contradiz um princípio central do contrato feudal primitivo da Idade Média no Oci dente notadamente a sua natureza recíproca O sistema feudal pro priamente dito sempre compreendeu um componente explícito de mu tualidade o vassalo não tinha apenas deveres para com o senhor mas também direitos que este era obrigado a respeitar O direito medieval incluía expressamente a noção de felonia senhorial o rompimento ilegal do acordo por parte do superior feudal não por seu subordinado Parece agora óbvio que uma tal reciprocidade pessoal com as suas garantias jurídicas relativamente rigorosas era incompatível com um absolutismo consumado que pressupõe um novo e unilateral poder do aparelho de Estado centralizado Assim chegase a que o segundo traço distintivo da relação de serviço no Leste era necessariamente a sua heteronomia Opomeshchik não era um vassalo com direitos pró prios que pudesse invocar contra o czar Era um servidor que recebia domínios da autocracia e estava vinculado a esta por laços de incondi cional obediência A sua submissão era juridicamente direta e inequí voca não era mediatizada por instâncias intermediárias de uma hie rarquia feudal Esta concepção czarista extrema nunca foi assimilada na Prússia Mas também ali o elemento central da mutualidade estava totalmente ausente no vínculo entre o junker e o Estado Hohenzollern LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 227 O ideal do ReiSargento achavase notavelmente expresso na sua rei vindicação Devo ser servido com corpo e alma casa e riqueza honra e consciência tudo me é devido exceto a salvação eterna que per tence a Deus mas todo o resto a mim pertence8 Em nenhum país o culto da obediência militar mecânica a Kadavergehorsamkeit da bu rocracia e do exército prussianos impregnou do mesmo modo a no breza fundiária Nunca houve portanto no Leste uma réplica com pleta da síntese feudal do Ocidente quer antes quer depois da linha divisória da última crise medieval Em vez disso os elementos compo nentes desse feudalismo foram estranhamente recombinados em asso ciações aleatórias e assincrônicas sem que qualquer uma delas viesse jamais a possuir a coerência e a unidade da síntese primitiva Assim o sistema dominial funcionou tanto sob a anarquia nobiliária como sob o absolutismo centralizado a suserania dispersa existiu mas em épocas de posse nãocondicional da terra a posse condicional apareceu mas com laços de serviço nãorecíprocos a hierarquia feudal chegou a ser codificada no quadro de uma burocracia estatal O absolutismo constituiu ele próprio a mais paradoxal reconjugação de todas estas em termos ocidentais uma mistura bizarra de estruturas modernas e medievais conseqüência da peculiar temporalidade comprimida do Leste A própria adaptação dos proprietários de terra da Europa oriental ao advento do absolutismo não foi um processo suave sem vicissitudes tal como não o fora também no Ocidente Na verdade a szlachta polo nesa única entre as classes sociais desse tipo na Europa derrotou todos os esforços de criação de um poderoso Estado dinástico por ra zões que serão examinadas depois De modo geral no entanto a re lação entre monarquia e nobreza no Leste seguiu uma trajetória pouco diversa da ocorrida no Ocidente embora com certas características re gionais significativas Assim prevaleceu durante o século XVI uma relativa despreocupação aristocrática seguida por conflitos e turbulên cias generalizados no século XVII que cederam lugar a uma nova épo ca de confiante concórdia no século XVIII Não obstante este padrão político foi distinto do modelo ocidental em vários aspectos importan tes Para começar o processo de construção do Estado absolutista ori ginouse muito mais tarde no Leste Não houve verdadeiros equivalen tes das monarquias renascentistas da Europa ocidental na Europa 8 R A Dorwart The Administrative Reforms of Frederick William f of Prús sia Cambridge EUA 1953 p 226 228 PERRY ANDERSON oriental do mesmo século O Brandenburgo era ainda uma província estagnada sem o poder notável de um príncipe a Áustria estava emara nhada no sistema imperial medieval do Reich a Hungria perdera a sua dinastia tradicional e fora amplamente devastada pelos turcos a Polô nia continuou a ser uma comunidade aristocrática a Rússia viveu a experiência de uma prematura e forçada autocracia que logo entrou em colapso O único país que produziu uma cultura renascentista genuína foi a Polônia cujo sistema político era virtualmente o de uma república nobiliária O único país a conhecer uma poderosa monarquia préab solutista foi a Rússia cuja cultura permaneceu muito mais primitiva que a de qualquer outro Estado da região Fenômenos diversos mas ambos de curta vida Foi somente no século seguinte que Estados abso lutistas duráveis seriam edificados no Leste após a plena integração militar e diplomática do continente em um único sistema internacional e a conseqüente pressão ocidental que resultou de sua formação O destino das assembléias dos Estados na região foi sempre o mais claro indício do progresso da absolutização Os três sistemas de Estados mais poderosos do Leste eram os da Polônia da Hungria e da Boêmia todos reivindicavam o direito constitucional de eleger seus respectivos monarcas A Sejm polonesa uma assembléia bicameral na qual apenas os nobres estavam representados não apenas frustrou a ascensão de uma autoridade monárquica central na Comunidade após as suas significativas vitórias no século XVI como aumentou as prer rogativas anárquicas da pequena nobreza com a introdução do liberum veto no século XVII pelo qual qualquer membro da Sejm a podia dis solver com um simples voto negativo A Polônia foi um caso único na Europa a posição da aristocracia era de tal modo inabalável que nem mesmo chegou a ocorrer nessa época um conflito sério entre a monar quia e a nobreza pois nenhum dos reis eleitos conseguiu jamais acu mular poder suficiente para desafiar a constituição szlachta Na Hun gria pelo contrário os Estados tradicionais entraram em choque fron tal com a dinastia Habsburgo quando esta encaminhouse para a cen tralização administrativa a partir do final do século XVI A pequena nobreza magiar incentivada pelo particularismo nacionalista e prote gida pelo poderio turco resistiu ao absolutismo com toda a força ne nhuma outra nobreza européia registrou uma luta tão feroz e persis tente contra a intromissão da monarquia Importantes parcelas de classe fundiária húngara levantaramse em armas contra o Hofburg nada menos que quatro vezes no espaço de cem anos em 16048 162021 167882 e 170111 sob a chefia de Bocskay Bethlen Tõ kõlli e Rákôczi Ao final deste longo e virulento conflito o separatismo LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 229 magiar fora efetivamente esmagado e a Hungria passou a ser ocupada por exércitos absolutistas unitários enquanto os servos locais eram su jeitos a impostos centralizados Mas em quase todos os outros aspec tos os privilégios dos Estados foram preservados e a soberania Habs burgo na Hungria ficou como uma pálida sombra de sua homóloga austríaca Na Boêmia em contraste a revolta da Snem que precipitou a Guerra dos Trinta Anos foi suprimida na batalha da Montanha Bran ca em 1620 a vitória do absolutismo austríaco em território tcheco foi total e definitiva extinguindo por completo a antiga nobreza boêmia Os sistemas de Estados sobreviveram formalmente tanto na Áustria como na Boêmia mas tornaramse via de regra obedientes caixas de ressonância da dinastia Não obstante nas duas regiões que viram nascer os mais desen volvidos e dominadores Estados absolutistas da Europa oriental o pa drão histórico foi diferente Na Prússia e na Rússia não ocorreram grandes revoltas aristocráticas contra a iminência de um Estado centra lizado Na verdade é notável que na difícil fase de transição para o absolutismo a nobreza desses países tenha desempenhado um papel menos proeminente do que as suas homólogas ocidentais nos levantes políticos da época Os Estados Hohenzollern e Romanov nunca se de frontaram com fenômenos equivalentes às Guerras Religiosas à Fron da à Revolta Catalã ou mesmo à Peregrinação da Graça Em ambos os países o sistema de Estados exauriuse por volta do final do século XVII sem protestos ou lamúrias O Landtag do Brandenburgo anuiu passivamente ao crescente absolutismo do Grande Eleitor após o re cesso de 1653 A única resistência séria a este veio dos burgueses de Konigsberg os proprietários da Prússia oriental ao contrário aceita ram a supressão sumária pelo Grande Eleitor dos antigos direitos do ducado sem grandes desassossegos As implacáveis medidas antiurba nas adotadas pelas nobrezas orientais tiveram aí o seu efeito uma vez posto em marcha o processo de absolutização9 Na Prússia as relações entre a dinastia e a nobreza de forma alguma estiveram ao abrigo de tensões e desconfianças no fim do século XVII e início do século XVIII nem o Grande Eleitor nem o ReiSargento foram monarcas populares para a sua própria classe que foi muitas vezes rudemente tratada por eles Mas nunca se verificou uma ruptura grave entre monarquia e aris 9 O Landtag prussiano existiu oficialmente até lena mas na prática já na década de 1680 tinha apenas funções decorativas No século XVIII reuniase apenas para prestar homenagem aos novos reis que subiam ao trono 230 PERRY ANDERSON tocracia sequer de caráter transitório na Prússia desta época Na Rús sia a assembléia dos Estados a Zemsky Sobor era uma instituição particularmente frágil e sediciosa10 criada originalmente por Ivã IV por razões táticas no século XVI A sua composição e convocação eram em geral facilmente manipuladas pelos grupos da corte na capital o princípio dos Estados como tal nunca alcançou uma vida indepen dente na Moscóvia As divisões sociais no seio da classe fundiária entre o estrato dos grandes senhores boiardos e a pequena nobreza pome shchik cuja ascensão fora promovida pelos czares do século XVI con tribuíram para enfraquecêlo ainda mais Assim embora tivessem se desenvolvido gigantescas lutas sociais durante a transição para o absolutismo numa escala muito superior a tudo o que se viu na Europa ocidental elas foram dominadas pelas classes exploradas rurais e urbanas e não pelas classes privilegiadas e proprietárias que no seu conjunto revelaram uma considerável pru dência nas suas relações com o czarismo Através da nossa história escreveria o conde Stroganov num memorando confidencial a Alexan dre l têm sido os camponeses a fonte de todas as perturbações ao passo que a nobreza nunca se mexeu se o governo tem uma força a temer ou grupo a vigiar esse é o dos servos e não qualquer outra classe11 Os grandes acontecimentos do século XVII que pontuaram a decadência da Zemsky Sobor e da Duma boiarda não foram revoltas separatistas dos nobres mas as guerras camponesas de Bolotnikov e Razin os motins urbanos dos artesãos de Moscou os surtos de turbu lência cossaca ao longo do Dnieper e do Don Tais conflitos configura ram o contexto histórico em que se resolveram as contradições intra feudais entre os boiardos e ospomeshchik por sua vez tão agudas como jamais o foram na Prússia Durante a maior parte do século XVII grupos boiardos controlaram a máquina central do Estado na ausên cia de czares fortes enquanto a pequena nobreza perdia terreno poli ticamente mas os interesses sociais de ambos estavam protegidos pelas novas estruturas do absolutismo russo à medida que este se ia gra dualmente consolidando A repressão autocrática a um ou outro aristo crata foi na Rússia é certo muito mais feroz que no Ocidente na falta de um equivalente das tradições jurídicas da última fase medieval Mas nem por isso deixa de ser surpreendente a estabilidade conseguida pela monarquia russa mesmo quando pequenos grupos da corte ou do exér 10 Ver a aguda análise de suas atividades em J L H Keep The Decline of the Zemsky Sobor TheSlavonic andEast European Review 3619578 pp 10022 11 Ver H SetonWatson The RussianEmpire 18011917 Oxford 1967 p 77 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 231 cito no seio da nobreza travavam lutas febris pelo seu controle a força da função absolutista ultrapassava de tão longe a dos ocupantes nomi nais do trono que depois de Pedro I a vida política pôde tornarse por algum tempo uma agitada série de intrigas e golpes de guardas pala cianos sem que isto afetasse os poderes do czarismo como tal e sem que a estabilidade política do país se achasse ameaçada Na realidade o século XVIII presenciou o apogeu da harmonia entre a aristocracia e a monarquia na Prússia e na Rússia tal como na Europa ocidental Esta foi a época em que a nobreza de ambos os países adotou o francês como a língua culta da classe dominante o idioma em que Catarina II haviade declarar candidamente Je suis une aristocrate cest mon métier a epígrafe da era12 A consonância entre a classe fundiária e o Estado absolutista foi de fato ainda maior nas duas grandes monarquias do Leste do que no Ocidente A debili dade histórica dos elementos contratuais e de reciprocidade que carac terizaram a vassalagem feudal na Europa oriental na época anterior já foram aqui assinaladas A hierarquia de serviço do absolutismo russo e prussiano nunca reproduziu o compromisso recíproco da homenagem medieval uma pirâmide burocrática excluía necessariamente os votos interpessoais de uma hierarquia senhorial colocando ordens onde ha via compromissos Mas o abandono das garantias individuais entre se nhor e vassalo que em princípio asseguravam uma relação cavalhei resca entre eles não significava que os nobres orientais estivessem por isso entregues à arbitrariedade ou à tirania implacável de seus monar cas Com efeito a aristocracia enquanto classe estaya coletivamente ratificada no seu poder social pela natureza objetiva do Estado que se erguia acima dela O serviço prestado pela nobreza na máquina do absolutismo era a garantia de que o Estado absolutista servia aos inte resses políticos da nobreza O vínculo que os unia envolvia mais coação do que no Ocidente mas também uma maior intimidade Desse modo as normas gerais do absolutismo europeu apesar das aparências ideo lógicas nunca foram seriamente violadas no Leste A propriedade pri vada e a segurança da ciasse fundiária permaneceram como o talismã doméstico dos regimes monárquicos por mais autocráücas que fossem 12 A difusão do francês entre as classes dominantes da Prússia Áustria e Rús sia no século XVIII evidencia naturalmente a inexistência na Europa oriental da feição protonacionalista adquirida pelo absolutismo da Europa ocidental numa época anterior o que por sua vez era determinado pela falta de uma burguesia ascendente no Leste europeu desta fase A monarquia prussiana como é óbvio continuou a mostrarse con fessadamente hostil aos ideais nacionalistas até a véspera da unificação da Alemanha a austríaca até o final de sua existência 232 PERRY ANDERSON as suas pretensões13 A composição da nobreza podia ser forçosamente alterada e embaralhada nas grandes crises como acontecia no Oci dente medieval a sua implantação estrutural na formação social sem pre se mantinha O absolutismo oriental não menos queo ocidental detevese nos portões dos domínios inversamente a aristocracia buscou a sua riqueza e o seu poder fundamentais na posse estável da terra e não na permanência temporária no Estado O grosso da propriedade agrária mantevese juridicamente hereditário e individualizado no seio da classe nobre em toda a Europa Os graus da nobreza podiam com binarse com postos no exército e na administração mas nunca foram reduzidos a estes os títulos sempre subsistiram fora do serviço do Es tado indicando mais honra do que função Não surpreende portanto que a parábola das relações entre a monarquia e a aristocracia no Leste fosse a despeito das grandes dife renças no conjunto da formação histórica das duas metades da Europa tão semelhante àquela que se desenhou no Ocidente O imperioso ad vento do absolutismo encontrou inicialmente a incompreensão e a re cusa depois passada a confusão e a resistência este foi finalmente aceito e acolhido pela classe fundiária Em toda a Europa o século XVIII foi uma época de reconciliação entre a monarquia e a nobreza Na Prússia Frederico II encetou uma política confessadamente aristo crática de recrutamento e promoção no aparelho do Estado absolutista excluindo os estrangeiros e os roturiers de qualquer posto que outrora haviam ocupado no exército e no serviço civil Também na Rússia os oficiais de carreira estrangeiros que tinham sido um dos principais esteios dos regimentos czaristas modernizados do final do século XVII foram afastados e o dvorianstvo reocupou seu lugar nas forças arma das imperiais enquanto os seus privilégios administrativos provinciais eram generosamente ampliados e confirmados pela Carta da Nobreza de Catarina II No império austríaco Maria Tereza conseguiu mesmo diluir numa extensão sem precedentes a hostilidade húngara para 13 A mais flagrante demonstração dos estritos limites objetivos ao poder abso lutista iria ser o prolongado sucesso da resistência da nobreza russa ao czar quando este favoreceu a emancipação dos servos no século XIX Por essa altura tanto Alexandre I como Nicolau I dois dos mais poderosos monarcas que a Rússia conhecera consi deravam pessoalmente que a servidão era em princípio um entrave social embora na prática acabassem por transferir mais camponeses para a dependência privada Mesmo quando a emancipação foi finalmente decretada por Alexandre II na segunda metade do século XIX a forma de sua implementação foi largamente determinada pelos movimen tos de oposição de uma aristocracia combativa Para tais episódios ver SetonWatson TheRussian Empire pp 778 2279 3937 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 233 com a dinastia Habsburgo ligando os grandes senhores magiares à vida da corte de Viena e criando uma Guarda Húngara especial para o seu serviço pessoal na capital Em meados do século o poder central das monarquias era maior do que nunca e não obstante a relação entre os respectivos governantes e os proprietários de terras do Leste era mais estreita e pacífica que em qualquer outra época passada Além disso e ao contrário do Ocidente o absolutismo tardio do Leste estava então em seu apogeu político O despotismo iluminado do século XVIII foi essencialmente um acontecimento da Europa central e orien tal l simbolizado pelos três monarcas que finalmente partilharam a Polônia Frederico II Catarina II e José II O coro de louvores entoado à sua obra pelos philosophes burgueses do iluminismo ocidental por todos os seus equívocos tantas vezes irônicos não foi simplesmente um mero acidente histórico a energia dinâmica e a competência pareciam terse passado para Berlim Viena e São Petersburgo Este período cor respondeu ao ponto alto do desenvolvimento do exército da burocra cia da diplomacia e da política econômica mercantilista do absolu tismo no Leste A partilha da Polônia calma e coletivamente efetivada em desafio às potências ocidentais impotentes às vésperas da Revolu ção Francesa aparece como um símbolo de sua ascensão internacional Ansiosos por mirarse no espelho da civilização ocidental os go vernantes absolutistas da Prússia e da Rússia inspiravamse assidua mente nos feitos passados dos seus êmulos da França ou da Espanha e incensavam os escritores ocidentais que ali chegavam para que regis trassem o seu esplendor15 Em alguns aspectos limitados os absolutis mos ocidentais desse século foram curiosamente mais avançados do 14 Este fato ressalta claramente do melhor estudo recente sobre o assunto Lê Despotismo Ecluiré de François Bluche Paris 1968 O livro de Bluche oferece uma pri morosa análise comparada dos despotismos iluminados do século XVIII O seu quadro explicativo é porém deficiente baseandose essencialmente numa teoria de exemplos generativos pela qual Luís XIV teria fornecido um modelo original de governo que ins pirou Frederico II o qual por sua vez inspirou os outros soberanos da época pp 3445 Sem negarmos a importância do fenômeno relativamente novo da imitação inter nacional consciente entre Estados no século XVIII saltam à vista as limitações de uma tal genealogia 15 Os comentários tecidos por Bluche sobre a incauta e crédula admiração dos philosophes pelos monarcas do Leste são sardônicos e vigorosos Lê Despotisme Edairé pp 31740 Voltaire foi o coryphée do absolutismo prussiano na pessoa de Frederico K Diderot o do absolutismo russo na pessoa de Catarina II ao passo que Rousseau carac teristicamente reservava os seus louvores para a classe dos proprietários rurais da Polô nia aos quais aconselhava a não se precipitarem na abolição da servidão Os fisiocratas Mercier de Ia Rivière e De Quesnay elogiaram genericamente os méritos do despotismo jurídico e patrimonial 234 PERRY ANDERSON que seus protótipos ocidentais do século anterior devido à evolução geral da época Enquanto Filipe II e Luís XIV expulsaram imprevi dentemente os mariscos e os huguenotes Frederico II não apenas aco lheu os refugiados religiosos como estabeleceu no estrangeiro escritó rios de imigração a fim de promover o crescimento demográfico de seu reino uma nova volta no parafuso do mercantilismo Políticas popu lacionais foram também fomentadas na Áustria e na Rússia que pro moveram ambiciosos programas de colonização no Banat e na Ucrânia A tolerância religiosa e o anticlericalismo foram oficialmente encora jados na Áustria e na Prússia em contraste com a Espanha ou a Fran ça16 Inaugurouse ou expandiuse a educação pública e notáveis pro gressos foram conseguidos nas duas monarquias germânicas particu larmente nos reinos Habsburgo O recrutamento foi introduzido em toda a parte com maior êxito na Rússia No aspecto econômico o mercantilismo e o protecionismo absolutistas foram perseguidos com vigor Catarina presidiu à grande expansão da indústria metalúrgica dos Urais e levou a cabo uma grande reforma monetária na Rússia Tanto Frederico II como José II duplicaram o número de estabeleci mentos industriais nos seus reinos na Áustria o mercantilismo tradi cional foi mesmo atenuado pelas influências mais modernas da fisio cracia com sua ênfase na produção agrária e nas virtudes do laissez faire doméstico Todavia nenhum desses avanços aparentes alterou realmente o caráter e a posição relativos dos exemplares orientais do absolutismo europeu na época do iluminismo As estruturas subjacentes a essas mo narquias permaneciam arcaicas e retrógradas mesmo no momento de seu maior prestígio A Áustria abalada pela derrota na guerra contra a Prússia foi o cenário de uma tentativa monárquica de restaurar o po der do Estado através da emancipação do campesinato17 as reformas 16 José II podia declarar no tom da época A tolerância religiosa é um efeito desse benéfico crescimento do saber que agora ilumina a Europa e que devemos à filo sofia e ao esforço de grandes homens é uma prova convincente do aprimoramento da mentalidade humana que ousadamente reabriu através dos domínios da superstição um caminho que fora trilhado há séculos por Zoroastro e Confúcío o qual para a fortuna da humanidade é agora a estrada dos reis S K Padover The Revolutionary Etnperor Joseph U 17411790 Londres 1934 p 206 17 O primeiro projeto oficial de abolição das corvéias dos robots e de distri buição de terras ao campesinato foi esboçado em 1764 pelo Hofkriegsrat com o objetivo de aprimorar o recrutamento para o exercito W E Wright Serf Seigneur and Sove reign Agrarian Refortn in Eighteenth Century Bohemia Minneapolis 1966 p 56 Em seu conjunto o programa de José II deve ser sempre considerado no quadro das humilhações militares Habsburgo na Guerra da Sucessão da Áustria e na Guerra dos Sete Anos LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 235 agrárias de José II acabaram porém em fracasso inevitável uma vez que a monarquia se achou isolada da sua nobreza circundante O abso lutismo austríaco foi sempre débil e inferior O futuro estava com os absolutismos russo e prussiano A servidão foi preservada por Frede rico II e ampliada por Catarina II os fundamentos senhoriais do abso lutismo oriental sobreviveram intatos nas duas potências dominantes da região até o século seguinte Então mais uma vez seria o impacto do ataque militar do Ocidente que outrora contribuíra para trazer à luz o absolutismo oriental que poria fim à servidão sobre a qual este se assentara Agora o assalto veio de Estados capitalistas e era impossível resistirlhe A vitória de Napoleão em lena levou diretamente à eman cipação jurídica do campesinato prussiano em 1811 A derrota de Ale xandre II na Criméia precipitou a emancipação formal dos servos rus sos em 1861 Não obstante em nenhum dos casos estas reformas re presentariam o fim do próprio absolutismo na Europa oriental O pe ríodo de vida de ambos ao contrário das expectativas lineares mas em conformidade com a marcha oblíqua da história não coincidiu o Es tado absolutista no Leste como veremos haveria de sobreviver à aboli ção da servidão Prússia Após analisar os seus determinantes comuns podemos agora considerar brevemente a evolução divergente das formações sociais es pecíficas do Leste A Prússia representa o caso europeu clássico de um desenvolvimento desigual e combinado que acabaria originando o maior Estado do capitalismo industrializado do continente a partir de um dos menores e mais atrasados territórios feudais do Báltico Os pro blemas teóricos colocados por esta trajetória foram propostos especifi camente por Engels na sua famosa carta a Bloch de 1890 sobre a importância irredutível dos sistemas jurídico político e cultural na es trutura de toda a determinação histórica Segundo a concepção ma terialista da história o elemento determinante em última instância na história é a produção e a reprodução da vida real Nem eu nem Marx afirmamos mais do que isso Também o Estado prussiano nasceu e se desenvolveu a partir de causas históricas em última instância eco nômicas Mas seria difícil defender sem pedantismo que entre os vários pequenos Estados do norte da Alemanha o Brandenburgo tenha si do especificamente determinado pela necessidade econômica para se tornar a grande potência que personificou as diferenças econômi cas lingüísticas e depois da Reforma também religiosas entre o norte e o sul e não igualmente por outros elementos acima de tudo pelo seu entrelaçamento com a Polônia devido à posse da Prússia e portanto com as relações políticas internacionais que na ver dade foram também decisivas na formação do poder dinástico na LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 237 Áustria Ao mesmo tempo parece evidente que as complexas causas da supremacia do Brandenburgo contêm também a resposta ao grande enigma de toda a história da Alemanha moderna por que razão a uni ficação nacional da Alemanha na época da Revolução Industrial reali zouse em última análise sob a égide política do domínio agrário dos junkers da Prússia A ascensão do Estado Hohenzollern em outras pa lavras concentra de uma forma particularmente clara algumas das questões gerais fundamentais sobre a natureza e a função do absolu tismo no desenvolvimento político da Europa Os seus primórdios não foram particularmente auspiciosos A casa Hohenzollern foi originalmente transplantada pelo imperador Se gismundo durante a sua luta contra a revolução hussita na Boêmia do sul da Alemanha onde fora tradicionalmente uma linhagem aristo crática em forte desacordo com a cidade comercial de Nuremberg para o Brandenburgo no início do século XV Frederico o primeiro margrave Hohenzollern do Brandenburgo foi feito Eleitor do Império pelos serviços prestados a Segismundo em 14152 O margrave que o sucedeu suprimiu a autonomia municipal de Berlim enquanto os seus sucessores capturaram à Liga Hanseática as outras cidades da Marca subordinandoas por sua vez Por volta do início do século XVI como vimos não havia no Brandenburgo cidades livres Todavia a derrota das cidades assegurou a supremacia da nobreza às custas da dinastia nessa remota zona de fronteira A aristocracia local aumentou rapida mente os seus domínios cercando as terras comunais das aldeias e 1 Marx e Engels Selected Correspondence p 417 Althusser selecionou tal passagem como uma pedra de toque no seu famoso ensaio Contradiction et surdéter mination Pour Marx Paris 1967 mas limitase a demonstrar a importância teórica geral das formulações de Engels sem propor qualquer solução para os problemas histó ricos reais por elas levantados A ênfase expressa de Engels no caráter complexo e sobre determinado da ascensão prussiana é tanto mais notável quando comparada com os comentários de Marx sobre o mesmo tema Com efeito Marx precisamente reduz a emergência do Estado Hohenzollern no Brandenburgo a uma caricatura virtual da neces sidade meramente econômica Em seu artigo de 1856 Das gõttliche Recht der Hohen zollern Werke vol 12 pp 95101 ele atribuía a elevação da dinastia simplesmente a uma sórdida série de subornos Os Hohenzollern adquiriram o Brandenburgo a Prússia e o título real através do mero suborno Em sua correspondência privada com Engels ã mesma época usa uma fraseologia semelhante Pequenos furtos suborno compra di reta procedimentos ilícitos para apropriarse de heranças etc é de tais mesquinha rias que é feita a história da Prússia Selected Correspondence p 96 Este materia lismo vulgar e extremado é um alerta contra os riscos de tomar como ponto pacifico uma superioridade geral de Marx sobre Engels especificamente no campo histórico um exame da perspicácia de ambos revelará talvez de modo geral um resultado oposto 2 Para o contexto deste gesto ver Barraclough The OriginsoGermanyp38 238 PERRY ANDERSON privou os pequenos camponeses de suas terras à medida que o cultivo para a exportação se tornava mais lucrativo Ao mesmo tempo a classe fundiária abarcava os graus mais altos da justiça comprava os domí nios do Eleitorado e monopolizava os cargos administrativos enquanto uma série de monarcas incapazes afundavamse em dívidas crescentes e em impotência Um enraizado sistema de Estados sob o domínio da nobreza vetou o desenvolvimento de um exército permanente e vir tualmente de qualquer política externa fazendo do Eleitorado um dos mais nítidos exemplos de um Stãndestaat descentralizado na Alema nha da Reforma Assim após a crise econômica do fim da Idade Mé dia o Brandenburgo instalouse numa modesta prosperidade domi nial com um poder monárquico muito débil na época da revolução dos preços no Ocidente Beneficiandose com os lucros do comércio do trigo mas sem dar mostras de um impulso político mais agressivo a sociedade junker configurouse por todo o século XVI como uma região atrasada provinciana e sonolenta3 Entretanto a Prússia oriental tor narase feudo hereditário de um outro ramo da família Hohenzollern quando Alberto Hohenzollern feriu a Ordem Teutônica na pessoa de seu grãomestre ao tomar o partido da Reforma em 1525 obtendo de seu suserano polonês o título secular de duque A dissolução da ordem religiosamilitar dominante há muito decadente desde que fora derro tada e subjugada pela Polônia no século XV levou à fusão de seus ca valeiros com os proprietários de terras laicos e daí à criação de uma classe senhorial unificada pela primeira vez na Prússia oriental Uma revolta camponesa contra o novo regime foi prontamente esmagada e consolidouse assim uma sociedade muito semelhante à do Branden burgo No campo prosseguiram as expulsões e a servidão compulsória enquanto os arrendatários livres em breve se viam reduzidos à condição de vilões Por outro lado um pequeno estrato de Cõlmer outrora pe quenos servidores dos cavaleiros teutônicos conseguiu sobreviver No século anterior quase todas as cidades com alguma importância tinham sido anexadas pela Polônia com a exceção de Kõnigsberg a única cidade relativamente grande e destemida da região No aspecto consti tucional o poder do príncipe no novo ducado era muito limitado e frágil embora os próprios territórios ducais fossem extensos Os Es tados da Prússia na realidade detinham talvez privilégios mais amplos 3 Hans Rosenberg The Rise of the Junkers in BrandenburgPrussia 1653 American Hiatorical Review outubro de 1943 pp 122 e janeiro de l044 22842 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 239 do que qualquer outra instituição desse tipo na Alemanha incluindo nomeações para a administração poderes judiciais e direitos perma nentes de apelar à monarquia polonesa contra os duques4 O signifi cado internacional da Prússia oriental era então ainda menor que o do Brandenburgo Em 1618 os dois principados até então politicamente separa dos foram reunidos quando o Eleitor do Brandenburgo subiu ao trono da Prússia oriental através de um casamento entre famílias no entanto o ducado continuou a ser um feudo da Polônia Quatro anos antes uma outra conquista geográfica fora efetuada na Baixa Renânia quando os dois pequenos territórios de Clèves e da Marca enclaves ocidentais densamente povoados e urbanizados foram acrescentados por herança ao patrimônio Hohenzollern Contudo as novas aquisições dinásticas do início do século XVII continuaram desprovidas de uma ligação territorial com o Brandenburgo estrategicamente as três pos sessões do Eleitor estavam dispersas e vulneráveis Pelos padrões ale mães o próprio Eleitorado era ainda um Estado isolado e indigente merecendo dos contemporâneos o apelido de caixa de areia do Santo Império Romano Nada indicava que o Brandenburgo ou a Prússia desempenhariam um dia um papel relevante nas questões da Alema nha ou da Europa5 Foram os vendavais da Guerra dos Trinta Anos e da expansão sueca que arrastaram o Estado Hohenzollern para fora de sua inércia O Brandenburgo ingressou pela primeira vez no mapa da política internacional quando os exércitos imperiais de Wallenstein marcharam vitoriosos através da Alemanha rumo ao Báltico O Eleitor Jorge Guilherme um luterano hostil à perspectiva de um governante calvinista em Praga alinharase politicamente ao imperador Habsburgo Fernando II quando dos acontecimentos da Boêmia que estiveram na origem do conflito um papel militar estava além de suas possibili dades uma vez que efetivamente não possuía qualquer exército Não obstante o seu indefeso território foi ocupado e pilhado pelas tropas austríacas em 1627 enquanto Wallenstein instalarase pessoalmente em Mecklenburgo Nesse ínterim Gustavo Adolfo conquistara na Prússia oriental PUau e Memel as duas fortalezas que defendiam Kò nigsberg na continuação de sua guerra com a Polônia e a seguir lan çava impostos sobre todo o tráfico marítimo para o ducado Então em 1631 o exército expedicionário sueco desembarcava na Pomerânia e 4 Carslen The Origins of Prússia pp 1689 5 Idemp 174 240 PERRY ANDERSON invadia o Brandenburgo Jorge Guilherme que fugira para a Prússia oriental em desespero de causa foi forçado por Gustavo Adolfo a mu dar de partido e declararse contra a causa imperial Quatro anos mais tarde desertava para assinar uma paz separada com o imperador Mas por todo o período de duração da Guerra dos Trinta Anos as tropas suecas ficaram acampadas no Eleitorado que se achava à mercê das suas extorsões fiscais Os Estados foram naturalmente postos de lado pela potência ocupante O Brandenburgo despediuse do longo conflito tão passivamente como nele entrara De forma paradoxal po rém ganhou com o Tratado de Vestfália pois durante a guerra a Pomerânia retornara juridicamente à linhagem Hohenzollern com a morte de seu último duque A conquista sueca da Pomerânia a prin cipal base do Báltico para as operações nórdicas no círculo da Baixa Saxônia impedira esta herança de se efetivar durante a guerra mas por insistência dos franceses o lado mais pobre e oriental da província foi então relutantemente entregue ao Brandenburgo que obteve tam bém compensações menores ao sul e a oeste do Eleitorado No plano externo o Estado Hohenzollern emergiu da Guerra dos Trinta Anos sem grandes créditos políticos ou militares ainda que territorialmente ampliado pela paz No plano interno as suas instituições tradicionais achavamse profundamente abaladas mas nenhuma instituição nova aparecera para as substituir O novo Eleitor o jovem Frederico Guilherme I que fora educado na Holanda ingressou em seu patrimônio pela primeira vez em condi ções normais apôs a conclusão da paz A experiência das décadas de ocupação estrangeira deixara duas lições indeléveis a necessidade ur gente de constituir um exército capaz de enfrentar a expansão imperial no Báltico e em complemento o exemplo administrativo do sistema coercitivo de coleta de impostos dos suecos exercido no Brandenburgo e na Prússia oriental em desafio aos protestos dos Estados locais A preocupação imediata do Eleitor foi portanto assegurar uma base fi nanceira estável para a criação de um aparelho militar permanente de defesa e integração de seus domínios As forças Vasa não evacuaram de fato a Pomerânia oriental até 1654 Então em 1652 o Eleitor reuniu um Landtag geral no Brandenburgo convocando para ele toda a no breza e todas as cidades da Marca com o propósito de instituir um novo sistema financeiro que sustentasse o exército real Seguiuse uma longa disputa com os Estados que terminou no ano seguinte com o famoso Recesso de 1653 consagrando os primórdios do pacto social entre o Eleitor e a aristocracia que haveria de servir de alicerce perma nente ao absolutismo prussiano Os Estados recusaramse a conceder LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 241 impostos regulares mas votaram um subsídio de meio milhão de tale res por seis anos para a construção de um exército que seria o núcleo do futuro Estado burocrático Em contrapartida o Eleitor decretou que daí para a frente todos os camponeses do Brandenburgo seriam considerados servos Leibeigene salvo prova em contrário as jurisdi ções senhoriais foram confirmadas impediuse a compra de proprieda des da nobreza por parte dos plebeus e a imunidade fiscal aristocrática foi preservada6 Passados dois anos da conclusão desse contrato a guerra rebentou outra vez no Báltico com o ataque relâmpago da Sué cia à Polônia em 1655 Frederico Guilherme escolheu o partido sueco neste conflito e em 1656 o seu recémcriado exército entrou em Var sóvia lado a lado com as tropas de Carlos X A recuperação militar polonesa sustentada pela intervenção russa e austríaca em breve en fraqueceu a posição dos suecos atacados também à retaguarda pela Dinamarca Em razão disso o Brandenburgo mudou habilmente de partido em troca da renúncia formal da suserania polaca sobre a Prús sia oriental O Tratado de Labiau em 1657 estabeleceu pela primeira vez a soberania incondicional dos Hohenzollern sobre o ducado O Elei tor ocupou então rapidamente a Pomerânia ocidental com o recurso a uma força mista de poloneses austríacos e brandenburgueses Con tudo o Tratado de Oliva em 1660 restituiu essa província à Suécia com a restauração da paz por insistência dos franceses A Guerra do Báltico de 165660 alterou entretanto de modo abrupto e drástico o equilíbrio interno de forças no seio das possessões Hohenzollern No Brandenburgo na Prússia oriental e em Clèves Marca o Eleitor banira todos os favores constitucionais em nome da necessidade militar cobrando impostos sem o consentimento das as sembléias locais e constituindo uma força militar de 22 mil homens reduzida à metade mas não dispersada com a cessação das hostili dades Tornouse então possível um confronto mais drástico com o par ticularismo dos Estados A Prússia oriental onde a nobreza se acostu mara a recostarse na suserania polaca para resistir às pretensões Ho henzollern e onde as cidades exprimiram abertamente o seu descon tentamento durante a guerra foi o primeiro local a experimentar o novo poderio do Eleitorado Em 166163 foi convocada uma longa ses são do Landtag A recusa dos burgueses de Kònigsberg em aceitar a plena soberania dináslica no ducado foi rompida pela prisão sumária do cabeça da resistência urbana e instituiuse um imposto regular para 6 ídempp 1859 242 PERRY ANDERSON a manutenção do exército O Eleitor teve que prometer a convocação trienal dos Estados e a nãodecretação de impostos a partir daí sem o seu consentimento mas estas concessões viriam a revelarse em grande parte formais Enquanto isso em Clèves e na Marca os Estados foram forçados a aceitar o direito do monarca de ai instalar tropas e nomear oficiais à sua vontade Em 1672 a Guerra FrancoHolandesa lançou o Estado Hohen zollern aliado diplomático e cliente financeiro das Províncias Unidas em novo conflito militar desta vez em escala européia Por volta de 1674 o Eleitor era o comandante titular das forças alemãs combinadas em luta contra a França no Palatinado e na Alsácia No ano seguinte a Suécia invadiu o Brandenburgo como aliada da França na ausência do Eleitor Retornando às pressas à pátria Frederico Guilherme devol veu o golpe na batalha de Fehrbellin em 1675 onde pela primeira vez as tropas brandenburguesas bateram os veteranos escandinavos nas regiões pantanosas a noroeste de Berlim Por volta de 1678 toda a Pomerânia sueca fora invadida pelo Eleitor Mas uma vez mais a inter venção francesa rouboulhe as conquistas os exércitos Bourbon mar charam sobre Clèves e a Marca e ameaçaram Minden o posto avan çado Hohenzollern no oeste A França pôde assim ordenar a restituição da Pomerânia ocidental à Suécia em 1679 Improfícua no aspecto geo gráfico esta guerra foi contudo proveitosa no plano institucional para a construção de um absolutismo monárquico A Prússia foi submetida a impostos territoriais e de consumo sem o consentimento de uma assem bléia representativa apesar dos murmúrios de dissidência dos nobres e das sonoras ameaças de revota burguesa KÒnigsberg foi o centro da resistência em 1674 um súbito golpe militar apoderouse da cidade e esmagou definitivamente a sua autonomia municipal A partir daí os Estados da Prússia votaram documente as grandes contribuições que lhes foram exigidas ao longo de toda a guerra7 A assinatura da paz não trouxe qualquer abrandamento na con centração do poder nas mãos do Eleitor Em 1680 impôsse no Bran denburgo um imposto urbano obrigatório deliberadamente limitado às cidades com o fim de separar a nobreza dos burgos Um ano depois o mesmo separatismo fiscal foi ensaiado na Prússia oriental e por volta do final do reinado do Eleitor fora estendido à Pomerânia Magde burgo e Minden Os encargos rurais eram suportados apenas pelos camponeses no Brandenburgo e em Clèves e na Marca na Prússia 7 Idem pp 21921 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 243 oriental a nobreza prestava urna leve contribuição mas o grosso dos encargos era sustentado pelos seus arrendatários A divisão adminis trativa entre cidade e campo criada por esse dualismo fracionou irre mediavelmente a oposição social potencial ao absolutismo Os impostos foram de fato confinados às cidades e aos camponeses numa propor ção de três para dois A nova carga fiscal foi particularmente danosa para as cidades pois a imunidade aos impostos de que gozavam as cer vejarias e outras empresas nos seus domínios permitia aos proprietários de terra competir impunemente com as manufaturas urbanas O pode rio econômico das cidades do Brandenburgo e da Prússia oriental já muito abalado pela depressão gera do século XVII foi portanto ain da mais reduzido graças à política do Estado E logo que o imposto de consumo adquiriu um caráter permanente as cidades ficaram efetiva mente privadas de maior representação no Landtag Em contraste a nobreza recebeu um tratamento especial tanto no aspecto financeiro como no jurídico Não apenas os seus privilégios tradicionais foram confirmados nas principais províncias orientais como nos enclaves oci dentais de Clèves e da Marca o Eleitor chegou a conferir de novo juris dições senhoriais e imunidade fiscal à aristocracia local que nunca antes as possuíra8 O gélido clima econômico do final do século XVII proporcionou à classe fundiária um novo incentivo para se aliar ao edi fício político do poder monárquico então em ascensão nos reinos Ho henzollern as perspectivas de colocação em seu seio constituíam um convite adicional ao abandono das posições retrógradas ditadas pela tradição Com efeito enquanto o sistema de Estados era aceleradamente demolido o aparelho burocráticomilitar do absolutismo centralizado foi rápida e inexoravelmente edificado Desde 1604 existia o Conselho Privado para a Marca do Brandenburgo mas este foi em pouco tempo colonizado pelos nobres locais tornandose um organismo paroquial e sem importância cujas atividades desapareceram virtualmente por completo durante a Guerra dos Trinta Anos Frederico Guilherme o revitalizou após a Paz de Vestfália quando ele passou a assumir inter mitentemente a direção central dos domínios Hohenzollern ainda que se mantivesse particularista na sua forma subjacente e primitivo no seu funcionamento administrativo No entanto durante a guerra de 1665 1670 foi criado um departamento especializado para a condução dos assuntos militares em todos os territórios da dinastia o Generalkriegs 8 Idem pp 2369 2469 244 PERRY ANDERSON kommissariat Com o restabelecimento da paz tal comissariado viuse reduzido em suas funções e em seu pessoal mas não foi abolido sobre viveu sob o controle formal do Conselho Privado Até então a evolução do absolutismo brandenburguês seguira uma via administrativa seme lhante à das primeiras monarquias ocidentais A eclosão da guerra de 167278 marcou uma súbita e decisiva virada Com efeito o General kriegskommissariat começou então a comandar quase toda a máquina do Estado Em 1674 foi formada uma Generalkriegskasse que no es paço de uma década tornouse o erário central dos Hohenzollern à medida que a coleta fiscal era cada vez mais confiada aos funcionários do Comissariado Em 1679 o Generalkriegskommissariat passou a ser chefiado por um soldado de carreira o aristocrata pomerânio Von Grumbkow alargaramse as suas fileiras em seu interior foi criada uma hierarquia burocrática e a suas responsabilidades externas foram diversificadas No curso da década seguinte organizou a colonização dos refugiados huguenotes e dirigiu uma política de imigração con trolou o sistema das corporações nas cidades supervisionou o comércio e as manufaturas e lançou as bases dos empreendimentos navais e colo niais do Estado O Generalkriegskommissar tornouse pessoalmente na prática chefe do EstadoMaior ministro da Guerra e ministro das Finanças O Conselho Privado viuse tolhido por este crescimento imen so A burocracia do Comissariado era recrutada numa base unitária e interprovincial utilizada como principal arma da dinastia contra o particularismo local e as assembléias renitentes9 Todavia o General kriegskommissariat nunca foi em qualquer sentido uma arma contra a própria aristocracia Ao contrário os seus escalões superiores eram preenchidos por nobres de escol tanto no nível central como no provin cial os plebeus concentravamse no departamento comparativamente menos importante da coleta dos impostos urbanos A função primordial desse aparelho tentacular que era o Comis sariado era evidentemente assegurar a manutenção e a expansão das forças armadas do Estado Hohenzollern Com este fim as receitas ge rais foram triplicadas entre 1640 e 1688 uma renda fiscal per capita quase duas vezes mais elevada que a da França de Luís XIV um país muito rico Quando da ascensão de Frederico Guilherme o Branden burgo possuía apenas um exército de 4 mil homens ao final do reinado daquele a quem os contemporâneos chamavam o Grande Eleitor estava de pé um exército permanente de 30 mil soldados bem treinados 9 Idempp 25965 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 245 comandados por um corpo de oficiais recrutado na classe junker e im buído de lealdade marcial para com a dinastia10 A morte do Grande Eleitor revelou até que ponto a sua obra era sólida Frederico o seu fútil e inconseqüente sucessor comprometeu a casa Hohenzollern na coligação européia contra a França a partir de 1688 Os contingentes brandenburgueses desobrigaramse com competência de sua missão nas guerras da Liga de Augsburgo e da Sucessão Espanhola ao passo que o príncipe reinante recorria a empréstimos externos devido às suas extravagâncias internas e fracassava em assegurar qualquer ganho ter ritorial com a sua política externa A única realização de destaque des se reinado foi a aquisição pela dinastia do título monárquico de rei da Prússia concedido por via diplomática em 1701 pelo imperador Car los VI em troca de uma aliança oficial HabsburgoHohenzollern e juridicamente garantido pelo fato de a Prússia oriental ficar fora das fronteiras do Reich onde estavam vedadas as monarquias abaixo da dignidade imperial Não obstante a monarquia prussiana continuou a ser um Estado pequeno e atrasado empoleirado nas margens do nor deste da Alemanha A população total dos territórios Hohenzollern não passava de l milhão de almas nos últimos anos do reinado do Grande Eleitor 270 mil no Brandenburgo 400 mil na Prússia oriental 150 mil em ClèvesMarca e talvez uns 180 mil nos domínios menores À morte de Frederico I em 1713 o reino da Prússia ainda não dispunha de mais de l milhão e 600 mil habitantes Este modesto legado seria notavelmente engrandecido pelo novo rei Frederico Guilherme I O ReiSargento votou a sua carreira à edi ficação do exército prussiano que duplicou os seus contingentes de 40 para 80 mil homens no reinado de um homem que simbolicamente foi o primeiro príncipe europeu a vestir permanentemente o uniforme A eficácia e o treinamento militares eram as obsessões reais as obras de intendência e as fábricas de tecidos para o suprimento do exército fo ram incansavelmente promovidas foi introduzido o recrutamento fun douse uma escola de cadetes para os jovens da nobreza e o serviço de oficiais em exércitos estrangeiros foi rigorosamente proibido o comis sariado da guerra foi reorganizado sob o comando do filho de Von Grumbkow A utilização das novas tropas foi extremamente prudente a Pomerânia ocidental foi afinal tomada à Suécia em 1719 quando a Prússia aliouse à Rússia e à Dinamarca contra Carlos XII nas etapas finais da Grande Guerra do Norte Por outro lado o exército era cau 10 Idempp 26671 246 PERRY ANDERSON telosamente secundado por uma diplomacia pacífica Também a buro cracia foi reorganizada e racionalizada O aparelho de Estado estivera até então dividido entre o domínio e o comissariado isto é as agências financeiras privada e pública da monarquia responsáveis res pectivamente pela administração dos domínios reais e pela coleta dos impostos civis Estas duas divisões fundiramse agora num único pilar central com a memorável designação de GeneralOberFinanzKriegs undDomãnenDirektorium com responsabilidade sobre todos os en cargos administrativos à exceção dos negócios estrangeiros a justiça e a Igreja Criouse um corpo de polícia secreta ou de fiscais especiais para exercer vigilância sobre o serviço públicon A economia foi objeto de não menor atenção Na área rural fizeramse investimentos em di ques drenagens e projetos de povoamento com o recurso a técnicas e profissionais holandeses Imigrantes franceses e alemães foram contra tados para trabalhar nas manufaturas locais controladas pelo Estado O mercantilismo real incentivou a indústria têxtil e outros produtos de exportação Ao mesmo tempo as despesas da corte foram contidas em um mínimo frugal O resultado foi que o ReiSargento governava no final de seu reinado uma receita anual de 7 milhões de taleres e legou a seu sucessor um excedente fiscal de 8 milhões de taleres Talvez ainda mais importante é o fato de que a população do reino tenha alcançado os 2 milhões e 250 mil habitantes crescendo quase 40 por cento em menos de três décadas12 Em 1740 a Prússia acumulara silenciosa mente as precondições sociais e materiais que fariam dela uma gran de potência européia sob o comando geral de Frederico II e que em última instância a levaram a assegurar a liderança da unificação alemã Podese assim levantar a questão qual era a configuração polí tica geral da Alemanha que tornou lógica e possível a futura suprema cia da Prússia no seu seio E inversamente quais os traços específicos que distinguiam o absolutismo Hohenzollern dos Estados territoriais rivais no interior do Sacro Império Romano com condições semelhan tes para reivindicar a ascendência germânica no início da época mo derna A princípio é possível traçar uma simples linha divisória básica 11 Para uma análise da estrutura e funcionamento do Generaloberdirektvrium ver R A Dorwart The Administrative Reforms of Frederick William I of Prússia pp 1709 No seio da administração os fiscais não eram assalariados mas recebiam co missões sobre as multas resultantes das ações iniciadas por suas investigações 12 H Holborn A History of Modem Germany 16481840 Londres 1965 pp 192202 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 247 ao longo do Reich separando as suas regiões ocidental e oriental A Alemanha ocidental estava em seu conjunto salpicada de cidades A partir da Alta Idade Média a Renânia foi uma das mais florescentes zonas comerciais da Europa situada ao longo das rotas de comércio que ligavam as duas civilizações urbanas de Flandres e da Itália e beneficiandose da mais longa via fluvial natural do continente No centro e no norte a Liga Hanseática dominava as economias do Báltico e do mar do Norte estendendose desde a Vestfália até os postos colo niais avançados de Riga e Reval na Livônia até Estocolmo e Bergen na Escandinávia ao mesmo tempo que detinha posições privilegiadas em Bruges e em Londres No sudoeste as cidades da Suábia benefi ciavamse do comércio transalpino e dos excepcionais recursos em mi nérios de que dispunha o seu território A importância particular de cada uma dessas cidades nunca foi suficientemente grande para criar cidadesEstados do tipo italiano com extensas terras de cultivo a elas sujeitas aquelas que chegaram a dispor de um modesto cinturão agrí cola como Nuremberg constituíam mais a exceção do que a regra O seu tamanho era em média consideravelmente menor do que o das cidades da Itália Por volta de 1500 de cerca de 3 mil cidades alemãs apenas quinze tinham população superior a 10 mil habitantes e so mente duas tinham mais que 30 mil habitantes13 Augsburgo a maior delas contava 50 mil almas numa época em que Veneza e Milão contavam mais de 100 mil Por outro lado a sua força e vitalidade tinhamlhes assegurado durante a Idade Média a posição de cidades livres imperiais sujeitas apenas à suserania nominal do imperador havia deste tipo 85 cidades e tinham dado mostras de uma capaci dade política para a ação coletiva à escala regional que alarmara os príncipes territoriais do império Em 1254 as cidades renanas forma ram uma liga militar defensiva em 1358 as cidades hanseáticas con cluíram a sua federação econômica em 1376 as cidades suábias cria ram uma associação armada contra o conde de Wittenberg A Bula de Ouro de meados do século XIV proibiu oficialmente as ligas urbanas mas isto não impediu as cidades renanas e suábias de assinarem um pacto de união da Alemanha meridional em 1381 que acabou por ser esmagado por um exército dos príncipes sete anos mais tarde durante a escuridão da última depressão feudal e a concomitante anarquia no seio ao Reich Não obstante o crescimento econômico das cidades teu 13 H Holborn A History of Modem Germany The Reformation Londres 1965 p 38 248 PERRY ANDERSON tônicas foi rapidamente retomado na segunda metade do século XV e atingiu o seu apogeu no período entre 1480 e 1530 quando a Alemanha converteuse numa espécie de centro diversificado do comércio euro peu A Liga Hanseática foi essencialmente uma associação comercial que não possuía muitas empresas manufatureiras nas cidades propria mente ditas os seus lucros eram provenientes dos entrepostos comer ciais de cereais e do controle da pesca do arenque somados às transa ções financeiras internacionais A Renânia com as cidades mais anti gas da Alemanha contava indústrias tradicionais de linho lã e metais além do controle das vias comerciais entre Flandres e a Lombardia A prosperidade das cidades suábias era mais recente mas a mais flores cente de todas as indústrias têxteis a mineração e a metalurgia confe riamlhes uma avançada base produtiva à qual se acrescentavam as fortunas financeiras dos Fuggers e dos Welsers na época de Carlos V Na virada do século XVI as cidades do sul da Alemanha superavam as suas parceiras italianas pelo menos quanto à capacidade tecnológica e ao progresso industrial Elas foram as pontas de lança do primeiro avanço popular da Reforma Contudo a expansão da economia urbana na Alemanha declinou subitamente em meados do século A adversidade adquiriu vários as pectos interrei acionados De início verificouse uma lenta inversão da relação entre os preços agrícolas e industriais à medida que a demanda ultrapassava a oferta de gêneros alimentícios e os preços dos cereais elevavamse rapidamente A ausência de uma integração estrutural co meçou a tornarse cada vez mais evidente na própria rede comercial da Alemanha Os extremos setentrional e meridional do longo arco de ci dades que ia do mar do Norte até os Alpes nunca estiveram propria mente ligados num sistema articulado14 A Liga Hanseática e as ci dades renanassuábias sempre constituíram setores mercantis separa dos com zonas de influência e mercados distintos O comércio marí timo propriamente dito o trunfo mais importante de todo o comércio medieval confinavase à Hansa que outrora dominara os mares da Inglaterra à Rússia Mas a partir de meados do século XV as frotas mais competitivas da Holanda e da Zelândia melhor concebidas e equipadas romperam a tenaz monopolística dos portos hanseáücos nas águas do Norte As frotas holandesas de pesca apossaramse dos 14 Os marxistas enfatizaram muitas vezes este ponto ver inter alia o represen tativo ensaio de Lukács Uber einige Eigentümlichkeiten Entwicklung Deutschland Die Zersiõrung der Vernunft NeuwiedBerlim 1962 p 38 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 249 pesqueiros de arenque que migravam da costa do Báltico para a da Noruega enquanto os cargueiros da Holanda atravessaram o comércio de cereais de Dantzig Por volta de 1500 os navios batavos que cruza vam o estreito do Sund suplantavam os alemães na proporção de cinco para quatro A prosperidade hanseática atingira portanto o apogeu durante o período da máxima expansão comercial da Alemanha em seu conjunto A Liga ainda continuava rica e poderosa na década de 1520 como vimos Lübeck servira de meio para a instalação de Gustavo Vasa na Suécia e a derrubada de Cristiano II na Dinamarca O grande aumento absoluto do tráfego do Báltico durante o século XVI compensou em certa medida o precipitado declínio da parte que aí lhe cabia Mas a Liga perdeu as suas posições vantajosas em Flandres foi privada de seus privilégios na Inglaterra 1556 e por volta do fim do século estava reduzida a apenas um quarto do volume da navegação holandesa através do Sund15 Cada vez mais dividida entre as suas alas vestfalianas e vêneda era uma força exaurida Enquanto isso as cida des renanas eram também vítimas de um modo diferente do dina mismo holandês Com efeito a Revolta dos Países Baixos levara ao fechamento do rio Escalda em 1585 depois da conquista espanhola da Antuérpia o término tradicional do tráfego rio abaixo e daí re sultará um estreito controle dos próprios estuários do Reno pelas Pro víncias Unidas Assim a grande expansão do poderio naval e manufa tureiro dos Países Baixos no final do século XVI e início do século XVII comprimiu ou asfixiou gradualmente a economia renana situada rio acima desde que o capital holandês dominava as suas saídas para o mar As cidades mais antigas da Renânia tendiam por conseguinte a retirarse a um conservantismo rotineiro com o seu arcaico sistema corporativo sufocando qualquer adaptação às novas circunstâncias Colônia a mais ilustre foi uma das poucas grandes cidades alemãs a manterse como um bastião do catolicismo tradicional ao longo de todo o século As novas indústrias da região tendiam a estabelecerse em localidades menores e rurais livres de restrições corporativas Por sua vez as cidades do sudoeste dispunham de uma base ma nufatureira mais sólida e o seu bemestar durou mais tempo Mas com a enorme expansão do comércio marítimo internacional a partir da época dos descobrimentos a sua posição interior tornouse um impor tante obstáculo econômico ao passo que a utilização do Danúbio como compensação estava bloqueada pelos turcos As espetaculares opera 15 H Holborn A History of Modern Germany The Refvrmation pp 512 250 PERRY ANDERSON ções das casas bancárias de Augsburgo no sistema imperial habsbur guês ao financiar Carlos V e Filipe II em sucessivas aventuras milita res acarretaram as suas próprias punições Os Fuggers e os Welsers finalmente se arruinaram devido a seus empréstimos à dinastia Para doxalmente as cidades italianas cujo declínio relativo tivera início mais cedo terminaram o século XVI numa situação de maior pros peridade do que a das cidades alemãs cujo futuro parecia melhor asse gurado à época do saque de Roma por um exército de Landsknechten A economia mediterrânea resistira aos efeitos da ascensão do comércio do Atlântico por um tempo mais longo que a da enclausurada Suábia Naturalmente o refluxo dos centros urbanos na Alemanha desta época não foi uniforme Algumas cidades notadamente Hamburgo Frank furt e em menor grau Leipzig fizeram rápidos progressos e atingi ram grande importância econômica no período 15001600 Pelos pa drões da época a Alemanha ocidental continuava a ser no início do século XVII uma região de modo geral rica e urbanizada embora já não registrasse um crescimento substancial A relativa densidade ur bana demarcava assim um complexo padrão político semelhante ao do norte da Itália Pois também aí precisamente em razão do poderio e da pluralidade das cidades mercantis não havia espaço para a expansão do absolutismo aristocrático O ambiente social de toda a região era avesso aos grandes Estados monárquicos e não apareceu nenhum prín cipe com poder territorial de importância Faltava a nobreza domi nante necessária à sua construção Ao mesmo tempo porém as pró prias cidades da Renânia e da Suábia embora numerosas eram mais fracas que as da Toscana ou da Lombardia Elas via de regra nunca possuíram um contado rural do tipo italiano durante o período medie val e na época moderna mostraramse incapazes de evoluir para cida desEstados propriamente ditas comparáveis às senhorias de Milão ou Florença ou às oligarquias de Veneza e de Gênova16 A relação política entre a classe senhoria e as cidades era portanto bastante diversa na Alemanha ocidental Em vez de um mapa simplificado de uns poucos Estados urbanos de média dimensão governados por aventureiros ou 16 São contundentes os comentários de Brecht sobre a mentalidade cívica das cidades livres da Alemanha em geral e da sua Ausburgo natal em particular como nos relata Benjamin Understanding Brecht Londres 1973 p 119 Constituem um curioso contraponto às desiludidas reflexões de Gramsci sobre as cidades italianas da mesma época Com efeito Brecht admirava as cidades italianas da Renascença ao passo que Gramsci louvava a Reforma urbana na Alemanha cada qual procurava a virtude histó rica no vício nacional do outro LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 251 patrícios neoaristocratas havia uma multiplicidade de pequenas cida des livres em meio a um labirinto de diminutos principados Os pequenos Estados territoriais da Alemanha ocidental distin guiamse em particular por um notável contingente de principados eclesiásticos Dos quatro eleitores ocidentais do Império três eram ar cebispados Colônia Mogúncia e Treviso Estes curiosos fósseis polí ticos datavam do início da época feudal quando os imperadores saxões e suábios tinham usado o aparelho eclesiástico como um de seus prin cipais instrumentos de dominação regional Enquanto na Itália o domí nio episcopal cedo fora derrubado nas cidades do norte onde o prin cipal perigo que ameaçava as comunas eram os desígnios políticos de sucessivos imperadores e o principal aliado delas contra estes era o papado na Alemanha pelo contrário os imperadores tinham em geral patrocinado tanto a autonomia urbana como a autoridade episcopal contra as pretensões dos barões e príncipes seculares em conluio com as intrigas papais Em conseqüência tanto os pequenos Estados eclesiás ticos como as cidades livres conseguiram sobreviver até o início da época moderna No campo a propriedade agrária tomou por toda a parte a forma da GrundkerrscHaft na qual os arrendatários campone ses livres pagavam tributos em espécie ou em gêneros pela posse da terra a senhores feudais que com freqüência eram proprietários ab senteístas No sudoeste da Alemanha um grande número de nobres menores resistiu com êxito à absorção por principados territoriais me diante a aquisição do estatuto de cavaleiros imperiais com dever de vassalagem direta ao próprio imperador no lugar da homenagem ao senhor local Por volta do século XVI havia cerca de 2500 desses Reichsritter cujas possessões territoriais não ultrapassavam no total mais de 65 mil hectares Muitos deles é certo tornaramse mercená rios empedernidos e sem escrúpulos mas muitas outras famílias inte graramse nos peculiares complexos políticoeclesiásticos disseminados por toda a Alemanha ocidental ocupando neles cargos e prebendas17 duas formas sociais anacrônicas que se perpetuavam mutuamente Neste panorama confuso não havia lugar para o desenvolvimento de um Estado absolutista sólido ou convencional mesmo numa escala re gional Os dois principados seculares mais importantes no oeste eram o Palatinado do Reno e o ducado de Württemberg Ambos continham muitos cavaleiros imperiais e pequenas cidades mas não uma nobreza territorial importante Württemberg com os seus 400 a 500 mil habi 17 Holborn A History of Modem Germany Tke Reformaíion pp 31 38 252 PERRY ANDERSON tantes nunca jogou um papel significativo no conjunto da política ale mã ou pareceu poder fazêlo O Palatinado que fornecia us quatro eleitores ocidentais do império e controlava os tributos do médio Reno era um Estado mais rico e considerável cujos governantes adquiriram uma autoridade absolutista relativamente precoce no século XVI Mas a sua única tentativa de expansão importante a fatal pretensão de Frederico a Boêmia no início do século XVII que detonou a Guerra dos Trinta Anos condenouo ao desastre poucas áreas da Alemanha foram tão fustigadas pelos exércitos contendores no conflito militar eu ropeu que se seguiu O final do século XVII e o início do século XVIII trouxeram poucos intervalos para a recuperação Tanto o Palatinado como Württemberg estiveram na linha de frente das guerras de Luís XIV de 1672 a 1714 e foram selvagemente devastados não só pelas tropas francesas como pelos soldados do império A vulnerabilidade estratégica desses dois principados ocidentais somavase às suas limita ções territoriais Por volta de meados do século XVIII constituíam meramente o dinheiro miúdo da diplomacia internacional sem peso político dentro da própria Alemanha Assim o terreno histórico representado pela Alemanha ocidental fmostrouse incompatível com a emergência de qualquer absolutismo importante A mesma necessidade histórica que determinou a sua au sência no Oeste assegurou que todas as experiências significativas de construção de um Estado absolutista que demonstraram uma possibi lidade real de estabelecimento de uma hegemonia definitiva no seio do império viessem do Leste Excluindo de momento os territórios Habs burgo na Áustria e na Boêmia que serão considerados mais tarde as chances futuras de uma unidade germânica assentavam basica mente nos três Estados orientais que formavam uma fileira do Ti rol ao Báltico Baviera Saxônia e Brandenburgo A partir do sé culo XVI eram estes os únicos verdadeiros candidatos à liderança de uma Alemanha unificada à parte a Casa da Áustria Com efeito foi apenas no leste mais atrasado e de colonização mais recente onde as cidades eram mais fracas e em muito menor número que uma forte máquina absolutista livre das amarras da proliferação urbana e apoiada numa poderosa nobreza pôde se desenvolver Para com preendermos por que foi o mais setentrional destes Estados que assu miu a ascendência final na Alemanha é necessário examinar a estru 18 Para as condições sociais em Württemberg e no Palatinado ver F L Cars ten Princes and Purliaments in Germany Oxford 1959 pp 24 3417 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 253 tura interna de cada um deles A Baviera era de longe o mais antigo peça importante do império carolíngio e um dos grandes ducados de estirpe do século X No final do século XII a Casa Wittelsbach tor nouse senhora da Baviera Daí para a frente nenhuma outra linhagem viria a suplantála a dinastia Wittelbach viria a conseguir o mais longo recorde jamais superado de domínio sobre a sua região hereditária em relação a qualquer outra família reinante na Europa 11801918 As suas possessões foram freqüentemente subdivididas durante a Idade Média mas em 1505 foram reunificadas outra vez por Alberto IV num único e poderoso ducado cerca de três vezes mais extenso que a Marca do Brandenburgo Durante os levantes religiosos do século XVI opta ram sem hesitação pela causa católica e fizeram do seu reino o mais sólido baluarte da ContraReforma na Alemanha A sua enérgica su pressão do luteranismo foi acompanhada pela firme insubordinação dos Estados locais principal foco de resistência protestante no ducado Consumouse o controle dinástico sobre o arcebispado de Colônia que mantevese como uma importante conexão familiar com a Renânia por quase dois séculos após 1583 Os governantes Wittelsbach responsá veis por este programa político e religioso introduziram também os pri meiros complementos burocráticos do absolutismo na Baviera uma Câmara de Finanças um Conselho Privado e um Conselho de Guerra moldados segundo a linha austríaca todos fundados na década de 1580 As influências administrativas provenientes da Áustria não signi ficam porém que a Baviera fosse em qualquer sentido um satélite Habsburgo nessa época Na realidade a ContraReforma na Baviera foi muito mais avançada que a austríaca e forneceu tanto o exemplo como os agentes da recatolicização dos territórios Habsburgo o futuro imperador Fernando II foi ele próprio um produto da educação jesuí ta em Ingolstadt numa época em que o protestantismo era ainda a fé dominante das classes fundiárias na Boêmia e na Áustria Em 1597 Maximiliano I ascendeu ao título ducal e em breve mostrouse o mais resoluto e capaz dos governantes da Alemanha Convocando um Land tag submisso apenas duas vezes antes da Guerra dos Trinta Anos con centrou todos os poderes judiciais financeiros políticos e diplomáticos em sua pessoa duplicou os impostos e acumulou 2 milhões de florins de reserva para uma caixa de guerra Assim quando eclodiu a Guerra dos Trinta Anos a Baviera era o líder natural dos Estados católicos da Alemanha contra a ameaça de uma tomada do poder pelos calvinistas na Boêmia Maximiliano I recrutou e equipou um exército de 24 mil homens para a Liga Católica que viria a desempenhar um papel vital na vitória da Montanha Branca em 1620 para no ano seguinte atacar 254 PERRY ANDERSON e conquistar o Palatinado Ao longo das prolongadas vicissitudes do conflito militar subseqüente o duque lançou pesados impostos sobre o seu reino com completo descaso pelos protestos do comitê dos Estados diante do custo de seus esforços de guerra em 1648 a Baviera tinha pago nada menos que 70 por cento das despesas totais em que haviam incorrido os exércitos da Liga Católica durante a Guerra dos Trinta Anos a qual entrementes devastara a economia local e dizimara a po pulação levando o ducado a uma profunda depressão19 Não obstante MaximíHano emergiu da Paz da Vestfália como o mais poderoso mo narca da Alemanha praticando um absolutismo mais desinibido e in flexível que o de Frederico Guilherme no Brandenburgo depois dele A Baviera fora ampliada pela anexação do Alto Palatinado e adquirira a dignidade de Eleitorado Parecia o mais forte Estado cinicamente alemão do império O futuro porém iria desmentir tais aparências O absolutismo bávaro consumarase precocemente mas assentava em bases muito li mitadas e inelásticas A estrutura social do ducado efetivamente não permitiria uma grande expansão posterior cortando pela raiz qualquer pretensão do Estado Wittelsbach a um papel panalemão de destaque A formação social bávara ao contrário da de Württemberg ou do Pala tinado não continha muitas cidades livres ou cavaleiros imperiais Muito menos urbanizada que estes principados ocidentais as suas ci dades eram quase todas de exíguas dimensões Munique a capital tinha apenas 12 mil habitantes em 1500 e menos que 14 mil em 1700 A aristocracia local constituíase de proprietários de terra tradicionais que deviam vassalagem direta à autoridade ducal Foi naturalmente esta configuração social que tornou possível o rápido surgimento de um Estado absolutista na Baviera e a sua posterior estabilidade e longe vidade Por outro lado a natureza da sociedade rural bávara não era propícia a qualquer expansão dinâmica de seu reino Pois se a nobreza era numerosa os seus domínios eram limitados e dispersos O campe sinato por ela controlado formava um estrato de arrendatários livres que pagavam aos seus senhores tributos relativamente leves as presta ções de serviço nunca adquiriram uma importância real chegando a um máximo de quatro a seis dias por ano no século XVI Tampouco a nobreza gozava da jurisdição superior sobre a sua força de trabalho Os domínios aristocráticos estavam mal consolidados em parte talvez de vido à falta de escoadouros para a exportação de cereais em razão do 19 Idem pp 392406 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 255 posicionamento geográfico da Baviera internada na grande massa con tinental da Europa central sem vias fluviais que a ligassem ao mar O traço mais notável da agricultura Grundherrschaft no sudeste da Alemanha era a predominância econômica da Igreja que possuía nada menos que 56 por cento de toda a terra cultivada em meados do sé culo XVIII em comparação com os meros 24 por cento controlados pela aristocracia e os 13 por cento da dinastia20 A relativa fraqueza da classe nobre que este padrão de propriedade revela refletiase na sua posição jurídica Não conseguiu plena imunidade fiscal embora pagas se impostos naturalmente muito menos elevados que os outros esta dos e os seus esforços para impedir a aquisição de suas terras por nãonobres oficialmente corporificados na lei que proibia tais vendas aprovada no último Landtag do século XVII foram efetivamente sabo tados por operações dissimuladas do clero no mercado de terras Além disso a aguda falta de mãodeobra devido ao despovoamento causado pela Guerra dos Trinta Anos redundou em desvantagem da aristocracia bávara dada a sua primitiva carência de superioridade jurídica sobre as aldeias Isso significava que na prática o campesinato estava em condições de barganhar com sucesso a mitigação dos tributos e a me lhoria dos contratos de cultivo enquanto muitas propriedades nobres eram hipotecadas Este panorama social impôs estreitos limites políti cos ao potencial do absolutismo bávaro que em breve mostraramse evidentes O mesmo esquema pequenos domínios nobres peque nas cidades e pequenos camponeses21 que oferecera pouca resistên cia ao surgimento de um absolutismo ducal infundiulhe também um ímpeto modesto O ducado chegou ao final da Guerra dos Trinta Anos com unia população equivalente à controlada pelo Eleitor Hohenzollern no norte cerca de l milhão de súditos O sucessor de Maximiliano I Fer nando Maria fortaleceu o aparelho civil do governo Wittelsbach esta belecendo a supremacia do Conselho Privado e utilizando o polivalente Rentmeister como o principal funcionário da gestão administrativa lo cal o último Landtag foi dissolvido em 1669 embora sobrevivesse ainda um comitê permanente de pouca eficácia durante o século se guinte Mas enquanto o Grande Eleitor edificava rapidamente um exército permanente no Brandenburgo as tropas bávaras eram dispen sadas depois de Vestfália Só em 1679 o novo duque Max Emmanuel 20 Idem pp 3502 21 Idem p 352 256 PERRY ANDERSON reconstituiria uma força militar Wittelsbach Mas mesmo então esta nunca foi capaz de atrair o conjunto da nobreza bávara ao seu serviço os aristocratas locais formavam uma pequena minoria do corpo de oficiais num exército que de qualquer modo continuava a ser muito modesto cerca de 14 mil homens em meados do século XVIII Max Emmanuel um ambicioso e despreocupado general que conquistara sua fama na luta contra os turcos em auxílio a Viena tornouse regente dos Países Baixos espanhóis por casamento em 1672 e candidato ao próprio trono da Espanha na virada do século XVIII Jogando as para das mais altas compartilhou a sorte com Luís XIV em 1702 quando da eclosão da Guerra da Sucessão Espanhola A aliança francobávara em breve dominava o terreno no sul da Alemanha ameaçando a pró pria Viena mas Bleinheim logo desfez as duas perspectivas de vitória na Europa central A Baviera foi ocupada por tropas turcas até o final do conflito enquanto Max Emmanuel destituído de seus títulos e exilado do império fugia para a Bélgica A tentativa de usar o po derio da França para estabelecer a supremacia Wittelsbach na Alema nha resultará em desastroso fracasso À época da Paz de Utrecht o duque tinha tão pouca confiança no futuro de seu patrimônio bávaro que propôs à Áustria trocálo pelo sul dos Países Baixos plano ve tado pela Inglaterra e pela França e que reapareceria outra vez mais tarde A dinastia retornou a uma terra devastada por uma década de pilhagem e destruição A Baviera do pósguerra afundou num estado semiletárgico de introversão e corrupção As extravagâncias da corte em Munique absorviam uma porcentagem do orçamento muito mais elevada do que em qualquer outro Estado da Alemanha da época As dividas do Estado aumentavam rapidamente à medida que os arreca dadores de impostos dissipavam a receita pública a população rural continuava obcecada pela superstição religiosa e os nobres mais incli nados às prebendas eclesiásticas do que às obrigações militares22 A extensão do ducado e a preservação de um pequeno exército assegura vam ainda à Baviera a importância diplomática no seio do império Mas por volta de 1740 já não era um candidato convincente à lide rança política da Alemanha A Saxônia o reino vizinho ao norte representava uma versão algo diferente do desenvolvimento absolutista da cadeia oriental de Es tados germânicos A casa reinante local a dinastia Wettin adquirira originalmente o Ducado e o Eleitorado da Saxônia em 1425 poucos 22 Holborn A History of Modem Germany 16481840 pp 2923 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 257 anos depois de a linhagem Hohenzollern ter obtido a Marca do Bran denburgo e de modo bastante similar como concessão do imperador Segismundo em troca dos serviços militares prestados nas guerras con tra os hussitas nas quais Frederico de Meissen o primeiro eleitor Wet tin fora um de seus principais lugarestenentes Partilhadas em 1485 entre os ramos ernestino e albertino da família com capitais respecti vamente em Wittenberg e em DresdenLeipzig as terras saxônias per maneceram não obstante como a região mais rica e avançada da Ale manha oriental Deviam a sua proeminência às ricas minas de prata e de estanho das montanhas e às indústrias têxteis que se desenvolveram nas cidades A encruzilhada comercial de Leipzig como vimos fora uma das poucas cidades alemãs a crescer ininterruptamente durante o século XVI O grau relativamente elevado de urbanização da Saxônia em contraste com a Baviera e o Brandenburgo e os privilégios dos príncipes locais na indústria de mineração originaram um modelo polí tico e social distinto do de seus vizinhos meridionais e setentrionais Não existiu aí uma reação senhorial comparável à da Prússia no final da época medieval ou início da era moderna o poder da nobreza saxô nia não era suficientemente grande para reduzir os camponeses à ser vidão dada a importância das cidades na formação social Os domí nios senhoriais eram mais extensos que na Baviera em parte porque as terras clericais eram muito mais insignificantes Mas a tendência bá sica no campo era no sentido do cultivo por arrendatários livres com a comutação das prestações de serviços em rendas em dinheiro em outras palavras o sistema mais brando do Grundherrschaft A aristo cracia não atingiu a imunidade fiscal plena as suas propriedades alo diais estavam sujeitas a impostos e não foi capaz de assegurar o impe dimento legal à venda da propriedade nobre aos plebeus Todavia es tava bem representada no sistema de Estados que se tornaram cada vez mais estáveis e influentes ao longo do século XVI Por outro lado as cidades também estavam vigorosamente representadas no Landtag embora tivessem que suportar o impacto do imposto sobre o álcool que constituía a fonte principal das receitas monárquicas com vantagem para a nobreza os representantes urbanos também estavam excluídos do Obersteuercollegium que a partir de 1570 administrava o fisco no Eleitorado Em tal contexto econômico a dinastia Wettin conseguiu amea lhar força e riqueza sem um ataque direto aos Estados ou o desenvol vimento considerável do governo burocrático Nunca renunciou às altas prerrogativas judiciais e controlava uma vultosa receita independente com origem nos seus direitos sobre a mineração que supriam cerca 258 PERRY ANDERSON de dois terços da receita do erário albertino na década de 1530 en quanto a prosperidade da região permitiu desde o início a cobrança de impostos de consumo lucrativos e toleráveis23 Não admira assim que a Saxônia tenhase tornado o primeiro Estado monárquico a dominar a arena política alemã na época da Reforma O eleitorado ernestino foi o berço religioso do luteranismo a partir de 1517 mas foi o ducado alber tino que não se passara para o campo protestante até 1539 que domi nou o centro do cenário político no complexo drama que se seguiu à eclosão da Reforma na Alemanha Com efeito Maurício da Saxônia que sucedeu ao duque em 1541 superou rapidamente todos os prínci pes rivais e o próprio imperador na busca de superioridade dinástica e de engrandecimento territorial Ao juntarse ao ataque imperial de Carlos V à Liga de Esmalcalda ele participou do aniquilamento dos exércitos protestantes em Mühlberg adquirindo assim o grosso dos territórios ernestinos e o título de Eleitor Ao orquestrar o ataque fran coluterano a Carlos V cinco anos depois destruiu a chance dos Habs burgos de reconverter a Alemanha e confirmou a unificação da Saxônia sob o seu domínio À data de sua morte o novo Estado saxônio era o mais poderoso e próspero principado da Alemanha Seguiramse cin qüenta anos de crescimento pacífico durante os quais os Estados fo ram regularmente convocados e os impostos subiram rapidamente no Eleitorado A eclosão da Guerra dos Trinta Anos contudo apanhou a Saxô nia despreparada no aspecto militar como no diplomático no início do século XVII Enquanto a Baviera desempenhava o papel principal en tre os Estados alemães durante o conflito a Saxônia viuse reduzida a uma fraqueza hesitante muito similar à do Brandenburgo Os eleitores Wettin e Hohenzollern embora protestantes alinharamse com o cam po imperial Habsburgo nos estágios iniciais da guerra depois ambos foram ocupados e devastados pela Suécia e impelidos para o bloco antiHabsburgo enfim ambos se insurgiram buscando a paz sepa rada com o imperador Pelo Tratado de Vestfália a Saxônia adquiriu a Lusácia e seus príncipes um imposto de guerra regular que foi utili zado para criar um modesto exército permanente A riqueza do país permitiulhe recuperarse relativamente depressa dos efeitos da Guerra dos Trinta Anos Os impostos diretos cresceram de cinco a seis vezes entre 1660 a 1690 O aparelho militar do Estado Wettin aumentara os seus efetivos para cerca de 20 mil homens por volta do fim do século 23 Carsten Princes and Parliaments in Germany pp 1916 2014 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 259 quando levou a cabo com competência ao lado de análogos contin gentes bávaros a luta contra os turcos para a libertação de Viena Em 1700 a Saxônia tinha ainda uma margem de vantagem sobre o Bran denburgo como potência alemã oriental O seu exército era um pouco menor e o seu sistema de Estados ainda não fora subjugado No en tanto possuía uma população duas vezes maior uma indústria bem mais desenvolvida e um tesouro proporcionalmente mais rico O início do século XVIII testemunhou de fato a maior tentativa saxônia pela supremacia política no seio do sistema estatal alemão Com efeito em 1697 o eleitor Frederico Augusto I abraçou o catolicismo a fim de con seguir o apoio da Áustria à sua candidatura à monarquia da Polônia Tal manobra foi coroada de êxito O Eleitor tornouse o primeiro go vernante alemão a obter um título real como Augusto II e ganhou o direito político de retenção sobre a vizinha Polônia separada da Saxô nia apenas pela estreita faixa da Silésia Ao mesmo tempo um imposto geral sobre as vendas foi lançado com êxito na Saxônia contra a resis tência dos Estados de forma significativa porém o imposto saxônio ao contrário do brandenburguês estendeuse das cidades aos campos em detrimento da nobreza24 O exército foi então ampliado para 30 mil homens aproximandose de seu correlato do Brandenburgo Não obstante a União SaxoPolaca consumouse no mesmo ins tante em que a última grande investida do imperialismo sueco veio despedaçála Carlos XII marchou sobre a Polônia expulsou do país Augusto II e depois em 1706 invadiu a própria Saxônia esmagando o exército Wettin e impondo ao ducado uma implacável ocupação A vi tória da Rússia sobre a Suécia na Ucrânia acabou por restaurar inter nacionalmente a posição da Saxônia no final da Grande Guerra do Norte A dignidade real polonesa foi restituída a Augusto II o exército foi reerguido na década de 1730 os Estados foram crescentemente des prezados Mas a imagem exterior do Estado Wettin ostentado na bar roca elegância de sua capital em Dresden não mais correspondia a sua força interna A associação com a Polônia era um engodo decorativo que trouxe mais despesas que ganhos devido ao caráter fictício da mo narquia szlachta a investidura saxônia fora aceita precisamente por que a Rússia e a Áustria calculavam que a casa Wettin era demasiado frágil para se tornar um rival perigoso A guerra que ela ocasionara acarretou grandes danos à economia do ducado Além disso ao con trário do ReiSargento em Berlim Augusto II faziase notar pela extra 24 Idempp 2456 260 PERRY ANDERSON vagância de sua corte ao lado de suas ambições militares Esses encar gos combinados enfraqueceram criticamente a Saxônia nos mesmos anos em que a Prússia acumulava recursos para a luta que se aproxi mava no seio da Alemanha A população da Saxônia 2 milhões de ha bitantes em 1700 caíra para l milhão e 700 mil na década de 1720 ao passo que a da Prússia crescera de cerca de l milhão em 1688 para 2 milhões e 250 mil em 1740 os valores demográficos de cada uma ti nham se invertido25 A nobreza saxônia mostrara pouco ardor pelas aventuras externas do Eleitor e perdia terreno no plano interno à me dida que avançava o século com a venda de terras aos burgueses Os Estados sobreviveram em parte devido às distrações polonesas da di nastia e em seu interior a importância das cidades de certo modo au mentou A máquina burocrática do Estado permaneceu inexpressiva menos desenvolvida que a da Baviera Na ausência de uma disciplina contábil as finanças monárquicas viramse inundadas por dívidas Em decorrência o absolutismo saxônio a despeito de seus primórdios pro missores e da propensão autocrática dos sucessivos governantes Wet ün nunca conseguiu real firmeza ou coerência a formação social era demasiado fluida e heterogênea Ê agora possível examinar por que o Brandenburgo seria tão sin gularmente destinado para o predomínio na Alemanha Houve uma progressiva eliminação das alternativas Em toda a Europa o Estado absolutista foi fundamentalmente um aparelho político da dominação aristocrática o poder social da nobreza era o motor central de sua existência No seio da fragmentada arena do Reich pósmedieval so mente aquelas regiões que possuíam uma classe fundiária economica mente forte e estável tinham possibilidade de alcançar uma liderança diplomática e militar na Alemanha somente elas poderiam gerar um absolutismo capaz de rivalizar com as grandes monarquias européias Desse modo a Alemanha ocidental estava de início afastada dada a densidade de sua civilização urbana A Baviera não possuía cidades de grande importância e desenvolveu um absolutismo precoce sob o signo da ContraReforma Mas a sua nobreza era demasiado fraca o clero excessivamente privilegiado e o campesinato gozava de suficiente liber dade para que fosse possível fundar um principado dinâmico A Saxô nia tinha uma aristocracia mais ampla mas as suas cidades eram tam bém muito fortes e o campesinato não mais servil Por volta de 1740 ambos os Estados tinham passado o seu apogeu Na Prússia pelo con 25 Idempp 2501 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 26 L trário a classe junker mantinha uma servidão férrea em seus domínios e uma vigilante tutela sobre as cidades o poder senhorial alcançou a sua mais pura expressão nos territórios Hohenzollern os postos avan çados mais remotos da colonização alemã no Leste Não foi portanto a divisa externa da Prússia na Polônia que determinou a sua supre macia dentro da Alemanha como pensava Engels26 Na verdade como vimos o entrelaçamento com a Polônia a expressão é de Engels foi um dos resultados do declínio da Saxônia o papel ulterior da Prússia nas partilhas da Polônia foi apenas o epílogo às decisivas vitórias mili tares já obtidas no interior da própria Alemanha e pouco fez para fortalecêla internacionalmente É a natureza interna da formação so cial prussiana que explica por que ela eclipsou subitamente todos os outros Estados alemães na época do iluminismo e presidiu afinal a uni ficação germânica Esta ascensão foi sobredeterminada pela complexa totalidade histórica de todo o Reich que impediu o nascimento de um absolutismo de tipo ocidental na Renânia fragmentou o território do império em cerca de 2 mil unidades políticas e expulsou a Casa da Áus tria para as suas fronteiras nãogermânicas A principal força externa a afetar os destinos respectivos da Prússia e da Áustria no seio da Ale manha não foi a Polônia mas a Suécia Com efeito foi o poder sueco que destruiu a oportunidade de uma unificação Habsburgo do império na Guerra dos Trinta Anos e foi a proximidade sueca a principal ameaça estrangeira a agir como força centrípeta sobre a edificação do Estado Hohenzollern força cujos efeitos a Baviera e a Saxônia os outros principados da Alemanha oriental nunca experimentaram na mesma medida embora a Saxônia não tenha escapado de se tornar a vítima final do militarismo nórdico A capacidade da Prússia em resis tir à expansão sueca e em colocar fora de combate todos os seus rivais alemães deve por sua vez ser referida à disposição peculiar da própria classe junker com a consolidação pelo Grande Eleitor e pelo ReiSar gento numa transparente base de classe de um absolutismo dinástico De início a própria dimensão do país no final do século XVII e início do século XVIII deixou a sua marca na aristocracia prussiana O conjunto dos territórios Hohenzollern no Leste Brandenburgo 26 Ver acima p 236 Weber parece ter partilhado opinião semelhante Vejase o seu comentário sobre os ataques inimigos nas fronteiras da Alemanha medieval que considera responsáveis pelo fato de que seus governadores eram em toda a parte dota dos de grandes poderes E concluía Foi por esta razão que na Alemanha o desenvol vimento mais acentuado para um Estado territorial unificado ocorreu no Brandenburgo e nu Áustria Economy andSociety III p 1051 262 PERRY ANDERSON Prússia oriental e mais tarde a Pomerânia ocidental era ainda de tamanho diminuto e de povoacão escassa Em 1740 a sua população total era inferior a 2 milhões de habitantes excluídos os enclaves oci dentais da dinastia a densidade relativa da população era provavel mente duas vezes menor que a da Saxônia Uma das mais constantes motivações da política do Estado a partir do Grande Eleitor seria a busca de imigrantes para colonizar esta região despovoada O caráter protestante da Prússia revelarseia fundamental neste aspecto Os re fugiados provenientes do sul da Alemanha depois da Guerra dos Trinta Anos e os huguenotes após o Édito de Nantes foram entusiasticamente recebidos nos primeiros anos com Frederico II vieram os holandeses os alemães e mais franceses Mas é preciso ter sempre em mente que a Prússia até a conquista da Silésia continuava a ser um país bastante modesto se comparado com o curso geral das monarquias européias da época Essa escala provinciana contribui para reforçar certos traços notáveis da classe junker Com efeito acima de tudo a aristocracia prussiana distinguiase entre as principais nobrezas européias no sen tido de que não possuía em seu seio um espectro muito amplo de for tunas veremos depois que a szlachta polonesa em muitos aspectos semelhante era a este respeito o seu oposto direto Assim o Rittergüter médio a unidade agrícola comercial feudal da nobreza prussiana era de dimensão mediana Não havia um estrato de grandes magnatas detentores de imensos latifúndios muito maiores que as propriedades da nobreza menor como ocorria em tantos outros países europeus27 O antigo Herrenstand da alta nobreza por volta de meados do século XVI perdera o seu predomínio diante da massa do Ritterschaft28 O único proprietário realmente latifundiário era o próprio monarca os domínios da coroa ascendiam a um terço da terra arável no século XVIII29 Em decorrência disso seguiamse duas importantes conse 27 Assim o valor médio de uma amostra de cem propriedades na região mais rica do Brandenburgo não excedia 60 mil taleres talvez equivalentes a 15 mil libras no século XVIII Walter Dorn The Prussian Bureaucracy ín the Eighteenth Century Political Science Quarterly vol 47 1932 n 2 p 263 Em parte devido à ausência de uma tradição de primogenitura a maior parte dos domínios mesmo os mais vastos estavam sobrecarregados de dívidas 28 Este ainda dominava os comitês do Landtag nessa época dos quais os nobres menores e mais pobres estavam excluídos mas a tensã0 entre o conjunto da aristocracia e as cidades era muito mais aguda tanto no aspecto econômico como no político do que qualquer fissura no seio da própria classe fundiária Otto Hintze Die Hohenzollern und ikr Werk Berlim 1915 pp 1467 29 Goodwin Prússia em Goodwin Org The European Nobilily in the Eighteenth Century p 86 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 263 qüências para o caráter da classe junker Por um lado no aspecto so cial ela era menos dividida que a maior parte das outras aristocracias européias no seu conjunto formava um bloco coeso de proprietários médios de mentalidade semelhante sem grandes divergências regio nais Por outro oywnfcerpadrão tendia a exercer uma função direta na organização da produção quando não estava engajado na prestação de serviço Em outras palavras ele era com freqüência o administrador efetivo e não apenas nominal de seus domínios O costume de residên cia permanente da nobreza prussiana encorajava naturalmente esta tendência uma vez que as cidades eram poucas e espaçadas Era pouco comum o fenômeno dos grandes proprietários absenteístas que legavam as funções de gestão dos domínios a bailios e administradores Enquanto a relativa paridade das fortunas distinguia os junkers dos seus homólogos polacos a atenção cuidadosa ao domínio diferenciava os da nobreza russa A disciplina do mercado de exportação contribuiu inegavelmente para uma administração mais racional do Gutherr schaft Os junkers prussianos do final do século XVII e início do século XVIII constituíam portanto uma compacta classe social num país pe queno com rústicas tradições de atividade rural Assim quando o Grande Eleitor e Frederico Guilherme l empreenderam a construção do novo Estado absolutista o primitivo padrão peculiar da nobreza produziu uma estrutura administrativasuigeneris Ao contrário de quase todos os outros absolutismos o modelo prussiano foi capaz de utilizarse proveitosamente das instituições re presentativas tradicionais da aristocracia uma vez dissolvido o seu nú cleo central Como vimos os Estados ou Landtage provinciais declina ram progressivamente depois da década de 1650 a última reunião efe tiva do Landtag do Brandenburgo em 1683 devotouse basicamente a lamentar a onipotência do Generalkriegskommissariat Mas os Estados locais de condados ou Kreistage tornaramse a unidade burocrática básica na área rural A partir de 1702 estes conselhos junkers passa ram a eleger candidatos da nobreza local ao posto de Landrat dentre os quais um era oficialmente designado para o cargo pela monarquia A instituição ao Landrat investido de todos os poderes administrativos fiscais e militares nos distritos rurais lembra de certo modo os Juizes de Paz na Inglaterra com o seu sábio compromisso entre a autoadmi nistração autônoma da pequena nobreza e a autoridade central do Es tado No entanto a semelhança é enganosa uma vez que a divisão das esferas na Prússia assentava num sólido alicerce de trabalho servil Tecnicamente a servidão podia assumir duas formas na Prússia La beigenschaft era a sujeição pessoal hereditária dos camponeses sem 264 PERRY ANDERSON quaisquer direitos civis ou de propriedade que podiam ser vendidos separadamente da terra Erbuntertãnigkeit era a condição da depen dência hereditária vinculada ao domínio com alguns direitos legais mínimos mas ligada à terra e aos serviços obrigatórios na casa e no campo do senhor Na prática havia pouca diferença entre os dois Assim o Estado não exercia nenhuma jurisdição direta sobre a massa da população rural que estava sob o controle dosjunkers nos seus Gutsbezirke sob a supervisão áoLandrat e cujos tributos dois quin tos da produção camponesa30 eram diretamente coletados por seus senhores Por sua vez as cidades e o domínio real eram governados por uma burocracia profissional arma direta do absolutismo Um esme rado sistema de controle dos pedágios e da circulação regia os movi mentos das pessoas e das mercadorias de um setor para outro desta administração dual A própria casta militar como vimos era predominantemente cooptada na nobreza em 1739 todos os 34 generais 56 dos 57 coro néis 44 dos 46 tenentescoronéis e 106 dos 108 majores eram aristo cratas31 A alta burocracia civil era também extensa e crescentemente recrutada no seio da classe junker O ReiSargento teve o cuidado de equilibrar o número de nobres e de burgueses em suas câmaras provin ciais mas o seu filho promoveu deliberadamente os aristocratas em detrimento dos funcionários de classe média Rigorosos princípios cole giais regiam a organização deste serviço civil cuja célula básica era o conselho de oficiais coresponsáveis não o funcionário individual um sistema bem concebido para inculcar o sentido da probidade e do dever impessoais e coletivos numa nobreza luterana32 A notável disci plina e eficácia destas instituições eram um reflexo da unidade da classe que as servia Não havia rivalidades entre grandes nobres e suas clien telas no seio do aparelho de Estado era mínima a venalidade nos car gos devido à pouca importância das cidades não existiam sequer cole 30 Holborn A History of Modem Germany 16481840 p 196 31 Alfred Vagts A History of Militarism Londres 1959 p 64 Até 1794 o exército prussiano fora comandado por 895 generais provenientes de 518 famílias da nobreza Em todos os corpos de oficiais os estrangeiros eram muito mais numerosos que os burgueses 32 Dorn The Prussian Bureaucracy in the Eighteenth Century Political Science Quarterly vol 46 1931 n 3 p 406 que analisa os trabalhos das Kriegsund DomãnenKammern A organização colegial de modo algum produzira a eficácia e dili gência administrativa na Espanha indubitavelmente o contraste deve em parte ser explicado pela força ética particular do protestantismo na Prússia uma variável à qual Engels entre outros conferiu grande importância para a ascensão geral do país LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUT1STA 265 tores de impostos até Frederico II que importou a Régie da França pois a cobrança dos tributos aos camponeses estava confiada aos pró prios cavaleiros e as contribuições urbanas eram controladas por Steuer rãte profissionais enquanto os domínios da coroa rendiam por seu lado uma grande receita ao erário Qsjunkers prussianos detinham tão firmemente o comando do Estado e da sociedade no século XVIII que não sentiam sequer a necessidade do vinculismo de seus homólogos oci dentais Frederico II tentou incentivar o maiorat dos primogênitos a fim de consolidar os domínios da aristocracia mas o seu zelo ideológico en controu pouca resposta junto aos proprietários de terra que preserva ram mesmo as antigas normas feudais de consentimento coletivo agnatí cio para os empréstimos familiares33 Eles não se achavam ameaçados por uma burguesia ascendente que forçasse gradualmente a venda das terras e por isso não sentiam necessidade de proteger a sua posição social deserdando os filhos mais moços os domínios junkers eram habitual mente divididos com a morte de seus proprietários o que por sua vez contribuía para manter exíguo o seu tamanho Livre de tensões inter nas reinando suprema sobre as cidades senhora de seus camponeses a classe fundiária prussiana estava mais solidamente de acordo com o seu Estado do que qualquer outra na Europa A unidade burocrática e a autonomia rural conciliavamse de modo único neste paraíso das plan tações de repolho O absolutismo junker edificado sobre tais funda mentos continha um formidável potencial de expansão Em 1740 morreram Frederico Guilherme I e o imperador Carlos VI O herdeiro da Prússia Frederico II atacou imediatamente a Silésia Esta rica província Habsburgo foi rapidamente ocupada pelo exército Hohenzollern A França aproveitou a oportunidade para garantir o apoio prussiano a uma candidatura bávara à dignidade imperial Em 1741 o duque Wittelsbach Carlos Alberto foi eleito imperador e as tro pas francobávaras marcharam sobre a Boêmia Os objetivos bélicos da Prússia não incluíam a restauração da primazia da Bavária no sul da Alemanha ou o predomínio da França no império Frederico II após derrotar a França no campo de batalha concluiu a seguir uma paz em separado com Viena em 1742 deixando a Prússia na posse da Silésia A recuperação militar Habsburgo na luta contra a França e o alinha mento da Saxônia com a Áustria precipitaram a sua reentrada na guerra dois anos depois para proteger as suas conquistas A SaxÔnLa foi derrotada e saqueada os exércitos da Áustria foram mantidos à 33 Goodwin Prússia pp 957 266 PERRY ANDERSON distância após duros combates Em 1745 o conflito internacional es tava concluído com a restituição do título imperial e do reino da Boê mia à herdeira Habsburgo Maria Tereza e a confirmação da con quista da Silésia pelos Hohenzollern As vitórias de Frederico II na Guerra da Sucessão da Áustria longamente preparadas pela obra de seus antecessores foram o ponto crucial estratégico na carreira euro péia do absolutismo prussiano convertendoo pela primeira vez num poder triunfante na Alemanha Berlim de fato derrotara simultanea mente Munique Dresden e Viena A última oportunidade de expansão política da Baviera fora frustrada os exércitos da Saxônia foram des baratados e o império austríaco fora privado de sua província mais industrializada no centro da Europa onde se localizava o eixo comer cial de Breslau Em contrapartida a aquisição da Silésia fez crescer de um só sopro em 50 por cento a população da Prússia elevandoa para 4 milhões de habitantes ao mesmo tempo em que a dotava pela pri meira vez de uma região econômica relativamente avançada a leste com uma longa tradição de manufaturas urbanas têxteis Não obs tante a ordem feudal da Prússia em seu conjunto não foi grandemente modificada por esta extensão a massa da população rural da Silésia tal como a do Brandenburgo era de Erbuntertãnigen A nobreza local apenas possuía maiores domínios Em termos relativos a anexação da Silésia foi efetivamente talvez a mais importante e lucrativa conquista específica de qualquer Estado europeu continental da época34 Está na magnitude das vitórias da Prússia em 174045 na mu dança rápida e decisiva na balança de poder que ela representou a explicação para a extraordinária escala da coalizão que o chanceler austríaco Kaunitz reuniu contra aquela na década seguinte A vingança deveria assumir uma proporção equivalente à enormidade da derrota em 1757 a revolução diplomática de Kaunitz unira contra a Prús sia a Áustria a Rússia a França a Suécia a Saxônia e a Dinamarca O conjunto da população dessas forças era pelo menos vinte vezes su perior à da vítima pretendida pela sua aliança o objetivo da coligação era nada menos do que varrer o Estado prussiano do mapa da Europa Cercado por todos os lados Frederico II em desespero de causa ata cou primeiro inaugurando oficialmente a Guerra dos Sete Anos com a invasão da Saxônia A dura luta que se seguiu foi a primeira guerra verdadeiramente paneuropéia na qual todas as grandes potências da Rússia à Inglaterra da Espanha à Suécia estavam simultaneamente 34 Ver a opinião de Dorn Competition for Empire pp 1745 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 267 envolvidas uma vez que o conflito continental conjugouse com o con flito marítimo e colonial entre a GrãBretanha e a França O aparelho militar prussiano comandado por Frederico II dispondo agora de um exército de cerca de 150 mil homens sobreviveu a retiradas e revezes devastadores para emergir com uma leve margem final de vitórias con tra todos os seus inimigos As campanhas diversionistas financiadas pela Inglaterra na Vestfália desviando forças francesas e a posterior defecção da Rússia constituíram os fatores fundamentais para o mi lagre da Casa de Brandenburgo Mas o verdadeiro segredo da resis tência prussiana foi a rematada eficácia de seu absolutismo a estrutura política para a qual Kaunitz previra uma rápida e completa destruição mostrouse bem mais preparada para suportar as enormes tensões eco nômicas e logísticas da guerra que os desconexos impérios coligados contra ela em todo o Leste Nenhum território mudou de mãos pela paz de 1763 A Silésia continuou a ser uma província Hohenzollern e Viena terminou a guerra em condições financeiras mais precárias do que Ber lim A repulsa ao grande ataque empreendido pela Áustria provarseia uma derrota definitiva dos exércitos Habsburgo na Alemanha como os fatos subseqüentes se encarregariam de demonstrar as suas conse qüências mais profundas apenas se revelariam mais tarde A Saxônia repetida e impiedosamente pilhada por Frederico II teve de suportar a metade dos custos da guerra prussiana a partir de então afundouse numa insignificância política irreversível perdendo o seu medalhão po lonês poucos meses depois da paz A Prússia embora sem alcançar conquistas territoriais ou vencer campanhas decisivas tornouse estra tegicamente mais forte no seio do equilíbrio alemão depois da Guerra dos Sete Anos Enquanto isso os propósitos da política externa de Frederico II eram complementados pela sua obra política interna As fileiras supe riores da burocracia e do exército foram conscienciosamente aristocra tizadas pela monarquia Von Cocceji reformou o judiciário e a venali dade foi amplamente eliminada do sistema jurídico35 A economia foi estimulada por programas oficiais tanto na agricultura como na in dústria Organizaramse trabalhos de drenagem nos campos de colo nização e de melhorias no sistema de transportes Foram fundadas manufaturas estatais fomentadas as atividades naval e mineira e de senvolvidas as indústrias têxteis Surgiram aí as primeiras políticas 35 Para o papel de Von Cocceji ver Rosenberg Bureaucracy Arisíocracy and Autocracy pp 12234 268 PERRY ANDERSON populacionais sistemáticas da Europa com a instalação de centros de recrutamento de imigrantes no exterior36 Frederico foi também responsável por uma audaciosa inovação do absolutismo prussiano que estava destinada a ter conseqüências de grande alcance no século seguinte embora de início não passasse de uma medida no papel a instituição da educação primária obrigatória para toda a população masculina com o Generallandsckulreglement de 1763 Por sua vez os gestos voltados para proteger os camponeses da opressão senhorial e das expulsões foram largamente motivados pelo receio de exaurir a re serva de homens aptos para a guerra e revelaramse uniformemente ineficazes Os bancos hipotecários destinados a auxiliar os proprietá rios em dificuldades embora de início recebidos com suspeita pela classe junker viriam a ter grande importância As finanças públicas escrúpulosamente controladas e expurgadas de qualquer despesa da corte cresceram notavelmente apesar das guerras do reinado Os ren dimentos anuais da coroa triplicaram de 7 para 23 milhões de taleres 174086 enquanto as reservas quintuplicavam de 10 para 54 mi lhões37 O grosso do orçamento do Estado ia evidentemente para o exército que cresceu de 80 para 200 mil homens sob Frederico II a maior proporção entre soldados e população de qualquer país da Eu ropa a quantidade de regimentos estrangeiros contratados ou arre gimentados no exterior foi deliberadamente maximizada a fim de poupar a limitada população produtiva interna A partilha da Polônia em 1772 por acordo com a Rússia e a Áustria acrescentou a Prússia ocidental e a Ermlândia aos domínios Hohenzollern no Leste consoli dandoos num único bloco territorial e aumentando o potencial demo gráfico do Estado A população total da Prússia duplicou passando de 2 milhões e meio para 5 milhões e 400 mil habitantes por volta do final do reinado38 No plano internacional a reputação militar do absolu tismo prussiano após a Guerra dos Sete Anos era agora tão extraordi nária que Frederico II pôde efetivamente ditar a solução das duas prin cipais crises no interior da Alemanha nas décadas seguintes sem ser obrigado a recorrer seriamente às armas Em 177879 e de novo em 178485 a Áustria tentou recuperar a sua posição no seio da Alemanha realizando a troca do sul dos PaísesBaixos pela Baviera em ambas as vezes com base num acordo com o Eleitor Wittelsbach A fusão da 36 Bluche dános um colorido relato Lê DespotismeÉclairé pp 835 37 Holborn A History of Modem Germany 16481840 p 268 38 Idemp 262 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 269 Baviera com a Áustria teria transformado a história da Alemanha ao tornar a dinastia Habsburgo inexpugnavelmente forte no sul e ao redi recionar o conjunto da orientação política de Viena fundamentalmente para o Reich Em ambas as ocasiões bastou o veto da Prússia para liqui dar o projeto Na primeira bastaram algumas escaramuças simuladas na Boêmia Na segunda o alinhamento por Berlim de um bloco comum contra a Áustria compreendendo o Hanover a Saxônia o Mainz e ou tros principados constituiu um veto adequado a Associação de Prín cipes reunida por Frederico II em 1785 um ano antes de sua morte anunciou e selou a supremacia Hohenzollern no norte da Alemanha Quatro anos depois rebentou a Revolução Francesa e com ela a viabilidade de qualquer ancien regime na Europa por mais jovem que fosse politicamente foi posta em questão pois diferentes tempos histó ricos opunhamse nos campos de batalha da guerra revolucionária A Prússia que teve um papel insignificante na primeira coligação contra revolucionária contra a França no Ocidente aproveitou a oportunidade para dividir o restante da Polônia com a Rússia e a Áustria e depois deixou prontamente a luta contra a República em 1795 O dia do ajuste de contas foi apenas postergado pela neutralidade Hohenzollern du rante a década seguinte de conflito europeu Em 1806 o ataque de Napoleão colocou o Estado absolutista prussiano diante de seu teste supremo Seus exércitos foram esmagados em lena e a Prússia viuse obrigada a assinar um tratado de paz em Tilsit que a reduziu à con dição de satélite da França Todo o seu território a oeste do Elba foi confiscado guarnicões francesas foram instaladas em suas fortalezas e foramlhe impostas pesadas indenizações Foi esta a crise que produziu a Era das Reformas Nesta em seu momento de maior risco e fragi lidade o Estado prussiano mostrouse capaz de preservar uma notável reserva de talentos políticos militares e culturais que garantiriam a sua existência e renovariam sua estrutura Muitos desses talentosos refor madores eram originários na verdade do centro e do oeste da Alema nha regiões socialmente muito mais avançadas que a própria Prússia Stein o líder político da resistência contra Napoleão era um cavaleiro imperial da Renânia Gneisenau e Scharnhorst os artífices do novo exército eram oriundos respectivamente do Hanover e da Saxônia Fichte ò ideólogo filosófico da guerra de libertação contra a França era natural de Hamburgo Hardenberg o nobre diretamente responsá vel pela versão definitiva das reformas vinha de Hanover39 A prove 39 Praticamente a única figura importante comprometida com as reformas que era prussiano de origem foi o pedagogo Von Huraboldt embora Clausewitz a mais 270 PERRY ANDERSON niência mista dos reformadores encerrava algo de premonitório O ab solutismo prussiano passaria daí em diante por novas formas de vida e por profundas alterações de caráter devido ao fator básico configurado na sua contigüidade cultural e territorial com o resto da Alemanha Desde que Napoleão chegou aos portões de Berlim cessaram as possi bilidades do Estado Hohenzollern se desenvolver en vase dose De iní cio porém o impulso reformista não foi muito longe Stein um emi grado francófobo influenciado por Montesquieu e Burke introduziu planos de igualdade civil reforma agrária autonomia de governo local e mobilização nacionalista contra Napoleão Em um ano no cargo 18078 pôs de lado o então incômodo Generaldirektorium e instituiu um sistema ministerial convencional com departamentos organizados segundo as linhas da monarquia francesa enquanto funcionários espe ciais eram despachados da capital para supervisionar os assuntos pro vinciais O resultado foi na prática uma acentuada centralização de todo o aparelho estatal que as garantias de uma limitada autonomia das cidades contrabalançavam apenas nominalmente No campo a ser vidão foi oficialmente abolida e revogado o sistema jurídico dos três estados Tais medidas encontraram veemente oposição entre a classe junker por seu radicalismo e quando Stein começou a atuar contra as jurisdições patrimoniais e a imunidade fiscal da nobreza e a plane jar uma levée armada geral contra a França foi prontamente desti tuído O seu sucessor o político da corte Hardenberg aplicou então uma hábil dose de legislação exatamente calculada para modernizar o absolutismo prussiano e a classe que este representava na medida ne cessária para revigorálos sem afetar a natureza essencial do Estado feudal A reforma agrária foi implementada entre 1810 e 1816 de modo a intensificar ainda mais a miséria rural Em troca da emanci pação jurídica os camponeses sofreram a espoliação econômica de cerca de l milhão de hectares e 260 milhões de marcas como compen sação aos seus antigos senhores pela liberdade conquistada40 A cha alta eminência intelectual desta geração fosse também brandenburguês por nasci mento 40 W M Simon The Failure of the Prussian Refortn Movement 18071819 Nova Iorque 1971 pp 88104 Os camponeses tiveram que pagar compensações tanto em terra como em dinheiro pela comutação das corvéias aos seus antigos senhores Até 1865 ainda havia camponeses redimindo tais serviços A estimativa para os pagamentos de remissão que fornecemos acima foi extraída de Theodore Hamerow The Social Foun dations of German Unification Princeton 1969 p 37 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 271 mada Bauernlegen foi um Instrumento friamente concebido para a ex propriação do campesinato Foram eliminadas as terras comunais e o sistema de assolamento trienal Em conseqüência os domínios senho riais aumentaram e criouse uma massa crescente de trabalhadores ru rais sem terra mantidos à disposição áosjunkers por estritas ordens jurídicas De uma só vez Hardenberg ampliou o acesso à propriedade da terra à burguesia que não podia comprar domínios e o acesso às profissões por parte da nobreza que não mais se rebaixava por dedi carse à profissão jurídica ou aos negócios A vitalidade e a versatili dade da classe junker foram assim incrementadas sem perda grave dos seus privilégios Uma tentativa para pôr fim ao papel do Landrat foi liquidada pela aristocracia e as tradicionais assembléias de condado permaneceram intatas Na realidade o controle da nobreza sobre o campo foi efetivamente ampliado com a extensão da autoridade do Landrat às cidades rurais As obrigações senhoriais persistiram ainda por muito tempo depois da abolição da servidão Até 1861 o Rittergut esteve isento dos impostos territoriais o direito de polícia nos domínios mantevese até 1871 o monopólio junker da administração dos con dados até 1891 Nas cidades Hardenberg aboliu o monopólio das cor porações mas não conseguiu acabar com o dualismo fiscal enquanto isso Humboldt ampliou e modernizou drasticamente o sistema de edu cação pública desde a Volksschule elementar à fundação da nova Uni versidade de Berlim Entrementes Scharnhorst e Gneisenau organiza vam um sistema de reservistas para fugir às disposições assinadas em Tilsit que limitavam o tamanho do exército prussiano medida esta que popularizou o recrutamento mas ao mesmo tempo fez crescer a milítarização institucional do conjunto da ordem social Os regula mentos militares e os treinamentos táticos foram atualizados As fun ções de comando oficialmente abertas aos recrutas burgueses mas os oficiais podiam vetar novas admissões em seus regimentos a fim de ga rantir o controle junker O efeito fundamental da Era das Reformas foi fortalecer mais do que moderar o Estado monárquico na Prússia De forma significativa porém foi neste período que a classe junker a nobreza mais leal da Europa durante a difícil expansão do absolu tismo nos séculos XVII e XVIII a única a não recorrer à luta civil contra a monarquia mostrouse pela primeira vez sonoramente in satisfeita A ameaça aos seus privilégios representada pelos reforma 41 Quanto às reformas militares ver Gordon Craig The Politics ofthe Prvssian Army 16401945 Nova Iorque 1964 pp 3853 6970 272 PERRY ANDERSON dores embora prontamente controlada despertou uma oposição ideo lógica de caráter consciosamente neofeudal Von Marwitz o líder da dissidência brandenburguesa contra Hardenberg denunciou de maneira reveladora tanto o absolutismo como o parlamentarismo em nome da constituição dos Estados há muito esquecida e que datava de antes do advento do Grande Eleitor A partir daí esteve sempre pre sente na Prússia um colérico conservadorismo junker um espírito cu riosamente deslocado do século XVII ao século XIX freqüentemente em conflito com a monarquia A soma final das reformas possibilitou à Prússia participar compe tentemente da última coligação que derrotou a França napoleônica Todavia foi essencialmente um ancien regime tradicional que compa receu ao Congresso de Viena na companhia dos seus vizinhos a Áus tria e a Rússia Embora os reformadores prussianos não agradassem a Metternich que os considerava quase jacobinos o Estado Hohen zollern era ainda em certos aspectos socialmente menos avançado que o império Habsburgo após as reformas josefinas do final do século XVIII O verdadeiro ponto crucial na história do absolutismo prus siano deve ser localizado não na obra das reformas mas nos ganhos que a paz lhe proporcionou Para impedir que obtivesse a Saxônia e para compensála pela absorção da maior parte da Polônia pela Rús sia os aliados concederamlhe as províncias do Reno e da Vestfália no outro extremo da Alemanha em grande medida contra o desejo de Berlim Com este gesto deslocaram todo o eixo histórico do Estado prussiano Destinadas pela Áustria e pela GrãBretanha a conter a sua consolidação territorial no centroleste da Alemanha as províncias re nanas estavam separadas do Brandenburgo pelo Hanover e pelo Hesse deixando os domínios Hohenzollern estrategicamente dispersos no nor te da Alemanha com a arriscada tarefa de defesa ocidental contra a França As conseqüências reais do acordo não foram previstas por nenhuma das partes intervenientes As novas possessões Hohenzollern possuíam uma população mais numerosa do que a de todas as antigas províncias reunidas 5 milhões e 500 mil habitantes no Oeste 5 mi lhões no Leste De um só golpe o peso demográfico da Prússia dupli cou para mais de 10 milhões de habitantes a Baviera o segundo maior Estado alemão tinha apenas 3 milhões e 700 mil42 Além disso as pro víncias do RenoVestfália eram das mais avançadas regiões da Alema nha ocidental Os camponeses ainda pagavam os tributos habituais e os 42 iDTQzLaFarmationdelUnitéAIlemandel7f91871 Paris 1970 p 126 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 273 proprietários de terra gozavam do direito especial de caça ao lado de outros Mas a pequena propriedade agrícola estava bem entrincheirada e a classe nobre compunhase em geral de senhores de terra absenteís tas não de gestores de seus próprios domínios como ocorria na Prús sia As assembléias rurais Amt incluíam a representação camponesa ao contrário do Kreistage dosjunkers As relações sociais no campo eram portanto muito mais brandas As novas províncias continham também um grande número de cidades florescentes com longa tradi ção de autonomia municipal intercâmbio comercial e atividades ma nufatureiras Muito mais importante que isso evidentemente foi o fato de que devido aos seus recursos minerais ainda inexplorados a região estava destinada a tornarse a zona industrial mais gigantesca da Europa Assim as aquisições militares do Estado prussiano feudal aca baram por incorporar o espaço vital natural do capitalismo alemão A evolução do novo Estado compósito para uma Alemanha unifi cada ao longo do século XIX integrase na sua essência no ciclo das revoluções burguesas que será considerado em outro trabalho Aqui bastanos salientar três aspectos cruciais da evolução sócioeconômica da Prússia que tornaram possível o sucesso posterior do programa bis marckiano Em primeiro lugar no que se refere à região oriental a reforma agrária efetuada por Hardenberg em 1816 levou a um rápido e impressionante avanço de toda a economia cerealífera Tornando livre o mercado de terras a reforma depurou o campo dosjunkers incapazes e endividados Em contrapartida aumentou o número de investidores burgueses na terra surgiu um estrato de lavradores prósperos ou Grossbauern e ocorreu uma acentuada racionalização da gestão agrária por volta de 1855 45 por cento dos Rittergüter das seis provín cias orientais tinham proprietários nãoaristocratas43 Ao mesmo tem po os junkers que ficaram nas terras eram agora proprietários de domínios maiores e mais produtivos ampliados tanto por compra a outros nobres como pela expropriação de camponeses e pequenos la vradores Na década de 1880 70 por cento das maiores propriedades agrárias mais de mil hectares eram propriedades da nobreza44 Todo o setor agrícola entrou numa fase de expansão e de prosperidade Os rendimentos das colheitas e as áreas cultivadas aumentaram conjunta mente na verdade ambos dobraram na Prússia alémElba entre 1815 43 John Gillis Aristocracy and Bureaucracy in Nineteenth Century Prússia PastandPresent n 41 dezembro de 1968 p 113 44 Hamerow The SocialFoundations of German Unificaíionp59 274 PERRY ANDERSON e 186445 Os novos latifúndios eram cultivados por trabalhadores assa lariados transformandose cada vez mais em empresas capitalistas or todoxas Não obstante o próprio trabalho assalariado era regido por um Gesindeordnung feudal que sobreviveu até o século XX e impôs uma implacável disciplina dominial aos trabalhadores agrícolas e aos empregados domésticos na qual se previa a prisão em caso de greve e estritas limitações à mobilidade A Bauernlegen não significara um êxodo dos campos produziu um numeroso proletariado rural cujos efetivos cresciam à medida que aumentava a produção o que permitia manter baixos os salários A aristocracia junker conseguiu assim uma bemsucedida conversão cumulativa à agricultura capitalista ao mes mo tempo que ainda explorava todos os privilégios patrimoniais que pôde manter Os nobres realizaram sem dificuldade a transição da agricultura dominial para a capitalista enquanto grande número de camponeses ganhava a permissão de banharse nas águas purificadoras da liberdade econômica46 Entrementes a burocracia prussiana desempenhava uma função essencial ao estabelecer uma ponte entre a economia agrária do Leste e a revolução industrial em marcha nas províncias do Oeste No início do século XIX o serviço civil que sempre proporcionara uma alterna tiva ocupacional para a classe média subdesenvolvida dos domínios Ho henzollern tradicionais que no entanto nunca ascendeu aos seus pos tos superiores era responsável pela instauração gradual do Zollve rein que ligava a maior parte da Alemanha com a Prússia numa única região mercantil Von Motz e Maassen do Ministério das Finanças foram os dois artífices deste sistema construído entre 1818 e 1836 que efetivamente excluía a Áustria do desenvolvimento econômico da Ale manha e vinculava comercialmente à Prússia os Estados menores47 O surto da construção ferroviária a partir da década de 1830 estimulou por sua vez o rápido crescimento econômico no seio da União Adua neira As iniciativas burocráticas também tiveram importância quanto a propiciar auxílio tecnológico e financeiro à nascente indústria prus 45 David Landes Japan and Europe Contrasts in Industrialization em W LockwoodOrg The State andEconomic Enterprise in Japan Princeton 1965 p 162 O ensaio de Landes é basicamente uma longa comparação entre o desenvolvimento da Prússia e do Japão e contém muitas reflexões e análises sobre a história alemã no sé culo XIX 46 Simon TheFaüureofthePrussian Reform Movement p 104 47 Ver Pierre Benaerts Lês Origines de Ia Grande Industrie Allemande Paris 1934 pp 3152 Droz oferece alguns comentários gerais perspicazes sobre o papel da burocracia em La Fvrmation de 1Unité Allemande p 113 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 275 sianaBeuth Rother Na década de 1850 oZollverein foi estendido à maior parte dos principados setentrionais restantes A intromissão da Áustria em seu interior foi habilmente impedida por Delbrück no Mi nistério do Comércio A política de tarifas alfandegárias rebaixadas firmemente perseguida pela administração civil prussiana e que veio a culminar no Tratado de Paris com a França em 1864 constituía um instrumento crucial na competição diplomática e política entre Berlim e Viena no seio da Alemanha a Áustria não podia permitir a libe ralização econômica que chamava para o lado da Prússia os Estados do sul da Alemanha outrora dependentes do comércio internacional48 Na mesma época porém o curso fundamental da unificação ale mã estava sendo traçado pelo tempestuoso crescimento industrial do Ruhr no interior das próprias províncias ocidentais da Prússia A bur guesia renana cujas fortunas advinham da nova economia manufatu reira e mineradora do Oeste constituía um grupo politicamente muito mais ambicioso e disposto que os obedientes cidadãos a leste do Elba Foram os seus portavozes Mevissen Camphausen Hansemann e outros que organizaram e dirigiram o liberalismo alemão lutando na Prússia desse período pela promulgação de uma constituição bur guesa com uma assembléia responsável O seu programa significava de fato o fim do absolutismo Hohenzollern e suscitou naturalmente a obstinada hostilidade da classe dominanteywner do Leste Os levantes populares de 1848 alimentados sobretudo pelas massas de artesãos e camponeses possibilitaram a esta burguesia liberal a breve existência de um gabinete ministerial em Berlim e de uma plataforma ideológica em Frankfurt antes que o exército real esmagasse a revolução alguns meses mais tarde A constituição prussiana resultado abortado da crise de 1848 estabelecia pela primeira vez um Landtag nacional com uma câmara baseada num sistema eleitoral de três classes que assegu rava candidamente o predomínio da grande propriedade e uma outra predominantemente recrutada no seio da nobreza hereditária ambas sem nenhum poder sobre o executivo uma assembléia tão apagada que em média apenas 30 por cento dos que tinham direito a voto partici pavam na sua eleição49 Portanto a classe capitalista renana perma necia na oposição mesmo quando obtinha votações majoritárias nesse 48 A importância do tratado de comércio com a França é especialmente des tacada por Helmut Boehme Deutschlands Weg zur Grossmacht ColôniaBerlim 1966 pp 10020 1656 um estudo pioneiro embora excessivamente economicista 49 Hamerow The SocialFoundations of German Unifícation pp 3012 276 PERRY ANDERSON simulacro de instituição A leste do Elba os junkers vigiavam aten tamente a monarquia em busca de sinais de fraqueza chegando mesmo a conseguir a restauração em 1856 dos seus poderes senhoriais de polícia abolidos num momento de pânico por Frederico Gui lherme IV em 1848 Assim o conflito constitucional dos anos 1860 entre os liberais e o Estado aparece como um choque frontal pelo poder político entre a antiga e a nova ordem Não obstante as bases econômicas para uma reaproximação en tre as duas classes estavam sendo lançadas pela rápida capitalização da agricultura oriental durante o surto cerealífero e pelo crescimento ver tical da importância da indústria pesada no seio de toda a formação social prussiana Por volta de 1865 a Prússia era responsável por nove décimos da produção de carvão e ferro por dois terços das máquinas a vapor por metade da produção têxtil e por dois terços da mãodeobra industrial da Alemanha50 A mecanização da indústria alemã já ultra passara a da França Bismarck outrora um reacionário extremo tru culento campeão do ultralegitimismo foi o primeiro representante po lítico da nobreza a ver que esta força efervescente podia ser acomodada na estrutura do Estado e que sob a égide das duas classes possuidoras do reino Hohenzollern os junkers prussianos e o capital renano seria possível a unificação da Alemanha O triunfo do exército prus siano sobre a Áustria em 1866 apaziguou subitamente a discórdia entre as duas classes A barganha efetuada por Bismarck com os liberais nacionalistas da qual resultou a Constituição da Alemanha do Norte de 1867 selou um importante pacto social virtualmente contrário aos matizes políticos de ambas as partes signatárias Três anos mais tarde a Guerra FrancoPrussiana completou com esplendor a obra de uni dade nacional O Reino da Prússia fundiuse num Império Alemão A estrutura fundamental do novo Estado era inequivocamente capita lista A Constituição da Alemanha imperial dos anos 1870 incluía uma assembléia representativa eleita pelo sufrágio universal masculino a cédula secreta a igualdade civil um código jurídico uniforme um sis tema monetário unificado a educação secular e a completa liberdade de comércio interno O Estado alemão assim criado não era de forma alguma um exemplo puro do seu tipo e nem existia tal Estado na Europa desta época51 Estava fortemente marcado pela natureza feu 50 Pierre Ayçoberry L Unité Allemande 18001871 Paris 1968 p 90 51 Taylor salienta que a Constituição da Coníederaçâo da Alemanha do Norte de 1867 da qual derivou a Constituição imperial previa na verdade o mais amplo sufrágio de todos os principais países da Europa e o único com verdadeiro voto secreto LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 277 dal do Estado prussiano que o precedera Na verdade num sentido literal e visível o desenvolvimento combinado que definia a conjuntura estava corporificado na arquitetura do novo Estado Com efeito a constituição prussiana não fora anulada sobrevivia no seio da consti tuição imperial uma vez que a Prússia era agora uma das unidades confederadas do Império inclusive o sistema eleitoral de três classes com direitos civis limitados O corpo de oficiais de seu exército que constituía naturalmente a parte predominante do aparelho militar im perial não era responsável perante o chanceler mas jurava fidelidade direta ao imperador que o controlava pessoalmente através de sua casa militar52 Os escalões superiores da burocracia depurada e reorgani zada por Von Puttkamer tornaramse mais do que nunca um santuá rio da aristocracia nas décadas seguintes a 1870 Além disso o chan celer imperial não era responsável perante o Reichstag e podia ampa rarse em receitas permanentes derivadas das alfândegas e impostos sobre o consumo fora do controle parlamentar embora os orçamentos devessem ser aprovados e as leis promulgadas pelo Reichstag Alguns direitos administrativos e fiscais de menor importância ficaram sob o controle das várias unidades federais do império limitando formal mente o caráter unitário da constituição Tais anomalias conferiram ao Estado alemão do final do século XIX um feitio desconcertante A própria caracterização marxiana do Estado de Bismarck revela um misto de irritação e desconcerto Numa frase célebre e irada que Rosa Luxemburgo gostava de citar ele o descrevia como nichts anderes ais ein mit parliamentàrischen Formen verbramter mit feudalem Beisatz vermischter schon von der Bour geoisie beeinflusster bürokratisch gezimmerter polizeilich gehüteter MUitardespotismus nada mais do que um despotismo militar en feitado de formas parlamentares mesclado a ingredientes feudais já influenciado pela burguesia mobiliado pela burocracia e protegido pela polícia153 A aglutinação de epítetos indica a dificuldade concei tuai sem solucionála Engels viu muito mais nitidamente que Marx que o Estado alemão a despeito de suas peculiaridades juntarase en tão às fileiras de seus rivais inglês e francês Ele escreveu sobre a Guer anterior ao Segundo Ato de Reforma na Inglaterra e ao advento da Terceira Republica na França A J P Taylor Bismarck Londres 1955 p 98 52 Para um bom estudo da Constituição da Alemanha imperial ver K Pinson Modem Germany Its History and Civilization Nova Iorque 1966 pp 15663 53 A passagem aparece na Crítica do Programa de Gotha Marx e Engels Werke vol 19 p 29 278 PERRY ANDERSON rã FrancoPrussiana e o seu autor Bismarck compreendeu a guerra civil de 1866 como o que ela realmente era notadamente uma revo lução e estava preparado para levála a cabo com métodos revolu cionários4 O resultado histórico do conflito com a Áustria foi que as próprias vitórias do exército prussiano abalaram os fundamentos da estrutura estatal prussiana de tal modo que as bases sociais do velho Estado sofreram uma completa transformação5 Comparando o bismarckismo com o bonapartismo afirma expressamente que a constituição criada pelo chanceler prussiano era uma forma moderna de Estado que pressupõe a abolição do feudalismo56 Por outras pala vras o Estado alemão era agora um aparelho capitalista sobredetermi nado pela sua ascendência feudal mas fundamentalmente homólogo da formação social que no início do século XX era amplamente domi nada pelo modo capitalista de produção a Alemanha imperial seria em breve a maior potência industrial da Europa O absolutismo prussiano transmutarase assim após muitas vicissitudes num outro tipo de Es tado Nos aspectos geográfico e social no social porque no geográfico este fora lentamente rebocado do Leste para o Ocidente As condições de possibilidade teóricas de tal transmutação permanecem por deter minar serão consideradas mais à frente 54J F Engels The Role of Force in History Londres 1968 pp 645 55 Marx e Engels Selected Works pp 2467 Í56 Idem p 247 Polônia A ascensão da Prússia a partir de meados do século XVII foi contrabalançada no Leste pelo declínio da Polônia O único grande país que não conseguiu produzir um Estado absolutista na região acabou por desaparecer numa demonstração gráfica a contrario da racionalidade do absolutismo para uma classe nobre As razões pelas quais a szlachta polonesa nunca foi capaz de gerar um Estado feudal centralizado parecem nunca ter sido convenientemente estudadas a derrocada desta classe coloca um problema que não foi ainda cabal mente resolvido pela historiografia moderna1 Quando muito ressal tam dos materiais existentes alguns elementos essenciais que sugerem respostas parciais ou possíveis A Polônia sofreu a última crise feudal em grau menor que qual quer outro país do Leste europeu a Peste Negra quando não as epide mias secundárias passoulhe ao largo enquanto os seus vizinhos eram devastados A monarquia Piast reconstituída no século XIV atingiu o seu apogeu político e cultural durante o reinado de Casimiro III depois de 1333 Com a morte deste monarca em 1370 extinguiuse a dinastia c o título real passou para Luís de Anjou rei da Hungria Monarca ab 1 Ê o que ressalta inequivocamente de uma pesquisa recente e representitivE sobre as causas mencionadas pelos historiadores poloneses para as Partilhas da Polônia muitas das quais nada mais fazem do que recolocar o problema Boguslaw Lesnodarski Lês Partages de Ia Pologne Analyse dês Causes et Essai dune Theorie Acta Histórica VII 1963 pp 730 280 PERRY ANDERSON senteísta Luís viuse forçado a conceder à nobreza da Polônia o Privi légio de Kosice em 1374 em troca da confirmação dos direitos de sua filha Jadwiga à sucessão do trono polaco a aristocracia ganhou a ga rantia da imunidade econômica frente a novos impostos e a autonomia administrativa em suas localidades numa carta inspirada em modelos húngaros anteriores2 Doze anos depois Jadwiga casou com Jagiello grãoduque da Lituânia que tornouse rei da Polônia fundando uma união pessoal entre os dois reinos Tal associação viria a ter efeitos profundos e permanentes em toda a história subseqüente da Polônia O ducado lituano era uma das estruturas mais recentes e notáveis da época Uma sociedade tribal do Báltico tão remota em seus pântanos e matas que se mantinha paga no final do século XIV construíra subi tamente um Estado vitorioso que se transformou num dos maiores im périos territoriais da Europa A pressão ocidental proveniente das or dens militares da Prússia e da Livônia provocara a rápida formação de um principado centralizado a partir das confederações tribais da Lituâ nia o vazio oriental criado depois da subjugação da Rússia póskie viana pelos mongóis permitiulhe a sua expansão externa em direção da Ucrânia Sob os governos sucessivos de Gedymin Olgerd Jagiello e Witold o poder lituano atingiu o Oka e o mar Negro A população destas vastas regiões era em sua maior parte eslava e cristã bielo russa ou rutena a Lituânia exerceu sobre ela uma dominação através de suserania militar que reduzia os senhores locais à condição de vas salos Este Estado poderoso mas primitivo achavase agora vincu lado ao reino da Polônia menor em extensão mas muito mais antigo e avançado Jagiello converteuse ao cristianismo e mudou para a Polô nia para assegurar a União de 1386 enquanto o seu primo Witold ficou na região oriental a fim de governar a Lituânia Com a ascensão de um príncipe estrangeiro a szlachta polonesa conseguiu impor o princípio de que a monarquia era eletiva embora na prática a dinastia jage lônia continuasse a ser investida no trono durante os duzentos anos seguintes A força e o dinamismo acumulados da nova União polonesa lituana em breve se evidenciaria Em 1410 Jagiello infligiu aos Cava leiros Teutonicos a histórica derrota de Grünewald ponto crucial para o destino da Ordem na Prússia Em meados do século renovouse o 2 Quanto a este episódio ver O Halecki From the Union with Hungary to the Union with Lithuania W F Reddaway et alii Org The Cambridge History of Pó land Cambridge 1950 pp 19193 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 281 ataque polonês à Prússia quando os Estados alemães locais se revol taram contra o domínio da Ordem A Guerra dos Treze Anos terminou em 1466 com uma vitória decisiva dos jagelônios Pela Segunda Paz de Torun a Polônia anexou a Prússia ocidental e a Ermlândia a Prússia oriental tornouse um feudo polonês governado como vassalo pelo grãomestre da Ordem Teutonica que a partir daí passou a dever ho menagem e serviço militar à monarquia polaca O poderio da Ordem foi definitivamente rompido e a Polônia adquiriu acesso territorial ao Báltico Danzig Gdansk o maior porto de toda a região tornouse uma cidade autônoma com privilégios municipais especiais sob a sobe rania real polonesa Casimiro IV o vencedor da guerra governava o reino mais extenso do continente Entretanto no seio da própria Polônia assistiuse no final do século XV a um rápido crescimento da posição política e social da pe quena nobreza em detrimento tanto da monarquia como do campesi nato Para assegurar a sucessão de seu filho Jagiello concedeu à no breza em 1425 o princípio de neminem captivabimus imunidade jurídica à prisão arbitrária pelo Privilégio de Brzeg Casimiro IV por sua vez tivera que fazer concessões adicionais à classe fundiária O longo conflito da Guerra dos Treze Anos exigiu a contratação de tropas mercenárias de quase toda a Europa A fim de obter os fundos neces sários para pagálos o rei concedeu à aristocracia o Privilégio de Nieszawa em 1454 que preparava as conventiones particulares regu lares a serem realizadas pela pequena nobreza nas suas regiões a partir daí não era permitido levantar tropas ou impostos sem o seu consen timento3 Sob o seu filho João Alberto veio à luz uma sólida assembléia nacional ou Sejm assistida por assembléias locais e provinciais sej miki da classe fundiária A Sejm era uma assembléia bicameral cons tituída por uma Câmara de Deputados e um Senado a primeira com punhase de representantes eleitos áassejmiki o segundo por altos dig nitários do Estado eclesiásticos e laicos As cidades estavam excluídas de ambas as casas o nascente sistema de Estados polonês era exclusi vamente aristocrático4 Em 1505 a Constituição de Radom consagrou oficialmente os poderes da Sejm a lei de nihil novi privou a monarquia do direito de legislar sem o consentimento dos Estados ao passo que a 3 Ver A Gieysztor em S Kieniewicz Org History ofPoland Varsóvia 1968 pp 1456 4 Os burgueses de Cracóvia e mais tarde de Wilno eram admitidos aos hta balhos da Sejm mas não tinham direito a voto 282 PERRY ANDERSON autoridade dos funcionários da coroa foi cuidadosamente limitada5 No entanto a convocação da Sejm ficava ainda ao arbítrio do mo narca Enquanto isso também nesta época era decretada a servidão jurídica do campesinato polonês Os Estatutos de Piotrkow proibiram em 1496 todo o deslocamento de mãodeobra das aldeias à exceção de um único camponês de cada comunidade por ano Seguiramse me didas adicionais de adscrição à terra em 1501 1503 1510 e 1511 indí cios das dificuldades de implementação da lei Finalmente em 1520 assinouse uma ordenação referente aos tributos feudais impondo cor véias de até seis dias por semana ao vilão ou wloka polonês6 A servi dão dos camponeses que tompuse cada vez mais rigorosa ao longo do século XVI fundamentou a nova prosperidade da szlachta Com efeito a nobreza polaca beneficiouse mais do que qualquer outro grupo so cial da região com o surto cerealífero do Báltico naquela época Os lotes camponeses foram gradualmente reduzidos enquanto o cultivo dominial se expandia para atender à demanda do mercado de exporta ção Na segunda metade do século o volume de cereais embarcado para fora do país duplicou Durante o ápice do comércio de cereais entre 1550 e 1620 a inflação ocidental garantiu à classe fundiária am plos e inesperados rendimentos em virtude dos termos de intercâmbio Considerando uma fase mais longa calculase que entre 1600 e 1750 o valor da produção comercializada dos magnatas tenha triplicado o da pequena nobreza duplicado e o dos camponeses decaído7 Contudo estes lucros não foram produtivamente reinvestidos A Polônia tornou se o celeiro da Europa mas as técnicas de cultivo continuaram primi tivas com índices de rendimento pouco elevados O aumento da pro dução agrícola foi conseguido pela extensão da superfície cultivada especialmente nas terras fronteiriças do sudeste e não pelo aprimora mento intensivo dos cultivos Além disso a aristocracia polonesa usou o seu poder econômico para uma política mais sistematicamente anti urbana que a de qualquer outra classe dominante da Europa No início do século XVI impuseramse preços máximos às manufaturas nativas das cidades cujas comunidades mercantis eram principalmente ale 5 J Tazbir em Kieniewicz Org History ofPoland p 176 6 R F Leslie TkePolish Questton Londres 1964 p 4 7 Witold Kula UnEconomia Agraria Senza Accumulazione Ia Polônia dei SeicoliXVIXVHI Studi Storici n 34 1968 pp 6156 As variações de rendimentos eram muito menores evidentemente devido ao caráter de subsistência da maior parte da produção camponesa estimada por Kula em 90 por cento LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 283 mas judaicas ou armênias Em 1565 os mercadores estrangeiros rece beram privilégios exorbitantes cujo efeito objetivo foi inevitavelmente o enfraquecimento e a ruína dos comerciantes locais A prosperidade comercial da época foi também acompanhada pela expansão urbana e os senhores mais abastados fundaram cidades privadas controladas por eles enquanto outros nobres convertiam no campo oficinas de fundição em moinhos de cereais Mas a autonomia municipal dos patriciados urbanos foi praticamente suprimida em toda parte e com ela as possi bilidades de desenvolvimento industrial Apenas o porto germânico de Danzig escapou à liquidação dos privilégios urbanos medievais por parte da szlachta o controle monopolista das exportações de que passou a desfrutar contribuiu para asfixiar ainda mais as cidades do interior Dessa maneira criouse cada vez mais uma monocultura agrária que importava os seus bens manufaturados do Ocidente numa prefiguração aristocrática das economias ultramarinas do sé culo XIX A classe nobiliária que se constituiu sobre tais bases econômicas não tinha paralelo em qualquer outro lugar da Europa O grau de pres são servil que ela exercia sobre o campesinato era extraordinário com corvéias previstas na lei de até seis dias por semana em 1574 adquiriu oficialmente umjits vitae et necis sobre os servos que permi tia em teoria o direito de os executar arbitrariamente9 A aristocracia que controlava tais poderes era de composição notavelmente diversa da de seus vizinhos Com efeito a teia de parentesco clâriico indício se guro de uma estrutura social préfeudal sobrevivera na sociedade rela tivamente atrasada e amorfa da Polônia do início da era medieval du rante muito mais tempo do que em qualquer outra região a ponto de afetar os contornos da nobreza feudal quando esta apareceu num pe ríodo que desconhecia a hierarquia de vassalagem organizada Quan 8 Tazbir minimiza os eieitos práticos imediatos desta medida mas a sua inten ção é bastante clara Tazbir History ofPoland p 178 9 Leslie ThePolish Question pp 45 10 Esses clãs não eram descendentes diretos de unidades de organização tribal mas formações mais recentes calcadas naquelas Para o conjunto do problema da herál dica clânica na Polônia ver K Gorski Lês Stmctures Sociales de Ia Noblesse Polanaise au Moyen Age Lê Moyen Age 1967 pp 7385 Etimologicamente a palavra sslachta deriva talvez do antigo alto alemão síahta no alemão moderno Geschlecht que significa família ou raça embora a sua origem não seja absolutamente certa Devese notar que a nobreza húngara não diferia da polaca em dimensão e caráter devido também ã pre sença de princípios clânicos pré feudais na sua formação inicial mas os dois casos não devem ser confundidos uma vez que os magiares foram de fato um povo nômade até o 284 PERRY ANDERSON do na Idade Média as insígnias heráldicas foram importadas do Oci dente não foram famílias isoladas que as adotaram mas clãs inteiros cujas redes de parentesco e clientela ainda subsistiam na zona rural O resultado foi a criação de uma classe nobre relativamente numerosa compreendendo talvez umas 700 mil pessoas ou 7 a 8 por cento da população no século XVI No seio desta classe não havia títulos a dis tinguir um grau aristocrático de outro Mas esta igualdade jurídica dentro da nobreza sem equivalentes na Europa era complementada por uma desigualdade econômica também sem paralelos na época A grande massa da szlachta talvez mais da metade possuía dimi nutas propriedades de quatro a oito hectares com freqüência iguais às de um camponês médio Este estrato concentravase nas antigas pro víncias do ocidente e do centro da Polônia na Mazóvia por exemplo constituía cerca de um quinto da população totalI2 Outro setor impor tante da nobreza compunhase de pequenos cavaleiros com pequenas propriedades que não possuíam mais do que uma ou duas aldeias E no entanto nominalmente no seio desta mesma nobreza existiam al guns dos maiores magnatas territoriais da Europa donos de colossais latifúndios situados principalmente nas regiões lituana e ucraniana a leste do país Nestes territórios mais recentes legado da expansão li tuana do século XIV não ocorreu uma idêntica difusão heráldica e a alta aristocracia sempre conservou muito do caráter de uma pequena casta de potentados sobreposta a um campesinato etnicamente estran geiro Durante o século XVI a nobreza lituana tornouse progressiva mente assimilada em sua cultura e em suas instituições à sua homó loga polonesa à medida que a pequena nobreza local conquistava gra dualmente direitos semelhantes aos da szlachta 13i A conseqüência constitucional de tal convergência foi a União de Lublin em 1569 que final do século X e portanto tiveram uma história e uma estrutura social anteriores muito diferentes das dos eslavos ocidentais 11 Para um esboço sociológico ver Andrzej Zajaczkowski Cadres Structurels de Ia Noblesse Annales ESC janeirofevereiro de 1968 pp88102 Os grandes senho res lituanos que reclamavam a descendência de Gedymin ou de Rurik usavam o título honorífico de príncipe mas essa pretensão não tinha força jurídica 12 P Skwarczynski Poland and Lithuania The New Cambridge Modem History ofEurope III p 400 13 Quanto a este processo ver Vernadsky Rússia at the Dawn ofthe Modem Age pp 196200 O livro de Vernadsky inclui um dos melhores relatos existentes sobre o Estado lituano sob o título West Rússia Quanto ao pano de fundo e aos dispositivos da União de Lublin em parte determinada pela pressão militar da Moscóvia sobre a Lituânia ver pp 2418 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUT1STA 285 fundiu finalmente os dois reinos em uma única organização política a Rzeczpospoíita Polska com moeda e parlamento comuns Por outro lado a massa da população das províncias orientais não experimentou tal fusão permanecendo em sua maioria ortodoxos por religião e bie lorussos ou rutenos quanto ao idioma Portanto menos da metade dos habitantes da Comunidade polonesa era étnica e lingüisticamente po laca O caráter colonial da classe fundiária no leste e no sudeste expressavase na dimensão de seus domínios No final do século XVI o chanceler João Zamoyski era senhor de cerca de 800 mil hectares localizados sobretudo na Pequena Polônia e exercia jurisdição sobre umas oitenta cidades e oitocentas aldeias14 No início do século XVII o império Wisnowiecki na Ucrânia oriental estendiase por terras ocu padas por 230 mil súditos15 No século XVIII a família Potocki pos suía na Ucrânia cerca de l milhão e 200 mil hectares a casa Radziwill da Lituânia possuía domínios estimados em 4 milhões de hectares16 Portanto sempre existiu uma extrema tensão entre a ideologia de pari dade jurídica e a realidade de tremenda disparidade econômica no seio da aristocracia polonesa No entanto durante o século XVI o conjunto da szlachta bene ficiouse provavelmente mais do que qualquer outro grupo da Europa com a revolução dos preços Esta foi a época de sonolência do Bran denburgo e de declínio da Prússia oriental a Rússia encontravase em expansão mas em meio a terríveis retrocessos e convulsões A Polônia era em contraste a maior e mais rica potência do Leste Coubelhe a principal parte da prosperidade do Báltico na fase mais pujante do comércio de cereais O brilho cultural da Renascença polonesa o melo ambiente de Copérnico foi disso um resultado No aspecto político no entanto é difícil não suspeitar que a precoce e abundante boa fortuna da szlachta tenha em certo sentido paralisado a sua capacidade de centralização construtiva numa época posterior A Polônia infernas rusticorum para o campesinato proporcionava à nobreza uma áurea libertas não se sentia a necessidade premente de um Estado forte no paraíso dos cavaleiros A passagem relativamente despreocupada da 14 Tazbir History of Poland p 196 além de seus próprios domínios Zamoyski controlava vastas áreas do domínio real Na Polônia as terras pertencentes ao monarca eram amplamente alienadas como garantia dos empréstimos realizados junto aos mag natas 15 A Maczak The Social Distribution of Landed Property in Poland from lhe 16th to the 18th Century Third International Conference ofEconomic History p 461 16 B Boswell Poland em A Goodwin Org The European Nobitity in the 18th Century pp 1678 286 PERRY ANDERSON Polônia pela grande crise econômica e demográfica do feudalismo eu ropeu no fim da Idade Média da qual emergiu menos ferida que qual quer outro país da região seguida pelo maná comercial do início da época moderna talvez tenha preparado a desintegração política que estava por vir Além disso no plano estratégico a Comunidade polo nesa do século XVI não enfrentou nenhuma ameaça militar impor tante A Alemanha estava presa às cruentas discórdias internas da Re forma A Suécia era ainda uma potência menor A Rússia expandiase mais em direção ao Volga e ao Neva que ao Dnieper o desenvolvimento do Estado moscovita embora começando a parecer grandioso perma necia imaturo e a sua estabilidade precária No sul todo o peso da pressão turca era dirigido contra as fronteiras Habsburgo na Hungria e na Áustria enquanto a Polônia era amortecida pela Moldávia um débil Estadovassalo do sistema otomano No sudeste os ataques irre gulares dos tártaros da Criméia embora destrutivos constituíam um problema localizado Portanto não havia a necessidade urgente de um Estado monárquico centralizado capaz de construir uma ampla má quina militar de defesa contra os inimigos externos A imensa extensão da Polônia e o tradicional valor da szlachta como cavalaria feudal pe sada pareciam garantir a segurança geográfica da classe possuidora Assim justamente numa época em que o absolutismo estava em avanço em toda a Europa os poderes da monarquia polonesa eram drástica e definitivamente reduzidos pela aristocracia Em 1572 a di nastia j agelônia extinguiuse com a morte de Segismundo Augusto que não deixou sucessores Seguiuse um leilão internacional pela digni dade real Em 1573 40 mil nobres reuniramse numa assembléia virí tim nas planícies de Varsóvia e elegeram Henrique de Anjou para o trono Estrangeiro sem quaisquer laços com o país o príncipe francês foi forçado a assinar os famosos Artigos Henriquinos que tornaram se a partir daí a carta constitucional da Comunidade polonesa ao mesmo tempo um esquema separado ou Pacta Convento entre o mo narca e a nobreza estabeleceu os precedentes para os contratos pes soais com obrigações específicas e vinculatórias a serem assinados pelos reis poloneses no ato de sua ascensão Nos termos dos Artigos Henriquinos o caráter nãohereditário da monarquia foi expressa mente reconfirmado O próprio monarca foi privado de praticamente todos os poderes substantivos no governo do reino Não podia exonerar os funcionários civis ou militares da sua administração ou ampliar o minúsculo exército de 3 mil homens O consentimento da Sejm que a partir daí devia reunirse a cada dois anos era necessário para qual quer decisão política ou fiscal de importância A infração a estas res LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 287 trições legitimava a rebelião contra o monarca17 Em outras palavras a Polônia tornouse em tudo menos no nome uma república nobiliária com um rei decorativo Jamais uma dinastia polonesa nativa presidiria outra vez o reino a classe fundiária preferiu deliberadamente gover nantes franceses húngaros suecos e saxônios com o intuito de asse gurar a debilidade do Estado central A linhagem jagelônia contara com um extenso domínio hereditário em seus territórios da Lituânia os reis estrangeiros que se sucederam na Polônia não dispunham de uma tal base econômica dentro do país para apoiálos As receitas e as tropas sob o comando dos maiores magnatas eram com freqüência tão grandes como as do próprio soberano Embora alguns príncipesguer reiros fossem ocasionalmente eleitos Bathory Sobieski a monar quia nunca mais recuperou poderes efetivos ou permanentes Além das vicissitudes dinásticas e da heterogeneidade étnica da União polacoli tuana existia talvez uma tradição política mais antiga por trás deste resultado anômalo A Polônia não compartilhara nem a herança impe rial dos bizantinos nem a dos carolíngios a sua nobreza não experi mentara uma integração original numa organização política monár quica comparável à da Rússia de Kiev ou à da Alemanha medieval A genealogia clânica da szlachta era um sinal da distância que as sepa rava De tal modo a sua Renascença não conheceu o culto autocrático de uma monarquia Tudor Valois ou Habsburgo mas o florescimento de uma comunidade aristocrática A fase final do século XVI mal indicava as crises que se avizi nhavam Ao Pacta Conventa de 1573 seguiuse três anos mais tarde após a partida de Henrique para a França a eleição do príncipe Es tevão Bathory da Transüvânia como rei da Polônia Bathory hábil e experiente general magiar controlava uma fortuna e um exército pes soais originários de seu principado vizinho cuja economia relativa mente próspera e urbanizada lhe proporcionava recursos e tropas pro fissionais independentes A sua autoridade política na Polônia estava portanto fortemente escorada em sua base territorial além dos Tatras Ele próprio um governante católico promoveu discretamente a Contra Reforma na Polônia evitando as provocações religiosas àqueles setores da nobreza que tinhamse tornado protestantes O seu reinado se dis 17 Quanto aos Artigos Henriquinos e ao Pacta Conventa ver F Nowak The Interregna and Stephen Batory The Cambridge History of Poland I pp 3723 O melhor estudo geral do sistema constitucional polonês tal como se apresentava nesta época está em Skwarczyriski The Constitution of Poland Before the Partitions The Cambridge History of Poland II pp 4967 288 PERRY ANDERSON tinguiu acima de tudo pela vitória militar contra a Rússia nas Guerras do Báltico Tendo iniciado a campanha contra Ivã IV em 1578 com um exército misto de cavalaria polaca infantaria transilvana e cossacos ucranianos Bathory conquistou a Livônia e varreu as forças russas para além do Polotsk À data de sua morte em 1586 a supremacia da Polônia na Europa oriental parecia maior do que nunca A escolha da szlachta para o seu sucessor recaiu desta vez num sueco Segismundo Vasa Durante o seu reinado o expansionismo polonês pareceu atingir o apogeu Explorando os levantes políticos e sociais na Rússia durante a Época das Dificuldades a Polônia apoiou o breve governo do Falso Dimitri em 16056 um usurpador protegido em sua capital por tropas polonesas Depois em 1610 as forças polacas comandadas pelo het man Zolkiewski reocuparam Moscou e instalaram como czar o filho de Segismundo Ladislau A reação popular russa e as operações contrá rias da Suécia forçaram a guarnição polonesa a evacuar Moscou em 1612 e no ano seguinte o czarado passou à dinastia Romanov No entanto a intervenção polaca na Época das Dificuldades resultou em importantes ganhos territoriais no Armistício de Deulino em 1618 através do qual a Polônia anexou uma ampla faixa da Rússia Branca Nestes anos a Rzeczpospolita atingiu as suas mais vastas fronteiras Não obstante duas fendas fatais de caráter geopolítico prejudi caram este Estado polonês apesar do orgulho inabalado da nobreza husarja nas operações da cavalaria Ambas eram sintomas do indivi dualismo monádico da classe dominante polaca Por um lado a Polô nia fracassara em eliminar o domínio alemão na Prússia oriental As vitórias j agelônias sobre a Ordem Teutônica no século XV reduziram os cavaleiros alemães a vassalos da monarquia polonesa No início do século XVI foi aceita a secularização da Ordem pelo seu grãomestre em troca da manutenção da suserania polaca sobre o que passava a ser o ducado da Prússia Em 1563 Segismundo Augusto o último gover nante jagelônio aceitou partilhar a investidura do ducado com o margrave do Brandenburgo em troca de benefícios diplomáticos tran sitórios Quinze anos mais tarde Bathory vendeu a tutela do duque da Prússia oriental para o Eleitor do Brandenburgo a troco de recursos para financiar a guerra com a Rússia Finalmente em 1618 a monar quia polonesa permitiu a unificação dinástica da Prússia oriental com o Brandenburgo sob a chefia de um governante comum Hohenzollern Assim por uma série de concessões jurídicas que acabaram por resul tar numa completa renúncia à suserania polaca o ducado foi entregue aos Hohenzollern A loucura estratégica que este processo constituiu em breve se evidenciaria Ao perder a oportunidade de integrar a Prús LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 29 sia oriental a Polônia perdeu também a chance de controlar o litoral do Bãltico e nunca se tornou uma potência marítima A falta de uma frota iria tornála vulnerável a invasões anfíbias vindas do norte As razões de tal inércia devem indubitavelmente ser procuradas no caráter da nobreza Tanto o domínio da costa como a construção de uma ma rinha exigiam uma poderosa máquina de Estado capaz de erradicar os junkers da Prússia oriental e de mobilizar o investimento público neces sário à construção de fortes estaleiros e instalações portuárias O Es tado russo de Pedro o Grande pôde realizar esta tarefa assim que atingiu o Báltico A szlachta polonesa não se mostrou interessada Çon tentavase em contar com o esquema tradicional do transporte de ce reais através de Danzig em cargueiros holandeses ou alemães O con trole real sobre as políticas de comércio de Danzig foi abandonado na década de 16408 A nobreza era indiferente à sorte do Báltico A sua expansão assumiria uma forma completamente diferente um im pulso em direção às regiões fronteiriças do sudeste na Ucrânia Aí era possível e lucrativa a penetração e colonização de caráter privado não havia um Estado organizado para resistir a tal avanço e não eram necessárias inovações econômicas para criar novos latifúndios nas ter ras excepcionalmente férteis de ambos os lados do Dnieper Assim no início do século XVII a propriedade senhorial polonesa estendeuse ainda mais profundamente para além da Volínia e da Podólia através da Ucrânia oriental A imposição da servidão ao campesinato ruteno local exacerbada pelos conflitos religiosos entre as Igrejas católica e ortodoxa e complicada pela turbulenta presença das colônias de cossa cos fez desta região selvagem um constante problema de segurança No aspecto econômico a mais lucrativa projeção da Comunidade ela era no plano social e político a área mais explosiva do Estado nobi liário Dessa maneira a reorientação da szlachta do Báltico para o mar Negro viria a revelarse duplamente desastrosa para a Polônia As suas conseqüências finais seriam a Revolução da Ucrânia e o Dilú vio sueco Nos primeiros anos do século XVII tornavamse visíveis no seio da Polônia inquietantes sinais de crise iminente Na virada do século os limites da economia agrária tradicional na região central do país que fornecera a base produtiva ao poder externo da Polônia começaram a se fazer sentir A expansão do sistema senhorial não fora acompanhada 18 H Jablonowski PolandLithuania 16091648 The New Cambridge Mo dem HistoryofEurope IV Cambridge 1970 pp 6001 290 PERRY ANDERSON por melhorias reais na produtividade a superfície arável crescera ao passo que as técnicas permaneciam grandemente estacionárias Além disso tornavase agora evidente o preço a pagar pela desordenada ex tensão da agricultura dominial às custas das posses camponesas Havia sinais de exaustão agrícola mesmo antes que os preços dos cereais co meçassem a cair com a depressão européia que passou a instalarse gradualmente a partir da década de 1620 A produção começou a de clinar e o que era ainda mais grave os rendimentos diminuíram19 Ao mesmo tempo a coesão política do Estado ficava seriamente debi litada com novas derrogações da autoridade central que a monarquia mantivera tenazmente Em 16079 uma grave revolta da nobreza con tra Segismundo II a rebelião Zebrzydowski forçou o rei a aban donar seus planos de um poder monárquico reformado A partir de 1613 a Sejm nacional delegou fasçjmiki locais o encargo de estabele cer impostos tornando ainda mais difícil a instauração de um sistema fiscal efetivo Na década de 1640 as sejmiki conquistaram ainda maior autonomia financeira e militar nas suas localidades Enquanto isso a revolução que à época se operava nas técnicas militares não levava em conta szlachta a sua perícia na cavalaria tornavase crescentemente anacrônica em batalhas decisivas por infantarias treinadas e artilharia móvel O principal exército da Comunidade compunhase ainda de apenas 4 mil homens em meados do século e escapava ao controle real graças ao comando independente dos ketmctns vitalícios enquanto isso os magnatas fronteiriços mantinham muitas vezes exércitos priva dos de dimensão virtualmente equivalente20 Na década de 1620 a rá pida conquista sueca da Livônia o domínio do litoral da Prússia orien tal e a extorsão de pesados tributos no Báltico tinham revelado a vul nerabilidade das defesas polonesas no norte entretanto no sul suces sivos levantes cossacos foram pacificados com dificuldade nos anos 1630 Estava montado o cenário para o espetacular colapso do país no reinado do último rei Vasa João Casimiro Em 1648 os cossacos ucranianos revoltaramse sob a chefia de Khmeltnitsky e na esteira do levante desencadeouse uma jacqiterie camponesa contra a classe senhorial polaca Em 1654 os líderes cos 19 Jerzy Topolski La Régression Économique en Pologne du XVIe au XVIIIe Siècle Acta Polônias Histórica VII 1962 pp 2849 20 Tazbir History of Poland p 224 Em teoria evidentemente um recruta mento geral da nobreza poderia fornecer a força principal para as guerras com o estran geiro LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 291 sacos levaram consigo para o Estado russo rival vastas porções do su deste com o Tratado de Pereyaslavl os exércitos russos marcharam para o ocidente capturando Minsk e Wilno Em 1655 a Suécia lançou um devastador ataque em tenaz através da Pomerânia e da Curlândia o Brandenburgo aliouse a ela para uma invasão conjunta Varsóvia e Cracóvia caíram rapidamente nas mãos das tropas suecas e prussianas enquanto os grandes senhores Htuanos apressavamse em desertar para juntarse a Carlos X e João Casimiro escapava para um refúgio na Áustria A ocupação sueca na Polônia suscitou na szlachta uma feroz resistência Seguiuse a intervenção internacional para impedir o alar gamento do império sueco as frotas holandesas deram cobertura a Danzig a diplomacia austríaca auxiliou o rei fugitivo as tropas russas assaltaram a Livônia e a Ingria finalmente a Dinamarca lançouse sobre a retaguarda sueca Em conseqüência a Polônia ficou livre de exércitos suecos em 1660 depois de imensa destruição A guerra com a Rússia durou ainda mais sete anos Quando a Comunidade encontrou de novo a paz em 1667 depois de aproximadamente duas décadas de conflito perdera a Ucrânia oriental com Kiev as extensas terras fron teiriças cujo centro era Smolensk e todas as pretensões residuais sobre a Prússia oriental na década seguinte a Turquia tomava a Podólia As perdas territoriais ascendiam a um quinto do território polonês Mas os efeitos econômicos sociais e políticos daqueles anos desastrosos foram ainda mais graves Os exércitos suecos que varreram o país tinhamno deixado de ponta a ponta destruído e despovoado o rico vale do Vís tula foi a região mais duramente atingida A população da Polônia decresceu de um terço entre 1650 e 1675 ao passo que as exportações de cereais via Danzig caíram em mais de 80 por cento entre 1618 e 169121 A produção cerealífera de muitas regiões entrou em colapso devido à devastação e à queda demográfica a produção nunca se recu perou Verificouse uma contração da área cultivada e muitas szlachta se arruinaram A crise econômica que se seguiu à guerra acelerou a concentração da terra em condições em que apenas os grandes senho res tinham os recursos para reorganizar a produção e muitos domínios menores estavam à venda As exações servis se intensificaram em meio 21 Henry WÜlets Poland and the Evolution of Rússia em TrevorRoper Org TheAgeofExpansion p 265 Para um relato minucioso do que foram as devas tações do Dilúvio na região de Mazóvia ver I Gíeysztorowa Guerre et Régression en Mazovie aux XVIe et XVIIe Siècles Annales ESC outubronovembro de 1958 pp 65168 que aborda também o declínio econômico que aí se registrara antes da guerra a partir do início do século XVII A população da Mazóvia caiu de 638 mil para 305 mil habitantes entre 1578 e 1601 ou em cerca de 52 por cento 292 PERRY ANDERSON menores estavam à venda As exações servis se intensificaram em meioà à nova estagnação A desvalorização da moeda e a depressão dos salá rios fulminaram as cidades No plano cultural a szlachta vingouse da história que a desa pontara adotando uma mórbida mitomania um surpreendente culto de imaginários ancestrais sármatas do passado préfeudal combi nouse com um fanatismo provinciano ligado à ContraReforma num país onde a civilização urbana refluía acentuadamente A ideologia pseudoatávica do sarmatianismo não constituía uma mera aberração ela refletia a situação do conjunto da classe que encontrava a sua mais viva expressão no próprio reino constitucional Com efeito no plano político o efeito conjunto da Revolução da Ucrânia e do Dilúvio sueco estilhaçou a frágil unidade da Comunidade polaca A grande brecha aberta na história e na prosperidade da classe nobiliária não a congre gou na criação de um Estado centralizado que pudesse enfrentar novos ataques externos ao contrário mergulhoua numa fuite en avant de caráter suicida A partir de meados do século XVII a lógica anárquica da organização política polonesa atingiu uma espécie de paroxismo institucional com a norma da unanimidade parlamentar o famoso liberum veto12 Desde então um único voto negativo podia dissolver a Sejm e paralisar o Estado O liberum veto foi exercido pela primeira vez por um deputado à Sejm em 1652 depois disso o seu uso cresceu rapidamente e estendeuse ksejmiki provinciais que eram agora mais de setenta A classe fundiária que há muito tornara o executivo prati camente impotente acabava assim por neutralizar também o legisla tivo O eclipse da autoridade real foi doravante completado pela desin tegração do governo representativo Na prática o caos apenas foi evi tado pelo crescente predomínio dos grandes magnatas orientais no seio da nobreza pois os seus vastos latifúndios cultivados por servos rutenos ou russos brancos conferiamlhes preponderância sobre os pequenos cavaleiros da Polônia central e ocidental Um sistema de clientela for neceu assim uma certa estrutura organizada à classe szlachta ainda que as rivalidades entre as famílias dos grandes senhores Czarto ryski Sapieha Potocki Radziwill e outras rompessem constante mente a unidade da nobreza pois ao mesmo tempo eram eles que 22 O estudo clássico sobre este dispositivo singular é o de L Konopczynki Lê Liberum Veto Paris 1930 Konopczynski conseguiu localizar apenas uma instituição similar o direito formal de dissentimiento em Aragão Mas o veto aragonês era na prática comparativamente inócuo LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 293 com mais freqüência lançavam mão do liberum veto23 O reverso cons titucional do veto era a confederação um artifício jurídico que permitia às facções aristocráticas se autoproclamarem em estado de insurreição armada contra o governo24 Por ironia o voto majoritário e a disciplina militar estavam juridicamente previstos para as confede rações rebeldes ao passo que a Sejm unitária era constantemente imo bilizada pela intriga política e pelo voto unânime A vitoriosa subleva ção da nobreza chefiada pelo grande marechal Lubomirski que evitou a eleição vivente rege de um sucessor de João Casimiro em 16656 e precipitou a abdicação do rei pressagiava a orientação futura da política dos grandes senhores Na era de Luís XIV e Pedro I nascia no Vístula uma negação total e radical do absolutismo A Polônia ainda continuava a ser o segundo maior país da Eu ropa Nas últimas décadas do século XVII o reiguerreiro João So bieski restaurou algumas de suas anteriores posições externas Levado ao poder pelo perigo de renovados ataques dos turcos na Podólia So bieski conseguiu ampliar o exército central para 12 mil homens e mo dernizálo pela inclusão de unidades de dragões e de infantaria As forças polonesas desempenharam o principal papel na libertação de Viena em 1683 e os avanços otomanos na região do Dniester foram contidos Mas os frutos mais importantes desta última e bemsucedída mobilização dá szlachta foram colhidos pelo imperador Habsburgo o auxílio polaco contra os turcos apenas permitiu ao absolutismo aus tríaco expandirse rapidamente em direção aos Bálcãs No plano in terno de pouco valeu a Sobieski a sua reputação internacional Todos os seus projetos para uma monarquia hereditária viramse frustrados o liberum veto tornouse cada vez mais freqüente na Sejm Na Lituâ nia onde o clã Sapieha exercia amplos poderes o mandado do mo narca deixou virtualmente de existir Em 1696 a nobreza rejeitou o seu filho como sucessor uma disputada eleição acabou com a instalação de outro príncipe estrangeiro no trono Augusto II da Saxônia sustentado pela Rússia O novo governante Wettin tentou usar os recursos indus triais e militares saxônios para estabelecer um Estado monárquico mais 23 O deputado Sicinski que inaugurou o uso do veto em 1652 era um instru mento de Boguslaw Radziwill Para uma análise estatística do exercício do liberum veto nos cem anos seguintes que demonstra o caráter acentuadamente regional de sua uti lização 80 por cento dos deputados que o exerceram eram originários da Lituânia ou da Pequena Polônia ver Konopczynski Lê Liberum Veto pp 2178 A família Potocki detinha o recorde de recursos dos grandes senhores ao veto 24 Para o dispositivo da confederação ver Skwarczynski The Constitutíon of Poland before the Partitions p 60 294 PERRY ANDERSON convencional com um programa econômico mais convincente Plane jouse criar uma companhia comercial saxopolaca para o Báltico a construção portuária foi revitalizada enquanto as tropas Wettin domi navam a Lituânia25 Aszlachta Logo reagiu em 1699 oPacta Conventa foi imposto a Augusto II estipulando a retirada de seu exército alemão do país Em conluio com Pedro I Augusto levou então as suas tropas através da fronteira rumo ao norte para um ataque à Livônia sueca Tal operação precipitou a Grande Guerra do Norte em 1700 A Sejm repudiou energicamente os planos pessoais do rei mas o contraataque sueco às forças saxônias em 17012 mergulhou o país no torvelinho da guerra Ao cabo de devastadores combates Carlos XII invadiu a Polô nia depôs Augusto II e instalou no trono um pretendente nativo Esta nislau Leszczynski Defrontada com a ocupação a nobreza dividiuse os grandes senhores do leste como em 1655 optaram pela Suécia ao passo que a massa dos pequenos cavaleiros do oeste juntouse relutan temente à aliança saxorussa A derrota de Carlos XII em Poltava res taurou Augusto II na Polônia Contudo quando em 17134 o rei saxão tentou reintroduzir o seu exército e ampliar o poder real prontamente se formou uma confederação rebelde e a intervenção militar russa im pôs o Tratado de Varsóvia a Augusto II em 1717 Por injunção de um enviado russo o exército polonês foi fixado em 24 mil homens as tro pas saxônias foram limitadas a 1200 guardas pessoais do monarca e os funcionários alemães da administração foram repatriados A Grande Guerra do Norte revelouse um segundo Dilúvio Os rigores da ocupação sueca e a desolação deixada por sucessivas campa nhas dos exércitos escandinavos alemães e russos em solo polonês co braram um pesado tributo A população da Polônia atingida pela guerra e pela peste caiu para cerca de 6 milhões de habitantes As extorsões econômicas das três potências que disputavam o controle es tratégico do país cerca de 60 milhões de taleres montaram a três vezes a receita pública total da Comunidade durante o conflito27 Mais grave que isso a Polônia era pela primeira vez um objeto inerte do 25 Para uma reavaliação recente dos primeiros planos saxonios na Polônia ver 3 Gierowski e A Kaminski The Eclipse of Poland The New Cambridge Modem Hisíory ofEurope VI pp 6878 26 Na verdade embora o Tratado de Varsóvia permitisse a convocação de 24 mil homens somente cerca de 12 mil foram recrutados uma vez que a dimensão do exército central antes da guerra alcançava 18 mil soldados o resultado foi uma nova redução do poderio militar polonês E Rostworowski History of Poland pp 2812 289 27 Gierowski e Kaminski The Eclipse of Poland pp 7045 Em 1650 a população da Polônia atingira cerca de 10 milhões de habitantes LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 295 conflito internacional que se travava no seu território A passividade política da szlachta na disputa triangular entre Carlos XII Pedro I e Augusto II só foi rompida por sua sombria resistência a todo movi mento no sentido de fortalecer o poder monárquico na Polônia e por tanto a capacidade defensiva polonesa Augusto II cuja base de apoio na Saxônia era mais rica e avançada do que jamais o fora na Transil vânia foi incapaz de repetir a experiência de Bathory um século de pois Para impedir que a União saxopolaca frutificasse a nobreza es tava disposta a aceitar o protetorado da Rússia O convite à invasão feito em 1717 a São Petersburgo inaugurou uma época de crescente submissão às manobras czaristas na Europa oriental Em 1733 a eleição para a monarquia foi mais uma vez bastante disputada A França tentou apoiar a candidatura de Leszczynski como natural da Polônia e aliado de Paris A Rússia apoiada pela Áustria e pela Prússia optou por uma sucessão saxÔnia como alternativa mais frágil a despeito da eleição legítima de Leszczynski Augusto III foi devidamente imposto pelas baionetas estrangeiras O novo governante ao contrário de seu pai um monarca absenteísta que residia em Dresden não fez qualquer tentativa de remodelar o sistema político na Polônia Varsóvia deixou de ser a capital uma vez que o país se tornou uma vasta província estagnada ocasionalmente cruzada por exércitos vizinhos Os ministros saxonios distribuíram sinecuras no Es tado e na Igreja enquanto as facções de magnatas reduziam os vetos na Sejm sob injunção ou suborno das potências estrangeiras rivais Rússia Áustria Prússia e França28 A szlachta que durante o apogeu da Reforma e da ContraReforma mantivera um padrão de tolerância religiosa raro na Europa era agora na Época das Luzes tomada por um fanatismo católico já esquecido as febres de perseguição que se apoderaram da nobreza foram o sintoma decadente de seu patrio tismo Do ponto de vista econômico verificouse uma certa recupera ção no final do século XVIII A população elevouse de novo aos níveis anteriores ao Dilúvio ao passo que a exportação de cereais através de Danzig duplicava nos quarenta anos seguintes à Grande Guerra do Norte embora permanecendo muito inferior aos índices máximos obti dos no século anterior A concentração de terras e de servos continuou em benefício dos grandes senhores29 28 Após a imposição inicial de Augusto II todas as sessões da Sejm que reu niuse treze vezes durante o reinado foram interrompidas pelo uso do liberam veto 29 Os comentários de Montesquieu sobre a Polônia eram bem característicos da opinião do iluminismo na época A Polônia não tem praticamente nenhuma da 296 PERRY ANDERSON Em 1764 Poniatowski amante polonês de Catarina II ligado à facção Czartoryski tornouse o novo monarca por escolha russa A permissão inicial de São Petersburgo de proceder a reformas centra lizadoras em breve foi revogada a pretexto da supressão dos direitos dos súditos ortodoxos e protestantes na Polônia advogada pelos Czar toryskis As tropas russas intervieram em 1767 acabando por suscitar uma reação da nobreza contra a dominação estrangeira sob a bandeira da intolerância religiosa e não da reforma política A Confederação de Bar revoltouse em 1768 contra Poniatowski e a Rússia em nome do exclusivismo católico Os camponeses ucranianos aproveitaram a opor tunidade para levantarse contra os seus senhores poloneses enquanto as tropas confederadas recebiam auxílio da França e da Turquia Ao fim de quatro anos de luta a Confederação foi esmagada pelos exérci tos do czar Do imbróglio diplomático entre a Rússia a Prússia e a Áustria em torno desta questão resultou a Partilha da Polônia em 1772 um esquema destinado a reconciliar as três cortes A monarquia Habsburgo tomou a Galícia a monarquia Romanov ficou com a maior parte da Rússia Branca a monarquia Hohenzollern adquiriu a Prússia ocidental e com ela o prêmio do controle absoluto do litoral do sul do Báltico A Polônia perdeu 30 por cento de seu território e 35 por cento de sua população No aspecto físico era ainda mais extensa que a Es panha Mas a prova de sua impotência era agora irrefutável O impacto causado pela Primeira Partilha deu origem tardia mente a uma maioria no seio da nobreza favorável a uma revisão da estrutura do Estado O crescimento de uma burguesia urbana em Var sóvia que quadruplicou em tamanho durante o reinado de Ponia towski contribuiu para a secularização da ideologia da classe fundiá ria Em 178891 conseguiuse um precário consentimento da Prússia para um novo arranjo constitucional nos seus últimos momentos de vida a Sejm votou a abolição do liberum veto e a supressão do direito de confederação o estabelecimento de uma monarquia hereditária a criação de um exército de 100 mil homens e a instauração de um im posto territorial ao lado de privilégios um pouco mais amplos30 A quelas coisas que chamamos os bens móveis do universo à parte o trigo de suas terras Uns poucos senhores possuem províncias inteiras eles oprimem os camponeses para obter uma quantidade maior de trigo a ser vendido no exterior a fim de granjearem a si pró prios os objetos requeridos por seu luxo Se a Polônia não comerciasse com outras na ções o seu povo seria mais felizeljprif das Low Paris 1961 II p 23 30 Para a Constituição de 1791 ver R F Leslie Polish Politics and the Revo lution ofNovember830 Londres 1956 pp 278 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 297 Rússia retribuiu rápida e condignamente Em 1792 os soldados de Catarina II invadiram o país na retaguarda de uma frente de magnatas da Lituânia e a Segunda Partilha foi executada A Polônia perdeu em 1793 três quintos dos territórios que lhe restavam e a sua população viuse reduzida a 4 milhões de almas desta vez a Rússia ficou com a parte do leão com a anexação de todo o resto da Ucrânia enquanto a Prússia absorvia a Poznânia O ato final da Rzeczpospolita teve lugar dois anos depois em meio a uma confusão e explosão apocalípticas de épocas e de classes Em 1794 eclodiu uma insurreição nacionalista e liberal chefiada por Kosciuszko um veterano da Revolução Americana e cidadão da República francesa a massa da nobreza alistouse numa causa que reclamava a emancipação dos servos e reunia as massas ple béias da capital misturando as correntes contrárias do sarmatianismo e do jacobinismo num despertar confuso e desesperado da nobreza sob o impacto combinado do absolutismo estrangeiro no Leste e da revolu ção burguesa no Ocidente O radicalismo da Insurreição Polonesa de 1794 decretou a sentença de morte do Estado szlachta Para as cortes legitimistas que a cercaram era como se subitamente se visse subir ao longo do Vístula o fulgor refletido e longínquo dos incêndios do Sena As ambições territoriais dos três impérios vizinhos adquiriram então a urgência ideológica de uma missão contrarevolucionária Depois que Kosciuszko rechaçou um ataque prussiano a Varsóvia Suvorov foi en viado com um exército russo para apagar a revolta A derrota da rebe lião marcou o fim da independência da Polônia Em 1795 o país desa pareceu por completo sob a Terceira Partilha As razões internas pelas quais a nobreza particularmente capri chosa e turbulenta que governava a Polônia foi incapaz de consumar um absolutismo nacional estão sem dúvida por explorar3Í propuse mos aqui apenas alguns elementos para uma explicação Mas o Estado feudal que ela criou fornece uma singular elucidação das razões pela quais o absolutismo era a forma natural e normal de poder da classe 31 A tutela política estrangeira era certamente mais aceitável para a szlachta devido à relativa ausência de violação dos interesses econômicos da nobreza enquanto classe Por outro lado parece claro também que a nobreza tolerou por tanto tempo a erosão progressiva da independência nacional em parte porque fracassara em construir o seu próprio Estado centralizado Se tivesse existido um absolutismo polonês de qualquer espécie a partilha teria privado um importante setor da nobreza de suas posições na máquina do Estado tão importantes e lucrativas para as outras aristocracias da Eu ropa A reação à perspectiva de anexação teria sido então mais pronta e vigorosa A mudança final na disposição e nos objetivos que esteve por trás da tardia tentativa de criar uma monarquia reformada no século XVIII também exige uma compreensão mais aprofundada para uma explicação satisfatória da história da szlachta 298 PERRY ANDERSON nobre após o fim da Idade Média Com efeito uma vez dissolvida a cadeia integrada de suseranias mediatizadas que constituía o sistema político medieval a nobreza não tinha outra fonte de unificação A aristocracia achavase habitualmente dividida em uma hierarquia ver tical de graus em contradição estrutural com qualquer distribuição horizontal de representação tal como a que mais tarde caracterizaria os sistemas políticos burgueses Impunhase portanto um princípio ex terno de unidade para mantêla coesa a função do absolutismo foi precisamente impor de fora à nobreza uma rigorosa ordem formal Daí a possibilidade de conflitos constantes entre os governantes absolutistas e as suas aristocracias o que como vimos ocorreu em toda a Europa Tais tensões estavam inscritas na própria natureza da relação solidária entre ambos desde que no seio da classe nobre era impraticável uma mediação imanente de interesses O absolutismo somente poderia go vernar para a aristocracia se se mantivesse acima dela Apenas na Polônia a dimensão paradoxal da szlachta e a ausência formal de títu los em seu interior produziram no seio da nobreza uma caricatura autodestrutiva de um sistema propriamente representativo A incom patibilidade entre ambos foi grotescamente demonstrada pelo liberum veto Na verdade dentro de um tal sistema não havia motivos para que um membro da nobreza renunciasse a sua soberania as sejmiki provin ciais podiam ser dissolvidas por um simples cavaleiro e a Sejm por um delegado de uma única sejmik O clientelismo informal não podia for necer um substituto adequado do princípio de unidade A anarquia a impotência e as anexações eram os resultados inevitáveis A república nobiliária foi finalmente eliminada pelos absolutismos vizinhos Deve se a Montesquieu o epitáfio desta experiência alguns anos antes de seu fim Sem monarquia não há nobreza sem nobreza não há mo narquia Áustria Em certo sentido o Estado austríaco representou o oposto consti tucional da Comunidade polonesa Com efeito ele se baseou de forma mais completa e exclusiva no princípio de organização dinástica do que qualquer outro da Europa A linhagem Habsburgo teria poucos rivais quanto à duração de seu domínio conservou o poder na Áustria de modo ininterrupto do final do século XIII ao princípio do século XX E o que é mais significativo a única unidade política existente entre as diversas regiões que viriam a formar o império austríaco era a identi dade da dinastia que as governava O Estado Habsburgo foi sempre de modo incomparável um Hausmacht familiar um agrupamento de heranças dinásticas sem um denominador comum étnico ou territorial A monarquia atingiu aí a sua mais pura ascendência E todavia por essa mesma razão o absolutismo austríaco nunca conseguiu criar uma estrutura estatal coerente e integrada semelhante à dos seus rivais prussiano e russo Em certa medida sempre representou uma forma híbrida com elementos ocidentais e orientais devido às divisões políticas e territoriais de suas partes constituintes dispostas ao longo da linha entre o Báltico e o Adriático no centro geométrico da Europa Assim em alguns aspectos importantes o caso austríaco situase na interseção de uma tipologia regional do absolutismo europeu É esta posição histórica e geográfica particular que empresta um interesse es pecial ao desenvolvimento do Estado Habsburgo a Europa centrar produziu com propriedade um absolutismo de características formal mente intermediárias cuja divergência em relação às normas estritas 300 PERRY ANDERSON do Ocidente ou do Leste confirma e especifica a sua polaridade As estruturas heteróclitas do absolutismo austríaco refletem a natureza compósita dos territórios que ele presidia e que nunca foi capaz de reduzir de maneira duradoura a uma estrutura política única E no entanto ao mesmo tempo tal combinação de motivos não impediu uma tonalidade dominante O império austríaco que se formou ao longo do século XVII revelouse apesar das aparências pouco propenso à fissão porque continha uma uniformidade social básica capaz de tornar as suas várias partes compatíveis entre si Em dife rentes formas e matizes a agricultura servil predominava no conjunto dos territórios Habsburgo A grande maioria das populações campone sas governadas pela dinastia tchecos eslovacos húngaros alemães ou austríacos estavam atadas ao solo com dever de serviços aos seus senhores e sujeitas a jurisdições senhoriais Os camponeses de cada uma dessas terras não formavam uma massa rural indiferenciada re gistravam diferenças de condição de importância considerável Mas não restam dúvidas quanto ao predomínio absoluto da servidão no seio do império austríaco na época da ContraReforma quando pela pri meira vez este assumiu uma forma duradoura Portanto devese classi ficar taxonomicamente o Estado Habsburgo na sua configuração ge ral como um absolutismo do Leste na prática como veremos as suas peculiares características administrativas não escondiam a sua verda deira descendência A família Habsburgo era natural da Alta Renânia e atingiu proe minência pela primeira vez em 1273 quando o conde Rodolfo de Habs burgo foi eleito imperador pelos príncipes alemães ansiosos por impe dir a ascensão do rei premíslida da Boêmia Ottokar II que anexara a maior parte dos territórios austríacos a leste e era o principal preten dente à dignidade imperial Os domínios Habsburgo concentravamse ao longo do Reno em três blocos separados em Sundgau a oeste do rio Breigau a leste e Aargau ao sul depois da Basiléia Rodolfo I conseguiu mobilizar uma coligação imperial para atacar Ottokar II que foi derrotado em Marchfeld cinco anos mais tarde a linhagem Habsburgo adquiriu assim o controle sobre os ducados austríacos muito mais vastos que os seus territórios renanos transferindo para aí a sua principal base Os objetivos estratégicos da dinastia eram agora duplos conservar o domínio da sucessão imperial com toda a sua in fluência política e ideológica dentro da Alemanha confusa mas consi derável e consolidar e ampliar a base territorial de seu poder Os du cados austríacos recentemente conquistados formavam um bloco subs tancial de Erblande hereditárias que faziam dos Habsburgos pela pri LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 301 meira vez uma força importante no seio da política alemã Mas eles permaneciam de certo modo excêntricos ao Reich a via óbvia de en grandecimento seria associar os novos bastiões austríacos às velhas ter ras renanas a fim de constituir um único bloco geográfico por todo o sul da Alemanha com acesso direto aos centros da riqueza e do poder imperiais Para garantir a sua eleição Rodolfo I fizera promessas de nãoagressão na Renânia1 mas todos os primeiros governantes Habs burgo se esforçaram vigorosamente pela expansão e unificação de seus domínios No entanto esta primeira tentativa histórica de construção de um Estado germânico ampliado encontrou pela frente um obstáculo fatal No meio do caminho entre as terras da Renânia e as da Áustria havia os cantões suíços A intromissão Habsburgo nesta regiãochave provocou uma resistência popular que derrotou repetidas vezes os exér citos austríacos e culminou na criação da Suíça como uma confedera ção autônoma totalmente desvinculada do império A peculiaridade e o interesse da revolta suíça residem em que ela aglutinou dois elementos sociais do complexo inventário do feudalismo europeu que em nenhuma outra parte se acharam reunidos de forma similar as montanhas e as cidades Foi esse também o segredo de seu êxito singular num século no qual em toda parte as revoltas campone sas eram derrotadas Desde os primeiros tempos da Idade Média como vimos o modo de produção feudal teve sempre uma difusão topográ fica bastante desigual nunca penetrou nas terras altas na mesma ex tensão em que conquistou as planícies e os pântanos As regiões mon tanhosas em toda a Europa ocidental sempre constituíram redutos remotos da pequena propriedade camponesa alodial ou comunal cujo solo exíguo ou pedregoso oferecia relativamente poucos atrativos para o cultivo senhorial Os Alpes suíços a cadeia de montanhas mais elevada do continente eram naturalmente um exemplo acabado deste padrão Não obstante eles também se situavam ao longo de uma das principais rotas de comércio terrestres da Europa entre as duas regiões urbanas densamente povoadas do sul da Alemanha e do norte da Itália Por tanto os seus vales estavam pontílhados de centros comerciais locais que tiravam vantagem de uma situação estratégica entre os altos pas sos O cantonalismo suíço do século XIV foi o produto da confluência dessas forças Inicialmente influenciada pelo exemplo das vizinhas co munas da Lombardia na sua luta contra o império a revolta suíça con tra os Habsburgos reuniu montanheses rurais e burgueses urbanos 1 A Wandruszka The Houseof Habsburg Londres 1964 pp 401 302 PERRY ANDERSON numa combinação vitoriosa A direção política coube aos três cantões florestais cuja infantaria camponesa desbaratou a cavalaria senhorial austríaca pouco à vontade nos estreitos vales na batalha de Morgar ten em 1315 Em conseqüência a servidão foi abolida no Uri no Schwyz e no Unterwalden no espaço de uma década2 Em 1330 houve uma revolução municipal em Lucerna e em 1336 em Zurique ambas voltadas contra os patriciados próHabsburgo No ano de 1351 selou se uma aliança formal entre essas duas cidades e os cantões florestais Finalmente as suas tropas combinadas repeliram e derrotaram os exér citos Habsburgo em Sempach e Nafels em 1386 e 1388 Em 1393 nasceu a Confederação Suíça a única república independente da Eu ropa3 Os camponeses lanceiros suíços tornarseiam a força militar de elite da arte bélica do final da Idade Média e do início da época mo derna pondo fim à longa predominância da cavalaria com as suas vitórias sobre os cavaleiros borgonheses reunidos em auxílio à Áustria no século seguinte e inaugurando as novas proezas da infantaria merce nária Por volta do início do século XV a dinastia Habsburgo perdera para os suíços todos os seus territórios situados além da curva do Reno e fracassara em unir as suas possessões em Sundgau e Breisgau4 As suas províncias renanas não eram mais que enclaves dispersos simbolica mente rebatizadas de Vorderòsterreich e administradas a partir de Inns bruck Toda a orientação da dinastia desviouse então para o leste Entretanto na Áustria propriamente dita o poder Habsburgo não encontrara os mesmos infortúnios O Tirol foi anexado em 1363 o título de arquiduque foi adquirido quase à mesma época os Estados que apareceram a partir de 1400 foram mantidos sob razoável con trole após alguns conflitos intensos Por volta de 1440 a dignidade imperial perdida no início do século XIV após as primeiras derrotas 2 W Martin A History ofSwitzerland Londres 1931 p 44 3 O singular aparecimento da plebéia Confederação Suíça no seio da Europa aristocrática e monarquísta traz à luz uma característica importante e geral da organi zação política do fim da Idade Média o mesmo parcelamento da soberania que existia ao nível nacional podia também operar em um plano internacional por assim dizer permitindo brechas e interstícios anômalos no sistema global de suserania feudal As comunas italianas já o tinham demonstrado em um plano municipal ao sacudirem a autoridade imperial Os cantões suíços alcançaram a independência de toda uma região através de sua confederação uma anomalia que só era possível num sistema político como o feudalismo europeu A dinastia Habsburgo jamais os perdoou quatro séculos mais tarde a Suíça ainda era para Maria Tereza um refúgio de dissolutos e crimi nosos 4 HF Feine Die Territorialbildung der Habsburger im deutschen Südwes tenZeitschriftderSavignyStiftungfürRechtsgeschichteGerm Abt LXVII 1950 pp 272 277 306 o mais extenso estudo recente sobre o tema LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 303 na Suíça foi recuperada pela dinastia com o colapso do poder Lu xemburgo na Boêmia e nunca mais voltaria a escapar demasiado ao seu controle Em 1477 uma aliança matrimonial com a Casa de Bor gonha aliada da Áustria na luta contra a Suíça assegurou tempo rariamente o prêmio inesperado do FrancheComté e dos Países Bai xos Não obstante antes de passarem para a órbita da Espanha na época de Carlos V os domínios borgonheses deixaram talvez à Casa da Áustria a inspiração que lhe permitiria dar os primeiros passos em dire ção à modernidade administrativa Maximiliano I cercado por uma corte de borguinhões e holandeses criou um erário centralizado em Innsbruck e estabeleceu as primeiras agências conciliares de governo na Áustria Um ataque final à Suíça revelouse infrutífero mas a Gorí zia foi absorvida nas fronteiras do sul enquanto Maximiliano perse guia uma avançada política externa italiana e imperial Foi contudo o seu sucessorFernando I cujo reinado subitamente demarcou o vasto espaço que caberia futuramente ao poder Habsburgo na Europa cen tral que lançou os fundamentos da singular estrutura estatal que ha veria de erigirse nessa base Em 1526 o rei jagelônio da Boêmia e da Hungria Luís II foi derrotado e morto em Mohacs diante do avanço dos exércitos otomanos tropas turcas devastaram a maior parte da Hungria impelindo o poder do sultanato para bem dentro da Europa central Fernando reivindicou com sucesso as monarquias vagas refor çando os seus laços matrimoniais com a dinastia jagelônia com a ameaça turca no que dizia respeito às nobrezas tcheca e magiar Na Morávia e na Silésia as duas províncias mais remotas do Reino da Boê mia Fernando foi reconhecido como monarca hereditário mas os Es tados da Hungria e da Boêmia recusaramlhe categoricamente tal título e obtiveram do arquiduque o reconhecimento expresso da sua quali dade de príncipe eletivo em seus territórios Fernando ademais teve que travar uma longa luta tripartida contra o pretendente da Transil vânia Zapolyai e os turcos que terminou em 1547 com a partilha da Hungria em três zonas uma região ocidental governada pelos Habs burgos o centro ocupado pelos turcos e um principado transilvano na re gião oriental desde então vassalo do Estado otomano A guerra contra os turcos na planície do Danúbio arrastouse por mais uma década de 1551 a 1562 ao longo de todo o século XVI a Hungria custou à dinastia Habsburgo um esforço de defesa superior às receitas que aí recolhia5 Não obstante com todas as suas limitações internas e externas p 38 5 V S Mamatey Riseofthe Habsburg Empire 15261815 Nova Iorque 1971 304 PERRY ANDERSON os novos domínios representavam um imenso aumento potencial do poder internacional Hàbsburgo Fernando esforçouse com persistên cia em desenvolver a autoridade monárquica em todos os seus territó rios criando novas instituições dinásticas e centralizando as já existen tes Os vários Landtage austríacos mostraramse relativamente dóceis nesta fase e asseguraram ao domínio Hàbsburgo uma base política relativamente segura no próprio arquiducado Os Estados da Boêmia e da Hungria não foram tão complacentes e frustraram os planos de Fer nando de estabelecer uma assembléia suprema que abarcasse todos os seus domínios capaz de impor uma moeda única e de lançar impostos uniformes Mas um conjunto de órgãos governamentais sediados em Viena aumentou grandemente o alcance da dinastia entre eles a Hof kanzlei Chancelaria da Corte e a Hofkammer Erário da Corte A mais importante destas instituições era o Conselho Privado Imperial criado em 1527 que em breve se tornou o eixo de todo o sistema ad ministrativo Hàbsburgo na Europa central6 As origens e as orientações imperiais deste conselho eram um indício da permanente importân cia das ambições germânicas no Reich para a Casa da Áustria Fer nando tentou favorecêlas reavivando o Conselho Áulico Imperial como a mais alta corte de justiça do império diretamente controlada pelo imperador Mas uma vez que a Constituição imperial fora reduzida pelos príncipes alemães a um arcabouço legislativo e judicial sem con teúdo privado de qualquer autoridade executiva ou de coerção os ganhos políticos foram limitados7 Muito mais importante a longo prazo foi a introdução de um Conselho de Guerra permanente o Hof kriegsrat criado em 1556 e desde o início mais voltado para a frente oriental das operações Hàbsburgo do que para a sua frente ociden tal Planejado para organizar a resistência militar aos turcos o Hof kriegsrat foi substituído por um Conselho de Guerra local em Graz que coordenava as fronteiras militares especiais criadas ao longo dos limites do sudeste nas quais se instalaram colônias militares de aventu reiros Grenzers da Sérvia e da Bósnia8 O poderio otomano não se en 6 H F Schwarz The Imperial Privy Council m the Seventeenth Century pp 5760 7 Ver a análise em G D Ramsay The Austrian Habsburgs and the Empíre The New Cambrídge Modem History III pp 32930 8 Para um relato sobre a origem dos grenzers ver Gunther Rothenburg The Austrian Military Border in Croácia 15221747 Urbana 1960 pp 2965 Os grenzers além de seu papel na defesa contra os turcos foram utilizados como arma da dinastia contra a nobreza local da Croácia que sempre se mostrou extremamente hostil à pre sença deles nas áreas fronteiriças LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 305 fraquecera A partir de 1593 a Guerra dos Treze Anos assolou a Hun gria ao seu final após sucessivas devastações do país que deixaram a agricultura magiar em ruínas e o campesinato na servidão as tropas Hàbsburgo tinham sido colocadas em xeque pelos turcos Na virada do século XVII a Casa da Áustria registrara mode rados avanços na construção de seu Estado mas a unidade política das suas possessões ainda era muito tênue O domínio dinástico gozava de uma situação jurídica diversa em cada uma delas e nenhuma institui ção comum à parte o Conselho de Guerra atuava para mantêlas uni das Os próprios territórios austríacos só em 1602 foram pela primeira vez declarados indivisíveis As aspirações imperiais dos governantes Hàbsburgo não constituíam um substituto para a integração prática dos territórios que lhes deviam vassalagem para todos os efeitos a Hungria ficava fora do Reich de forma que não havia sequer uma relação inclusiva entre o reino do império e as terras do imperador Além disso na última metade do século XVI a oposição latente nos vários Estados da aristocracia nos domínios Hàbsburgo recebera um novo e acentuado alento com a eclosão da Reforma Com efeito en quanto a dinastia mantevese como um pilar da Igreja romana e da ortodoxia tridentina a maioria da nobreza de quase todas as suas pos sessões aderiu ao protestantismo De início o grosso da classe fundiá ria tcheca há muito habituada à heresia local converteuse ao lutera nismo a seguir a nobreza magiar adotou o calvinismo e finalmente a própria aristocracia austríaca no coração do poder Hàbsburgo foi conquistada para a religião reformada Por volta da década de 1570 as maiores famílias nobres dnsErblande eram protestantes Dietrichstein Starhemberg Khevenhüller Zinzendorf9 Esta evolução ameaçadora prenunciava seguramente conflitos mais profundos A iminente subida de Fernando II ao trono de Viena em 1617 desencadeou portanto mais do que uma explosão local a Europa em breve se viu mergulhada na Guerra dos Trinta Anos Com efeito Fernando educado pelos je suítas bávaros tinha sido um feroz e eficaz estandarte da ContraRe forma como duque da Estíria a partir de 1595 inflexível centralização administrativa e repressão religiosa severa foram as marcas registradas de seu regime provincial em Graz O absolutísmo espanhol era o fiador internacional de sua candidatura no seio da família Hàbsburgo à su cessão dinástica no império e na Boêmia truculentos generais e diplo matas hispânicos dirigiram desde o início a sua corte Caprichosos e 9 Mamatey Rise ofthe Habsburg Empire p 40 306 PERRY ANDERSON impacientes os Estados da Boêmia aceitaram inicialmente Fernando como rei para depois ao primeiro sinal de intolerância religiosa nas terras tchecas levantarem a bandeira da rebelião A Defenestração de Praga abriu a mais ampla crise do sistema estatal Habsburgo na Europa central A autoridade dmástica entrou em colapso na própria Boêmia de forma ainda mais perigosa os Es tados da Hungria e da Áustria iniciaram uma guinada no sentido de se aproximarem dos Estados da Boêmia conjurando o espectro de um levante geral da nobreza insuflado pelo particularismo e pelo protes tantismo latentes Nesta emergência a causa Habsburgo foi salva pela conjunção de dois fatores decisivos A aristocracia tcheca após a histó rica repressão dos movimentos populares hussitas na Boêmia não dis punha de condições para congregar qualquer entusiasmo social pro fundo por sua revolta no seio das massas rurais e urbanas cerca de dois terços da população era protestante mas em nenhum momento o zelo religioso contribuiu para soldar um bloco entre as classes diante do contraataque da Áustria do tipo do que caracterizou a luta dos ho landeses contra a Espanha Os Estados da Boêmia achavamse politica e socialmente isolados a Casa da Áustria não A solidariedade mili tante de Madri para com Viena mudou o curso dos acontecimentos à medida que as armas os aliados e o dinheiro da Espanha eram mobi lizados para esmagar o secessionismo tcheco constituindo na verdade a base de todo o esforço de guerra de Fernando II O resultado foi a batalha da Montanha Branca que destruiu toda a antiga nobreza da Boêmia A década seguinte presenciou os exércitos imperiais coman dados por Wallenstein marcharem vitoriosamente sobre o Báltico es tendendo pela primeira vez o poder Habsburgo até o norte da Alema nha e acenando com a possibilidade de um império germânico reno vado e centralizado sob o domínio da Casa da Áustria A intervenção sueca na década de 1630 destruiu tal ambição o impulso agressivo da política imperial Habsburgo perdeuse para sempre A Paz de Vestfá lia que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos consagrou o veredicto do conflito militar A Casa da Áustria não haveria de dominar o império mas adquirira a supremacia na Boêmia a estaca inicial do conflito As conseqüências desse acordo ditaram toda a estrutura interna do poder Habsburgo no seio dos territórios dinásticos da Europa danubiana 10 O próprio Fernando II declarou que o enviado espanhol Onate era o ho mem cuja ajuda franca e amistosa resolvia todos os assuntos da família Habsburgo Para um relato do papel político decisivo desempenhado por Onate na crise ver Bohdan Chudoba Spain and the Empire 15291643 Chicago 1952 pp 2208 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 307 Graças à sua vitória na Boêmia o Hofburg efetivara um enorme avanço interno na direção do absolutismo Em 1627 Fernando II pro mulgou uma nova constituição para os territórios conquistados na Boê mia A Verneuerte Landesordnung fez do governo Habsburgo uma monarquia hereditária não mais sujeita a eleição converteu todos os funcionários locais em agentes do rei impôs o catolicismo como reli gião única e restabeleceu a representação do clero nos Estados investiu a dinastia com privilégios jurídicos supremos e elevou o alemão ao nível de idioma oficial equivalente ao tcheco A Snem não foi abolida e a necessidade de seu consentimento para o lançamento de novos im postos foi confirmada Mas na prática a sua sobrevivência não colo cou obstáculos à implantação do absolutismo na Boêmia As assem bléias locais outrora órgão vital da política dos proprietários de terra desvaneceramse a partir da década de 1620 enquanto a participação nos Estados declinava rapidamente à medida que a Snem perdia im portância política Tal processo foi facilitado pelas convulsões provo cadas pela guerra na composição e no papel sociais da própria nobreza A reconquista militar da Boêmia fora acompanhada pela prescrição política do grosso da velha classe senhorial e pela expropriação econô mica de seus domínios Mais da metade das herdades feudais da Boê mia foram confiscadas depois de 162012 este imenso botim agrário foi distribuído entre uma nova e heterogênea aristocracia de fortuna for mada por capitães expatriados e sicários emigrados da ContraRefor ma No final do século XVII apenas um quinto ou um oitavo da no breza tinha origem antiga alemã ou antiga tcheca apenas cerca de oito ou nove das linhagens tchecas mais importantes que tinham permane cido fiéis à dinastia por razões religiosas sobreviveram na nova or dem13 A grande maioria da aristocracia boêmia era agora de origem estrangeira uma mistura de italianos Piccolomini alemães Schwar zenberg austríacos Trautmansdorff eslovenos Auersperg valões Bucquoy lorenos Desfours ou irlandeses Taaffe Pelo mesmo golpe a propriedade fundiária sofreu uma notável concentração os senhores e os clérigos controlavam quase três quartos de todo o territô 11 Para a Verneuerte Landesordnung ver R Kerner Bohemia in the Eight eenth Century Nova Iorque 1932 pp 1722 12 J Polisensky The Thirty YearsWar Londres 1971 pp 1434 os domínios confiscados eram em média muito mais vastos que os que escaparam à expropriação assim a proporção de terra que efetivamente mudou de mãos era consideravelmente maior que o número de herdades propriamente ditas 13 H G Schenk Áustria em GoodwinOrg TheEuropean Nobiliiy in the Itfíh Century p 106 Kerner Bohemia in the Eighteenth Century pp 6771 308 PERRY ANDERSON rio ao passo que a parcela da antiga pequena nobreza despencou de um terço para um décimo Da mesma forma piorou a sorte dos campo neses Já atados à terra e enfraquecidos pela guerra estes eram agora sobrecarregados com crescentes obrigações em serviços as prestações médias do robot chegaram a três dias por semana enquanto mais de um quarto dos servos trabalhava todos os dias exceto aos domingos e dias santos para seus senhores14 Além disso se antes da Guerra dos Trinta Anos os proprietários de terra da Boêmia ao contrário de seus homólogos poloneses e húngaros tinham pago impostos ao lado de seus vilões depois de 1648 a nova nobreza cosmopolita adquiriu na prá tica a imunidade fiscal desviando virtualmente toda a carga fiscal para as costas de seus servos Tal transferência naturalmente facilitou o an damento das deliberações entre a aristocracia e a monarquia nos Es tados a partir daí a dinastia limitavase a requisitar a estes somas glo bais deixandolhes a tarefa de fixar e coletar os impostos que satis fizessem suas demandas Com esse sistema as pressões fiscais podiam ser facilmente aumentadas já que orçamentos mais elevados signifi cavam de modo geral que os Estados simplesmente concordavam em aumentar os encargos que eles próprios impunham a seus ar rendatários e súditos15 A Boêmia sempre fora de longe o mais lu crativo domínio das terras Habsburgo e o novo poder financeiro da monarquia sobre a região fortalecia significativamente o absolutismo vienense Entretanto nas próprias Erblande a administração centralizada e autocrática fazia consideráveis progressos Fernando II criara a Chan celaria da Corte austríaca uma versão ampliada do seu instrumento favorito de poder na Estíria a fim de coroar a máquina de governo do arquiducado Este organismo conseguiu gradual ascendência entre os conselhos de Estado em detrimento do Conselho Privado Imperial cuja importância decresceu inevitavelmente após a relutante retirada do poder Habsburgo da Alemanha Em 1650 fato de vital importância foi criado pela primeira vez um exército permanente de cerca de 50 mil homens dez regimentos de infantaria e nove de cavalaria na esteira de Vestfália desde então a conduta dos Estados austríacos e boêmios foi inelutavelmente temperada pela presença desta força ar mada Ao mesmo tempo o absolutismo Habsburgo realizou um feito cultural e ideológico único a Boêmia a Áustria e a Hungria as três 14 Polisensky The Thirty Years War pp 142 246 Betts The Habsburg Lands The New Cambridge Modem History V Cambridge 1969 pp 4801 15 J Stoye The SiegeofVienna Londres 1964 p 92 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 309 partes constituintes de seu domínio retornaram progressivamente ao seio da Igreja de Roma O protestantismo foi reprimido na Estíria na década de 1590 as religiões reformadas foram banidas da Baixa Áus tria em 1625 da Boêmia em 1627 e da Alta Áustria em 1628 Na Hun gria uma solução autoritária revelouse impossível mas os primazes húngaros Pazmány e Lippay conseguiram reconverter a maior parte dos grandes senhores magiares Os senhores e os camponeses da Áus tria as cidades da Boêmia e os proprietários de terra da Hungria aca baram por ser igualmente recatolicizados pela perícia e energia da ContraReforma sob os auspícios da dinastia Habsburgo um fato sem precedentes em qualquer outra parte do continente O vigor de cruzada do catolicismo danubiano parece ter encontrado a sua apoteose com a triunfante libertação de Viena das mãos dos turcos em 1683 e as vi tórias subseqüentes que varreram o poder otomano da Hungria e da Transilvânia e recuperaram para a cristandade territórios há muito perdidos expandindo notavelmente rumo ao leste o domínio Habs burgo O sistema militar que alcançou tais conquistas agora conside ravelmente ampliado mostrouse capaz também de desempenhar um importante papel na aliança que refreou o avanço Bourbon no Reno A Guerra da Sucessão Espanhola demonstrou o novo peso interna cional da Casa da Áustria A Paz de Utrecht a contemplou com a Bélgica e a Lombardia Todavia o ápice do poder austríaco subitamente atingido logo foi ultrapassado Nenhum outro absolutismo europeu teve uma fase tão breve de confiança e iniciativa militares Iniciada em 1683 estava finda em 1718 com a curta tomada de Belgrado e a Paz de Passarowitz A partir de então podese dizer que a Áustria praticamente não mais venceu uma guerra com um Estado rival outra vez16 Uma interminável série de derrotas estendeuse lugubremente pelos dois séculos seguin tes apenas amenizadas pela inglória participação em vitórias alheias Tal inércia externa era um índice do impasse e da imperfeição interna do absolutismo austríaco mesmo no auge de seu poder As realizações mais grandiosas e características do domínio Habsburgo na Europa central consistiram no agrupamento de territórios díspares sob uma mesma cúpula dinástica e na reconversão dos mesmos ao catolicismo Não obstante os triunfos ideológicos e diplomáticos da Casa da Áustria o seu instinto felino em matéria de religião e de matrimônios constituíram bons substitutos de avanços burocráticos e militares mais ccçflo 16 As suas campanhas contra o Piemonte em 1848 constituiriam a única ex 310 PERRY ANDERSON expressivos A influência dos jesuítas na corte de Viena durante a época da ContraReforma foi sempre muito maior que na corte irmã de Ma dri onde o fervor católico estava geralmente associado a um antipa pismo vigilante Conselheiros e agentes eclesiásticos permearam todo o sistema administrativo Habsburgo na Europa central durante o século XVII executando a maior parte das tarefas políticas cruciais para a época a sua obra maior foi a construção do bastião tridentino na Estí ria sob Fernando II em muitos aspectos a experiênciapiloto do absolutismo austríaco Do mesmo modo a recuperação da classe dos grandes senhores da Hungria para a fé romana sem o que teria sido provavelmente impossível a manutenção da suserania Habsburgo sobre a Hungria foi complementada pelas hábeis e pacientes missões ideo lógicas do clero Mas tal sucesso também tinha seus limites As uni versidades e escolas católicas reconquistaram a nobreza húngara ao protestantismo mas sob o preço de manter e respeitar cuidadosa mente os privilégios corporativos tradicionais da nação húngara que asseguravam à Igreja o controle espiritual mas deixavam o Estado en volvido em incômodos impedimentos A confiança que os Habsburgos depositavam internamente no clero tinha portanto o seu preço por mais astutos que fossem os padres nunca podiam ser funcionalmente equivalentes aoofficiers oupomeshchiki como elementos constitutivos do absolutismo Viena não se tornaria um centro metropolitano da venda de cargos ou de uma nobreza de serviço sua marca registrada continuou a ser um clericalismo maleável e uma administração desor denada De modo similar o extraordinário sucesso da política matrimo nial da dinastia Habsburgo sempre tendia a superar a sua capacidade marcial sem em última análise compensála A facilidade nupcial com que foram inicialmente adquiridas a Hungria e a Boêmia conduziu à dificuldade coercitiva de impor o centralismo austríaco na primeira e à eventual impossibilidade de reforçálo na segunda em última instân cia a diplomacia não podia substituir os armamentos E todavia a história militar do absolutismo austríaco foi sempre um tanto defei tuosa e anômala Os três maiores êxitos da dinastia foram a aquisição inicial da Boêmia e da Hungria em 1526 a sujeição da Boêmia em 1620 e a derrota dos turcos em 1683 que resultou na reconquista da Hungria e da Transilvânia No entanto a primeira foi o resultado negativo da derrota jagelônia em Mohacs e não o produto de uma vitória Habs burgo os turcos venceram a mais importante batalha do absolutismo austríaco em seu lugar A vitória da Montanha Branca foi também em larga medida uma conquista bávara da Liga Católica por outro lado LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 3LI as tropas reunidas sob o comando imperial incluíam contingentes ita lianos valoes flamengos e espanhóis17 A própria libertação de Viena foi basicamente conseguida pelos exércitos polacos e alemães depois que o imperador Leopoldo I tinha abandonado precipitadamente a ca pital as tropas Habsburgo representavam apenas um sexto da força que deu fama a Sobieski em 168318 Esta confiança sempre renovada nos exércitos aliados encontrou o seu curioso complemento no próprio generalato austríaco Com efei to a maior parte dos comandantes militares que serviram a Casa da Áustria até o século XIX eram empreendedores independentes ou aven tureiros estrangeiros Wallenstein Piccolomini Montecuccoli Eu gene Laudun Dorn O exército de Wallenstein foi talvez em termos relativos o conjunto mais impressionante a arvorar as cores da Áustria e no entanto era de fato uma máquina de guerra privada criada por seu general tcheco que a dinastia contratou mas não controlou daí o assassinato de Wallenstein Eugene ao contrário era totalmente leal a Viena mas um saboiano sem raízes nos territórios Habsburgo o ita liano Montecuccoli e o renano Dorn eram exemplos menores do mesmo caso A utilização constante de mercenários estrangeiros era evidente mente um traço normal e universal do absolutismo mas tratavase de soldados rasos não de oficiais no comando geral das forças armadas do Estado Estes eram naturalmente recrutados entre a classe dominante dos territórios em questão a nobreza local Não obstante nos domí nios Habsburgo não havia uma classe senhorial única mas vários gru pos fundiários territorialmente distintos Foi esta falta de uma aristo cracia unificada que contou na definição da capacidade total de com bate do Estado Habsburgo As nobrezas feudais como vimos nunca foram de caráter primordialmente nacional podiam ser transplan tadas de um país para outro e cumprir o seu papel como classe fun diária sem possuir necessariamente qualquer vínculo étnico ou lingüís tico em comum com a população que subjugavam A separação cul tural configurada numa barreira lingüística podia muitas vezes ser pre servada para realçar a distância natural entre governantes e governa dos Por outro lado a heterogeneidade idiomática ou étnica dentro da aristocracia fundiária de uma mesma organização política feudal constituía de modo geral uma fonte de fragilidade e desintegração potenciais pois tendia a minar a solidariedade política da própria classe dominante As características acidentais e desordenadas do Es 17 Chudoba Spain andtheEmpire pp 2478 18 Stoye The Siege of Vienna pp 245 257 312 PERRY ANDERSON tado Habsburgo derivaram sem dúvida e em grande medida do cará ter compósito e irreconciliável das nobrezas que o constituíam De tal modo os inconvenientes da diversidade aristocrática estavam predizi velmente evidentes no setor mais sensível da máquina de Estado o exército Na ausência de uma nobreza socialmente unitária os exérci tos Habsburgo raramente atingiriam o desempenho de seus homólogos Hohenzollern e Romanov Portanto mesmo em seu apogeu faltou ao absolutismo austríaco congruência e segurança estrutural devido ao caráter conglomerado das formações sociais sobre as quais exercia seu domínio Os territórios germânicos da Áustria propriamente dita sempre representaram o nú cleo interno de confiança do império Habsburgo as possessões mais antigas e leais da dinastia na Europa central Os nobres e as cidades conservaram muitos dos privilégios tradicionais nosLandtage da Alta e da Baixa Áustria da Estíria e da Caríntia no Tirol e no Vorarlberg o próprio campesinato tinha representação efetiva nos Estados indício excepcional do caráter alpino dessas províncias As instituições inter mediárias herdadas da época medieval nunca foram suprimidas como ocorreu na Prússia mas no início do século XVII tinhamse convertido em instrumentos obedientes do poder Habsburgo cuja so brevivência jamais viria a obstruir seriamente a vontade da dinastia Os territórios arquiducais formavam assim a base central e segura da casa governante Desafortunadamente porém eram demasiado mo destos e limitados para conferir ao Estado Habsburgo em seu conjunto um dinamismo monárquico unitário Nos aspectos econômico e demo gráfico foram ultrapassados pelos territórios mais ricos da Boêmia já na metade do século XVI em 1541 as contribuições fiscais da Áustria para o tesouro imperial chegavam apenas a metade das da Boêmia e esta proporção continuou em vigor até o final do século XVIII19 A derrota dos exércitos de Wallenstein pelos suecos durante a Guerra dos Trinta Anos bloqueou toda a expansão das bases germânicas da dinas tia isolando efetivamente o arquiducado do Reich tradicional Além disso a sociedade rural austríaca era menos representativa do modelo agrário dominante nos territórios Habsburgo Com efeito o caráter semimontanhoso da maior parte da região fazia dela um terreno ingra to para os grandes domínios feudais O resultado foi a persistência da pequena propriedade camponesa nas terras altas e a preponderância do tipo ocidental de Grundherrschaft nas planícies endurecida pelas 19 Kerner Bohemia in the Eighteenth Century pp 256 O reino da Boêmia abrangia a própria Boêmia a Morávia e a Süésia LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 313 normas de exploração orientais20 as jurisdições patrimoniais e butos feudais eram generalizados as prestações em serviços er s sadas em muitas regiões mas as oportunidades de consolidação e tivos senhoriais e de vastos latifúndios era relativamente limitart ação solvente exercida pela capital do império sobre a força de tr a das suas imediações rurais viria a se tornar um embaraço adicio surgimento de uma economia de tipo Gutsherrschaft21 A ma a cisiva da própria aristocracia austríaca era portanto muito para constituir um centro magnético efetivo para o conjunto da dos proprietários de terra do império asse O esmagamento dos Estados da Boêmia durante a Guer Trinta Anos por outro lado propiciou ao absolutismo Habsbj seu maior êxito político os importantes e férteis territórios tcheç tavam agora inequivocamente sob seu domínio Nenhuma outra es cracia insurreta da Europa encontrou um destino tão sumário CQ aristocracia boêmia após a sua derrota uma nova classe funçh a que tudo devia à dinastia foi implantada nas suas terras A histôt na absolutismo europeu não conhece um episódio semelhante Contri necessário destacar uma peculiaridade reveladora da implajw Le Habsburgo na Boêmia A nova nobreza aí criada não se compunk sencialmente de casas originárias do baluarte austríaco da diju es excetuadas algumas poucas famílias católicas tchecas ela foi ÍK a tada do exterior A origem alienígena dessa camada indicava a cia de uma aristocracia local para ser transferida para a Boêmia Q en a curto prazo significava o fortalecimento do poderio Habsbur0 ue terras tchecas era ao mesmo tempo um indício de fraqueza a K prazo Os territórios boêmios eram os mais ricos e densamente p0 ê dos da Europa central durante praticamente todo o século seguim a grandes magnatas do império Habsburgo possuíram quase sJ os imensos domínios cultivados por servos na Boêmia e na Morávi centro de gravidade econômico da classe dirigente deslocouse tá para o norte Mas a nova aristocracia boêmia revelou falta de de corps ou mesmo de verdadeira fidelidade à dinastia na sua parte desertou de um só golpe para as forças de ocupação bv r durante a Guerra da Sucessão Austríaca na década de 1740 TalC as constitui o equivalente mais próximo de uma nobreza de serviço n0 e tema de Estado do absolutismo austríaco mas era o produto arbk 20 VL Tapié Monarchie et Peuples du Danube Paris 1969 p 144 21 Para a situação na Baixa Áustria ver Jerome Blum Noble Landown Agriculture in Áustria 18151848 Baltimore 1947 pp 17680 S tf 312 PERRY ANDERSON tado Habsburgo derivaram sem dúvida e em grande medida do cará ter compósito e irreconciliável das nobrezas que o constituíam De tal modo os inconvenientes da diversidade aristocrática estavam predizi velmente evidentes no setor mais sensível da máquina de Estado o exército Na ausência de uma nobreza socialmente unitária os exérci tos Habsburgo raramente atingiriam o desempenho de seus homólogos Hohenzollern e Romanov Portanto mesmo em seu apogeu faltou ao absolutismo austríaco congruência e segurança estrutural devido ao caráter conglomerado das formações sociais sobre as quais exercia seu domínio Os territórios germânicos da Áustria propriamente dita sempre representaram o nú cleo interno de confiança do império Habsburgo as possessões mais antigas e leais da dinastia na Europa central Os nobres e as cidades conservaram muitos dos privilégios tradicionais nosLandtage da Alta e da Baixa Áustria da Estíria e da Caríntia no Tirol e no Vorarlberg o próprio campesinato tinha representação efetiva nos Estados indício excepcional do caráter alpino dessas províncias As instituições inter mediárias herdadas da época medieval nunca foram suprimidas como ocorreu na Prússia mas no início do século XVII tinhamse convertido em instrumentos obedientes do poder Habsburgo cuja so brevivência jamais viria a obstruir seriamente a vontade da dinastia Os territórios arquiducais formavam assim a base central e segura da casa governante Desafortunadamente porém eram demasiado mo destos e limitados para conferir ao Estado Habsburgo em seu conjunto um dinamismo monárquico unitário Nos aspectos econômico e demo gráfico foram ultrapassados pelos territórios mais ricos da Boêmia já na metade do século XVI em 1541 as contribuições fiscais da Áustria para o tesouro imperial chegavam apenas a metade das da Boêmia e esta proporção continuou em vigor até o final do século XVIII A derrota dos exércitos de Wallenstein pelos suecos durante a Guerra dos Trinta Anos bloqueou toda a expansão das bases germânicas da dinas tia isolando efetivamente o arquiducado do Reich tradicional Além disso a sociedade rural austríaca era menos representativa do modelo agrário dominante nos territórios Habsburgo Com efeito o caráter setnimontanhoso da maior parte da região fazia dela um terreno ingra to para os grandes domínios feudais O resultado foi a persistência da pequena propriedade camponesa nas terras altas e a preponderância do tipo ocidental de Grundherrschaft nas planícies endurecida pelas 19 Kerner Bohemia in the Eighteenth Century pp 256 O reino da Boêmia abrangia a própria Boêmia a Morávia e a Silésia LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 313 normas de exploração orientaisM as jurisdições patrimoniais e os tri butos feudais eram generalizados as prestações em serviços eram pe sadas em muitas regiões mas as oportunidades de consolidação de cul tivos senhoriais e de vastos latifúndios era relativamente limitada A ação solvente exercida pela capital do império sobre a força de trabalho das suas imediações rurais viria a se tornar um embaraço adicional ao surgimento de uma economia de tipo Gutsherrschaft21 A massa de cisiva da própria aristocracia austríaca era portanto muito débil para constituir um centro magnético efetivo para o conjunto da classe dos proprietários de terra do império O esmagamento dos Estados da Boêmia durante a Guerra dos Trinta Anos por outro lado propiciou ao absolutismo Habsburgo o seu maior êxito político os importantes e férteis territórios tchecos es tavam agora inequivocamente sob seu domínio Nenhuma outra aristo cracia insurreta da Europa encontrou um destino tão sumário como a aristocracia boêmia após a sua derrota uma nova classe fundiária que tudo devia à dinastia foi implantada nas suas terras A história do absolutismo europeu não conhece um episódio semelhante Contudo é necessário destacar uma peculiaridade reveladora da implantação Habsburgo na Boêmia A nova nobreza aí criada não se compunha es sencialmente de casas originárias do baluarte austríaco da dinastia excetuadas algumas poucas famílias católicas tchecas ela foi impor tada do exterior A origem alienígena dessa camada indicava a ausên cia de uma aristocracia local para ser transferida para a Boêmia O que a curto prazo significava o fortalecimento do poderio Habsburgo nas terras tchecas era ao mesmo tempo um indício de fraqueza a longo prazo Os territórios boêmios eram os mais ricos e densamente povoa dos da Europa central durante praticamente todo o século seguinte os grandes magnatas do império Habsburgo possuíram quase sempre imensos domínios cultivados por servos na Boêmia e na Morávia e o centro de gravidade econômico da classe dirigente deslocouse também para o norte Mas a nova aristocracia boêmia revelou falta de esprit de corps ou mesmo de verdadeira fidelidade à dinastia na sua maior parte desertou de um só golpe para as forças de ocupação bávaras durante a Guerra da Sucessão Austríaca na década de 1740 Tal classe constitui o equivalente mais próximo de uma nobreza de serviço no sis tema de Estado do absolutismo austríaco mas era o produto arbitrário 20 VL Tapié Monarchie etPeuples du Danube Paris 1969 p 144 21 Para a situação na Baixa Áustria ver Jerome Blum Noble Landowners and Agrículture in Áustria 18151848 Baltimore 1947 pp 17680 314 PERRY ANDERSON de serviços passados e não a detentora de funções públicas orgânicas e contínuas e embora dela saíssem grande parte dos quadros adminis trativos da monarquia Habsburgo nunca se tornou uma força domi nante ou organizativa em seu seio Não obstante a despeito das limitações das classes fundiárias em cada setor a consolidação do poder imperial nas unidades austríaca e boêmia dos domínios Habsburgo parecia criar as premissas de um ab solutismo mais homogêneo e centralizado Seria a Hungria o obstáculo intransponível a um Estado real unitário Se fosse possível fazer uma analogia entre os dois impérios Habsburgo centrados respectivamente em Madri e em Viena na qual a Áustria pudesse se comparar a Castela e a Boêmia à Andaluzia a Hungria seria uma espécie de Aragão orien tal No entanto a comparação resulta imperfeita pois a Áustria nunca possuiu a predominância econômica e demográfica de Castela como cerne do sistema imperial ao passo que o poder e os privilégios da no breza húngara excediam mesmo os da aristocracia aragonesa e o ele mento unificador crucial constituído por uma língua comum esteve aí sempre ausente A classe fundiária magiar era extremamente nume rosa alcançando de 5 a 7 por cento da população total da Hungria Se bem que muitos desses nobres fossem cavaleiros de mocassim com diminutas parcelas de terra o setor mais importante da nobreza hún gara era o estrato dos chamados bene possessionati que detinham do mínios de dimensão média e dominavam a vida política das provín cias2 foram eles que deram ao conjunto da nobreza magiar a unidade e a supremacia social O sistema de Estados da Hungria funcionava plenamente e nunca concedera privilégios importantes à dinastia Habs burgo que reinava apenas em virtude de uma união pessoal e cuja autoridade era eletiva e revogável a constituição feudal incluía expres samente um jus resistendi que legitimava a revolta dos nobres contra qualquer usurpação por parte do monarca das sagradas liberdades da nação magiar A nobreza controlara desde o final da Idade Média a sua própria unidade de administração regional o comitatus assem bléia cujas comissões permanentes investidas de funções judiciais fi nanceiras e burocráticas eram todopoderosas nas regiões rurais e ga 22 Bela Király Hungary in the Late Eighteenth Ceníury Nova Iorque 1969 pp 33 108 Tudo indica que o papel dos bene possessionati no seio da classe fundiária húngara tenha sido um dos mais importantes fatores a distinguila da igualmente nume rosa nobreza polaca com a qual aliás tanto se parecia esta última estava muito menos polarizada entre magnatas e pequenos cavaleiros faltandolhe portanto a coesão de suas congêneres magiares LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 315 rantiam um alto grau de coesão política no seio da classe dos proprie tários de terra Os Habsburgos sempre tentaram dividir a aristocracia húngara afastando o seu setor mais rico através da concessão de hon rarias e privilégios com esse fim foram introduzidos no século XVI os títulos até então desconhecidos tanto na Hungria como na Polônia e assegurada uma separação jurídica entre os magnatas e o restante da nobreza no início do século XVII23 Tais táticas não conquistaram avanços consideráveis na luta contra o particularismo húngaro agora ainda mais fortalecido pela difusão do protestantismo Acima de tudo a proximidade do poder militar turco como força ocupante e suserana em dois terços dos territórios magiares situados além de Mohacs cons tituía um obstáculo objetivo fundamental à extensão à Hungria de um absolutismo austríaco centralizado Com efeito ao longo de todo o sé culo XVI e XVII havia nobres magiares vivendo na Hungria central sob domínio direto dos turcos ao passo que mais para leste a Tran silvânia constituía um Estado monárquico autônomo sob o domínio de governantes húngaros locais muitos deles de fé calvinista no interior do império otomano Assim quaisquer tentativas de Viena no sentido de atacar as veneráveis prerrogativas da aristocracia húngara podiam sempre ser enfrentadas com o recurso à aliança turca por outro lado governantes transilvanos ambiciosos tentaram repetidas vezes incitar seus compatriotas em território Habsburgo contra o Hofburg visando seus próprios interesses muitas vezes com o auxílio de um bem trei nado exército e com o objetivo de criar uma Transilvânia maior Por tanto a tenacidade do particularismo magiar foi também uma função de seus poderosos pontos de apoio do outro lado da fronteira otomana que mais de uma vez permitiram à nobreza da Hungria cristã reu nir em seu auxílio forças militares superiores ao seu próprio pode rio local Assim o século XVII a grande época de rebeldia e tensão da nobreza no Ocidente com o seu cortejo de conspirações e levantes aris tocráticos testemunhou também uma resistência senhorial de persis tência e êxito únicos diante de um crescente poder monárquico no Leste no seio de um absolutismo em desenvolvimento A primeira fase importante do conflito ocorreu durante a guerra austrootomana dos Treze Anos O avanço militar Habsburgo contra os turcos fezse acom panhar de perseguições religiosas e centralização administrativa nas regiões conquistadas Em 1604 o grande senhor calvinista Bocskay re 23 Mamatey RiseoftheHabsburgEmpire p 37 316 PERRY ANDERSON belouse reunindo a nobreza magiar e os aventureiros haiduk das fron teiras contra as forças de ocupação imperiais em aliança com os turcos em 1606 a Porta assegurou uma paz vantajosa a aristocracia húngara conseguiu de Viena a tolerância religiosa e Bocskay conquistou o prin cipado da Transilvânia Em 161920 o novo monarca transilvano Gá bor Bethlen aproveitou a sublevação da Boêmia para invadir e anexar vastas extensões da Hungria Habsburgo com o apoio dos proprietários de terra protestantes da região Em 1670 Leopoldo I esmagou uma conspiração de grandes nobres e deslocou suas tropas em grande nú mero para a Hungria a antiga constituição foi abolida e imposta uma nova e centralizadora administração sob a chefia de um vicegoverna dor alemão munido de tribunais extraordinários para a repressão A luta foi em breve retomada a partir de 1678 sob o comando do conde Imra Tõkõlli em 1681 Leopoldo viuse forçado a renunciar a seu golpe constitucional e a reafirmar os privilégios magiares tradicio nais já que Tõkõlli recorreu ao auxílio turco Os exércitos otomanos acorreram prontamente e seguiuse o famoso cerco de Viena em 1683 Finalmente as forças turcas acabaram por ser expulsas da Hungria em 1687 e Tõkõlli partiu para o exílio Leopoldo não era suficientemente forte para restaurar o anterior regime centralista do Gubernium mas foi capaz de extrair dos Estados magiares em Bratislava a aceitação da dinastia Habsburgo como hereditária e não mais eletiva na Hun gria e ao lado disso a revogação do jus resistendi Ademais a con quista austríaca da Transilvânia em 16901 serviu para circundar a partir daí a nobreza magiar com uni bloco estratégico de territórios à sua retaguarda diretamente sujeitos a Viena as Zonas de Fronteira Militar Especiais submetidas ao Hofkriegsrat estendiamse agora do Adriático aos Cárpatos entretanto o poder turco na bacia do Danúbio virase grandemente reduzido no início do século XVIII As terras re centemente adquiridas foram distribuídas a aventureiros militares es trangeiros e a um círculo seleto de senhores húngaros cuja lealdade política estava agora cimentada por enormes domínios no leste Não obstante a nobreza húngara aproveitaria a primeira oportu nidade proporcionada por um conflito internacional para lançarse uma vez mais com avidez à sedição armada Em 1703 os impostos de guerra e a perseguição religiosa conduziram os camponeses do noroeste à revolta capitalizando este levante popular o magnata Ferenc Ra kóczi liderou uma formidável e decisiva rebelião em aliança militar com a França e a Baviera cujo ataque em tenaz a Viena só foi contido pela batalha de Bleinheim Por volta do final de 1711 as tropas Habs burgo tinham posto fim à insurreição quatro anos mais tarde a classe LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 3L7 dos proprietários fundiários magiares foi pela primeira vez obrigada a aceitar o imposto imperial sobre os seus servos e aquartelamentos mili tares em seus condados ao mesmo tempo em que as fronteiras milita res além destes eram governadas pelo Hofskriegsrat A chancelaria húngara passou a ter lugar em Viena No entanto pela Paz de Szat már os privilégios sociais e políticos tradicionais dos proprietários de terra húngaros foram também confirmados a administração ficou ba sicamente sob o seu controle24 Após este acordo não mais ocorreram revoltas durante os 150 anos seguintes mas as relações entre a nobreza magiar e a dinastia Habsburgo continuaram a diferir das existentes entre as outras aristocracias emonarquias do Leste na época do abso lutismo A extrema descentralização aristocrática entrincheirada em leis e instituições medievais mostrouse irredutível napuszta A base austríaca do sistema imperial era demasiado restrita as extensões da Boêmia demasiado frágeis e a resistência da organização política hún gara demasiado firme para que um típico absolutismo orientalizado nascesse ao longo do Danúbio Em conseqüência bloqueouse a im plantação de qualquer rigor ou uniformidade nas estruturas estatais compósitas presididas pelo Hofburg Vinte anos após a Paz de Passarowitz ponto culminante de sua expansão nos Bálcãs e de seu prestígio europeu o absolutismo Habs burgo viria a sofrer uma derrota humilhante nas mãos de seu rival muito menor Hohenzollern A conquista da Silésia pela Prússia na Guerra da Sucessão Austríaca privouo da mais próspera e industriali zada província de seu império centroeuropeu Breslau se tornara o principal centro comercial dos territórios dinásticos tradicionais O controle do título imperial passou temporariamente para a Baviera e o grosso da aristocracia boêmia desertou para o novo imperador bávaro A Boêmia foi enfim recuperada porém na década seguinte o absolu tismo austríaco foi de novo profundamente sacudido pela Guerra dos Sete Anos na qual apesar da aliança com a Rússia e a França da avassaladora superioridade numérica e das imensas perdas não conse guiu reconquistar a Silésia A Prússia dispondo de um terço do tesouro e de um sexto da população da Áustria triunfara duas vezes sobre ela Este duplo choque precipitou duas drásticas febres de reformas no seio do Estado Habsburgo no reinado de Maria Tereza conduzidas pelos chanceleres Haugwitz e Kaunitz com o objetivo de modernizar e re 24 Em muitos aspectos os melhores comentários sinóticos sobre as sucessivas revoltas húngaras desta época podem ser encontrados em McNeill Europes Steppe Frontier Chicago 1964 pp 947 1478 1647 318 PERRY ANDERSON modelar o conjunto do aparelho de governo25 As chancelarias da Boê mia e da Áustria foram fundidas num órgão único os correspondentes tribunais de apelação foram incorporados e a ordem jurídica separada da nobreza boêmia completamente abolida Pela primeira vez foram cobrados impostos à aristocracia e ao clero de ambos os territórios mas não da Hungria e os seus Estados foram coagidos a aprovar subven ções decenais destinadas à construção de um exército permanente am pliado para 100 mil homens O Hofkriegsrat foi reorganizado e recebeu plenos poderes em todo o império Criouse um Conselho de Estado supremo para integrar e dirigir a máquina do absolutismo Funcioná rios permanentes da coroa os Kreishauptmãnner foram nomeados para todas as divisões da Boêmia e da Áustria a fim de reforçar a justiça e a administração centralizadas Foram abolidas as barreiras alfandegárias entre a Boêmia e a Áustria e instituídas tarifas sobre as importações estrangeiras As prestações em serviços dos camponeses foram legalmente limitadas Passouse a aplicar implacavelmente os privilégios fiscais da coroa com o intuito de elevar as receitas impe riais Para colonizar a Transilvânia e o Banat foram tomadas medidas de emigração organizada Logo porém estas medidas de Tereza se riam suplantadas pelo vasto programa de reformas adicionais imposto por José II O novo imperador rompeu espetacularmente com a tradição aus tríaca de clericalismo oficial onipresente Foi proclamada a tolerância religiosa as terras da Igreja foram dissolvidas e os mosteiros derruba dos os serviços da Igreja foram regulamentados e o Estado integrou as universidades O governo introduziu um avançado código penal refor mou os tribunais judiciários e aboliu a censura A educação secular foi vigorosamente incentivada pelo Estado e até o final do reinado talvez uma em cada três crianças estava na escola elementar Criaramse cur rículos modernizados para formar melhores engenheiros e funcioná rios O serviço público civil foi profissionalizado sua hierarquia orga nizada com base no mérito enquanto se assegurava a sua vigilância secreta por meio de uma rede de agentes policiais inspirada no sistema prussiano Os impostos deixaram de ser administrados pelos Estados passando a partir daí a ser diretamente coletados pela monarquia Os encargos fiscais foram rapidamente aumentados Suprimiramse as sessões anuais dos Estados os Landtage reuniamse agora apenas por convocação da dinastia Foi introduzido o recrutamento obrigatório e o 25 Bluche Lê Despotisme Eclairé pp 10610 oferece uma análise sucinta LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 319 exército atingiu 300 mil homens26 A fim de se assegurar a defesa do mercado interno criaramse tarifas cada vez mais elevadas ao mesmo tempo em que eram eliminadas as guildas e as corporações urbanas de modo a permitir a livre concorrência no interior do império O sistema de transportes foi aprimorado Tais medidas eram radicais mas não ultrapassavam ainda o âmbito das ações convencionais dos Estados ab solutistas na era do iluminismo O programa de José II contudo não parou por aí Por uma série de decretos única na história da monarquia absolutista a servidão foi oficialmente abolida em 1781 após graves levantes camponeses na Boêmia durante a década precedente e to dos os súditos viram assegurado o direito de livre escolha em matéria de casamento migração trabalho ocupação e propriedade Nos locais onde esta não existia foi assegurada aos camponeses a garantia da posse da terra e aos nobres proibiuse a compra de parcelas Final mente decretouse a abolição de todas as prestações obrigatórias em serviços para os camponeses das terras rústicas ou seja parcelas dos vilões que pagassem dois ou mais florins por ano em impostos as tari fas fiscais foram equiparadas e decretadas normas oficiais para a dis tribuição do produto agrícola global desses arrendatários 122 por cento para o Estado sob a forma de impostos 178 por cento para os senhores e o clero sob a forma de rendas e dízimas e 70 por cento para ser conservado pelo próprio camponês Embora de alcance bastante parcial pouco mais de um quinto dos camponeses da Boêmia foi alcançado por ela esta última medida continha a ameaça de drás ticas transformações nas relações sociais no campo e atingia direta mente interesses econômicos vitais da nobreza fundiária em todo o im pério27 A proporção do produto agrícola à disposição do produtor dire to girava habitualmente em torno de 30 por cento à épocaK a nova lei duplicava esta parcela reduzindo ao mesmo tempo quase pela metade o excedente extraído pela classe feudal O clamor aristocrático foi so noro e universal acompanhado por ampla obstrução e sonegação Entretanto o centralismo de José II causava burburinho político de um extremo a outro do império As corporações urbanas e as com panhias privilegiadas medievais das distantes províncias belgas tinham 26 O serviço militar obrigatório foi introduzido em 1771 Em 1788 José II mo bilizou 245 mil soldados de infantaria 37 mil de cavalaria e novecentos canhões para a nua guerra contra a Turquia H L Mikoletzky Osterreich Dasgrosse 18 Jahrhundert Viena 1967 pp 227 366 27 WrightSer Seigneur andSovereign p 147 28 Kerner Bohemia in the Eighteenth Century pp 445 320 PERRY ANDERSON sido arruinadas por Viena os sentimentos ofendidos do clero a hosti lidade patrícia e o patriotismo popular combinaramse para gerar uma revolta armada coincidente com a Revolução Francesa Ainda mais ameaçadora era a agitação na Hungria Com efeito José II fora tam bém o primeiro governante Habsburgo a integrar coercitivamente a Hungria numa estrutura imperial unitária Eugênio de Sabóia instara a dinastia a fazer dos seus territórios esparsos um todo organizado ein Totum tal ideal enfim se realizava metodicamente Todas as prin cipais reformas de José II eclesiásticas sociais econômicas e mili tares foram impostas na Hungria sob os protestos da nobreza ma giar A burocracia do Kreis foi estendida à Hungria e o antigo sistema de condados ficoulhe subordinado a imunidade fiscal da classe fun diária foi abolida e implementada a justiça real Por volta de 1789 os Estados da Hungria preparavam visivelmente a insurreição Ao mesmo tempo soçobrava a política externa da monarquia Por duas vezes José II fizera esforços para adquirir a Baviera na segunda delas propu serase mesmo a trocála pela Bélgica a Prússia bloqueou este objetivo lógico e racional cuja consecução teria transformado a posição estra tégica e a estrutura interna do império austríaco deslocandoo decisi vamente para oeste em direção à Alemanha Significativamente a Áustria não quis arriscar uma guerra com a Prússia por esse motivo sequer após o grande esforço de reconstrução militar realizado por José II Em decorrência disso o expansionismo austríaco desviouse nova mente para os Bálcãs onde os exércitos otomanos infligiam ao impe rador uma série de reveses Assim a meta final de todo o vigoroso impulso reformista do absolutismo austríaco a recuperação de sua posição militar no plano internacional fugiu de suas mãos O rei nado de José terminou em fracasso e desilusão Os impostos e as convo cações militares eram impopulares entre os camponeses a inflação criara imensa penúria nas cidades a censura fora restabelecida29 Por último as relações entre a monarquia e a aristocracia tinham atingido o ponto de ruptura Para evitar a rebelião na Hungria foi necessário renunciar à centralização aí conseguida A morte de José II foi o sinal para uma rápida e generalizada reação senhoria O seu sucessor Leo poldo II foi imediatamente forçado a revogar as Leis Agrárias de 1789 e a restaurar os poderes políticos da nobreza magiar Os Estados da 29 O isolamento do regime em seus anos finais está bem elucidado por Ernst Wangermann FromJoseph II to theJacobin Trials Oxford 1959 pp 289 O campe sinato desapontouse com os limites de sua reforma agrária e chocouse cora o seu anti clericalismo LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 321 Hungria anularam juridicamente as reformas de José e eliminaram os impostos sobre as terras da nobreza A eclosão da Revolução Francesa e as guerras napoleônicas voltaram a unir a partir daí a dinastia e a aristocracia em todo o império aferrandoas a um comum conservan tismo O episódio singular de um absolutismo demasiado iluminista estava terminado Paradoxalmente fora a própria aporia do absolutismo austríaco que o tornara possível A maior fraqueza e limitação do império Habs burgo era a ausência de uma aristocracia unitária capaz de formar uma nobreza de serviço de tipo oriental E contudo foi precisamente esta lacuna social que permitiu à autocracia josefina a sua latitude irresponsável Graças ao próprio fato de a classe fundiária não terse integrado no aparelho de Estado austríaco do modo como o fizera na Prússia e na Rússia a monarquia absoluta pôde fomentar um progra ma que lhe era efetivamente prejudicial Sem raízes em nenhuma no breza territorial dotada de uma forte e única coesão de classe a mo narquia podia conseguir um grau de expansiva autonomia desconheci do das suas vizinhas Daí o caráter singularmente antifeudal dos decretos josefinos em contraste com as reformas similares posteriores dos outros absolutismos do Leste30 O instrumento de renovação mo nárquica no império Habsburgo foi igualmente uma burocracia mais distinta da aristocracia do que em qualquer outra região recrutada basicamente na alta classe média das cidades germânicas cultural e socialmente separada da classe dos proprietários de terra Mas o rela tivo desligamento entre a monarquia e as heterogêneas classes fundiá rias de seu reino constituía também evidentemente uma causa de sua debilidade interna No campo internacional o programa josefino ter minou em desastre Internamente as leis sociais inerentes ao Estado absolutista foram rigorosamente reafirmadas numa demonstração elo qüente da impotência da vontade pessoal do monarca quando este transgride os interesses coletivos da classe que o absolutismo está his toricamente votado a defender O império austríaco emergiu assim da era napoleônica como o pilar central da reação européia com Metternich como o decano da contrarevolução monarquista e clerical em todo o continente O abso lutismo Habsburgo vagueou apaticamente pela primeira metade do sé culo XIX Entretanto a industrialização nascente criava uma nova 30 Todos os três programas reformistas o austríaco o prussiano e o russo foram motivados obviamente por derrotas militares 322 PERRY ANDERSON população urbana tanto trabalhadora como de classe média e a agri cultura comercial difundiase a partir do Ocidente com a introdução de novos cultivos beterraba sacarina batata trevo e a expansão da produção lanífera O campesinato fora emancipado da servidão mas ainda estava sujeito à jurisdição patrimonial de seus senhores por todo o império e em quase toda parte devia pesadas prestações em ser viços à nobreza Neste aspecto a Erbuntertãnigkeit de tipo tradicional ainda era predominante em cerca de 80 por cento de seu território incluindo todas as principais regiões da Europa central Alta Áus tria Baixa Áustria Estíria Caríntia Boêmia Morávia Galícia Hun gria e Transilvânia e o robot continuava a ser a grande fonte de mãodeobra na economia agrária31 O típico camponês alemão ou es lavo retinha ainda na década de 1840 somente 30 por cento de sua produção após pagar os impostos e tributos32 Ao mesmo tempo um número cada vez maior de proprietários de terra apercebiase de que a produtividade média do trabalho assalariado era muito superior à do trabalho do robot e começava a procurar substituílo uma mudança de atitude ilustrada estatisticamente por sua disposição em aceitar a comutação monetária do robot a preços bem inferiores ao pagamento mínimo do equivalente trabalho assalariado33 Ao mesmo tempo um número cada vez mais crescente de trabalhadores sem terra migrava para as cidades onde muitos deles se tornariam desempregados urba nos De forma inevitável a consciência nacional era agora estimulada na época pósnapoleônica primeiramente nas cidades para depois pe netrar no campo Em breve as reivindicações políticas burguesas ti nham um caráter mais nacional que liberal o império austríaco tor nouse a prisão dos povos Estas contradições acumuladas combinaramse e explodiram nas revoluções de 1848 A dinastia acabou por sufocar os levantes urbanos e suprimir as sublevações nacionais em todos os seus territórios Mas as revoltas camponesas que haviam fornecido às revoluções a sua força de massa só seriam pacificadas com o atendimento das reivindicações bá sicas das aldeias A Assembléia de 1848 prestou esse serviço à monar quia antes de ser posta de lado pela vitória da contrarevolução As jurisdições senhoriais foram suspensas eliminada a divisão rústico dominial da terra concedida a todos os arrendatários a garantia da posse e oficialmente abolidas as obrigações feudais em trabalho di 31 Blum Nuble Landowners andÁgriculturein Áustria pp 45 202 32 Idempn 33 Idempp 192202 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 323 nheiro ou espécie com indenização aos senhores suportada metade pelos arrendatários e metade pelo Estado As classes fundiárias da Áustria e da Boêmia já instruídas nos benefícios do trabalho livre não se opuseram a este arranjo os seus interesses foram generosamente contemplados pelas cláusulas de compensação aprovadas contra a re sistência dos portavozes camponeses34 Os Estados magiares lidera dos por Kossuth puseram fim ao robot de forma ainda mais vantajosa para a nobreza na Hungria as compensações foram integralmente pagas pelos camponeses A Lei Agrária de setembro de 1848 garantiu o predomínio das relações capitalistas no campo A propriedade da terra tornouse ainda mais concentrada à medida que os nobres menores vendiam seus domínios e os camponeses pobres afluíam às cidades en quanto os grandes senhores aumentavam os seus latifúndios e raciona lizavam a sua gestão e produção com os fundos das compensações rece bidas Abaixo deles consolidouse um estrato de prósperos Gross bauern especialmente em terras austríacas mas a distribuição funda mental do solo continuou talvez mais polarizada do que nunca após o advento da agricultura capitalista Na década de 1860 016 por cento das propriedades na Boêmia os vastos domínios da alta nobreza cobriam 34 por cento do território35 O regime Habsburgo baseavase agora numa agricultura cada vez mais capitalista Contudo o Estado absolutista emergiu não con formado das provações de 1848 As reivindicações liberais por liberda des civis e direito de voto foram silenciadas as aspirações nacionalistas suprimidas A ordem dinástica feudal sobrevivera à primavera po pular da Europa Mas a sua capacidade de evolução ou adaptação ati vas estava perdida As reformas agrárias austríacas foram obra da efê mera assembléia da revolução e não iniciativa do governo monár quico ao contrário das reformas prussianas de 180811 foram ape nas aceitas pelo Hofburg aposteriori Do mesmo modo a derrota mili tar da mais ameaçadora insurreição nacional da Europa central a constituição de um Estado independente pela nobreza húngara que contaria com o seu próprio ministério orçamento exército e política externa e estaria ligado à Áustria mais uma vez apenas por uma união pessoal fora conseguida não pelos exércitos da Áustria mas pelos da Rússia uma repetição inglória das tradições da dinastia A partir daí a monarquia Habsburgo reduziuse cada vez mais a um 34 Blum apresenta uma penetrante análise do acordo pp 2358 35 Tapié Monarchie et Peuples du Danube p 325 324 PERRY ANDERSON objeto passivo de acontecimentos e conflitos produzidos no exterior A frágil restauração de 1849 permitiulhe por uma breve década realizar a meta há muito acalentada da completa centralização administrativa O sistema Bach impôs uma burocracia uniforme e leis impostos e al fândegas unificados em todo o império guarnições de hussardos foram deslocadas para a Hungria a fim de reforçar a sua submissão Era no entanto impossível a estabilização desta autocracia centralista dema siado débil no plano internacional A derrota diante da França em Sol ferino e a perda da Lombardia em 1859 abalaram de tal modo a mo narquia que um recuo político interno passou a ser necessário A Carta Patente de 1861 concedeu um parlamento imperial ou Reichsrat eleito indiretamente a partir dos Landtage provinciais e composto de quatro cúrias além do sufrágio restrito com o intuito de assegurar a superio ridade germânica O Reichsrat não tinha poderes para controlar os ministros o recrutamento ou a coleta dos impostos já em vigor era um organismo sem importância e poder cuja criação não se fez acompa nhar de qualquer liberdade de imprensa ou mesmo da imunidade dos deputados36 A nobreza magiar recusouse a aceitálo e a dominação puramente militar foi de novo implantada na Hungria A derrota frente à Prússia em Sadowa ferindo e enfraquecendo mais uma vez a mo narquia arruinou este regime provisório no curto espaço de seis anos Toda a estrutura tradicional do Estado absolutista sofria agora um declínio súbito e drástico Ao longo de mais de três séculos o mais antigo e formidável inimigo do centralismo Habsburgo fora sempre a nobreza húngara a classe fundiária mais obstinadamente particu larista culturalmente coesa e socialmente repressiva de todo o império Como vimos a expulsão final dos turcos da Hungria e da Transilvânia no século XVIII pusera fim por um certo tempo à turbulência dos magiares Mas os cem anos que se seguiram embora aparentemente consagrassem a integração política da Hungria no império austríaco prepararam de fato uma última e espetacular reviravolta de papéis em seu interior Com efeito a reconquista da Hungria e da Transilvânia otomanas e a recuperação e colonização agrárias dos vastos espaços do leste aumentaram decisivamente o peso econômico da classe dominante húngara no conjunto do império Inicialmente a emigração campo nesa fora atraída para a planície húngara central devido aos vantajosos regimes de arrendamento mas uma vez que esta foi repovoada as pressões senhoriais endureceram imediatamente os domínios foram 36 A J P Taylor The Habsburg Monarchy Londres 1952 pp 10427 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 32S ampliados e as parcelas camponesas expropriadas37 O surto agrícola da época do iluminismo a despeito das políticas tarifárias discrimina tórias de Viena38 beneficiara grandemente a maior parte da nobreza e lançara os alicerces de fortunas da grande nobreza que viriam a atingir dimensões sem paralelo No aspecto histórico a nobreza baseada na Boêmia sempre fora a mais rica dos domínios Habsburgo por volta do século XIX o mesmo já não ocorria A família Schwarzenberg podia ter 190 mil hectares na Boêmia a família Esterhazy era senhora de 2 milhões e 800 mil na Hungria39 Assim a confiança e a agressividade da classe fundiária magiar em seu conjunto tanto os cavaleiros como os magnatas era cada vez mais reforçada pela nova extensão de suas possessões e pelo crescimento de sua importância no seio da economia centroeuropéia Não obstante a aristocracia húngara nunca foi admitida nos con selhos internos do Estado Habsburgo no século XVIII e no início do século XIX sempre foi mantida à distância do próprio aparelho polí tico imperial A sua oposição a Viena permanecia como o maior perigo doméstico que espreitava a dinastia a Revolução de 1848 mostrara o seu vigor quando ela impusera a seus camponeses um estatuto agrário mais implacável do que o de suas homólogas austríaca e boêmia e ao mesmo tempo resistira aos exércitos monárquicos até ser esmagada pela expedição que o czar enviara contra ela Portanto à medida que o absolutismo austríaco tornavase rapidamente mais fraco depois de sucessivos desastres no estrangeiro e a insatisfação popular tornavase cada vez maior no império a dinastia era lógica e irresistivelmente arrastada para o seu inimigo hereditário a mais combativa e feudal das nobrezas remanescentes da Europa central e a única classe fundiá ria então capaz de escorar o seu poder A vitória prussiana sobre a Áustria em 1866 assegurou a ascensão da Hungria à supremacia no seio do império Para salvarse da desintegração a monarquia foi forçada a aceitála como parceira formal O dualismo que criou a ÃustriaHun gria em 1867 conferiu à classe fundiária magiar o poder interno total na Hungria com governo orçamento assembléia e burocracia pró prios conservando apenas um exército e uma política externa comuns além de uma união aduaneira prorrogável Enquanto na Áustria a 37 Király Hungary in the Late Eighteenth Century pp 12935 38 Enfatizado pelos historiadores húngaros tradicionais ver por exemplo H MarczaliHungary in the Eighteenth Century Cambridge 1910 pp 39 99 39 Mamatey Rise of the Habsburg Empire p 64 C A Macartney Hun gary em Goodwin Orgf The European Nobility in the ISth Century p 129 326 PERRY ANDERSON igualdade civil a liberdade de expressão e a educação secular tiveram que ser concedidas pela monarquia na Hungria a nobreza não fez tais concessões A partir daí a nobreza húngara passou a representar a ala militante e autoritária da reação aristocrática no império que acabou por dominar cada vez mais o pessoal e as políticas do próprio aparelho absolutista de Viena40 Com efeito na Áustria os partidos políticos a agitação social e os conflitos nacionais minavam gradualmente a viabilidade do domínio autocrático No espaço de quatro décadas em 1907 o sufrágio univer sal masculino foi extraído à dinastia na Áustria em meio a greves ur banas e aos ecos populares da revolução russa de 1905 Na Hungria os proprietários de terra conservaram firmemente o seu monopólio de classe do direito de voto Portanto o império austríaco nunca conse guiu efetivar a transmutação que fizera do império alemão um Estado capitalista Quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial ainda não existia o controle parlamentar do governo imperial tampouco um pri meiroministro ou sistema eleitoral unificado O Reichsrat não tinha influência sobre as decisões e os seus membros não alimentavam espe ranças de realizar carreira pública Mais de 40 por cento da popu lação os habitantes da Hungria Croácia e Transilvânia estava excluída do voto secreto ou do sufrágio universal masculino os 60 por cento que gozavam desses direitos nos territórios austríacos dispunham de um direito meramente nominal uma vez que o seu voto não tinha nenhum valor nos assuntos do Estado Ironicamente apesar das frau des evidentes o exemplo mais próximo de um eleitorado efetivo e de um ministério responsável existia na Hungria justamente porque am bos estavam confinados à classe proprietária Ê óbvio que acima de tudo o império austríaco era a negação declarada do Estado nacional burguês representava a antítese de um dos símbolos essenciais da or dem política capitalista na Europa O seu rival alemão alcançara a sua transformação estrutural precisamente por ter presidido a construção 40 A grande exceção era o exército cujo comando supremo permaneceu basi camente como uma reserva austríaca durante todo o período que terminou com a Pri meira Guerra Mundial Mas a importância institucional do aparelho militar no Estado austríaco situouse sempre como vimos abaixo da média geral do absolutismo O Es tadoMaior desempenhou um papel crucial na crise de agosto de 1914 mas os seus fra cassos uma vez iniciada a luta em breve o relegaram outra vez a um relativo segundo plano em contraste direto com a ascensão de seu congênere alemão em Berlim en quanto a influência política magiar em Viena subia acentuadamente à medida que a guerra avançava 41 Taylor The Habsburg Monarchy p 199 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 327 nacional que o Estado austríaco recusara A evolução política oposta de cada um dos absolutismos teve portanto a sua contrapartida geopolí tica O Estado prussiano foi guindado de forma relutante mas inexo rável pura Ocidente à medida que se desenrolava o século XIX com a industrialização do Ruhr e o desenvolvimento capitalista do Reno O Estado austríaco tomava à mesma época uma direção oposta voltandose para o Leste com a crescente ascendência da Hungria e seu renitente senhorialismo Como era de se prever a última aquisição da dinastia constituiuse no território mais atrasado de todo o império as províncias balcânicas da Bósnia e da Herzegovina anexadas em 1909 onde a servidão tradicional dos camponeses kmet locais nunca fora seriamente modificada42 A eclosão da Primeira Guerra Mundial conduziu a trajetória do absolutismo austríaco ao seu destino os exér citos alemães lutaram as suas batalhas e os políticos húngaros determi naram a sua diplomacia Enquanto o general prussiano Mackensen comandava as operações de guerra o líder magiar Tisza chegava a chanceler efetivo do império A derrota fez desaparecer a prisão das nacionalidades 2256 42 O Jászi The Dissolution of the Habsburg Monarchy Chicago 1929 pp Rússia Chegamos assim ao último e mais estável dos absolutismos da Europa O czarismo russo sobreviveu a todos os seus precursores e con temporâneos para se tornar o único Estado absolutista no continente a subsistir intacto até o século XX As fases e os intervalos na gênese deste Estado muito cedo o situaram num plano à parte Com efeito o declínio econômico que marcou o aparecimento da última crise feu dal ocorreu como vimos sob a ameaça da tutela tártara Guerras conflitos internos epidemias despovoamento e abandono das regiões colonizadas caracterizaram o século XIV e a primeira metade do século XV A partir de 1450 iniciase uma nova era de recuperação e expan são econômicas Ao longo dos cem anos que se seguiram a população multiplicouse a agricultura prosperou o comércio interno e o uso da moeda difundiramse rapidamente enquanto o território do Estado moscovita crescia mais de seis vezes em superfície O sistema de afo Ihamento trienal até então praticamente desconhecido na Rússia co meçou a superar o cultivo camponês destrutivo e tradicional em con junto com a predominância do arado de madeira um pouco mais tar de generalizouse nas aldeias o uso dos moinhos1 Não havia agricul tura de exportação e os domínios eram ainda em grande medida autár quicos mas a presença de cidades de dimensões consideráveis sob o 1 A N Sakharov O Dialektike Istoricheskovo Razvitiya Russkovo Krest yantsva Voprosy Istorii 1970 n l pp 212 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 329 controle do grãoducado possibilitava um certo escoamento à produção dominial neste aspecto os domínios monásticos achavamse no pri meiro plano As manufaturas e o intercâmbio urbano beneficiavamse da unificação territorial da Moscóvia e da padronização monetária O volume do trabalho assalariado na cidade e no campo aumentou con sideravelmente enquanto em toda a Rússia florescia o comércio inter nacional2 Foi durante esta fase de expansão que Ivã III lançou os pri meiros fundamentos do absolutismo russo ao inaugurar o sistema do pomes te Até aí a classe fundiária russa compuserase essencialmente de príncipes autônomos e separatistas e de nobres boiardos muitos deles de origem tártara ou oriental senhores de vastos domínios alodiais e com freqüência de um número considerável de escravos Estes magna tas aproximaramse gradualmente da corte moscovita restaurada onde passaram a formar o séquito do monarca embora conservassem as suas próprias tropas e os seus círculos de dependentes Quando em 1478 Ivã III conquistou Novgorod tornou possível ao nascente Estado ducal expropriar largas faixas de território e colonizálas com uma nova no breza que passaria a formar a classe dos servidores militares da Mos cóvia A concessão do pomest e estava condicionada ao serviço perió dico nos exércitos do monarca tornandose o seu titular um servidor deste último sujeito a um estatuto rigorosamente definido Ospomesh chiki eram soldados de cavalaria armados de arco e espada para de sorganizadas e confusas batalhas tal como os cavaleiros tártaros que tinham por missão combater não usavam armas de fogo A maior par te das terras que lhes eram concedidas situavamse no centro e no sul do país próximas à frente de combate permanente com os tártaros Enquanto a típica votchina boiarda era um vasto domínio provido abundantemente de mãodeobra escrava e de camponeses dependentes a média no início do século XVII era de cerca de 520 unidades domés ticas na própria região de Moscou o pomeste da pequena nobreza constituía geralmente uma pequena propriedade com uma média de 5 a 6 famílias camponesas a seu serviço3 As reduzidas dimensões das 2 Já se afirmou que o volume do mercado interno era maior na década de 1560 que em meados do século XVII e a proporção do trabalho livre no conjunto da forca de trabalho era maior no século XVI que no século XVIII D I Makovsky Razvitie To varnoDenezhnykh Otnoshenii v Selskom Khozyaistve Russkovo Gosudarstva v XVI Veke Smolensko 1960 pp 203 206 3 R Hellie Enserfment andMilitary Change in Muscovy Chicago 1971 p 24 Hsta importante obra constituí a grande síntese recente sobre toda a questão da formação da servidão na Rússia e o papel da nobreza de serviço nos primórdíos do Estado czarista 330 PERRY ANDERSON posses pomeshchik e o rigor inicial do controle governamental sobre a sua exploração significava talvez que a sua produtividade fosse de modo geral bastante inferior à das terras alodiais boiardas e monásti cas A dependência econômica diante do grãoduque doador de suas terras era portanto muito estreita o que lhes deixava pouca margem para iniciativas sociais ou políticas Mas já em 1497 foi possivelmente a sua pressão que em parte resultou no decreto de Ivã III o Sudeb nik que restringia a duas semanas por ano antes e depois do dia de São Jorge em novembro o direito de movimentação dos camponeses o primeiro passo importante em direção à servidão jurídica do campe sinato russo embora o processo global tivesse ainda uma longa distân cia a percorrer Basílio III que subiu ao trono em 1505 seguiu as pe gadas de seu antecessor anexou Pskov e estendeu o sistema do po meste com suas vantagens políticas e militares para a dinastia Em alguns casos as terras alodiais apanágios de príncipes ou boiardos foram recuperadas e os seus possuidores estabelecidos em outras re giões em posses condicionais com dever de serviço militar ao Estado Ivã IV ao proclamarse czar estendeu e radicalizou este processo com a expropriação pura e simples de proprietários hostis e a criação de um corpo de guarda terrorista oprichniki que recebeu os domínios con fiscados ern troca de seus serviços A obra de Ivã IV embora tenhase constituído num passo deci sivo na construção de uma autocracia czarista tem sido freqüente mente dotada com uma coerência retrospectiva que não possuiu Na verdade o seu governo marcou três acontecimentos fundamentais para o futuro do absolutismo russo O poder tártaro no leste foi rompido pela libertação de Kazan em 1556 e pela anexação do canato de As trakan encerrando um pesadelo secular que entravava a expansão do Estado e da sociedade moscovitas Esta vitória memorável foi pre cedida pelo desenvolvimento de duas inovações cruciais no sistema mi litar russo o uso maciço de artilharia pesada e de minas contra as fortificações o que foi decisivo na captura de Kazan e a formação da primeira infantaria permanente de mosqueteiros streVtsy ambas de extrema importância para uma futura expansão externa Enquanto isso o sistema do pomest e generalizavase a uma nova escala o que acabou por alterar o equilíbrio de poder entre os boiardos e o czar Os confiscos âa oprichnina fizeram com que pela primeira vez o regime da posse condicional se tornasse a forma predominante de propriedade da terra na Rússia ao passo que os próprios domínios votchina passa vam a ser vinculados à prestação de serviço e o crescimento dos domí nios monásticos era limitado Tal mudança refletiuse no reduzido LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 331 papel da Duma boiarda durante o reinado de Ivã IV e na convocação da primeira Zemsky Sobor ou Assembléia da Terra na qual a nobreza menor estava proeminentemente representada4 E o que foi ainda mais importante Ivã IV garantiu então à classe pomeshchik o direito de determinar o nível das rendas a serem extraídas do campesinato de suas terras ao mesmo tempo que permitia que eles próprios as cole tassem tornandoos assim pela primeira vez os senhores efetivos da força de trabalho nos seus domínios5 Simultaneamente o sistema ad ministrativo e fiscal era modernizado com a abolição do sistema korm lenie de abastecimento na prática salários em espécie dos funcioná rios provinciais e a criação de um erário central para as receitas fiscais Uma rede local de autoadministração guba preenchida basicamente pela nobreza de serviço contribuiu para integrar ainda mais esta classe nascente ao aparelho de governo da monarquia russa Em seu con junto tais medidas militares econômicas e administrativas atuaram no sentido de fortalecer de modo considerável o poder político do Estado czarista central Por outro lado tanto os progressos externos como os domésticos seriam posteriormente minados pela desastrosa condução das intermi náveis Guerras da Livônia que exauriram o Estado e a economia e no plano interno pelas extorsões terroristas da oprichnina Estado acima do Estado6 oprichnina compunhase de 6 mil policiais militares e a ela estava confiada a administração da Rússia central A repressão que exercia não tinha qualquer objetivo racional correspondia apenas às próprias vinganças pessoais e insanas de Ivã IV Não ameaçava os boiardos enquanto classe somente selecionava certas pessoas em seu seio por sua vez as agitações que promovia nas cidades a dilaceração do sistema fundiário e a superexploração do campesinato foram causas diretas do colapso centrífugo absoluto da sociedade moscovita nos últi mos anos do reinado de Ivã Com efeito Ivã cometera um erro de cal 4 O exemplo da Sejm polonesa pode ser detectado na convocação desta institui ção que Ivã IV destinava talvez a atrair da Lituânia para a órbita moscovita os nobres da Rússia ocidental Billington The Icon and the Axé pp 99100 5 Hellie Enserfment and Military Change in Muscovy pp 37 45115 6 Frase cunhada por R G Skrynnikov e citada por A L Shapiro Ob Abso liutizme v Rossií Istoriya SSSR maio de 1968 p 73 O artigo de Shapiro é uma réplica a um ensaio de Avrekh a que aludimos anteriormente ver p 19 acima que iniciou um homérico debate entre os historiadores soviéticos sobre a natureza e o percurso do abso lutismo russo revelando uma gama extremamente ampla de posições com cerca de uma dúzia de contribuições à Istoriya SSSR e à Voprosy fstorii até a data em que escrevíamos este livro Há muitos pontos de interesse nessa discussão aos quais voltaremos a nos referir 332 PERRY ANDERSON culo fundamental após as suas vitórias no leste quando adotou uma política de expansão ocidental voltada para o Báltico em vez de dirigir se para o sul a fim de enfrentar a ameaça tártara na Criméia que se constituía em uma sangria permanente na segurança e na estabilidade da Rússia Capazes de derrotar os nômades orientais relativamente pri mitivos embora ferozes as novas forças militares russas eram porém incapazes de equipararse aos exércitos mais avançados da Polônia e da Suécia munidos de armas e táticas ocidentais Com a sua longa dura ção de 25 anos a Guerra da Livônia terminou num revés esmagador depois de arruinar a sociedade moscovita com enormes despesas e o de sarranjo da economia rural As derrotas na frente da Livônia combina ramse à desmoralização interna sob o chicote oprichnik para precipi tar um êxodo desastroso do campesinato da Rússia central e do no roeste para a recémanexada periferia do país deixando atrás de si re giões inteiras na maior desolação As calamidades seguiamse agora umas às outras num ciclo já familiar de extorsões fiscais más colhei tas epidemias e pestes pilhagens internas e invasões estrangeiras Os tártaros saquearam Moscou em 1571 e os oprichniki pilharam Novgo rod Numa tentativa desesperada de estancar este caos social Ivã IV proibiu toda a movimentação aos camponeses em 1581 interditando pela primeira vez o período de São Jorge o decreto proclamavase expressamente como de exceção cobrindo um ano específico ainda que tenha sido invocado intermitentemente ao longo da década Tais proibições não conseguiram controlar o problema imediato das fugas em massa enquanto grandes extensões dos tradicionais territórios da Moscóvia eram deixadas desertas Nas áreas mais atingidas a propor ção da terra cultivada por família camponesa caiu para um terço ou um quinto dos níveis anteriores verificouse uma regressão agrária genera lizada e extensas áreas ficaram sem cultivo na própria província de Moscou calculase que 76 a 96 por cento das colônias agrícolas foram abandonadas8 Em meio a este desmoronamento de toda a ordem rural laboriosamente erigida ao longo do século anterior houve um agudo recrudescimento da escravidão com muitos camponeses chegando a venderse a si próprios como escravos para escaparem à fome A derro cada final do reinado de Ivã IV íria prejudicar o progresso político e econômico da sociedade feudal russa por várias décadas corroendo 7 Veras opiniões coincidentes de Vernadsky The Tsardom ofMoscow vol II pp 1379 e Shapiro Ob Absoliutizme v Rossii pp 734 8 Hellie Enserfment and Military Change pp 957 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 333 mesmo os seus êxitos iniciais9 A ferocidade do governo de Ivã foi um sintoma do caráter histérico e artificial de grande parte de seu esforço de construção do absolutismo em condições onde qualquer autocracia sistemática era ainda prematura A década seguinte conheceu um certo alívio da profunda depres são econômica em que a Rússia tinha mergulhado mas a nobreza pomeshchik sentia ainda uma crítica escassez de mãodeobra campo nesa para cultivar as suas terras e passava a sofrer agora também com a aguda inflação Bóris Godunov o nobre que tomara o poder depois da morte de Ivã reorientou a política externa russa no sentido da paz com a Polônia a oeste do ataque aostáríaros da Criméia ao sul e acima de tudo da anexação da Sibéria a leste para isso necessitou da lealdade da nobreza de serviço militar Foi contra este pano de fundo que a fim de congregar o apoio dos nobres Godunov baixou um decreto em 1592 ou 1593 proibindo toda a mobilidade dos camponeses até determina ção em contrário suspendendo assim todas as restrições temporais de adscrição ao solo Este decreto foi o ponto culminante das medidas de servidão do final do século XVI e princípio do século XVII Foi prontamente seguido por um crescimento indiscriminado das presta ções em serviços e por medidas jurídicas que impediam o ingresso dos grupos sociais inferiores na classe pomeshchik No entanto ao elimi nar o último herdeiro da dinastia Rurik Godunov precipitou a sua queda O Estado russo desintegrouse então até quase ao caos com a Época das Dificuldades 160513 uma seqüela política de ação retar dada do colapso econômico da década de 1580 Intrigas sucessórias 9 E incorreto porém exagerar as conseqüências a longo prazo do recuo veri ficado na economia russa desses anos Makovsky considera que este teria ceifado o nas cente capitalismo russo precisamente no momento em que começava a se realizar e teria provocado uma regressão de mais de dois séculos com a consolidação da classe pomesh chik e da servidão Assim nas décadas de 60 e 70 do século XVI estavam presentes no Estado russo as condições econômicas necessárias à produção em larga escala mas a intervenção ativa da superestrutura com os onipotentes instrumentos de um Estado feu dal forte no seio das relações econômicas em benefício da nobreza não apenas impediu o desenvolvimento de novas relações como minou a situação do conjunto da economia do país Kazvitie TovarnoDenezhnykh Oínoshenii pp 2001 A oprichnina antes apre sentada como um salutar episódio antifeudal aparece nesta versão como um instrumento maléfico da reação feudal capaz de desviar toda a história russa de sua anterior traje tória progressista Um juízo deste tipo é manifestamente nãohistórico 10 V I Koretsky Zakreposhchenie Krestyan i Klassovaya Bora v Rossü vo VtoroiPolovineXVI v Moscou 1970 p 302 A pesquisa de Koretsky apontou com mais precisão que qualquer outro estudo anterior as fases e as circunstâncias exatas da ads crição jurídica à terra no final do século XVI para a sua abordagem do presumível de creto de Godunov cujo texto nunca foi recuperado ver pp 123512734 334 PERRY ANDERSON atos de usurpação entre grupos rivais conflitos entre grandes senhores no seio da classe boiarda e invasões estrangeiras da Polônia e da Suécia varreram o país As múltiplas fissuras na ordem dominante permitiram uma revolta camponesa chefiada pelos cossacos do tipo das que pon tuariam os dois séculos seguintes a insurreição de Bolotnikov em 16067 Liderada por um escravo fugitivo feito aventureiro uma hete rogênea força popular de extração urbana e rural do sudoeste marchou sobre Moscou numa tentativa de levantar a população pobre da capi tal contra o regime boiardo de usurpação no poder Tal ameaça uniu rapidamente forças hostis entre si como a pequena nobreza e os gran des senhores na luta contra os insurretos que acabaram por ser derro tados em Tula11 Mas a primeira revolta social das classes inferiores contra o aumento da repressão senhorial e da servidão serviu como advertência para as classes possuidoras das possíveis tormentas que estavam por vir Em 1613 a aristocracia cerrara o suficiente as suas fileiras para permitir a eleição do jovem boiardo Miguel Romanov como o novo im perador Na verdade o advento da dinastia Romanov iria semear lenta mente na Rússia um absolutismo que trezentos anos não conseguiriam extirpar O grupo de boiardos e funcionários diak que garantira a as censão de Miguel I conservou transitoriamente a Zemsky Sobor que a votara Em resposta às reivindicações da pequena nobreza o novo go verno promoveu a enérgica recuperação dos camponeses fugitivos in cluindo aqueles que tinham servido nas milícias antiestrangeiras da Época das Dificuldades A produção econômica foi retomada O pa triarca Filareto pai de Miguel que tornouse em 1619 o governante efetivo do país forneceu novos estímulos à classe pomeshchik entre gandolhe os territórios camponeses das terras negras no norte Mas o caráter e a orientação fundamental do novo regime Romanov estavam ligados aos grandes senhores e eram determinados pelos interesses dos boiardos metropolitanos e dos burocratas venais da capital e não dos nobres menores das províncias12 A partir daí o século XVII presen ciaria um divórcio e um conflito crescentes entre a massa da classe de serviço pomeshchik numericamente o grupo mais numeroso entre os 11 Para a revolta de Bolotnikov ver Paul Avrich Russian Rebels Londres 1973 pp 2032 12 J L H Keep The decline of the Zemsky Sobor Slavonic an East Euro pean Review 36195758 pp 1057 e The regime of Filaret 16191633 Slavonic and East European Review 38 1960 pp 33460 que oferece um minucioso relato das me didas políticas gerais do patriarca LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 335 proprietários de terra da Rússia cerca de 25 mil pessoas e o Estado absolutista tal como ocorria à mesma época na maior parte dos países europeus mas assumindo características particulares no contexto oriental de maior atraso A pequena elite boiarda da aristocracia russa cerca de quarenta a sessenta famílias era imensamente mais rica do que as fileiras da pequena nobreza era também de caráter bastante heterogêneo pois à sua composição tártara original juntaramse ao longo do século XVII elementos poloneses lituanos germânicos e sue cos Gozava de estreitos vínculos com os altos escalões da burocracia central a qual eralhe juridicamente adjacente na complexa estratifi cação da hierarquia de serviço moscovita ambos os grupos dispondo de posições situadas bem acima da pequena nobreza Foi este complexo de grandes senhores e funcionários constantemente dividido por que relas pessoais ou de facções que ditou a seu capricho as medidas go vernamentais de Moscou no início da época Romanov Duas grandes contradições o separavam da pequena nobreza de serviço Em primeiro lugar a superioridade bélica da Suécia e da Polô nia provada nas Guerras da Livônia e confirmada mais uma vez du rante a Época das Dificuldades impôs a renovação e modernização do exército russo A incerta cavalaria pomeshchik carente tanto de uma disciplina conjunta como de uma potência de fogo regular constituía um anacronismo na época da Guerra dos Trinta Anos na Europa tal como o era a desmoralizada streVtsy urbana o futuro pertencia aos regimentos de infantaria bem treinados empregados em formações em linha e munidos de mosquetes ligeiros em conjunto com os dragões de elite O regime de Filareto iniciou a formação de tropas permanentes deste tipo recorrendo a oficiais e mercenários estrangeiros No en tanto a nobreza de serviço recusouse a aderir às formas contemporâ neas da arte militar e a integrar tais regimentos de molde ocidental usados pela primeira vez na desafortunada guerra de Smolensk contra a Polônia 163234 A partir de então desenvolveuse uma crescente divergência entre a função de serviço nominal da classe pomeshchik e a verdadeira estrutura e composição das forças armadas russas que pas savam cada vez mais a ser constituídas por regimentos profissionais de infantaria e de cavalaria de novo estilo em vez das mobilizações oca sionais da pequena nobreza montada A partir da década de 1630 toda a racionalidade militar desta última tornouse crescentemente amea çada revelandose o seu papel tradicional obsoleto e redundante à 13 Hellie Enserfment and Afilitary Change pp 16474 336 PERRY ANDERSON mesma ocasião ocorriam atritos constantes entre boiardos e a pequena nobreza no seio da classe fundiária a propósito da disponibilidade da força de trabalho rural Com efeito embora o campesinato russo esti vesse então juridicamente vinculado ao solo as fugas eram ainda gene ralizadas em meio aos imensos e primitivos espaços desse país de mal definidas fronteiras ao norte a leste e ao sul Na prática os grandes senhores podiam atrair os servos dos domínios dos cavaleiros para os seus próprios latifúndios onde as condições agrárias eram habitual mente mais seguras e prósperas e os tributos feudais correspondente mente menos onerosos A pequena nobreza reclamou então energica mente a revogação de todas as restrições à recuperação de camponeses fugitivos enquanto os magnatas manobravam vitoriosamente no sen tido de manter os prazos de prescrição vencidos os quais não era mais possível a recuperação pela força dez anos depois de 1615 cinco anos após 1642 devido à crescente pressão pomeshchik A tensão entre boiardos e cavaleiros em torno das leis antifuga foi um dos temas cen trais da época e a agitação da pequena nobreza na capital foi insis tentemente utilizada para obter concessões do czar e da alta aristocra cia14 Por outro lado embora temporariamente graves os conflitos de interesses econômicos ou militares não podiam abalar a unidade social fundamental da classe fundiária em seu conjunto frente às massas ex ploradas do campo e das cidades Os grandes levantes populares dos séculos XVII e XVIII atuaram invariavelmente no sentido de reforçar a solidariedade da aristocracia feudal dominante15 14 N I Pavlenko K Voprosu o Genezisa Absoliutizma v Rossii Istoriya SSSR abril de 1970 pp 789 Pavlenko rejeitacorretamente a idéia defendida por outros participantes da polêmica historiográfica que ora se desenrola na União Soviética sob a influência da famosa fórmula de Engels segundo a qual a burguesia urbana jamais desempenhou um papel central e independente no advento do absolutismo russo Sa lienta ao contrário a importância dos atritos interfeudais entre grandes e pequenos proprietários exaustivamente analisadas por Hellie Enserfment and Military Cftange pp 1026 114 12838 15 Este fato é reconhecido mas nunca adequadamente integrado na análise geral por Hellie A grande fraqueza de seu livro é uma noção de Estado indevidamente restrita o governo russo é freqüentemente reduzido ao grupo mais elevado de grandes senhores e conselheiros de Moscou os seus propósitos a apetites individuais fortuitos impedindo qualquer preocupação com a adscrição do campesinato à terra Enserfment and Military Change p 146 Daí resulta o divórcio entre o processo social de redução à servidão e a estrutura política do Estado ao fazer desaparecer como por encanto a unidade básica da classe fundiária que determinava os vínculos entre ambos A servidão tornase assim um produto aleatório e ilógico da crise de 1648 uma imprevisível con cessão à nobreza no exato momento em que esta perdia a sua utilidade militar para o Estado que poderia muito bem nunca ter acontecido p 134 Na verdade é evidente LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 337 Foi justamente esta conjuntura que levou à codificação final da servidão na Rússia Em 1648 a elevação dos impostos e dos preços sus citou violentos levantes de artesãos em Moscou aos quais se juntaram uma explosão de revoltas camponesas nas províncias e um motim da streltsy Alarmado diante desses renovados perigos o governo boiardo em curso aceitou uma rápida convocação da decisiva Zemsky Sobor que suspendeu todas as limitações à recuperação pela força dos campo neses fugitivos atendendo assim à reivindicação fundamental da pe quena nobreza das províncias e integrandoa ao Estado central A Zemsky Sobor elaborou então o abrangente código jurídico que iria tornarse a carta social do absolutismo russo As Sobornoe Ulozhenie de 1649 codificaram e promulgaram em definitivo a servidão do cam pesinato a partir daí irreversivelmente vinculado ao solo Tanto as ter ras votchina como as do pomest e foram declaradas hereditárias e a compra e venda destas últimas foi proibida desde então todos os do mínios ficaram sujeitos ao serviço militar16 As cidades foram subme tidas a controles sem precedentes por parte do czar e meticulosamente isoladas do resto do país a sua população pobre posadskie foi assi milada aos servos do Estado somente os que pagavam impostos po diam nelas residir e nenhum habitante poderia deixálas sem permissão do monarca O estrato superior dos comerciantes gosti recebeu privi légios monopolistas no comércio e nas manufaturas mas de fato o desenvolvimento posterior das cidades foi estrangulado pela suspensão da migração rural devido à generalização da fixação à terra que gerou uma inevitável escassez da mãodeobra no reduzido setor urbano da economia A semelhança etitre as Ulozhenie russas e o Recess prus siano de quatro anos depois não precisa ser enfatizada Ambos lança ram os alicerces do absolutismo por meio de um pacto entre a monar que dois séculos de servidão na Rússia não dependeram dos acontecimentos casuais de um único ano A própria análise de Hellie demonstra posteriormente que a relação fun damental entre as frações boiarda e da pequena nobreza no seio da classe fundiária não era determinada pelos seus respectivos papéis administrativos ou pelas disponibili dades de mãodeobra mas pelo controle comum dos meios de produção mais impor tantes e pelo interesse solidário na exploração e na repressão do campesinato As nume rosas e graves disputas entre eles situamse sempre em tal contexto estrutural daí a sua instintiva solidariedade nas crises sociais quando tanto o poder do Estado como a pro priedade agrária eram ameaçados pela rebeldia camponesa 16 As principais cláusulas da Ulozhenie são descritas em Vernadsky The Tsar dom ofMoscow I pp 399411 O novo código pôs fim também ao que restava da auto nomia municipal de Novgorod e Pskov L A Fedosov Sotsiamaya Sushchnost i Evo liutsiya Rossiiskovo Absoliutizma Voprosy Istorii julho de 1971 pp 523 338 PERRY ANDERSON quia e a nobreza no qual a fidelidade política que uma buscava foi trocada pela servidão patrimonial exigida pela outra A última metade do século revelou a solidez desta união pela própria intensidade dos desafios políticos com que se defrontou A Zemsky Sobor em breve tornada inútil dissolveuse em 1653 No ano seguinte os cossacos da Ucrânia transferiram formalmente a sua vas salagem para a Rússia pelo Tratado de Pereyaslavl daí resultou a Guerra dos Treze Anos com a Polônia As tropas czaristas lançaramse à frente com alguns êxitos iniciais tomando Smolensk e avançando através da Lituânia onde Wilno foi capturada Entretanto o ataque sueco à Polônia logo complicou a situação estratégica a recuperação da Polônia custou uma década de penosas lutas e ao final as aquisi ções territoriais da Rússia mostraramse limitadas embora substan ciais Pelo Tratado de Andrussovo em 1667 o Estado czarista adquiria a metade oriental da Ucrânia alémDnieper incluindo Kiev e recupe rava a região de Smolensk ao norte Na década seguinte as incursões maciças dos turcos no sul a partir do mar Negro foram penosamente contidas à custa da devastação da maior parte da área povoada da Ucrânia Enquanto isso tais êxitos externos moderados eram acompa nhados por mudanças internas radicais na natureza do aparelho mili tar do nascente absolutismo russo Com efeito foi durante este pe ríodo à medida que o sistema de Estados declinava que o exército cresceu rapidamente atingindo um volume duas vezes superior entre 1630 e 1681 quando passou a contar com 200 mil homens em seu efetivo um nível superior ao dos maiores sistemas militares do Oci dente na época17 O papel das tropas pomeshchik não reformadas de clinou na mesma proporção Não só a nova linha fortificada de Bel gorod protegia a fronteira meridional dos ataques dos tártaros da Cri méia que outrora lhes cabia enfrentar como e acima de tudo os regi mentos semipermanentes da nova formação tornaramse o elemento primordial dos exércitos russos durante a Guerra dos Treze Anos com a Polônia Em 1674 a pequena nobreza fornecia apenas dois quintos dos efetivos da cavalaria que desde então viase no aspecto estratégico ultrapassada pela infantaria pesada Entretanto os pomeshchik eram 17 Para estimativas do volume das forças armadas durante o século XVII ver Hellie Enserfment and Military Change pp 2679 que defende incorretamente que no final da década de 1670 o exército russo era de longe o maior da Europa p 226 Na verdade o sistema militar francês era pelo menos equivalente a ele provavelmente maior Mas o volume relativo quando n3o a competência das forças armadas moscovi tas era mesmo assim impressionante LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 339 igualmente marginalizados na administração civil Com papel predo minante nas chancelarias centrais durante o século XVI foram pro gressivamente excluídos da burocracia do século XVII que passou a ser privilégio de uma casta quase hereditária de funcionários nos graus inferiores e de corruptos altos burocratas ligados aos grandes senhores nos escalões superiores18 Em 1679 além disso a dinastia Romanov aboliu a autoadministração local guba que outrora estivera nas mãos de pequenos nobres da província integrandoa na máquina cen tralizada dos governadores voevoda designados por Moscou Tampouco era satisfatória a situação dos trabalhadores nos do mínios pomeshchik Em 1658 foram decretadas novas leis que equi paravam as fugas de camponeses ao crime de felonia mas a existência inalterada das fronteiras meridionais e dos espaços agrestes da Sibéria abria expressivas fendas na consolidação jurídica da servidão embora nas regiões centrais do país a degradação dos camponeses se acentuasse cada vez mais enquanto os impostos triplicaram ao longo do século XVII a parcela média do camponês foi reduzida à metade entre 1550 e 1660 chegando a medir apenas de 15 a 2 hectares19 Esta contínua deterioração da condição camponesa desencadeou a grande insurreição rural de cossacos servos pobres dos subúrbios e escravos sob a chefia de Razin na região sudeste em 1670 que reuniu as tribos desalojadas dos Tchuvaches Maris e Mordvas e desencadeou sublevações popula res nas cidades ao longo do Volga O extremo perigo social que esta ampla jacquerie representava para o conjunto da classe dominante uniu imediatamente os boiardos e a pequena nobreza as agudas que relas entre proprietários das décadas precedentes foram esquecidas na mesma implacável repressão dos pobres A vitória militar do Estado czarista sobre a rebelião Razin na qual os novos regimentos permanen tes desempenharam um papel indispensável restabeleceu mais uma vez os vínculos entre a monarquia e a nobreza Nas duas últimas dé cadas do século foi a vez dos boiardos até aí a força propulsora por trás de sucessivos czares fainéant se curvarem e se adaptarem às exigências de um absolutismo ascendente Os grandes potentados que tinham surgido na Época das Dificuldades eram com freqüência de proveniência mista e origem recente tinham poucas razões para ape garse à antiquada e divisória hierarquia do mestnichestvo o labirín 18 Hellie Enserfment and Military Change pp 702 19 Idempp 229372 Em francês no original indolentes N T 340 PERRY ANDERSON tico sistema de posições no seio das famílias boiardas que datava do século XIV e tivera efeitos tão nocivos ao sistema de comando do novo aparelho militar do Estado Em 1682 o czar Teodoro queimou solene mente os veneráveis livros da precedência ancestral que registravam tal hierarquia a partir daí abolida condição prévia para uma maior unidade da aristocracia20 Estava montado o cenário para uma drástica reconstrução de toda a ordem política do absolutismo russo Evidentemente a máquina estatal erigida sobre estes novos fun damentos sociais foi acima de tudo a obra monumental de Pedro I O seu primeiro gesto ao subir ao poder foi dissolver a velha e incons tante streVtsy a milícia moscovita cuja turbulência fora uma fonte de freqüentes inquietudes para os seus predecessores e criar os exímios regimentos de guardas Preobrazhensky e Semenovsky que seriam a partir daí os corpos de elite do aparelho repressivo czarista21 A duali dade tradicional entre as frações boiarda e da pequena nobreza no seio da classe fundiária foi recomposta pela criação de um novo e abran gente sistema hierárquico e pela universalização do princípio do ser viço que uniu nobres e cavaleiros numa mesma estrutura política Im portaramse novos títulos da Dinamarca e da Prússia conde barão a fim de introduzir escalões mais sofisticados e modernos no seio da aristocracia que desde então passava a depender en bloc da corte tanto no aspecto social como no etimológico dvoriantsvo O poder independente dos magnatas foi implacavelmente suprimido a Dunia boiarda foi eliminada e substituída por um senado nomeado pelo czar A pequena nobreza foi reincorporada numa administração e nurn exér cito modernizados onde voltava a configurar o elemento central22 A votchina e o pomest e foram reunidos em um único modelo de pro priedade hereditária da terra e a nobreza foi indissoluvelmente ligada ao Estado por obrigações universais de serviço a partir dos catorze anos tanto no exército como na burocracia Para financiar estas insti tuições foi ordenado um novo censo da população e os antigos escravos foram assimilados à classe dos servos que passaram a ser vinculados à pessoa do senhor e não mais à terra que cultivavam podendo portanto ser vendidos por seus donos como os Leibeigene prussianos No mesmo 20 J H L Keep The muscovite elite and the approach to pluralism Slavo nicandEastEuropeanReview XLVIII 1970 pp 2178 21 M Ya Volkov O Stanovlenii Absoliutizma v Rossii Istoriya SSSR ja neiro de 1970 p 104 Também foi criado um terceiro regimento de guardas pessoais montados 22 Hellie Enserfment andMititary Change p 260 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 341 movimento as comunidades anteriormente livres das terras negras do norte e os colonos da Sibéria foram considerados servos do Estado com situação um pouco superior à dos servos privados mas com ten dência a aproximarse rapidamente da condição destes O patriarcado foi abolido e a Igreja foi firmemente subordinada ao Estado pelo novo departamento do Santo Sínodo onde o mais alto dignatário era um funcionário secular Construiuse em São Petersburgo uma nova e oci dentalizada capital O sistema administrativo foi reorganizado em go vernos províncias e distritos e o número de burocratas duplicou23 Os departamentos governamentais foram concentrados em nove colé gios centrais dirigidos coletivamente por conselhos Nos Urais insta louse uma moderna indústria metalúrgica que transformaria a Rússia num dos maiores produtores de ferro da época O orçamento foi qua druplicado basicamente com os recursos provenientes de um novo im posto sobre as almas servis A média dos impostos pagos pelos campo neses quintuplicou entre 1700 e 17078 A parte principal desta receita pública substancialmente am pliada de dois terços a quatro quintos dela foi destinada à construção de um exército profissional e de uma armada moderna os dois obje tivos dominantes de todo o programa de Pedro aos quais todos os ou tros se subordinavam Na Grande Guerra do Norte que se estendeu de 1700 a 1721 o ataque sueco à Rússia foi inicialmente coroado de êxito Carlos XII dizimou as forças czaristas em Narva invadiu a Polônia e levantou o hetman cossaco Mazeppa contra Pedro I na Ucrânia A vitória russa em Poltava no ano de 1709 complementada pelo triunfo naval no golfo da Finlândia e pela invasão da própria Suécia inverte ram todo o equilíbrio de forças na Europa oriental O poder sueco foi enfim repelido e derrotado e com a sua queda o império czarista regis trava duas conquistas geopolíticas decisivas Pelo Tratado de Nystadt em 1721 as fronteiras russas atingiam finalmente o Báltico foram ane xadas a Livônia a Estônia a íngria e a Carélia e assegurado um acesso marítimo direto para o Ocidente Ao sul num conflito separado os exércitos turcos quase infligiram uma catástrofe às tropas russas de masiado dispersas e o czar por sorte conseguiu desembaraçarse sem perdas mais sérias Não se registraram conquistas importantes ao longo do mar Negro mas a ameaça da Sech dos cossacos de Zaporozhie que 23 I A Fedosov Sotsialnaya Sushchnost i Evoliutsiya Rossiiskovo Absoliu tizma pp 5760 24 Hellie Enserfment and Military Change p 256 Para o aumento dos impos tos ver Avrich Kussian Rebels p 139 342 PERRY ANDERSON sempre impediram qualquer colonização permanente das terras do in terior da Ucrânia foi eliminada com a supressão da rebelião de Ma zeppa O absolutismo russo emergiu dos vinte anos de conflitos da Grande Guerra do Norte como uma força que se agigantava no leste da Europa No plano interno a rebelião de Bulavin contra a recaptura de servos e o trabalho forçado na região do baixo Don foi reprimida com êxito enquanto a longa revolta da Bashkíria contra a colonização russa na região do UralVolga era isolada e derrotada Todavia o perfil do Estado de Pedro com a sua incansável repressão e seus avanços terri toriais deve ser traçado sobre o fundo sombrio de um grande atraso que afetou profundamente o seu verdadeiro caráter Apesar de toda a reorganização e repressão exercida por Pedro I não foi possível superar o caráter endêmico da corrupção e do desvio de fundos públicos é de se supor que apenas um terço das receitas fiscais atingia os cofres do Es tado25 A tentativa de comprometer pela força o conjunto da nobreza ao serviço vitalício do czarismo revelouse após a morte de Pedro ex cessivamente dispendiosa Com efeito uma vez que uma aristocracia habituada ao absolutismo já estava solidamente formada e estabili zada os sucessores de Pedro podiam permitirse o relaxamento e a posterior eliminação do caráter compulsório das obrigações da no breza que foram rescindidas por seu neto Pedro III em 1762 por essa época a aristocracia estava já espontânea e seguramente integrada ao aparelho do Estado Sob os governos de uma série de monarcas fracos Catarina I Pedro II Ana e Elizabeth os regimentos da guarda criados por Pedro I tornaramse após a sua morte a arena dos conflitos entre os grandes senhores pelo poder em São Petersburgo e os seus vários putschs constituíram um tributo à consolidação do complexo institu cional czarista a partir de então os nobres conspiravam no seio da au tocracia não contra ela26 A ascensão de um novo soberano resoluto ao poder em 1762 foi portanto o sinal não para uma irrupção das tensões entre a monarquia e a nobreza mas para uma reconciliação mais harmoniosa entre ambas Catarina II revelouse o governante ideologicamente mais consciente da história da Rússia e o mais ampla 25 Dora Competition for Empire p 70 As receitas fiscais prussianas eram mais elevadas que as da Rússia na década de 1760 para um terço da população 26 A única tentativa de impor limites constitucionais à monarquia foi o projeto de Golitsyn que em 1730 preconizava o governo por um Conselho Privado oligárquico vagamente inspirado no modelo sueco foi imediatamente frustrada por uma revolta dos guardas LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 341 mente generoso com a sua classe Aspirando a uma reputação européia por seu iluminismo político promulgou um novo sistema educacional secularizou as terras eclesiásticas e fomentou o desenvolvimento mer cantilista da economia russa A moeda foi estabilizada a indústria do ferro expandida e o volume do comércio externo aumentado Os dois marcos divisórios do reinado de Catarina II foram porém a extensão da agricultura servil organizada ao conjunto da Ucrânia e a promulgação da Carta da Nobreza Para o primeiro contribuiu a destruição do ca nato tártaro da Criméia e o rompimento do poderio otomano ao longo do litoral setentrional do mar Negro Na sua condição de Estado vas salo da Turquia o canato da Griméia não impedia apenas o acesso rus so ao Euxino os seus perpétuos ataques sacudiam e devastavam as planícies do Ponto fazendo de grande parte da Ucrânia uma terrade ninguém insegura e despovoada muito tempo depois da sua incorpo ração oficial ao reino Romanov A nova imperatriz concentrou toda a força dos exércitos russos contra o controle islâmico do mar Negro Em 1774 o canato tinha sido separado da Porta e a fronteira otomana afastada para o rio Bug Em 1783 a Criméia era diretamente anexada Uma década mais tarde a fronteira da Rússia atingia o Dniester No novo litoral czarista foram fundadas Sebastopol e Odessa o acesso na val ao Mediterrâneo através dos estreitos parecia estar próximo No entanto as conseqüências deste avanço rumo ao sul se reve lariam muito mais importantes a curto prazo para a agricultura russa A eliminação definitiva do canato tártaro possibilitou a recuperação e a colonização organizada das vastas estepes ucranianas pela primeira vez largas faixas dessas terras foram convertidas em cultivos aráveis e ocupadas por uma população camponesa estável e sedentária estabe lecida em grandes domínios Dirigida por Potemkin a colonização agrária da Ucrânia representou talvez a maior ocupação geográfica da história da agricultura feudal européia Contudo não se registrou ne nhum progresso técnico na economia rural em conseqüência deste imenso avanço territorial tratouse de um ganho puramente extensivo No aspecto social serviu para submeter os habitantes outrora livres ou semilivres das regiões pioneiras à condição dos camponeses do centro provocando assim um rápido crescimento da população servil da Rús sia Durante o reinado de Catarina II o volume das rendas monetárias pagas pelos servos cresceu em alguns casos até cinco vezes o governo negouse a fixar limites máximos para as corvéias um número enorme de servos do Estado foi entregue aos nobres mais importantes para que ficassem sujeitos a um regime de exploração privada mais intensa Este episódio final e dramático do processo de redução das massas rurais à 344 PERRY ANDERSON servidão encontrou como resposta a última e a mais ampla das revoltas de inspiração cossaca chefiada por Pugatchev uma rebelião avassa ladora que abalou toda a região do Volga e dos Urais arrastando imensas e heterogêneas massas de camponeses trabalhadores metalúr gicos nômades montanheses hereges e pequenos proprietários num assalto final e desesperado contra a ordem dominante27 Todavia as cidades e as guarnições czaristas mantiveramse firmes enquanto o exército imperial era mobilizado para esmagar a revolta Sua derrota marcou o fechamento da fronteira oriental A partir daí as aldeias russas afundaram num profundo silêncio Em 1785 a Carta da No breza outorgada pela imperatriz completou a longa jornada do campe sinato rumo à servidão Através dela Catarina II garantia à aristocra cia todos os privilégios libertavaa de serviços compulsórios e lhe con cedia controle jurisdicional absoluto sobre a força de trabalho rural Á devolução de uma parcela da administração provincial transferiu gra dualmente as funções locais para a pequena nobreza28 Estava traçada a parábola característica do absolutismo em ascensão a monarquia nascera em concordância com a nobreza no século XVI Ivã IV elas colidiram às vezes violentamente durante o século XVII em meio à predominância dos grandes senhores às complexas rupturas e desloca mentos no seio do Estado e à turbulência social externa a este Miguel I a monarquia alcançou uma implacável autocracia por volta do início do século XVIII Pedro I a nobreza e a monarquia recuperaram a partir de então a harmonia e a serenidade recíprocas Catarina II A força do absolutismo russo revelouse em breve nos seus êxitos internacionais Principal inspiradora das Partilhas da Polônia Cata rina II foi também a sua maior beneficiária quando a operação foi com pletada em 1795 O império czarista foi ampliado em cerca de 500 mil quilômetros quadrados e estendiase agora até o Vístula Ao longo da 27 Avrich considera a rebelião de Pugatchev o mais extraordinário levante de massas na Europa entre as revoluções inglesa e francesa para sua análise da variada composição social da revolta ver Russian Kebels pp 196225 É evidente o gradual deslocamento geográfico das rebeliões camponesas na Rússia de Bolotnikov a Puga tchev elas se moveram numa ampla frente que ia do sul para o leste ao longo das áreas de fronteira onde era menor o controle e a presença da administração Ao contrário nunca ocorreu uma grande sublevação nas províncias centrais da antiga Moscóvia com a sua longa colonização homogeneidade étnica e proximidade da capital 28 Dukes num volume cuidadosamente documentado conclui que a subser viência da nobreza russa à autocracia czarista tem sido muito exagerada haveria antes uma fácil unidade social entre ambas Paul Dukes Catheríne the Great and the Russian Nobility Cambridge 1967 pp 24850 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 345 década seguinte a Geórgia foi anexada no Cáucaso No entanto foi a grandiosa prova de força constituída pelas Guerras Napoleônicas que demonstrou a nova primazia européia do Estado czarista A Rússia social e economicamente o mais atrasado absolutismo do Leste reve louse nos planos político e militar o único ancien regime de ponta a ponta do continente capaz de suportar o ataque francês Já na última metade do século XVIII os exércitos russos foram pela primeira vez na história enviados para regiões remotas do Ocidente Itália Suíça e Holanda para apagar as chamas da revolução burguesa ainda ati çadas pelo Consulado O novo czar Alexandre I participou da quarta e da quinta coligações contra Napoleão que resultaram em fracasso Mas enquanto os absolutismos austríaco e prussiano eram batidos em Ulm e em Wagram em lena e em Auerstadt o absolutismo russo con seguia uma trégua em Tilsit Uma vez divididas as esferas de influência entre os dois imperadores em 1807 foi possível à Rússia encetar a conquista da Finlândia 1809 e da Bessarábia 1812 em detrimento da Suécia e da Turquia Finalmente quando Napoleão lançou a sua invasão em grande escala da Rússia a Grande Armée mostrouse in capaz de desmantelar a estrutura do Estado czarista Vitorioso a prin cípio no campo de batalha o ataque francês foi aparentemente arrui nado pelo clima e pelas condições logísticas mas na realidade sua derrota se deveu à resistência impenetrável de um ambiente feudal de masiado primitivo para ser vulnerável à espada da expansão burguesa e da emancipação ocidental cuja lâmina estava agora embotada pelo bonapartismo29 A retirada de Moscou assinalou o fim da dominação francesa em todo o continente no espaço de dois anos as tropas russas achavamse aquarteladas em Paris O czarismo atravessou o século XIX como o guardião vitorioso da contrarevolução européia O Con gresso de Viena selou o seu triunfo outra grande fatia da Polônia foi anexada e Varsóvia tornouse uma cidade russa Três meses mais tar de a Santa Aliança foi solenemente encarregada por instâncias pes soais de Alexandre I de garantir a restauração monárquica e clerical do Guadarrama aos Urais 29 A ausência de uma classe média radical na Rússia privou a invasão francesa de qualquer ressonância política local Napoleão recusou seu apoio à emancipação dos servos durante o avanço sobre a Rússia embora delegações de camponeses o tivessem Inicialmente saudado e o governadorgeral de Moscou vivesse em constante temor de re beliões urbanas e rurais contra o governo czarista Napoleão porém contava chegar a um acordo com Alexandre I depois de derrotálo como fizera com Francisco II e n3o pretendia comprometer tal possibilidade com medidas sociais irreparáveis Ver os perti nentes comentários de SetonWatson The Russian Empire pp 12930133 346 PERRY ANDERSON As estruturas do Estado czarista tal como saíram dos acordos de Viena intocadas por qualquer transformação comparável às Reformas da Áustria e da Prússia não tinham paralelo em nenhum outro país da Europa O Estado foi oficialmente proclamado uma autocracia o czar governava por toda a nobreza em seu próprio nome apenas30 Abaixo dele uma hierarquia feudal estava cimentada aos próprios degraus do sistema de Estado Por um decreto de Nicolau I criouse em 1831 uma hierarquia modernizada no seio da classe nobiliária correspondente aos escalões hierárquicos da burocracia do Estado Em contrapartida todos os que ocupassem determinadas posições no serviço do Estado recebiam o grau de nobreza correspondente o qual acima de certos graus tornavase hereditário Títulos e privilégios aristocráticos conti nuaram portanto até 1917 a ser relacionados pelo sistema político com as diferentes funções administrativas A classe fundiária assim li gada ao Estado controlava cerca de 21 milhões de servos Ela própria se achava altamente es tratif içada quatro quintos desses servos estavam vinculados às terras de um quinto dos proprietários enquanto os maio res nobres apenas l por cento de toda a dvoriantsvo possuíam em seus domínios quase um terço de toda a população dos servos privados A partir de 183132 os pequenos cavaleiros em posse de menos de 21 almas foram excluídos das assembléias da nobreza A aristocracia rus sa manteve durante todo o século XIX a sua vocação para o serviço do Estado e a sua aversão pela gestão agrária Poucas famílias nobres ha bitavam o mesmo solo há mais de duas ou três gerações e a propriedade absenteísta era generalizada a residência nas cidades quer nas de pro víncia quer nas metrópoles era o ideal comum à médiae à alta aris tocracia31 As posições no aparelho de Estado eram os meios então ha bituais para atingila O Estado propriamente dito era proprietário de terras com 20 milhões de servos dois quintos da população camponesa da Rússia Era portanto o maior proprietário feudal direto do paísO exército era constituído por convocações ocasionais de servos e a nobreza hereditá ria dominava a sua estrutura de comando de acordo com o seu grau aristocrático Os grãoduques ocupavam as inspetorias gerais do exér cito e o conselho de guerra até a Primeira Guerra Mundial e durante o 30 H SetonWatson The Decline of Imperial Rússia Londres 1964 pp 527 oferece uma visão geral bastante clara da sociedade russa sob Nicolau 1 31 T Emmons The Russian Landed Gentry and the Peasant Emancipation of ítfóCambridge 1968 pp 311 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 347 seu curso os comandantesemchefe eram os primos ou tios do czar A Igreja era uma subdivisão do Estado subordinada a um departamento burocrático o Santo Sínodo cujo chefe o procuradorgeral era um funcionário civil nomeado pelo czar O Sínodo tinha o estatuto de um ministério com uma administração econômica que cuidava das propriedades eclesiásticas e era ocupada basicamente por funcionários leigos Os padres eram tratados como funcionários com dever de servir o o governo tinham que relatar as confissões que revelassem más inten ções contra o Estado O sistema educacional era controlado pelo Es tado em meados do século os reitores e professores das universidades eram designados diretamente pelo czar e por seus ministros No topo desta vasta e prolifera burocracia estava apenas a figura do autocrata e o governo de bastidores de sua chancelaria privada32 havia minis tros mas não gabinete três colméias de polícia concorrentes e peculato generalizado A ideologia da reação clerical e chauvinista que presidia este sistema era proclamada pela trindade oficial autocracia ortodo xia e nacionalidade O poder político e militar do Estado czarista na primeira metade do século XIX encontrou continua demonstração no expansionismo e no intervencionismo externos O Azerbaijão e a Ar mênia foram ocupados a resistência dos montanheses na Circássia e no Daguestão foi gradualmente anulada nem a Pérsia nem a Turquia achavamse em posição de resistir às anexações que a Rússia realizava no Cáucaso Na própria Europa os exércitos russos derrotaram uma revolta nacionalista na Polônia em 1830 e varreram a Revolução Hún gara de 1849 Nicolau l o principal executor da reação monárquica no exterior governava no plano interno sobre o único país importante do continente que não fora afetado pelas sublevações populares de 1848 O poder internacional do czarismo nunca parecera maior Na realidade a industrialização da Europa ocidental começava a converter esta confiança em algo anacrônico O primeiro grande cho que sofrido pelo absolutismo russo veio com a humilhante derrota que lhe foi infligida pelos Estados capitalistas da Inglaterra e da França na Guerra da Criméia de 185456 A queda de Sebastopol em suas 32 Os historiadores tendem a interpretar a Chancelaria Pessoal que descendia da Preobrazhensky Prikaz de Pedro I como uma decomposição dualista da centrali zação absolutista e um sintoma da decadência administrativa do czarismo no século XIX Ver por exemplo A Avrekh Russkii Absoliutizm i Evo Rol v Utverzhdenii Kapita Hzma v Rossii Istoríya SSR fevereiro de 1968 p 100 I A Fedosov Sotsialnaya Sushchnost Evoliutsiya Rossüskovo Absoliutizma Voprosy ístoríi julho de 1971 p 63 348 PERRY ANDERSON conseqüências internas pode ser comparada com a retirada de lena A derrota militar frente ao Ocidente levou à abolição da servidão por Alexandre II como a mais elementar modernização social das bases do ancien regime No entanto é necessário não exagerar este paralelo Com efeito a extensão do golpe recebido pelo czarismo foi bastante amena e limitada a Paz de Paris não era de modo algum o Tratado de Tilsit Portanto a Era das Reformas que a Rússia conheceu na década de 1860 foi apenas um eco longínquo de sua predecessora prus siana O processo jurídico foi um pouco liberalizado a nobreza rural obteve a criação de órgãos de administração autônoma zemstvo as cidades receberam conselhos municipais foi introduzido o sistema de recrutamento geral A emancipação do campesinato decretada por Ale xandre em 1861 foi executada de maneira não menos favorável à dvo riantsvo do que a de Hardenberg o fora para os junkers Distribuíram se aos servos as terras que anteriormente cultivavam nos domínios da nobreza em troca de um pagamento de compensações monetárias aos seus senhores O Estado adiantou à aristocracia o valor dessas indeni zações e depois reclamouo junto ao campesinato por vários anos na forma de pagamentos de resgates Na Rússia setentrional onde era baixo o valor das terras e os tributos servis eram pagos em espécie obrok os proprietários conseguiram extorquir quase o dobro do valor de mercado das terras em compensações monetárias Na Rússia meri dional onde as obrigações servis assumiam principalmente a forma de prestações de serviços barshchina e o rico solo negro permitia lucrati vas exportações de cereais a nobreza defraudou seus camponeses em até 25 por cento das terras melhores que lhes eram devidas as chama das otrezki33 O campesinato esmagado sob o peso dos resgates so freu assim uma redução líquida do total das terras que antes haviam cultivado para suas famílias Além disso a abolição da servidão não significou o fim das relações feudais no campo tal como já acontecera na Europa ocidental Na prática o labirinto de formas tradicionais de extração do excedente extraeconômico corporificado em direitos e deveres consuetudinários continuou a existir nos domínios russos No seu estudo pioneiro sobre O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia Lenin escreveu que após a abolição da servidão a eco nomia capitalista não podia surgir imediatamente e a economia da corvée não podia desaparecer imediatamente Deste modo o único sis 33 Geroid T Robinson Rural Rússia under tke Old Regime Nova Iorque 1932 pp 878 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 349 tema possível era uma economia da transição um sistema que combi nasse as características tanto do sistema da corvée como do capitalista Na verdade o sistema agrário praticado pelos proprietários de terra após a reforma comportava precisamente essas características Com toda a infindável variedade de formas características de uma época de transição a organização econômica da agricultura senhorial contem porânea remonta a dois sistemas básicos o sistema das prestações de serviços e o sistema capitalista Os sistemas mencionados estão na realidade entrelaçados da mais variada e espantosa maneira em gran de parte dos domínios senhoriais há uma combinação dos dois siste mas que são aplicados a operações de cultivo totalmente diversas34 Ao avaliar a incidência relativa dos dois sistemas Lenin calculava que por volta de 1899 embora o sistema de prestações de serviços predo mine nas gubernias puramente russas o sistema capitalista de cultivo deve ser considerado como dominante na agricultura senhorial da Rús sia européia em seu conjunto Uma década mais tarde porém os tremendos levantes camponeses contra as extorsões e opressões feudais da Rússia rural durante a Revolução de 1905 levaram Lenin a modifi car significativamente os termos deste juízo Em seu texto fundamental de 1907 O Programa Agrário da SocialDemocracia na Primeira Revo lução Russa ele salientava que Nas gubernias puramente russas a agricultura capitalista em grande escala passou incontestavelmente para segundo plano Nos grandes latifúndios predomina o cultivo em pequena escala compreendendo várias formas de posse agrícola ba seada na servidão e na vinculação Após acurada apreciação estatís tica da situação agrária global cobrindo a distribuição de terras durante o primeiro ano da reação de Stolypin Lenin resumia sua análise na seguinte conclusão geral dez milhões e quinhentas mil famílias cam ponesas na Rússia européia detêm 75 milhões de dessiatines de terra Trinta mil proprietários principalmente nobres rnas também novos ricos possuem quinhentas dessiatines cada um ao todo 70 milhões de dessiatines Tal é o plano de fundo principal da pintura São estas as principais razões para o predomínio dos senhores feudais no sistema agrário da Rússia e portanto no Estado russo em geral e no conjunto da vida russa Os proprietários dos latifúndios são senhores feudais no sentido econômico do termo a base da sua propriedade foi criada pela 34 V I Lenin Collected Works vol 3 Moscou 1964 pp 1945 35 Idemp 197 36 ífemvol 13 p 225 350 PERRY ANDERSON história da servidão pela história secular da pilhagem da terra pela nobreza A base dos seus métodos atuais de cultivo é o sistema de pres tação de serviços isto é uma sobrevivência direta da corvée a cultura da terra com os instrumentos dos camponeses e através da virtual es cravização dos pequenos agricultores sob uma infindável variedade de formas arrendamento de inverno rendas anuais métayage arrenda mentos baseados em rendas em serviços servidão por dívidas e por uso das terras isoladas das florestas dos prados das águas e assim por diante ad infinitum Cinco anos depois Lênin reafirmou tal opi nião de modo ainda mais categórico às vésperas da Primeira Guerra Mundial A diferença entre a Europa e a Rússia deriva do extremo atraso da Rússia No Ocidente o sistema agrário burguês está plena mente estabelecido o feudalismo foi há muito varrido e as suas sobre vivências são insignificantes e não desempenham papel de importância O tipo predominante de relação social na agricultura ocidental é o que estabelece entre o trabalhador assalariado e o patrão o fazendeiro ou proprietário de terra Sem dúvida estabeleceuse já firmemente na Rússia um sistema agrícola assim capitalista que está rapidamente se desenvolvendo É neste sentido que se desenvolve a agricultura tanto senhorial como camponesa Mas as relações puramente capitalistas no nosso país ainda estão obscurecidas em uma enorme extensão por relações feudais38 O desenvolvimento capitalista no seio da agricultura russa que Lênin e outros socialistas previram que teria ocorrido se o czarismo ti vesse conseguido restabelecer de forma duradoura o seu poder após a contrarevolução de 1907 seguiria o modelo da via prussiana de do mínios racionalizados do tipo junker com a utilização de trabalho as salariado e integrados no mercado mundial ao mesmo tempo que um estrato subsidiário de Grossbauern apareceria no campo Os escritos de Lênin do período 190614 alertavam repetidamente para a possibili dade de uma tal evolução na Rússia czarista e para o grave perigo que ela representaria para o movimento revolucionário As reformas de Sto lypin em particular foram destinadas a acelerar uma tal evolução através de sua aposta no mais forte a conversão da posse campo nesa divisível em hereditária nas aldeias a fim de incentivar o surgi mento de uma classe kulak Na realidade o programa de Stolypin ficou 37 cfemvol 13 p 421 38 Idem vol 18 p 74 Este importante artigo A natureza da Questão Agrá ria na Rússia escrito em maío de 1912 é normalmente ignorado pelos estudiosos dos escritos de Lênin sobre o tema LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 351 muito aquém de seus objetivos no nível do campesinato propriamente dito Com efeito enquanto metade das famílias camponesas possuía parcelas juridicamente hereditárias em 1915 apenas um décimo delas tinha lotes contíguos formando uma unidade a sobrevivência de um sistema de faixas de cultivo individuais e de campo aberto assegurava portanto a permanência das limitações comunais do m ir aldeão34 En quanto isso aumentavam de ano para ano os encargos das dívidas e impostos de resgate A solidariedade instintiva do campesinato russo contra a classe fundiária não foi seriamente ferida pelas reformas Os bolcheviques haveriam de surpreenderse com a unidade apaixonada dos sentimentos populares antifeudais no campo em 1917 como teste munharia Trotski mais tarde40 A superpopulação nas aldeias tornou se um problema endêmico nos últimos tempos da Rússia czarista A parcela dos cultivos camponeses no conjunto da propriedade fundiária cresceu em 50 por cento principalmente graças às aquisições dos ku laks nas quatro décadas que precederam 1917 ao passo que a proprie dade camponesa per capita decaía em um terço41 As massas rurais continuaram atoladas no atraso e na pobreza seculares Por outro lado as últimas décadas do czarismo tampouco teste munharam uma conversão dinâmica da nobreza fundiária à agricul tura capitalista Na verdade os temores quanto a uma via prussiana não se materializaram O dvoriantsvo revelouse organicamente inca paz de seguir as pegadas áosjunkers De início a sacudidela sofrida pela propriedade dominial da nobreza sugeria uma repetição da expe riência prussiana uma nova seleção e racionalização da classe fundiá ria Com efeito ocorreu um declínio da ordem de um terço na área ocupada por terras da nobreza nas três décadas anteriores a 1905 e os maiores compradores como na Prússia foram inicialmente ricos mer cadores e burgueses Não obstante após a década de 1880 as aquisi 39 Robinson Rural Rússia under the Old Regime pp 2138 40 History ofthe Russian Revolutíon Londres 1965 vol I pp 3779 ed bra sileira A História da Revolução Russa Rio Paz e Terra 1978 3 edição Ê necessário acrescentar que ocorreram em 1917 numerosos ataques de aldeões aos camponeses secessionistas que tinhamse aproveitado das reformas de Stolypin para abandonar suas comunas e as terras eram agora coletivamente reapropriadas por eles tal era a força dos sentimentos de solidariedade entre as massas dos camponeses Ver Launcelot Owen The Russian Peasant Movement 19061917 Nova Iorque 1963 pp 1534 165 72 1823 2002 20911 2345 41 Owen The Russian Peasant Movement p 6 A população cresceu de 74 milhões de habitantes em 1860 para 170 milhões em 1916 Em inglês o termo mire significa atoleiro o que permite um jogo de palavras com o termo russo mir 352 PERRY ANDERSON ções realizadas pelos camponeses ricos superaram as dos investidores urbanos Por volta de 1905 as propriedades dos mercadores eram em média mais extensas do que a dos nobres mas a área ocupada pelos kulaks representava metade da dos proprietários urbanos42 Portanto havia nitidamente um estrato de Grossbauern emergente na Rússia no período anterior à Primeira Guerra Mundial O que faltava era um salto capitalista na produtividade semelhante ao que se vira na Prússia Naturalmente as exportações de cereais para a Europa apresentaram um contínuo desenvolvimento ao longo do século antes e depois da reforma de 1861 a Rússia atingiu no século XIX a mesma posição desfrutada pela Polônia ou pela Alemanha oriental no mercado inter nacional dos séculos XVI ao XVIII embora os preços externos dos cereais tivessem sofrido uma queda depois de 1870 Entretanto no conjunto da agricultura russa a produção e o rendimento permane ceram muito baixos devido ao extremo atraso técnico O afolhamento trienal ainda predominava numa escala muito ampla praticamente inexistia o cultivo de forragens e metade dos camponeses ainda usava arados de madeira Além disso como vimos inúmeras formas de rela ções econômicas feudais continuavam a caracterizar o crepúsculo da era da reforma impedindo o progresso econômico nos grandes domí nios da Rússia central A nobreza não realizou a transição para uma agricultura capitalista moderna ou racional Não por acaso enquanto os bancos de crédito agrícola especialmente criados após a Era das Reformas na Prússia revelaramse uma medida altamente proveitosa para osjunkers garantindolhes o capital necessário para as hipotecas e os investimentos o homólogo russo criado pelo Estado em 1885 para servir à nobreza resultou num lúgubre fiasco os seus créditos foram em geral dissipados ao passo que os beneficiários afundavam em dí vidas43 Assim embora fosse inegável a rápida expansão das relações capitalistas de produção no campo no período anterior à Primeira Guerra Mundial elas nunca chegaram a adquirir a força de um grande êxito econômico e sempre continuaram enredadas na vegetação ras teira das relações précapitalistas Em conseqüência o setor predomi nante da agricultura russa em 1917 caracterizavase pelas relações feu dais de produção 42 Robinson Rural Rússia under the Old Regime pp 1315 43 M P PavlovaSilVanskaya K Voprosu Osobennostyakh Absoliutizma v Rossii Istoriya SSSR abril de 1968 p 85 O próprio Lênin tinha perfeita consciência das diferenças entre osjunkers e os dvoriane que ele caracterizava respectivamente como classes fundiárias capitalista e feudal Collected Works vol 17 p 390 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 353 Enquanto isso obviamente a industrialização avançava a passo rápido nas cidades No início do século XX a Rússia dispunha de grandes indústrias de carvão ferro petróleo e tecidos e contava com uma extensa rede de estradas de ferro Muitos dos seus complexos me talúrgicos estavam entre os de maior avanço tecnológico do mundo Ê inútil salientar aqui as conhecidas contradições internas da industria lização czarista o capital investido era basicamente financiado pelo Estado que dependia de empréstimos estrangeiros para elevar esses empréstimos era necessário garantir a solvência do orçamento o que levava à manutenção dos pesados encargos fiscais que recaíam sobre os camponeses tais encargos bloqueavam a expansão de um mercado in terno indispensável para sustentar novos investimentos44 Em nossa perspectiva interessa destacar que a despeito de todos os obstáculos o setor industrial russo nítida e completamente baseado em relações ca pitalistas de produção triplicou de volume nas duas décadas que pre cederam 1914 uma das mais altas taxas de crescimento registradas na Europa45 Nas vésperas da Primeira Guerra Mundial a Rússia era o quarto maior produtor de aço no globo acima da França O volume absoluto do setor industrial era o quinto do mundo A agricultura eqüi valia então a 50 por cento do produto nacional enquanto a indústria respondia talvez por 20 por cento excluindo o vasto sistema ferroviá rio46 Portanto calculando a importância das economias urbana e ru ral em conjunto não restam dúvidas de que em 1914 a formação social russa era uma estrutura compósita com um setor agrário pre dominantemente feudal mas com um setor capitalista agroindustrial combinado que era então no geral preponderante Lênin exprimiu este fato sinteticamente nas vésperas de deixar a Suíça quando afir mou que em 1917 a burguesia já dominava o país economicamente há vários anos47 Não obstante embora a formação social russa estivesse domi 44 Há uma refinada análise desse círculo vicioso em T Kemp Industrialization In Nineteenth Century Rússia Londres 1969 p 152 45 T H Von Laue Sergei Witíe and the Industrialization of Rússia Nova Iorque 1963 p 269 46 Raymond Goldsmith The economic growth of tsarist Rússia 18601913 Economic Development and Cultural Change IX nP 3 abril de 1961 pp 442 444 4701 uma das mais minuciosas análises da economia do período A participação da agricultura no produto nacional era em 1913 de cerca de 44 por cento na Rússia euro péia e de 52 por cento no conjunto do império czarista É difícil obter estimativas mais exatas devido às deficiências estatísticas 47 Lênin Collected Works vol 23 p 303 354 PERRY ANDERSON nada pelo modo de produção capitalista o Estado russo continuava a ser um absolutismo feudal Com efeito não ocorrera nenhuma mu dança básica em seu caráter de classe ou em sua estrutura política na época de Nicolau II Tal como antes a nobreza feudal continuava a ser a classe dominante da Rússia imperial o czarismo era o aparelho polí tico da sua dominação do qual ela nunca se afastou A burguesia era demasiado frágil para lançar um desafio autônomo e nunca conseguira ocupar posiçõeschave na administração do país A autocracia era um absolutismo feudal que sobrevivera até o século XX A derrota militar frente ao Japão e a explosão das massas populares contra o regime que se lhe seguiu de perto em 1905 forçaram o czarismo a efetuar uma série de modificações cujo sentido geral aos olhos dos liberais russos pareceu abrir a alternativa de uma evolução para a monarquia bur guesa A possibilidade formal de uma tal transformação cumulativa realmente existia como vimos no caso da Prússia Historicamente po rém os passos hesitantes do czarismo nunca se aproximaram seria mente deste objetivo Na seqüência da Revolução de 1905 o regime viria a criar uma Duma desprovida de poderes e uma Constituição de papel No espaço de um ano esta seria feita em pedaços pela dissolu ção daquela e por uma revisão do eleitorado que conferiu a todos os proprietários de terra um direito de voto equivalente ao de quinhentos trabalhadores O czar podia vetar qualquer legislação proposta por esta dócil assembléia enquanto os ministros agora agrupados num gabi nete convencional não eram responsáveis perante ela A autocracia podia decretar leis à sua vontade simplesmente prorrogando esta fa chada representativa Não havia portanto comparação possível com a situação da Alemanha imperial onde havia o sufrágio universal mas culino eleições regulares controle parlamentar do orçamento e ativi dade política irrestrita Na Rússia nunca teve lugar a transmutação política qualitativa que fez do Estado feudal prussiano o Estado capita lista alemão Tanto os princípios organizacionais como o funcionalismo czarista permaneceram intatos até o fim Lênin enfatizou expressamente e com insistência essa diferença em suas polêmicas com os mencheviques em 1911 Afirmar que o sistema de governo na Rússia já se tornou burguês como o faz Larin e que o poder governamental em nosso país já não é de natureza feudal ver o mesmo Larin e ao mesmo tempo referirse à Áustria e à Prússia como exemplos é desmentir a si mesmo Não se pode transferir para a Rússia a conclusão da revolução burguesa que se deu na Ale manha a história alemã de uma democracia que esgotou a si própria a revolução a partir de cima da década de 1860 e a legalidade alemã LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 355 realmente existente48 É evidente que a Lênin não escapava a autono mia necessária do aparelho de Estado czarista em relação à classe fun diária feudal uma autonomia inscrita nas próprias estruturas do absolutismo O caráter de classe da monarquia czarista de modo ne nhum se opõe à ampla independência e autosuficiência das autorida des e da burocracia czaristas de Nicolau II até o último dos poli ciais49 Ele procurou sublinhar o impacto crescente do capitalismo industrial e agrário sobre as políticas do czarismo e a interposição objetiva da burguesia no seu funcionamento Mas foi sempre categó rico ao caracterizar a natureza social fundamental do absolutismo rus so na sua própria época Em abril de 1917 declarou inequivocamente Antes da revolução de fevereiromarço de 1917 o poder político na Rússia estava nas mãos de uma antiga classe a nobreza fundiária feu dal chefiada por Nicolau Romanov50 Precisamente a primeira frase de Ás Tarefas do Proletariado na Nossa Revolução escrito logo após a sua chegada a Petrogrado recita O velho poder czarista repre sentava apenas um punhado de proprietários feudais que comandavam toda a máquina do Estado exército polícia e burocracia51 Esta límpida formulação constituía a pura verdade Contudo as suas con seqüências devem ainda ser exploradas Com efeito para recapitular a análise desenvolvida acima houve um deslocamento entre a formação social e o Estado nos últimos anos do czarismo A formação social russa era um conjunto complexo dominado pelo modo de produção capitalista mas o Estado russo continuava a ser um absolutismo feu dal Tal disjunção entre os dois está ainda por ser explicada e funda mentada teoricamente Por enquanto consideraremos as suas conseqüências empíricas para as estruturas do Estado russo Em sua essência o czarismo per maneceu até o último instante um absolutismo feudal Mesmo na sua fase final continuava a expandirse territorialmente para o exterior A Sibéria foi estendida para além do Amur e em 1861 foi fundada Vla 48 cemvol 17 pp 187 235 Este é um tema recorrente nos escritos de Lênin sobre o período ver vol 17 pp 1145 146 153 23341 vol 18 pp 707 Devemos voltar a esses textos cruciais com propósito diverso num estudo posterior 49 Idem vol 17 p 363 Lênin enfatizou que a autonomia da burocracia cza rista de modo algum se devia a um afluxo de funcionários burgueses os seus escalões de comando eram ocupados pela nobreza fundiária p 390 Na verdade parece provável que após a emancipação dos servos a nobreza tenha passado a contar mais do que nun ca com o desempenho de funções no Estado ver SetonWatson The Russian p 405 50 Idem vol 24 p 44 51 ífemp57 356 PERRY ANDERSON divostok Depois de duas décadas de conflitos a Ãsia central foi absor vida em 1884 Na Polônia e na Finlândia intensificouse a russificação administrativa e cultural Sobretudo no aspecto institucional o Es tado em certos aspectos decisivos era muito mais poderoso que qual quer outro absolutismo ocidental jamais o fora pois conseguiu sobre viver na época da industrialização européia tornandose assim capaz de importar a mais avançada tecnologia do mundo e de se apropriar dela em proveito próprio Com efeito o Estado renunciara ao seu do mínio sobre a agricultura através da venda de suas terras apenas para melhor se entrincheirar na indústria Possuía por tradição as minas e as instalações siderúrgicas dos Urais Financiava e construía agora a maior parte do novo sistema ferroviário que representava a segunda despesa orçamentária mais elevada depois das forças armadas Os contratos públicos eram de modo geral predominantes na indústria russa dois terços da produção em equipamentos era destinada ao Estado As tarifas aduaneiras eram extremamente elevadas quatro ve zes maiores que as da Alemanha ou as da França duas vezes mais altas que as dos Estados Unidos de forma que o capital local dependia ba sicamente da proteção e supervisão do Estado O Ministério das Finan ças controlava a política de empréstimos do Banco Central aos empre sários privados e estabeleceu sobre estes um predomínio geral graças às suas abundantes reservas de ouro Assim o Estado absolutista foi na Rússia o principal motor da rápida industrialização a partir de cima Em 1900 na época capitalista do laissezfaire o seu exacerbado papel econômico não tinha equivalentes no Ocidente desenvolvido O desenvolvimento desigual e combinado produzira portanto na Rússia um colossal aparelho de Estado que englobava de forma sufocante o conjunto da sociedade abaixo da classe dominante Esse Estado inte grara perfeitamente a hierarquia feudal em sua burocracia absorvera a Igreja e o ensino e supervisionara a indústria ao mesmo tempo em que gerava um exército e uma polícia de gigantescas proporções É evidente que tal aparelho feudal tardio era inevitavelmente sobredeterminado pela ascensão do capitalismo industrial no final do século XIX tal como as monarquias absolutas ocidentais tinham sido em sua época sobredeterminadas pela ascensão do capitalismo mer cantil Paradoxalmente porém a burguesia russa continuava a ser do ponto de vista político muito mais frágil que as suas predecessoras do Ocidente embora a economia que representava fosse muito mais forte do que o haviam sido as economias ocidentais da transição São bem conhecidas as razões históricas dessa debilidade insistentemente ana lisadas por Trotski e Lênin ausência do artesanato pequenoburguês LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 357 extensão limitada da burguesia devido às grandes empresas temor da irrequieta classe operária dependência das tarifas dos empréstimos e dos contratos do Estado Quanto mais se avança para leste mais frá gil e covarde se torna a burguesia proclamava o primeiro manifesto do POSDR Não obstante o Estado absolutista russo não deixou de revelar a marca da classe que se tornara o seu auxiliar relutante e ti morato mais do que seu oponente Tal como numa época anterior a venda de cargos permitia avaliar a presença subordinada da classe mer cantil no seio das formações sociais ocidentais assim a notória contra dição burocrática entre os dois principais pilares do Estado russo o Ministério do Interior e o Ministério das Finanças fornecia um índice dos efeitos do capital industrial na Rússia Por volta da década de 1890 havia um conflito constante entre estas duas instituições cen trais52 O Ministério das Finanças desenvolvia políticas consoantes com os objetivos ortodoxos da burguesia Os seus inspetores apoiavam os patrões em sua recusa a fazer concessões salariais aos operários era hostil às comunas aldeãs que representavam um obstáculo ao livre comércio da terra Em franco conflito com este o Ministério do Inte rior vivia obcecado pela manutenção da segurança política do Estado feudal Preocupavase sobretudo com a prevenção das desordens pú blicas e lutas sociais Na busca de tais objetivos a sua rede repressiva de espiões e provocadores policiais era imensa Contudo ao mesmo tempo tinha pouca simpatia pelos interesses corporativos do capital industrial Pressionava assim os patrões a fazer concessões aos traba lhadores de forma a evitar o perigo de estes virem a fazer reivindica ções políticas Reprimia todas as greves que aliás eram sempre ilegais mas pretendia manter agentes de polícia permanentes dentro das fábri cas com o intuito de estudar as suas condições e assegurar deste modo que não provocariam explosões Naturalmente os patrões e o Ministé rio das Finanças resistiam a estas medidas e daí resultou uma luta pelo controle das inspetorias fabris que foram conservadas pelo Ministério das Finanças somente depois de um compromisso de colaboração com a polícia No campo o Ministério do Interior encarava com burocrático paternalismo as comunas aldeãs nas quais lhe cabia e não ao Minis tério das Finanças a coleta dos impostos uma vez que as via como baluartes da submissão tradicional e barreiras contra a agitação revo lucionária Esta comédia de contradições reacionárias culminou na 52 Há uma esclarecedora análise de suas contradições em SetonWatson Tht Decline of Imperial Rússia pp 114 12691378143 PERRY ANDERSON criação dos sindicatos policiais pelo Ministério do Interior e na insti tuição das leis trabalhistas pelo carrasco Plehve Os efeitos de bume rangue desta experiência a Zubatovshchina que acabou por gerar l o padre Gapon são por demais conhecidos O que aqui aparece como sintomaticamente mais importante é esse delirante esforço final do Es l tado absolutista depois de ter incorporado a nobreza a burguesia o campesinato o ensino o exército e a indústria em procurar produzir até mesmo seus próprios sindicatos sob a égide da autocracia Poi tanto a abrupta máxima de Gramsci Na Rússia o Estado erM 53 l tudo a sociedade civil era primitiva e gelatinosa continha umtj veracidade histórica real Não obstante Gramsci não conseguiu enxergar por que as coisatl assim se passaram escapoulhe a definição científica do caráter histôj rico do Estado absolutista na Rússia Encontramonos agora em post cão de remediar esta lacuna de seu texto Uma vez situado o Estac russo na perspectiva européia da época as peças se encaixam em sei lugar Os seus contornos tornamse imediatamente evidentes A aut cracia russa era um Estado feudal embora a Rússia fosse no sécul XX uma formação social compósita dominada pelo modo de produçí capitalista uma dominância cujos efeitos remotos são visíveis nas ei truturas do czarismo A sua época não era a do império de Guilherr ou a da Terceira República seus rivais ou parceiros os seus verdade ros contemporâneos foram as monarquias absolutistas da transição feudalismo ao capitalismo no Ocidente A crise do feudalismo produzi no Ocidente um absolutismo que sucedeu à servidão a crise do feudl lismo no Leste gerou um absolutismo que institucionalizou a servidS O ancien regime russo sobreviveu longamente a seus correlatos ocic George Gapon foi o agente policial responsável pela organização do Sindici dos Trabalhadores Industriais da Rússia Foi também o líder da procissão popular qd em 1905 pretendia entregar uma petição dos operários ao czar Como ê sabido o ma crê dessa manifestação desencadeou a Revolução de 1905 passando à história como Domingo Sangrento N T 53 O objetivo de Gramsci era aqui estabelecer o contraste entre a Rússia i Europa ocidental No Ocidente havia uma justa relação entre Estado e sociedade i e quando o Estado tremia imediatamente se revelava uma poderosa estrutura da dade civil Note sul Machiavelli p 68 ed brasileira Maquiavel a Política e o EstQ Moderno Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1978 3 ed p 75 Retomar noutro lugar de forma mais extensa a esta passagem crucial na qual Gramsci analisar os diferentes problemas estratégicos com que se defrontava o movimento rio na Europa oriental e na Europa ocidental durante o século XX ver o texto de derson As Antinomias de Antônio Gramsci publicado originalmente na Afew Left t view N T LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 359 tais apesar de sua natureza de classe e funções comuns porque nasceu de uma matriz diferente Ao final ele extraiu do próprio advento do capitalismo industrial a força que concentrava no topo implantandoq j burocraticamente a partir de cima tal como os seus predecessores ti i flham feito para fomentar o capitalismo mercantil Os anceslrais de Witle foram Colbert ou Olivares O desenvolvimento internacional do i Imperialismo capitalista irradiado para o império russo a partir do f Ocidente foi que tornou possível essa combinação da mais avançada í tecnologia do mundo industrial com a mais arcaica monarquia da Eu ropa Por fim evidentemente o imperialismo que de início fora arma tdura do absolutismo russo acabou por engolfálo e destruílo as pro ivações da Primeira Guerra Mundial foram mais fortes que ele54 Pode le dizer que numa confrontação entre Estados imperialistas industria jurados ele estava literalmente fora de seu elemento Em fevereiro de 1917 bastou uma semana para que as massas o derrubassem Se as coisas se passaram assim é necessário ter a coragem de iXtrair as conseqüências A Revolução Rutisa não foi feita contra um fstado capitalista O czarismo que caiu em 1917 era um aparelho feu l o Governo Provisório não teve tempo de o substituir por um novo U estável aparelho burguês Os bolcheviques levaram a cabo uma re ão socialista mas do princípio ao fim jamais se defrontaram 5m o inimigo fundamental do movimento operário no Ocidente profunda intuição de Gramsci estava neste sentido correta o mo Brno Estado capitalista da Europa ocidental continuava a ser depois Revolução de Outubro um objeto político novo para a teoria mar ilta e para a prática revolucionária A profunda crise que abalou todo IK continente assolado pela guerra em 191720 deixou a sua própria irança importante e seletiva A Primeira Guerra Mundial pôs fim à uga história do absolutismo europeu O Estado imperial russo foi irrubado por uma revolução proletária O Estado imperial austríaco apagado do mapa por revoluções nacionalistas burguesas A des jlçSo e o desaparecimento de ambos teve caráter permanente A cau i do socialismo triunfou na Rússia em 1917 e foi brevemente agitada Hungria em 1919 Na Alemanha porém eixo estratégico da Eu 54 Evidentemente o próprio imperialismo czarista era uma combinação de ex lo feudal e capitalista com uma inevitável preponderância da componente feudal H In em 1915 teve o cuidado de fazer esta distinção necessária Na Rússia o impe no capitalista de tipo mais recente revelouse inteiramente na política do czarismo fflucão à Pérsia à Manchúria e à Mongólia mas em geral o imperialismo militar e 0dnl era predominante na Rússia Collected Works vol 21 p 306 360 PERRY ANDERSON ropa a transformação capitalista da monarquia prussiana assegurou a sobrevivência integral do antigo aparelho de Estado na época de Versa lhes Os dois derradeiros Estados feudais importantes da Europa orien tal caíram diante de revoluções vindas de baixo de caráter diverso O Estado capitalista que fora antes o seu confrade legitimista resistiu a todos os levantes revolucionários em meio ao desespero e aos escom bros de sua própria derrota diante da Entente O fracasso da Revolução de Novembro na Alemanha tão significativo para a história da Europa como o êxito da Revolução de Outubro na Rússia estava fundado na natureza diversa da máquina de Estado que cada uma delas enfrentou Os mecanismos da vitória e da derrota socialistas nesses anos vão às raízes nos mais profundos problemas da democracia burguesa e prole tária que ainda estão por resolver na teoria e na prática na segunda metade do século XX Os ensinamentos e as implicações políticas da queda do czarismo para um estudo comparado das formações sociais contemporâneas permanecem até hoje largamente inexplorados Neste sentido o obituário histórico do absolutismo que expirou em 1917 ainda está à espera de suas linhas finais A Casa do Islã A Primeira Guerra Mundial que lançou uns contra os outros os principais Estados capitalistas do Ocidente e destruiu os últimos Es tados feudais do Leste teve origem no único ponto da Europa onde o absolutismo jamais conseguiu se consolidar No aspecto geopolítico os Bálcãs constituíam uma subregião distinta cuja evolução anterior a separava do restante do continente Com efeito precisamente esta au sência de qualquer integração tradicional ou estável no sistema político internacional do fim do século XIX e início do século XX faria desta área o barril de pólvora da Europa que detonou a conflagração de 1914 Portanto o padrão geral de desenvolvimento nessa parte do con tinente serve adequadamente de prova e epílogo a qualquer pesquisa sobre o absolutismo Ao longo de sua existência no continente o Impé rio Otomano foi sempre uma formação social à parte Sob o domínio da Porta pela sujeição ao Islã os Bálcãs pareciam ter escapado à pers pectiva geral européia No entanto a estrutura e a dinâmica próprias do Estado turco conservam grande valor como termo de comparação pelo contraste que estabelecem com cada uma das variantes do absolu tismo europeu Além disso as características do sistema otomano ofe recem a explicação fundamental para o fato de a península balcânica ter continuado a evoluir após a última crise medieval segundo um padrão totalmente divergente do verificado no resto da Europa oriental com conseqüências que se prolongaram até este século Os guerreiros turcos que invadiram a Anatólia oriental no século XI eram ainda nômades do deserto Deviam o seu sucesso na Ásia Me nor onde os árabes tinham fracassado em parte à semelhança entre 362 PERRY ANDERSON esse ambiente climático e geográfico e aquele que conheciam dos pla naltos áridos e frios da Ásia central de onde provinham o camelo bac triano seu meio básico de transporte adaptavase perfeitamente às terras altas da Anatólia que se tinham mostrado intransitáveis para o dromedário árabe dos trópicos1 Todavia eles não chegaram simples mente como habitantes primitivos das estepes Desde o século IX os escravos turcos serviam como soldados as dinastias abássida e fatímida do Oriente Médio tanto nas fileiras como no oficialato chegando mes mo a obter postos da mais alta patente A analogia com o papel das tribos germânicas fronteiriças na fase final do Império Romano já foi muitas vezes salientada Cinqüenta anos antes da batalha de Manzi kert os seldjúcidas desceram de seus oásis no Turquestão para a Pérsia e a Mesopotâmia derrubaram o decadente Estado buída e criaram um grande império seldjúcida com capital em Bagdá A maior parte des ses conquistadores turcos tornouse rapidamente sedentária ao serviço do exército e da administração do novo sultanato que por sua vez herdou e assimilou as velhas e enraizadas tradições urbanas do Antigo Islã com as suas fortes influências persas transmitidas pelo legado do califado abássida Ao mesmo tempo contudo uma ala não pacifi cada dos nômades turcomanos lançavase em ataques desordenados contra as fronteiras do novo império Foi com o objetivo de encurralar e disciplinar essas tropas irregulares que Alp Arslan partiu para o Cáu caso e em seu caminho envolveuse na fatídica destruição do exército bizantino em Manzikert Como vimos anteriormente a esta vitória não se seguiu nenhuma invasão organizada da Anatólia pelo sultanato seldjúcida as suas preocupações militares voltavamse para o Nilo não para o Bósforo Foram as tribos pastoris turcomanas que herdaram os frutos de Manzikert e a partir daí puderam progredir sem oposição para o interior da Anatólia Estes soldados e aventureiros fronteiriços não buscavam apenas terras para seus rebanhos Por uma espécie de autoseleção estavam também caracteristicamente marcados pelo cha mado espírito ghazi uma fé militante de cruzada muçulmana que re jeitava toda a acomodação com o infiel do tipo que viria a definir os Estados constituídos do Antigo Islã3 Com efeito uma vez que a Ana 1 Xavier de Planhol Lês Fondements Géograpkiques de 1Histoire de IIslam Paris 1968 pp 3944 2089 2 C Cahen La campagne de Manzikert daprès lês sources musulmanes Byzantion IX 1934 pp 62142 3 Paul Wittek The Rise of the Ottoman Empire Londres 1963 pp 1720 Esta breve e brilhante monografia é a obra fundamental sobre a natureza da primitiva expansão otomana LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 363 tólia foi efetivamente ocupada com as sucessivas ondas migratórias do século XI ao XIII o mesmo conflito se reproduziu na Ásia Menor O sultanato de Rum ramo seldjúcida com o centro em Konia em pouco tempo recriou um próspero Estado de inspiração persa constante mente em conflito com os anárquicos emirados ghazi vizinhos espe cialmente o dos danichmênidas sobre os quais acabou por obter a su premacia Não obstante as invasões mongóis do século XIII em bre ve submeteriam todos os Estados turcos em luta na Anatólia A re gião converteuse num mosaico de pequenos emirados e de grupos de pastores nômades Desta confusão emergiu o sultanato osmanli a par tir de 1302 para se tornar a potência dominante não apenas na Tur quia mas em todo o mundo islâmico A dinâmica peculiar que animava o Estado otomano e que o ele vou tão acima dos seus rivais da Anatólia reside na combinação única dos princípios do espírito ghazi e da tradição do Antigo Islã4 Afortu nadamente situado às portas das planícies da Nicéia imediatamente vizinho do que restava do Império Bizantino a sua proximidade com as fronteiras do mundo cristão manteve efervescente o seu fervor religioso e militar quando outros emirados do interior se deixaram cair numa relativa frouxidão Desde o início os chefes osmanli consideravamse missionários do espírito ghazi empenhados numa guerra santa contra o infiel Ao mesmo tempo o seu território localizavase na principal rota de comércio terrestre através da Ãsia Menor e por isso atraía os mercadores e artesãos bem como os religiosos ulemás que formavam o elemento social indispensável a um Estado do Antigo Islã dotado de uma solidez institucional sem nomadismo e sem cruzadas O sultanato osmanli endurecido pelas guerras constantes de sua cavalaria entre 1300 e 1350 conseguiu assim aliar a sofisticação jurídica e administra tiva das cidades do Antigo Islã ao violento zelo militar e proselitista dos habitantes ghazi das fronteiras Simultaneamente uma parte de seu 4 Wittek op cit pp 3746 A análise de Wittek sobre os princípios duaüstas do Estado otomano é na realidade o reflexo indireto da famosa divisão proposta por Ibn Khaldun para a história islâmica em fases alternadas de asabiyya nômade caracterizada pelo fervor religioso pela solidariedade social e pelas proezas militares e úefarâgh ou dia urbana caracterizada pela prosperidade econômica pela sofisticação administrativa e pelo lazer cultural as quais ele acreditava serem mutuamente incompatíveis a civilização urbana não poderia resistir à conquista nômade a fraternidade nômade seria incapaz de sobreviver à corrupção urbana produzindose assim uma história cíclica de formação e desintegração do Estado A abordagem de Wittek sobre o Império Otomana pode ser interpretada como uma sutil inversão desta fórmula no Estado turco os dois princípios contraditórios do desenvolvimento político islâmico encontraram pela pri meira vez uma harmonia estrutural 364 impulso social básico repousava ainda na busca da terra pelos nôma des que fora a força propulsora da ocupação primitiva da Anatólia pelos turcos5 A expansão territorial era também um processo de colo nização econômica e demográfica O potencial explosivo desta fórmula política em breve se faria sentir na Europa cristã O avanço triunfante dos exércitos turcos em direção aos Bálcãs internandose profundamente na península e assim envolvendc a assediada capital bizantina a partir da retaguarda é um fato connecido Em 1354 instalaramse em Galípoli Em 1361 toma ram Andrinopla Em 1389 as forças da Sérvia da Bósnia e da Bulgária eram aniquiladas em Kossovo destruindo assim todas as possibilidades de resistência eslava organizada na maior parte da região Logo a se guir caíram a Tessália a Moréia e Dobrudja Em 1396 a expedição de cruzados enviada para impedir o seu avanço foi destruída em Nicópo lis Veio então uma breve pausa quando o exército de Bajazé ocupado em anexar pela força alguns emirados muçulmanos irmãos da Anató lia defrontouse com as hostes de Tamerlão que varriam aquela zona e foi esmagado em Ancara sobretudo em razão do abandono pelos con tingentes ghazi de uma causa que julgavam ímpia e fratricida Rude mente chamado à sua vocação religiosa o Estado osmanli reconstituiu se lentamente durante os cinqüenta anos seguintes no outro lado do Bósforo transferindo a sua capital para Adrianopla na linha de frente da guerra contra a cristandade6 Em 1453 Maomé II tomou Constan tinopla Na década de 1460 foram anexadas a Bósnia ao norte e o emirado caramânide na C11 í c ia Na década seguinte o canato târtaro da Criméia foi reduzido à condição de vassalo e Cafa recebeu uma guarnição turca Nos primeiros vinte anos do século XVI Salim I con quistou a Síria o Egito e o Hedjaz Na década subseqüente Belgrado foi capturada submeteuse a maior parte da Hungria e a própria Viena assediada Nesta altura quase toda a península balcânica fora inva dida Grécia Sérvia Bulgária Bósnia e Hungria oriental eram provín cias Otomanas A Moldávia a Valáquia e a Transilvânia eram princi pados tributários governados por monarcas cristãos dependentes cer 5 Ernst Werner Die Geburt einer Grossmacht Die Osmanen pp 19 95 A obra de Werner é o principal estudo marxista sobre o crescimento do poder otomano sua crítica ao descaso de Wittek em relação ao impulso tribal à busca da terra subjacente ao expansionismo osmanli em sua origem é no entanto corroborada pela pesquisa do historiador turco Omer Barkan 6 P Wittek De Ia défaite dAnkara à Ia prise de Constantinople un demi siècle dhistoire ottomane Revue dês Êtudes Islamiques 19481 pp 134 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 365 cados por territórios sob domínio direto dos turcos no Danúbio e no Dniester O mar Negro era um lago otomano Enquanto isso no Orien te Médio fora anexado o Iraque em seguida o Cáucaso foi absorvido No Magrebe Argel Trípoli e Túnis foram sucessivamente submetidas à soberania turca O sultão passara a ser o califa de todas as terras sunitas do Islã à época de seu apogeu sob o reinado de Solimão I em meados do século XVI o reino osmanli era o mais poderoso império do mundo Fazendo sombra a seu rival europeu mais próximo Solimão I contava com uma receita duas vezes maior que a de Carlos V Qual a natureza deste colosso asiático O seu perfil forma um estranho contraste com os contornos do absolutismo europeu seu con temporâneo O fundamento econômico do despotismo osmanli era a ausência virtualmente absoluta da propriedade privada da terra7 To dos os territórios aráveis e pastoris do império eram considerados pa trimônio pessoal do sultão à exceção das doações religiosas waqf8 Na teoria política otomana o supremo atributo de soberania era o direito ilimitado que assistia ao sultão de explorar todas as fontes de riqueza de seu reino bem como as possessões imperiais9 Daí advinha que não podia existir uma nobreza estável e hereditária no seio do império por que não havia garantia de propriedade que lhe servisse de base Honra e riqueza confundiamse efetivamente com o Estado e a posição social derivava simplesmente dos postos ocupados em seu seio O próprio Es tado achavase imprecisamente dividido em colunas paralelas mais 7 Esta era para Marx a característica fundamental de todas as formas do que ele chamou seguindo uma longa tradição despotismo asiático Em comentário à fa mosa descrição da índia mongol feita por Bernier escrevia ele a Engels Bernier consi dera acertadamente como base de todos os fenômenos orientais referese à Turquia à Pérsia ao Industao a ausência da propriedade privada da terra É esta a verdadeira chave até para o paraíso oriental Selected Carrespondence p 81 Os comentários de Marx sobre o modo de produção asiático levantam muitos problemas que conside raremos adiante Se retivermos por ora o uso do termo despotismo para o Estado otomano este deve ser entendido num sentido estritamente provisório e meramente des critivo Em grande medida ainda inexistem conceitos científicos para a análise dos Esta dos orientais desta época 8 H A R Gibb e H Bowen Islamic Society and the West vol I l parte Londres 1950 pp 2367 Os lotes onde se construíam as casas vinhedos e pomares situados dentro dos limites das aldeias eram propriedade privada mulk tal como a maior parte dos terrenos urbanos o significado dessas exceções horticultura e cidades será discutido no contexto geral do Islã Em 1528 cerca de 87 por cento do território otomano era constituído por propriedade mm ou do Estado Halil Inalcik The Ottoman Kmpire Londres 1973 p 110 9 Stanford Shaw The ottoman view of the Balkans em C e B Jelavich Orgs The Baikan in Transition BerkeleyLos Angeles 1963 pp 5660 ilustra com clareza esta concepção 366 PERRY ANDERSON tarde designadas pelos historiadores europeus não pelos pensadores otomanos o que é significativo como instituição governante e ins tituição religiosa ou muçulmana embora nunca tenha existido entre ambas uma separação rigorosa10 A instituição governante com preendia todo o aparelho burocrático e militar do império Os seus estratos superiores eram recrutados basicamente entre exescravos cris tãos cujo grupo principal foi iniciado nestas funções graças à criação do devshirme Tal instituição nascida provavelmente na década de 1380 foi a expressão mais notável da interpenetração dos princípios ghazi e do Antigo Islã que definiu o conjunto do sistema otomano em ascensão11 Todos os anos efetuavase um recrutamento de crianças do sexo masculino entre as famílias cristãs das populações subjugadas nos Bálcãs afastadas dos pais eram mandadas a Constantinopla ou à Anatólia para serem educadas como muçulmanas e treinadas para posições de comando no exército e na administração como servidores diretos do sultão Deste modo conciliavamse as tradições ghazi de conversão religiosa e expansão militar e a tradição do Antigo Islã de tolerância e tributação junto aos infiéis O recrutamento do devshirme fornecia à instituição governante entre mil e 3 mil escravos por ano a eles se somavam outros 4 ou 5 mil prisioneiros de guerra ou homens comprados no exterior que passa vam pelo mesmo processo de treinamento a educação na grandeza e na obediência12 O corpo de escravos do sultão assim constituído propor cionava as altas fileiras da burocracia imperial desde o cargo supremo de grãovizir até os postos provinciais dos beilerbeis e sanjkbeis e a totalidade do exército permanente da Porta composto pela cavalaria especial da capital e pelos famosos regimentos janízaros que consti tuíam a infantaria e a cavalaria de elite do poder otomano De início uma das funções principais do devshirme era precisamente formar sol dados de infantaria disciplinados e confiáveis numa época em que a 10 Os termos instituição governante e instituição muçulmana foram cu nhados por A H Lybyer The Government of lhe Ottoman Empirein íhe Timeof Sulei man lhe Magnificent Cambridge EUA 1913 pp 368 A sua aceitação generalizada pelos historiadores subseqüentes foi criticada por N Itzkowitz Eighteenth century otto man realities Studia Islâmica XVI 1962 pp 815 mas sem provas substanciais con tra o seu uso para o século XVI 11 S Vryonis Isidore Glabas and the turkish devshirme Speculum XXXI julho de 1956 n 3 pp 43343 estabeleceu a dataçSo moderna da instituição 12 Inalcik op cit p 78 L S Stavrianos The Balkans Since 1453 Nova Iorque 1958 p 84 Na Bósnia excepcionalmente o devshirme foi estendido às famílias muçulmanas locais LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 367 predominância internacional da cavalaria estava chegando ao fim e os cavaleiros turcomanos revelavamse material inadequado para uma conversão à infantaria profissional O surpreendente paradoxo que é uma sinarquia de escravos impensável no feudalismo europeu encon tra uma explicação inteligível no conjunto do sistema social do despo tismo osmanli13 Havia com efeito um vínculo estrutural entre a au sência da propriedade privada da terra e a eminência da propriedade estatal de homens Efetivamente uma vez que estava suspenso qual quer conceito jurídico estrito de propriedade no domínio fundamental da riqueza básica da sociedade as conotações convencionais da posse no domínio da mãodeobra diluíamse e se transformavam do mesmo modo Uma vez que toda a propriedade fundiária era uma prerrogativa da Porta deixava de ser degradante tornarse propriedade humana do sultão a escravidão não se definia pela oposição à liberdade mas pela proximidade de acesso ao comando imperial uma vizinhança ne cessariamente ambígua que envolvia a heteronomia completa e poder e privilégios imensos O paradoxo do devshirme era portanto perfeita mente lógico e funcional no seio da sociedade otomana em seus pri mórdios Por sua vez a instituição governante não se resumia apenas ao corpo de escravos do sultão Este coexistia com um estrato nativo de militares islâmicos os guerreiros sipahi que ocupavam uma posição muito diferente mas complementar no interior do sistema Esses ca valeiros muçulmanos formavam uma espécie de arma territorial nas províncias O sultanato lhes atribuía domínios fundiários ou timars 13 É evidente que o sistema otomano tinha profundas raízes nas primitivas tra dições muçulmanas Há na história islâmica significativos precedentes para os guardas e comandantes escravos de elite como veremos A condição histórica do domínio político dessas tropas palatinas era a ausência da utilização econômica do trabalho escravo no ramo principal da produção a agricultura O mundo muçulmano tradicionalmente importava escravos sobretudo para fins domésticos e suntuários e estes sempre se distin guiam nitidamente dos escravos militares privilegiados Somente no caso excepcional do Iraque meridional sob o domínio abássida a escravidão foi predominante na econo mia agrária e aí ela constituiu um episódio relativamente breve que desencadeou as insurreições Zanj no final do século IX No império turco alguns domínios que esca pavam ao sistema fundiário regular parecem ter sido cultivados por parceiros escravos adquiridos no estrangeiro pela guerra ou por compra mas essa força de trabalho mar ginal acabaria geralmente por se assimilar à condição camponesa ordinária durante o século XVI Ao mesmo tempo o monopólio jurídico da terra de que gozavam os sultões otomanos também se baseava em tradições islâmicas anteriores remontando às primei ras conquistas árabes no Oriente Médio Portanto as duas características do sistema turco discutidas acima não eram fenômenos arbitrários ou isolados mas a culminância de um longo e coerente desenvolvimento histórico que abordaremos mais à frente 368 PERRY ANDERSON em alguns casos unidades maiores os ziamets dos quais podiam ex trair rendimentos cuidadosamente fixados em troca dos serviços mili tares prestados A renda proveniente do tintar determinava a extensão das obrigações de seu titular para cada 3 mil aspres o timariot tinha que fornecer um cavaleiro Instituídos pela primeira vez por Murad I na década de 1360 estimase que em 1475 haveria cerca de 22 mil sipahis na Rumélia e 17 mil na Anatólia onde os timars eram em geral menos extensos14 O total da cavalaria mobilizável por este sistema era evidentemente muito maior Havia uma permanente competição pelos timars das fronteiras européias do império entre outros os janí zaros vitoriosos eram freqüentemente recompensados com eles em troca dos seus serviços A Porta nunca estendeu plenamente tal sistema aos remotos territórios árabes conquistados à sua retaguarda no século XVI onde lhe era possível dispensar a cavalaria necessária nas frontei ras cristãs e nas terras do interior da Turquia situadas atrás delas Portanto as províncias do Egito Bagdá Basra e do golfo Pérsico não tinham terras timar mas estavam guarnecidas por tropas janízaras e pagavam uma soma anual fixa em impostos ao erário central Essas regiões desempenhavam um papel muito mais importante no aspecto econômico do que no militar dentro do império O eixo original da ordem otomana estava nos estreitos e a sua forma básica era definida pelas instituições dominantes nas províncias pátrias da Rumélia e da Anatólia sobretudo da primeira Os timariots e os zaims constituíam o similar mais próximo de uma classe de cavaleiros no seio do Império Otomano Mas os domínios timar de modo algum eram genuínos feudos Embora os sipahis cum prissem certas funções administrativas e policiais para o sultanato em suas localidades não exerciam qualquer senhorio feudal ou jurisdição senhorial sobre os camponeses que trabalhavam em seus timars Os timariots não desempenhavam quase nenhum papel na produção rural eram essencialmente exteriores à economia agrária Na realidade os camponeses tinham a garantia hereditária de posse das terras que culti vavam e os timariots não os timars não eram hereditários e cada vez que um novo sultão subia ao trono os seus titulares eram sistematica mente renovados a fim de evitar o excessivo enraizamento na terra 14 Inalcik op cíf pp 108113 A história otomana é ainda pouco pesquisada as informações estatísticas que se lhe referem são em geral discrepantes de autor para autor O próprio estudo de Inalcik contém duas cifras aparentemente contraditórias para o número de sipahis no reinado de Solimão I pp 48 e 108 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 369 Mais próximos do sistema pronoia que jurídica e etimologicamente os precedera os timars tinham um âmbito muito mais limitado e estavam sujeitos a um controle muito mais rigoroso do que o sistema grego No Império Otomano compreendiam menos da metade da área culti vada na Rumélia e na Anatólia já que as restantes à parte os waqfs estavam reservadas ao uso direto do sultão da família imperial ou dos altos funcionários do palácio16 O estrato timariot era portanto nessa época um componente importante mas subordinado no as pecto econômico e no político no seio da ordem dominante Situada um tanto à parte do complexo burocráticomilitar da instituição governante estava a instituição muçulmana Com preendia o aparelho religioso jurídico e educacional do Estado e era naturalmente ocupada com poucas exceções por muçulmanos orto doxos nativos Juizes kadi teólogos ulemá professores medresa e uma multidão de outros clérigos assalariados desempenhavam as tarefas ideológicas e judiciais essenciais do sistema de dominação otomano O ápice da instituição muçulmana era oMufti de Istambul ou Sheik ulIslam supremo dignitário religioso que interpretava para os fiéis a lei sagrada do S fiaria A doutrina islâmica nunca admitiu qualquer separação ou distinção entre Igreja e Estado noção que para ela quase não tinha significado O império osmanli foi o primeiro sistema político muçulmano a criar uma hierarquia religiosa especialmente organizada com um clero comparável ao de uma verdadeira Igreja Além disso era esta hierarquia que proporcionava os principais funcionários forenses e civis ao aparelho temporal de Estado os kadis recrutados no seio do ulemato eram o esteio fundamental da administração das províncias otomanas Assim também aí estava presente uma nova composição de impulsos ghazi e do Antigo Islã O zelo religioso do primeiro encontrou um escoadouro no fanático obscurantismo do ulemato turco ao passo que a gravitas social do último era acatada graças a sua sólida inte gração nos mecanismos do sultanato Daí podia advir que o Sheikul íslam se opusesse às vezes às iniciativas da Porta invocando preceitos do Sharia de que era o guardião oficial1 Esta limitação formal da autoridade do sultão era em certo sentido o reverso da ampliação do 15 S Vryonis The bizantine legacy and ottoman forms Dumbarton Oaks Papers 196970 pp 2735 16 Gibb e Bowen Jslamic Society and the West II pp 4656 L Stavrianos Th Balkans Since 1453 pp 867 99100 17 Gibb e Bowen op cit II pp 856 370 PERRY ANDERSON poder do Estado otomano originária da criação de um aparelho ecle siástico profissionalizado Tal fato de modo algum anulava o despo tismo político exercido pelo sultão sobre as possessões imperiais que correspondia integralmente à definição weberiana de burocracia patri monial na qual os problemas jurídicos tendem sempre a tornarse sim ples questões de administração ligadas ao costume e à tradição18 Visto que todo o território arável do império era considerado pro priedade do sultão o objetivo interno fundamental do Estado otomano que determinava a sua organização e divisão administrativas era natu ralmente a exploração fiscal das possessões imperiais Com esse fim a população era dividida em uma classe dominante osmanlilar que in corporava as instituições governante e religiosa e a classe subjugada rayah incluindo muçulmanos e infiéis A imensa maioria desta última era composta evidentemente pelo campesinato que era cristão nos Bálcãs Durante o domínio otomano nunca se fez qualquer tentativa de conversão em massa das populações cristãs balcânicas Com efeito tal corresponderia a renunciar às vantagens econômicas derivadas da classe rayah de infiéis os quais com base nas remotas tradições do Antigo Islã e do Sharia podiam ser onerados com impostos especiais não extensivos aos súditos muçulmanos havia portanto um conflito di reto entre a tolerância de origem fiscal e a conversão de viés missioná rio O devshirme como vimos serviu aos osmanli para resolver este problema através do recrutamento de crianças para islamização dei xando o restante da população cristã na sua fé tradicional ao preço dos impostos tradicionais Todos os rayahs cristãos deviam ao sultão uma taxa especial de capitação e ao ulemato dizimas para a sua manuten ção Ao lado disso os camponeses que cultivavam a terra dos timars ou ziamets deviam tributos monetários aos titulares desses benefícios A proporção dessas obrigações era cuidadosamente fixada pela Porta e os 18 Ver as observações de Weber Economy and Society li pp 8445 Na ver dade Weber considerava o Oriente Próximo como o lugar clássico do que ele desig nava precisamente sultanismo Economy and Society III p 1020 Ao mesmo tempo era cauteloso em enfatizar que mesmo o mais arbitrário despotismo pessoal operava sempre dentro de uma estrutura ideológica consuetudinária Chamarseá autoridade patrimonial a dominação primordialmente tradicional mesmo quando exercida em vir tude da autonomia pessoal do governante quando opera primordialmente numa base discricionária chamarseá sultanismo Pode por vezes parecer que o sultanismo não encontra limites na tradição mas na realidade isso nunca acontece Contudo os elemen tos nãotradicionais não se racionalizam em termos impessoais mas consistem apenas num desenvolvimento extremo do poder discricionário do monarca É esse o traço que o distingue de todas as formas de autoridade racional Economy and Society I p 232 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 371 timariots ouzaims não podiam alterála arbitrariamente Os arrendatá rios tinham a garantia da estabilidade da posse a fim de assegurar a regularidade da receita fiscal e eram protegidos contra as extorsões senhoriais para impedir a drenagem local dos excedentes que deve riam ir para o centro do império As prestações em serviços que ha viam existido à época dos príncipes cristãos foram restringidas ou abo lidas19 O direito camponês de mudar de residência era controlado embora não tivesse sido eliminado na prática a competição entre os timariots para obter trabalhadores encorajava a mobilidade informal no campo Assim ao longo dos séculos XV e XVI o campesinato dos Bálcãs achouse subitamente liberto da crescente degradação servil e da exploração senhorial sob os monarcas cristãos e viuse transferido para uma condição social que paradoxalmente era em muitos aspec tos mais amena e mais livre do que em qualquer outra região da Eu ropa oriental na época O destino do campesinato balcânico contrasta com o dos seus senhores tradicionais Nas fases iniciais da conquista turca alguns se tores das aristocracias cristãs da região dos Bálcãs passaramse para os otomanos e muitas vezes lutaram ao seu lado como aliados secundá rios ou tropas auxiliares Tal colaboração ocorreu na Sérvia na Bul gária na Valáquia e em outras partes No entanto com a consolidação do poder imperial otomano na Rumélia a autonomia residual desses senhores chegou ao fim Alguns se converteram ao islamismo e foram assimilados à classe dominante otomana principalmente na Bósnia Outros receberam timars no novo sistema agrário sem se converterem Mas os timariots cristãos jamais foram muito numerosos e os seus do mínios eram habitualmente modestos com pequeno rendimento No espaço de poucas gerações desapareceram por completo20 Assim em toda a zona dos Bálcãs a nobreza étnica local em breve estava elimi nada um fato de grandes conseqüências para o ulterior desenvolvi mento social da região Além do Danúbio somente a Valáquia a Mol dávia e a Transilvãnia escaparam à ocupação e à administração diretas 19 O código de Dushan obrigava os camponeses sérvios a trabalhar na terra do senhor dois dias por semana De acordo com Inalcík sob o domínio otomano o rayafi devia ao sipahi apenas três dias de trabalho por ano The Ottoman Empire p 13 O seu próprio relato subseqüente dos serviços devidos aos detentores de timars não corresponde absolutamente a este número tão baixo pp 1112 Não há porém razões para duvidar de uma relativa melhora na situação do campesinato balcânico 20 H Inalcik Ottoman Methods of Conquest Studia Islâmica II 195 pp 10416 372 PERRY ANDERSON do sultanato Nas duas primeiras a recémformada classe de boiardos romena que acabara de entrar na fase de unificação política e de su jeição econômica do campesinato nativo pôde conservar as suas terras e o seu poder provincial pagando apenas um pesado tributo anual em espécie para Istambul Na Transilvânia os proprietários magiares con servaram o seu domínio sobre uma população que na sua maior parte era etnicamente estranha a eles romenos saxões ou magiares Exceto esses casos a dominação otomana no sudeste da Europa varreu dos Bálcãs a nobreza local Os resultados finais desta profunda modifica ção dos sistemas sociais autóctones foram complexos e contraditórios Por um lado como vimos tal processo conduziu a uma nítida melhoria das condições materiais do campesinato após a consolidação da conquista turca Não apenas as taxas e tributos rurais foram dimi nuídas como a longa paz otomana implantada na região sudeste aquém da frente da Europa central afastou dos campos a maldição das constantes guerras entre nobres Por outro lado as conseqüências so ciais e culturais da completa destruição das classes dominantes nativas tiveram um caráter inegavelmente regressivo As aristocracias balcâni cas exploravam o campesinato de forma muito mais opressiva do que a administração otomana nos seus primórdios Mas a própria constitui ção de uma nobreza fundiária na passagem da Idade Média para a época moderna representava um avanço histórico incontestável nessas formações sociais retardatárias pois assinalava uma ruptura com os princípios de organização clânica a fragmentação tribal e as formas políticas e culturais que lhes eram inerentes O preço pago por este avanço foi precisamente a estratificação de classe e uma maior explo ração econômica Os Estados balcânicos da última fase medieval eram como vimos notavelmente frágeis e vulneráveis Mas o colapso que sofreram antes das invasões turcas não significa a impossibilidade de um desenvolvimento potencial na verdade o padrão de aparentes fal sas partidas e subseqüentes recuperações era típico da Europa feudal em seu início tanto no Ocidente como no Leste e em geral assumiu a forma de estruturas administrativas prematuramente centralizadas como as que existiram nos Bálcãs do final da Idade Média A elimina ção pelos turcos da classe fundiária local impediu daí em diante qual quer dinâmica endógena Ao contrário a sua principal conseqüência política e cultural foi uma efetiva regressão às instituições clânicas e às tradições particularistas entre a população rural dos Bálcãs Assim nos territórios sérvios onde tal fenômeno tem sido particularmente es tudado reapareceriam agora como unidades difusas de organização so cial no campo formas já em vias de extinção quando da invasão oto LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 373 mana aplemena tribal oknez baseado no poder do chefe e zzadruga laços de parentesco21 A recidiva generalizada em um particularismo patriarcal foi acompanhada por um acentuado declínio no nível de ins trução A articulação cultural da vida das populações subjugadas tor nouse em grande parte um monopólio do clero ortodoxo cujo servi lismo para com os governantes turcos só era igualado por sua ignorân cia e superstição As cidades perderam a sua importância comercial e intelectual transformandose em centros militares e administrativos da dominação otomana semeados de artesãos e lojistas turcos Portanto embora a grande massa da população rural tivesse se beneficiado mate rialmente com o impacto inicialda conquista turca já que esta levou a uma redução do excedente extraído dos produtores diretos no campo a outra faceta do mesmo processo histórico foi a interrupção de qualquer desenvolvimento social autóctone em direção a uma ordem feudal mais avançada um regresso a formas patriarcais préfeudais e uma longa estagnação em toda a evolução histórica da península balcânica Enquanto isso as províncias asiáticas do império turco conhece ram notáveis progressos e recuperação durante o apogeu do poder oto mano no século XVI Se a Rumélia continuava a ser o principal teatro de guerra dos exércitos do sultão a Anatólia a Síria e o Egito gozavam os benefícios da paz e da unidade que a conquista osmanli trouxera ao Oriente Médio A insegurança criada pela decadência dos Estados ma melucos no Levante deu lugar a uma administração enérgica e centrali 21 O historiador Bósnio Branislav Djurdjev foi o grande responsável pela eluci dação deste processo de regressão social Para uma abordagem de sua obra e das discus sões que suscitou ver W S Vucinich The yugoslav lands in the ottoman period post war marxist interpretations of yndigenous and ottoman institutions The Journal of Modem History XXVII n 3 setembro de 1955 pp 287305 A ênfase de Djurdjev no caráter contraditório do impacto inicial provocado pelos otomanos sobre a sociedade balcânica contrasta com as opiniões russas e turcas predominantes que tendem a sa lientar unilateralmente como resultado da conquista otomana seja a destruição e a re pressão seja a pacificação e a prosperidade Para um exemplo das interpretações sovié ticas ver Z V UdaVtsova O Vnutrennykh Prichinakh Padenyia Vizantü v XV Veke Voprosy Istorii julho de 1953 n 7 p 120 um artigo que comemora ou lamenta o 500 aniversário da queda de Constantinopla e afirma que o domínio turco levou dire tamente à intensificação da exploração das massas rurais Para um exemplo das posições turcas ver H Inalcik Uempire ottomane Actes du Premier Congrès International dês Étudea Balkaniques et SudEst Européenes Sofia 1969 pp 815 As tensões entre as duas tendências estão presentes nas comunicações ao congresso que incluem uma ri gorosa declaração de Djurdjev recapitulando os seus pontos de vista B Djurdjev Lês changements historiques et ethniques chez lês peuples slaves du Sud après Ia conquête lurque pp 5758 22 VerV S Vucinich The nature of balkan society under ottoman rule Slavic Revíew dezembro de 1962 pp 603 6045 614 374 PERRY ANDERSON zada que suprimiu o banditismo e estimulou o comércio interregional A depressão do final da Idade Média nas economias da Síria e do Egito fustigadas por invasões e epidemias foi contida com a recuperação da agricultura e o aumento da população Estas duas províncias chega riam a fornecer um terço das receitas do tesouro imperial Na Anató lia o crescimento demográfico foi particularmente notável indício evi dente de expansão agrária a população rural deve ter aumentado em dois quintos ao longo do século O comércio floresceu tanto no interior das próprias províncias orientais como especialmente ao longo das ro tas de comércio internacionais que ligavam a Europa ocidental à Ásia ocidental através do Mediterrâneo ou do mar Negro As estradas eram bem conservadas com estações de posta construídas pelo governo para evitar a pirataria os mares eram patrulhados por tropas otomanas Especiarias sedas escravos veludos alúmen e outras mercadorias cruzavam o império em grandes quantidades levadas por mar ou em caravanas O comércio intermediário do Oriente Médio florescia sob a proteção da Porta para benefício do Estado otomano Esta prosperidade comercial por sua vez conduziu a um surto de crescimento urbano A população das cidades parece ter duplicado no século XVI Em seus primórdios a sociedade osmanli contava com um número limitado mas florescente de centros manufatureiros em Bursa Edirna e outras cidades onde se produziam ou se beneficia vam as sedas os veludos e outros bens de exportação25 Após conquis tar Bizâncio Maomé II promoveu uma política econômica mais escla recida do que a dos imperadores comenos ou paleólogos aboliu os pri vilégios comerciais genoveses e venezianos e instituiu tarifas protecio nistas bastante amenas para fomentar o comércio local No espaço de um século de domínio turco a própria Istambul aumentou talvez de 40 para 400 mil habitantes No século XVI era de longe a maior cidade da Europa Não obstante a expansão econômica do império na sua fase de supremacia tinha desde o início limites bem definidos A recuperação agrícola das províncias asiáticas durante o século XVI parece não ter 23 Inalcik TheOttoman Empire p 128 24 Omer Lutfi Barkan Essai sur lês données statistiques dês registres de ré censement dans 1Empire Ottomane aux XVe et XVIe siècles Journal ofthe Economic and Social History ofthe Orient vol ll agosto de 1957 pp 278 à parte a macroce falia da própria Istambul acompanhada pelo declínio de Alepo e Damasco a população de doze cidades provinciais importantes aumentou cerca de 90 por cento no século XVI 25 Halü Inalcik Capital formation in the Ottoman Empire The Journal of Economic History XXIX n l março de 1969 pp 10819 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 375 KÍdo acompanhada por qualquer aperfeiçoamento significativo no do mínio da tecnologia rural A inovação mais importante na área rural do Oriente Médio no limiar da época moderna a introdução do milho americano ocorreu numa fase posterior quando todo o império já se achava em franco declínio O surto demográfico na Anatólia pode ser em grande parte atribuído à restauração da paz e à sedentarização das tribos nômades uma vez que a estabilização do domínio otomano permitira à colonização agrícola uma nova expansão depois da última queda demográfica do Império Bizantino Este processo em breve en contraria os seus limites à medida que a disponibilidade de terra se esgotava com os níveis técnicos existentes Ao mesmo tempo o reflo rescimento do comércio através do império não se refletia necessaria mente na atividade das manufaturas locais ou na importância dos mer cadores Com efeito o caráter particular da economia e do governo ur banos nos territórios otomanos esteve sempre determinado pelas limita ções impostas pelo sultanato Nem a presença de um artesanato provin cial e de uma vasta capital nem o interesse episódico de alguns gover nantes puderam alterar o relacionamento basicamente hostil existente entre o Estado otomano e as cidades e indústrias Nas tradições polí ticas islâmicas não havia lugar para o conceito de liberdades urbanas As cidades não dispunham de autonomia corporativa ou municipal na verdade podese dizer que não tinham sequer existência jurídica Da mesma forma como não havia Estado mas um governante e seus agen tes não havia tribunais mas um juiz e seus auxiliares também não havia cidades mas um conglomerado de famílias quarteirões e guil das cada qual com os seus próprios chefes e dirigentes Em outras palavras as cidades estavam desprovidas de defesas diante da vontade do Comandante dos Fiéis e seus servidores A regulamentação oficial dos preços das mercadorias e a aquisição obrigatória de matériaspri mas limitavam os mercados urbanos As corporações de ofício eram cuidadosamente vigiadas pelo Estado e o seu conservadorismo técnico era por ele reforçado Além disso o sultanato intervinha quase sempre contra os interesses das comunidades autóctones de mercadores urba nos encarados com constante suspeita pelos ulemás e detestado pelo populacho artesão As medidas econômicas do Estado tendiam a dis criminar o capital comercial de grande escala e a proteger a pequena produção com seu arcaísmo corporativo e fanatismo religioso27 A tí 26 Bernard Lewis The Emergence of Modem Turkey Londres 1969 p 393 Hvidentemente Lewis exagera ao defender que não havia Estado 27 Inalcik Capital formation in the Ottoman Empire pp 1036 376 PERRY ANDHRSON pica cidade turca passou a ser dominada por um menu peuple deca dente e atrasado que impedia qualquer inovação ou acumulação de ca ráter empresarial Dada a natureza do Estado otomano não existia um espaço protecionista onde pudesse desenvolverse uma burguesia mer cantil turca e a partir do século XVII as funções comerciais foram crescentemente devolvidas às comunidades minoritárias de infiéis gregos judeus ou armênios que sempre haviam dominado o comér cio de exportação para o Ocidente Assim os comerciantes muçulma nos ficaram em geral confinados às modestas ocupações de lojistas e artesãos De tal modo mesmo no seu apogeu o nível da economia oto mana nunca atingiu um grau de desenvolvimento comparável ao da organização política otomana A força motriz fundamental da expan são do império foi sempre e inexoravelmente de caráter militar No plano ideológico a estrutura da dominação turca não conhecia limites geográficos Na cosmogonia osmanli o planeta dividiase em duas gran des áreas a Casa do Islã e a Casa da Guerra A Casa do Islã com preendia os territórios habitados pelos verdadeiros fiéis que seriam gradualmente reunidos sob os estandartes do sultão A Casa da Guerra abarcava o resto do mundo povoado por infiéis cujo destino era serem conquistados pelos Soldados do Profeta38 Num sentido prático isso significava a Europa cristã em cujas portas os turcos tinham estabele cido a sua capital Na verdade ao longo de toda a história do império o verdadeiro centro de gravidade da classe dominante osmanlilar foi a Rumélia a própria península balcânica e não a Anatólia terra natal dos turcos Daí partiriam um após outro os seus exércitos mar chando rumo ao norte para a Casa da Guerra a fim de ampliar a pre sença do Islã O fervor o número e a perícia das tropas do sultão fi zeramnas invencíveis na Europa por duzentos anos desde a sua pri meira entrada em Galípoli A cavalaria sipahi que saía regularmente para as batalhas ou ataques de surpresa juntamente com a infantaria janízara de elite revelaramse os instrumentos fatais da expansão oto mana no sudeste da Europa Os sultões além disso não hesitaram em utilizar os recursos humanos e o saber cristão de várias maneiras dife rentes do devshirme fonte de suas tropas terrestres A artilharia turca estava entre as mais avançadas da Europa sendo em certas ocasiões especialmente preparada para a Porta por engenheiros ocidentais rene gados A armada turca logo rivalizava com a de Veneza graças à expe 28 GibbeBowenIslamicSocietyandíhe West ll pp 201 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 377 riência de seus capitães e tripulantes gregos29 Apropriandose voraz mente de técnicos e artífices militares da Europa a máquina de guerra otomana associava em seu apogeu a modernidade qualitativa dos me lhores exércitos cristãos com uma mobilização quantitativa muito su perior à de qualquer Estado cristão isolado que viesse a enfrentála Apenas as coligações conseguiram contêla ao longo da fronteira do Danúbio Até a data do cerco de Viena em 1529 as lanças espanholas e austríacas foram incapazes de dobrar os sabres dos janízaros No entanto a partir do momento em que estancou a expansão turca a decadência de seu despotismo lentamente se instaurou O fe chamento das fronteiras osmanli na Rumélia provocaria uma reação em cadeia império adentro Comparado com os Estados absolutistas do final do século XVI e início do século XVII o Império Otomano era cultural tecnológica e comercialmente atrasado A sua penetração na Europa fizerase através do ponto mais frágil do continente as esfa celadas defesas dos Bálcãs da última fase medieval Confrontado com as mais robustas e mais representativas monarquias Habsburgo foi em última instância incapaz de alcançar o triunfo seja em terra Viena seja no mar Lepanto Desde a época da Renascença o feudalismo europeu vinha dando origem ao capitalismo mercantil que nenhum despotismo asiático podia reproduzir muito menos o da Porta com a sua completa carência de invenções e seu desprezo pelas manufaturas A interrupção do expansionismo turco foi determinada pela crescente superioridade econômica social e política da Casa da Guerra Foram múltiplos os resultados desta inversão de forças para a Casa do Islã A estrutura da classe dominante osmanlilar basearase na perpétua con quista militar Fora isso que permitira a anomalia configurada no con trole do aparelho de Estado por uma elite escrava de origem nãomu çulmana enquanto as fronteiras cediam ao avanço dos exércitos oto manos a necessidade e a racionalidade dos corpos de janízaros e do devshirme viase justificada na prática para o conjunto da ordem do minante as vitórias de Vânia Rodes Belgrado e Mohacs pagaram esse preço Foi também tal característica que tornou possível o nível inicialmente moderado da exploração rural nos Bálcãs e a severa vigi lância do Estado central Com efeito a classe osmanlilar podia contar com as fortunas advindas da anexação de territórios cada vez mais ex tensos da Casa da Guerra com a multiplicação dos timars e ziameís 29 Para uma ênfase particular sobre a utilização de técnicos e artesãos europeus pela Porta ver R Mousnier Lês XVIe et XVIIe siècles Paris 1954 pp 4634 474 378 PERRY ANDERSON que se seguia ao avanço para o norte Dessa maneira os mecanismos sociais do botim eram fundamentais para as rígidas unidade e disci plina do Estado turco no seu zênite Contudo uma vez interrompida a expansão territorial era inevi tável uma lenta involuçao de toda esta enorme estrutura Os privilégios de um corpo de escravos de origem alienígena uma vez destituídos de suas funções militares tornaramse progressivamente intoleráveis para a maior parte da classe dominante do império que acabou por lançar mão de sua força de inércia para normalizar e recuperar o comando do aparelho político da instituição governante A população rural exce dente que fora incorporada nas tropas auxiliares e grupos de pilhagem do exército da Porta voltouse para a revolta social ou para o bandi tismo quando a máquina militar deixou de poder absorvêla Além disso a suspensão das extensas aquisições de terra e tesouro levaria inevitavelmente a formas muito mais intensas de exploração dentro das fronteiras do poder turco às custas da classe subjugada rayah Do fim do século XVI ao início do XIX a história do Império Otomano é por tanto essencialmente a da desintegração do Estado imperial centrali zado da consolidação de uma classe fundiária nas províncias e da de gradação do campesinato Este longo e exaustivo processo que não se fez sem passageiras fases de recuperação política e militar não decor reu do isolamento dos Bálcãs frente ao restante do continente europeu Ao contrário foi aprofundado e agravado pelo impacto internacional da supremacia econômica da Europa ocidental diante de cujo poder o Império Otomano estagnado no parasitismo tecnológico e no obscu rantismo religioso viuse progressivamente derrotado Da revolução dos preços no século XVI à Revolução Industrial do século XIX o desenvolvimento do capitalismo ocidental afetaria de modo sempre crescente a sociedade balcânica O lento declínio do Império Otomano foi determinado pela supe rioridade econômica e militar da Europa absolutista A curto prazo os seus maiores reveses foram sofridos na Ásia A Guerra dos Treze Anos com a Áustria entre 1593 e 1606 revelouse um dispendioso beco sem saída Mas as guerras com a Pérsia mais longas e destrutivas que duraram com breves interrupções de 1578 a 1639 terminaram em derrota e frustração A consolidação vitoriosa do Estado safávida na Pérsia marcou uma imediata guinada nos destinos do Estado osmanli As guerras contra a Pérsia que resultaram na perda do Cáucaso infli giram imensos danos ao exército e à burocracia da Porta A Anatólia terra natal da população imperial de etnia turca nunca se constituíra como vimos no seu centro político Foi na Rumélia que o novo sistema LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 379 social otomano se implantou sistematicamente no século XIV e XV com um sistema de posse da terra e de administração militar adaptado às necessidades internacionais do Estado imperial A Anatólia pelo contrário manteve a sua estrutura social e religiosa tradicional com fortes reminiscências da antiga organização nômade e clânica visíveis nos beyliks do interior e na latente hostilidade para com a complacên cia cosmopolita de Istambul Os timars da Anatólia eram de modo geral menores e mais pobres que os da Rumélia A classe sipahi local sobre a qual recaíam as crescentes despesas da participação nas cam panhas periódicas em virtude da acelerada inflação do final do século XVI demonstrava um entusiasmo cada vez menor pelo conflito inter muçulmano com os persas Ao mesmo tempo a expansão agrária na Anatólia rural estava nesta altura interrompida o grande aumento da população acabara por criar uma classe cada vez mais numerosa de camponeses sem terra ou levandat nas terras altas Recrutados em massa nas mobilizações promovidas pelos governadores provinciais para a frente da Pérsia os levandats adquiriram o treinamento mas não a disciplina militar Assim o esforço das guerras e as vitórias ini migas na fronteira oriental precipitaram lentamente um colapso de toda a ordem social da Anatólia O descontentamento dos timariots combinouse à miséria dos camponeses numa série de tumultuados le vantes as chamadas revoltas jelali que eclodiram entre 1594 e 1610 e entre 1622 e 1628 misturando insubordinação provincial banditismo social e restauração religiosa30 Foi também nesses anos que as incur sões dos cossacos através do mar Negro fustigaram com êxito humi lhante Varna Sinope Trebizonda e mesmo os subúrbios de Istambul Finalmente os líderes sipahi das rebeliões jelali da Anatólia deixaram se comprar enquanto os levandats que os seguiam eram reprimidos Mas foram vultosos os danos causados pela onda de banditismo e anar quia da Anatólia ao ânimo interno do sistema otomano O século XVII ainda presenciaria novas explosões jelali nesses mesmos campos onde a pacificação nunca fora completa Entretanto na própria Porta os custos do longo conflito com a Pérsia eram agravados pela crescente inflação importada do Ocidente À altura do final do século o afluxo dos metais americanos à Europa 30 Quanto ao fenômeno do levandat anatoliano e as revoltas jelali em geral ver V J Parry The Ottoman Empire 15661617 The New Cambridge Modem Hàtoryr III pp 37274 e The Ottoman Empire 16171648 The New Cambridge Modem His tory IV pp 62730 380 PERRY ANDERSON renascentista tinha aberto caminho através do império turco Nos do mínios otomanos a relação ouroprata era inferior à do Ocidente o que tornava a exportação de moedas de prata para estas regiões um negócio altamente lucrativo para os comerciantes europeus que ressar ciam a diferença em ouro O resultado dessa maciça injeção de prata foi naturalmente uma súbita elevação dos preços que o sultanato tentou em vão compensar com a desvalorização da aspre Entre 1534 e 1591 o valor das receitas do tesouro decaiu pela metade3 A partir de então os orçamentos anuais registraram regularmente um crescente déficit à medida que se desenrolavam as guerras contra a Áustria e a Pérsia Como conseqüência inevitável abateuse sobre os súditos do império um grande aumento dos encargos fiscais O imposto de capita ção rayah pago pelo campesinato cristão cresceu seis vezes entre 1574 e 1630n Tais medidas porém funcionavam apenas como paliativo numa situação na qual o próprio aparelho de Estado dava sinais de males e crises cada vez mais sérias Os corpos de janízaros e o estrato devshirme que constituíram a cúpula do aparelho imperial otomano na época de Maomé II foram os primeiros a revelar sintomas gerais de decomposição Logo no início do século XVI durante o reinado de Solimão I os janízaros conquistaram o direito de casar e ter filhos que outrora lhes era negado Os encargos com os dependentes elevaram naturalmente o custo de sua manuten ção que já tinham subido bastante devido à inflação transmitida pelo afluxo de prata vinda da Europa ocidental através do comércio medi terrâneo do império o qual quase não produzia manufaturas Assim entre 1350 e 1600 o soldo dos janízaros quadruplicou enquanto a aspre turca era constantemente desvalorizada e o nível geral dos preços decu plicava33 Conseqüentemente a fim de atender a seu sustento os janí zaros foram autorizados a suplementar os seus rendimentos mediante atividades artesanais ou no comércio quando não estavam em guerra Depois em 1574 quando Salim II subiu ao trono obtiveram o direito de alistar seus filhos nos regimentos janízaros Dessa maneira o que era uma elite profissional de militares selecionados pelo mérito conver teuse gradualmente numa milícia hereditária e semiartesanal Na mesma proporção desintegrouse a sua disciplina Em 1589 o pri 31 Inalcik The Ottoman Empire p 49 32 Inalcik UEmpireOttomane pp967 33 Stavrianos The Balkans Since 1453 p 121 Lewis The Emergence of Mo dem Turkey pp 289 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 381 meiro motim vitorioso dos janízaros por aumento de soldo derrubou o grãovizir governante e deu início a um padrão que assumiria carac terísticas endêmicas na vida política de Istambul em 1622 pela pri meira vez um levante de janízaros derrubava o sultão Enquanto isso o isolamento outrora hermético do estrato devshirme em relação ao restante da classe dominante osmanlilar começou a se enfraquecer o que previsivelmente resultou na dissolução completa da identidade pró pria do devshirme No reinado de Murad II no final do século XVI os nativos muçulmanos adquiriram o direito de ingressar nas fileiras dos janízaros Finalmente na década de 1630 no tempo de Murad IV as mobilizações do cfevsíirmetinham desaparecido por completo Os regimentos de janízaros porém continuavam a gozar de isenções fis cais e outros privilégios costumeiros Por isso havia uma permanente demanda de alistamento nesses corpos por parte da população muçul mana ao mesmo tempo que a agitação social do período jelali obrigava a uma multiplicação das guarnições de janízaros em todas as cidades provinciais do império por razões de segurança interna Assim a par tir de meados do século XVII os janízaros tornaramse cada vez mais vastos corpos de milícia urbana com pouco ou nenhum treinamento e muitos deles já não residiam nas casernas mas em suas próprias tendas e oficinas trabalhando como lojistas e artesãos a sua presença nas corporações levou muitas vezes a um rebaixamento nos padrões arte sanais enquanto os mais prósperos adquiriam direitos sobre as terras locais O valor militar dos janízaros em breve tornouse mínimo a sua principal função política na capital era servir de masse de manoeuvre ao fanatismo do ulemato ou às intrigas palacianas Entretanto o sistema tintar passava por uma degeneração não menos dramática Com o aperfeiçoamento da artilharia européia e a consolidação dos exércitos permanentes pelas potências cristãs a cava laria ligeira constituída pelos sipahis ficara militarmente obsoleta as relutantes sorridas de verão dos cavaleiros timaríot cuja firmeza no campo de batalha se enfraquecera com a depreciação de seus rendi mentos revelaramse totalmente inadequadas para enfrentar o poder de fogo dos fuzileiros alemães Assim no ambiente de crescente cor rupção que reinava em Istambul o Estado tendia a conceder aos altos oficiais cada vezmais timars para propósitos nãomilitares ou a recu perálos para o tesouro público Daí resultou uma notória diminuição dos efetivos sipahi por volta do início do século XVII O exército oto mano passou a se basear principalmente em companhias de mosque teiros assalariados as unidades sekban originalmente tropas auxi liares irregulares sediadas nas províncias que passaram agora a confi 382 PERRY ANDERSON gurar as formações militares mais importantes do império311 A manu tenção das tropas sekban como força permanente contribuiu tantopara intensificar como para monetarizar os encargos fiscais nos territórios otomanos numa conjuntura de provável recessão econômica na maior parte do Mediterrâneo oriental As novas terras aráveis tinham se esgo tado na Anatólia O comércio das especiarias e da seda foi capturado e desviado pelos navios ingleses e holandeses cujas operações no Oceano Índico cercavam agora o Império Otomano pela retaguarda O Egito por outro lado onde a atividade agrícola se mantivera em boa ativi dade35 reverteu rapidamente ao controle local dos mamelucos As difi culdades políticas e financeiras enfrentadas pelo Estado combinaram se à degeneração da dinastia Com efeito no século XVII a tempera dos governantes do império cuja autoridade despótica tinha outrora sido exercida com considerável habilidade entrou em colapso de vido a um novo sistema sucessório A partir de 1617 o sultanato passou a caber ao mais velho dos varões da linhagem osmanli que habitual mente era encerrado desde o nascimento no Cárcere dos Príncipes uma prisão adamascada que parecia concebida para produzir desequi líbrio patológico ou imbecilidade Tais sultões não estavam em situação de controlar ou conter a rápida deterioração do sistema estatal que governavam Foi por essa época que as manobras clericalistas do SheikulIslam começaram a entrincheirarse no sistema de decisões políticas36 que tornouse rapidamente mais venal e instável Não obstante na segunda metade do século XVII o Império Otomano mostrouse capaz de um último e grande esforço militar na Europa Os reveses das guerras com a Pérsia as desordens do bandi tismo da Anatólia as humilhações infligidas pelas incursões cossacas e j a desmoralização dos corpos de janízaros foram seguidas por uma rea ção efetiva se bem que temporária no interior da Porta Entre 1656J e 1676 os viziratos dos Koprülü restauraram uma vez mais em Istam bul uma administração vigorosa e marcial As finanças otomanas ram recompostas mediante empréstimos forçados e extorsões tributa rias a supressão das sinecuras serviu para cortar as despesas nos reg mentos permanentes aperfeiçoouse o treinamento e a equipagem infantaria a ainda temível cavalaria tártara foi melhor utilizada na 34 Inalcik The Ottoman Empire p 48 35 Ver Stanford Shaw The Financial and Administrative Organization OU Developmeni of Ottoman Egypt 15171798 Princeton 1962 p 21 36 Inalcik LEmpire Ottomane p 95 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA teatro de guerra do Ponto Concomitantemente o declínio do regime safávida na Pérsia afrouxou as pressões a leste e permitiu um derra deiro avanço turco rumo ao Ocidente Os principados do Danúbio cujos governantes vinham dando mostras de crescente agitação foram trazidos à ordem Uma guerra com Veneza de vinte anos de duração foi satisfatoriamente concluída com a tomada de Creta em 1669 En tão em 1672 com a mobilização dos contingentes de cavalaria do ca nato da Criméia as forças otomanas conquistaram a Podólia aos polo neses Ao longo da década seguinte travouse um extenso e selvagem conflito com a Rússia pelo controle da Ucrânia Finalmente contido neste embate que termlnouem 1682 num armistício sancionando o status quo ante após devastar a Ucrânia o poder turco voltouse em seguida contra a Áustria em 1683 O novo vizir Kara Mustafá ainda mais agressivo que o seu antecessor Maomé Koprülü reuniu um gran de exército para um ataque frontal a Viena Cento e cinqüenta anos depois do cerco de Solimão II à capital Habsburgo um novo ataque era lançado O fracasso do primeiro significara apenas a estabilização da Unha de frente do avanço turco sobre a cristandade A derrota do se gundo com a libertação vitoriosa de Viena por uma força mista com posta por tropas polonesas imperiais saxônias e bávaras em 1683 resultou no colapso de toda a situação otomana na Europa central A recuperação Koprülü mostrouse assim artificial e de vida curta os seus triunfes iniciais levaram a Porta a ir além de suas próprias forças com conseqüências desastrosas e irreversíveis Ao desastre de Viena seguiuse uma longa retirada que findou em 1699 com a perda total da Hungria e da Transilvânía para os Habsburgo enquanto a Polônia recuperava a Podólia e Veneza ocupava a Moréia Daí para a frente a Casa do Islã estaria em perpétua defensiva nos Bálcãs capaz quando muito de conter temporariamente os avanços dos infiéis cedendo sem pre e definitivamente diante deles O impacto do recuo turco nos cem anos subseqüentes beneficiou sobretudo o absolutismo russo mais que o austríaco O ímpeto militat Habsburgo esgotouse relativamente depressa após a conquista do Ba nat em 171618 As forças otomanas derrotaram os exércitos austría cos em 173639 recuperando Belgrado Mas no norte a expansão Romanov na região do Euxino não pôde ser detida A derrota diante da Rússia em 176874 provocou a perda dos territórios situados entre o Bug e o Dniester e o estabelecimento do direito de intervenção do czar na Moldávia e na Valáquia Em 1783 a Criméia foi absorvida pela Rússia em 1791 foi anexado o Jedisan Enquanto isso todo o tecido administrativo do Estado otomano se deteriorava rapidamente O Di 384 PERRY ANDERSON vã tornouse um joguete dos grupos rapaces da capital empenhados em elevar ao máximo os ganhos da venalidade e da malversação de fundos Depois de 1700 os funcionários civis turcos e os mercadores gregos fanariotas de Istambul adquiriram crescente poder e influência na Porta à medida que a capacidade militar do Estado otomano se enfra quecia os primeiros sempre em ascensão tornaramse paxás e go vernadores nas províncias37 ao passo que os últimos conquistavam postos lucrativos no erário e tornavamse hospodares na Romênia Os cargos que outrora estavam reservados ao devshirme com promo ção baseada no mérito eram agora vendidos no atacado à melhor oferta mas como não havia garantia de posse após a compra ao con trário dos sistemas europeus os detentores tinham que extrair com extrema rapidez os lucros de seu investimento antes de serem afasta dos o que aumentava a pressão das extorsões sobre as massas sujeitas a suportar o fardo de uma tal administração Em meio à corrupção administrativa generalizada desenvolveuse um amplo mercado negro dos bilhetes de pagamentos dos janízaros que passaram a ser compra dos e vendidos entre membros fictícios dos regimentos Por volta do final do século havia cerca de 100 mil janízaros registrados dos quais uma fração mínima tinha treinamento militar no entanto a ampla maioria tinha acesso às armas e podia utilizálas para a extorsão e inti midação das populações locais38 Os janízaros estavam agora em toda a parte como uma massa gangrenosa que tomava conta das cidades do império Dos seus membros mais poderosos saíam muitas vezes os no táveis locais ayan que a partir de então se tornaram um traço carac terístico da sociedade provincial otomana Entretanto todo o regime de propriedade da terra sofria uma transformação O timar há muito decaíra como instituição juntamente com a cavalaria sipahi que sustentara A Porta perseguiu uma política deliberada de recuperação dos domínios dos antigos timariots seja por sua anexação aos domínios da casa imperial para entregálos depois outra vez à especulação a fim de obter maiores rendimentos monetá rios seja simplesmente alugandoos a testasdeferro manipulados por Conselho de Estado turco N T 37 N Itzkowitz EighteenthCenturyottomanrealities pp 867 Antigos príncipes de certos vassalos do sultão de Constantinopla N T 38 Para relatos sobre a decadência do sistema janízaro ver Gíbb e Bowen Is lamic Society and the West II pp 1804 Stavrianos The Balkans Since 1453 pp 120221920 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 385 funcionários do palácio Verificouse assim uma modificação geral na forma otomana de exploração do timar que deu lugar ao iltizam os benefícios militares foram convertidos em rendas fiscais que propor cionavam crescentes fluxos monetários para o tesouro O sistema ilti zam foi inicialmente desenvolvido pela Porta nas longínquas províncias asiáticas como o Egito onde não havia necessidade dos guerreiros montados do tipo dos que se concentraram na Rumélia39 Contudo a generalização dessas rendas a todo o império correspondia não apenas às necessidades financeiras do Estado osmanli mas também à homo geneização muçulmana de toda a classe dominante com o declínio e o desaparecimento do devshirme Uma das mais importantes razões es truturais para este processo foi na verdade a alteração introduzida em toda a composição do império pela conquista das províncias árabes A difusão das unidades fiscais iltizam a partir de seus territórios islâmicos às custas do timar completou arsim a dissolução da instituição que fora o complemento funcional do devshirme no sistema original do expan síonismo otomano Como fenômeno concomitante aumentou o nú mero de terras waqf nominalmente domínios religiosos coletivos doa dos pelos fiéis que constituíam a única forma importante de posse da terra que não cabia em definitivo ao sultanato40 Tradicionalmente eram utilizados como um disfarce para a atribuição de direitos heredi tários sobre a terra a uma só família investida na administração do waqf Os primeiros monarcas osmanli mantiveram um controle vigi lante sobre esta devota instituição Maomé II de fato chegara a fo 39 Para o surgimento e o caráter do sistema iltizam no Egito ver Shaw The Financial and Administrative Organization and Development of Ottoman Egypt pp 2939 40 Os historiadores húngaros conferiram muito relevo demasiado relevo à importância das terras waaf na iormação social otomana ao desenvolver a sua tese de que esta tinha um caráter essencialmente feudal classificação que é rejeitada a meu ver corretamente pela maioria dos historiadores turcos Uma vez que as terras waqf cons tituíam a categoria jurídica mais próxima da propriedade privada a sua extensão pode ser usada para argumentar que existia um conteúdo feudal oculto por trás das fíccoes jurídicas de controle religiosoimperial Na verdade não há razões para crer que as terras waqf tenham alguma vez predominado na área rural nos Bálcãs ou na Anatólia ou que tenham determinado as relações fundamentais de produção na formação social otomana No entanto a sua expansão na época do declínio otomano está bem confirmada Para uma análise competente do fenômeno waqf ver V Mutafcieva e S Dimitrov DLe Agrarverhàltnisse im Osmanichen Reiches im XVXVI Jh Actes du Premier Congrês dês Études Balkaniques pp 689702 que estima que os waqf ocupavam talvez um terço da superfície total dos territórios natais do império concentrados principalmente na Trácia no mar Egeu e na Macedônia eram quase ou completamente desconhecidos na SérviaenaMoréia 386 PERRY ANDERSON mentar uma reapropriação geral dos territórios waqf pêlo Estado No entanto à época do declínio otomano as posses waqf multiplicaram se mais uma vez sobretudo na Anatólia e nas províncias árabes O advento do sistema iltizam e a influência que exerceu trans formaram a situação do campesinato Os timariots não podiam desa propriar ou impor tributos acima dos limites estatutários prescritos pelo sultão Os senhores de terra da nova época não se detinham pe rante tais restrições a própria brevidade de seus títulos iniciais os inci tava à superexploração dos camponeses de seus domínios Durante o século XVIII um número crescente de terras vitalícias ou mali kane f oi concedido pela Porta o que moderou as exigências imediatas destes notáveis rurais mas estabilizou o seu poder a longo prazo sobre as aldeias41 E assim o tintar deu lugar finalmente nos Bálcãs ao sis tema que ficou conhecido como chiflik O titular de um chiflik dispu nha de controle praticamente irrestrito sobre a força de trabalho à sua disposição podia tirar seus camponeses da terra ou impedir que a abandonassem enredandoos em dívidas Podia ampliar a sua própria reserva senhorial ou hassachiflik às custas das parcelas de seus arren datários que foi o que em geral aconteceu Habitualmente apoderava se de metade da colheita dos produtores diretos que ficavam apenas com um terço de seu produto uma vez pagos os impostos fundiários e as taxas de coleta112 Em outras palavras a condição do campesinato dos Bálcãs piorou juntamente com a do restante da Europa oriental igualandose ambas na miséria comum Na prática os camponeses achavamse agora vinculados ao solo e podiam ser legalmente recupe rados se abandonassem as suas terras Tal como o crescimento do co mércio do trigo com a Europa ocidental conduzira ao agravamento da taxa de exploração servil na Polônia ou na Alemanha oriental sem ter sido a sua causa assim a produção comercial do algodão e do milho para exportação ao longo das costas e dos vales da Grécia da Bulgária e da Sérvia elevou as pressões exercidas pelos senhores nos chifliks e contribuiu para a sua difusão O traço mais característico das relações rurais no sudeste foi a quebra de qualquer ordem pública severa im posta de cima o banditismo tornouse galopante encorajado pelo re levo montanhoso da região que faziam dela para os camponeses o 41 Gibb e Bowen Islamic Socieíy and the West ll pp 2556 Os senhores de terra mais opressivos eram sempre os que arrematavam os impostos seguidos de perto pelas autoridades religiosas op cit p 247 42 Stavrianos The Balkanssince 1453 pp 13842 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 387 equivalente mediterrâneo das áreas de fuga nas planícies do Báltico Em contrapartida os senhores de terra mantinham bandos armados de sicários em seus domínios as tropas irregulares kirjali para se prote gerem das revoltas e reprimir os seus arrendatários3 Com efeito a fase final da longa involução do Estado otomano traduziuse na quase completa paralisia da Porta e na usurpação do poder provincial pri meiro pelos paxás da Síria ou do Egito depois pelos derebeis ou se nhores dos vales da Anatólia e enfim pelas ayans dinastias de notá veis locais da Rumélia Pelo final do século XVIII o sultanato contro lava apenas uma fração dos 26 eyalets em que se dividia oficialmente a administração imperial A prolongada decomposição do despotismo osmanli não deu ori gem contudo a um feudalismo consumado O título imperial de pro priedade sobre todas as terras seculares não foi abandonado pelo im pério embora a outorga de grande número de malikane limitasse o seu usufruto O sistema chiflik nunca recebeu sanção jurídica oficial e tampouco os camponeses foram juridicamente vinculados ao solo Até 1826 as fortunas dos funcionários e dos coletores de impostos que fus tigavam a população submetida podiam ser arbitrariamente confisca das pelo sultão quando aqueles morressem44 Não havia qualquer ga rantia de propriedade muito menos títulos de nobreza A liquefação da velha ordem social e política não conduziu à emergência de uma outra ordem convincente O Estado osmanli continuava a ser no século XIX um território estagnado sustentado artificialmente pela rivali dade das potências européias que aspiravam à sua herança Foi possí vel dividir a Polônia entre a Áustria a Prússia e a Rússia porque as três eram potências territoriais com facilidades de acesso e interesses idênticos nesse país O mesmo não acontecia com os Bálcãs porque não havia compatibilidade entre os três principais contendores interes sados na região a Inglaterra a Áustria e a Rússia A GrãBretanha detinha a supremacia marítima no Mediterrâneo e a primazia comer cial na Turquia na realidade por volta de 1850 o Império Otomano importava mais mercadorias inglesas que a França a Itália a Áustria ou a Rússia o que fazia dele uma região vital para o imperialismo econômico vitoriano O poderio naval e industrial britânico excluía 43 T Stoianovich Land tenure and related sectors of the balkan economy 16001800 The Journal of Economic History XX verSo de 1953 n 3 pp 401 40911 44 Serií Mardin Power civil society and culture in the Ottoman Empke Comparative Síudies in Society and History rol II 1969 p 277 388 PERRY ANDERSON todo e qualquer acordo harmonioso sobre a distribuição do Império Otomano frustrando os esforços da Rússia no sentido de partühálo Ao mesmo tempo o progressivo despertar nacionalista dos povos bal cânicos após a época napoleônica impedia qualquer estabilização da situação política no sudeste europeu Em 1804 eclodia a revolta da Sérvia em 1821 seguiase uma insurreição na Grécia A invasão cza rista em 182829 desbaratou os exércitos turcos e impôs a autonomia formal da Sérvia da Moldávia e da Valáquia em relação à Porta en tretanto as intervenções anglofrancesa e russa garantiam e delimita vam a independência da Grécia em 1830 Tais perdas originadas de movimentos locais que nem Londres nem Viena podiam controlar dei xaram ainda à Turquia um império balcânico que se estendia da Bós nia à Tessália e da Albânia à Bulgária A proteção internacional haveria de adiar por cerca de um século a extinção definitiva do Estado otomano inspirando nesse ínterim sucessivas tentativas de renovação liberal a fim de estabelecer uma conformidade com as normas do capitalismo ocidental Quem as inau gurou foi Mahmud II na década de 1820 num esforço para moderni zar o aparelho administrativo e econômico do sultanato Os janízaros foram dispensados e eliminados os timarsi as terras waqf foram nomi nalmente reclamadas ao tesouro do império importaramse oficiais es trangeiros para treinar um novo exército O controle central foi resta belecido nas províncias e o reinado dos derebeis chegou ao fim Essas medidas em breve se revelaram ineficazes para sustar a queda do sis tema imperial Os exércitos de Mahmud foram derrotados pelas tropas egípcias de Maomé Ali enquanto seus governadores e funcionários se mostravam ainda mais corruptos e opressores que os nobres locais que os precederam A esta derrocada se seguiram renovados esforços anglo franceses para liberalizar e reorganizar o governo otomano Deles re sultaram as reformas de Tanzimat em meados do século mais estrita mente adaptadas às preocupações jurídicas e comerciais do Ocidente O Édito da Câmara Rosa de 1839 finalmente assegurou a garantia jurídica da propriedade privada no império e a igualdade política pe rante a lei4 Ambas as medidas haviam sido insistentemente reclama das pelo corpo diplomático em Istambul Não obstante a propriedade estatal da terra permaneceu dominante nos territórios natais do impé rio Só em 1858 foi decretada uma lei da terra concedendo direitos limitados de sucessão aos que a controlavam ou dela usufruíam Insa 45 Lewis The EmergenceofModem Turkey pp 1068 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 389 tisfeitas com tais medidas as potências ocidentais desenvolveram pres sões no sentido da extensão desses direitos a qual veio a ser concedida em 1867 quando os proprietários locais finalmente adquiriram a pro priedade jurídica de seus domínios46 Mas o caráter artificial do novo rumo político em breve se tornou evidente Quando os nacionalistas turcos tentaram impor uma constituição representativa não foi difícil ao sultão Abdul Hamid II restabelecer um despotismo pessoal frágil mas brutal em 1878 Pelo final do século verificouse uma estabiliza ção das classes dos detentores de cargos e dos senhores de terra graças às garantias de propriedade conferidas pelas reformas tanzimat Mas por outro lado não se viu surgir ao Império Otomano uma nova ordem política e social à medida que este se contraía gradualmente diante das lutas sucessivas pela libertação dos povos balcânicos subjugados e das manobras das principais potências européias para frustrálas ou explorálas Em 1875 foi esmagada uma revolta popular na Bulgária A Rússia interveio e a Turquia foi novamente derrotada no campo de batalha enquanto a Inglaterra se mobilizava uma vez mais para a sal var das conseqüências do desastre O resultado foi um acordo entre as potências européias que garantiu plena independência para a Sérvia a Romênia e o Montenegro criou uma Bulgária autônoma sujeita à suse rania residual dos otomanos e devolveu a Bósnia ao controle da Áus tria Na década seguinte a Grécia comprou a Tessália e a Bulgária conquistou a sua independência Foi a frustração resultante do acelerado declínio do império e do inusitado imobilismo burocrático durante o governo de Abdul Hamid que inspirou os militares que vieram a ser chamados de Jovens Turcos a tomar o poder por um golpe militar em 1908 Uma vez satisfeitas as ambições de carreira e esquecidos os princípios comteanos o programa político dos Jovens Turcos ficou reduzido a um intensificado centra lismo ditatorial e a um regime de repressão das nacionalidades subme tidas ao império47 A derrota da Primeira Guerra dos Bálcãs e a desin tegração após a Primeira Guerra Mundial marcaram o seu fim ignomi nioso Durante os últimos séculos de sua existência o Estado otomano 46 H Inalcik Land Problems in turkish history The Moslem World XLV 1955 pp 2267 Inalcik comenta que os conceitos jurídicos ocidentais só foram plena mente aplicados à propriedade fundiária sem condições ou ressalvas em 1926 pela primeira vez 47 Até o mais indulgente dos estudos recentes sobre os Jovens Turcos e seu regime conclui que este foi incapaz de criar qualquer instituição nova limitandose a explorar os mecanismos tradicionais de dominação em proveito próprio Feroz Ahmed The Young Turks Oxford 1969 pp 1645 390 PERRY ANDERSON sofreu então subtrações e modificações mas nunca adquiriu um novo impulso social O antigo vigor inicial simplesmente se tornou cada vez mais distorcido e debilitado A reforma negativa voltada contra os abusos era por natureza incapaz de desembocar numa reconstrução positiva do império seja sob a forma de um novo sistema político seja pela restauração do antigo O feudalismo não presidiu à formação do Império Otomano o absolutismo não participou de seu declínio Igual mente fúteis foram as tentativas das potências européias para ali nhar a Porta pelas normas institucionais vigentes em Viena São Pe tersburgo e Paris era um outro universo Das abortadas reformas de Mahmud II e da época tanzimat a que se seguiriam a reação hami diana e o fiasco dos Jovens Turcos não resultou um neodespotismo turco nem um absolutismo oriental nem naturalmente um parlamen tarismo de tipo ocidental O nascimento de uma nova forma de Estado teve de esperar até que a preservação diplomática das relíquias da an tiga chegasse a seu fim com o conflito internacional da Primeira Guer ra Mundial que finalmente libertou de sua miséria o reino osmanli Os Bálcãs porém foram libertados da dominação otomana antes do dénoument da própria Turquia À medida que todo o sistema oto mano ia sendo expulso país após país a partir do início do século XIX um inesperado sistema agrário aparecia na península distinto dos pa drões em vigor tanto na Europa oriental como na ocidental A Romê nia uma terra de ninguém historicamente tardia situada entre os tipos de desenvolvimento regional dos Bálcãs e das regiões do alémElba passou pela mais estranha das guinadas sofridas pelos novos países surgidos depois de 1815 Com efeito tornouse o único país da Europa onde terminado o período da primeira servidão ocorreu uma efe tiva segunda servidão indubitavelmente determinada pelo comércio do trigo Como vimos os territórios romenos tinham sido deixados à sua própria classe boiarda pelo Estado otomano quando este os inva diu no século XVI A formação de uma sociedade rural estratifiçada com uma nobreza senhorial e um campesinato submetido à servidão tinha caráter recente devido ao papel acentuadamente retardatário de sempenhado nessa região pelo domínio nômade predatório que só de sapareceu com a expulsão gradual dos cumanes e dos tártaros no século XIII48 Até o século XIV era comum a propriedade comunal aldeâ e só 48 As origens históricas da formação social romena no final da Idade Média estão compiladas em H H Síahl Lês Anciennes Communautés Villageoises Roumaines Asservissement et Pénétration Capitaiiste Bucareste 1969 pp 2545 uma obra notável que lança luz sobre muitos aspectos do desenvolvimento social da Europa oriental LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 391 com a formação dos principados da Moldávia e da Valáquia no século XV tomou forma uma aristocracia fundiária que a princípio explorava os produtores rurais mais através dos impostos que sob o modelo feu dal à maneira dos nômades turcos que a instruíram49 A breve unifi cação dos dois Estados sob Miguel I no final do século XVI assinalou a generalizada adscrição ao solo do campesinato romeno A partir daí a servidão se consolidou sob a suserania otomana No século XVIII a Porta confiou a administração dessas províncias a famílias de gregos fanariotas provenientes de Istambul que vieram a constituir uma di nastia dominante intermediária dos chamados hospodares nesses prin cipados onde a coleta de impostos e o comércio eram já controlados por gregos expatriados O senhorialismo boiardo era agora cada vez mais fustigado pela resistência camponesa sob a forma caracteristicamente oriental dos grandes êxodos de camponeses em fuga aos impostos e tributos Ofi ciais austríacos ansiosos por consolidar os recémconquistados territó rios fronteiriços Habsburgo no sudeste da Europa ofereciam intencio nalmente aos refugiados romenos o asilo ansiado atrás das fronteiras50 Seriamente preocupado com a deteriorada situação do trabalho nos principados o sultão ordenou em 1744 a um dos hospodares Constan tino Mavrokordatos a sua pacificação e repovoamento Influenciado pelo iluminismo europeu Mavrokordatos decretou a abolição gradual dos vínculos servis tanto na Valáquia 1746 como na Moldávia 1749 garantindo a todo camponês o direito de comprar a sua emancipação51 uma medida facilitada pela inexistência de uma categoria jurídica equivalente à servidão nas províncias do império sob administração turca Não houve nesse século exportação de cereais porque a Porta detinha um monopólio comercial de Estado e limitavase a enviar para Istambul um tributo em espécie No entanto o Tratado de Adrianopla em 1829 que deu à Rússia uma virtual cosuserania sobre a Romênia revogou o controle muçulmano sobre as exportações O resultado foi um súbito e espetacular surto dos cereais ao longo da bacia do Danú bio Com efeito em meados do século XIX o advento da revolução 49 Encontrase uma meticulosa periodização de todo o processo em Stahl op cípp 16389 50 W H MacNeffl Europes Steppe Frontier 15001800 Chicago 1964 p 204 51 Para uma abordagem dos decretos sobre a emancipação dos servos e a reação boiarda a eles ver A Otetea Lê second asservissement dês paysans roumains 1746 i821YNouveliesÉludesdHistoire I Bucareste 1955 pp 299312 392 PERRY ANDERSON industrial no ocidente da Europa criara um mercado mundial capita lista de tipo desconhecido nos séculos XVI e XVII com uma vitalidade capaz de transformar em poucas décadas regiões atrasadas do ponto de vista agrícola A produção de grãos dos principados romenos dupli cou entre 1829 e 1832 e o valor das exportações dobrou de 1831 a 1833 Á superfície das terras voltadas para o cultivo de cereais efetivamente decuplicou no espaço de uma década de 1830 a 184052 A força de trabalho para um crescimento deste quilate foi obtida mediante a reim posição das obrigações servis sobre o campesinato romeno e a intensi ficação das prestações de serviços a níveis superiores aos que vigoravam antes dos decretos de Mavrokordatos no século anterior De tal modo o único exemplo europeu de autêntica segunda servidão foi obra do capitalismo industrial não mercantil e só podia ser assim Aí se tor nara possível uma causalidade intereconômica direta e maciça que operava em toda a extensão do continente o que não fora possível dois ou três séculos atrás O campesinato romeno continuou desvalorizado e ávido de terras depois disso em condições muito semelhantes às dos camponeses russos As limitações servis foram mais uma vez abolidas por uma reforma em 1864 diretamente inspirada na proclamação cza rista de 1861 como na Rússia o campo permaneceu sob o domínio de senhores feudais até a Primeira Guerra Mundial A Romênia contudo foi a exceção dos Bálcãs Em quase toda a parte ocorreu um processo quase oposto Com efeito na Croácia na Sérvia na Bulgária e na Grécia as aristocracias locais tinham sido varridas pela conquista otomana as terras diretamente anexadas ao sultanato e ocupantes turcos transferidos para elas por volta do sé culo XIX principalmente a poderosa e parasitária classe dos notáveis locais ayan Sucessivas revoltas nacionais e guerras de libertação aca baram por expulsar os exércitos turcos da Sérvia 18041913 da Gré cia 18211913 e da Bulgária 18751913 A conquista da indepen dência política por esses países foi nessas condições automaticamente acompanhada por uma convulsão econômica no campo Os senhores de terra turcos lógica e compreensivelmente levantaram acampa mento junto com as tropas que os protegiam abandonando os seus do mínios aos camponeses que os cultivavam Tal processo variou conside ravelmente conforme a duração da luta pela independência Onde esta foi lenta e prolongada como na Sérvia e na Grécia houve mais tempo 52 A Otetea Lê second servage dans lês principautés danubiennes Nouvel lês Études áffistoire II Bucareste 1960 p 333 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTÍSTA 393 para que durante a luta se formasse e expandisse um estrato de pro prietários rurais nativos que nas fases finais apropriouse diretamente dos chifliks as famílias gregas abastadas por exemplo adquiriram muitos domínios turcos intatos na Tessália quando esta foi obtida à Porta em 1881M Na Bulgária por outro lado o ritmo mais violento e rápido da luta pela independência abriu muito menos possibilidades a tais transferências Mas nos três países a economia rural que acabou por se consolidar era muito semelhante54 Uma vez independentes a Bulgária a Grécia e a Sérvia tornaramse essencialmente países de pe quenos proprietários camponeses numa época em que a Prússia a Polônia a Hungria e a Rússia eram ainda territórios do latifúndio no biliário Naturalmente a exploração rural não chegou ao fim nos Es tados independentes os usurários comerciantes e funcionários repu seramna sob novas formas Mas o regime agrário básico dos Bálcãs continuava a se fundamentar na pequena produção em meio à cres cente superpopulação parcelamento das posses e endividamento das aldeias A recessão do domínio turco significou o término da proprie dade senhorial tradicional Toda a Europa oriental sofreu um retarda mento social e econômico na virada do século XX que a separou da Europa ocidental Mas o Sudeste permaneceu dentro dela como uma península à parte 53 Stavrianos TheBalkanssince 1453 pp 4789 54 A Albânia constitui um caso distinto devido à islamizacão da maioria da população sujeita ao domínio otomano e à preservação dos padrões sociais tribais nas montanhas Era tradicional o recrutamento de albaneses para o aparelho de Estado osmanli a reação hamidiana confiou fundamentalmente em sua lealdade Assim os notáveis muçulmanos locais optaram pela independência apenas no último momento em 1912 quando já era óbvio que o poder turco estava extinto nos Bálcãs Em conseqüência D senhorialismo mantevese intato até o final do domínio otomano o tribalimo alpino que caracterizou a maior parte do país por outro lado limitou inevitavelmente a agri cultura de grande propriedade Conclusões Ocupante do sudeste da Europa por quinhentos anos o Estado otomano instalouse no continente sem nunca ter adotado o seu sistema social ou político Sempre permaneceu quase como um estranho para a cultura européia um intruso islâmico na cristandade que coloca até hoje problemas insolúveis para a sua apresentação em uma história unitária do continente Na verdade a longa e íntima presença em solo europeu de uma formação social e de uma estrutura de Estado tão diferentes do padrão predominante na região proporcionou um modelo apropriado frente ao qual é possível afirmar a especificidade histórica da sociedade européia antes do advento do capitalismo industrial Realmente desde a Renascença os pensadores políticos europeus da época do absolutismo procuraram repetidas vezes definir o caráter do seu próprio mundo por oposição à ordem turca tão próxima e no en tanto tão remota nenhum deles reduziu à distância simples ou princi palmente a uma questão de religião Maquiavel na Itália do início do século XVI foi o primeiro teó rico a tomar o Estado otomano como antítese de uma monarquia euro péia Em duas passagens centrais de O Príncipe ele distingue a buro cracia autocrática da Porta como uma ordem institucional que a sepa rava do resto da Europa Todo o império turco é governado por um senhor e todos os outros são seus escravos divide o seu reino em sand jaks e para cada um envia governadores transfereos e trocaos ao seu belprazer todos são escravos ligados a ele1 Acrescentava ainda 1 IIPríncipe e Discorsi pp 267 398 PERRY ANDERSON que o tipo de exército permanente à disposição dos monarcas osmanli era algo de desconhecido na Europa daquela época O príncipe dos nossos dias não tem exércitos estabelecidos nas províncias há tanto tempo como os governos e as administrações que os acompanham O GrãoTurco é uma exceção porque controla um exército perma nente de 12 mil infantes e 15 mil cavaleiros dos quais depende a segu rança e a força de seu reino o princípio supremo de seu poder é a manutenção de sua lealdade2 Tais reflexões como muito bem salien tou Chabod constituem uma das primeiras abordagens implícitas para uma autodefinição de Europa3 Sessenta anos mais tarde nos ester tores das Guerras Religiosas na França Bodin desenvolveu o contraste político entre monarquias limitadas pelo respeito às pessoas e aos bens de seus súditos e impérios com domínio irrestrito sobre eles as primei ras representavam a soberania real dos Estados europeus os segun dos o poder senhorial de despotismos como o Estado otomano es sencialmente estranhos à Europa O rei dos turcos é chamado de Grand Seignior não tanto pela extensão de seu reino pois o do Rei Católico é dez vezes maior mas unicamente por ser senhor completo das pessoas e dos bens Só os servidores educados e criados na sua casa se chamam escravos Mas os timariots a quem estão atados os outros súditos só são investidos com seus timars através de seu consentimento explícito os seus contratos têm que ser renovados de dez em dez anos e se morrerem os herdeiros só levam os bens móveis No resto da Europa e nos reinos da Barbárie não há monarquias senhoriais Os povos da Europa mais orgulhosos e guerreiros que os da Ásia ou da África nunca toleraram ou conheceram uma monarquia senhorial desde o tempo das invasões húngaras4 Na Inglaterra do início do século XV11 Bacon sublinhava que a distinção entre os sistemas turco e euro peu era a total ausência de uma aristocracia hereditária no reino oto mano Uma monarquia onde não há nobreza é sempre uma tirania pura e absoluta como a dos turcos Porque a nobreza tempera a sobe rania e desvia de algum modo os olhos do povo da linhagem real2 Duas décadas depois após a derrubada da monarquia Stuart o repu 2 Príncipe e Discorsi pp 834 3 F Chabod Storia dellldea dEuropa Bari 1964 pp 4852 4 Lês Six Livres de La Republique pp 2012 Os pensadores europeus dessa época tinham visível dificuldade em encontrar uma terminologia para discutir as peculia ridades do Estado otomano Daí o título curiosamente inapropriado de Grand Sei gnior aplicado ao sultão A noção de despotismo mais tarde empregada relativa mente à Turquia foi um neologismo do século XVLII 5 The Essays or Conseils Civil and Moral Londres 1632 p 72 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 399 blicano Harrington deslocava o fulcro da diferença para os fundamen tos econômicos do Império Otomano como a linha divisória essencial entre os Estados turco e europeus o monopólio jurídico do sultão sobre a propriedade da terra era a verdadeira marca registrada da Porta Se um só homem é senhor de um território ou excede o povo por exem plo três partes em quatro ele é um Grand Seignior e assim é cha mado o GrãoTurco por suas propriedades e o seu império é uma mo narquia absoluta posto que na Turquia é ilegal alguém que não o Grand Seignior possuir terra6 Pelo final do século XVII o poder do Estado otomano já ultra passara o seu apogeu e o tom 4os comentários a seu respeito alterouse perceptivelmente Pela primeira vez o tema da superioridade histórica da Europa passou a ocupar um lugar central na discussão do sistema turco ao passo que os defeitos deste eram generalizados para todos os grandes impérios da Ãsia Foi o médico francês Bernier que deu este novo passo de forma decisiva Bernier viajando através dos reinos turco persa e mongol tornarase o médico pessoal do imperador Au rangzeb da índia No seu regresso à França descreveu a índia mongol como uma versão ainda mais extrema da Turquia otomana a base da desoladora tirania relatava era a ausência da propriedade privada da terra cujos efeitos ilustrava por comparação aos risonhos campos go vernados por Luís XIV Como são insignificantes a riqueza e o poder do Estado do GrãoTurco em comparação com as suas vantagens natu rais Vamos apenas supor que país rico e populoso seria se o direito de propriedade privada fosse lá conhecido e é impossível duvidar que po deria manter exércitos tão poderosos como outrora Viajei por todas as partes do império e presenciei o modo incrível como se encontra arrui nado e despovoado Direi portanto que tirar aos particulares o direito da propriedade da terra é introduzir ao mesmo tempo como conseqüência infalível a tirania a escravatura a injustiça a mendi cância e a barbárie a terra deixará de ser cultivada e se transformará em deserto estará aberto o caminho para a destruição das nações a ruína dos reis e dos Estados A esperança que anima o homem é de que possa reter os frutos de sua indústria e transmitilos a seus descenden tes e este é o fundamento principal do que há de belo e de bom neste mundo de forma que se passamos os olhos pelos diferentes reinos do globo veremos que eles prosperam ou declinam de acordo com o res peito ou a condenação da propriedade em uma palavra é a predomi 6 The Commonwealth ofOceana Londres 1658 pp 4 5 400 PERRY ANDERSON nância ou descaso por este princípio o que muda e diversifica a face da terra A mordaz narrativa de Bernier sobre o Oriente exerceu uma profunda influência sobre as subseqüentes gerações de pensadores du rante o iluminismo No inicio do século XVIII fazia eco à mesma des crição do Estado turco de forma bastante próxima O Grand Seignior doa a maior parte das terras aos seus soldados e dispõe delas segundo a sua fantasia apoderase de todas as heranças dos oficiais do império quando um súdito morre sem deixar filhos varões as filhas são deixa das apenas com o usufruto dos bens pois o monarca turco adquire a propriedade daí resulta que a posse da maior parte dos bens na socie dade é precária De todos os governos despóticos nenhum oprime mais que aquele cujo príncipe se declara proprietário de todas as terras e o herdeiro de todos os súditos A conseqüência é sempre o abandono dos cultivos e se o príncipe interfere no comércio a ruína de toda a indústria8 Nessa época evidentemente a expansão colonial européia tinha explorado e atravessado quase todo o globo e o escopo das noções polí ticas outrora derivadas do encontro específico com o Estado otomano nos Bálcãs fora agora estendido concomitantemente até os confins da China e além dela De tal modo a obra de Montesquieu incorporava pela primeira vez em De 1Esprit dês Lois uma teoria comparada da quilo que categoricamente denominava despotismo como uma for ma geral de governo extraeuropéia cuja estrutura era totalmente oposta aos princípios nascidos do feudalismo europeu A generali dade do conceito continha apesar disso uma denotação geográfica tradicional explicada pela influência do clima e da geografia A Ãsia é a região do mundo onde o despotismo está por assim dizer naturali zado9 Legada pelo iluminismo os destinos da noção de despotismo oriental no século XIX são famosos e não nos interessam aqui10 será suficiente dizer que a partir de Hegel conservouse o cerne das mes mas concepções básicas sobre a sociedade asiática cuja função intelec tual foi sempre a de estabelecer um contraste radical entre a história européia cuja especificidade Montesquieu localizara originalmente no 7 Traveis in tke Mogul Empire traduzido por Archibald Constable reedição Oxford 1934 pp 234 238 Para o original ver François Bernier Voyages I Amster dam 1710 pp 313 31920 8 De 1Esprit dês Lois I pp 667 9 Idemp6S 10 São analisadas no apêndice sobre O modo de produção asiático pp adiante LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 401 feudalismo e cuja descendência moderna ele discernira no absolutismo e o destino dos outros continentes Em nosso século teóricos marxistas persuadidos das sucessivas fases do desenvolvimento sócioeconômico registradas na Europa têm afirmado ao contrário que o feudalismo foi um fenômeno de dimen são mundial que abrangeu tanto os Estados africanos e asiáticos como os europeus Reconheceuse e estudouse o feudalismo otomano egíp cio marroquino persa hindu mongol ou chinês A reação política contra as ideologias imperialistas da superioridade européia conduziu a uma extensão intelectual dos conceitos historiográficos derivados do passado de um continente para explicar a evolução de outros ou de todos Nenhum outro termo sofreu uma difusão tão penetrante e indis criminada como o conceito de feudalismo que muitas vezes na prá tica tem sido aplicado a qualquer formação social situada entre os pólos de identidade tribal e capitalista não marcada pelo escravismo O modo de produção feudal é assim definido como a combinação da grande propriedade da terra com a pequena produção camponesa onde a classe exploradora extrai um excedente ao produtor imediato pelas formas costumeiras de coerção extraeconômica corvéias pres tações em espécie ou rendas em dinheiro e onde a troca de merca dorias e a mobilidade do trabalho são correspondentemente restritasn Apresentase este complexo como o núcleo econômico do feudalismo que pode subsistir dentro de um amplo leque de formas políticas alter nativas Em outras palavras os sistemas jurídicos e constitucionais tor namse elaborações facultativas e externas a um centro produtivo inva riável As superestruturas políticas e jurídicas são separadas da infra estrutura econômica que constitui por si só o verdadeiro modo de produção feudal Nesta perspectiva hoje difundida entre os teóricos marxistas o tipo de propriedade agrária a natureza da classe possui dora e a matriz do Estado podem variar enormemente sobre uma or dem rural comum que constitui a base de toda a formação social Em particular a soberania parcelada a hierarquia de vassalagem e o sis 11 Será suficiente um único exemplo para definir a formação social otomana de que nos ocupamos especificamente aqui Desenvolveramse entre os otomanos as rela ções de produção de tipo puramente feudal A preponderância da pequena economia camponesa o predomínio da agricultura sobre o artesanato e do campo sobre a cidade D monopólio da propriedade fundiária por uma minoria a apropriação do sobretrabalho camponês pela classe dominante todas essas marcas registradas do modo de produçã0 feudal podem ser encontradas na sociedade otomana Ernst Werner Die Geburt einer jrossmacht die Osmanen p 305 Esta passagem é corretamente criticada por Ernst Mandei The Formaíion of the Economic Thought of Karl Marx Londres 1971 p 127 402 PERRY ANDERSON tema de feudos da Europa medieval deixam de ser sob qualquer as pecto características originais ou essenciais do feudalismo A sua com pleta ausência é compatível com a presença de uma formação social feudal desde que se verifique a combinação de exploração agrária de grande escala e a produção camponesa baseada em relações extraeco nomicas de coerção e dependência De tal modo a China Ming a Tur quia seldjúcida a Mongólia de Gêngis Khan a Pérsia safávida a índia mongol o Egito tulúnida a Síria umaída o Marrocos almorávida e a Arábia wahabita todos passam a ser passíveis de serem classificados como feudais ao lado da França capetíngia da Inglaterra normanda e da Alemanha Hohenstaufen Ao longo desta pesquisa encontramos três exemplos representativos desta categorização como vimos as confede rações nômades dos tártaros o Império Bizantino e o sultanato oto mano foram todos eles designados Estados feudais por teóricos quali ficados de suas respectivas histórias12 com o argumento de que as evi dentes divergências superestruturais em relação às normas ocidentais ocultam uma convergência subjacente de relações de produção infra estruturais O privilégio do desenvolvimento ocidental tende assim a desaparecer no processo multiforme de uma história mundial secreta mente una desde seu princípio O feudalismo nesta versão da historio grafia materialista tornase um oceano de absolvição no qual quase todas as sociedades podem receber o batismo A invalidade científica deste ecumenismo teórico fica demons trada pelo paradoxo lógico que dele resulta Com efeito se o modo de produção feudal pode ser definido independentemente das variáveis superestruturas jurídicas e políticas que o acompanham de tal modo que a sua presença pode registrarse em todo o globo onde quer que as formações sociais primitivas e tribais tenham sido superadas coloca se então a questão como explicar o dinamismo excepcional do teatro europeu do feudalismo internacional Nenhum historiador afirmou ainda que o capitalismo industrial se desenvolveu espontaneamente em qualquer outro lugar fora da Europa e da sua extensão americana que precisamente então conquistava o resto do mundo em virtude do seu primado econômico bloqueando ou implantando o modo de produção capitalista em outros países de acordo com as necessidades e tendên cias de seu próprio sistema imperial Se existia uma base econômica comum ao feudalismo de toda essa massa territorial desde o Atlântico 12 Ver acima pp 3867 Passages fram Antiquity to Feudalistn pp 21922 2823 ed portuguesa Afrontamento 1982 pp 23447 3134 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 403 até o Pacífico apenas dividida pelas formas jurídicas e constitucionais e no entanto só uma região produziu a revolução industrial que levaria em última análise à transformação de todas as sociedades do mundo a determinante deste sucesso transcendente deve ser procurada nas su perestruturas políticas e jurídicas únicas que as diferenciam As leis e os Estados desqualificados como secundários e insubstanciais reapa recem com ímpeto como autores aparentes da mais significativa rup tura da história moderna Em outras palavras uma vez que toda a estrutura da soberania e da legitimidade é dissociada da economia de um feudalismo universal é paradoxalmente o seu fantasma que go verna o mundo pois ele se torna o único princípio capaz de explicar o desenvolvimento diferencial de todo o modo de produção A própria onipresença do feudalismo que reside nesta concepção reduz o destino dos continentes ao jogo superficial dos meros costumes locais Um ma terialismo daltônico incapaz de apreciar a verdadeira riqueza de grada ções do espectro de totalidades sociais diversas dentro do mesmo corte temporal da história termina inevitavelmente num idealismo perverso E óbvio mas pouco notado que a solução para o paradoxo está na própria definição dada por Marx às formações sociais précapita listas Nas sociedades de classes anteriores ao capitalismo todos os modos de produção extraem sobretrabalho dos produtores imediatos através de meios de coerção extraeconômica O capitalismo é o pri meiro modo de produção na história em que os meios pelos quais o excedente é extraído do produtor direto têm forma puramente eco nômica o contrato salarial a toca de equivalentes entre duas partes livres que reproduz dia a dia e hora a hora a desigualdade e a opres são Todos os modos de produção anteriores operam através de sanções extraeconômicas de parentesco consuetudinárias religiosas jurí dicas ou políticas Portanto é sempre impossível por princípio inter pretálas a partir das simples relações econômicas As superestrutu ras do parentesco da religião do direito ou do Estado fazem parte necessariamente da estrutura constitutiva do modo de produção nas formações sociais précapitalistas Intervém diretamente sobre o nexo interno da extração de excedente ao passo que nas formações sociais capitalistas que pela primeira vez na história separam a economia como uma ordem formalmente autônoma elas constituem em con traste as suas precondições externas Em conseqüência os modos de produção précapitalistas não podem ser definidos exceto por suas superestruturas políticas jurídicas e ideológicas uma vez que são estas que determinam o tipo de coerção extraeconômica que lhes é especí fico As formas jurídicas precisas de dependência de propriedade e de 404 PERRY ANDERSON soberania que caracterizam uma formação social précapitalista longe de serem apenas epifenômenos acessórios ou contingentes constituem pelo contrário os índices principais do modo de produção determinado nelas dominantes Portanto uma taxonomia escrupulosa e exata des sas configurações jurídicas e políticas é um pressuposto para a elabo ração de qualquer tipologia abrangente dos modos de produção pré capitalistas13 De fato é evidente que a complexa imbrícação de explo ração econômica com instituições e ideologias extraeconômicas cria uma gama muito mais vasta de modos de produção possíveis antes do capitalismo do que é possível deduzir da generalidade relativamente simples e maciça do próprio modo de produção capitalista que acabou por ser na época do imperialismo industrial o seu terminus ad quem comum e involuntário Ê preciso portanto resistir às tentações a priori de préalinhar os primeiros pela uniformidade do último A possibilidade de uma plura lidade de modos de produção précapitalistas posteriores ao tribalismo e nãoescravistas é inerente ao seu mecanismo de extração de exceden tes Os produtores imediatos e os meios de produção incluindo tanto os instrumentos como os objetos de trabalho por exemplo a terra são sempre dominados pela classe exploradora através do sistema de propriedade em vigor intersecção nodal entre direito e economia Mas como as relações de propriedade por sua vez se articulam diretamente na ordem política e ideológica que de fato muitas vezes rege ex pressamente a sua distribuição por exemplo confinando a proprie dade da terra aos aristocratas ou excluindo a nobreza do comércio o aparelho total de exploração ascende sempre à esfera das próprias superestruturas As relações sociais em sua totalidade formam o que agora se designa por propriedade escrevia Marx a Annenkov14 Isso não significa que a propriedade jurídica propriamente dita passe a ser uma mera ficção ou ilusão passível de ser abandonada ou dissipada através de uma análise direta da infraestrutura econômica em que se 13 Esta necessidade fundamental foi claramente percebida pelo historiador so viético Zelin em seu notável ensaio Printsipy Morfologicheskoi Klassifikatsii Form Zavisimosti em K K ZeFin e M V Trofimova Formy Zavisimosti v Vostochnom Sre dizemnomore Ellenisticheskovo Período Moscou 1969 pp 1151 especialmente 29 33 O texto de ZelÍn contém uma crítica das antinomias presentes nas análises conven cionais sobre o feudalismo feitas por marxistas o que fundamentalmente o preocupa é uma definição mais rigorosa das formas de dependência nem feudais nem escravista j que caracterizaram o mundo helenístico 14 MarxEngels Selected Correspondence p 38 retraduzido Para uma edi ção brasileira ver MarxEngels Editora Âtica 1983 p 435 Org Florestan Fernandes LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 405 assenta procedimento que conduz diretamente ao colapso lógico já indicado Ao contrário significa que para o materialismo histórico a propriedade jurídica nunca pode ser separada seja da produção econô mica seja do poder políticoideológico a sua posição absolutamente central dentro de qualquer modo de produção decorre da sua vincula ção com ambos que nas formações sociais précapitalistas tornase uma fusão direta e oficial Não é portanto por acaso que Marx dedicou a quasetotalidade de seu crucial manuscrito sobre as sociedades pré capitalistas nos Grundrisse o seu único trabalho de comparação teó rica sistemática entre diferentes modos de produção a uma profunda análise dasormos de propriedade agrária em modos de produção su cessivos ou contemporâneos na Europa Ãsia e América O fio condutor de todo o texto é a mudança no caráter e na posição da propriedade fundiária e as suas relações interligadas com os sistemas políticos do tribalismo primitivo ao limiar do capitalismo Já vimos que Marx ao contrário dos autores marxistas posterio res distingue especificamente o pastoreio nômade de todas as formas de agricultura sedentária como um modo de produção distinto ba seado na propriedade coletiva da riqueza imóvel terra e na proprie dade individual da riqueza móvel rebanhos15 Assim não surpreende que Marx enfatize como um dos traços fundamentais definidores do feudalismo a propriedade privada nobiliâria da terra Neste aspecto são especialmente relevantes os seus comentários sobre o estudo de Ko valevsky relativo à dissolução da propriedade comunal aldeã Kova levsky um jovem historiador russo admirador e correspondente de Marx dedicou uma parte substancial de sua obra ao que ele afirmava ser o lento surgimento do feudalismo na índia após as conquistas mu çulmanas Não desprezou as diferenças políticas e jurídicas entre os sistemas agrários mongol e europeu como elementos sem importância e admitia que a persistência jurídica da propriedade imperial exclusiva da terra conduziu a uma intensidade menor de feudalização na ín dia em relação à Europa No entanto defendia que na realidade um vasto sistema de feudos com toda uma hierarquia de subenfeuda mento evoluíra para um feudalismo indiano antes que a conquista bri tânica viesse a interromper a sua consolidação16 Embora o estudo de Kovalevsky fosse em grande medida influenciado pela obra de Marx e o 15 Ver Passages from Antiquity to Feudalism p 220 edição portuguesa pp 2445 16 M Kovalevsky Obshchinnoe Zemleviadenie Prichiny Khod i Posledstviya vttnnykh Rukopisei Karla Maksa Sovetskoe Vostokovedenie n 5 1968 p 12 As ano 406 PERRY ANDERSON tom de suas anotações inéditas no exemplar que o teórico russo lhe enviara fosse de modo geral benevolente é significativo que Marx cri tique repetidas vezes as passagens em que Kovalevsky assimila as insti tuições sócioeconômicas indianas ou islâmicas às do feudalismo euro peu Na mais vigorosa e elucidativa dessas intervenções Marx rejeita a atribuição de um modo de produção feudal à índia mongol Com base na constatação da existência na índia do sistema de benefícios da Venda de cargos que de resto não é puramente feudal como o prova Roma e da commendatio Kovalevsky vê aí um feudalismo no sentido da Europa ocidental Kovalevsky esquece entre outras coisas que a servidão que representa um elemento importante no feudalismo não existia na índia Além disso no que se refere ao papel individual dos senhores feudais exercendo as funções de condes enquanto prote tores não apenas de camponeses nãolivres mas de camponeses livres cf Palgrave também este fator desempenha um papel insignificante na índia excetuandose os waqfs Tampouco encontramos na índia mais do que em Roma essa poesia da terra Bodenpoesie tão carac terística do feudalismo romanogermânico cf Maurer Na índia a terra nunca é nobre no sentido por exemplo de ser inalienável aos plebeus Por outro lado o próprio Kovalevsky vê uma diferença funda mental a ausência de justiça patrimonial no campo do direito civil no império do Grande Mongol Em outra passagem Marx refuta par ticularmente a afirmação de Kovalevsky de que a conquista da índia pelos muçulmanos ao impor ao campesinato o imposto islâmico sobre a terra ou kharaj converteu em feudal a propriedade alodial O pa gamento do kharaj não transformou as suas terras em propriedade feu dal tal como o impôtfoncier não tornou feudal a propriedade fundiá ria dos franceses Aqui todas as descrições de Kovalevsky são absolu tamente inúteis18 Também a natureza do Estado era diversa da dos principados feudais da Europa Pela lei hindu o poder político não estava sujeito à divisão entre os herdeiros desse modo estava afastada u 19 uma importante fonte do feudalismo europeu 17 Materialy Instituta MarksizmaLeninizma pri Tsk KPSS Iz Neopubliko vannykh Rukopisei Karla Maksa Sovetskoe Vostokovedenie n 5 1968 p 12 As ano tações de Marx a Kovalevsky só foram publicadas na Rússia em Sovetskoe Vostokove denie 1958 n 3 pp 413 n 4 pp 322 n 5 pp 328 Problemy Vostokovedenie 1959 n l pp 317 Há uma introdução aos manuscritos por L S Gamayunov em Sovetskoe Vostokovedenie 1958 n 2 pp 3545 18 Sovetskoe Vostokovedenie 1958 n 4 p 18 19 Sovetskoe Vostokovedenie 1958 n 5 p 6 Notese ainda a crítica que Marx faz a Kovalevsky por descrever as colônias militares turcas na Argélia como feudais por LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 407 Essas importantes passagens mostram nitidamente que o próprio Marx estava consciente dos riscos de uma extensão promíscua do rótulo de feudalismo fora da Europa e recusavase a aceitar a índia do sulta nato de Délhi ou o Império Mongol como uma formação social feudal As suas anotações marginais revelam além disso uma extrema perspi cácia e sensibilidade justamente com relação a essas formas superes truturais cuja irredutível importância para a classificação dos modos de produção précapitalistas acabamos de salientar Assim suas obje cões contra a caracterização da sociedade agrária hindu após a con quista islâmica como feudal feita por Kovalevsky abarcam pratica mente toda a gama dos campos jurídico político social militar judi cial fiscal e ideológico Sem exagerar o seu alcance poderiam talvez ser sintetizadas do seguinte modo o feudalismo envolve caracteristi camente a servidão jurídica e a proteção militar do campesinato por uma classe social de nobres que gozam de autoridade e propriedade individual e exercem um monopólio exclusivo sobre a lei e os direitos privados de justiça no seio de uma estrutura jurídica de soberania fragmentada e de fisco subordinado e uma ideologia aristocrática de exaltação da vida rural Veremos em breve quão remoto fica este inven tário heurístico exaustivo das poucas e simples etiquetas tantas vezes utilizadas para rotular de feudal uma formação social Voltando ao nosso ponto de partida inicial não restam dúvidas de que a visão de feudalismo de Marx nesta definição condensada exclui o sultanato turco de seu âmbito um Estado que de fato foi em muitos aspec tos a inspiração e o modelo da índia mongol Tinha portanto bom fundamento o contraste tão intensamente sentido pelos contemporâneos entre as formas históricas européias e otomanas A ordem sóciopolítica turca era radicalmente distinta da quela que caracterizou o conjunto da Europa tanto nas regiões ociden tais como nas orientais do continente O feudalismo europeu não tinha de fato equivalentes em nenhuma das zonas geográficas que com ele confinavam na remota extremidade ocidental da massa territorial eu rasiana ele constituía um caso solitário O primitivo modo de produ ção feudal que triunfou durante o início da Idade Média nunca foi simplesmente composto de um conjunto elementar de índices econômi cos A servidão configurava naturalmente o fundamento primário de todo o sistema de extração de excedentes Mas a combinação da grande analogia com exemplos hindus Kovalevsky batizaas como feudais com o frágil funda mento de que sob certas condições poderia desenvolverse a partir delas algo semelhante iojagir hindu Problemy Vostokovedenie 1959 n l p 7 408 PERRY ANDERSON propriedade agrária controlada por uma classe exploradora com a pe quena produção de um campesinato submetido onde o sobretrabalho era extraído a este último mediante corvées ou tributos em espécie era em seus aspectos gerais um padrão muito difundido em todo o mundo préindustrial Quase todas as formações sociais póstribais que não se baseavam no escravismo ou no nomadismo revelavam neste sentido formas de senhorialismo A singularidade do feudalismo nunca se es gotou na simples existência de classes senhoriais e servis20 Foi a sua organização específica num sistema verticalmente articulado de sobe rania parcelar e de propriedade escalonada que distinguia o modo de produção feudal na Europa É este nexo concreto que define o tipo preciso de coerção extraeconômica exercido sobre o produtor direto A fusão de vassalagembenefícioimunidade produzindo o sistema de feudo propriamente dito criou um padrão absolutamente sui generis de suserania e dependência na expressão de Marx A peculiaridade de tal sistema reside no caráter dual da relação que se estabelece por um lado entre produtores diretos e o estrato de nãoprodutores que se apropriam de seu sobretrabalho e por outro no seio da própria classe exploradora dos nãoprodutores Com efeito em sua essência o feudo era uma concessão econômica de terra condicionada ao de sempenho de serviço militar e investida de direitos judiciais sobre o campesinato que a cultivava Conseqüentemente foi sempre uma amálgama de propriedade e soberania na qual a natureza parcial de uma era compensada pelo caráter privado da outra a posse condicio nal estava estruturalmente vinculada à jurisdição individual A diluição original da propriedade absoluta da terra foi portanto complementar pela fragmentação da autoridade pública numa hierarquia escalonada Ao nível da própria aldeia o resultado foi o surgimento de uma classe de nobres que gozava de direitos pessoais de exploração e jurisdição consagrados pela lei sobre camponeses dependentes Era inerente a esta configuração a residência rural da classe pos suidora em oposição à localização urbana das aristocracias da anti güidade clássica o exercício da proteção e da justiça senhoriais pres supunha a presença da nobreza feudal no campo simbolizada pelos castelos do período medieval e mais tarde idealizada na poesia da terra da época subseqüente O poder e a propriedade individuais 20 Para uma crítica particularmente lúcida e enérgica dos empregos abusivos do termo feudalismo nesta e em outras formas ver Claude Cahen Réflexions sur 1usage du mot féodalité The Journal of the Economic and Social History of the Orient III 19601 pp 720 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 409 marca característica da classe feudal na paisagem agrária podiam conseqüentemente fazerse acompanhar de um papel organizativo na própria produção cuja forma típica na Europa era o domínio senho rial A divisão da propriedade dominial em reserva do senhor e coirelas camponesas reproduzia na base como vimos a articulação econômica escalonada característica do sistema feudal como um todo No nível superior o predomínio do feudo estabelecia vínculos internos de cará ter único no seio da nobreza Com efeito a combinação de vassalagem benefício e imunidade num único conjunto criava uma mistura ambi valente de reciprocidade contratual e subordinação dependente que sempre distinguiu a verdadeira aristocracia feudal de qualquer ou tra forma de classe exploradora de guerreiros nos modos de produção alternativos O enfeudamento era um contrato sinalagmático21 o jura mento de homenagem e o ato da investidura vinculavam ambas as par tes ao respeito de obrigações específicas e ao desempenho de obrigações igualmente específicas A felonia constituía a ruptura deste contrato e podia ser cometida pelo vassalo ou pelo senhor desvinculando a parte ofendida dos termos contratuais Ao mesmo tempo este pacto sinalag mático era também o domínio hierárquico de um superior sobre o seu inferior o vassalo era feudatário de seu senhor e devia servilo com lealdade de corpo e alma Portanto o ethos compósito da nobreza feudal conjugava honra e lealdade numa tensão dinâmica es tranha seja à cidadania livre da antigüidade clássica que na Grécia e em Roma conhecia apenas o primeiro termo seja aos servidores de uma autoridade despótica como o sultanismo da Turquia que conhe ciam apenas o segundo A reciprocidade contratual e a desigualdade de posições fundiamse no sistema global do feudo Assim se gerou uma ideologia aristocrática que tornava compatíveis o orgulho da posição e a humildade da homenagem a estabilidade jurídica das obrigações e a fidelidade pessoal da vassalagem22 O dualismo ético de tal código feu 21 O termo é de Boutruche Seigneurie et Féodalité II pp 2047 22 Weber foi o primeiro a enfatizar a originalidade desta combinação ver a sua excelente análise Economy and Soctety III pp 10758 De modo geral os contrastes analíticos traçados por Weber entre feudalismo e patrimonialismo têm grande forca e acuidade Todavia o uso global que faz destes termos está marcado pela notória fra gilidade da noção dos tiposideais que caracteriza a sua obra posterior Assim tanto o feudalismo como o patrimonialismo são na prática tratados como traços destacáveis e fragmentários e não como estruturas unificadas em conseqüência podem ser distribuí dos ou misturados aleatoriamente por Weber a quem faltou uma verdadeira teoria his tórica após os seus trabalhos iniciais e pioneiros sobre a antigüidade Daí resulta a incapacidade de Weber em apresentar uma definição estável ou precisa do absolutismo na Europa é por vezes o patrimonialismo que é dominante na Europa continental até 410 PERRY ANDERSON dal tinha as suas raízes na fusão e difusão do poder econômico e do poder político no seio do modo de produção como totalidade A pro priedade condicional instituía a subordinação do vassalo no quadro de uma hierarquia social de senhorio a soberania parcelar por outro lado investia o feudatário com a jurisdição autônoma sobre os seus inferiores Ambas eram celebradas por transações entre indivíduos par ticularizados dentro do domínio nobre O poder e a propriedade aristo cráticos eram essencialmente pessoais em todos os níveis da cadeia de proteção e dependência Por sua vez esta estrutura políticojurídica acarretou conseqüên cias importantes O parcelamento global da soberania possibilitou o crescimento de cidades autônomas nos espaços intersticiais entre dife rentes senhorios Uma Igreja separada e universal podia atravessar to dos os principados seculares concentrando na sua própria organização clerical independente as habilidades culturais e as sanções religiosas Além disso em cada reino particular da Europa medieval pôde se desenvolver um sistema de estados que via de regra representava numa assembléia tripartida a nobreza o clero e os habitantes dos bur gos enquanto ordens distintas no seio da organização política feudal O pressuposto básico de tal sistema de estados era mais uma vez a dispersão da soberania que conferia aos membros da classe domi nante aristocrática prerrogativas privadas de justiça e administração de sorte que se tornava necessário o seu consentimento coletivo para qualquer ação extrasuserania por parte do monarca situado no topo da hierarquia feudal fora da cadeia mediatizada de obrigações e direi tos pessoais Os parlamentos medievais eram portanto uma extensão lógica e necessária da prestação tradicional de auxilium et consilium do vassalo para o suserano A ambigüidade das suas funções instrumen tos da vontade do monarca ou meios da resistência dos barões a esta mesma vontade era inerente à unidade contraditória do próprio pacto feudal a um só tempo recíproco e desigual Do ponto de vista geográfico como vimos o complexo feudal completo nasceu no ocidente continental da Europa nas antigas ter ras carolíngias Daí se expandiu depois de modo lento e desigual pri meiro à Inglaterra Espanha e Escandinávia em seguida e menos per feitamente difundiuse à Europa oriental onde os seus elementos e a Revolução Francesa ao passo que outras vezes as monarquias absolutas são conside radas já burocráticoracionais Tais confusões eram inerentes ao crescente formalismo i de seus últimos trabalhos Neste aspecto Hintze que muito aprendeu com Weber foi lhe sempre superior LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 411 fases constitutivas sofreram numerosos deslocamentos e distorções lo cais sem que essa região jamais viesse a perder uma inequívoca afini dade geral com o ocidente da Europa como uma sua periferia relati vamente subdesenvolvida As divisas assim constituídas do feudalismo europeu fundamentalmente não se estabeleceram pela religião e tam pouco pela topografia embora ambas manifestamente as sobredeter minassem A cristandade nunca foi coincidente com este modo de pro dução não havia feudalismo na Etiópia ou no Líbano medievais O pastoreio nômade adaptado aos terrenos áridos da maior parte da Ásia central do Oriente Médio e do norte da África bordejou por longos períodos a Europa por todos os lados exceto pelo Atlântico por onde ela haveria de escapar para dominar o mundo Mas as fronteiras entre nomadismo e feudalismo não se desenharam de forma linear apenas pela topografia tanto a planície panoniana como a estepe da Ucrânia habitais clássicos do pastoreio predatório acabaram por se integrar à agricultura sedentária da Europa O feudalismo nascido no setor oci dental da Europa propagouse para o setor oriental por força da colo nização e do exemplo A conquista desempenhou um papel adicional mas subordinado a sua realização mais espetacular mostrou ser tam bém a mais efêmera no Levante Ao contrário do modo de produção escravista que o precedeu ou do modo de produção capitalista que se lhe seguiu o modo de produção feudal não levou diretamente ao ex pansionismo imperialista em larga escala23 Embora cada classe baro nial se tenha esforçado incessantemente para ampliar a sua área de poder mediante a agressão militar a construção de vastos impérios territoriais foi bloqueada pela fissão sistemática da autoridade que definia o feudalismo da Europa medieval Não houve por conseguinte uma unificação política superiormente ordenada das diferentes comu nidades étnicas do continente Uma religião comum e uma língua culta ligavam entre si Estados que de outro modo estariam cultural e consti tucionalmente separados A dispersão da soberania no feudalismo eu ropeu permitiu a subsistência de uma grande diversidade de popula ções e de línguas após as migrações germânicas e eslavas Nenhum Estado medieval era fundado na nacionalidade e as aristocracias ti nham com freqüência uma trajetória móvel passando por transplan tações de um território para outro mas as próprias divisões do mapa dinástico da Europa possibilitavam a consolidação da pluralidade ét nica e lingüística abaixo delas O modo de produção feudal ele próprio 23 Este ponto é tratado adequadamente por Porshnev Feodalizm i Narodnye Massy pp 5178 412 PERRY ANDERSON de caráter prénacional preparou objetivamente a possibilidade de um sistema de Estados multinacional na época de sua subseqüente transição para o capitalismo Um dos últimos traços do feudalismo europeu nascido do conflito e da síntese entre dois modos de produção anteriores era portanto a extrema diferenciação e ramificação internas de seu universo cultural e político Numa perspectiva de comparação tal não era a menos importante das peculiaridades do continente O feudalismo enquanto categoria histórica foi cunhado pelo iluminismo Desde que entrou em circulação apresentouse a questão da existência desse fenômeno fora da Europa onde obteve o seu nome Montesquieu como é sabido considerouo um fato totalmente singu lar um evento que aconteceu uma vez no mundo e provavelmente jamais virá a acontecer Igualmente notória é a opinião contrária de Voltaire O feudalismo não é um evento é urna forma muito antiga que subsiste em três quartos de nosso hemisfério sob diferentes admi nistrações25 Muito claramente o feudalismo foi na verdade uma forma institucional mais que um evento instantâneo mas a lati tude das diferenças de administração que lhe foi atribuída corno vimos muitas vezes tendeu a subtrairlhe por completo qualquer iden tidade determinada26 Em suma não restam dúvidas atualmente que Montesquieu com um senso histórico muito mais profundo andava mais perto da verdade A investigação moderna descobriu apenas uma região importante do mundo onde inequivocamente triunfou um modo de produção feudal comparável ao da Europa No outro extremo da massa territorial eurasiana além dos impérios orientais familiares ao iluminismo as ilhas do Japão haviam de revelar um panorama social que evocava vivamente aos viajantes e observadores europeus do final do século XIX o passado medieval depois que a chegada do comodoro Perry à baía de Yokohama em 1853 pôs fim ao seu longo isolamento do mundo exterior No espaço de pouco mais de uma década o próprio Marx comentava em O Capital publicado no ano anterior ao da Res tauração Meiji O Japão com a sua organização puramente feudal da propriedade fundiária e a sua desenvolvida petite culture dános um retrato muito mais fiel da Idade Média européia do que todos os nossos 24 DeTEsprit dês Lois II p 296 25 Oeuvres Completes Paris 1878 XXIX p 91 26 A inflação generalizada do termo feudalismo é preciso destacar não se confina aos marxistas a mesma tendência se evidencia numa coletânea de teor muito diferente R Coulborn Org Feudalism in History onde quase todos os ensaios desco brem o feudalismo onde quer que o procurem LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 413 livros de história7 Neste século a opinião acadêmica concorda quase unanimemente em considerar que o Japão foi local histórico de um autêntico feudalismo28 No que aqui nos interessa o ponto essencial deste feudalismo do Extremo Oriente reside na sua distinta combina ção de similaridades estruturais e divergências dinâmicas em relação à trajetória européia O feudalismo japonês que surgiu como um modo de produção desenvolvido a partir dos séculos XIVXV apôs um longo período de incubação anterior caracterizavase essencialmente pelo mesmo nexo fundamental do feudalismo europeu a fusão de vassalagem benefício e imunidade num sistema de feudo que constituía a estrutura político jurídica básica na qual o trabalho excedente era extraído do produtor direto Os vínculos entre serviço militar propriedade fundiária condi cional e jurisdição senhorial reproduziramse fielmente no Japão Es teve igualmente presente a hierarquia graduada entre senhor vassalo e subvassalo formando uma cadeia de suserania e dependência Uma aristocracia de cavaleiros constituía a classe dominante hereditária o campesínato encontravase juridicamente vinculado ao solo numa ré plica próxima da servidão da gleba Evidentemente o feudalismo japo nês possuía também características próprias locais que contrastavam com o feudalismo europeu As condições técnicas da rizicultura dita vam organizações diversas a nível da aldeia onde estava ausente o sis tema de afolhamento trienal Por sua vez o domínio senhorial japonês raramente continha uma reserva ou cultivo doméstico Ainda mais importante no quadro da relação feudal entre senhor e suserano acima do nível da aldeia a vassalagem tendia a predominar sobre o benefício o vínculo pessoal de homenagem era tradicionalmente mais forte que o vínculo material da investidura O pacto feudal era menos contratual e específico que na Europa os deveres do vassalo eram mais difusos e os direitos do seu suserano mais imperativos No quadro do peculiar equilíbrio entre honra e subordinação recipro cidade e desigualdade que marcava a ligação feudal a variante japo nesa pendia consistentemente para o segundo termo Embora a organi zação clânica estivesse ultrapassada como em todas as verdadeiras for 27 O Capital l p 718 28 Ver as famosas passagens de Bloch em Feudal Society pp 4467 Boutru che Seigneurie ei Féodaliié I pp 28191 O mais importante estudo comparado do feudalismo europeu e japonês é o de F Joüon dês Longrais LEst et LOuest Paris 1958 passim A documentação utilizada para os comentários que se seguem sobre o desenvolvimento japonês pode ser encontrada nas referências do apêndice sobre o f eu da lismojaponês pp 433 414 PERRY ANDERSON mações sociais feudais o expressivo código da relação senhorvassalo era proporcionado pela linguagem do parentesco e não por elementos do direito a autoridade do senhor sobre o seu subalterno era de caráter mais patriarcal e inquestionável que na Europa Não existia o conceito de felonia senhorial tampouco os tribunais de vassalos o sistema jurí dico era de modo geral muito limitado A conseqüência geral mais importante da configuração autoritária e assimétrica da hierarquia in trasenhorial no Japão foi a ausência de um sistema de estados tanto no nível regional como no nacional Esta era sem dúvida no plano político a mais importante linha divisória entre o feudalismo japonês e o europeu considerados enquanto estruturas autoisoladas Mas uma vez registradas essas significativas diferenças de ordem secundária a semelhança fundamental entre as duas configurações his tóricas é inequívoca Acima de tudo o feudalismo japonês definiase também por uma rigorosa fragmentação da soberania e pelo caráter escalonado da propriedade fundiária Na verdade a fragmentação da soberania atingiu no Japão Tokugawa uma forma mais organizada sistemática e estável do que jamais ocorreu em qualquer país europeu ao passo que a propriedade privada escalonada da terra era efetiva mente mais universal no Japão feudal que o fora na Europa já que não havia posses alodiais no campo O paralelismo básico entre as duas grandes experiências do feudalismo nos extremos opostos do conti nente eurasiano iria receber a sua confirmação mais impressionante no destino posterior de cada uma dessas áreas O feudalismo europeu como vimos revelouse a passagem para o capitalismo Foi a dinâmica econômica do modo de produção feudal na Europa que liberou os ele mentos para a acumulação primitiva do capital em escala continental e foi a ordem social da Idade Média que precedeu e preparou a ascensão da classe burguesa que a realizou O modo de produção capitalista na sua forma plena desencadeada pela revolução industrial foi o dom e a maldição da Europa para todo o globo Hoje na segunda metade do século XX apenas uma grande região situada fora da Europa ou de sua colonização ultramarina atingiu um estado avançado de capita lismo industrial o Japão Os pressupostos sócioeconômicos do capita lismo japonês como foi amplamente demonstrado pela moderna inves tigação histórica assentamse profundamente no feudalismo nipônico que tanto impressionara Marx e os europeus no final do século XIX Com efeito nenhuma outra área do mundo dispunha de elementos in ternos tão propícios para uma rápida industrialização Tal como na Europa ocidental a agricultura feudal permitira notáveis índices dcj produtividade talvez mais elevados do que na maior parte da Ásia dali LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 415 monções de hoje Também aí aparecera um penetrante senhorialismo orientado para o mercado numa área rural cujo índice geral de comer cialização era surpreendentemente alto quiçá metade ou mais do produto total Além disso e ainda mais revelador o Japão do final do feudalismo conheceu um nível de urbanização provavelmente inigua lado em qualquer outra região exceto a Europa contemporânea no princípio do século XVIII Edo a sua capital era maior que Londres ou Paris e talvez um em cada dez habitantes vivia em cidades com mais de 10 mil pessoas Por último mas não menos importante o su porte educacional do país sustentava a comparação com as nações mais desenvolvidas da Europa ocidental nas vésperas da abertura japone sa ao Ocidente cerca de 40 a 50 por cento da população masculina adul ta era alfabetizada O ritmo e o sucesso impressionantes com que o capi talismo industrial foi implantado no Japão pela Restauração Meiji tive ram os seus pressupostos históricos determinados no caráter peculiar mente avançado da sociedade que foi o legado do feudalismo Tokugawa No entanto ao mesmo tempo havia uma divergência decisiva entre o desenvolvimento europeu e o japonês Com efeito embora o Japão chegasse a alcançar um ritmo de industrialização mais acelerado do que o de qualquer país capitalista da Europa ou da América do Norte o impulso fundamental de sua tempestuosa transição ao modo de produção capitalista no final do século XIX e início do século XX ioiexógeno Foi o impacto do imperialismo ocidental sobre o feuda lismo japonês que subitamente galvanizou as forças internas numa transformação total da ordem tradicionalmente instituída A profun didade dessas transformações não estava de modo algum ao alcance do reino Tokugawa Quando a esquadra de Perry ancorou em Yokohama em 1853 o hiato histórico existente entre o Japão e as potências euro americanas era apesar de tudo imenso A agricultura japonesa era notavelmente comercializada ao nível da distribuição mas tal ocorria em muito menor escala no nível da própria produção Com efeito os tributos feudais coletados em sua maior parte em espécie contavam ainda para o grosso do sobreproduto mesmo sendo depois convertidos em dinheiro a produção agrícola voltada diretamente para o mercado continuava a ser subsidiária dentro do conjunto da economia rural As cidades japonesas eram enormes aglomerados urbanos como institui ções financeiras e comerciais muito avançadas Não obstante as manu faturas eram ainda de caráter rudimentar dominadas pelos ofícios irtesanais organizados em corporações de tipo tradicional as fábricas propriamente ditas eram praticamente desconhecidas o trabalho assa lariado não estava organizado em escala significativa a tecnologia era 416 PERRY ANDERSON simples e arcaica O ensino no Japão era um fenômeno de massas que teria talvez alfabetizado toda a população masculina Culturalmente porém o país era ainda em grande parte atrasado se comparado com os seus antagonistas ocidentais não havia desenvolvimento da ciência o avanço do direito era limitado quase não havia filosofia e muito menos teoria econômica e política sem falar na virtual ausência de uma história crítica Em outras palavras nada de remotamente com parável ao Renascimento tocara as costas japonesas Era portanto ló gico que a estrutura do Estado tivesse uma forma fragmentada e rígida O Japão conheceu uma longa e rica experiência de feudalismo mas nunca produziu um absolutismo O shogunato Tokugawa que gover nara as ilhas durante os últimos dois séculos e meio antes da intro missão do Ocidente industrializado assegurou uma paz prolongada e manteve uma rigorosa ordem o seu regime era porém a negação do Estado absolutista O shogunato não detinha qualquer monopólio da coerção no Japão os senhores regionais conservavam os seus próprios exércitos cujo total era superior ao das tropas da casa Tokugawa Não impunha uma legislação uniforme o alcance de seus decretos não ia além de um quinto ou um quarto do território Não possuía uma buro cracia com competência em toda a sua área de suserania todo feudo importante tinha a sua própria administração autônoma e separada Não coletava impostos nacionais três quartos do território ficavam fora de seu âmbito fiscal Não dirigia uma diplomacia o isolamento oficial proibia o estabelecimento de relações regulares com o mundo exterior Exército fisco burocracia direito diplomacia todos esses comple xos institucionaischave do absolutismo europeu estavam ausentes ou não eram eficazes no Japão Neste aspecto a distância política entre o Japão e a Europa as duas pátrias do feudalismo evidencia e simbo liza a profunda divergência em seu desenvolvimento histórico Tornase necessária e instrutiva uma comparação não da natureza mas da posição do feudalismo na trajetória de cada uma destas regiões Na Europa como vimos o modo de produção feudal foi o resul tado de uma fusão de elementos liberados a partir do choque e disso lução de dois modos de produção anteriores o modo de produção es cravista da antigüidade clássica e os modos de produção comunalpri mitivos das populações tribais de sua periferia A lenta síntese romano germânica durante a Idade das Trevas acabou por gerar a nova civili zação do feudalismo europeu A história específica de cada uma das formações sociais da Europa medieval e do início da Idade Moderna foi caracterizada pela incidência diferenciada desta síntese original que deu vida ao feudalismo Um exame da experiência inteiramente diversa LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 417 do feudalismo japonês sublinha uma importante verdade geral que devemos a Marx a gênese de um modo de produção sempre deve ser distinguida de sua estrutura Com efeito a mesma articulação estru tural pode vir à luz a partir de inúmeras vias diferentes Os elemen tos constitutivos que a compõem podem ser liberados de modos e em seqüências diversas a partir de modos de produção anteriores antes de se entrelaçarem para formar um sistema coerente e capaz de se repro duzir Assim o feudalismo japonês não teve atrás de si um passado escravista ou tribal Foi o produto da lenta desintegração de um sistema imperial de tipo chinês baseado no monopólio estatal da terra O Estado Taiho criado nos séculos VII e VIII sob a influência chinesa era um tipo de império totalmente diverso do de Roma A escravidão tinha aí uma importância mínima não havia liberdades municipais a propriedade privada da terra estava abolida O deslocamento gradual da organização política centralizada que se constituiu com os códigos Taiho foi um processo espontâneo e endógeno que se estendeu dos sé culos IX ao XVI Não houve invasões estrangeiras comparáveis às mi grações bárbaras da Europa a única ameaça externa grave o ataque marítimo dos mongóis no século XIII foi decididamente repelida Assim os mecanismos da transição ao feudalismo no Japão foram com pletamente diferentes dos que conhecemos na Europa Não houve o co lapso cataclísmico nem a dissolução de dois modos de produção em conflito ao lado de uma profunda regressão econômica política e cul tural que no entanto abriram caminho ao subseqüente avanço dinâ mico do novo modo de produção nascido dessa dissolução Foi antes o declínio extremamente prolongado de um Estado imperial centrali zado no seio do qual os nobres guerreiros locais tinham impercepti velmente usurpado as terras provinciais e privatizado o poder militar até que finalmente no termo de um desenvolvimento contínuo de sete séculos sobreveio a fragmentação feudal quase completa do país Esse processo involutivo de feudalização a partir de dentro foi enfim com pletado pela recomposição dos senhorios territoriais independentes numa pirâmide organizada da suserania feudal O shogunato Toku gawa representou o produto final desta história secular 29 Evidentemente as análises de Marx sobre a acumulação primitiva em O Ca pital parte VIII pp 71374 fornecem o exemplo clássico desta distinção Ver também muitas afirmações dos Gntndrisse por exemplo Assim embora o dinheiro se torne capital graças a pressupostos determinados e externos ao capital tào logo o capital passe a existir como tal ele cria os seus próprios pressupostos através do seu própria processo de produção Grundrisse Londres 1973 p 364 418 PERRY ANDERSON Em outras palavras toda a genealogia do feudalismo no Japão apresenta um contraste inequívoco com a descendência do feudalismo na Europa Hintze cuja obra contém análises que continuam a figurar entre as mais profundas reflexões sobre a natureza e incidência do feu dalismo estava contudo equivocado ao acreditar numa estreita analo gia entre a experiência japonesa e a européia Para ele em toda a parte o feudalismo resultou do que denominava a deflexão Ablenkung de uma sociedade tribal avançada através do arcabouço de um império anterior que desviou a sua trajetória de formação do Estado para uma configuração singular Rejeitando todo o evolucionismo linear insistia na necessidade de um entrelaçamento Verflechtung conjuntural de efeitos imperiais e tribais para dar vazão a um verdadeiro feudalismo O surgimento do feudalismo europeu ocidental após o Império Ro mano podia portanto ser comparado com o aparecimento do feuda lismo japonês após o Império Taiho em ambos os casos tratouse de uma combinação externa GermâniaRoma e JapãoChina de ele mentos que determinou a formação desta ordem O feudalismo não é criação de um desenvolvimento nacional imanente mas uma constela cão histórica mundial 30 O defeito desta comparação é o pressuposto de que os Estados imperiais chinês e romano seriam semelhantes não apenas na sua abstrata designação comum de império A Roma anto nina e a China Tang ou o seu equivalente o Japão Taiho foram de fato civilizações absolutamente diferentes baseadas em modos de pro dução distintos É a diversidade das vias para o feudalismo não a sua identidade a lição básica a extrair do aparecimento separado da mes ma forma histórica nos dois extremos da Eurásia No quadro desta radical diversidade de origens a similaridade estrutural entre os feuda lismos europeu e japonês é ainda mais surpreendente a mais eloqüente demonstração de que um modo de produção uma vez constituído re produz rigorosamente a sua própria identidade como sistema inte grado livre dos pressupostos díspares que inicialmente lhe deram origem O modo de produção feudal tem a sua própria ordem e neces sidade que se impôs com a mesma estrita lógica em dois contextos ex tremamente contrastantes uma vez cumpridos os processos de transi 30 Hintze Wesen und Verbreitung dês Feudalismus Gesammelte Abhand lungen I p 90 Hintze acreditava que teria havido um feudalismo russo depois do Império Bizantino e um feudalismo islâmico depois do Império Sassânida que consti tuiriam dois outros exemplos do mesmo processo Na verdade o desenvolvimento russo inseriase no feudalismo europeu em seu conjunto e nunca houve um verdadeiro feuda lismo islâmico Mas a análise de Hintze é apesar disso plena de interesse LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 419 cão Não apenas ocorreu a reprodução no Japão das estruturas de go verno do feudalismo inicialmente desenvolvidas na Europa como o que é talvez ainda mais significativo tais estruturas tiveram visivelmente os mesmos efeitos históricos O desenvolvimento do senhorialismo a ex pansão do capital mercantil a difusão do ensino no Japão foram de tal ordem como vimos que este país se revelou a única região importante do mundo de origem nãoeuropéia capaz de acompanhar a Europa a América do Norte e a Australásia na marcha para o capitalismo in dustrial Não obstante salientado o paralelismo fundamental entre os feu dalismos europeu e japonês enquanto modos de produção internamente articulados resta o simples e enorme fato de seus resultados divergen tes A Europa a partir da Renascença realizou a transição para o capitalismo segundo o seu próprio impulso num processo de constante evolução global A revolução industrial em última análise desenca deada pela acumulação primitiva do capital em escala internacional durante a primeira fase da época moderna constituiu uma combustão espontânea e gigantesca das forças de produção sem similares em sua força e universal em seu alcance Nada de comparável ocorreu no Ja pão e a despeito de todos os avanços da época Tokugawa não havia indícios de que algo semelhante estivesse para acontecer Foi o impacto do imperialismo euroamericano que destruiu a antiga ordem política do Japão e foi a importação da tecnologia ocidental que tornou possível uma industrialização indígena a partir da matériaprima de sua he rança sócioeconômica O feudalismo permitiu ao Japão caso único entre as sociedades asiáticas africanas ou ameríndias ingressar nas fileiras do capitalismo avançado quando o imperialismo se tornou um sistema conquistador a nível mundial não gerou um capitalismo nativo por seu próprio impulso no isolamento do Pacífico Não havia portanto uma força inerente ao próprio modo dê produção feudal que inevita velmente o compelisse a evoluir para o modo de produção capitalista As evidências concretas da história comparada não sugerem um tal evolucionismo Qual foi então a especificidade da história européia que tão pro fundamente a separou da história japonesa a despeito do ciclo comum de feudalismo que tanto as aproximou A resposta encontrase certa mente na duradoura herança da antigüidade clássica O Império Ro mano a sua forma histórica final não era apenas por si natural mente incapaz de uma transição para o capitalismo O próprio avanço do mundo clássico o condenou a uma regressão catastrófica de propor ções tais que não encontra realmente um outro exemplo nos anais da 420 PERRY ANDERSON civilização O mundo social muito mais primitivo do feudalismo em seus inícios foi o resultado de seu colapso preparado internamente e completado do exterior Então a Europa medieval libertou depois de uma longa gestação os elementos de uma lenta transição ulterior para o modo capitalista de produção no início da época moderna Mas o que tornou possível a passagem singular ao capitalismo na Europa foi a concatenação de antigüidade e feudalismo Em outras palavras para apreender o segredo do surgimento do modo de produção capitalista na Europa é necessário descartar tão radicalmente quanto possível qual quer concepção que o vê como a simples subsunção evolutiva de um modo de produção inferior por outro superior sendo um gerado auto mática e completamente no seio do outro por uma sucessão orgânica interna que com isso o extingue Marx insistiu corretamente na dis tinção entre a gênese e a estrutura dos modos de produção Mas por outro lado caiu no equívoco de acrescentar que a reprodução da última absorvia ou abolia os traços da primeira Assim escreveu que os pres supostos anteriores de um modo de produção precisamente en quanto pressupostos históricos pertencem ao passado portanto à his tória da sua formação mas de modo algum à sua história contempo rânea isto é ao sistema real do modo de produção enquanto o prelúdio histórico do seu porvir eles se encontram por trás dele tal como os processos através dos quais a terra efetuou a transição de sua forma fluida de mar de fogo e vapor para a sua forma atual situamse além de sua existência enquanto terra31 Efetivamente o próprio capitalismo triunfante o primeiro modo de produção a alcançar um âmbito verdadeiramente global de modo algum meramente resumia e integrava todos os anteriores modos de produção que encontrou e dominou em seu caminho E ainda me nos na Europa o feudalismo que o antecedeu Não é uma tal teleo logia que governa as trilhas tortuosas e ramificadas da história Com efeito como vimos as formações sociais concretas incorporam via de regra numerosos modos de produção coexistentes e antagônicos de épocas variáveis Na realidade o advento do modo de produção capita lista na Europa só pode ser entendido se se rompe com toda a noção puramente linear de tempo histórico Em vez de apresentar a forma de uma cronologia cumulativa na qual uma fase sucede e supera a ante rior para produzir a sucessora que por sua vez a ultrapassará a mar cha para o capitalismo revela a persistência do legado de um modo de 31 Grundrisse pp 3634 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 421 produção no quadro de uma época dominada por outro e uma reati vação de sua influência na passagem a um terceiro A Vantagem da Europa sobre o Japão reside nos seus antecedentes clássicos que mes mo depois da Idade das Trevas não desapareceram atrás dela mas sobreviveram em certos aspectos básicos à sua frente Neste sen tido a gênese histórica concreta do feudalismo na Europa longe de se desvanecer como fogo e vapor na solidez terrena da sua estrutura reali zada teve efeitos tangíveis sobre a sua dissolução final A temporali dade histórica real que rege os três grandes modos de produção histó ricos que dominaram a Europa até este século é portanto radicalmente distinta do continuum de umacronologia evolutiva Contrariamente a todas as teses historicistas o tempo foi como que invertido a certos níveis entre os dois primeiros para que a guinada decisiva para o úl timo se efetuasse Contrariamente a todas as teses estruturalistas não foi um mecanismo autônomo que operou o deslocamento do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista como sistemas contíguos e fechados Foi necessária a concatenação dos modos de pro dução antigo e feudal para que se produzisse na Europa o modo de produção capitalista uma relação que não se resumia a uma seqüên cia diacrônica mas era também em determinado estágio uma articu lação sincrônica O passado clássico despertou de novo dentro do pre sente feudal para assistir à chegada do futuro capitalista ambos a um tempo incrivelmente distantes e estranhamente próximos dele Com efeito o nascimento do capital também presenciou como é sabido o renascimento da antigüidade A Renascença a despeito de toda a crí tica e revisão permanece como o momento crucial de toda a história européia duplo momento de uma expansão no espaço e de uma recu peração no tempo igualmente sem precedentes Ê neste ponto com a redescoberta do mundo antigo e a descoberta do Novo Mundo que o sistema estatal europeu adquire a sua plena singularidade Um poder universal e ubíquo seria o resultado dessa singularidade e o seu final A concatenação dos modos de produção antigo e feudal que dis tingue o desenvolvimento europeu é visível em numerosos traços origi nais da época medieval e do inicio da época moderna que a separam da experiência japonesa e obviamente da islâmica e da chinesa De início toda a posição e evolução das cidades era completamente dife rente Como vimos o feudalismo como modo de produção foi o pri meiro na história a tornar possível uma oposição dinâmica entre cidade c campo o parcelamento da soberania inerente à sua estrutura permi tia que se desenvolvessem enclaves urbanos autônomos como centros de PERRY ANDERSON produção no quadro de uma economia predominantemente rural e não como centros parasitários ou privilegiados de consumo e adminis tração o padrão que Marx acreditava ser puramente asiático Assim a ordem feudal fomentou um tipo de vitalidade urbana diferente de qualquer outra civilização cujos produtos comuns podem ser observa dos tanto no Japão como na Europa Não obstante houve simultanea mente uma diferença crucial entre as cidades medievais da Europa e do Japão As primeiras possuíam um grau regular de densidade e autono mia desconhecido das últimas o seu peso relativo no seio da ordem feudal era muito maior A maior onda de urbanização no Japão foi relativamente tardia desenvolvendose a partir do século XVI domi nada por algumas raras e vastas concentrações urbanas Além disso nenhuma cidade japonesa adquiriu autonomia municipal duradoura o seu apogeu coincidiu com o máximo controle dos barões ou dos se nhores shogun sobre elas Na Europa por outro lado a estrutura geral do feudalismo permitiu também o crescimento de cidades produtoras baseadas nas manufaturas artesanais mas as formações sociais especí ficas que emergiram da forma de transição local peculiar para o feuda lismo garantiam desde o início um maior potencial urbano e muni cipal Com efeito como vimos o movimento real da história nunca é a mera mudança de um modo de produção puro para outro compõese sempre de uma série complexa de formações sociais na qual se imbri cam diversos modos de produção sob a dominância de um deles Foi evidentemente por esta razão que os efeitos determinados dos modos de produção antigo e comunalprimitivo anteriores ao modo de produ ção feudal puderam sobreviver dentro das formações sociais da Europa medieval muito tempo depois do desaparecimento dos mundos ro mano e germânico Assim o feudalismo europeu gozou desde o início de um legado municipal que preenchia o espaço deixado pelo novo modo de produção ao desenvolvimento urbano de um modo muito mais positivo e dinâmico do que em qualquer outro lugar Já menciona mos o testemunho mais revelador da importância direta da antigüidade no surgimento das formas urbanas características da Idade Média na Europa o primado da Itália em seu desenvolvimento e a adoção das insígnias romanas em seus primeiros regimes municipais desde os consulados do século XI Toda a concepção social e jurídica de uma cidadania urbana enquanto tal era de memória e derivação clássicas sem paralelo fora da Europa Naturalmente dentro do modo de produ ção feudal constituído toda a base sócioeconômica das cidadesrepú blicas que gradualmente se desenvolveram na Itália e no Norte era radi calmente distinta da que existia no modo de produção escravista do LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 423 qual herdaram tantas tradições superestruturais32 o trabalho artesanal livre tornouas para sempre distintas das suas predecessoras a um tempo mais rudes e capazes de maior criatividade Como Anteu na comparação de Weber a cultura citadina do mundo clássico que mer gulhou nas sombrias profundezas do mundo rural na Idade das Trevas ressurgiu mais forte e mais livre nas comunidades urbanas do princípio da época moderna33 No Japão nada se passou de semelhante a este processo bem como a fortiori nos grandes impérios asiáticos que nunca conheceram o feudalismo árabe turco hindu ou chinês As cidades da Europa comunas repúblicas e tiranias foram o pro duto singular do desenvolvimento combinado que marcou o continente Ao mesmo tempo a área rural do feudalismo europeu sofreu também uma evolução sem paralelo Já salientamos a extrema raridade do sistema do feudo como tipo de propriedade rural Nunca foi conhe cido nos grandes Estados islâmicos ou sob as sucessivas dinastias chi nesas que tinham as suas formas próprias de regime agrário O feuda lismo japonês contudo apresenta a mesma conexão de vassalagem benefício e imunidade que definia a ordem medieval na Europa Mas por outro lado nunca revelou a crucial transformação da propriedade rural que singularizou os inícios da Europa moderna Na sua forma pura o modo de produção feudal caracterizavase pela propriedade privada condicional da terra conferida a uma classe nobiliária de título hereditário A natureza privada ou condicional desta forma de proprie dade a distinguia como notou Marx de toda uma série de sistemas agrários alternativos fora da Europa e do Japão em que o monopólio oficial do Estado sobre a terra na origem ou ao longo do tempo pres supunha classes possuidoras bem menos estritamente aristocráticas do que a dos cavaleiros ou samurais Mas uma vez mais o desenvol vimento europeu processouse à frente do japonês com a transição da propriedade privada da terra de caráter condicional para a absoluta na época da Renascença Também aqui foi essencialmente a herança clássica do direito romano que facilitou e codificou este avanço deci 32 O ressurgimento do escravismo em grande escala no Novo Mundo seria evi dentemente um dos acontecimentos mais ilustrativos do inicio da época moderna condição indispensável da acumulação primitiva necessária à vitória do capitalismo in dustrial na Europa O seu papel que escapa ao âmbito do presente trabalha será ana lisado num estudo subseqüente 33 Ver a passagem definitiva de Weber em todo o seu esplendor em Die Só zialenGründe dês Untergangs der antiken Kultur Gesammelte Aufsatze zur Soxtaíund Wirtschaftsgeschichte pp 3101 para uma tradução brasileira ver Weber Âtica 3982 2 ed Org Gabriel Cohn pp 3757 424 PERRY ANDERSON sivo A propriedade quiritária a expressão jurídica mais elevada da economia mercantil da antigüidade permaneceu à espera de ser redes coberta e posta a funcionar logo que a difusão das relações mercantis no seio da Europa feudal atingiu níveis que requeriam de novo a sua precisão e clareza34 Numa tentativa de definir a especificidade da via européia para o capitalismo por contraste com o desenvolvimento do restante do mundo Marx escreveu a Zasulich Neste movimento oci dental a questão é a transformação de uma forma de propriedade pri vada em outra forma de propriedade privada Com isso queria di zer a expropriação das pequenas posses camponesas pela agricultura capitalista que ele pensava equivocadamente ser possível evitar na Rússia através da transição direta da propriedade camponesa comunal para o socialismo Tal fórmula contém todavia uma verdade pro funda quando aplicada num sentido algo diferente a transformação de uma forma de propriedade privada condicional em uma outra forma de propriedade privada absoluta no seio da nobreza fun diária constituiu a preparação indispensável para o advento do capita lismo e representou o momento em que a Europa deixou para trás to dos os outros sistemas agrários Na longa época de transição durante a qual a terra continuou a ser no aspecto quantitativo a principal fonte de riqueza em todo o continente a consolidação da propriedade pri vada irrestrita e hereditária era um passo fundamental para a liberação dos fatores de produção necessários à acumulação do capital propria mente dita O próprio vinculismo demonstrado pela aristocracia eu ropéia no início da época moderna já era uma evidência das pressões objetivas para um mercado livre da terra que haveria de gerar uma agricultura capitalista Na verdade a ordem jurídica nascida da recu peração do direito romano criou as condições jurídicas gerais para uma bemsucedida passagem ao modo de produção capitalista tanto na ci dade como no campo A garantia da propriedade e a estabilidade dos contratos a proteção e previsibilidade das transações econômicas entre indivíduos asseguradas por um direito civil escrito nunca se reprodu ziram em outras regiões O direito islâmico era quando muito vago e 34 Engels podia escrever O direito romano é de tal modo a expressão clássica das condições de existência e dos conflitos de uma sociedade dominada pela pura pro priedade privada que toda a legislação subseqüente não conseguiu aprimorálo de forma essencial A propriedade burguesa da Idade Média era pelo contrário muito moderada pelas limitações feudais e em larga medida constituíase de privilégios o direita romano estava por conseguinte neste aspecto muito à frente weit voraus das relações burguesas da época Werke vol 21 p 397 35 MarxEngels Selected Correspondence p 340 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 425 ambíguo em matéria de propriedade imobiliária era inextricavelmente religioso e por isso confuso e polêmico na sua interpretação O direito chinês era puramente punitivo e repressivo praticamente não tratava das relações civis e não provia um quadro jurídico estável para a ativi dade econômica O direito japonês era rudimentar e fragmentário mal esboçando os tímidos rudimentos de um direito comercial exeqüível por entre o labirinto da diversidade dos decretos senhoriais6 Em contraste com todos estes o direito romano oferecia um quadro de referência coerente e sistemático à compra venda arrendamento locação em préstimo e sucessão dos bens remodelado para as novas condições da Europa e generalizado por um corpo de juristas profissionais que a própria antigüidade desconhecia a sua influência constituiu um dos pressupostos institucionais fundamentais para a aceleração das rela ções de produção capitalistas em escala continental O renascimento do direito romano por outro lado trouxe con sigo ou na sua esteira a reapropriação de praticamente toda a herança cultural do mundo clássico O pensamento filosófico histórico político e científico da antigüidade para não falar de sua literatura e arqui tetura adquiriu subitamente uma nova força e presença no princípio da época moderna Os elementos críticos e racionais da cultura clás sica se comparados aos das outras civilizações antigas possibilitaram uma eficácia maior e mais aguda ao retorno àquela Não somente esses elementos eram intrinsecamente mais avançados que os seus equiva lentes no passado dos outros continentes como estavam separados do presente pelo grande abismo da fronteira religiosa entre duas épocas De tal modo o pensamento clássico jamais podia ser preservado como uma tradição venerável e inócua mesmo na assimilação seletiva que dele fez a Idade Média ele sempre manteve um conteúdo antagônico e corrosivo enquanto universo nãocristão E assim que as novas condi ções sociais permitiram que as mentes européias olhassem subitamente para trás por sobre o abismo que as separava da antigüidade sem sentir vertigens o potencial radical de suas grandes obras pôde ser plenamente sentido Daí adveio como vimos uma revolução intelec tual artística que só pôde ocorrer graças à emanação histórica especí fica do mundo clássico sobre os mundos medievais A astronomia de Copérnico a filosofia de Montaigne a política de Maquiavel a histo riografia de Clarendon a jurisprudência de Grotius todas eram de vedoras de diferentes maneiras das mensagens da antigüidade O prô 36 Estes contrastes são analisados adiante pp 453 4979543 426 PERRY ANDERSON prio nascimento da física moderna em parte assumiu a forma de uma rejeição de uni legado clássico o aristotelismo sob o signo de um outro o neoplatonismo que inspirou a sua concepção dinamizada da natureza37 A cultura cada vez mais analítica e secular que se desen volveu gradualmente ainda com muitos entraves e recuos teológicos foi talvez o fenômeno histórico que mais infalivelmente distinguiu a Europa das outras grandes áreas da civilização na época préindustrial O sereno tradicionalismo da sociedade feudal japonesa virtualmente inocente na era Tokugawa de assomos ideológicos antagônicos for nece um contraste especialmente notável É evidente que a estagnação intelectual do Japão ao lado de sua efervescência econômica deviase em grande medida ao deliberado isolamento do país Mas também neste aspecto o feudalismo europeu levou vantagem sobre o seu homó logo japonês desde o exato princípio de suas respectivas origens Enquanto no Japão o modo de produção feudal resultou da lenta involução de uma ordem imperial cujas estruturas foram empres tadas ao estrangeiro e se estabilizou em condições de completo afasta mento do mundo externo na Europa o modo de produção feudal emergiu do choque frontal entre duas ordens anteriores em conflito sobre uma grande massa territorial cujos efeitos secundários vieram a repercutirse numa extensão geográfica ainda mais ampla O feuda lismo insular do Japão evoluiu para dentro afastandose da matriz ex tremooriental do primitivo Estado Taiho O feudalismo continental da Europa evoluiu para fora à medida que a diversidade étnica inerente à síntese que lhe dera origem crescia efetivamente com a difusão do modo de produção para além de sua pátria carolíngia e acabou por produzir um mosaico dinástico e protonacional de grande complexi dade Na Idade Média essa mesma diversidade assegurou a autonomia da Igreja que nunca esteve sujeita a uma única soberania imperial como acontecera na antigüidade e encorajou o surgimento dos Esta dos tradicionalmente convocados para alinhar uma nobreza local a uma monarquia ou principado perante o ataque de outro nos conflitos militares da época38 Por sua vez tanto a independência eclesiástica 37 Para o papel do neoplatonismo no desenvolvimento da ciência moderna ver Francês Yates Giordano Bruno and tke Hermetic Tradítion Londres 1964 pp 44755 Mais diretamente como é óbvio a herança da geometria euclidiana e da astronomia ptolomaica foi o pressuposto indispensável para o surgimento da física galileana 38 As determinantes interestatais da representação dos estados foram salienta das por Hintze Weltgeschichtliche Bedingungen der Reprãsentatiwerfassung Ge sammelte Abhandlungen Ipp 16870 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUT1STA 427 como o sistema da representação em estados são características da so ciedade medieval européia que nunca se reproduziram na variante ja ponesa de feudalismo Neste sentido eles eram funções do caráter in ternacional do feudalismo europeu que não foi de modo algum a me nos importante das razões que fizeram com que seu destino fosse tão diferente do futuro do Japão A multiplicidade aleatória de unidades políticas no final da Idade Média européia deu lugar no início da época moderna a um sistema estatal organizado e interligado o nasci mento da diplomacia formalizou a novidade de um conjunto de vários parceiros na guerra nas alianças no comércio no matrimônio ou na propaganda no seio de uma arena política única cujas fronteiras e normas tornaramse cada vez mais nítidas e bem definidas A fecun didade da interseção cultural que resultou da formação deste sistema altamente integrado embora extremamente diversificado foi uma das marcas registradas da Europa préindustrial as realizações intelectuais do princípio da época moderna são muíto provavelmente inseparáveis dela Em nenhuma outra parte do mundo esteve presente um conjunto político semelhante a institucionalização do intercâmbio diplomático foi uma invenção da Renascença e continuou a ser ainda por muito tempo uma peculiaridade européia A Renascença portanto foi a um só tempo o momento em que a seqüência de antigüidade e feudalismo produziu os seus frutos mais espantosos e originais e o ponto crucial em que a Europa distanciouse de todos os outros continentes em dinamismo e expansão O novo e singular tipo de Estado que surgiu nessa época foi o absolutismo As monarquias absolutas do início do período moderno foram um fenô meno estritamente europeu Na verdade representam a forma política exata do avanço de toda a região Com efeito como vimos foi preci samente neste ponto que a evolução japonesa se deteve o feudalismo do Extremo Oriente nunca passou para o absolutismo Em outras pa lavras o aparecimento do absolutismo a partir do feudalismo europeu foi o cômputo de seu avanço político Uma criação da Renascença o absolutismo pôde desenvolverse graças à longa história anterior que se estendia para antes do feudalismo e foi exorcizada para assistir à au rora da época moderna Como estrutura política dominante na Europa até o final do iluminismo a sua ascendência coincidiu com a explora ção do globo pelas potências européias e com os primórdios da supre macia destas Em sua natureza e estrutura as monarquias absolutas da Europa eram ainda Estados feudais o instrumento de governo da mesma classe aristocrática que dominara a Idade Média Mas na Eu ropa ocidental que as viu nascer as formações sociais que elas gover 428 PERRY ANDERSON naram eram uma combinação complexa dos modos de produção capi talista e feudal com uma burguesia gradualmente ascendente e uma crescente acumulação primitiva de capital à escala internacional Foi a conjugação destes dois modos de produção antagônicos em sociedades específicas que deu origem às formas de transição do absolutismo Os Estados monárquicos da nova época puseram fim ao parcelamento da soberania inscrita no modo de produção feudal na sua forma pura sem que nunca tenham chegado a alcançar uma organização política plena mente unitária Esta mudança foi em última instância determinada pelo crescimento da produção e intercâmbio de mercadorias associa dos à difusão do capitalismo mercantil e manufatureiro que tendia a diluir as relações feudais existentes no campo Ao mesmo tempo po rém o desaparecimento da servidão não significou a abolição da coer ção privada extraeconômica para a extração do sobretrabalho ao pro dutor imediato A nobreza fundiária continuou a deter a maior parte dos meios fundamentais de produção na economia e a ocupar a grande maioria das posições no seio do aparelho de poder político A coerção feudal foi deslocada para cima para uma monarquia centralizada e a aristocracia teve que trocar a sua representação em estados pelos car gos burocráticos dentro das renovadas estruturas de Estado As agu das tensões deste processo suscitaram muitas revoltas senhoriais a au toridade real foi com freqüência exercida implacavelmente contra membros da classe nobiliária O próprio termo absolutismo na verdade uma designação tecnicamente errônea dá testemunho da importância do novo complexo monárquico dentro da ordem aristo crática Não obstante há apesar de tudo uma característica básica que distingue as monarquias absolutas da Europa da miríade de outros tipos de governo despótico arbitrário ou tirânico encarnado ou con trolado pessoalmente pelo soberano que existiram nas diversas regiões do mundo O aumento do poder político do Estado monárquico foi acompanhado não por um decréscimo da garantia econômica da pro priedade nobiliária mas por um aumento correspondente dos direitos gerais de propriedade privada A era em que a autoridade pública ab solutista foi imposta constituiu também a era em que a propriedade privada absoluta progressivamente se consolidou É esta imensa di ferença social que distingue as monarquias Bourbon Habsburgo Tu dor ou Vasa de qualquer sultanato império ou shogunato fora da Eu ropa Os contemporâneos confrontados em solo europeu com o Estado otomano sempre tiveram uma aguda consciência desta profunda fis sura O absolutismo não significou o fim do domínio aristocrático ao LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 424 contrário protegeu e estabilizou a dominação social da classe nobre hereditária na Europa Os reis que presidiam às novas monarquias nunca puderam transgredir os limites invisíveis de seu poder os das condições materiais de reprodução da classe a que eles próprios perten ciam Em geral esses soberanos estavam conscientes de pertencerem à aristocracia que os circundava o orgulho individual de sua posição fundavase num sentimento coletivo de solidariedade Assim enquanto o capital ia lentamente se acumulando ao abrigo das cintilantes supe restruturas do absolutismo exercendo sobre elas um impulso gravita cional cada vez maior os proprietários fundiários da nobreza no início da Europa moderna conservavam o seu predomínio histórico no seio e através das monarquias que ora os dirigiam Economicamente prote gida socialmente privilegiada e culturalmente amadurecida a aristo cracia ainda mandava o Estado absolutista ajustou a sua supremacia à rápida germinação do capital no seio das formações sociais compósitas da Europa ocidental Em seguida como vimos o absolutismo apareceu também na Europa oriental essa metade muito mais atrasada do continente que nunca experimentara a síntese romanogermânica que dera origem ao feudalismo medieval As características e a temporalidade contrastan tes das duas variantes do absolutismo na Europa ocidental e oriental que constituíram o tema central deste estudo servem cada qual a seu modo para sublinhar o caráter e o contexto finais comuns a ambos Com efeito na Europa oriental o poder social da nobreza não foi limi tado por uma ascendente burguesia urbana como a que esteve pre sente na Europa ocidental a dominação senhorial não conheceu entra ves Desta maneira o absolutismo oriental mostra a sua composição e função de classe de forma bem mais patente e inequívoca que o seu homólogo ocidental Edificada sobre a servidão a natureza feudal de sua estrutura política era rude e manifesta o campesinato reduzido à servidão era uma lembrança permanente das formas de opressão e ex ploração que o seu aparelho de coerção perpetuava Mas ao mesmo tempo a gênese do absolutismo na Europa oriental foi fundamental mente distinta da do absolutismo na Europa ocidental pois precisa mente não foi a expansão da produção e do intercâmbio de mercado rias que o trouxe à luz o capitalismo ainda estava distante do além Elba Foram as duas forças entrecruzadas de um processo incompleto de feudalização que se iniciara cronologicamente mais tarde sem o benefício da herança da antigüidade e em condições topográficas e demográficas mais difíceis e das intensificadas pressões de um Oci dente mais avançado que levaram à préformação paradoxal do absolu 430 PERRY ANDERSON tismo no Leste Com o estabelecimento dos regimes absolutistas na Europa oriental completavase por sua vez o sistema internacional de Estados que definia e demarcava o continente no seu conjunto O nas cimento de uma ordem política multilateral funcionando como um campo único de competição e conflito entre Estados rivais foi por tanto a um só tempo a causa e o efeito da generalização do absolu tismo na Europa A construção deste sistema internacional a partir da Vestfália não tornou evidentemente homogêneas as duas partes do continente Ao contrário representando desde o início linhagens histó ricas distintas os Estados absolutistas da Europa ocidental e oriental seguiram diferentes trajetórias até as respectivas conclusões A ampla gama de destinos que daí resultou é bem conhecida No Ocidente as monarquias espanhola inglesa e francesa foram derrotadas ou derru badas por revoluções burguesas a partir de baixo os principados ita lianos e alemães foram eliminados por revoluções burguesas de cúpula tardiamente No Leste por outro lado o império russo foi finalmente destruído por uma revolução proletária As conseqüências da divisão do continente simbolizadas por estas sucessivas e opostas sublevações ainda hoje nos acompanham Apêndices
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Copyright by Perry Anderson 1974 Título original em inglês Lineages of the Absolutist State Copyright da tradução brasileira Editora Brasiliense S A Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada armazenada em sistemas eletrônicos fotocopiada reproduzida por meios mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia da editora ISBN 8511130497 Primeira edição 1985 3a edição 1995 2a reimpressão 2004 Tradução Suely Bastos Apêndice A e Paulo Henrique Britto Apêndice B Revisão Suely Bastos e Mareia Copola Capa Depto de Arte Brasiliense Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Câmara Brasileira do Livro SP Brasil Anderson Perry Linhagens do Estado absolutista Perry Anderson tradução João Roberto Martins Filho São Paulo Brasiliense 2004 Título original Lineages of the absolutist statc 2a reimpr da 3a ed de 1994 Bibliografia ISBN 8511130497 l Despotismo 2 Despotismo Estudo de casos I Título 048040 CDD3216 índices para catálogo sistemático l Absolutismo Ciência política 3216 2 Estado absolutista Ciência política 3216 editora brasiliense sa Rua Airi 22 Tatuapé CEP 03310010 São Paulo SP FoneFax Oxxll 61981488 Email brasilienseedituolcombr wwweditorabrasiliensecombr livraria brasiliense sa Rua Emília Marengo 216 Tatuapé CEP 03336000 São Paulo SP FoneFax Oxxll 66750188 Sumário Prefácio 7 Primeira parte EUROPA OCIDENTAL O Estado absolutista no Ocidente 15 Classe e Estado problemas de periodização 42 Espanha 58 França 84 Inglaterra 112 Itália 143 Suécia 173 Segunda parte EUROPA ORIENTAL O absolutismo no Leste 195 Nobreza e monarquia a variante oriental 221 Prússia 236 Polônia 279 Áustria 299 Rússia 328 A Casa do Islã 361 Conclusões 395 APÊNDICES A O feudalismo japonês B O modo de produção asiático 433 461 Prefácio O propósito deste trabalho é tentar um estudo comparado da natureza e do desenvolvimento do Estado absolutista na Europa Suas características gerais e seus limites enquanto reflexão sobre o passado foram expostos no prefácio ao estudo que o precede1 É preciso agora acrescentar algumas observações específicas sobre a relação entre a pesquisa empreendida neste volume e o materialismo histórico Conce bido como um estudo marxista do absolutismo o presente trabalho si tuase deliberadamente en a dois planos diversos do discurso marxista em geral separados por uma distância considerável Nas últimas déca das tornouse comum que os historiadores marxistas autores de um já impressionante corpo de investigações nem sempre estivessem di retamente preocupados com os problemas teóricos relativos às implica ções suscitadas por seus trabalhos Ao mesmo tempo os filósofos mar xistas que procuraram elucidar ou resolver as questões teóricas básicas do materialismo histórico fizeramno com freqüência consideravel mente afastados dos resultados específicos expostos pelos historiado res Aqui fezse uma tentativa de explorar um terreno intermediário entre aquelas posições É possível que sirva apenas como exemplo nega tivo De todo modo o objetivo deste estudo é examinar simultanea mente o absolutismo europeu em geral e em particular vale dizer tanto as estruturas puras do Estado absolutista que o constituem 1 Passages from Ântiquity to Feudalism Londres 1974 pp 79 10 PERRY ANDERSON geralmente se restringe a uma época delimitada Em qualquer dos ca sos o tempo histórico não parece apresentar normalmente nenhum problema seja nos estudos narrativos à moda antiga seja nos mo dernos estudos sociológicos os acontecimentos e as instituições pa recem mergulhar numa temporalidade mais ou menos contínua e ho mogênea Embora os historiadores estejam naturalmente cientes de que os índices de mudança variam nas diferentes camadas ou setores da sociedade o hábito e a conveniência mandam em geral que a forma de uma obra implique ou obedeça a um monismo cronológico Vale dizer seus materiais são tratados como se compartilhassem um ponto de partida comum e um mesmo ponto de chegada abarcados por um único espaço de tempo Neste estudo não há tal meio temporal uniforme pois os tempos dos absolutismos mais importantes da Eu ropa oriental ou ocidental foram precisamente caracterizados por uma enorme diversidade constitutiva ela mesma de sua natureza respectiva enquanto sistemas estatais O absolutismo espanhol sofreu a sua primeira grande derrota em fins do século XVI nos Países Bai xos o absolutismo inglês foi derrubado em meados do século XVII o absolutismo francês durou até o final do século XVIII o absolutismo prussiano sobreviveu até um período avançado do século XIX o abso lutismo russo só foi derrubado no século XX As amplas disjunções na datação dessas grandes estruturas correspondem inevitavelmente apro fundas distinções em sua composição e evolução Uma vez que o objeto específico deste estudo é o espectro global do absolutismo europeu não há temporalidade única capaz de abarcálo A história do absolutismo tem múltiplos e sobrepostos pontos de partida e pontos finais díspares e escalonados A sua unidade subjacente é real e profunda mas não é a de um cortiinuum linear A complexa duração do absolutismo europeu com suas múltiplas rupturas e deslocamentos de região para região determina neste estudo a apresentação do material histórico Assim omitese todo o ciclo de processos e acontecimentos que asseguraram o triunfo do modo de produção capitalista na Europa após o início da época moderna As primeiras1 revoluções burguesas ocorreram muito antes das últimas metamorfoses do absolutismo de um ponto de vista cronológico Contudo dentro dos propósitos deste trabalho ficam categoricamente em seguida às últimas e serão consideradas num es tudo subseqüente Assim fenômenos tão fundamentais como a acumu lação primitiva do capital a eclosão da Reforma religiosa a formação das nações a expansão do imperialismo ultramarino e o advento da industrialização que se inserem adequadamente dentro do âmbito formal dos períodos aqui tratados como contemporâneos de várias LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 11 fases do absolutismo na Europa não são discutidos ou explorados As suas datas são as mesmas os seus tempos são diferentes A história desconhecida e desconcertante das sucessivas revoluções burguesas não nos ocupa aqui o presente ensaio confinase à natureza e ao desenvol vimento dos Estados absolutistas aos seus antecedentes e adversários políticos Dois estudos ulteriores serão dedicados especificamente à ca deia das grandes revoluções burguesas da revolta dos Países Baixos à unificação da Alemanha e à estrutura dos Estados capitalistas contem porâneos que após um longo processo de evolução resultaram final mente delas Algumas das implicações teóricas e políticas das discus sões do presente volume só tomarão forma plena nessas continuações Uma última palavra é talvez necessária sobre a escolha do Estado como tema central de reflexão Hoje quando a história a partir de baixo tornouse senha reconhecida tanto em círculos marxistas como nãomarxistas e produziu já importantes benefícios para a nossa com preensão do passado é apesar de tudo necessário relembrar um dos axiomas básicos do materialismo histórico que a luta secular entre as classes resolvese em última instância no nível político da sociedade e não no nível econômico ou cultural Em outras palavras é a cons trução e a destruição dos Estados que sela as modificações básicas nas relações de produção enquanto subsistirem as classes Uma história a partir de cima do intrincado mecanismo da dominação de classe surge portanto como não menos essencial que uma história a partir de baixo na verdade sem aquela esta última tornase enfim unilateral embora do melhor lado Marx escreveu na sua maturidade A liberdade consiste na conversão do Estado de órgão sobreposto à sociedade em órgão completamente subordinado a ela e também hoje as formas do Estado são mais livres ou menos livres na medida em que restrinjam a liberdade do Estado Um século decorrido a abolição do Estado permanece ainda como uma das metas do socialismo revolu cionário Mas o supremo significado atribuído ao seu desaparecimento final testemunha todo o peso de sua presença anterior na história O absolutismo primeiro sistema de Estado internacional no mundo mo derno não esgotou de forma alguma os segredos ou lições que tem a revelarnos A finalidade deste trabalho é apresentar uma contribuição para a discussão de alguns deles Seus erros interpretações incorretas omissões solecismos e ilusões podem com segurança ser confiados à crítica do debate coletivo O Estado absolutista no Ocidente A longa crise da economia e da sociedade européias durante os séculos XIV e XV marcou as dificuldades e os limites do modo de pro dução feudal no último período da Idade Média1 Qual foi o resultado político final das convulsões continentais dessa época No curso do sé culo XVI o Estado absolutista emergiu no Ocidente As monarquias centralizadas da França Inglaterra e Espanha representavam uma ruptura decisiva com a soberania piramidal e parcelada das formações sociais medievais com seus sistemas de propriedade e de vassalagem A controvérsia sobre a natureza histórica destas monarquias tem per sistido desde que Engels numa máxima famosa declarouas produto de um equilíbrio de classe entre a antiga nobreza feudal e a nova bur guesia urbana Excepcionalmente contudo há períodos em que as classes em luta se equilibram Gleichgewicht halten de tal modo que o poder de Estado pretenso mediador adquire momentaneamente um certo grau de autonomia em relação a elas Assim aconteceu com a mo narquia absoluta dos séculos XVII e XVIII que manteve o equilíbrio gegeneinander balanciert entre a nobreza e a classe dos burgueses2 As múltiplas qualificações desta passagem indicam um certo malestar 1 Ver a discussão deste ponto em Passages from Antiquity to Feudalism Lon dres 1974 que precede o presente estudo 2 The Origin of the Family Private Property and the State em MarxEngels Selected Works Londres 1968 p 588 MarxEngels Werke vol 21 p 167 16 PERRY ANDERSON conceituai por parte de Engels Mas um exame cuidadoso das sucessi vas íormulações tanto de Marx como de Engels revela que uma con cepção similar do absolutismo foi com efeito um tema relativamente consistente em sua obra Engels repetiu a mesma tese básica em outra parte de forma mais categórica observando que a condição básica da velha monarquia absoluta era um equilíbrio Gleichgewicht entre a aristocracia fundiária e a burguesia3 Na verdade a classificação do absolutismo como um mecanismo de equilíbrio político entre a nobreza e a burguesia desliza com freqüência para a sua designação implícita ou explícita fundamentalmente como um tipo de Estado burguês en quanto tal Tal deslizamento é evidente sobretudo no próprio Mani festo Comunista onde o papel político da burguesia no período das manufaturas é caracterizado de um só fôlego como contrapeso Ge gengewicht da nobreza na monarquia semifeudal ou na absoluta pe dra angular Hauptgrundlage das grandes monarquias em geral4 A sugestiva transição de contrapeso para pedra angular tem eco em outros textos Engels podia referirse à época do absolutismo como a idade em que a nobreza feudal foi levada a compreender que o pe ríodo da sua dominação política e social chegara ao fim5 Marx por seu lado afirmou repetidamente que as estruturas administrativas dos novos Estados absolutistas eram um instrumento tipicamente burguês Sob a monarquia absoluta escreveu a burocracia era apenas o meio de preparar o domínio de classe da burguesia Em outra pas sagem Marx declarava O poder do Estado centralizado com os seus órgãos onipresentes exército permanente polícia burocracia clero e magistratura órgãos forjados segundo o plano de uma divisão do trabalho sistemática e hierárquica tem a sua origem nos tempos da monarquia absoluta quando serviu à sociedade da classe média nas cente como arma poderosa nas suas lutas contra o feudalismo6 Tais reflexões sobre o absolutismo eram todas mais ou menos casuais e alusivas uma teorização direta das novas monarquias centra lizadas que emergiram na Europa renascentista nunca foi efetuada por 3 Zur Wohnungsfrage em Werke vol 18 p 258 4 MarxEngels Selected Works p 37 Werke vol 4 p 464 5 Uber den Verfall dês Feudalismus und das Aufkommen der Bourgeoisie em Werke vol 21 p 398 A dominação política é explicitamente staatliche na frase aqui citada 6 A primeira formulação é de The Eighteenth Brumaire of Louis Bonaparte em Selected Works p 171 a segunda é de The Civil War in France em Selected Works p 289 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 17 nenhum dos fundadores do materialismo histórico A sua importância exata foi deixada ao juízo das gerações posteriores Com efeito os his toriadores marxistas debatem até hoje o problema da natureza social do absolutismo A sua solução correta é na verdade vital para a com preensão da passagem do feudalismo para o capitalismo na Europa e dos sistemas políticos que a diferenciaram As monarquias absolutas introduziram os exércitos regulares uma burocracia permanente o sis tema tributário nacional a codificação do direito e os primórdios de um mercado unificado Todas essas características parecem ser emi nentemente capitalistas Uma vez que elas coincidem com o desapa recimento da servidão uma instituição nuclear do primitivo modo de produção feudal na Europa as descrições do absolutismo por Marx e Engels como um sistema de Estado correspondente a um equilíbrio entre a burguesia e a nobreza ou mesmo a uma dominação direta do capital sempre pareceram plausíveis No entanto um estudo mais detido das estruturas do Estado absolutista no Ocidente invalida inevi tavelmente tais juízos Pois o fim da servidão não significou aí o desa parecimento das relações feudais no campo A identificação de um com o outro é um erro comum Contudo é evidente que a coerção extra econômica privada a dependência pessoal e a associação do produtor direto com os instrumentos de produção não se desvanecem necessa riamente quando o sobreproduto rural deixou de ser extraído na forma de trabalho ou prestações em espécie e se tornou renda em dinheiro enquanto a propriedade agrária aristocrática impedia um mercado li vre na terra e a mobilidade efetiva do elemento humano em outras palavras enquanto o trabalho não foi separado de suas condições so ciais de existência para se transformar em força de trabalho as relações de produção rurais permaneciam feudais Precisamente em sua análise teórica da renda da terra em O Capital o próprio Marx o torna claro A transformação da renda em trabalho na renda em es pécie nada de fundamental altera na natureza da renda fundiária Por renda monetária entendemos aqui a renda fundiária que resulta de uma simples mudança de forma da renda em espécie tal como esta não é mais do que uma modificação da renda em trabalho A base deste tipo de renda embora se aproxime a sua dissolução continua a ser a mesma da renda em espécie que constitui o seu ponto de partida O produtor direto é ainda como antes o possuidor da terra através de herança ou de qualquer outro direito tradicional e deve efetuar ao seu senhor enquanto proprietário de sua condição de produção mais es sencial a prestação de trabalho excedente na forma de corvéia isto é trabalho nãopago pelo qual não se recebe equivalente na forma de um 18 PERRY ANDERSON sobreproduto transformado em dinheiro7 Os senhores que permane ceram proprietários dos meios de produção fundamentais em qualquer sociedade préindustriai eram certamente os nobres terratenentes Durante toda a fase inicial da época moderna a classe dominante econômica e politicamente era portanto a mesma da época me dieval a aristocracia feudal Essa nobreza passou por profundas meta morfoses nos séculos que se seguiram ao fim da Idade Média mas desde o princípio até o final da história do absolutismo nunca foi desa lojada de seu domínio do poder político As alterações nas formas de exploração feudal sobrevindas no final da época medieval estavam naturalmente longe de serem insig nificantes Na verdade foram precisamente essas mudanças que modi ficaram as formas do Estado Essencialmente o absolutismo era ape nas isto um aparelho de dominação feudal recolocado e reforçado destinado a sujeitar as massas camponesas à sua posição social tradi cional não obstante e contra os benefícios que elas tinham conquis tado com a comutação generalizada de suas obrigações Em outras pa lavras o Estado absolutista nunca foi um árbitro entre a aristocracia e a burguesia e menos ainda um instrumento da burguesia nascente contra a aristocracia ele era a nova carapaça política de uma nobreza atemorizada O consenso de uma geração de historiadores marxistas da Inglaterra e da Rússia foi resumido por Hill vinte anos atrás A monarquia absoluta foi uma forma de monarquia feudal diferente da monarquia dos Estados medievais que a precedera mas a classe domi nante permaneceu a mesma tal como uma república uma monar quia constitucional e uma ditadura fascista podem ser todas formas de dominação da burguesia8 A nova forma de poder da nobreza foi por sua vez determinada pela difusão da produção e troca de mercadorias nas formações sociais de transição do início da época moderna Neste 7 Capital III pp 774777 A exposição de Dobb sobre esta questão funda mental em sua Réplica a Sweezy no famoso debate dos anos 50 sobre a transição do feudalismo ao capitalismo é aguda e lúcida Science and Socieíy XIV n 2 primavera de 1950 pp 15767 esp 1634 A importância teórica do problema é evidente No caso de um país como a Suécia por exemplo os relatos históricos correntes sustentam que n3o teve feudalismo porque a servidão propriamente dita esteve ausente Na ver dade as relações feudais predominaram evidentemente na Suécia rural durante toda a última fase da era medieval 8 Christopher Hill Comentário sobre a transição do feudalismo ao capita lismo Science and Society XVII n 4 outono de 1953 p 351 Os termos desta crítica devem ser considerados com cuidado O caráter geral e de toda uma época do absolu tismo torna desapropriada qualquer comparação deste com os regimes fascistas locali zados e excepcionais LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 19 sentido Althusser especificou corretamente o seu caráter O regime político da monarquia absoluta é apenas a nova forma política neces sária à manutenção da dominação e da exploração feudais no período de desenvolvimento de uma economia mercantil9 Mas as dimensões da transformação histórica acarretada pelo advento do absolutismo não devem ser de forma alguma minimizadas Pelo contrário é essen cial apreender toda a lógica e significação da importante mudança ocorrida na estrutura do Estado aristocrático e da propriedade feu dal que produziu o fenômeno novo do absolutismo O feudalismo como modo de produção definiase por uma uni dade orgânica de economia e dominação política paradoxalmente dis tribuída em uma cadeia de soberanias parcelares por toda a formação social A instituição do trabalho servil como mecanismo de extração de excedente fundia a exploração econômica e a coerção políticolegal no nível molecular da aldeia O senhor por sua vez tinha normalmente o dever de vassalagem e de serviço militar para com o seu suserano se nhorial que reclamava a terra como seu domínio supremo Com a co mutação generalizada das obrigações transformadas em rendas mone tárias a unidade celular de opressão política e econômica do campe sinato foi gravemente debilitada e ameaçada de dissociação o final deste processo foi o trabalho livre e o contrato salarial O poder de classe dos senhores feudais estava assim diretamente em risco com o desaparecimento gradual da servidão O resultado disso foi um deslo camento da coerção políticolegal no sentido ascendente em direção a uma cúpula centralizada e militarizada o Estado absolutista Di luída no nível da aldeia ela tornouse concentrada no nível nacional O resultado foi um aparelho reforçado de poder real cuja função polí tica permanente era a repressão das massas camponesas e plebéias na base da hierarquia social Entretanto esta nova máquina política foi também por sua própria natureza dotada de uma força de coerção 9 Louis Althusser Montesquieu lê Politique et 1ffistoire Paris 1960 p 117 Tal formulação foi escolhida por ser recente e representativa A confiança no caráter capitalista ou quase capitalista do absolutismo ainda pode ser encontrada entretanto ocasionalmente Poulantzas comete a imprudência de classificar desse modo os Estados absolutistas na sua obra aliás importante Pouvoir Politigue et Classes Sociales pp 16980 embora o seu enunciado seja vago e ambíguo O recente debate sobre o absolu tismo russo nos periódicos soviéticos de história revelou exemplos similares isolados em bora cronologicamente mais nuançados ver por exemplo A Ya Avrekh Russkii Ab soliutízm J evo Rol v Utverzhdeníe Kapitalizma v Rossii Istoria SSSR fevereiro de 1968 pp 83104 que considera o absolutismo o protótipo do Estado burguês p 92 Os pontos de vista de Avrekh foram intensamente criticados no debate que se seguiu e não podem ser tomados como típicos do teor geral da discussão 20 PERRY ANDERSON capaz de vergar ou disciplinar indivíduos ou grupos dentro da própria nobreza Assim como veremos o advento do absolutismo nunca foi para a própria classe dominante um suave processo de evolução ele foi marcado por rupturas e conflitos extremamente agudos no seio da aris tocracia feudal cujos interesses coletivos em última análise servia Ao mesmo tempo o complemento objetivo da concentração política de poder no topo da ordem social numa monarquia centralizada foi a consolidação econômica das unidades de propriedade feudal em sua base Com a expansão das relações mercantis a dissolução do nexo primário de exploração econômica e coerção políticolegal conduziu não apenas a uma crescente projeção desta última sobre o vértice régio do sistema social mas também a um fortalecimento compensatório dos títulos de propriedade que garantiam a primeira Em outras palavras com a reorganização de todo o sistema político feudal e com a diluição do primitivo sistema de feudo a propriedade da terra tendia a tornar se progressivamente menos condicional à medida que a soberania se tornava correspondentemente mais absoluta O enfraquecimento das concepções medievais de vassalagem atuava em ambos os sentidos ao mesmo tempo que conferia novos e extraordinários poderes à mo narquia emancipava os domínios da nobreza das restrições tradicio nais A propriedade agrária da nova época era silenciosamente alodia lizada para fazer uso de um termo que viria por sua vez a se tornar anacrônico num ambiente jurídico modificado Os membros indivi duais da classe aristocrática que perderam constantemente direitos políticos de representação na nova época registraram ganhos econô micos na propriedade como o reverso do mesmo processo histórico O efeito último desta redisposição geral do poder social da nobreza foi a máquina de Estado e a ordem jurídica do absolutismo cuja coordena ção iria aumentar a eficácia da dominação aristocrática ao sujeitar um campesinato nãoservil a novas formas de dependência e exploração Os Estados monárquicos da Renascença foram em primeiro lugar e acima de tudo instrumentos modernizados para a manutenção do do mínio da nobreza sobre as massas rurais Simultaneamente porém a aristocracia tinha que se adaptar a um segundo antagonista a burguesia mercantil que se desenvolvera nas cidades medievais Viuse que foi precisamente a intercalação desta terceira presença que impediu a nobreza ocidental de ajustar suas con tas com o campesinato à maneira oriental esmagando a sua resistência para agrilhoálo ao domínio A cidade medieval fora capaz de desen volverse porque a dispersão hierárquica de soberanias no modo de produção feudal libertara pela primeira vez as economias urbanas da LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 21 dominação direta de uma classe dirigente rural10 Neste sentido as ci dades nunca foram exógenas ao feudalismo no Ocidente como vimos com efeito a própria condição de sua existência era a singular desto talização da soberania no interior da ordem políticoeconômica do feudalismo Daí a elasticidade das cidades do Ocidente durante a pior crise do século XIV que levou temporariamente à bancarrota tantas das famílias patrícias das cidades do Mediterrâneo Os Bardi e os Pe ruzzi arruinaramse em Florença Siena e Barcelona entraram em de clínio mas Augsburgo Genebra ou Valência estavam justamente no início de sua ascensão Indústrias urbanas importantes como as do ferro papel e têxteis cresceram durante toda a depressão feudal à dis tância tal vitalidade econômica e social atuava como uma interferência constante e objetiva na luta de classes centrada na terra e bloqueava qualquer solução regressiva proposta pelos nobres Na verdade é signi ficativo que os anos decorridos entre 1450 e 1500 testemunhas do sur gimento dos pródromos das monarquias absolutistas no Ocidente te nham sido também aqueles em que foi superada a longa crise da eco nomia feudal através de uma recombinação dos fatores de produção onde pela primeira vez os avanços técnicos especificamente urbanos desempenharam o papel principal O feixe de invenções que coincide com a articulação da época medieval com a época moderna é por demais conhecido sendo desnecessário discutilo aqui A descoberta do processo seiger para separar a prata do minério de cobre reabriu as 10 O celebrado debate entre Sweezy e Dobb com contribuições de Takahashi Hilton e Hill em Science and Svcieiy permanece até hoje como a única abordagem sis temática das questões centrais da transição do feudalismo ao capitalismo Num aspecto importante contudo ele girou em torno de uma falsa questão Sweezy argumentou na esteira de Pirenne que a força motriz na transição foi um agente externo de disso lução os enclaves urbanos que destruíram a economia agrária feudal através da ex pansão do intercâmbio de mercadorias nas cidades Dobb replicou que o ímpeto para a transição deve ser localizado no seio das contradições da própria economia agrária que geraram a diferenciação social do campesinato e a ascensão do pequeno produtor Num ensaio posterior sobre o tema Vilar formulou explicitamente o problema da transição como sendo o de definir a combinação correta das transformações agrárias endógenas e comerciaisurbanas exógenas ao mesmo tempo que ele próprio enfatizava a impor tância da nova economia comercial atlântica no século XVI Problems in the Formation oíCpitalhmPastandPresent n 10 novembro de 1956 pp 334 Em um importante estudo recente The Relation between Town and Country in the Transition from Feuda lism to Capitalism não publicado John Merrington resolveu efetivamente esta anti nomia ao demonstrar a verdade básica de que o feudalismo europeu longe de se constituir numa economia exclusivamente agrária foi o primeiro modo de produção na história a conceder um lugar estrutural autônomo à produção e à troca urbanas O crescimento das cidades era nesse sentido um processo tão interno como a disso lução do domínio feudal no feudalismo da Europa ocidental 22 PERRY ANDERSON minas da Europa central e restabeleceu o fluxo de metais para a eco nomia internacional a produção de moeda da Europa central quintu plicou entre 1460 e 1530 O desenvolvimento do canhão de bronze fun dido fez da pólvora pela primeira vez a arma decisiva na arte da guerra tornando obsoletas as defesas dos castelos senhoriais A inven ção dos tipos móveis possibilitou o advento da imprensa A construção do galeão de três mastros com leme à popa tornou os oceanos nave gáveis facilitando as conquistas ultramarinas11 Todas estas rupturas técnicas que assentaram os alicerces da Renascença européia concen traramse na segunda metade do século XV e foi então que a depressão agrária secular foi finalmente sustada por volta de 1470 na Inglaterra e na França Foi precisamente nesta época que ocorreu uma súbita e simul tânea restauração da autoridade e da unidade políticas num país após outro Do abismo de agudo caos e turbulência medievais das Guerras das Duas Rosas da Guerra dos Cem Anos e da segunda Guerra Civil de Castela as primeiras novas monarquias ergueramse pratica mente ao mesmo tempo durante os reinados de Luís XI na França Fernando e Isabel na Espanha Henrique VII na Inglaterra e Maxi miliano na Áustria Assim quando os Estados absolutistas se consti tuíram no Ocidente a sua estrutura foi fundamentalmente determi nada pelo reagrupamento feudal contra o campesinato após a dissolu ção da servidão mas ela foi secundariamente sobredeterminada pela ascensão de uma burguesia urbana que depois de uma série de avan ços técnicos e comerciais evoluía agora em direção às manufaturas préindustriais numa escala considerável Foi este impacto secundário da burguesia urbana sobre as formas do Estado absolutista que Marx e Engels procuraram apreender com as noções incorretas de contra peso ou pedra angular Engels com efeito expressou a relação de forças real com bastante precisão em mais de uma passagem ao discu 11 Quanto aos canhões e galeões ver Cario Cipolla Guns and Sails in the Early Phase of European Expansion 14001700 Londres 1965 Com relação à imprensa as reflexões recentes mais audaciosas embora prejudicadas por uma monomania comum nos historiadores da tecnologia são as de Elizabeth L Eisenstein Some Conjectures about the Impact of Printing on Western Society and Thought a Preliminary Report Journal of Modem History marçodezembro de 1968 pp 156 e The Advent oí Printing and the Problem of the Renaissance Past and Present n 45 novembro de 1969 pp 1989 As invenções técnicas capitais desta época podem ser vistas em um certo aspecto como variações de um campo comum o das comunicações Elas se referem respectiva mente ao dinheiro à linguagem às viagens e à guerra mais tarde todas presentes entre os grandes temas filosóficos do iluminismo LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 23 tir as novas descobertas marítimas e as indústrias manufatureiras da Renascença escreveu que esta poderosa revolução nas condições da vida econômica da sociedade não foi seguida entretanto por qualquer mudança imediata correspondente em sua estrutura política A ordem política permaneceu feudal ao passo que a sociedade tornavase cada vez mais burguesa12 A ameaça da inquietação camponesa incontes tavelmente constitutiva do Estado absolutista sempre se conjugou assim com a pressão do capital mercantil ou manufatureiro no seio das economias ocidentais em seu conjunto moldando os contornos do po der de classe aristocrático na nova era A forma peculiar do Estado absolutista no Ocidente deriva desta dupla determinação As forças duais que produziram as novas monarquias da Eu ropa renascentista encontraram uma condensação jurídica única O ref l crescimento do direito romano um dos grandes movimentos cultu rais da época correspondeu ambiguamente às necessidades de ambas as classes sociais cuja posição e poder desiguais moldaram as estrutu ras do Estado absolutista no Ocidente O conhecimento renovado da jurisprudência romana remontava em si à Alta Idade Média O denso 12 AntiDühring Moscou 1947 p 126 ver também as pp 19697 onde fór mulas corretas e incorretas estão presentes Estas páginas são citadas por Hill em seu Comentário para absolver Engels dos equívocos da noção de equilíbrio Em geral é possível encontrar passagens tanto de Marx como de Engels onde o absolutismo é en tendido de forma mais adequada que nos textos analisados atrás Por exemplo no pró prio Manifesto Comunista há uma referência direta ao absolutismo feudal Selected Works p 56 ver também o artigo de Marx Die moralisierende K ri ti k und die krití sierende Moral de 1847 em Werke vol 4 pp 347 35253 Seria surpreendente se fosse de outro modo dado que a conseqüência lógica de se batizarem os Estados abso lutistas como burgueses ou semiburgueses seria negar a natureza e a realidade das pró prias revoluções burguesas da Europa ocidental Mas não restam dúvidas de que em meio a uma confusão recorrente a tendência principal de seus comentários ia no sentido da concepção do contrapeso com o seu deslizamento concomitante na direção da de pedra angular Não há necessidade de escondelo O imenso respeito intelectual e político que devemos a Marx e Engels é incompatível com qualquer complacência para com eles Os seus erros tantas vezes mais esclarecedores que as verdades de outros não devem ser eludidos mas localizados e superados E aqui é necessário fazer uma advertência adicional Há muito tem sido moda depreciar a contribuição relativa de Engels à criação do materialismo histórico Para aqueles que ainda se acham inclinados a aceitar esta difundida noção é preciso dizer tranqüila e escandalosamente os juízos históricos de Engels são quase sempre superiores aos de Marx Ele possuía um conheci mento mais profundo da história européia e uma compreensão mais segura de suas estru turas sucessivas e relevantes Não há nada em toda a obra de Engels que se compare às ilusões e preconceitos de que Marx era às vezes capaz neste campo como a fantasma górica História Diplomática Secreta do Século XVIII A supremacia da contribuição global de Marx à teoria geral do materiaüsmo histórico não precisa ser reiterada A esta tura atingida por Engels em seus estudos históricos é precisamente o que faz com que valha a pena chamar a atenção para seus erros específicos 24 PERRY ANDERSON crescimento do direito consuetudinário jamais deixou morrer comple tamente a memória e a prática do direito civil romano na península onde sua tradição era mais antiga a Itália Foi em Bolonha que Irne rius a luz do direito reiniciou o estudo sistemático dos códigos de Justiniano no início do século XII A escola dos Glosadores por ele fundada reconstituiu e classificou metodicamente o legado dos juristas romanos durante os cem anos seguintes A eles se seguiram nos séculos XIV e XV os Comentadores mais interessados na aplicação con temporânea das normas jurídicas romanas que na análise erudita de seus princípios teóricos e no processo de adaptação do direito romano às condições drasticamente modificadas da época eles ao mesmo tem po adulteraram a sua forma primitiva e a depuraram de seus conteúdos particularistas13 A própria infidelidade de suas transposições da juris prudência latina paradoxalmente universalizoua ao eliminar as amplas partes do direito civil romano estritamente relacionadas às con dições históricas da Antigüidade por exemplo naturalmente o seu tratamento exaustivo da escravidão14 Fora da Itália os conceitos jurí dicos romanos começaram a difundirse gradualmente a partir de sua redescoberta original do século XII No final da Idade Média nenhum país importante da Europa ocidental escapara a este processo Mas a assimilação decisiva do direito romano o seu triunfo jurídico ge neralizado teria lugar na época do Renascimento concomitante mente à vitória do absolutismo As razões históricas de seu profundo impacto foram de duas ordens e refletiram a natureza contraditória do próprio legado romano original Do ponto de vista econômico a recuperação e a introdução do direito civil clássico foram fundamentalmente propícias à expansão do livre capital na cidade e no campo pois a grande marca distintiva do direito civil romano fora a sua concepção de propriedade privada abso luta e incondicional A concepção clássica da propriedade quiritária virtualmente se perdera nas sombrias profundezas dos primórdios do 13 Ver H D Ha ze l tine Roman and Canon Law in the Middle Ages The Cambrídge Medieval History V Cambridge 1968 pp 73741 O classicismo renascen tista propriamente dito viria conseqüentemente a ser muito crítico em relação à obra dos Comentadores 14 Agora que este direito foi transposto para situações de fato inteiramente estranhas desconhecidas na Antigüidade a tarefa de construir a situação de um modo logicamente impecável tornase a tarefa quase exclusiva Deste modo essa concepção de direito que ainda hoje predomina e que vê no direito um complexo de normas logi camente coerente e sem lacunas à espera de ser aplicado1 tornouse a concepção deci siva do pensamento jurídico Weber Economy and Society II p 855 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 25 feudalismo Como vimos o modo de produção feudal definiase preci samente pelos princípios jurídicos da propriedade escalonada ou condicional complemento de sua soberania parcelada Tal estatuto de propriedade adaptavase bem à economia predominantemente natural que surgiu na Idade das Trevas entretanto nunca fora totalmente ade quado ao setor urbano que se desenvolvera na economia medieval As sim o ressurgimento do direito romano durante a Idade Média já re sultará em esforços jurídicos no sentido de endurecer e delimitar noções de propriedade inspiradas nos preceitos clássicos então disponí veis Uma dessas tentativas foi a criação no final do século XII da dis tinção entre dominium directum e dominium utile para justificar a existência de uma hierarquia de vassalagem e portanto de uma mul tiplicidade de direitos sobre a mesma terra15 Outra foi a noção tipica mente medieval de seisin uma concepção intermediária entre a pro priedade e a posse latinas que garantia uma propriedade protegida contra eventuais apropriações e reivindicações conflituosas embora mantendo o princípio feudal dos títulos múltiplos sobre o mesmo ob jeto o direito de seisin não era nem exclusivo nem perpétuolb O res surgimento pleno da idéia de propriedade privada absoluta da terra foi um produto do início da época moderna Foi apenas quando a produ ção e a troca de mercadorias atingiram níveis globais tanto na agri cultura quanto nas manufaturas iguais ou superiores aos da Anti güidade que os conceitos jurídicos criados para codificálos puderam ganhar influência outra vez A máxima superfícies solo cedit pro priedade única e incondicional da terra tornouse então pela se gunda vez um princípio operacional na propriedade agrária embora de modo algum dominante precisamente devido à difusão das rela ções mercantis no campo que iria definir a longa transição do feuda lismo ao capitalismo no Ocidente Nas próprias cidades desenvolve rãse espontaneamente um direito comercial relativamente avançado du rante a Idade Média No seio da economia urbana como vimos a troca de mercadorias atingira já na época medieval um considerável dina mismo e em certos aspectos importantes as suas formas de expressão 15 Ver a discussão desta questão em JP Lévy Histoire de Ia Propriété Paris 1972 pp 446 Um outro efeito secundário irônico dos esforços no sentido de uma nova clareza jurídica inspirados pelas pesquisas medievais dos códigos romanos foi com cer teza o aparecimento da definição dos servos comoglebae adscrípti 16 Sobre a importação do conceito de seisin verP Vinogradoff Roman Law in Mediaeval Europe Londres 1909 pp 747 86 956 Lévy Histoire de Ia Propriété pp 502 toS TTK 26 PERRY ANDERSON jurídica eram mais avançadas que os próprios precedentes romanos por exemplo o primitivo direito das sociedades e o direito marítimo Mas também aí faltava uma estrutura uniforme de teoria e processos jurídicos A superioridade do direito romano para a prática mercantil nas cidades residia assim não somente em suas bem definidas noções de propriedade absoluta mas nas suas tradições de eqüidade em seus critérios racionais de prova e na ênfase dada a uma magistratura pro fissional vantagens que os tribunais consuetudinários normalmente não ofereciam7 A assimilação do direito romano na Europa do Renas cimento foi assim um indício da difusão das relações capitalistas nas cidades e no campo economicamente ela correspondia aos interesses vitais da burguesia comercial e manufatureira Na Alemanha país onde o impacto do direito romano foi mais dramático desbancando repentinamente os tribunais locais na pátria do direito consuetudinário teutônico no final do século XV e século XVI o impulso inicial para sua adoção ocorreu nas cidades do sul e do oeste e penetrou pela base através da pressão dos litigantes urbanos em prol de um direito de ex pressão clara aplicado por magistrados profissionais18 Entretanto foi rapidamente adotado pelos príncipes alemães e aplicado em seus terri tórios numa escala ainda mais impressionante a serviço de finalidades muito diversas Politicamente o reflorescimento do direito romano respondia às exigências constitucionais dos Estados feudais reorganizados da época Com efeito não restam dúvidas de que na escala européia a determi nante primordial da adoção da jurisprudência romana reside na ten dência dos governos monárquicos à crescente centralização dos pode 17 Há ainda muito a investigar sobre a relação entre o primitivo direito medie val e o direito romano nas cidades O avanço relativo das normas jurídicas que regiam as operações de commendatio e o comércio marítimo na Idade Média não causa surpresa o mundo romano como vimos não conhecia sociedades empresariais e compreendia um Mediterrâneo unitário Por conseguinte não havia razão para que desenvolvesse qual quer deles Por outro lado o estudo precoce do direito romano nas cidades italianas sugere que aquilo que no Renascimento aparecia como prática contratual medieval bem pode ter sido muitas vezes originalmente informado por preceitos jurídicos deri vados da Antigüidade Vinogradoff tinha certeza de que o direito contratual romano exercera uma influência direta sobre os códigos comerciais da burguesia urbana durante a Idade Média Roman Law in Mediaeval Europe pp 7980 131 A propriedade imobi liária urbana com as suas burgage tenures posses urbanas esteve sempre mais pró xima das normas romanas do que a propriedade rural da Idade Média evidentemente 18 Wolfgang Kunkell The Reception of Roman Law in Germany an Inter pretation e Georg Dahm On the Reception of Roman and Italian Law in Germany in G Strauss Org PreReformation Germany Londres 1972 pp 271 2746 278 28492 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 27 rés Não custa recordar que o sistema jurídico romano compreendia dois setores distintos e aparentemente contrários o direito civil que regulamentava as transações econômicas entre os cidadãos e o direito público que regia as relações políticas entre o Estado e os seus súditos O primeiro constituía o jus o último a lex O caráter juridicamente incondicional da propriedade privada consagrado em um encontrava o seu equivalente contraditório na natureza formalmente absoluta da soberania imperial exercida pela outra pelo menos a partir do Domi nato Foram os princípios teóricos deste imperium político que exerce ram uma profunda influência e atração sobre as novas monarquias da Renascença Se o ressurgimento das noções de propriedade quiritária ao mesmo tempo traduzia e fomentava a expansão geral da troca de mer cadorias nas economias de transição da época o revivescimento das prerrogativas autoritárias do Dominato expressavam e consolidavam a concentração do poder de classe aristocrático num aparelho de Estado centralizado que constituía a reação da nobreza àquele processo O duplo movimento social inscrito nas estruturas do absolutismo do Oci dente encontrou então a sua harmonia jurídica na reintrodução do direito romano A famosa máxima de Ulpiano quod príncipi placuit legis habet vicem a vontade do príncipe tem força de lei tornouse um ideal constitucional das monarquias do Renascimento em todo o Ocidente19 A noção complementar de que os reis e os príncipes eram eles próprios legibus solutus isto é isentos de restrições legais anterio res proporcionaram os protocolos jurídicos para a supressão dos privi légios medievais ignorando os direitos tradicionais e subordinando as imunidades privadas Em outros termos à intensificação da propriedade privada na base contrapôsse o incremento da autoridade pública no topo corpo rificada no poder discricionário do monarca Os Estados absolutistas ocidentais fundamentavam seus novos objetivos em precedentes clássi cos o direito romano era a mais poderosa arma intelectual disponível para o seu programa característico de integração territorial e centra lismo administrativo Com efeito não foi por acidente que a única mo narquia medieval que alcançou completa emancipação de quaisquer restrições representativas ou corporativas tenha sido o papado pri meiro sistema político da Europa feudal a utilizar a jurisprudência ro mana em grande escala com a codificação do direito canonico nos sé culos XII e XIII A reivindicação papal deplenitudo potestatis no seio 19 Um ideal mas de modo algum o único veremos que a prática complexa do absolutismo esteve sempre muito distante da máxima de Ulpiano 28 PERRY ANDERSON da Igreja estabeleceu o precedente para as futuras pretensões dos prín cipes seculares com freqüência realizadas precisamente contra a exor bitância religiosa daquela Além disso da mesma forma que os juristas canônicos do papado essencialmente construíram e operaram os seus amplos controles administrativos sobre a Igreja os burocratas semipro fissionais versados no direito romano constituíramse nos principais funcionários executivos dos novos Estados monárquicos As monar quias absolutistas do Ocidente contaram com uma camada especiali zada de juristas para prover as suas máquinas administrativas os le trados na Espanha os maitres de requêtes na França os doctores na Alemanha Imbuídos das doutrinas romanas da autoridade decretai do príncipe e das noções romanas de normas jurídicas unitárias tais buro cr atasjuristas foram os zelosos executores do centralismo monárquico no primeiro século crítico de construção do Estado absolutista Mais do que qualquer outra força foi a chancela deste corpo internacional de juristas que romanizou os sistemas jurídicos da Europa ocidental na Renascença Efetivamente a transformação do direito refletia inevita velmente a distribuição de poder entre as classes proprietárias da épo ca o absolutismo enquanto aparelho de Estado reorganizado de domi nação da nobreza foi o principal arquiteto da assimilação do direito romano na Europa Mesmo aí como na Alemanha onde as cidades autônomas iniciaram o movimento foram os príncipes que se apossa ram dele e o puseram à prova e onde como na Inglaterra o poder monárquico falhou em impor o direito civil ele não ganhou raízes no meio urbano20 No processo sobredeterminado do revi vê sei men to ro mano coube à pressão política do Estado dinástico a primazia as de mandas de clareza monárquica predominaram sobre as de certeza mercantil21 O acréscimo em racionalidade formal ainda extrema 20 O direito romano nunca se naturalizou na Inglaterra em grande parte de vido à centralização precoce do Estado anglonormando cuja unidade administrativa tornou a monarquia inglesa relativamente indiferente às vantagens do direito civil du rante a sua difusão medieval ver os pertinentes comentários de N Cantor Mediaeval History Londres 1963 pp 34549 No início da época moderna as dinastias Tudor e Stuart introduziram novas instituições jurídicas similares às do direito civil Câmara Es trelada Tribunal da Marinha Tribunal do Lord Chanceler mas estas foram incapazes de prevalecer sobre as do direito comum após violentos conflitos entre as duas no início do século XVII a Revolução Inglesa de 1640 consolidou a vitória das últimas Para algumas reflexões sobre este processo ver W Holdsworth A History of English Law IV Londres 1924 pp 2845 21 Estas foram as duas expressões usadas por Weber para designar os interesses respectivos das duas forças que trabalharam pela romanização Assim enquanto as classes burguesas procuram obter certeza na administração da justiça o corpo de fun LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUT1STA 29 mente imperfeita e incompleta dos sistemas jurídicos dos primórdios da Europa moderna foi preponderantemente obra do absolutismo aris tocrático O efeito supremo da modernização jurídica foi portanto o refor çamento da dominação da classe feudal tradicional O paradoxo apa rente de tal fenômeno refletiuse em toda a estrutura das próprias mo narquias absolutistas combinações exóticas e híbridas cuja moder nidade superficial trai freqüentemente um arcaísmo subterrâneo Este traço aparece claramente a partir de uma análise das inovações insti tucionais que anunciaram e caracterizaram o seu aparecimento exér cito burocracia tributação comércio e diplomacia Vale considerálos sumariamente nesta ordem Temse salientado muitas vezes que o Es tado absolutista foi o pioneiro do exército profissional que com a revo lução militar introduzida em fins do século XVI e no século XVII por Maurício de Orange Gustavo Adolfo e Wallenstein treinamento da infantaria de linha pelos holandeses salva de cavalaria e sistema de pelotão pelos suecos comando vertical unitário pelos tchecos cres ceu enormemente em volume22 Os exércitos de Felipe II montavam a cerca de 60 mil homens enquanto cem anos mais tarde os de Luís XIV atingiam 300 mil Todavia tanto a forma como a função destas tropas divergiam imensamente daquelas que depois se tornariam caracterís ticas do Estado burguês moderno Não eram normalmente uma força nacional formada por recrutas mas uma massa heterogênea na qual os mercenários estrangeiros desempenhavam um papel constante e cen tral Tais mercenários eram em geral recrutados nas áreas exteriores ao perímetro das novas monarquias centralizadas com freqüência regiões montanhosas especializadas em fornecêlos os suíços foram os gur khas da primeira fase da Europa moderna Os exércitos francês ho landês espanhol austríaco ou inglês incluíam suábios albaneses suí ços irlandeses valáquios turcos húngaros ou italianos23 Com cer teza a mais óbvia razão para o fenômeno mercenário foi a natural cionários está geralmente interessado na clareza e na ordem do direito Ver a sua excelente análise emEconomy andSociety II pp 8478 22 Michael Roberts The Military Revolution 15601660 em Essays in Swe dish History Londres 1967 pp 195225 um texto básico Gustavus Adolphus A History ofSweden 16111632 Londres 1958 vol II pp 16989 Roberts talvez superes time ligeiramente o crescimento quantitativo dos exércitos nessa época Gurkhas soldados do Nepal que serviram no exército britânico N T 23 Victor Kíernan Foreign Mercenaries and Absolute Monarchy Past and Present n 11 abril de 1957 pp 6686 republicado em T Aston Org Crisis in Europe 15601660 Londres 1965 pp 11740 constitui uma incomparável abordagem do fenômeno mercenário à qual pouco se acrescentou desde então 30 PERRY ANDERSON recusa da nobreza em armar os seus próprios camponeses em larga escala É praticamente impossível treinar todos os súditos de uma comunidade nas artes da guerra e ao mesmo tempo mantêlos obedien tes às leis e aos magistrados confidenciava Jean Bodin Foi esta tal vez a principal razão pela qual Francisco I dissolveu em 1534 os sete regimentos cada um com 6 mil soldados de infantaria que criara em seu reinado24 Em contrapartida podiase contar com as tropas mer cenárias ignorantes da própria língua da população local para esma gar a rebelião social Os Landsknechten alemães ocuparamse dos le vantes camponeses de 1549 no East Anglian na Inglaterra enquanto os arcabuzeiros italianos asseguraram a liquidação da revolta rural no West Country os Guardas Suíços ajudaram a reprimir os guerrilheiros boulonnais e camisardos de 1662 e 1702 na França A importância vital dos mercenários já cada vez mais visível no final da Idade Média do País de Gales à Polônia não foi apenas um expediente temporário do absohitismo na aurora da sua existência ela o marcaria até a sua própria extinção no Ocidente No final do século XVIII mesmo após a introdução do recrutamento obrigatório nos principais países da Eu ropa até dois terços de um dado exército nacional podiam se com por de soldadesca estrangeira contratada25 O exemplo do absolutismo prussiano que ao mesmo tempo convidava e raptava efetivos fora de suas fronteiras através de leilões ou de envolvimento serve para lem brarnos de que não havia necessariamente uma distinção nítida entre os dois Simultaneamente entretanto a função destas novas e vastas aglomerações de soldados era também visivelmente distinta daquela dos futuros exércitos capitalistas Não se dispõe até hoje de uma teoria marxista das variáveis funções sociais da guerra nos diferentes modos de produção Não é este o lugar para aprofundar o assunto No en tanto podese defender que a guerra era possivelmente o mais racional e rápido modo de expansão da extração de excedentes ao alcance de qualquer classe dominante sob o feudalismo A produtividade agrícola como vimos não foi de forma alguma estagnada durante a Idade Média como tampouco o foi o volume de comércio Mas ambos cres ceram bastante vagarosamente para os senhores em comparação com os súbitos e maciços rendimentos propiciados pelas conquistas terri toriais entre as quais as invasões normandas da Inglaterra e da Sicília 24 Jean Bodin Lês Six Livres de Ia Republique Paris 1578 p 669 25 Walter Dom CompetitionforEmpire Nova Iorque 1940 p 83 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 31 a captura de Nápoles pelos angevinos ou a conquista castelhana da Andaluzia constituiriam apenas os exemplos mais espetaculares Ê lógico portanto que a definição social da classe dominante feudal fosse militar A racionalidade econômica da guerra numa tal formação social é específica ela é uma maximização da riqueza cujo papel não se pode comparar ao que desempenha nas formas desenvolvidas do modo de produção subseqüente dominado pelo ritmo básico da acumulação de capital e pela transformação constante e universal Marx dos fundamentos econômicos de todas as formações sociais A nobreza era uma classe de proprietários de terra cuja profissão era a guerra a sua vocação social não era um acréscimo exterior mas uma função intrín seca de sua posição econômica O meio normal da competição inter capitalista é econômico e sua estrutura é tipicamente aditiva ambas as partes rivais podem expandirse e prosperar embora de forma desi gual ao longo de uma única confrontação porque a produção de mercadorias manufaturadas é intrinsecamente ilimitada O meio típico da rivalidade interfeudal ao contrário era militar e a sua estrutura era sempre potencialmente a do conflito de somazero do campo de bata lha através do qual perdiamse ou se conquistavam quantidades fixas de terra Porque a terra é um monopólio natural não pode ser indefi nidamente estendida apenas redividida O objeto explícito da domi nação da nobreza era o território independentemente da população que o habitava A terra como tal não a língua definia os perímetros naturais de seu poder A classe dominante feudal era portanto essen cialmente móvel num sentido em que uma classe dominante capitalista nunca o seria O próprio capital é par excellence internacionalmente móvel permitindo desse modo aos seus detentores fixaremse num plano nacional a terra é nacionalmente imóvel e os nobres tinham que viajar para tomar posse dela Assim um determinado baronato ou uma dinastia podiam transferir sem transtornos a sua residência de uma ponta para outra do continente As linhagens angevinas podiam gover nar indiferentemente na Hungria na Inglaterra ou em Nápoles as nor mandas na Antióquia na Sicília ou na Inglaterra as borgonhesas em Portugal ou na Zelândia as luxemburguesas na Renânia ou na Boê mia as flamengas no Artois ou em Bizâncío as dos Habsburgos na Áustria nos Países Baixos ou na Espanha Nestas várias terras não era necessário que os senhores e os camponeses compartilhassem de um mesmo idioma Os territórios públicos formavam um continuum com os domínios privados e o instrumento clássico para a sua aquisição era a força invariavelmente disfarçada com protestos de legitimidade reli giosa ou genealógica A guerra não era o esporte dos príncipes era a 32 PERRY ANDERSON sua sina Acima da diversidade finita das inclinações e personalidades individuais ela os chamava inexoravelmente como uma necessidade social da sua condição Para Maquiavel tal como ele via a Europa do início do século XVI a norma que lhes regia a existência era uma ver dade tão óbvia e incontestável como o céu acima de suas cabeças Um príncipe não deve portanto ter outro pensamento ou objetivo senão a guerra nem adquirir perícia em outra coisa que não seja a guerra a sua organização e disciplina porque a guerra é a única arte própria dos governantes6 Os Estados absolutistas refletiam esta racionalidade arcaica na sua mais íntima estrutura Eram máquinas construídas predominante mente para o campo de batalha É significativo que o primeiro imposto nacional e regular a ser instituído na França a taitte royale tenha sido criado para financiar as primeiras unidades militares regulares da Eu ropa as compagnies dordonnance de meados do século XV cuja primeira unidade foi constituída por aventureiros escoceses Por volta da metade do século XVI 80 por cento das rendas do Estado espanhol destinavase às despesas militares Vicens Vives pôde escrever que o impulso em direção ao tipo moderno de monarquia administrativa teve início na Europa ocidental com as grandes operações navais de Carlos V contra os turcos no Mediterrâneo ocidental a partir de 153527 Em meados do século XVII as despesas anuais dos principados do conti nente da Suécia ao Piemonte eram por toda a parte predominante e cansativamente dedicadas à preparação ou à condução da guerra agora imensamente mais custosa que na Renascença Um século mais tarde nas vésperas pacíficas de 1789 dois terços dos gastos do Estado francês eram ainda segundo Necker distribuídos para o sistema mili tar Parece evidente que esta morfologia do Estado não corresponde à racionalidade capitalista representa uma reminiscência formidável das funções medievais da guerra Tampouco foram preteridos os grandio sos aparatos militares do Estado feudal em sua última fase A virtual permanência do conflito armado internacional é uma das marcas re gistradas do clima geral do absolutismo A paz era uma exceção me teorológica nos séculos de seu predomínio no Ocidente Temse calcu lado que em todo o século XVI houve apenas 25 anos sem operações 26 Niccolò Machiavelli Príncipe e Discorsi Milão 1960 p 62 27 J Vicens Vives Estructura Administrativa Estatal en los Siglos XVI e XVII Xlème Congrès International dês Sciences Historiques Rapports IV Goteborg 1960 republicado agora em Vicens Vives Cojuntura Econômica y Reformismo Burguês Barcelona 1968 p 116 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 33 militares de larga escala na Europa28 no século XVII passaramse apenas sete anos sem guerras importantes entre Estados29 Tais calendá rios são estranhos ao capital embora como veremos este tenha even tualmente contribuído para eles O sistema fiscal e burocrático civil característico do Estado abso lutista não era menos paradoxal Parecia representar uma transição à administração r acionailegal de Weber em contraste com a selva de dependências particularistas da Alta Idade Média Todavia ao mesmo tempo a burocracia da Renascença era tratada como propriedade ven dável a indivíduos privados uma confusão central de duas ordens que o Estado burguês sempre distinguiu Assim o modo predominante de integração da nobreza feudal ao Estado absolutista no Ocidente assu miu a forma de aquisição de cargos0 Aquele que adquirisse por via privada uma posição no aparelho público do Estado poderia depois se ressarcir do gasto através do abuso dos privilégios e da corrupção sis tema de gratificações em uma espécie de caricatura monetarizada da investidura num feudo Com efeito o marquês dei Vasto governador espanhol de Milão em 1544 podia solicitar aositalianos detentores de cargos daquela cidade que pusessem as suas fortunas à disposição de Carlos V em sua hora de crise depois da derrota de Ceresole numa cópia exata das tradições feudais31 Tais funcionários que prolifera vam na França Itália Espanha GrãBretanha e Holanda poderiam contar com a realização de lucros de 300 a 400 por cento e talvez muito mais sobre a sua aquisição O sistema nasceu no século XVI e tornou se um esteio financeiro fundamental dos Estados absolutistas durante o século XVII O seu caráter flagrantemente parasitário é evidente em situações extremas a França durante a década de 1630 por exemplo poderia custar ao orçamento real em desembolsos via o arrendamento da coleta ou as isenções o mesmo que fornecia em remunerações A expansão da venda de cargos foi naturalmente um dos subprodutos mais surpreendentes da crescente monetarização das primeiras econo 28 R Ehrenberg Das Zeitalter der Fttgger lena 19221 p 13 29 G N Clark The Seventeenth Century Londres 1947 p 98 Ehrenberg com uma delimitação ligeiramente diversa fornece uma estimativa um pouco mais baixa 21 anos 30 A melhor abordagem deste fenômeno internacional é a de K W Swart Sale afOffíces in the Seventeenth Century Haia 1949 dos estudos nacionais o mais abran gente é de Roland Mousnier La Venaliíé dês Offices sous Henry IV et Louis XIII Ruão sd 31 Federico Chabod Scritti sul Rinascimento Turim 1967 p 617 Os funcio nários milaneses recusaram o pedido de seu governador mas os seus homólogos em outros lugares podem não ter sido tão resolutos 34 PERRY ANDERSON mias modernas e dascensão relativa no seio destas da burguesia mer cantil e manufatureira Não obstante em reforço ao que se disse a própria integração desta no aparelho de Estado através da aquisição privada e da herança de posições e honras públicas marcou a sua assi milação subordinada a uma organização política feudal na qual a no breza constituía sempre necessariamente o topo da hierarquia social Os officiers dos parlements franceses que jogavam com o republica nismo municipal e patrocinaram as mazarinadas nos anos de 1650 vieram a tornarse o baluarte mais obstinado da reação aristocrática na década de 1780 A burocracia absolutista tanto registrou a ascensão do capital mercantil como a impediu Se a venda de cargos era um meio indireto de aumentar os ren dimentos provenientes da nobreza e da burguesia mercantil em termos vantajosos para elas o Estado absolutista também e acima de tudo tributava evidentemente os pobres A transição econômica das obri gações em trabalho para as rendas em dinheiro no Ocidente foi acompanhada pelo surgimento dos impostos régios lançados para a guerra os quais na longa crise feudal do fim da Idade Média tinham sido um dos principais motivos dos desesperados levantes camponeses da época Uma cadeia de revoltas camponesas voltadas claramente contra a cobrança de impostos explodiu em toda a Europa Pouco havia a escolher entre os forrageadores e os exércitos amigos ou inimi gos uns levavam tanto como os outros Então apareciam os coletores de impostos e varriam o que podiam encontrar E por último os se nhores recuperavam de seus homens as quantias de ajuda que eles próprios eram obrigados a pagar para seu soberano Não há dúvida de que de todos os males que os afligiam os camponeses suportavam mais penosamente e com menos paciência os encargos de guerra e os impostos remotos32 Quase por toda a parte o peso esmagador dos impostos taüle egabelle na França ou servidos na Espanha re caía sobre os pobres Não existia a concepção jurídica do cidadão su jeito ao fisco pelo simples fato de pertencer à nação Na prática a classe senhoria estava em toda a parte efetivamente isenta de impos tos diretos Assim Porshnev denominou corretamente as novas taxas impostas pelos Estados absolutistas de renda feudal centralizada em oposição às obrigações senhoriais que constituíam a renda feudal local33 tal sistema duplo de exações conduziu a uma angustiada epi 32 Dudy Rural Economy and Country Life in lhe Mediaeval West p 333 33 B F Porshnev Lês Soulèvements Populaires en France de 1623 à 1648 Paris 1965 pp 3956 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 35 demia de rebeliões dos pobres na França do século XVII onde os no bres das províncias freqüentemente jogavam os seus próprios campo neses contra os coletores de impostos para melhor poderem extorquir lhes seus tributos locais Os funcionários do fisco tinham que ser guar dados por unidades de fuzileiros a fim de estarem aptos a desempenhar as suas funções nas zonas rurais reencarnações de tipo moderno da unidade imediata da coerção políticolegal com a exploração econô mica constitutiva do modo de produção feudal As funções econômicas do absolutismo não se esgotavam entre tanto no seu sistema tributário e de funcionalismo O mercantilismo foi a doutrina dominante da época e apresenta a mesma ambigüidade da burocracia destinada a impôlo com a mesma regressão subjacente a um protótipo anterior O mercantilismo requeria indubitavelmente a supressão de barreiras particularistas no interior da monarquia na cional e empenhavase em criar um mercado interno unificado para a produção de mercadorias Com o objetivo de aumentar o poder do Es tado diante dos outros Estados encorajava a exportação de mercado rias ao mesmo tempo que proibia exportações de ouro e prata e de moeda na crença de que existia uma quantidade fixa de comércio e riqueza no mundo Na famosa frase de Hecksher O Estado era o sujeito e o objeto da política econômica mercantilista 4 Na França as suas criações características foram as manufaturas reais e as corpora ções regulamentadas pelo Estado na Inglaterra as companhias privi legiadas A linhagem medieval e corporativa das primeiras dispensa comentários a reveladora fusão da ordem econômica com a política nas últimas era motivo de escândalo para Adam Smith Com efeito o mercantilismo representava as concepções de uma classe dominante 34 Hecksher defendeu que o objetivo do mercantilismo era aumentar o poder do Estado mais do que a riqueza das nações e isto significava uma subordinação das considerações de fartura às considerações de poder para usar as expressões de Bacon com base nisso Bacon louvava Henrique VII por ter limitado as importações de vinho aos navios ingleses Numa réplica vigorosa Viner não teve dificuldades em mos trar que a maior parte dos teóricos mercan ti listas conferiam ao contrário igual impor tância a ambos e acreditavam que os dois eram compatíveis Power versus Plenty as Objectives of Foreign Policy in the 17th and 18th Centuries World Politics l n I 1948 republicado em D C Coleman Org Revisions in Mercantilism Londres 1969 pp 6191 Ao mesmo tempo Viner subestimava claramente a diferença entre a teoria e a prática mercantilistas e as do laissezfaire que se seguiram Na verdade tanto Hecksher como Viner de maneiras diferentes deixaram passar o ponto essencial que é o da indis linção entre economia e sistema político na época de transição que gerou as teorias mer cantilistas Discutir qual dos dois teve primazia sobre o outro constitui um anacro nismo porque não havia na práticauma separação tão rígida entre eles até o advento do laissezfaire 36 PERRY ANDERSON feudal que se adaptara a um mercado integrado e preservara ainda a sua perspectiva essencial na unidade do que Francis Bacon denominou considerações de fartura e considerações de poder As doutrinas burguesas clássicas do laissezfaire com a sua rigorosa separação for mal entre os sistemas político e econômico viriam a constituir o seu antípoda O mercantilismo era precisamente uma teoria da intervenção coerente do Estado político no funcionamento da economia no inte resse comum da prosperidade de uma e do poder do outro Logica mente enquanto o laissezfaire era coerentemente pacifista1 insis tindo nos benefícios da paz entre as nações para o fomento do comércio internacional mutuamente lucrativo a teoria mercantilista Montchré tien Bodin era fortemente belicista enfatizando a necessidade e a rentabilidade da guerra35 E viceversa o objetivo de uma economia forte era a realização exitosa de uma política externa voltada para a conquista Colbert dizia a Luís XIV que as manufaturas reais eram os seus regimentos econômicos e as corporações os seus exércitos de re serva Este expoente máximo do mercantilismo que restaurou as fi nanças do Estado francês em dez miraculosos anos de intendência lançou assim seu soberano na fatídica invasão da Holanda em 1672 com este significativo conselho Se o rei submetesse todas as Provín cias Unidas à sua autoridade o comércio delas tornarseia o comércio dos súditos de sua majestade e nada mais haveria a reclamar0 Qua tro décadas de conflito europeu iriam seguirse a esta amostra de racio cínio econômico que capta perfeitamente a lógica social da agressão absolutista e dó mercantilismo predatório o comércio dos holandeses tratado como o território dos anglosaxões ou os domínios dos mouros um objeto físico a ser tomado e usufruído pela força militar como modo natural de apropriação e possuído permanentemente daí em diante A ilusão de ótica deste juízo particular não lhe retira a repre sentatividade era com esses olhos que os Estados absolutistas se con templavam As teorias mercantilistas da riqueza e da guerra estavam na verdade conceitualmente interligadas o modelo de comércio mun dial de somazero que inspirava seu protecionismo econômico deri vouse do modelo de política internacional de somazero inerente ao seubelicismo O comércio e a guerra não eram evidentemente as únicas ativi 35 E Silberner La Guerre dans Ia Penses Economique du XVIe au XVIIIe Siècle Paris 1939 pp 7122 36 Pierre Goubert LouisXJVet Víngt Millions de Français Paris 1966 p 95 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 37 dades externas do Estado absolutista no Ocidente O seu outro grande esforço era investir na diplomacia Esta foi uma das grandes invenções institucionais da época inaugurada na área miniatural da Itália do século XV institucionalizada aí com a Paz de Lodi e adotada na Espa nha França Inglaterra Alemanha e em toda a Europa durante o sé culo XVI A diplomacia foi com efeito a indelével marca de nascença do Estado renascentista com o seu surgimento nasceu na Europa um sistema política internacional no qual havia uma perpétua sondagem dos pontos fracos do meio ambiente de um Estado ou dos perigos pro venientes de outros Estados7 A Europa medieval nunca fora com posta por um conjunto claramente demarcado de unidades políticas homogêneas um sistema estatal internacional O seu mapa político compunhase de inextricáveis sobreposições e emaranhados onde ins tâncias jurídicas diversas se achavam geograficamente entretecidas e estratificadas e onde proliferavam múltiplas vassalagens suseranias assimétricas e enclaves irregulares38 Neste intrincado labirinto não havia possibilidade de surgimento de um sistema diplomático formal porque não havia uniformidade ou equivalência dos parceiros O con ceito de uma cristandade latina à qual pertenceriam todos os homens fornecia uma matriz ideológica universalista para os conflitos e deci sões reverso da extrema heterogeneidade particularista das próprias unidades políticas Desse modo as embaixadas eram viagens de cortesia esporádicas e nãoremuneradas que podiam ser trocadas tanto por vassalos ou subvassalos dentro de um dado território como entre príncipes de dois territórios ou entre um príncipe e seu suserano A contração da pirâmide feudal nas novas monarquias centralizadas da 37 B F Porshnev Lês Rapports Politiques de 1Europe Occidentale et de 1Europe Orientale à 1Êpoque de Ia Guerre de Trente Ans Xle Congrès Internacional dês Sciences Historiques Upsala 1960 p 161 uma incursão extremamente especulativa na Guerra dos Trinta Anos bom exemplo dos pontos fortes e das debilidades de Porsh nev Ao contrário das insinuações de seus colegas ocidentais não é um rigido dogmu tismo o que constitui a sua falha mais importante mas uma excessiva ingenuidade nem sempre adequadamente refreada pela disciplina da prova no entanto sob outro aspecto é esse mesmo traço que faz dele um historiador imaginativo e original São bem concebidas as breves sugestões do final de seu ensaio sobre o conceito de um sistema político internacional 38 Engels apreciava citar o exemplo da Borgonha Carlos o Temerário por exemplo era vassalo do imperador por uma parte de suas terras e vassalo do rei francês por outra por outro lado o rei da França seu suserano era ao mesmo tempo vassalo de Carlos o Temerário seu próprio vassalo quanto a certas regiões Ver seu importante manuscrito postumamente intitulado Uber den Verfall dês Feudalismus und das Auf kommen derBourgeoisie em Werke vol 21 p 396 38 PERRY ANDERSON Europa renascentista produziu pela primeira vez um sistema formali zado de pressão e intercâmbio entre Estados com o estabelecimento das novas instituições das embaixadas fixas e recíprocas no exterior chancelarias permanentes para as relações exteriores e comunicações e relatórios diplomáticos secretos amparados pelo recente conceito de extraterritorialidade9 O espírito resolutamente secular de egoísmo político que a partir de então inspirou a prática da diplomacia en controu límpida expressão em Ermolao Bárbaro o embaixador vene ziano que foi o seu primeiro teórico O primeiro dever de um embai xador é exatamente o mesmo de qualquer outro servidor de um go verno isto é fazer dizer aconselhar e pensar aquilo que possa melhor servir à preservação e ao engrandecimento de seu próprio Estado No entanto tais instrumentos da diplomacia embaixadores ou secretários de Estado não eram as armas de um moderno Estado na cional Enquanto tais as concepções ideológicas de nacionalismo eram estranhas à natureza mais íntima do absolutismo Os Estados monárquicos da nova era não desdenhavam a mobilização dos senti mentos patrióticos em seus súditos nos conflitos políticos e militares que a todo momento opunham reciprocamente os vários reinos da Europa ocidental Mas a existência difusa de um protonacionalismo popular na Inglaterra Tudor na França Bourbon ou na Espanha Habsburgo era basicamente um indício da presença burguesa no seio do sistema polí tico sempre manipulado pelos próceres ou soberanos ao invés de dominálos A auréola nacional do absolutismo no Ocidente freqüen temente muito acentuada na aparência Elizabete I Luís XIV era na realidade contingente e emprestada As normas dominantes da época situavamse em outro lugar A instância última de legitimidade era a dinastia não o território O Estado era concebido como o patrimônio do monarca e portanto os títulos de propriedade dele poderiam ser obtidos por uma união de pessoas felix Áustria O supremo estrata gema da diplomacia era assim o casamento espelho pacífico da guerra que tantas vezes a provocou Menos dispendiosa como acesso 39 Para o conjunto dessa evolução da nova diplomacia na primeira fase da Eu ropa moderna ver a grande obra de Garrett Mattingly Renaissance Diplomacy Lon dres l9SSpassim A citação de Bárbaro é mencionada na p 109 40 Evidentemente as próprias massas rurais e urbanas manifestavam formas espontâneas de xenofobia mas esta reação negativa tradicional às comunidades estran geiras era bastante distinta da identificação nacional positiva que começou a aparecer nos meios burgueses cultos no início da época moderna A fusão das duas poderia em situações de crise gerar explosões patrióticas na base de caráter incontrolável e sedi cioso os Comuneros na Espanha ou a Liga na França LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 39 para a expansão territorial que a agressão armada a manobra matri monial proporcionava resultados imediatos menores em geral apenas após uma geração e estava sujeita por conseguinte aos acasos impre visíveis da mortalidade no intervalo entre a consumação de um pacto nupcial e a sua fruição política Em vista disso a longa variante do casamento muitas vezes levava diretamente ao curto atalho da guerra A história do absolutismo está repleta de tais conflitos cujos nomes o testificam Guerras da Sucessão da Espanha Áustria ou da Baviera O seu resultado na verdade podia acentuar a flutuação de dinastias sobre os territórios que as ocasionara Paris podia ser derrotada no ruinoso conflito militar sobre a sucessão espanhola a casa de Bourbon herdaria Madri Também na diplomacia o índice de dominação feudal no Estado absolutista é evidente Imensamente ampliado e reorganizado o Estado feudal absolu tista era no entanto contínua e profundamente sob ré determina do pela expansão do capitalismo no seio das formações sociais compósitas do período moderno inicial Tais formações eram naturalmente uma combinação de diferentes modos de produção sob a dominância em declínio de um deles o feudalismo Todas as estruturas do Estado absolutista revelam portanto a influência à distância da nova econo mia em ação no quadro de um sistema mais antigo proliferavam as capitalizações híbridas de formas feudais cuja própria perversão das instituições futuras exército burocracia diplomacia comércio constituía uma apropriação de objetos sociais passados para repro duzilos No entanto as premonições de uma nova ordem social aí conti das não eram uma falsa promessa A burguesia no Ocidente já era forte o bastante para deixar a sua marca indistinta no Estado sob o abso lutismo Com efeito o paradoxo aparente do absolutismo na Europa ocidental era que ele representava fundamentalmente um aparelho para a proteção da propriedade e dos privilégios aristocráticos em bora ao mesmo tempo os meios através dos quais tal proteção era promovida pudessem simultaneamente assegurar os interesses básicos das classes mercantis e manufatureiras emergentes O Estado absolu tista centralizou crescentemente o poder político e esforçouse por criar sistemas jurídicos mais uniformes as campanhas de Richelieu contra os redutos huguenotes na França foram exemplos típicos Aboliu um grande número de barreiras internas ao comércio e patrocinou tarifas externas contra os concorrentes estrangeiros as medidas de Pombal no Portugal iluminista constituem um drástico exemplo Proporcionou ao capital usurário investimentos lucrativos ainda que arriscados nas fi 40 PERRY ANDERSON nanças públicas os banqueiros de Augsburgo no século XVI e os oli garcas genoveses no século XVII puderam fazer fortunas com os seus empréstimos ao Estado espanhol Mobilizou a propriedade rural por meio do confisco das terras eclesiásticas dissolução dos mosteiros na Inglaterra Propiciou rendimentos em sinecuras à burocracia a pau lette na França estabeleceu a posse estável delas Patrocinou em preendimentos coloniais e companhias de comércio ao mar Branco às Antilhas à baía de Hudson à Luisiana Em outras palavras cumpriu certas funções parciais na acumulação primitiva necessária ao triunfo ulterior do próprio modo capitalista de produção As razões que lhe permitiram desempenhar este papel dual residem na natureza espe cífica do capital mercantil ou manufatureiro já que nenhum deles as sentava na produção de massa característica da indústria mecanizada propriamente dita não exigiam por si uma ruptura radical com a ordem agrária feudal que ainda englobava a ampla maioria da popu lação o futuro mercado de trabalho e de consumo do capitalismo in dustrial Em outros termos podiam desenvolverse dentro dos limites estabelecidos no quadro do feudalismo reorganizado O que não quer dizer que o faziam em toda parte em conjunturas específicas conflitos políticos religiosos ou econômicos podiam converterse em explosões revolucionárias contra o absolutismo após um certo período de matu ração Entretanto sempre havia um campo de compatibilidade poten cial nesta fase entre a natureza e o programa do Estado absolutista e as operações do capital mercantil e manufatureiro Na competição in ternacional entre as várias nobrezas que produzia o estado de guerra endêmico daquela época o volume do setor de mercadorias no seio de cada patrimônio nacional era sempre de importância crítica para a sua força militar e política relativa Toda monarquia tinha interesse portanto em concentrar tesouros e em incentivar o comércio sob a sua própria bandeira na luta contra os seus rivais Daí o caráter progres sista que os historiadores subseqüentes tantas vezes conferiram às po líticas oficiais do absolutismo A centralização econômica o protecio nismo e a expansão ultramarina engrandeceram o Estado feudal tar dio ao mesmo tempo que beneficiaram a burguesia emergente Expan diram os rendimentos tributáveis de um fornecendo oportunidades comerciais à outra As máximas circulares do mercantilismo procla madas pelo Estado absolutista deram expressão eloqüente a esta coin cidência provisória de interesses Com bastante propriedade foi o du que de Choiseul quem declarou nas últimas décadas do ancien regime no Ocidente Da armada dependem as colônias das colônias o co mércio do comércio a capacidade de um Estado manter exércitos nu LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 41 merosos expandir sua população e tornar possíveis as mais gloriosas e úteis empresas41 No entanto como o indica a cadência final de gloriosas e úteis o caráter irredutivelmente feudal do absolutismo permanecia Era um Estado fundamentado na supremacia social da aristocracia e confinado aos imperativos da propriedade fundiária A nobreza podia confiar o poder à monarquia e permitir o enriquecimento da burguesia as mas sas estariam ainda à sua mercê Nunca ocorreu nenhuma derrogação política da classe nobre no Estado absolutista O seu caráter feudal acabava constantemente por frustrar ou falsificar as suas promessas ao capital Os Fuggers acabaram por ser arruinados pelas bancarrotas dos Habsburgo os nobres ingleses se apropriaram da maior parte das ter ras dos mosteiros Luís XIV destruiu os benefícios da obra de Richelieu ao revogar o Édito de Nantes os mercadores de Londres foram espo liados pelo projeto Cockayne Portugal reverteu ao sistema Methuen após a morte de Pombal e os especuladores parisienses foram defrau dados pela lei Exército burocracia diplomacia e dinastia continua ram a ser um complexo feudal fortalecido que governava o conjunto da máquina de Estado e guiava os seus destinos O domínio do Estado absolutista era o da nobreza feudal na época de transição para o capi talismo O seu fim assinalaria a crise do poder de sua classe o advento das revoluções burguesas e a emergência do Estado capitalista 41 Citado por Geralde Graham The Politics of Naval Supremacy Cambridge 1965 p17 Classe e Estado problemas de periodização O complexo institucional característico do Estado absolutista no Ocidente está agora delineado Resta esboçar muito brevemente al guns aspectos da trajetória desta forma histórica que sofreu como é natural modificações significativas nos três séculos ou mais de sua existência Ao mesmo tempo é preciso fazer referência à relação entre a nobreza e o absolutismo pois nada seria menos justificado do que pressupor que esta não apresentou problemas pautandose desde o início por uma harmonia natural Ao contrário podese sustentar que a periodização real do absolutismo no Ocidente encontrase no fundo precisamente na relação em transformação da nobreza com a monar quia e nas múltiplas modificações políticas subordinadas a ela rela cionadas De todo modo serão apresentadas abaixo uma periodização provisória do Estado e uma tentativa de traçar as relações entre este e a classe dominante As monarquias medievais como vimos eram uma combinação instável de suseranos feudais e reis ungidos As extraordinárias prerro gativas reais desta última função constituíam com certeza um contra peso necessário à fraqueza e às limitações estruturais dos primeiros a contradição entre esses dois princípios alternativos de realeza confi gurava a tensão central do Estado feudal na Idade Média O papel do suserano feudal no topo de uma hierarquia de vassalagem era em úl tima análise a componente dominante deste modelo monárquico como a luz retrospectiva lançada sobre ele pela estrutura contrastante do absolutismo viria a demonstrar Tal papel impôs limites muito es LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 43 treitos à base econômica da monarquia no início do período medieval Com efeito o governante feudal daquela época tinha que angariar seus rendimentos essencialmente nas suas próprias propriedades na sua qualidade de senhor de terra particular As prestações originárias de seus domínios seriam recebidas inicialmente em espécie e depois pro gressivamente em dinheiro1 Ao lado desta receita ele gozaria nor malmente de certos privilégios financeiros advindos de seu senhorio territorial sobretudo incidências feudais e auxílios especiais de seus vassalos ligados à investidura em seus feudos além dos tributos senhoriais cobrados nos mercados e nas rotas de comércio das contri buições de emergência da Igreja e dos rendimentos da justiça real sob a forma de multas e confiscos Naturalmente essas formas fragmen tadas e restritas de rendimentos logo se mostraram inadequadas mes mo para os exíguos deveres governamentais característicos da organi zação política medieval Podiase recorrer certamente ao crédito de banqueiros e comerciantes das cidades que controlavam reservas rela tivamente amplas de capital líquido este foi o primeiro e o mais difun dido expediente dos monarcas feudais confrontados com a escassez de receitas para a condução dos negócios do Estado Mas o empréstimo apenas postergava o problema desde que os banqueiros exigiam em geral garantias seguras sobre as receitas reais futuras em troca de seus empréstimos Assim a necessidade premente e permanente de adquirir somas substanciais fora da gama de seus rendimentos tradicionais levou vir tualmente todas as monarquias medievais a convocarem de tempos em tempos os Estados de seu reino a fim de elevarem os impostos Tais Estados adquiriram freqüência e relevância cada vez mais crescentes a partir do século XIII na Europa ocidental quando as tarefas do governo feudal tornaramse mais complexas e o volume financeiro ne las mobilizado tornouse correspondentemente mais exigente Em ne 1 A monarquia sueca já bem avançada a época moderna recebia efetivamente a maior parte de seus rendimentos em espécie tanto em obrigações como em impostos 2 Faz muita falta um estudo abrangente sobre os Estados medievais na Europa Atualmente a única obra com alguma informação internacional subsidiária parece ser a de Antônio Marongiu Parlamento in Itália nel Médio Evo e nettEtà Moderna Con tributo alia Storia delle istituzioni Parlamentari dellEuropa Occidentale Milão 1962 traduzida recentemente para o inglês e de um modo um tanto equivocado como Me dieval Parliaments a Comparative Study Londres 1968 Na verdade o livro de Maron giu como indica seu título original preocupase essencialmente com a Itália a única região na Europa onde os Estados estiveram ausentes ou tiveram relativamente pouca importância As suas breves passagens sobre outros países França Inglaterra ou Espa 44 PERRY ANDERSON nhuma parte elas adquiriram uma base regular de convocação inde pendente da vontade do governante e portanto a sua periodicidade variava enormemente de país para país e no interior de um mesmo país No entanto tais instituições não devem ser vistas como desenvol vimentos contingentes ou extrínsecos no corpo político medieval Ao contrário elas constituíram um mecanismo intermitente que era conse qüência inevitável da própria estrutura do Estado feudal inicial Preci samente porque a ordem econômica e a ordem política se fundiam numa cadeia de obrigações e deveres pessoais nunca existiu uma base legal para a tributação econômica geral por parte do monarca fora da hierarquia de soberanias intermediárias Com efeito é notável que a própria idéia de tributação universal tão fundamental para todo o edifício do Império Romano estivesse completamente ausente du rante toda a Idade das Trevas Assim nenhum rei feudal poderia de cretar impostos à sua vontade Todo governante deveria obter o con sentimento de corpos especialmente reunidos os Estados para maiores tributos sob a rubrica do princípio jurídico quod omnes tan git4 É sintomático que a maioria dos impostos gerais diretos que foram lentamente introduzidos na Europa ocidental sujeitos ao assentimento dos parlamentos medievais tenham sido criados pioneiramente na Itá lia onde a primitiva síntese feudal pendia mais para a herança romana e urbana Não só a Igreja cobrou impostos gerais aos fiéis para as Cru zadas os governos municipais conselhos compactos de patrícios sem estratificação de investiduras ou nível social não tiveram grandes dificuldades em impor taxas às suas próprias populações urbanas e menos ainda a um contado sob seu domínio A Comuna de Pisa tinha efetivamente impostos sobre a propriedade A península também inau gurou muitos impostos indiretos o monopólio do sal ou gabelle ori ginouse na Sicília Logo se desenvolvera um diversificado sistema fis cal nos países mais importantes da Europa ocidental Os príncipes in gleses contavam primordialmente com as taxas aduaneiras devido à sua situação insular os franceses com os impostos sobre o consumo e a taille e os alemães com a intensificação dos pedágios Tais taxas en tretanto não constituíam subsídios regulares Em geral permanece nha não chegam a constituir uma introdução satisfatória a eles e o livro ignora comple tamente a Europa setentrional e a oriental Além disso tratase de uma análise jurídica inocente de qualquer pesquisa sociológica 3 Carl Stephenson Mediaevallnstitutions pp 99100 4 Ab omnibus debet cotnprobari o que tange a todos deve ser aprovado por todos LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 45 ram como cobranças ocasionais até o final da Idade Média durante a qual poucos Estados cederam aos monarcas o direito de lançar impos tos gerais ou permanentes sem o consentimento de seus súditos Naturalmente a definição social de súditos era previsível Os estados do reino representavam habitualmente a nobreza o clero e os burgueses das cidades e estavam organizados seja numa assembléia diretamente tricurial seja num sistema um pouco diferente de duas câmaras magnatas e nãomagnatas5 Tais assembléias existiram pra ticamente em toda a Europa ocidental com exceção do norte da Itália onde a densidade urbana e a ausência de suserania feudal inibiu na turalmente a emergência delas Parlamento na Inglaterra ÉtatsGé néraux na França Landtage na Alemanha Cortes em Castela ou Por tugal Riksdag na Suécia etc Além de seu papel essencial como fontes fiscais do Estado medieval os Estados preenchiam outra função crítica na organização política feudal Eles eram expressões coletivas de um dos princípios mais profundos de hierarquia feudal no seio da nobreza o dever do vassalo prestar não apenas auxilium mas também consilium ao seu suserano em outros termos o direito de fornecerlhe seu con selho solene em assuntos de gravidade concernentes a ambas as partes Tal consulta não enfraquecia necessariamente o governante medieval nas crises externas oudomésticas poderia até fortalecêlo ao conceder lhe um apoio político bemvindo Fora do vínculo particular das rela ções pessoais de homenagem a aplicação pública desta concepção es teve inicialmente confinada ao restrito número de magnatas que cons tituíam os lugarestenentes do monarca formavam o seu séquito e es peravam ser por ele consultados nos negócios importantes do Estado Com a expansão dos Estados propriamente ditos no século XIII de vido às exigências fiscais a prerrogativa de consulta dos magnatas in árdua negotia regni ampliouse gradativamente a estas novas assem bléias e passou a compor uma parte importante da tradição política da classe nobiliária no seu conjunto que naturalmente dominava em toda a parte os Estados Assim a ramificação da organização polí tica feudal na Alta Idade Média em razão do crescimento das insti tuições de Estado derivadas de um tronco principal não modificou a 5 Esses padrões alternativos são analisados por Hintze em Typologie de Standischen Verfassungen dês Abendlandes Gesammelíe Abhandtungen vol I pp 11029 que continua a ser o melhor texto sobre os Estados feudais na Europa embora curiosamente inconclusivo em comparação com a maioria dos outros ensaios de Hintze como se as implicaçes completas de suas averiguações devessem ainda ser esclarecidas por ele próprio 46 PERRY ANDERSON relação entre a monarquia e a nobreza em qualquer sentido unilateral Essas instituições eram essencialmente convocadas a existir com o fim de expandir a base fiscal da monarquia mas embora preenchendo tal finalidade faziam crescer o controle coletivo da nobreza sobre aquela última Desse modo não devem ser vistas ou como empecilhos ou como instrumentos do poder real ao invés disso elas reduplicavam um equilíbrio primitivo entre o suserano feudal e seus vassalos num quadro de referência mais complexo e efetivo Na prática os Estados não perderam o caráter de acontecimen tos esporádicos e os impostos cobrados pelo monarca continuaram a ser relativamente modestos Uma razão importante para isso foi que o pro blema de uma burocracia extensa e profissional não havia ainda se interposto entre a monarquia e a nobreza Durante toda a Idade Mé dia o governo real baseouse numa medida considerável nos serviços de uma burocracia clerical muito vasta cujos altos funcionários po diam se dedicar integralmente à administração civil sem encargo finan ceiro para o Estado uma vez que já recebiam amplos salários de um aparelho eclesiástico à parte O alto clero que século após século for neceu tantos dos supremos administradores da organização política feudal da Inglaterra à França e à Espanha era ele próprio recrutado majoritariamente no seio da nobreza para a qual o acesso às posições episcopais e abaciais constituía um importante privilégio so cial e econômico A escalonada hierarquia feudal de homenagem e fi delidade pessoais as corporativas assembléias de Estados com o exer cício dos seus direitos de votar impostos e deliberar sobre os negócios do reino o caráter informal de uma administração parcialmente man tida pela Igreja uma Igreja cuja cúpula era geralmente ocupada pelos magnatas tudo isto formava um sistema político claro e familiar que ligava a classe nobiliária a um Estado com o qual apesar e através dos constantes conflitos com monarcas específicos estava de pleno acordo O contraste entre este padrão de monarquia de Estados medie vais e o do absolutismo moderno inicial é bastante nítido para os his toriadores de hoje Não o seria menos pelo contrário para os nobres que efetivamente o viveram Com efeito a grande e silenciosa força estrutural que impelia a uma completa reorganização do poder de classe feudal estava para eles inevitavelmente oculta No seio do seu universo categorial não era visível o tipo de causalidade histórica que atuava para dissolver a unidade original de exploração extraeconô mica na base do sistema social em seu conjunto devido à difusão da produção e do intercâmbio de mercadorias e para a sua recentrali zação no nível da cúpula Para muitos nobres individualmente ela sig LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 47 nificou novas oportunidades de fortuna e glória avidamente agarra das para muitos outros significou a indignidade e a ruína contra o que se revoltaram para a maioria implicou um processo difícil e de morado de adaptação e conversão através de sucessivas gerações até que a harmonia entre classe e Estado fosse precariamente restaurada No curso desse processo a aristocracia do final do período feudal foi obrigada a abandonar antigas tradições e a adquirir muitas aptidões novas6 Teve que deixar o exercício militar da violência privada os padrões sociais de lealdade do vassalo os hábitos econômicos de des preocupação hereditária os direitos políticos de autonomia represen tativa e os atributos culturais de ignorância iletrada Teve que aprender as novas ocupações de um oficial disciplinado um funcionário letrado um polido cortesão e um proprietário de terras mais ou menos pru dente A história do absolutismo ocidental é em grande parte a histó ria da lenta reconversão da classe dominante fundiária à forma neces sária de seu próprio poder político a despeito e contrariamente à maior parte de sua experiência e instintos anteriores A época do Renascimento assistiu assim à primeira fase na con solidação do absolutismo quando este estava ainda relativamente pró ximo do padrão monárquico precedente Os Estados sobreviveram na França em Castela ou nos Países Baixos até a metade do século e floresceram na Inglaterra Os exércitos eram relativamente pequenos formados basicamente por forças mercenárias com capacidade apenas para campanhas sazonais Eram pessoalmente chefiados por aristocra tasmagnatas de estirpe em seus respectivos reinos Essex Alba Conde ou Nassau O grande surto secular do século XVI provocado ao mesmo tempo pelo rápido crescimento demográfico e pelo advento do ouro da prata e do comércio da América facilitou o crédito para os príncipes europeus e permitiu grandes altas nas despesas sem uma cor 6 Lawrence Stone The Crisis of the Arislocracy 15581641 Oxford 1965 é o mais profundo estudo monográfico existente sobre as metamorfoses da nobreza eu ropéia nesta época As críticas se concentraram em sua tese de que a posição econômica do pariato inglês deteriorouse de maneira significativa no século examinado Entretanto este ponto é essencialmente secundário pois a crise foi mais ampla do que uma sim ples questão de quantidade de domínios feudais conservados pelos nobres foi um difuso trabalho de adaptação A análise de Stone sobre o problema do poder militar da aristo cracia neste contexto é particularmente valiosa pp 199270 A limitação do livro está sobretudo em seu confinamento ao pariato inglês uma elite muito pequena no seio da classe dominante fundiária além disso como se verá adiante a aristocracia inglesa era extremamente atípica na Europa ocidental em seu conjunto São muito necessários es tudos sobre as nobrezas continentais que pudessem contar com uma riqueza de material comparável 48 PERRY ANDERSON respondente expansão segura do sistema fiscal embora houvesse uma intensificação geral da tributação foi esta a idade de ouro dos finan cistas do sul da Alemanha Verificouse um crescimento constante da administração burocrática mas caracteristicamente esta foi por toda a parte vítima da colonização das grandes casas da nobreza que dispu tavam os privilégios políticos e os benefícios econômicos do cargo co mandavam clientelas parasitárias de nobres que eram infiltrados no aparelho de Estado e formavam redes rivais de apadrinhamento no seio deste uma versão modernizada do sistema de dependentes do úl timo período medieval com seus conflitos As rivalidades faccionárias entre as grandes famílias cada uma com o comando de um segmento da máquina do Estado e freqüentemente com uma sólida base regio nal no seio de um país tenuemente unificado ocupavam constante mente a antecena do palco político7 Na Inglaterra as virulentas riva lidades entre as casas Dudley e Seymour e Leicester e Cecil na França a mortífera guerra tripartida entre as linhagens Guise Montmorency e Bourbon na Espanha a brutal luta surda pelo poder entre os grupos Alba e Eboli deram o tom da época As aristocracias ocidentais tinham começado a adquirir a educação universitária e a fluência cultural até então reservada aos clérigos8 mas não estavam ainda de modo ne nhum desmilitarizadas em sua vida privada mesmo na Inglaterra sem falar da França Itália e Espanha Os monarcas reinantes tinham geralmente que contar com seus magnatas como uma força indepen dente à qual caberiam as posições apropriadas ao seu nível social os traços de uma pirâmide medieval simétrica ainda estavam visíveis nas abordagens do soberano Apenas na segunda metade do século os pri meiros teóricos do absolutismo começaram a difundir as concepções do direito divino que elevavam o poder real a uma altura decisivamente acima da fidelidade limitada e recíproca da suserania real medieva Bodin foi o primeiro e o mais rigoroso deles Mas o século XVI encer rouse nos principais países sem que a forma acabada do absolutismo existisse em qualquer deles mesmo na Espanha Filipe II foi impotente para enviar tropas através da fronteira de Aragão sem a permissão de seus senhores locais Na verdade o próprio termo absolutismo era uma denomina ção imprópria Nenhuma monarquia ocidental gozara jamais de poder 7 Para uma análise recente ver J H Elliott Europe Divided 15591598 Lon dres 1968 pp 737 8 J H Hexter The Education of the Aristocracy in the Renaissance em Reappraisals in History Londres 1961 pp 4570 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 49 absoluto sobre seus súditos no sentido de um despotismo sem entra ves9 Todas elas eram limitadas mesmo no máximo de suas prerroga tivas pelo complexo de concepções denominado direito divino ou natural A teoria da soberania de Bodin que dominou o pensamento político europeu por um século corporifica eloqüentemente essas con tradições do absolutismo Nesse sentido Bodin foi o primeiro pensador a romper sistemática e resolutamente com a concepção medieval da autoridade como o exercício da justiça tradicional e a formular a mo derna idéia do poder político como a capacidade soberana de criar no vas leis e de impor incontestável obediência a elas A marca principal da majestade soberana e do poder absoluto é essencialmente o direito de impor leis aos súditos sem o consentimento deles Existe na verdade uma distinção entre justiça e a lei pois uma implica a eqüi dade enquanto a outra implica o mando A lei não é senão o mando do soberano no exercício de seu poder10 Todavia ao mesmo tempo que enunciava esses axiomas revolucionários Bodin sustentava simulta neamente as mais conservadoras máximas feudais limitativas dos di reitos fiscais e econômicos básicos dos governantes sobre seus súditos Está fora da competência de qualquer príncipe no mundo cobrar im postos livremente de seu povo ou seqüestrar os bens de outra pessoa arbitrariamente pois desde que o príncipe soberano não tem pode res para transgredir as leis da natureza ordenadas por Deus de quem ele é a imagem na Terra não pode tomar a propriedade de outrem sem um motivo justo e razoável11 Assim a apaixonada exegese da recente idéia de soberania combinavase em Bodin com um apelo à revitalização do sistema de feudos ao serviço militar e com a reafirma ção do valor dos Estados A soberania do monarca não é de forma 9 Roland Mousnier e Fritz Hartung Quelques Problèmes Concernant Ia Mo narchie Absolue X Congresso Internazionale di Scienze Storici Rclazwni IV Fio rença 1955 esp pp 415 é a primeira e mais fundamental contribuição para o debate sobre este tópico nos últimos anos Já anteriormente alguns autores haviam apreendido a mesma realidade se bem que de uma maneira menos sistemática entre eles Engels A decadência do feudalismo e o desenvolvimento das cidades eram ambas forças descen tralizadoras que determinaram precisamente a necessidade da monarquia absoluta como poder capaz de soldar entre si as nacionalidades A monarquia tinha que ser abso luta justamente por causa da pressão centrífuga de todos esses elementos O seu absolu lismu entretanto não deve ser entendido num sentido vulgar Estava em conflito per manente com os Estados e com feudatários e cidades rebeldes em nenhum lugar ele aboliu completamente os Estados MarxEngels Werke vol 21 p 402 A última ora ção constitui evidentemente um exagero 10 Jean Bodin Lês Six Livres de Ia Republique Paris 1578 pp 10314 Tra duzi nessa passagem droit por justiça para salientar a distinção acima referida 11 LesSixLivres dela Republique pp 102 114 50 PERRY ANDERSON nenhuma modificada ou diminuída pela existência dos Estados pelo contrário a sua majestade é maior e mais ilustre quando o seu povo o reconhece como soberano mesmo se nessas assembléias os príncipes procurando não antagonizar os seus súditos garantem e permitem muitas coisas que não teriam admitido não fossem as solicitações sú plicas e justas queixas de seu povo 12 Nada revela mais clara mente a natureza efetiva da monarquia absoluta na última fase da Re nascença do que esta teorização autorizada Com efeito a prática do absolutismo correspondia à teoria de Bodin Nenhum Estado absolutista poderia jamais dispor livremente da liberdade ou da propriedade fun diária da própria nobreza ou da burguesia à maneira das tiranias asiáticas suas contemporâneas Nem tampouco conseguiram atingir uma centralização administrativa ou uma unificação jurídica comple tas os particularismos corporativos e as heterogeneidades regionais herdados da época medieval marcaram os Ancien Regimes até a sua destruição final Desse modo a monarquia absoluta no Ocidente foi sempre na verdade duplamente limitada pela persistência abaixo dela de corpos políticos tradicionais e pela presença sobre ela de um direito moral abrangente Em outras palavras o domínio do abso lutismo operava em última instância dentro dos limites necessários da classe cujos interesses ele assegurava No século seguinte com a des truição de muitos pontos de referência familiares aos nobres haveriam de eclodir agudos conflitos entre ambos Mas ao longo deles devese ter em mente que tal como nenhum poder absoluto foi exercido pelo Estado absolutistado Ocidente nenhum conflito entre esses Estados e as suas aristocracias poderia ser absoluto A unidade social de ambos determi nava o terreno e a temporalidade das contradições políticas entre eles Estas entretanto viriam a ter a sua própria importância histórica Os cem anos seguintes assistiram à completa instalação do Estado absolutista num século de depressão demográfica e agrária e de ten dência decrescente dos preços Foi então que os efeitos da revolução militar fizeramse sentir decisivamente Os exércitos multiplicaram rapidamente seus efetivos tornandose astronomicamente dispendio sos numa série de guerras em expansão incessante As operações de Tilly não foram muito mais vastas que as de Alba ambas tornamse pequenas diante das de Turenne O custo dessas massivas máquinas militares originou agudas crises de receita para os Estados absolutistas A coação fiscal sobre as massas de um modo geral intensificouse Ao 12 Lês Six Livres de Ia Republique p 103 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 51 mesmo tempo a venda de cargos públicos e honrarias tornouse agora um expediente financeiro fundamental para todas as monarquias e foi sistematizada de uma forma sem paralelo no século anterior O resul tado foi a integração de um número crescente de burgueses arrivistas nas fileiras de funcionários do Estado que tornaramse crescentemente profissionalizadas e a reorganização dos vínculos entre a nobreza e o próprio aparelho de Estado A venda de cargos não era meramente um artifício econômico destinado a aumentar as receitas às custas das classes proprietárias Ela cumpria também uma função política ao fazer da aquisição de po sições burocráticas uma transação de mercado e ao investir a sua pro priedade com direitos hereditários a venda de cargos bloqueava a for mação de sistemas de clientela da grande nobreza no interior do Es tado que dependeriam não de equivalentes financeiros impessoais mas das ligações e do prestígio pessoais de um grande senhor e da sua casa Richelieu sublinhou em seu testamento o papel esterilizador fundamental da paulette ao colocar o conjunto do sistema adminis trativo fora do alcance de linhagens aristocráticas tentaculares como a Casa de Guise Evidentemente um parasitismo apenas foi substituído por outro no lugar do apadrinhamento a venalidade Mas para os monarcas a mediação do mercado era mais segura que a dos grandes nobres os consórcios financeiros parisienses que fizeram empréstimos ao Estado arremataram impostos e compraram cargos no século XVII eram muito menos perigosos para o absolutismo francês que as dinas tias provinciais do século XVI que não somente tinham sob laços de obrigação setores da administração real como também podiam alinhar as suas próprias tropas armadas Por sua vez a maior burocratização da função pública produziu novos tipos de administradores dirigentes em geral recrutados na nobreza e ansiosos pelos benefícios convencio nais dos cargos mas imbuídos ao mesmo tempo de um rigoroso res peito pelo Estado enquanto tal e de uma firme determinação de sus tentar os seus interesses de longo prazo contra os conluios de vista curta da alta nobreza ambiciosa ou descontente Foram estes os austeros mi nistros reformadores do século XVII funcionários essencialmente civis carentes de base regional ou militar que dirigiam os negócios do Es tado a partir de seus gabinetes Oxenstierna Laud Richelieu Colbert ou Olivares O tipo complementar da nova era foi o íntimo pessoal e incapaz do soberano reinante o valido em que a Espanha foi tão pró diga de Lerma a Godoy Mazarino foi uma estranha combinação dos dois Foram estas gerações que estenderam e codificaram as práticas da diplomacia bilateral do século XVI no sentido de um sistema mui 52 PERRY ANDERSON tilateral internacional a que o Tratado de Vestfália serviu de diploma de criação e o âmbito amplificado das guerras do século XVII de ca dinho de experiências A escalada da guerra a burocratização dos cargos a intensifi cação dos impostos o desgaste do clientelismo tudo isso conduziria a uma mesma direção à decisiva eliminação daquilo que no século se guinte Montesquieu teorizaria nostalgicamente como os poderes in termediários entre a monarquia e o povo Em outros termos o sistema de Estados arruinouse progressivamente à medida que o poder de classe da nobreza assumia a forma de uma ditadura centrípeta exercida sob o signo real Como é evidente o poder efetivo da monarquia como instituição não correspondia necessariamente de forma alguma ao do monarca o soberano que efetivamente dirigia a administração e con duzia a política era tanto a exceção como a regra embora por razões óbvias a unidade e eficácia criativas do absolutismo alcançassem o seu ponto máximo quando as duas coincidiam Luís XIV e Frederico II O vigor e florescimento máximos do Estado absolutista significaram também necessariamente uma compressão sufocante dos direitos e da autonomia tradicionais da classe nobiliária que datavam da descen tralização medieval primitiva da organização política feudal e eram sancionados pelos venerandos costumes e interesses Os últimos Es tadosGerais antes da revolução reuniramse na França em 1614 as últimas Cortes de Castela antes de Napoleão em 1665 o último Land tag na Bavária em 1669 enquanto isso ocorria na Inglaterra o mais longo recesso do Parlamento em um único século de 1629 à Guerra Civil Esta época é assim não apenas a do apogeu político e cultural do absolutismo como também a do generalizado descontentamento e alie nação aristocráticos com relação a ele Os privilégios particularistas e os direitos consuetudinários não foram abandonados sem luta espe cialmente numa época de penetrante recessão econômica e de crédito inelástico Assim o século XVII foi repetidas vezes o cenário de revoltas das nobrezas locais contra o Estado absolutista no Ocidente que fre qüentemente se mesclaram com a incipiente sedição de juristas e mer cadores e às vezes utilizaram mesmo a fúria sofrida das próprias massas rurais e urbanas como arma temporária contra a monarquia A Fronda na França a República Catalã na Espanha a Revolução 13 O ensaio justamente célebre de TrevorRoper The General Crisis of the Seventeenth Century Past and Present n 16 novembro de 1959 pp 3164 agora modificado e republicado em Religion The Reformaíton and Social Change Londres LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 53 Napolitana na Itália a Revolta dos Estados na Boêmia e a própria Grande Revolta na Inglaterra tiveram todas algo deste caráter de re volta nobiliária contra a consolidação do absolutismo14 Como é natu ral esta reação nunca poderia transformarse num assalto unificado e de grande escala da aristocracia à monarquia pois ambas estavam li gadas por um cordão umbilical de classe tampouco se registrou algum caso de revolta puramente da nobreza naquele século O padrão carac terístico foi quase sempre o de uma explosão sobredeterminada na qual uma parcela regionalmente delimitada da nobreza erguia a ban deira do separatismo aristocrático e era apoiada por uma burguesia urbana descontente e por multidões plebéias em levantes gerais Ape nas na Inglaterra onde o componente capitalista da revolta foi predo minante tanto na classe proprietária rural como na urbana é que a Grande Revolta alcançou êxito Em todas as outras partes na França Espanha Itália e Áustria as insurreições dominadas ou contaminadas pelo separatismo da nobreza foram esmagadas reforçandose o poder do absolutismo E tal ocorria necessariamente Nenhuma classe domi nante feudal poderia permitirse alijar os avanços realizados pelo abso lutismo que constituíam a expressão de necessidades históricas pro fundas atuantes através de todo o continente sem colocar em risco a sua própria existência com efeito nenhuma foi jamais total ou majori tariamente conquistada para a causa da revolta Mas o caráter regional ou parcial de tais conflitos não minimiza o seu significado os fatores de autonomistno local meramente condensavam uma insatisfação difusa que existia muitas vezes em toda a nobreza e forneciamlhe uma for 1967 pp 4689 com todos os seus méritos restringe demasiado o alcance dessas re voltas ao apresentálas essencialmente como protestos contra as despesas e os desperdí cios da cortes pósrenascentistas Na realidade como já foi apontado por numerosos historiadores a guerra constituía um item muito maior do que a corte nos orçamentos do Estado no século XVII O sistema palaciano de Luís XIV foi muito mais pródigo que o de Ana da Áustria mas nem por isso foi mais impopular À parte isso a brecha funda mental entre aristocracia e monarquia não era realmente econômica embora os impostos de guerra pudessem desencadear como o fizeram amplas revoltas Erapolítica relacio nada com a posição total da nobreza numa organização política incipiente cujos contor nos eram ainda freqüentemente opacos para todos os atores envolvidos no drama 14 A sublevação napolitana no aspecto social o mais radical desses movimen tos o teve em menor parte Mas mesmo aí o primeiro sinal de tempestade da explosão antiespanhola foram as conspirações aristocráticas de Sanza Conversano e outros no bres hostis à fiscalização do vicerei e aos grupos de especuladores que vicejavam à sua sombra e que conspiravam com a França contra a Espanha desde 1634 As conjurações baroniais multiplicavamse em Nápoles no início de 1647 quando o tumulto popular liderado por Masaniello subitamente rebentou e conduziu o grosso da aristocracia napo litana de volta ao legalismo Para este processo ver a excelente análise em Rosário Vil lari La Rivolta AntiSpagnuola a Napoli Lê Origini1585l647 Bari 1967 pp 20116 54 PERRY ANDERSON ma políticomilitar violenta Os protestos de Bordéus Praga Nápoles Edimburgo Barcelona ou Palermo tiveram uma ressonância mais am pla A sua derrota final foi um episódio central no difícil esforço de vida do conjunto da classe nesse século à medida que esta se transformava lentamente para se adaptar às novas e indesejadas exigências de seu próprio poder de Estado Nenhuma classe na história compreende ime diatamente a lógica de sua própria situação histórica em épocas de transição um longo período de desorientação e confusão pode ser ne cessário para que ela aprenda as regras obrigatórias de sua própria soberania A nobreza ocidental na tensa época do absolutismo do sé culo XVII não constituiu uma exceção teve que ser amansada na se vera e inesperada disciplina de suas próprias condições de governo É esta essencialmente a explicação para o paradoxo aparente da trajetória ulterior do absolutismo no Ocidente Porque se o século XVII marca o zênite da turbulência e da desordem entre classe e Es tado no seio do sistema de domínio político da aristocracia o século XVIII é por comparação o ocaso dourado da sua tranqüilidade e re conciliação Sucedeuse uma nova harmonia e estabilidade à medida que a conjuntura econômica se modificava e cem anos de relativa pros peridade instalavamse na maior parte da Europa enquanto a nobreza recuperava a confiança em sua capacidade de dirigir os destinos do Estado Num país após outro tinha lugar uma rearistocratização refi nada da alta burocracia o que dava à época anterior por contraste ilusório a aparência de ter sido sortida emparvenus A Regência fran cesa e a oligarquia sueca dos Chapéus constituem os exemplos mais notáveis desse fenômeno que pode ser observado também na Espanha carolina e mesmo na Inglaterra georgiana ou na Holanda das Perucas onde revoluções burguesas efetivamente converteram o Estado e o modo de produção dominante ao capitalismo Faltam aos ministros de Estado que simbolizam o período a energia criativa e a força austera de seus predecessores mas eles estavam serenamente em paz com a sua classe Fleury ou Choiseul Ensenada ou Aranda Walpole ou Newcas tle são as figuras representativas desta época O desempenho civil do Estado absoluüsta no Ocidente na era do iluminismo reflete este padrão havia uma ornamentação de excessos e um refinamento de técnicas uma certa marca adicional de influências burguesas combinados com uma perda geral de dinamismo e criativi dade As extremas distorções originadas pela venda de cargos foram reduzidas e a burocracia tornouse correspondentemente menos venal mas muitas vezes ao preço de um sistema de empréstimos públicos para levantar receitas equivalentes o qual imitado dos países capita LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 55 listas mais avançados logo tendia a inundar o Estado com as dívidas acumuladas Ainda se pregava e se praticava o mercantilismo embora as novas doutrinas econômicas liberais dos fisiocratas que defen diam o livrecomércio e o investimento agrário tenham feito alguns progressos limitados na França na Toscana e em outras regiões Mas o processo talvez mais importante e interessante no seio da classe domi nante fundiária nos cem anos que antecederam a Revolução Francesa foi entretanto um fenômeno exterior ao âmbito do próprio Estado Tratase da difusão por toda a Europa do vincolismo o surto de expedientes aristocráticos para a proteção e consolidação da grande propriedade fundiária contra as pressões e caprichos do mercado capi talista15 A nobreza da Inglaterra depois de 1689 foi uma das pri meiras a seguir tal rumo com a criação do strict settlement que impe dia os proprietários rurais de alienarem a propriedade da família e conferia direitos apenas ao filho primogênito duas medidas destinadas a congelar todo o mercado de terras no interesse da supremacia aris tocrática Logo um após outro os principais países ocidentais desen volveram ou aperfeiçoaram as suas próprias variantes deste vincu lismo ou vinculação da terra a seus proprietários tradicionais O mayorazgo na Espanha o morgadio em Portugal fideicommissum na Itália e na Áustria e o maiorat na Alemanha todos cumpriam a mesma função preservar intatos os grandes blocos de propriedades da grande nobreza e os vastos latifúndios diante dos perigos da fragmentação ou venda em um mercado comercial aberto16 Grande parte da recupe rada estabilidade da nobreza européia no século XVIII foi devida sem dúvida ao suporte econômico proporcionado por tais artifícios jurí dicos Na verdade houve provavelmente menos reviravoltas sociais no seio da classe dominante nesta época do que nas precedentes quando famílias e fortunas flutuaram muito mais rapidamente em meio aos grandes levantes políticos e sociais17 15 Não há estudos exaustivos sobre este fenômeno É analisado de passagem inter alia por S J Woolf Stitdi sulla Nohiltà Piemontese nellÉpoca dellAssolutismo Turim 1963 que data a sua difusão do século anterior A maioria dos colaboradores de A Goodwin Org The European Nobility in the 18th Century Londres 1953 tocam também no assunto 16 O mayorazgo espanhol foi de longe o mais antigo desses artifícios datando de há mais de dois séculos mas cresceu constantemente tanto em número quanto em alcance chegando mesmo a incluir bens móveis O strict settlement inglês era na reali dade um pouco menos rígido que o padrão continental do fideicommissum uma vez que valia apenas para uma única geração na prática porém esperavase que os sucessivos herdeiros o reconhecessem 17 Toda a questão da mobilidade no seio da classe nobiliária da aurora do feudalismo ao fim do absolutismo ainda necessita de um grande esforço de pesquisa S6 PERRY ANDERSON Foi com este panorama de fundo que uma cultura de elite cos mopolita de corte e salão espalhouse por toda a Europa caracteri zandose pelo novo predomínio do francês como idioma internacional do discurso diplomático e intelectual Na verdade por baixo de seu verniz tal cultura estava mais profundamente que nunca penetrada pelas idéias da burguesia ascendente que agora encontravam uma ex pressão triunfante no iluminismo O peso específico do capital mer cantil e manufatureiro no seio da maioria das formações sociais ociden tais aumentara ao longo desse século que presenciou a segunda grande onda de expansão comercial e colonial ultramarina Mas isso apenas determinou a política do Estado nos lugares onde já ocorrera uma revo lução burguesa e o absolutismo fora derrubado como na Inglaterra e na Holanda Em outras partes não há sinal mais notável da continui dade estrutural do Estado feudal na sua última fase que a persistência de suas tradições militares A potência efetiva em tropas geralmente mantevese a mesma ou declinou um pouco na Europa ocidental de pois do Tratado de Utrecht o aparato físico da guerra deixara de au mentar ao menos em terra no mar era outra questão Mas a fre qüência e o seu caráter central para o sistema político internacional não se alterara seriamente Com efeito talvez durante este século tenham mudado de mãos mais territórios geográficos objeto clássico de todo conflito militar aristocrático que durante qualquer dos dois séculos precedentes Silésia Nápoles Lombardia Bélgica Sardenha e Polônia estavam entre as presas A guerra funcionou nesse sentido até o final áoancien regime No aspecto tipológico evidentemente as campanhas Atualmente só são possíveis hipóteses exploratórias quanto a fases sucessivas dessa longa história Duby registra a sua surpresa ao descobrir que a convicção de Bloch sobre uma descontinuidade radical entre as dinastias carolíngia e medieval na França estava equi vocada na verdade uma alta proporção das linhagens que forneceram os vassi dominici do século IX sobreviveu para se transformar nos barões do século XII Ver G Duby Une Énquête a Poursuivre Ia Noblesse dans Ia France Médievale Revue Historique CCXXVI 1961 pp 122 Por outro lado Perroy encontrou um alto nível de mobilidade entre a pequena nobreza do Condado de Forez a partir do século XIII aí a duração média de qualquer linha de nobreza era de três a quatro ou mais cautelosamente de três a seis gerações em grande medida devido aos acasos da mortalidade Edouard Per roy Social Mobility among French Noblesse in the Later Middle Ages Past and Pré sent n 21 abril de 1962 pp 2538 Em geral a fase final da Idade Média e o início da Renascença parecem ter sido períodos de modificações rápidas em muitos países de onde desapareceria a maior parte das grandes casas medievais Tal formulação é certa mente verdadeira na Inglaterra e na França provavelmente menos na Espanha A rees tabilização das fileiras da aristocracia parece igualmente evidente no fim do século XVII depois que a última e mais violenta das convulsões chegou ao fim na Boêmia Habsburgo durante a Guerra dos Trinta Anos Mas este tema pode ainda nos reservar surpresas LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 57 do absolutismo europeu apresentam uma certa evolução em e através de uma repetição básica A determinante comum a todas elas era a tendência territorialfeudal acima analisada cuja forma característica foi o conflito dinástico puro e simples do início do século XVI a dis puta HabsburgoValois pela Itália Sobreposto a esta por cem anos de 1550 a 1650 estava o conflito religioso entre as potências da Re forma e da ContraReforma que nunca iniciou mas com freqüência intensificou e exacerbou as rivalidades geopotíticas fornecendolhes o idioma ideológico da época A Guerra dos Trinta Anos foi a maior e a última destas lutas mistas18 Foi prontamente seguida pelo pri meiro conflito militar europeu de um tipo totalmente novo travado por objetivos diferentes num elemento diferente as guerras comerciais angloholandesas dos anos de 1650 e 1660 nas quais quase todas as batalhas foram marítimas Tais confrontos entretanto estavam confi nados aos Estados da Europa que haviam passado pela experiência das revoluções burguesas e constituíramse em disputas estritamente inter capitalistas A tentativa promovida por Colbert de adotar os obje tivos delas na França revelouse um fiasco na década de 1670 Todavia a partir da Guerra da Liga de Augsburgo o comércio tornouse quase sempre uma presença complementar nos mais importantes conflitos militares europeus em disputa pela terra quanto mais não fosse pela participação neles da Inglaterra cuja expansão geográfica ultramarina era agora de caráter inteiramente comercial e cuja meta efetiva era um monopólio colonial mundial Daí o caráter híbrido das guerras do final do século XVIII com a justaposição de dois tempos e de dois tipos diferentes de conflito em uma mêlée singular e estranha da qual a Guerra dos Sete Anos nos dá o mais claro exemplo a primeira guerra da história a ser travada através do globo embora como espetáculo secundário para a maior parte dos participantes para quem Manila ou Montreal representavam escaramuças remotas se comparadas com Leuthen ou Kunersdorf Nada revela melhor o fracasso da perspectiva feudal do ancien regime na França que a sua incapacidade para perce ber os verdadeiros interesses em jogo nestas guerras duais junto com seus rivais ela conservouse basicamente fixada à disputa tradicional pela terra até o final19 18 O capítulo de H G Koenigsberger The European Civil War in The Habsburgsin Europe Ithaca 1971 pp 21985 é um relato sucinto e exemplar 19 A melhor análise geral da Guerra dos Sete Anos é ainda a de Dorn Compe fition for Empire pp 31884 Espanha Tal era o caráter geral do absolutismo no Ocidente Entretanto os Estados territoriais específicos que vieram a existir nos diferentes países da Europa renascentista não podem ser simplesmente assimi lados a um tipo puro único Eles apresentavam com efeito amplas diferenças com conseqüências cruciais para a história ulterior dos paí ses considerados que ainda hoje se fazem sentir Um exame dessas variações aparece portanto como complemento necessário a qualquer abordagem da estrutura geral do absolutismo no Ocidente A Espanha primeira grande potência da Europa moderna constitui um ponto de partida lógico A ascensão da Espanha Habsburgo não foi meramente um episó dio num conjunto de experiências simultâneas e equivalentes de cons trução do Estado na Europa ocidental foi também uma determinante auxiliar de todo esse conjunto como tal Ela ocupa por isso uma po sição qualitativamente distinta no processo geral de absotutização Com efeito o alcance e o impacto do absolutismo espanhol foi num sentido estrito imoderado em relação às outras monarquias ocidentais da mesma época A pressão internacional por ele exercida atuou como uma sobredeterminação especial dos padrões nacionais nos outros pon tos do continente devido à desproporção de riqueza e poder de que dispunha a concentração histórica de tais recursos no Estado espanhol não poderia deixar de afetar a configuração geral e o sentido do sistema estatal que surgia no Ocidente A monarquia espanhola devia a sua su premacia a uma combinação de dois complexos de recursos por sua LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 59 vez projeções inesperadas de elementos comuns ao absolutismo ascen dente elevadas a uma dimensão excepcional Por um lado a sua casa reinante beneficiouse mais do que qualquer outra linhagem na Eu ropa dos pactos da política dinástica de casamentos O parentesco da família Habsburgo rendeu ao Estado espanhol uma escala de territórios e influência que nenhuma monarquia rival poderia igualar um arte fato supremo dos mecanismos feudais de expansão política Por outro lado a conquista colonial do Novo Mundo supriua com uma supera bundância de metais preciosos que lhe possibilitou um tesouro muito superior ao de qualquer um de seus adversários Conduzida e organi zada no interior de estruturas ainda notavelmente senhoriais a pilha gem das Américas foi no entanto ao mesmo tempo um dos atos mais espetaculares da acumulação primitiva do capital europeu durante a Renascença Assim o absolutismo espanhol buscou forças tanto no legado interno do engrandecimento feudal como no saque ultramarino de capital extrativo Nunca houve evidentemente qualquer dúvida quanto a que interesses sociais e econômicos o aparelho político da mo narquia espanhola atendia prioritária e permanentemente Nenhum outro grande Estado absolutista na Europa ocidental viria a ter um ca ráter tão aristocrático ou infenso ao desenvolvimento burguês O pró prio acaso de seu precoce controle das minas da América com a sua economia de extração tosca mas lucrativa desmotivouo de promover o crescimento das manufaturas ou de fomentar a difusão da empresa mercantil no seio de seu império europeu Em vez disso abateuse com um peso maciço sobre as comunidades comerciais mais ativas do conti nente ao mesmo tempo que ameaçava todas as outras aristocracias fundiárias num ciclo de guerras interaristocráticas que durou 150 anos O poder da Espanha sufocou a vitalidade urbana do norte ita liano e esmagou as florescentes cidades de metade dos Países Baixos as duas regiões mais avançadas da economia européia na virada do século XVI A Holanda conseguiu escapar ao seu controle após uma longa luta pela independência burguesa No mesmo período os Esta dos monárquicos do sul da Itália e de Portugal foram absorvidos pela Espanha As monarquias da França e da Inglaterra foram fustigadas por ataques hispânicos Os principados da Alemanha foram invadidos repetidas vezes por tercios de Castela Enquanto a armada espanhola cruzava o Atlântico ou patrulhava o Mediterrâneo os exércitos espa nhóis percorriam a maior parte da Europa ocidental de Antuérpia a Palermo de Regensburg a Kinsale A ameaça da dominação Habs burgo porém acabou por apressar as reações e fortalecer as defesas das dinastias agrupadas contra ela A primazia espanhola conferiu à mo 60 PERRY ANDERSON narquia Habsburgo um papel de consolidação do sistema relativo ao absolutismo ocidental em seu conjunto Mas ao mesmo tempo como veremos limitou criticamente a natureza do próprio absolutismo espa nhol no seio do sistema que ajudou a criar O absolutismo espanhol nasceu da União de Castela e Aragão efetivada pelo casamento de Isabel I e Fernando II em 1469 Começou com uma base econômica aparentemente firme Durante os períodos de escassez de mãodeobra provocada pela crise geral do feudalismo ocidental áreas crescentes de Castela foram convertidas a uma lucra tiva economia lanífera que a transformou na Austrália da Idade Mé dia1 e num parceiro importante do comércio flamengo enquanto isso Aragão era há muito tempo uma potência territorial e comercial no Mediterrâneo com o controle da Sicília e da Sardenha O dinamismo político e militar do novo Estado dual logo se revelaria dramaticamente numa série de extensas conquistas externas Granada o último reduto mouro foi destruída e completouse a Reconquista Nápoles foi ane xada Navarra absorvida e acima de tudo as Américas foram desco bertas e subjugadas O ramo Habsburgo em breve adicionou Milão o FrancheComté e os Países Baixos Esta súbita avalanche de sucessos fez da Espanha a primeira potência da Europa por todo o século XVI gozando de uma posição internacional que nenhum outro absolutismo do continente foi jamais capaz de igualar Todavia o Estado que pre sidia este vasto império era ele próprio uma armação em ruínas unida em última análise apenas pela pessoa do monarca O absolutismo es panhol tão terrível para o protestantismo setentrional externamente foi com efeito notavelmente modesto e limitado em seu desenvolvi mento interno As suas articulações internas eram talvez inigualável mente frágeis e heteróclitas As razões deste paradoxo devem ser sem dúvida procuradas essencialmente na curiosa relação triangular esta belecida entre o império americano o império europeu e as pátrias ibéricas Os reinos compostos de Castela e Aragão unidos por Fernando e Isabel representavam uma base extremamente diversa para a constru ção da nova monarquia espanhola no final do século XV Castela era 1 A expressão é de Vicens Ver J Vicens Vives Manual de História Econômica deEspana pp 112 231 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 61 um país com uma aristocracia de enormes propriedades e poderosas ordens militares tinha também um considerável número de cidades embora significativamente não tivesse ainda uma capital fixa A no breza castelhana se apoderara de vastas extensões de propriedade agrá ria pertencente à monarquia durante as guerras civis do final da Idade Média de 2 a 3 por centro da população controlavam então cerca de 97 por cento do solo Por sua vez mais da metade deste era propriedade de algumas poucas famílias de magnatas que se salientavam da nume rosa pequena nobreza hidalga2 A agricultura cerealífera era constan temente entregue à atividade pastoril nessas grandes propriedades O surto da lã que fornecera a base para as fortunas de tantas casas aris tocráticas estimulara ao mesmo tempo o crescimento urbano e o co mércio externo As cidades de Castela e os navios cantábricos benefi ciaramse da prosperidade da economia pastoril da última fase da Espanha medieval que estava ligada por um sistema comercial coín plexo à indústria têxtil de Flandres O perfil econômico e demográfico de Castela no seio da União era portanto desde o início vantajoso com uma população calculada entre 5 e 7 milhões e um animado co mércio marítimo com a Europa setentrional constituíase com facili dade no Estado dominante na península No aspecto político a sua constituição era curiosamente instável Castela e Leão tinham sido um dos primeiros reinos medievais da Europa a desenvolver um sistema de Estados no século XIII enquanto isso em meados do século XV a efe tiva ascendência da nobreza sobre a monarquia tornouse por certo tempo de grande projeção Mas o ganancioso poder da aristocracia medieval da última fase não estabelecera nenhum molde jurídico As Cortes na realidade permaneceram como assembléias ocasionais e pouco definidas talvez devido ao caráter migrante do reino castelhano conforme este se dirigia para o sul e embaralhava assim o seu padrão social nunca se desenvolverá aí uma institucionalização sólida e fixa do sistema de Estados Desse modo tanto a convocação como a compo sição das Cortes estavam sujeitas à decisão arbitrária do monarca daí resultando que as sessões eram espasmódicas e não resultaria delas nenhum sistema tricurial efetivo Por um lado as Cortes não detinham poder algum de iniciativa legislativa por outro lado a nobreza e o clero gozavam de imunidade fiscal O resultado era um sistema de Estados onde só as cidades tinham que pagar os impostos votados pelas Cortes os quais de resto recaíam quase que exclusivamente sobre as massas 2 J H Elliott Imperial Spain 14691716 Londres 1970 pp 1113 62 PERRY ANDERSON abaixo delas A aristocracia portanto não tinha interesse econômico direto em sua representação no seio dos Estados castelhanos que cons tituíam uma instituição relativamente frágil e isolada O corporati vismo aristocrático encontraria expressão própria nas ricas e temíveis ordens militares Calatrava Alcântara e Santiago que foram cria das pelas Cruzadas mas estas por sua própria natureza não dispu nham da autoridade coletiva de um Estado nobiliário propriamente dito O caráter econômico e político do reino de Aragão3 estava em agudo contraste com isso O interior montanhoso de Aragão abrigava o mais repressivo sistema senhorial da península ibérica a aristocracia local achavase investida com uma série completa de poderes feudais nas áridas zonas rurais onde ainda sobrevivia a servidão e um campe sinato morisco cativo mourejava para os seus senhores cristãos A Cata lunha por outro lado fora tradicionalmente o centro de um império mercantil no Mediterrâneo Barcelona era a maior cidade da Espanha medieval e o seu patriciado urbano a classe comercial mais rica da região A prosperidade catalã no entanto sofrerá penosamente du rante a longa depressão feudal As epidemias do século XIV fustigaram o principado com particular violência retornando repetidas vezes de pois da própria Peste Negra para devastar a população que decresce ria em mais de um terço entre 1365 e 14974 As bancarrotas comerciais foram aumentadas pela agressiva concorrência genovesa no Mediterrâ neo enquanto os pequenos mercadores e as corporações artesanais re voltavamse contra o patriciado nas cidades No campo o campesinato sublevarase para banir os maus costumes e apoderarse das terras abandonadas nas revoltas das remenças do século XV Finalmente uma guerra civil entre a monarquia e a nobreza que atraiu para seu torvelinho outros grupos sociais enfraqueceu ainda mais a economia catalã Entretanto as suas bases estrangeiras na Itália permaneceram intatas Valência a terceira província do reino situavase socialmente num plano intermediário entre Aragão e a Catalunha A nobreza explo rava o trabalho morisco durante o século XV verificouse o cresci mento de uma comunidade mercantil ao passo que a preponderância financeira descia a costa vinda de Barcelona O crescimento de Valên cia porém não compensou adequadamente o declínio da Catalunha 3 O Reino de Aragão era constituído pela união de três principados Aragão Catalunha e Valência 4 Elliott Imperial Spain p 37 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 63 A disparidade econômica entre os dois reinos da União criada pelo casamento de Fernando e Isabel evidenciase no fato de que a popu lação das três províncias de Aragão totalizava apenas l milhão de habitantes em comparação com os 5 a 7 milhões de Castela O con traste político entre os dois reinos por outro lado não era menos sur preendente pois no reino de Aragão encontravase talvez a estrutura de Estado mais sofisticada e bem entrincheirada de toda a Europa As três províncias da Catalunha de Valência e Aragão tinham cada uma as suas próprias Cortes Além disso cada uma delas possuía institui ções repressivas especiais de controle judicial e administração econô mica permanentes que dependiam das Cortes A Diputació catalã um comitê regular das Cortes era o seu exemplar mais efetivo Ade mais cada uma das Cortes devia estatutariamente reunirse em inter valos regulares e estava tecnicamente subordinada à norma da unani midade um esquema singular na Europa ocidental As Cortes arago nesas por sua vez tinham ainda o requinte adicional do sistema qua dricurial de magnatas pequena nobreza clero e burgueses5 In totó tal complexo de liberdades medievais apresentava uma perspectiva particularmente refratária à construção de um absolutismo centrali zado A assimetria das ordens institucionais de Castela e Aragão iria efetivamente traçar toda a carreira da monarquia espanhola a partir de então Compreensivelmente Fernando e Isabel optaram pela alterna tiva óbvia de concentrarse no estabelecimento de um poder real inque brantável em Castela onde as condições eram mais imediatamente propícias Aragão apresentava obstáculos políticos muito mais formi dáveis para a construção de um Estado centralizado Castela tinha uma população cinco ou seis vezes maior e a sua riqueza mais ampla não era protegida por barreiras constitucionais comparáveis Assim foi posto em execução pelos dois monarcas um programa metódico de reorgani zação administrativa As ordens militares foram decapitadas e anexa dos os seus vastos territórios e rendimentos Castelos baroniais foram demolidos expulsos os senhores das zonas de fronteira e proibidas as guerras privadas A autonomia municipal das cidades foi quebrada 5 O espírito do constitucionalismo aragonês estava expresso no impressionante juramento de vassalagem atribuído à sua nobreza Nós que somos tão bons como vós juramos a vós que não sois melhores que nós que vos aceitamos como nosso rei e sobe rano contanto que observeis todas as nossas liberdades e leis mas se assim não for não A fórmula em si talvez fosse lendária mas o seu sentido estava gravado nas ins tituições de Aragão 64 PERRY ANDERSON com a instalação de corregidores oficiais para administrálas a justiça real foi fortalecida e ampliada O Estado tomou a si o controle dos benefícios eclesiásticos separando o aparelho local da Igreja da alçada do papado As Cortes foram progressivamente domesticadas pela omis são efetiva da nobreza e do clero de suas reuniões depois de 1480 uma vez que o principal propósito para convocálas era o aumento dos im postos para financiar os gastos militares nas guerras de Granada e da Itália sobretudo e deles estavam isentos o primeiro e o segundo esta dos estes últimos tinham poucos motivos para resistir a tal restrição Os rendimentos fiscais elevaramse de modo impressionante a receita de Castela cresceu de 900 mil reates em 1474 para 26 milhões em 15046 O Conselho Real foi reformado e dele excluída a Influência dos grandes do reino o novo corpo consultivo foi provido com funcionários bacharéis ou letrados recrutados na pequena nobreza Secretários pro fissionais trabalhavam diretamente sob as ordens dos soberanos des pachando assuntos cada vez mais numerosos A máquina de Estado castelhana foi em outras palavras racionalizada e modernizada Mas a nova monarquia nunca a contrapôs à classe aristocrática no seu con junto As altas posições militares e diplomáticas sempre foram reserva das aos magnatas que mantiveram seus grandes vicereinados e gover nadorias ao passo que os nobres menores preenchiam as fileiras dos corregidores Os domínios reais usurpados desde 1454 foram recupe rados pela monarquia mas os que resultaram de apropriações anterio res a maioria foram deixados em mãos da nobreza em Granada novos domínios se acrescentaram a essas possessões e foi confirmada a imobilização da propriedade rural através do recurso do mayorazgo Além disso garantiramse deliberadamente amplos privilégios aos in teresses pastoris do cartel de aMesta na região rural dominado pelos latifundiários do sul entretanto medidas discriminatórias contrárias à cultura de cereais fixavam finalmente preços de varejo para as safras de grãos Nas cidades foi imposto à nascente indústria urbana um sis tema constritivo de corporações e a perseguição religiosa dos conversos conduziu ao êxodo de capitais dos judeus Todas estas medidas foram implementadas com grande energia e resolução em Castela Em Aragão por outro lado nunca se tentou aplicar um pro grama político de alcance comparável Aí ao contrário o máximo que Fernando pôde conseguir foi uma pacificação social e a restauração da 6 Para a obra de Fernando e Isabel em Castela ver Elliott Império Spain pp 8699 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 65 constituição medieval da última fase As prestações obrigatórias dos camponeses da remença foram enfim remidas com a Sentença de Gua dalupe em 1486 e a inquietação rural amainou O acesso à Diputació catalã foi ampliado com a introdução de um sistema de sorteio Ao lado disso o governo de Fernando confirmou sem ambigüidades a identi dade separada do reino oriental as liberdades catalãs foram expressa mente reconhecidas na sua integridade pela Observança de 1481 e novas salvaguardas contra as possíveis infrações reais foram efetiva mente adicionadas ao arsenal já existente de armas locais contrárias a qualquer forma de centralização monárquica Raramente residindo em sua região natal Fernando instalou vicereis nas três províncias a fim de que exercessem a autoridade em seu nome e criou o Conselho de Aragão quase sempre estabelecido em Castela para manter ligação com aqueles Aragão com efeito foi assim virtualmente deixada aos seus próprios meios mesmo os grandes interesses da lã todopode rosos depois do Ebro viramse impotentes para assegurar o consen timento de terras de pastagem através dos territórios agrícolas Uma vez que Fernando fora solenemente obrigado a reconfirmar todos os espinhosos privilégios contratuais da região não se colocava de modo algum a questão de uma fusão administrativa a qualquer nível entre Aragão e Castela Longe de criarem um reino unificado Suas Majes tades Católicas fracassaram mesmo em estabelecer uma moeda única7 sem falar de um sistema fiscal ou jurídico comum dentro de seus rei nos A Inquisição invenção singular na Europa daquela época deve ser entendida neste contexto ela foi a única instituição unitária espanhola na península um elaborado aparelho ideológico que compensava a divisão e a dispersão administrativas do Estado A ascensão de Carlos V iria complicar mas não iria alterar subs tancialmente tal esquema quando muito acabaria por acentuálo O resultado mais imediato do advento de um soberano Habsburgo foi uma nova corte formada basicamente por exilados sob o domínio de flamengos borgonheses e italianos As extorsões financeiras do novo regime logo suscitaram uma onda de intensa xenofobia popular em Castela Assim a partida do próprio monarca para o norte da Europa seria o sinal para uma ampla rebelião urbana contra o que era visto como o saque estrangeiro dos recursos e das posições de Castela A revolta dos comuneros de 152021 conquistou inicialmente o apoio de 7 O único passo no sentido de uma unificação monetária foi a cunhagem de três moedas de ouro de alto valor e equivalentes em Castela Aragão e na Catalunha 66 PERRY ANDERSON muitos nobres das cidades e invocou um conjunto tradicional de reivin dicações constitucionais Mas a sua força motriz foram as massas po pulares de artesãos urbanos sob a orientação dominante da burguesia urbana do norte e do centro de Castela cujos centros comerciais e ma nufatureiros tinham conhecido um surto econômico no período ante rior8 Encontrou pouco ou nenhum eco no campo seja entre o campe sinato seja entre a aristocracia rural o movimento nunca afetou seria mente aquelas regiões onde as cidades eram pouco numerosas ou fracas Galícia Andaluzia Estremadura ou Guadalajara O programa fe derativo e protonacional da junta revolucionária que as comunas castelhanas criaram durante a sua insurreição caracterizoua nitida mente como uma revolta do terceiro estado9 A sua derrota perante os exércitos do rei por trás dos quais reagrupouse o grosso da aristocra cia assim que o radicalismo potencial da sublevação tornouse evi dente constitui portanto um passo crítico na consolidação do absolu tismo espanhol O esmagamento do levante comunero serviu efetiva mente para eliminar os últimos vestígios de uma constituição contra tual em Castela e condenou as Cortes para as quais os comuneros reivindicavam sessões regulares trianuais à nulidade a partir de então Entretanto ainda mais significativo foi o fato de que a vitória mais fundamental da monarquia espanhola sobre a resistência organi zada ao absolutismo real em Castela na verdade o seu único conflito armado com qualquer tipo de oposição naquele reino tenha sido a derrota militar das cidades mais que a dos nobres Em nenhuma outra parte da Europa verificouse o mesmo em relação ao absolutismo nas cente o padrão comum era a supressão de revoltas aristocráticas e não das revoltas burguesas mesmo onde ambas encontravamse intima mente interligadas O triunfo sobre as comunas castelhanas no início de sua trajetória viria a separar a partir daí o curso da monarquia espanhola daquele das suas parceiras ocidentais O acontecimento mais espetacular do reinado de Carlos V foi evidentemente a sua vasta ampliação da órbita internacional Habs burgo Na Europa os Países Baixos o FrancheComté e Milão estavam agora anexados ao patrimônio pessoal dos governantes da Espanha ao passo que nas Américas o México e o Peru eram conquistados Du rante o período de vida do imperador toda a Alemanha foi um impor 8 Ver J A Maravall Lãs Comunidades de Castiüa Una Primera Revolución Moderna Madri 1963 pp 21622 9 Maravall Lãs Comunidades de Castitía pp 445 507 1567 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 67 tante teatro de operações a sobreporse a essas possessões hereditárias Esta súbita expansão territorial reforçaria inevitavelmente a tendên cia inicial do jovem Estado absolutista espanhol à delegação de pode res através de Conselhos e vicereis separados para as diferentes pos sessões da dinastia O chanceler piemontês de Carlos V Mercúrio Gat tinara inspirado pelos ideais universalistas de Erasmo esforçouse por dotar a massa indomável do império Habsburgo com um executivo mais compacto e eficaz ao criar certas instituições unitárias de tipo departamental notavelmente um Conselho de Finanças um Conse lho de Guerra e um Conselho de Estado tornandose este último teori camente o topo de todo o edifício imperial com responsabilidades globais de caráter transregional Estes seriam assistidos por um cres cente secretariado permanente de funcionários civis à disposição do monarca Mas ao mesmo tempo constituiuse progressivamente uma nova série de conselhos territoriais o próprio Gattinara criou o pri meiro deles para o governo das índias No final do século já seriam seis Os conselhos regionais de Aragão Castela índias Itália Portugal e Flandres Excetuando o de Castela nenhum deles tinha um corpo ade quado de funcionários locais na região onde a administração efetiva era confiada a vicereis sujeitos em geral a um precário controle e diri gidos à distância pelos conselhos10 Por sua vez os poderes dos pró prios vicereis eram habitualmente muito limitados Somente nas Amé ricas eles controlavam os serviços de sua burocracia mas mesmo aí eram secundados por audiências que os privavam da autoridade judi cial de que gozavam em outros lugares ao passo que na Europa ti nham que entenderse com as aristocracias residentes siciliana va lenciana ou napolitana que normalmente reivindicavam um direito de virtual monopólio dos cargos públicos Daí resultava um bloqueio a qualquer unificação real tanto do império em seu conjunto como das próprias terras ibéricas As Américas estavam juridicamente vincula das ao reino de Castela o sul da Itália ao reino de Aragão As econo mias atlântica e mediterrânea que cada um representava nunca se reu niriam num sistema comercial único A divisão entre os dois reinos originais da União dentro da Espanha era na prática reforçada pelas possessões ultramarinas a eles anexadas Para efeitos jurídicos a Cata lunha poderia ser simplesmente assimilada em seu estatuto à Sicília ou aos Países Baixos Na realidade por volta do século XVII o poder de Madri em Nápoles ou Milão era efetivamente maior que em Barcelona 10 J Lynch Spain under the Habsburgs II Oxford 1969 pp 1920 68 PERRY ANDERSON ou Saragoça Assim a própria dispersão do irrpério Habsburgo supe rou a sua capacidade de integração e ajudou a deter o processo de centralização administrativa dentro da própria Espanhall Ao mesmo tempo Carlos V inaugurava a fatídica seqüência de guerras européias que viria a ser o preço do poder espanhol no conti nente No teatro meridional de suas inumeráveis campanhas Carlos obteve triunfo esmagador foi durante esse período que a Itália caiu definitivamente sob a ascendência hispânica enquanto a França era afastada da península intimidavase o papado e conservavase à dis tância a ameaça turca A sociedade urbana mais avançada da Europa tornouse daí em diante uma vasta plataforma militar para o absolu tismo espanhol No teatro setentrional de suas guerras entretanto o imperador foi forçado a um dispendioso beco sem saída a Reforma mantevese invencível na Alemanha apesar das suas repetidas tentati vas para esmagála ou levála a um acordo e a hereditária inimizade Valois sobreviveu a todas as derrotas na França Além disso os encar gos financeiros de uma guerra constante no norte afetaram gravemente a lealdade tradicional dos Países Baixos no final do reinado prepa rando os desastres que atingiriam Filipe II nessa região O volume e o custo dos exércitos Habsburgo sofreram rápida e regular escalada du rante o governo de Carlos V Antes de 1529 as tropas espanholas na Itália nunca contaram com mais de 30 mil homens em 153637 havia 60 mil soldados envolvidos na guerra contra a França por volta de 1552 já seriam 150 mil os comandados do imperador na Europa12 Os empréstimos financeiros e as pressões fiscais cresceram em medida correspondente à época de sua abdicação em 1556 as receitas de Car los V tinham triplicado13 e todavia os débitos reais eram tão elevados que o seu herdeiro teve que declarar oficialmente a bancarrota do Es 11 Marx estava ciente do paradoxo do absolutismo Habsburgo na Espanha Após afirmar que a liberdade espanhola desapareceu sob o fragor das armas as chuvas de ouro e as terríveis iluminações dos autosdefé ele indagava Mas como considerar o singular fenômeno de que depois de quase três séculos de dinastia Habsburgo a que se seguiu a dinastia Bourbon cada uma delas capaz de esmagar um povo as liber dades municipais da Espanha ainda sobrevivessem Como explicar que precisamente no país onde de todos os Estados feudais nasceu pela primeira vez a monarquia absoluta em sua forma mais imoderada a centralização nunca tenha conseguido criar raízes K Marx e F Engels Revolutionary Spain Londres 1939 pp 2425 Faltoulhe no entanto uma resposta adequada à questão 12 G Parker The Army of Flanders and the Spanish Road 15671659 Cam bridge 1972 p 6 13 Lynch Spain under the Habsburgs l Oxford 1965 p 128 evidentemente os preços também tinham subido muito nesse intervalo de tempo LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 69 tado um ano mais tarde Sempre dividido no aspecto administrativo o império espanhol herdado por Filipe II no Velho Mundo começava a tornarse economicamente insustentável em meados do século caberia ao Novo Mundo reabastecer o seu tesouro e prolongar a sua desunião Efetivamente a partir de 1560 os múltiplos efeitos do império americano sobre o absolutismo espanhol passaram a ser cada vez mais determinantes para o seu futuro embora seja necessário não confundir os diferentes níveis em que estes se revelavam A descoberta das minas de Potosí aumentara agora enormemente o fluxo do tesouro colonial para Sevilha O suprimento de imensas quantidades de prata das Amé ricas tornouse doravante uma facilidade decisiva para o Estado espanhol em ambos os sentidos do termo pois provia o absolutismo hispânico com um rendimento extraordinário e abundante que se si tuava totalmente fora do âmbito convencional das receitas estatais na Europa Isto significava que o absolutismo na Espanha poderia ainda continuar por muito tempo a prescindir da lenta unificação fiscal e administrativa que constituía uma condição prévia para o absolutismo de outros países a obstinada recalcitrância de Aragão era compensada pela complacência ilimitada do Peru As colônias em outras palavras podiam atuar como substituto estrutural das províncias numa organi zação política onde as províncias ortodoxas foram substituídas pelos patrimônios autárquicos Não há nada mais surpreendente a este res peito do que a ausência completa de qualquer contribuição proporcio nal para o esforço de guerra na Europa durante os séculos XVI eXVII por parte de Aragão ou mesmo da Itália Castela tinha que suportar praticamente sozinha o encargo fiscal das intermináveis campanhas militares no exterior é precisamente por trás dela que estão as minas das índias A incidência total do tributo americano nos orçamentos da Espanha imperial foi evidentemente muito menor do que vulgarmente se pensava na época no auge das frotas de prata os metais preciosos coloniais respondiam apenas por 20 a 25 por cento de suas receitas M O grosso da parte restante das receitas de Filipe II era fornecido pelos encargos domésticos de Castela o tradicional imposto sobre as vendas ou alcabala os servidos especiais cobrados aos pobres a cruzada co brada com a sanção da Igreja ao clero e aos leigos e as obrigações Em inglês o termo facility usado no plural significa também meios ou re cursos N T 14 J H Elliott The Decline of Spain Past and Present a 20 novembro de 1961 republicado em T Aston Org Crisis in Europe 15601660 p 189 Imperial Spain pp 2856 70 PERRY ANDERSON públicas ou juros vendidos aos proprietários Entretanto o metal americano desempenhou sua parte na sustentação da base fiscal metro politana do Estado Habsburgo os níveis fiscais extremamente elevados de sucessivos reinados eram indiretamente amparados pelas transfe rências privadas de metais para Castela cujo volume alcançava em média o dobro dos influxos públicos15 o notável sucesso dos juros como recurso para a obtenção de fundos o primeiro caso de amplo uso de tais obrigações por uma monarquia absoluta na Europa é sem dúvida explicável em parte pela sua capacidade de sangrar essa nova riqueza monetária Além disso a contribuição colonial aos rendi mentos reais constituía por si só um fator decisivo para a condução da política externa espanhola e para a natureza do Estado espanhol Com efeito ela chegava sob a forma de espécie líquida que podia ser utili zada diretamente para financiar movimentos de tropas ou manobras diplomáticas através da Europa e proporcionava excepcionais oportu nidades de crédito aos monarcas Habsburgo que podiam levantar no mercado monetário internacional somas a que nenhum outro príncipe poderia aspirar16 As enormes operações militares e navais de Filipe II do canal da Mancha ao Egeu e de Túnis a Antuérpia somente foram possíveis em razão da extraordinária flexibilidade financeira propi ciada pelo excedente da América Ao mesmo tempo porém o impacto dos metais americanos na economia espanhola enquanto distinta ôx Estado castelhano não era menos importante embora de modo diverso Na primeira metade do século XVI o modesto nível de carregamentos com uma elevada por centagem de ouro forneceu um estímulo às exportações de Castela que rapidamente respondeu pela inflação de preços que se seguiu ao advento do tesouro colonial Uma vez que os 60 a 70 por cento destes metais que não iam diretamente para os cofres do rei tinham que ser comprados como uma mercadoria como qualquer outra aos empreen dedores locais nas Américas desenvolve use um próspero comércio com as colônias principalmente de têxteis azeite e vinho O controle monopolista deste mercado cativo beneficiou inicialmente os produto res castelhanos que nele podiam vender a preços inflacionários em bora os consumidores metropolitanos em breve se queixassem amarga mente do custo de vida interno17 Todavia havia neste processo duas 15 Lynch analisa muito bem este ponto Spain under the Habsburgs l p 129 16 Pierre Vilar Oro y Moneda en Ia Historia 14501920 Barcelona 1969 pp 78 1658 17 Vilar Oro y Moneda pp 1801 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 71 distorções fatais para o conjunto da economia castelhana Em primeiro lugar a crescente demanda colonial conduziu a novas conversões de terras dedicadas à produção cerealífera que passaram à cultura da vinha e da oliveira Isso reforçou a já desastrosa tendência encorajada pelo monarca no sentido de uma contração da produção de trigo à custa da de lã a indústria lanífera espanhola ao contrário da inglesa não era sedentária mas de transumância e portanto extremamente destrutiva da cultura de arado O resultado conjunto dessas pressões faria da Espanha um grande importador de cereais pela primeira vez na década de 1570 A estrutura da sociedade rural de Castela era agora já diferente de qualquer outra na Europa ocidental Os arrendatários dependentes e os pequenos proprietários camponeses constituíam uma minoria no campo No século XVI mais da metade da população rural da Nova Castela talvez mesmo 60 a 70 por cento eram trabalha dores agrícolas ou jornaleros1 e a proporção era talvez mais elevada na Andaluzia Havia um desemprego indiscriminado nas aldeias e pe sadas rendas feudais nas terras senhoriais E ainda mais surpreen dente os censos de 1571 e 1586 revelaram uma sociedade na qual ape nas um terço da população masculina estava engajada na agricultura ao passo que dois quintos eram alheios a qualquer forma de produção econômica direta um prematuro e inchado setor terciário da Es panha absolutista que prefigurava a estagnação secular vindoura19 Mas o dano máximo causado pelo vínculo colonial não se limitava à agricultura o ramo dominante da produção interna naquela época O fluxo de metais preciosos do Novo Mundo produziu também um para sitismo que progressivamente minou e paralisou as manufaturas do país A inflação acelerada elevou os custos de produção da indústria têxtil que operava dentro de limites técnicos muito rígidos a tal ponto que os tecidos castelhanos passaram a ter preços proibitivos tanto para o mercado colonial como para o metropolitano Atravessadores holan deses e ingleses passaram a suprir a melhor fatia da demanda ameri cana enquanto manufaturados estrangeiros mais baratos invadiam a 18 Noel Salomon La campagne de Nouvelle Castille à Ia fin du XVIe Siècle Paris 1964 pp 2578 266 Quanto às dízimas obrigações e rendas ver pp 227 2434 250 19 Foi um historiador português quem sublinhou as implicações deste extraor dinário padrão ocupacional que ele acredita ser válido também para Portugal Vitorino Magalhães Godinho A Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa Lisboa 1971 pp 859 Como ele salienta uma vez que a agricultura era o setor principal da produção econômica em toda sociedade préindustrial um desvio de força de trabalho desta pro porção resultaria inevitavelmente numa estagnação a longo prazo 72 PERRY ANDERSON própria Castela Assim no fim do século os produtos têxteis caste lhanos tornavamse vítimas da prata boliviana Um grito então se ele vou Espana son Ias índias dei extranjero a Espanha transformara se na América da Europa um escoadouro para mercadorias estrangei ras De tal modo não apenas a economia agrária mas também a ur bana foram afinal atingidas pelo esplendor da riqueza americana como lamentaram inúmeros contemporâneos20 O potencial produtivo de Castela estava sendo sabotado pelo mesmo império que injetava re cursos no aparato militar do Estado para aventuras sem precedentes no exterior Havia no entanto uma íntima relação entre os dois efeitos Na verdade se o império americano representava a desagregação da eco nomia espanhola o seu império europeu significou a ruína do Estado Habsburgo e o primeiro tornou a extensa luta pelo último financei ramente possível Sem os carregamentos de metais para Sevílha o co lossal esforço de guerra de Filipe II teria sido impensável Entretanto seria precisamente tal esforço que viria a derrubar a estrutura original do absolutismo espanhol O longo reinado do rei Prudente que cobriu quase toda a segunda metade do século XVI não foi propriamente uma série uniforme de fracassos externos apesar das imensas despesas e dos reveses punitivos em que incorreu na arena internacional O seu padrão básico com efeito não diferiu do de Carlos V êxito no sul derrota no norte No Mediterrâneo a expansão naval turca foi definiti vamente detida em Lepanto em 1571 uma vitória que efetivamente confinou daí em diante as frotas otomanas às suas águas nacionais Portugal foi tranqüilamente incorporado ao bloco Habsburgo através da diplomacia dinástica e de uma oportuna invasão a sua absorção acrescentou as numerosas possessões lusitanas na Ãsia África e Amé rica às colônias espanholas das índias Por sua vez o império ultra marino espanhol foi aumentado pela conquista das Filipinas no Pací fico a mais audaciosa conquista colonial do século no aspecto logístico como no cultural O aparelho militar do Estado espanhol foi aprimo rado até atingir um alto grau de perícia e eficácia a sua organização e sistema de abastecimento tornaramse os mais avançados da Europa A tradicional disposição dos hidalgos castelhanos de servir nos tercios enrijeceu os seus regimentos de infantaria21 enquanto as províncias da 20 Para as reações dos contemporâneos na virada do século XVII ver o exce lente ensaio de Vilar Lê Temps du Quichotte Europe XXXIV 1956 pp 316 21 De forma característica Alba comentava Em nossa nação nada é mais importante que introduzir na infantaria cavalheiros e homens de posses a fim de que não LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 73 Itália e da Valônia se revelavam um reservatório seguro de soldados quando não de impostos para as políticas internacionais dos Habs burgo sintomaticamente os contingentes multinacionais dos exércitos Habsburgo combatiam melhor no estrangeiro do que em solo nativo permitindo a sua própria diversidade um grau relativamente menor de dependência dos mercenários estrangeiros Pela primeira vez na Eu ropa moderna conseguiuse manter um grande exército regular alonga distância da pátria imperial por décadas a fio A partir da chegada de Alba o exército de Flandres contou em média com 65 mil homens por todo o período restante da Guerra dos Oitenta Anos com a Holanda um fato sem precedentes22 Por outro lado a presença permanente dessas tropas nos Países Baixos contou a sua própria história A Ho landa onde já ressoava o descontentamento à época das exações fiscais e das perseguições religiosas de Carlos V explodiu naquilo que viria a ser a primeira revolução burguesa na história sob a pressão do centra lismo tridentino de Filipe II A Revolta dos Países Baixos constituiu uma ameaça direta a interesses vitais da Espanha pois as duas econo mias estreitamente ligadas desde a Idade Média eram ampla mente complementares a Espanha exportava lã e metais preciosos para os Países Baixos e importava tecidos ferragens cereais e provi sões navais Flandres além disso assegurava o cerco estratégico da França e era uma peçachave da supremacia internacional Habsburgo Todavia apesar dos imensos esforços o poder militar espanhol não foi capaz de quebrar a resistência das Províncias Unidas Ademais a intervenção armada de Filipe II nas Guerras Religiosas na França e o seu ataque naval à Inglaterra duas extensões fatais do teatro original da guerra em Flandres foram ambos repelidos a dispersão da Ar mada e a ascensão de Henrique IV marcaram a dupla derrota de sua política de avanço no norte No entanto o balanço internacional no final de seu reinado era ainda aparentemente formidável para o risco de seus sucessores a quem legou um sentimento não diminuído de estatura continental O sul dos Países Baixos fora reconquistado e fortificado As frotas lusoespanholas foram rapidamente reconstituí das depois de 1588 e enfrentaram com êxito os assaltos da Inglaterra às rotas atlânticas do metal A monarquia francesa foi em última análise negada ao protestantismo No plano interno por outro lado o legado de Filipe II na virada seja deixada aos trabalhadores e lacaios Parker The Army ofFlanders and the Spanish Roadç41 22 Parker The Army of Flanders and the Spanish Road pp 2731 74 PERRY ANDERSON do século XVII foi visivelmente mais sombrio Castela tinha agora pela primeira vez uma capital estável em Madri o que facilitava um go verno central O Conselho de Estado dominado pelos grandes do reino e voltado para as questões políticas mais importantes era mais que contrabalançado pela acentuada relevância do secretariado real cujos diligentes funcionáriosbacharéis proviam o confinado monarca com os instrumentos burocráticos de governo mais adequados a ele A unifi cação administrativa dos patrimônios dinásticos não foi entretanto perseguida com coerência Impuseramse reformas de caráter absolu tista nos Países Baixos onde resultaram em desastre e na Itália onde obtiveram um nível modesto de êxito Na própria península ibérica ao contrário não se tentou seriamente nenhum progresso neste sentido A autonomia constitucional e jurídica dos portugueses foi escrupulosa mente respeitada nenhuma interferência castelhana perturbou a or dem tradicional desta aquisição ocidental Nas províncias orientais o particularismo aragonês forneceu truculenta provocação ao rei escon dendo o seu secretário Antônio Perez da justiça real com o recurso a levantes armados em 1591 uma força invasora submeteu esta ruidosa sedição mas Filipe abstevese de qualquer ocupação permanente de Aragão e evitou qualquer modificação importante em sua constitui ção23 A oportunidade de uma solução centralista foi deliberadamente perdida Enquanto isso a situação econômica tanto do país como da monarquia deterioravase funestamente no final do século Os embar ques de prata atingiram níveis máximos de 1590 a 1600 mas as despe sas de guerra eram agora tão elevadas que um novo imposto de con sumo cobrado basicamente sobre os alimentos o mittones foi de cretado em Castela tornandose desde então mais um pesado encargo que caía sobre os trabalhadores pobres nas cidades e no campo No fim de seu reinado as receitas de Filipe II tinham mais que quadru plicado21 mesmo assim a bancarrota oficial o surpreendeu em 1596 Três anos mais tarde abateuse sobre a Espanha a mais terrível peste da época dizimando a população da península À ascensão de Filipe III seguiramse a paz com a Inglaterra 1604 uma nova bancarrota 1607 e depois a relutante assinatura de um armistício com a Holanda 1609 O novo regime era dominado 23 Filipe II limitouse a reduzir os poderes da Diputació local onde a norma da unanimidade foi abolida e do departamento de Justicia bem como a introduzir vice reis nãonaturais em Aragão 24 Lynch Spain under the Habsburgs II pp 123 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 75 pelo aristocrata valenciano Lerma umprivado frívolo e venal que esta belecera ascendência pessoal sobre o rei A paz trouxe consigo um pró digo aparato de corte e a multiplicação das honrarias a influência polí tica abandonou o velho secretariado ao passo que a nobreza caste lhana se congregava outra vez com vistas ao centro do Estado agora suavizado As duas únicas decisões governamentais de Lerma dignas de nota foram o uso sistemático das desvalorizações para desembaraçar as finanças regias inundando o país com o aviltado vellón de cobre e a expulsão em massa dos mariscos da Espanha o que apenas serviu para debilitar a economia rural de Aragão e Valência inflação de preços e escassez de mãodeobra foram o resultado inevitável Entretanto muito mais grave a longo prazo foi a modificação silenciosa que então ocorria no conjunto das relações comerciais entre a Espanha e a Amé rica Desde por volta de 1600 as colônias americanas tornavamse cada vez mais autosuficientes quanto aos bens primários que tradicional mente importavam da Espanha cereais azeite e vinho os tecidos grosseiros começavam também a ser produzidos localmente a constru ção naval desenvolviase com rapidez e o comércio intercolonial pros perava Tais transformações coincidiriam com o crescimento de uma aristocracia crioula nas colônias cuja riqueza derivava mais da agri cultura que da mineração25 As próprias minas estavam sujeitas a uma profunda crise desde a segunda década do século XVII Em parte de vido ao colapso demográfico da força de trabalho índia em razão das devastadoras epidemias e da superexploração dos trabalhadores do subsolo em parte devido à exaustão dos veios a produção de prata co meçou a decair O declínio desde o apogeu do século precedente foi de início gradual Mas a composição e a orientação do comércio entre o Novo e o Velho Mundo alteravase irreversivelmente em detrimento de Castela O padrão das importações coloniais tendia para os bens manu faturados mais sofisticados que a Espanha não poderia fornecer tra zidos como contrabando pelos mercadores ingleses ou holandeses o capital local passa a ser reinvestido no lugar em vez de ser transferido para Sevilha e a navegação nativa americana aumentava a sua parti cipação nos fretes atlânticos O resultado direto foi um calamitoso de créscimo no comércio espanhol com as suas possessões americanas cuja tonelagem total caiu em 60 por cento entre 160610 e 164650 Na época de Lerma as conseqüências últimas de tal processo 25 Lynch Spain underthe Hahsburgs II pp 11 76 PERRY ANDERSON ocultavamse ainda no futuro Mas o declínio relativo da Espanha nos mares e a ascensão das potências protestantes da Inglaterra e da Ho landa às suas custas já eram visíveis A reconquista da República da Holanda e a invasão da Inglaterra fracassaram ambas no século XVI Mas desde aquela data os dois inimigos marítimos da Espanha haviani se tornado mais prósperos e poderosos enquanto a religião reformada continuava a avançar na Europa central Por isso a cessação das hosti lidades por uma década no governo de Lerma serviu meramente para convencer a nova geração de generais e diplomatas imperialistas Zuniga Gondomar Osufla Bedmar Fuentes de que se a guerra era custosa a Espanha não podia custear a paz A ascensão de Filipe IV trazendo o autoritário condeduque de Olivares ao poder máximo em Madri coincidiria com a sublevação nas terras da Boêmia do ramo austríaco da família Habsburgo apresentouse então diante deles a chance de esmagar o protestantismo na Alemanha e acertar contas com a Holanda um objetivo interrelacionado dada a necessidade estratégica de dominar o corredor da Renânia para as movimentações de tropas entre a Itália e Flandres Assim na década de 1620 a guerra européia eclodiu mais uma vez por procuração de Viena mas por ini ciativa de Madri O curso da Guerra dos Trinta Anos reverteu curio samente o padrão das duas grandes lutas travadas pelas armas Habs burgo no século anterior Enquanto Carlos V e Filipe II tinham con quistado vitórias iniciais no sul da Europa e sofreram uma derrota final no norte as forças de Filipe IV obtiveram um êxito precoce no norte apenas para experimentarem desastres definitivos no sul O volume da mobilização espanhola para este terceiro e último engajamento foi for midável em 1625 Filipe IV chamou às suas ordens 300 mil homens2t Os Estados da Boêmia foram esmagados na batalha da Montanha Branca com o auxílio de subsídios e veteranos espanhóis e a causa do protestantismo foi permanentemente batida em terras tchecas Os ho landeses foram forçados ao recuo por Spinola com a captura de Breda O contraataque dos suecos na Alemanha após derrotarem os exércitos austríacos ou da Liga foi neutralizado pelos tercios hispânicos sob o comando do cardealinfante em Nordlingen Mas foram precisamente essas vitórias que afinal forçaram a França a entrar nas hostilidades inclinando decisivamente o equilíbrio militar em prejuízo da Espanha o contraataque de Paris a Nordlingen foi a declaração de guerra de 26 Parker The Army of Flanders andthe Spanish Road p 6 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 77 Richelieu em 1635 Os resultados logo ficariam evidentes Breda foi retomada pelos holandeses em 1637 Um ano depois caía Breisach a chave das estradas para Flandres No espaço de mais um ano o gros so da frota espanhola foi a pique em Downs um golpe muito mais grave para a marinha Habsburgo que o destino sofrido pela Armada Finalmente em 1643 o exército francês pôs fim à supremacia dos ter cios em Rocroi A intervenção militar da França Bourbon revelouse muito diferente das lutas Valois do século anterior agora era a nova natureza e importância do absolutismo francês que abarcava o declínio do poder imperial espanhol na Europa Se no século XVI Carlos V e Filipe II se beneficiaram da fraqueza interna do Estado francês utili zando descontentamentos provinciais para invadir a própria França invertiamse agora os termos um absolutismo francês maduro estava em condições de explorar a sedição aristocrática e o separatismo regio nal na península ibérica para invadir a Espanha Na década de 1520 as tropas espanholas tinham marchado sobre a Provença na de 1590 sobre o Languedoc a Bretanha e a lie de France em aliança ou com o apoio tácito de dissidentes locais Na década de 1640 tropas e navios franceses lutavam conjuntamente com rebeldes antiHabsburgo na Ca talunha em Portugal e em Nápoles o absolutismo espanhol estava em apuros em seu próprio território Efetivamente a longa cadeia de conflitos internacionais no norte manifestouse enfim na própria península ibérica A bancarrota do Es tado foi outra vez declarada em 1627 o vellón foi desvalorizado em 50 por cento em 1628 seguiuse em 162931 uma queda brusca no co mércio transatlântico os galeões de prata deixaram de chegar em 164027 As enormes despesas de guerra conduziram a novos impostos sobre o consumo contribuições cobradas ao clero confiscos dos juros dos títulos públicos apresamento de embarques privados de metais aumento das vendas de honrarias e especialmente de jurisdições senhoriais à nobreza Entretanto todos esses expedientes mostraram se inadequados para levantar as somas necessárias ao prosseguimento da luta pois os seus custos ainda eram suportados quase que exclusi vamente por Castela Portugal não rendia quaisquer rendimentos a Madri já que os subsídios locais estavam destinados aos objetivos de defesa das colônias portuguesas Flandres era cronicamente deficitária Nápoles e a Sícília tinham contribuído com excedentes modestos mas 27 Eliott ImperialSpain p 343 78 PERRY ANDERSON respeitáveis para o tesouro central no século precedente Agora no entanto o custo da cobertura dada a Milão e da manutenção aos pre sídios da Toscana absorviam todos os seus rendimentos apesar dos impostos cada vez mais elevados da venda de cargos e das alienações de terras a Itália continuava a fornecer um material humano inesti mável mas não mais dinheiro para a guerra28 Navarra Aragão e Valência quando muito consentiram em realizar alguns pequenos empréstimos à dinastia em momentos de emergência A Catalunha região mais rica da parte oriental do reino e a mais parcimoniosa de todas as províncias nada pagava não permitindo o dispêndio de im postos ou o emprego de tropas fora de suas fronteiras O preço histórico do fracasso do Estado Habsburgo em harmonizar os seus reinos já era patente no início da Guerra dos Trinta Anos Olivares ciente dos agu dos perigos colocados pela ausência de uma integração central do sis tema político e pela proeminência isolada e arriscada de Castela em seu interior propusera a Filipe IV uma reforma abrangente de todo o sis tema num memorando secreto de 1624 efetivamente uma equali zação simultânea dos encargos fiscais e das responsabilidades políticas entre os diferentes patrimônios dinásticos o que teria possibilitado aos nobres aragoneses catalões e italianos o acesso regular às mais altas posições no serviço real em troca de uma distribuição mais uniforme das responsabilidades fiscais e da aceitação de leis unificadas inspira das nas de Castela29 Este projeto de um absolutismo unitário era de masiado audacioso para que fosse publicamente difundido por temor da reação castelhana e nãocastelhana Mas Olivares também elaborou um segundo projeto mais limitado a União das Armas para a cria ção de um exército de reserva comum de 140 mil homens a ser mantido e recrutado em todas as possessões espanholas para sua defesa co mum Tal esquema oficialmente anunciado em 1626 foi frustrado em todos os sentidos pelo particularismo tradicional A Catalunha 28 Para a crônica financeira das possessões italianas ver A Domínguez Ortiz Política y Hacienda de Felipe IV Madri 1960 pp 1614 De modo geral o papel das componentes italianas do império espanhol na Europa tem sido menos estudado embora seja evidente que é impossível uma abordagem satisfatória do sistema imperial em seu conjunto até que esta lacuna seja sanada 29 A melhor análise deste esquema é oferecida por Elliott The Revolt of the Catalans Cambridge 1963 pp 199204 Domínguez defendeu que Olivares não tinha uma política interna estando exclusivamente preocupado com os negócios externos La Sociedad Espanola en ei SigloXVI l Madri 1963 p 15 Tal ponto de vista é des mentido tanto pelas suas reformas internas iniciais como pela amplitude de suas reco mendações no memorando de 1624 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 79 em particular recusouse a qualquer comprometimento com ele que na prática permaneceu letra morta Mas à medida que o conflito militar se desenrolava e a posição da Espanha ia piorando as pressões para conseguir alguma ajuda ca talã tornavamse cada vez mais desesperadas em Madri Olivares deci diu então forçar a Catalunha à guerra atacando a França através de suas fronteiras meridionais em 1639 o que colocava defacto a provín cia não cooperante na linha de frente das operações espanholas Esta jogada temerária voltouse desastrosamente contra a Espanha30 A sec tária e morosa nobreza catalã faminta de cargos remunerados e ato lada no banditismo das montanhas enfureciase com os comandantes de Castela e com as baixas sofridas diante dos franceses O baixo clero excitava o fervor regionalista O campesinato saqueado pelas ordens de alojamento e pelas requisições levantavase contra as tropas numa ampla insurreição Trabalhadores e desocupados rurais que afluíram às cidades desencadearam violentos tumultos em Barcelona e outras cidades31 A Revolução Catalã de 1640 congregou os agravos de todas as classes sociais com exceção de um punhado de grandes nobres numa explosão irreprimível O poder Habsburgo na província desinte grouse Para afastar os perigos do radicalismo popular e impedir uma reconquista por Castela a nobreza e o patriciado incitaram à ocupação francesa Pelo espaço de uma década a Catalunha tornouse um pro tetorado da França Enquanto isso do outro lado da península Portu gal organizava a sua própria revolta poucos meses após a rebelião ca talã A aristocracia local ressentida com a perda do Brasil para os ho landeses e segura dos sentimentos anticastelhanos das massas não teve dificuldades em reafirmar sua independência uma vez que Olivares cometera o erro crasso de concentrar os exércitos reais contra o leste pesadamente defendido onde saíram vitoriosas as forças francocata lãs em vez de os levar para o oeste comparativamente desmilitari zado32 Em 1643 caía Olivares quatro anos depois por sua vez Ná 30 Olivares estava ciente da magnitude dos riscos que corria Minha cabeça não pode suportar a luz de uma vela ou de uma janela A meu ver isto porá tudo a perder irremediavelmente ou poderá salvar o barco Aí estão religião reino nação tudo e se nossas forças forem insuficientes deixainos morrer com empenho Melhor morrer e mais justo que cair sob o domínio de outros sobretudo de hereges como considero serem os franceses Ou tudo está perdido ou então Castela ficará a testa do mundo como já o está à testa da monarquia de Vossa Majestade Citado em Elliott The Revolt ofthe Catalans p 310 31 Elliott The Revolt ofthe Catalans pp 4608 4736 4867 32 A Domínguez Ortiz The Golden Century of Spain 15561659 Londres 1971 p103 80 PERRY ANDERSON poles e a Sicília livravamse do domínio espanhol O conflito europeu esgotara o tesouro e a economia do império Habsburgo no sul e desin tegrara a sua organização política compósita No cataclismo dos anos 1640 enquanto a Espanha chegava à derrota na Guerra dos Trinta Anos seguida pela bancarrota a pestilência o despovoamento e a in vasão tornavase inevitável que a colcha de retalhos dos patrimônios dinásticos se desfizesse as revoltas separatistas de Portugal da Cata lunha e de Nápoles foram um atestado da fraqueza do absolutismo espanhol Este tinha se expandido demasiado rapidamente cedo de mais graças à sua fortuna ultramarina sem ter jamais consolidado as suas fundações metropolitanas Finalmente a eclosão da Fronda salvou a Catalunha e a Itália para a Espanha Mazarino já por si preocupado com as turbulências internas renunciou à primeira depois que o baronato napolitano re descobriu a lealdade ao seu soberano na última onde os pobres da cidade e do campo tinham irrompido numa ameaçadora revolta social e a intervenção francesa foi abreviada A guerra entretanto arrastou se ainda por mais quinze anos mesmo depois da retomada da última província mediterrânea contra os holandeses os franceses os ingle ses e os portugueses Na década de 1650 houve novas perdas em Flan dres A lenta tentativa de reconquistar Portugal durou mais que todas as outras Nesta altura a classe hidalga castelhana já tinha perdido o gosto pelo campo de batalha reinava entre os hispânicos uma universal desilusão militar As derradeiras campanhas fronteiriças seriam trava das sobretudo com recrutas italianos reforçados por mercenários irlan deses ou alemães33 O seu único resultado foi a ruína da maior parte da Estremadura e a redução das finanças governamentais a um nadir de fútil manipulação e déficit A paz e a independência de Portugal não foram aceitas antes de 1688 Seis anos depois o FrancheComté foi perdido para a França O reinado paralítico de Carlos II presenciou a retomada do poder político central pela classe dos grandes nobres que asseguraram a dominação direta do Estado com oputsch aristocrático de 1677 quando D João José da Áustria seu candidato à regência conduziu vitoriosamente um exército aragonês até Madri E tam bém experimentou a mais negra depressão econômica do século com a paralisação das indústrias o colapso da moeda o retorno à troca di reta a escassez de alimentos e os motins da fome Entre 1600 e 1700 33 Lynch Spain under the Habsburgs II pp 1223 Domínguez Ortiz The Golden Century of Spain pp 3940 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 81 a população total da Espanha caiu de 85 milhões para 7 milhões o maior recuo demográfico do Ocidente Por volta do final do século o Estado Habsburgo estava moribundo em todas as chancelarias estran geiras aguardavase a sua extinção na figura de seu espectral gover nante Carlos II El Hechizado como o sinal de que a Espanha se tor naria o espólio da Europa Com efeito o resultado da Guerra da Sucessão Espanhola reno vou o absolutismo em Madri ao destruir as suas ingovernáveis guardas avançadas A Holanda e a Itália estavam perdidas Aragão e a Catalu nha que cerraram fileiras com o candidato austríaco foram derrota dos e subjugados na guerra civil dentro da guerra internacional Uma nova dinastia francesa foi instalada A monarquia Bourbon levou a cabo o que os Habsburgo não tinham conseguido fazer Os grandes do reino muitos dos quais haviam desertado para o campo angloaustría co durante a Guerra da Sucessão foram submetidos e excluídos do poder central Com a importação da experiência e das técnicas mais avançadas do absolutismo francês os funcionários civis expatriados criaram um Estado unitário e centralizado no século XVIII34 Os sis temas de Estados de Aragão Valência e Catalunha foram eliminados e o seu particularismo suprimido Introduziuse o esquema francês dos intendants reais para o governo uniforme das províncias O exército foi drasticamente remodelado e profissionalizado com uma base semire crutada e um comando rigidamente aristocrático A administração das colônias foi arrochada e reformada livres de suas possessões européias os Bourbons demonstraram que a Espanha poderia gerir o seu império americano de forma competente e lucrativa Na verdade este foi o sé culo no qual uma Espanha coesa por fim gradualmente surgiu em oposição à se m iuniversal monarquia espanola dos Habsburgos35 Todavia a obra da administração carolina que racionalizou o Estado espanhol não podia revitalizar a sociedade espanhola Era O Enfeitiçado N T 34 Ver Henry Kamen The War of Succession in Spain 17001715 Londres 1969 pp 84117 O principal artífice da nova administração foi Bergeyck um flamengo de Bruxelas pp 23740 35 Foi nesta época que uma bandeira e um hino nacionais foram adotados A máxima de Domínguez é característica Menor que o Império maior que Castela a Espanha excelsa criação de nosso século XVIII emergiu da bruma e adquiriu forma sólida e tangível À época da Guerra da Independência a imagem simbólica e plás tica ideal da Nação tal como a conhecemos hoje estava essencialmente completada Antônio Domínguez Ortiz La Sociedad Espanola en ei Siglo XVIII Madri 1955 pp 413 a melhor obra sobre o período 82 PERRY ANDERSON agora demasiado tarde para um desenvolvimento comparável ao da França ou da Inglaterra A outrora dinâmica economia castelhana re cebera o seu golpe final com Filipe IV Embora se verificasse uma re cuperação demográfica real a população elevouse de 7 para 11 mi lhões e uma considerável extensão do cultivo de cereais na Espanha apenas 60 por cento da população estava ainda empregada na agricul tura ao passo que as manufaturas urbanas tinham sido virtualmente amputadas da formação social metropolitana Depois do colapso das minas americanas no século XVII houve um novo surto de prata mexi cana no século XVIII mas na ausência de uma indústria doméstica de dimensões razoáveis este beneficiou provavelmente mais a expansão francesa que a espanhola36 Tal como anteriormente o capital local era desviado para as rendas públicas ou para a terra A administração do Estado não era numericamente muito ampla mas continuava abun dante em empleomania a caça aos cargos pela pequena nobreza empo brecida Os vastos latifúndios tocados pelo trabalho em turmas no sul proporcionavam as fortunas de uma grande nobreza senhorial estag nada estabelecida nas capitais das províncias37 A partir de meados do século ocorreu um refluxo da alta nobreza para os cargos ministeriais enquanto as facções civil e militar lutavam pelo poder em Madri a posse do aristocrata aragones Aranda correspondeu ao ponto mais alto da influência direta dos magnatas na capital38 Entretanto o im pulso político da nova ordem estava se esgotando Por volta do final do século a própria corte Bourbon estava em plena decadência que recor dava a da sua antecessora sob o controle negligente e corrupto de Go doy o último privado As limitações da recuperação do século XVIII cujo epílogo seria o ignominioso colapso da dinastia em 1808 sempre estiveram patentes na estrutura administrativa da Espanha Bourbon Mesmo após as reformas carolinas a autoridade do Estado absolutista detinhase no nível municipal em vastas áreas do país Até a invasão napoleônica mais de metade das cidades na Espanha não se encontra vam sob jurisdição monárquica mas sim senhorial ou clerical O re gime dos senorios uma relíquia medieval que datava do século XII e XIII tinha uma importância mais diretamente econômica que política para os nobres que controlavam tais jurisdições no entanto assegu 36 Vilar OroyMoneda pp 34861 3157 37 Um memorável retrato desta classe pode ser encontrado em Raymond Carr Spain em Goodwin Org The European Nobility in the Eighteenth Century pp 4359 38 Domínguez Ortiz La Sociedad Espanola en ei Siglo XVIII pp 93 178 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 83 ravalhes não apenas lucros como também poder administrativo e ju diciário local39 Essas combinações de soberania e propriedade cons tituíam uma sobrevivência vigorosa dos princípios do senhorio territo rial na época do absolutismo O ancien regime preservou suas raízes feudais na Espanha até o dia de sua morte 39 Domínguez oferece uma ampla pesquisa sobre o modelo dos sctittrit no seu capítulo El Ocaso dei Régimen Senorial La Sociedad Espanola en ei Sifjlo X V I I I pp 30042 onde ele os descreve com a frase citada acima França A França apresenta uma evolução muito diversa do padrão his pânico Aí o absolutismo não dispôs de vantagens iniciais semelhantes às da Espanha na forma de um lucrativo império ultramarino Nem por outro lado defrontouse com os permanentes problemas estrutu rais da fusão de dois reinos distintos no interior de um mesmo país portadores de legados políticos e culturais radicalmente contrastantes A monarquia Capeto como se viu estendera vagamente os seus direi tos de suserania para fora de sua base original na Tle de France num movimento gradual de unificação concêntrica durante a Idade Média até que atingissem de Flandres ao Mediterrâneo Nunca teve que en frentar outro reino territorial de idêntica categoria feudal dentro da França havia apenas uma realeza nas terras gaulesas à parte o pe queno Estado semiibérico de Navarra no remoto sopé dos Pireneus Os mais distantes ducados e condados da França sempre renderam vassalagem nominal à dinastia central mesmo se vassalos inicialmente mais poderosos do que o seu suserano real permitindo uma hierar quia jurídica propícia à posterior integração política As diferenças so ciais e lingüísticas que separavam o sul do norte embora persistentes e acentuadas jamais foram tão amplas como as que distinguiam o leste do oeste na Espanha A língua e o sistema jurídico distintos do Midi não coincidiram para a sorte da monarquia com a principal fissura militar e diplomática que dividiria a França no final da Idade Média a casa de Borgonha o mais importante poder rival alinhado contra a LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 85 dinastia Capeto era um ducado setentrional O particularismo medie val no entanto permaneceu como uma força constante e latente no início da época moderna assumindo formas camufladas e aparências renovadas nas sucessivas crises O controle político efetivo da monar quia francesa nunca foi territorialmente uniforme ele sempre decli nava nas extremidades do país decrescendo progressivamente nas pro víncias de aquisição mais recente a maior distância de Paris Ao mes mo tempo o mero volume demográfico da França colocava formidáveis obstáculos para a unificação administrativa 20 milhões de habitantes faziam dela um país duas vezes mais populoso que a Espanha no século XVI A rigidez e a clareza das Carreiras internas a um absolutismo uni tário na Espanha eram por conseguinte compensadas pela espessa profusão e variedade de vida regional existentes no seio da organização política francesa De tal modo não se registraria um avanço constitu cional linear após a consolidação dos Capeto na França medieval Ao contrário a história da construção do absolutismo francês seria a de um progresso convulsivo em direção ao Estado monárquico centrali zado repetidamente interrompido por recaídas na desintegração e na anarquia provinciais às quais se seguiam uma reação intensificada no sentido da concentração do poder real até que finalmente conseguiu se chegar a uma estrutura extremamente sólida e estável As três gran des rupturas da ordem política foram certamente a Guerra dos Cem Anos no século XV as Guerras Religiosas no século XVI e a Fronda no século XVII A transição da monarquia medieval à absoluta foi de cada vez primeiro detida e depois acelerada por tais crises cujo resul tado último seria a criação de um culto da autoridade real na época de Luís XIV que não encontra paralelo em nenhuma outra parte da Eu ropa ocidental A lenta centralização concêntrica dos reis Capeto discutida an teriormente chegou a um final abrupto com a extinção da linhagem em meados do século XIV o que constituiu o sinal para a eclosão da Guerra dos Cem Anos A explosão de violentos conflitos internos no seio da alta nobreza da França sob o frágil domínio Valois levaria enfim ao ataque angloborgonhês à monarquia francesa do início do século XV que despedaçou a unidade do reino No ponto mais alto das vitórias dos ingleses e borguinhões na década de 1420 o território tra dicional da monarquia no norte da França caiu virtualmente sob con trole estrangeiro enquanto Carlos VII era forçado à fuga e ao exílio no sul A história geral da recuperação posterior da monarquia francesa e da expulsão dos exércitos ingleses é bem conhecida Para os nossas propósitos o legado mais importante da longa ordália que foi a Guer 86 PERRY ANDERSON rã dos Cem Anos seria a sua contribuição final à emancipação fiscal e militar da monarquia em relação aos limites da primitiva organização política medieval A guerra só foi vencida porque foi abandonado o sistema do ban senhorial para a convocação dos cavaleiros que provara ser desastrosamente ineficaz contra os arqueiros ingleses com a criação de um exército remunerado e regular cuja artilharia se revelou a arma decisiva para a vitória Para erigir tal exército a aris tocracia francesa consentiu no primeiro imposto nacional de importân cia a ser cobrado pela monarquia a taille royale de 1439 que se tornaria a taille dês gens darmes regular na década de 1440 A no breza o clero e algumas cidades estavam isentas dela e no curso do sé culo seguinte a definição jurídica de nobreza na França passou a ser a isenção hereditária da taille Assim a monarquia emergiu fortalecida no final do século XV na medida em que podia agora contar com um exército regular embrionário configurado nas compagnies dordon nance chefiadas pela aristocracia e com um tributo direto não sujeito a qualquer controle representativo Por outro lado Carlos VII abstevese de tentar o endurecimento da autoridade dinástica central nas províncias setentrionais da França quando aquelas foram sucessivamente reconquistadas na verdade in centivou as assembléias regionais dos estados e transferiu os poderes financeiros e judiciais para as instituições locais Assim como os gover nantes Capelos tinham combinado a sua extensão do controle monár quico com a concessão de apanágios aos príncipes os primeiros reis Valois associariam a reafirmação da unidade monárquica com a devo lução das províncias a uma aristocracia bem entrincheirada Em am bos os casos a razão era a mesma a evidente dificuldade administra tiva de gerir um país do tamanho da França com os instrumentos de governo com que podia contar a dinastia O aparato repressivo e tribu tário do Estado central era ainda muito limitado as compagnies dor donnance de Carlos VII nunca chegaram a ter mais que 12 mil homens em armas uma força absolutamente insuficiente para controlar e re primir uma população de 15 milhões de pessoas2 Dessa forma a no breza conservou poder local autônomo em virtude de suas próprias es Convocação do vassalo do reí para o serviço militar N T 1 P S Lewis Later Mediaevaí France the Polity Londres 1968 pp 1024 2 Quanto a este ponto ver J Russel Major Representative Institutions in Re naissanceFrance 14211559 Madison 1960 p 9 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 87 padas das quais dependia em última instância a estabilidade do con junto da estrutura social O advento de um modesto exército real serviu para aumentar ainda mais os seus privilégios econômicos com a insti tucionalização da taille assegurando aos nobres uma completa imuni dade fiscal até então inexistente A convocação dos EstadosGerais por Carlos VII uma instituição que estivera em decadência durante séculos na França inspirouse assim precisamente na necessidade de se criar um fórum nacional mínimo no qual o rei pudesse persuadir os vários estados provinciais e cidades a aceitar os tributos ratificar tratados e fornecer conselhos sobre os assuntos externos entretanto as suas ses sões raramente garantiram a satisfação dessas exigências De tal modo a Guerra dos Cem Anos legou à monarquia francesa impostos e tropas permanentes mas pouco fez por uma nova administração civil em es cala nacional A intervenção inglesa foi afastada do solo da França as ambições borgonhesas permaneceram Luís XI que subiu ao trono em 1461 enfrentou tanto a oposição interna como a externa contra o poder Valois com implacável resolução A sua pronta recuperação de apaná gios provinciais como Anjou a acumulação sistemática de governos municipais nas cidades mais importantes a cobrança arbitrária de pe sados impostos e a neutralização das intrigas aristocráticas fizeram crescer de forma significativa o poder e o tesouro reais na França An tes de mais nada Luís XI assegurou todo o flanco oriental da monar quia francesa levando a bom termo a decadência de seu mais perigoso rival e inimigo a dinastia de Borgonha Ao incitar os cantões suíços contra o ducado vizinho financiou a primeira grande derrota européia da cavalaria feudal por um exército de infantaria com o fragoroso re vés de Carlos o Temerário diante dos lanceiros suíços em Nancy em 1477 o Estado borgonhês entrou em colapso e Luís XI anexou a maior parte do ducado Nas duas décadas seguintes Carlos VIII e Luís XII incorporaram a Bretanha o último dos grandes principados indepen dentes através de casamentos sucessivos com sua herdeira O reino da França reunia agora pela primeira vez todas as províncias vassalas da época medieval sob um único soberano A extinção da maioria das grandes casas da Idade Média e a reintegração de seus domínios às terras da monarquia colocou em grande relevo a dominação aparente da dinastia Valois Na realidade contudo a nova monarquia inaugurada por Luís XI estava longe de ser um Estado centralizado ou integrado A França foi redividida em doze governos cuja administração foi confiada a príncipes reais ou nobres proeminentes os quais exerceram legalmente uma ampla gama de direitos soberanos até o final do século e puderam 88 PERRY ANDERSON efetivamente atuar como potentados autônomos até o século seguinte3 Além disso desenvolveuse então também um conjunto faparlaments locais cortes provinciais criadas pela monarquia com suprema autori dade judicial em suas regiões cujo número e importância cresceu rapi damente nesta época entre a ascensão de Carlos VII e a morte de Luís XII foram fundados novos parlements em Toulouse Grenoble Bor deaux Dijon Rouen e Aix Tampouco as liberdades urbanas foram seriamente reduzidas embora a posição da oligarquia patrícia em seu seio tenha sido reforçada às custas das corporações e dos pequenos mestres A razão essencial para estas amplas limitações do Estado cen tral continuava a ser os insuperáveis problemas organizacionais de imposição de um aparelho efetivo de governo monárquico sobre todo o país em meio a uma economia carente de um mercado unificado ou de um sistema de transportes modernos na qual a dissociação das rela ções feudais primárias ao nível da aldeia estava longe de se completar A base social para a centralização política vertical não estava ainda organizada apesar dos avanços notáveis registrados pela monarquia Foi em tal contexto que os EstadosGerais encontraram nova vida após a Guerra dos Cem Anos não em contraposição mas conjuntamente ao reflorescimento da monarquia Na França como em outras partes o impulso inicial para a convocação dos Estados era dado pela necessi dade dinástica de apoio fiscal ou na política externa por parte dos súditos do reino4 Aí no entanto a consolidação dos EstadosGerais como uma instituição nacional permanente foi bloqueada pela mesma diversidade que obrigou a monarquia a aceitar uma ampla delegação de poderes mesmo no momento de sua vitória unitária Não que os três estados estivessem especialmente divididos no aspecto social quando se reuniam a moyenne noblesse dominava os seus trabalhos sem muito esforço Mas as assembléias regionais que elegiam os seus deputados aos EstadosGerais sempre se recusavam a conferirlhes mandato para votar impostos nacionais e uma vez que a nobreza estava isenta do fisco existente havia pouco incentivo para que ela pressionasse pela 3 Major Representative Institutions in Renaissance France p 6 4 Há uma defesa particularmente aguda da tese geral de que os EstadosGerais na França e noutros países quase sempre serviram e não impediram a promoção do poder real na Renascença no excelente estudo de Major Representative Institutions in Renaissance France pp 1620 Na realidade Major talvez force um tanto unilateral mente a argumentação com certeza tornarseia rapidamente menos verdadeiro no decorrer do século XVI se é que o fora antes que os monarcas não temiam as assem bléias dos estados p 16 Mas este é inegavelmente um dos mais iluminados estudos específicos sobre o tema em qualquer língua LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 89 convocação dos EstadosGerais5 A conseqüência foi que os reis fran ceses já que não podiam conseguir as contribuições financeiras alme jadas dos estados da nação cessaram gradualmente de convocálos Foi portanto o entrincheiramento regional do poder senhorial local mais que uma tendência centralista da monarquia que frustrou o sur gimento de um Parlamento nacional na França da Renascença A curto prazo isso iria contribuir para uma quebra completa da autoridade real a longo prazo viria facilitar certamente a tarefa do absolutismo Na primeira metade do século XVI Francisco I e Henrique II presidiram um reino próspero e em crescimento Verificouse uma rá pida diminuição da atividade representativa os EstadosGerais entra ram novamente em decadência depois de 1517 as cidades não foram mais consultadas e a política externa tendia a tornarse mais exclusiva mente uma prerrogativa real Funcionários judiciais os maitres de requêtes estenderam gradualmente os direitos jurídicos da monar quia e os parlements passaram a ser intimidados por sessões especiais na presença do rei ou lits de justice O controle das nomeações na hierarquia eclesiástica foi conquistado pela Concordata de Bolonha assinada com o papa Todavia nem Francisco I nem Henrique II po diam ser vistos como governantes autocráticos ambos se consultavam freqüentemente com as assembléias regionais e mantinham um cuida doso respeito aos privilégios tradicionais da nobreza As imunidades econômicas da Igreja não foram atingidas pela mudança de padroado sobre ela ao contrário do que ocorria na Espanha onde o clero era pesadamente tributado pela monarquia Os éditos reais ainda reque riam em princípio o registro formal pelos parlements para que se tor nassem leis As receitas fiscais duplicaram entre 1517 e a década de 1540 mas o nível dos impostos ao final do reinado de Francisco I não era apreciavelmente superior ao de Luís XI sessenta anos antes em bora os preços e os rendimentos tivessem sofrido grande elevação nesse intervalo6 de tal maneira o rendimento fiscal direto em relação à ri queza nacional efetivamente declinara Por outro lado a emissão de obrigações públicas para rentiers a partir de 1522 ajudou a manter o tesouro real confortavelmente Enquanto isso o prestígio dinástíco in terno era auxiliado pelas constantes guerras externas na Itália para as 5 Ver as opiniões convergentes de Lewis e Major P S Lewis The Failure of the French Mediaeval States Past and Present n 23 novembro de 1962 pp 324 e J Russell Major The EstatesGeneral ofl560 Princeton 1951 pp 75 11920 6 Major Representative Institutions in Renaissance France pp 1267 90 PERRY ANDERSON quais os governantes Valois levavam a sua nobreza estas se tornariam uma sólida válvula de escape para a perene belicosidade da pequena nobreza O longo esforço francês com vistas a conseguir ascendência na Itália iniciado por Carlos VIII em 1494 e concluído pelo Tratado de CateauCambrésis em 1559 resultou em fracasso A monarquia espa nhola política e militarmente mais avançada dispondo do controle estratégico das bases Habsburgo na Europa setentrional e superior no aspecto naval graças a sua aliança com Gênova eliminou facilmente o seu rival francês do controle da península transalpina A vitória nesta luta pertenceu ao Estado cujo processo de absolutização era mais an tigo e mais desenvolvido Em última análise contudo a derrota nesta primeira aventura externa serviu provavelmente para assegurar funda mentos mais firmes e sólidos para o absolutismo francês forçado ao recuo em seu próprio território Do ponto de vista imediato por outro lado o término das guerras italianas combinado às incertezas de uma crise sucessória iria revelar o quanto a monarquia Valois estava inse guramente alicerçada no país A morte de Henrique II precipitou a França em quarenta anos de luta cruenta As guerras civis que grassaram após CateauCambrésis foram evidentemente desencadeadas pelos conflitos religiosos resultantes da Reforma Mas elas forneceram uma espécie de radiografia do orga nismo político da nação no final do século XVI no sentido em que expuseram as múltiplas tensões e contradições da formação social fran cesa na época da Renascença Com efeito a luta entre os huguenotes e a Santa Liga pelo controle da monarquia na prática politicamente vaga após a morte de Henrique II e a regência de Catarina de Médicis serviu como uma arena para a aglutinação de virtualmente todos os tipos de conflitos políticos internos característicos da transição para o absolutismo Do princípio ao fim as Guerras Religiosas foram condu zidas pelas três grandes linhagens rivais de Guise Montmorency e Bourbon cada uma com o controle de um território senhorial vasta clientela influência dentro do aparelho de Estado tropas leais e cone xões internacionais A família Guise era senhora do nordeste da Lo rena à Borgonha a linhagem MontmorencyChâtillon tinha suas bases em terras hereditárias que se estendiam por toda a parte central do país os bastiões Bourbon localizavamse essencialmente no sudoeste A disputa interfeudal entre essas casas da nobreza foi intensificada pelo agravamento da situação dos fidalgos rurais empobrecidos em toda a França os quais estavam antes acostumados às incursões de pilhagem na Itália e agora eram atingidos pela inflação de preços esse estrato social propiciava quadros militares prontos para prolongadas opera LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 91 ções na guerra civil totalmente desvinculados das filiações religiosas que a dividiam Além disso à medida que a luta se desenrolava as próprias cidades separaramse em dois campos muitas das cidades meridionais juntaramse aos huguenotes ao passo que as cidades se tentrionais do interior tornaramse quase sem exceção baluartes da Liga Temse afirmado que orientações comerciais diferentes voltadas para o mercado ultramarino ou o doméstico influenciaram tal divi são7 Parece mais provável contudo que o modelo geográfico geral do huguenotismo refletisse um separatismo regional de antiga tradição no sul que sempre estivera a maior distância da terra natal dos Capelo na lie de France e onde os potentados territoriais locais haviam conser vado por mais tempo a sua independência No início o protestantismo se difundira geralmente da Suíça para a França através dos impor tantes sistemas fluviais do Ródano Loire e Reno8 propiciando uma distribuição regional bastante uniforme da fé reformada Mas uma vez que cessara a tolerância oficial ele reconcentrouse rapidamente no Delphiné Languedoc Guyenne Poitou Saintonge Béarn e Gasconha regiões montanhosas ou litorâneas além do Loire muitas delas ári das e pobres cujas características comuns não eram tanto a vitalidade comercial mas o particularismo senhorial O huguenotismo sempre congregou artesãos e burgueses em suas cidades mas a apropriação do dízimo pelos notáveis calvinistas garantiu que o apelo do novo credo entre os camponeses fosse muito limitado Na realidade a influência social huguenote faziase sentir basicamente na classe proprietária onde podia reclamar talvez metade da nobreza da França na década de 1560 ao passo que nunca superou mais que 10 a 20 por cento do conjunto da população9 No sul a religião abrigouse nos braços da dissidência aristocrática Assim o impacto geral do conflito confessio nal simplesmente rompeu a tênue tessitura da unidade francesa ao longo de sua costura intrinsecamente mais frágil 7 Esta tese é avançada no estimulante ensaio de Brian Pearce The Huguenots and the Holy League Class Politics and Religion in France in the Second Half of the Sixteenth Century inédito que sugere que as cidades do norte estavam conseqüente mente mais interessadas na consolidação da unidade nacional da França No entanto muitos dos principais portos do sul e do oeste também permaneceram católicos Bordéus Nantes e Marselha alinharamse com a Liga Marselha sofreu as conseqüências com as medidas próespanholas que a privaram de seu tradicional comércio levantino G Livet Lês Guerres de Religion Paris 1966 pp 1056 8 Livet Lês Guerres de Religion pp 78 9 J H Elliott Europe Divided 15592598 Londres 1968 p 96 que inclui inter alia uma inteligente narrativa sobre este período da história da França no contexto das lutas políticas internacionais da época 92 PERRY ANDERSON Uma vez posta em marcha porém a luta libertou conflitos so ciais mais profundos que os do secessionismo feudal Perdido o sul para Conde e os exércitos protestantes abateuse sobre a coligação das ci dades católicas do norte uma carga redobrada de impostos reais para a guerra A miséria urbana que resultou desse processo na década de 1580 provocaria uma radicalização da Santa Liga nas cidades à qual se juntou o assassinato de Guise por Henrique III Enquanto os duques do clã Guise Mayenne Aumale Elbeuf Mercoeur separavam a Lorena Bretanha Normandia e Borgonha em nome do catolicismo e os exércitos espanhóis chegavam de Flandres e da Catalunha para au xiliar a Liga explodiam revoluções municipais nas cidades do norte Em Paris o poder foi tomado por um comitê ditatorial de clérigos e bacharéis com o apoio das massas plebéias esfaimadas e de uma fa lange fanática de frades e pregadores10 Orléans Bourges Dijon e Lyon vieram a seguir Quando o protestante Henrique de Navarra se tornou o legitimo sucessor à monarquia a ideologia dessas revoltas urbanas começou a guinar para o republicanismo Ao mesmo tempo a tremenda devastação do campo provocada pelas constantes campanhas militares dessas décadas impeliu o campesinato do centrosul Li mousin Périgord Quercy Poitou e Saintonge a ameaçadores le vantes nãoreligiosos na década de 1590 Foi esta dupla radicalização na cidade e no campo que finalmente reagrupou a classe dominante a nobreza cerrou fileiras tão logo colocouse o perigo de uma sublevação a partir de baixo Henrique IV aceitou taticamente o catolicismo jun touse aos patronos aristocráticos da Liga isolou os Comitês e suprimiu as revoltas camponesas As guerras religiosas terminaram com a reafir mação do Estado monárquico O absolutismo francês tornavase adulto com relativa rapidez embora ainda viesse a ocorrer um contratempo radical antes que ele 10 Para uma sociologia política da liderança municipal da Liga em Paris no auge das Guerras Religiosas ver J H Salmon The Paris Sixteen 15841594 The Social Analysis of a Revolutionary Movement Journal of Modem History 44 n 4 dezembro de 1972 pp 54076 Salmon mostra a importância de que gozavam no Conselho dos Dezesseis os setores médios e baixos da profissão jurídica e enfatiza a manipulação das massas plebéias ao lado de medidas de reparação econômica durante a sua ditadura Há um breve esboço da análise comparativa em H G Koenigsberger The Organiza tion of Revolutionary Parties in France and the Netherlands during the Sixteenth Cen tury Journal of Modem Hisíory 27 dezembro de 1955 pp 33551 Mas há ainda muito a dizer sobre a Liga um dos fenômenos mais complexos e enigmáticos do século o movimento que inventou as barricadas urbanas ainda está à procura de seu historiador marxista LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 93 estivesse definitivamente estabelecido Os grandes artífices de sua ad ministração no século XVII seriam naturalmente Sully Richelieu e Colbert O tamanho e a diversidade do país ainda estavam em grande medida inconquistados quando eles iniciaram a sua obra Continua ram a existir príncipes reais ciumentos do monarca muitas vezes de tentores de governos regionais hereditários Qsparlements provinciais formados por uma combinação de pequena nobreza rural e bacharéis representavam bastiões do particularismo tradicional Crescia em Paris e em outras cidades uma burguesia comercial que controlava o poder municipal As massas francesas tinham sido despertadas pelas guerras civis do século precedente quando ambos os lados em diferentes mo mentos recorreram a elas em busca de apoio e retiveram a lembrança da insurreição popular11 O caráter específico do Estado absolutista francês que emergiu no grand siècle estava destinado a ajustarse e a dirigir tal complexo de forças Henrique IV estabeleceu pela primeira vez o poder e a presença reais em Paris reconstruindo a cidade e trans formandoa na capital permanente do reino A pacificação civil fezse acompanhar da preocupação oficial com a recuperação agrícola e com o incentivo ao comércio externo O prestígio popular da monarquia foi restaurado pelo magnetismo pessoal do próprio fundador da nova di nastia Bourbon O Édito de Nantes e seus artigos complementares con tiveram o problema do protestantismo ao concederlhe autonomia re gional limitada Não houve convocação dos EstadosGerais apesar das promessas nesse sentido feitas durante a guerra civil A paz externa foi mantida e com ela a economia administrativa Sully o chanceler hu guenote duplicou as receitas líquidas do Estado recorrendo basica mente às taxas indiretas ao mesmo tempo que racionalizava a co brança de impostos e cortava despesas A mais importante inovação institucional do reino foi a introdução áapaulette em 1604 a venda de cargos no aparelho de Estado prática comum por mais de um século foi estabilizada pela decisão de Paulet de tornálos hereditários em troca do pagamento de uma pequena porcentagem anual sobre o seu valor de compra uma medida destinada não apenas a aumentar a receita da monarquia como também a preservar a burocracia da in fluência da alta nobreza Sob o regime frugal de Sully a venda de cargos ainda representava apenas 8 por cento das receitas do orça 11 Este ponto é salientado por J H Salmon Venality of Office and Popular Seditionin ITthCentury France Past andPresent julho de 1967 pp413 94 PERRY ANDERSON mento12 Mas a partir da minoridade de Luís XIII essa proporção rapidamente se modificaria O recrudescimento do facciosistno da no breza e da agitação religiosa marcado pela última e inócua reunião dos EstadosGerais 16141615 antes da Revolução Francesa e pela pri meira intervenção agressiva do Parlement de Paris contra o governo monárquico conduziu à breve dominação do duque de Luynes As pensões para subornar capciosos grandes nobres e a retomada da guer ra contra os huguenotes no sul aumentaram consideravelmente as des pesas do Estado Daí em diante a burocracia e o judiciário veriam pulular um volume de transações venais inigualável na Europa A França tornouse a pátria clássica da venda de cargos à medida que um número sempre crescente de sinecuras e prebendas era criado pela monarquia com propósitos financeiros Por volta de 162024 o tráfico destas fornecia cerca de 38 por cento dos rendimentos reais13 Além disso os direitos de cobrança eram agora leiloados entre grandes finan cistas cujos sistemas de coleta podiam sangrar até dois terços das re ceitas fiscais em seu percurso para o Estado O rápido aumento das despesas com as políticas externa e interna na nova conjuntura inter nacional da Guerra dos Trinta Anos além disso era de tal ordem que a monarquia tinha que recorrer constantemente a empréstimos forçados a taxas de juros elevadas junto às sociedades de seus próprios coletores de impostos os quais ao mesmo tempo eram officiers que tinham adquirido postos no setor financeiro do aparelho de Estado14 Este cír culo vicioso de improvisação nas finanças elevava inevitavelmente ao máximo a confusão e a corrupção A multiplicação de cargos venais onde agora se alojava uma nova noblesse de robe impedia qualquer controle dinástico firme sobre as principais agências da justiça e da finança públicas e dispersava o poder burocrático tanto central como localmente Todavia foi nessa mesma época que curiosamente entremeados em tal sistema Richelieu e seus sucessores deram início à construção de uma máquina administrativa racionalizada capaz pela primeira vez de efetivar o controle e a intervenção diretos da monarquia em 12 Mentia Prestwich From Henry III to Louis XIV em H TrevorRoper Org TheAgeofExpansion Londres 1968 p 199 13 Prestwich From Henry III to Louis XIV p 199 14 Uma boa análise deste fenômeno pode ser encontrada em D A Lublins kaya French Absolutism The Crucial Phase 16201629 Cambridge 1968 pp 23443 quanto ao volume da coleta da taitte que era apropriada pelos arrendadores de impostos ver p 308 13 milhões num total de 19 milhões de livres na metade da década de 1620 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 95 toda a França Governando o país defacto a partir de 1624 o cardeal procedeu prontamente à liquidação das fortalezas huguenotes rema nescentes no sudoeste com o cerco e a captura de La Rochelle esma gou sucessivas conspirações aristocráticas com execuções sumárias aboliu as mais altas dignidades militares medievais derrubou castelos da nobreza e proibiu os duelos e suprimiu os estados sempre que a resistência local o permitiu Normandia Acima de tudo Richelieu criou o sistema de intendant Os Intendants de Justice de Police e de Finances eram funcionários despachados para as províncias com amplos poderes inicialmente em missões temporárias ou ad hoc que depois se tornariam comissários permanentes do governo central através da Fran ça Designados diretamente pela monarquia os seus cargos eram revo gáveis e não sujeitos à venda recrutados em geral entre os antigos mai tres de requêtes pertencendo eles próprios à pequena ou à média no breza no século XVII representavam o novo poder do Estado abso lutista nas regiões mais afastadas do reino Extremamente impopulares junto à camada dos officiers cujas prerrogativas locais eles invadiam foram usados com cautela no início e conviveram com os tradicionais governos de províncias Contudo Richelieu rompeu o caráter quase hereditário desses senhorios regionais há longo tempo presa caracte rística dos mais altos magnatas da aristocracia de forma que no final de seu governo apenas um quarto deles ainda permanecia em mãos de homens que ali estavam antes de sua chegada ao poder Ocorreu assim uma evolução simultânea e contraditória dos gruposde officiers e de commissaires no seio da estrutura global do Estado durante esse período Enquanto o papel dos intendants tornavase progressivamente mais proeminente e autoritário a magistratura dos vários parlements do país campeões do legalismo e do particularismo constituíase no portavoz mais sonoro da resistência dos officiers àqueles confinando intermitentemente as iniciativas do governo real A forma composta da monarquia francesa viria assim a adquirir tanto na teoria como na prática uma extrema e pomposa complexi dade Kossmann descreveulhe os contornos através da consciência das classes proprietárias da época numa passagem notável Os contempo râneos sentiam que o absolutismo de modo algum excluía aquela tensão que lhes parecia inerente ao Estado e não modificava sequer uma das suas idéias de governo Para eles o Estado se comparava a uma igreja barroca na qual um grande número de concepções diferentes se mis turam entrechocamse e são finalmente absorvidas num único e mag nífico sistema Os arquitetos tinham descoberto recentemente a forma oval e o espaço ganhou vida nos engenhosos arranjos que dela fizeram 96 PERRY ANDERSON por toda a parte o esplendor das figuras ovais cintilando em cada ângulo projetava sobre toda a construção uma energia e influência flexíveis ritmos incertos acalentados pelo novo estilo15 Tais princí pios estéticos do absolutismo francês contudo correspondiam a propósitos funcionais A relação entre os impostos e as obrigações na época tradicional como se viu tem sido considerada como uma tensão entre a renda feudal centralizada e local Esta duplicação eco nômica foi em certo sentido reproduzida nas estruturas políticas do absolutismo francês Com efeito seria precisamente a complexidade da arquitetura do Estado que permitiria uma lenta embora inexorável unificação da própria classe nobre que adaptouse gradualmente a um novo molde centralizado sujeito ao controle público dos intendants enquanto ainda ocupava posições de apropriação privada dentro do sistema de officiers e a autoridade local nos parlements provinciais Além disso simultaneamente conseguiu a proeza de integrar a nas cente burguesia francesa no circuito do Estado feudal Nesse sentido a compra de cargos representava um investimento tão lucrativo que o capital era perpetuamente atraído das aventuras mercantis e manufa tureiras para um conluio de usura com o Estado absolutista Sinecuras e gratificações cobranças e empréstimos honrarias e obrigações pú blicas tudo isso afastava da produção a riqueza da burguesia A aqui sição de títulos de nobreza e de imunidade fiscal tornouse uma meta empresarial normal para roturiers A conseqüência social desse fato foi a criação de uma burguesia que tendia a tornarse cada vez mais assimilada à própria aristocracia via isenções e privilégios dos cargos O Estado por sua vez patrocinou manufaturas regias e companhias oficiais de comércio que de Sully a Colbert proporcionavam alterna tivas de negócios para essa classe16 O resultado foi desviar a evolu ção política da burguesia francesa por 150 anos O peso de todo esse aparato recaía sobre os pobres O Estado feudal reorganizado passou a fustigar sem piedade as massas rurais e urbanas No caso francês é possível ver com aguda clareza até que 15 Ou para mudar a metáfora se a autoridade real era um sol que brilhava havia um outro poder que refletia concentrava e temperava sua luz uma sombra que escondia esta fonte de energia sobre a qual nenhum olho humano poderia pousar sem ficar cego Referimonos aos Parlements principalmente ao Puriement de Paris Ernst Kossmann La Fronde Leyden 1954 p 23 Denominação dada aos que não eram nobres na sociedade feudal e no antigo regime N T 16 B F Porshnev Lês Soulèvements Populaires en France de 1623 à 1648 pp 54760 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 97 ponto a comutação local das obrigações e a expansão de uma agricul tura monetarizada foram compensados pela extração centralizada de excedentes aos camponeses Em 1610 os agentes fiscais do Estado co letaram 17 milhões de libras com a taille Por volta de 1644 a cobrança desse imposto tinha triplicado para 44 milhões de libras O total dos impostos coletados quadruplicou efetivamente na década que se se guiu a 163017 A razão deste crescimento súbito e enorme dos encargos fiscais foi sem dúvida a intervenção militar e diplomática de Richelieu na Guerra dos Trinta Anos Inicialmente mediada por subvenções à Suécia e depois pela contratação de mercenários alemães esta culmi nou com grandes exércitos franceses no campo de batalha O efeito internacional foi decisivo A França traçou o destino da Alemanha e destruiu a supremacia da Espanha O Tratado de Vestfália quatro anos depois da histórica vitória francesa em Rocroi estendeu as fron teiras da monarquia francesa do rio Mosa ao Reno As novas estruturas do absolutismo francês foram assim batizadas no fogo da guerra euro péia Com efeito o êxito francês na luta contra a Espanha coincidiu com a consolidação interna do complexo burocrático dual que comple tou o Estado Bourbon As emergências militares do conflito facilitaram a imposição da intendência nas zonas invadidas ou ameaçadas o seu gigantesco custo financeiro exigiu vendas de cargos sem precedentes e ao mesmo tempo rendeu fortunas espetaculares às associações de ban queiros Os custos reais da guerra foram sofridos pelos pobres em cujo meio esta provocou a devastação social As pressões fiscais do absolu tismo do tempo da guerra geraram vagas constantes de desesperadas revoltas das massas rurais e urbanas por décadas e décadas Houve motins urbanos em Dijon Aix e Poitiers em 1630 jacqueries na zona rural de Angoumois Saintonge Poitou Périgord e Guyenne em 1636 37 e uma grande rebelião plebéia e camponesa na Normandia em 1639 Os levantes regionais mais importantes alternavamse com cons tantes irrupções menores de rebeldia contra os coletores de impostos em amplas áreas da França muitas vezes patrocinadas pela pequena nobreza local As tropas reais eram regularmente deslocadas para a repressão interna enquanto o conflito internacional continuava no exterior Sob certos aspectos a Fronda pode ser considerada como uma alta crista da onda prolongada de revoltas populares18 na qual por 17 Prestwich From Henry III to Louis XIV p 203 Mousnier Peasant Upri sings Londres 1971 p 307 18 Esta é a opinião de Porshnev em Lês Soulèvements Populaires en France 98 PERRY ANDERSON um breve espaço de tempo setores da alta nobreza da magistratura detentora de cargos e da burguesia municipal lançaram mão do des contentamento das massas para seus próprios fins contra o Estado absolutista Mazarino que sucedeu Richelieu em 1642 conduziu com habilidade a política externa da França até o final da Guerra dos Trinta Anos e a aquisição da Alsácia No entanto após a Paz de Vestfália Mazarino provocou a crise da Fronda ao estender a guerra antiespa nhola até o teatro do Mediterrâneo onde como italiano aspirava à separação de Nápoles e da Catalunha A extorsão fiscal e a manipula ção financeira destinadas a sustentar o esforço de guerra no estran geiro coincidiram com sucessivas más colheitas em 16471649 e 1651 A fome e a fúria popular combinaramse com uma revolta dos officiers liderados pelo Parlement de Paris contra o sistema de intendants que foi apressada pela exasperação com a guerra com o descontentamento dos rentiers diante da desvalorização de emergência das obrigações pú blicas e com o ciúme de poderosos pares do reino perante um aven tureiro italiano que manipulava uma minoria vinculada ao rei O des fecho seria um entrevero confuso e penoso no qual uma vez mais o campo pareceu desintegrarse à medida que as províncias se desliga vam de Paris os exércitos privados perambulavam saqueando pelo país as cidades estabeleciam ditaduras municipais rebeldes e comple xas intrigas e manobras dividiam e reuniam os príncipes rivais que competiam pelo controle da corte Os governadores provinciais procu ravam acertar suas contas com os parlements locais enquanto as auto ridades municipais aproveitavam a oportunidade para atacar os magis trados regionais19 Assim a Fronda reproduzia muitos elementos do padrão que caracterizara as Guerras Religiosas Desta vez a insurrei ção urbana mais radical coincidiria com uma das regiões rurais tradi cionalmente mais insatisfeitas a Ormée de Bordeaux e o extremo su doeste foram os últimos centros de resistência aos exércitos de Maza rino Mas a tomada do poder pelo povo em Bordeaux e Paris ocorreria demasiado tarde para que pudesse afetar o resultado dos conflitos en trecruzados da Fronda o huguenote mantevese em geral cuidadosa dosamente neutro no sul e a Ormée não produziu nenhum programa político coerente que superasse a hostilidade instintiva da burguesia bordalesa local20 Em 1653 Mazarino e Turenne tinham eliminado os últimos redutos da revolta O progresso da centralização administra 19 Quanto a este aspecto ver Kossman La Fronde pp 11738 20 Kossmarin La Fronde pp 20 24 2502 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 99 tiva e da reorganização de classe concluído no seio das estruturas mis tas da monarquia francesa no século XVII revelara a sua eficácia Embora a pressão social vinda de baixo fosse provavelmente mais ur gente a Fronda fora na realidade menos perigosa para o Estado mo nárquico do que as Guerras Religiosas porque as classes proprietárias estavam agora mais unidas Apesar de todas as contradições existentes entre os sistemas dos officiers e dos intendants ambos os grupos eram predominantemente recrutados entre a noblesse de robe ao passo que os banqueiros e os coletores de impostos contra os quais protestavam os parlements mantinham efetivamente estreitas relações pessoais com eles O processo de tempera possibilitado pela coexistência dos dois sistemas no seio de um único Estado acabou assim por assegurar uma solidariedade mais imediata contra as massas A própria profundidade da inquietação popular revelada pela Fronda abreviou o último rompi mento emocional da aristocracia dissidente com a monarquia embora viessem a ocorrer novos levantes camponeses no século XVII a con fluência da rebelião do topo e da base nunca mais voltaria a se dar A Fronda custou a Mazarino as suas projetadas conquistas no Mediter râneo Mas quando a guerra com a Espanha terminou com o Tratado dos Pireneus o Roussillon e o Artois tinham sido anexados à França e uma seleta elite burocrática estava treinada e pronta para impor a or dem administrativa no reinado seguinte A aristocracia a partir de então iria encontrar sossego sob o absolutismo consumado e solar de Luís XIV O novo soberano assumiu pessoalmente o comando de todo o aparelho do Estado em 1661 Uma vez reunidas num único governante a autoridade real e a capacidade executiva todo o potencial político do absolutismo francês realizouse rapidamente Os Parlements foram si lenciados e a sua exigência de apresentar objeções aos éditos reais antes do registro foi anulada 1673 As outras cortes soberanas foram redu zidas à obediência Os estados provinciais não mais podiam discutir e regatear os impostos a monarquia impôs exigências fiscais precisas que eles se viram compelidos a aceitar A autonomia municipal das bonnes villes foi restringida enquanto as prefeituras eram subordina das e instalavamse nelas guarnições militares Os cargos de gover nador passaram a ser concedidos por apenas três anos e os seus deten tores foram com freqüência obrigados a residir na corte o que os tornava meramente honoríficos O comando das cidades fortificadas nas regiões fronteiriças foi submetido ao sistema de rodízio Assim que o complexo palaciano foi terminado a alta nobreza foi obrigada a re sidir em Versalhes 1682 e viuse divorciada do senhorio efetivo sobre 100 PERRY ANDERSON os seus domínios territoriais Tais medidas contra o particularismo re fratário das instituições e dos grupos tradicionais provocaram eviden temente ressentimentos tanto entre os príncipes e os pares do reino como entre a pequena nobreza da província Mas não alteraram o vín culo objetivo entre a aristocracia e o Estado a partir daí mais eficaz do que nunca na proteção dos interesses básicos da classe nobiliária O grau de exploração econômica garantido pelo absolutismo francês pode ser avaliado com base em um cálculo recente segundo o qual durante todo o século XVII a nobreza 2 por cento da população apro priavase de 20 a 30 por cento do rendimento total da nação21 O meca nismo central do poder monárquico estava agora portanto concen trado racionalizado e ampliado sem maior resistência da aristocracia Luís XIV herdou os seus ministroschave de Mazarino Lê Tel lier encarregado dos assuntos militares Colbert que chegou a reunir a gestão das finanças reais dos assuntos internos e da marinha Lionne que dirigiu a política exterior e Séguier que como chanceler cuidava da segurança interna Esses competentes e disciplinados administra dores constituíam a cúpula da ordem burocrática agora à disposição da monarquia O rei presidia pessoalmente as deliberações do pequeno Conseil den Haut que compreendia os seus auxiliares políticos de maior confiança e excluía os príncipes e os grandes do reino Tal con selho viria atornarse o corpo exclusivo supremo do Estado enquanto o Conseil dês Dépêches tratava das questões provinciais e nacionais e o recémcriado Conseil dês Finances supervisionava a organização eco nômica da monarquia A eficácia administrativa desse sistema relati vamente rígido mantido coeso pela incansável atividade do próprio Luís XIV era muito maior que a da incômoda parafernália conciliar do absolutismo Habsburgo na Espanha com sua disposição semiterrito rial e as suas intermináveis ruminações coletivas Abaixo dele a rede dê intendants cobria toda a França a última província a receber um comissário em 1689 foi a Bretanha22 O país foi dividido em 32géné ralités em cada uma das quais o intendant real tinha agora autoridade suprema assistido por subdélégués e investido com novos poderes so bre a coleta e a supervisão da taille atribuições vitais transferidas dos antigos officiers tesoureiros que antes as controlavam O total dos funcionários do setor civil do aparelho político central do absolu 21 Pierre Goubert Lês Problèmes de Ia Noblesse au XVIIe Siècle XUIth International Congress of HistoricalSciences Moscou 1970 p 5 22 Pierre Goubert Louis XIVet Vingt Millions de Français pp 164 166 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 101 tismo francês no reinado de Luís XIV era ainda muito modesto talvez mil funcionários responsáveis ao todo contandose a corte e as pro víncias23 Mas eles eram amparados por uma máquina repressiva maci çamente aumentada Uma força permanente de polícia foi criada em Paris 1667 para manter a ordem e reprimir os motins estendendose depois por toda a França 169899 O volume do exército aumentou enormemente durante o reinado subindo de 30 a 50 mil homens para os 300 mil do final do período24 Lê Tellier e Louvois introduziram o soldo regular o treinamento e os uniformes o armamento e as forti ficações militares foram modernizados por Vauban O crescimento desse aparato militar significava o desarmamento final da nobreza das províncias e a capacidade de esmagar rebeliões populares com presteza e eficácia25 Os mercenários suíços que proveram o absolutismo Bour bon de suas tropas de repressão interna ajudaram a dar cabo dos cam poneses boulonnais e camisards os novos dragões operaram a evacua ção dos huguenotes da França O incenso ideológico que cercava a mo narquia generosamente dispensado pelos escritores e clérigos a soldo do regime encobria a repressão armada sobre a qual este se assentava mas não podia ocultála O absolutismo francês consumou a sua apoteose institucional nas últimas décadas do século XVII A estrutura do Estado e a correspon dente cultura dominante aperfeiçoadas no reinado de Luís XIV viriam a tornarse o modelo para o restante da nobreza européia a Espanha Portugal o Piemonte e a Prússia foram apenas os exemplos posterio res mais diretos de sua influência Mas o rayonnement político de Ver salhes não constituía um fim em si as realizações organizacionais do absolutismo Bourbon estavam destinadas na concepção de Luís XIV a servir a um propósito específico o objetivo supremo da expansão militar A primeira década do reino de 1661 a 1672 foi essencialmente dedicada à preparação interna das futuras aventuras externas Nos as pectos administrativo econômico e cultural estes seriam os anos mais fulgurantes do governo de Luís XIV quase todas as suas realizações mais duradouras dataram dessa fase Sob a hábil superintendência do jovem Colbert a pressão fiscal foi estabilizada e incentivouse o comér 23 Goubert Louis XIV et Vingt Millions deFrançais p 72 24 J Stoye Europe Unfolding 16481688 Londres 1969 p 223 Goubert Louis XIVet Vingt Millions de Français p 186 25 Roland Mousnier Peasant Uprisings Londres 1971 p 115 enfatiza com justeza este ponto e comenta que as rebeliões de 1675 na Bretanha e em Bordéus cons tituíram os últimos levantes sociais importantes do século 102 PERRY ANDERSON cio As despesas do Estado foram cortadas pela supressão maciça dos novos cargos criados a partir de 1630 as espoliações dos arrendadores de impostos foram drasticamente reduzidas ainda que a própria coleta não tenha sido reassumida pelo Estado os domínios territoriais da mo narquia foram sistematicamente recuperados A taille personelle foi rebaixada de 42 para 34 milhões de libras enquanto isso a taille réette subia cerca de 50 por cento nospays détats onde era mais leve a tri butação a receita dos impostos indiretos cresceu cerca de 60 por cento com o controle vigilante sobre o sistema de arrecadação Os rendimen tos líquidos da monarquia dobraram entre 1661 e 1671 e passouse a conseguir um excedente orçamentário regular26 Entretanto lançava se um ambicioso programa mercantilista para acelerar o crescimento manufatureiro e comercial na França e a expansão colonial ultrama rina as subvenções reais fundaram novas indústrias tecidos vidro tapeçaria ferragens criaramse companhias privilegiadas para explo rar o comércio das índias Orientais e Ocidentais os estaleiros foram amplamente subsidiados e finalmente impôsse um sistema tarifário extremamente protecionista Foi precisamente tal mercantilismo con tudo que levou diretamente à decisão de invadir a Holanda em 1672 com o intuito de suprimir a concorrência de seu comércio que pro vara ser facilmente superior ao comércio francês através da incor poração das Províncias Unidas aos domínios da França A guerra com a Holanda foi inicialmente bemsucedida as tropas francesas cruza ram o Reno estabeleceramse a uma distância surpreendente de Ams terdam e tomaram Utrecht Entretanto formouse rapidamente uma coligação internacional em defesa do status quo principalmente a Espanha e a Áustria enquanto isso a dinastia de Orange recuperava o poder na Holanda forjando uma aliança matrimonial com a Ingla terra Sete anos de luta culminaram com a França em posse do Fran cheComté e uma fronteira ampliada no Artois e em Flandres mas com as Províncias Unidas intatas e a tarifa antiholandesa de 1677 revo gada um balanço modesto no exterior No plano interno a compressão fiscal de Colbert caminhava para o naufrágio a venda de cargos mul tiplicavase mais uma vez os antigos impostos eram aumentados in ventavamse novos os empréstimos sofriam flutuações e os subsídios eram queimados Daí em diante a guerra dominaria praticamente todos os aspectos do reino7 A miséria e a fome causadas pelas exações 26 Goubert Louis XIVet Vingt Mittions de Français pp 902 27 Mesmo num certo sentido os seus ideais culturais A simetria e a ordem recémadquiridas da praça de armas constituíam para Luís XIV e seus contemporâneos LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 103 do Estado e por uma série de más colheitas levaram a renovados le vantes do campesinato na Guyenne e na Bretanha em 167475 e à su pressão armada sumária dos mesmos desta vez nenhum senhor ou cavaleiro tentou usálos para seus próprios fins A nobreza aliviada dos encargos financeiros que Richelieu e Mazarino tinham tentado lhe impor manteve a sua lealdade durante todo o tempo28 Entretanto a restauração da paz por dez anos na década de 1680 apenas acentuou a arrogância do absolutismo Bourbon O rei estava agora enclausurado em Versalhes a qualidade do ministério de clinava à medida que a geração escolhida por Mazarino dava lugar a sucessores mais ou menos medíocres que por cooptação hereditária provinham do mesmo grupo de famílias interrelacionadas da noblesse de robe canhestras atitudes antipapais vieram juntarse à insensata expulsão de protestantes para fora do reino lançouse mão de gritantes artimanhas legais para uma série de pequenas anexações no nordeste Internamente prosseguia a depressão agrária embora o comércio ma rítimo se recuperasse e sofresse um novo boom para a apreensão dos mercadores ingleses e holandeses A derrota do candidato francês ao Eleitorado de Colônia e a elevação de Guilherme III à monarquia in glesa seriam os sinais para a retomada do conflito internacional A Guerra da Liga de Augsburgo 168997 alinhou virtualmente toda a Europa central e ocidental contra a França Holanda Inglaterra Áustria Espanha Sabóia e a maior parte da Alemanha Os exércitos franceses foram mais que duplicados em potência alcançando cerca de 220 mil homens na década da intervenção O máximo que puderam fazer foi levar a coligação a um custoso empate os esforços de guerra de Luís XIV frustraramse por toda a parte O único ganho registrado pela França no Tratado de Ryswick foi a aceitação européia da absor ção de Estrasburgo garantida antes da eclosão da luta todos os de mais territórios ocupados tiveram que ser evacuados enquanto a ar mada francesa era afastada dos mares Para financiar o esforço de o modelo ao qual a vida e a arte deviam igualmente conformarse e o pás cadencé de Martinet cujo nome é por si só um programa ecoava outra vez na monotonia majestática de intermináveis alexandrinos Michael Roberts The Military Revolution 15601660 Essays in Swedish History Londres 1967 p 206 28 Os cardeais tentaram submeter a aristocracia a impostos disfarçados sob a forma de comutações do ban militar devido nos feudos Tais medidas provocaram grande descontentamento entre a pequena nobreza e foram abandonadas por Luís XIV Ver Pierre Deyon A Propôs dês Rapports Entre Ia Noblesse Française et Ia Monarchie Absolue Pendant Ia Première Moitié du XVIIe Siècle Revue Hisiarique CCXXXf 1964 pp 3556 UFMS 104 PERRY ANDERSON guerra criouse uma cascata de novos cargos à venda leiloaramse tí tulos multiplicaramse os empréstimos forçados e as rendas públicas manipularamse os valores monetários e pela primeira vez foi lançado um imposto de capitação ao qual nem a própria nobreza escapouK A inflação a fome e o despovoamento fustigavam os campos Contudo no espaço de cinco anos a França foi de novo mergulhada no conflito europeu pela sucessão espanhola Mais uma vez a inépcia diplomática e as rudes provocações de Luís XIV maximizaram a coligação contra a França no conflito militar decisivo que agora se travava o vantajoso testamento de Carlos II fora menosprezado pelo herdeiro francês Flan dres ocupada pelas tropas da França a Espanha dirigida por emissá rios franceses os contratos de comércio de escravos com as suas colô nias americanas foram incorporados pelos mercadores franceses e o pretendente Stuart exilado ostensivamente saudado como monarca da Inglaterra A determinação Bourbon de monopolizar a totalidade do império hispânico recusando qualquer partilha ou diminuição da vasta presa espanhola uniria inevitavelmente a Áustria Inglaterra Holanda e a maior parte da Alemanha contra ela Por tudo querer o absolu tismo francês acabou por não conseguir virtualmente nada de seu su premo esforço de expansão política Os exércitos Bourbon agora com a potência de 300 mil homens equipados com rifles e baionetas foram dizimados em Bleinheim Ramillies Turim Oudernade Mal plaquet A própria França foi golpeada pela invasão enquanto no plano interno os impostos entravam em colapso a moeda sofria desva lorização eclodiam na capital os tumultos do pão e a fome e o frio entorpeciam a zona rural No entanto à parte o levante huguenote local em Cévennes o campesinato permaneceu tranqüilo Acima dele a classe dominante cerrava compactas fileiras em torno da monarquia mesmo em meio à sua autocrática disciplina e aos desastres estrangei ros que abalavam a sociedade inteira A tranqüilidade apenas chegou com a derrota definitiva na guer ra A paz foi mitigada pelas divisões no seio da coligação vitoriosa con tra Luís XIV o que permitiu ao ramo jovem da dinastia Bourbon con servar a monarquia na Espanha sob o preço de uma separação política da França Sob outros aspectos a desastrosa ordália não rendera ne nhum benefício ao absolutismo gaulês Limitarase a estabelecer a Áus tria nos Países Baixos e na Itália e a fazer da Inglaterra senhora do comércio colonial na América espanhola Na verdade o paradoxo do 29 Goubert LouisXIVet Vingt Millions deFrançais pp 15862 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 105 absolutismo francês consistiu em que o ápice de seu florescimento in terno não coincidiu com o ápice de sua supremacia internacional ao contrário foi a estrutura política ainda defeituosa e incompleta de RÍ chelieu e Mazarino marcada por anomalias institucionais e dilacerada por sublevações internas que consumou espetaculares êxitos externos ao passo que a monarquia consolidada e estável de Luís XIV com sua autoridade e sua força militar enormemente aumentadas fra cassou solenemente em imporse à Europa ou realizar conquistas terri toriais notáveis A construção institucional e a expansão internacional estiveram defasadas e invertidas no caso francês A razão disso certa mente reside na aceleração de um tempo distinto daquele do conjunto do absolutismo nos países marítimos Holanda e Inglaterra O abso lutismo espanhol deteve a dominação européia durante cem anos posta em xeque inicialmente pela Revolução Holandesa a sua supremacia seria enfim destruída pelo absolutismo francês em meados do século XVII com a ajuda da Holanda Contudo o absolutismo francês não gozou de um período comparável de hegemonia na Europa ocidental No espaço de vinte anos após o Tratado dos Pireneus a sua expansão já tinha sido contida A derrota final de Luís XIV não se deveu a seus numerosos erros estratégicos mas à alteração da posição relativa da França no seio do sistema político europeu que resultará do advento das revoluções inglesas de 1640 e 168830 Foi a ascensão econômica do capitalismo inglês e a consolidação política de seu Estado no final do século XVII que surpreenderam o absolutismo francês mesmo na época de sua própria ascensão Os verdadeiros vencedores da Guerra da Sucessão Espanhola foram os comerciantes e os banqueiros de Lon dres esta anunciou um imperialismo britânico de escala mundial O Estado feudal espanhol da última fase fora derrubado pelo seu equiva lente e rival francês com o auxílio do jovem Estado burguês da Ho landa O Estado feudal francês da última fase foi barrado em seu curso por dois Estados capitalistas de poder desigual Inglaterra e Holanda assistidos por seu parceiro austríaco O absolutismo Bourbon foi intrinsecamente mais forte e unificado do que o fora o absolutismo 30 Como é evidente Luís XIV mostrouse incapaz de avaliar esta mudança donde os seus constantes disparates diplomáticos A fraqueza temporária da Inglaterra na década de 1660 quando Carlos II era hóspede da França levouo constantemente a subestimar a ilha mesmo quando a sua importância política central na Europa ocidental era já óbvia Assim a falha cometida por Luís XIV por não oferecer nenhum tipo de auxílio preemptivo a Jaime II em 1688 antes do desembarque de Guilherme III viria a ser um dos erros mais fatais de uma carreira bem suprida deles 106 PERRY ANDERSON espanhol mas as forças contra ele dispostas foram também mais pode rosas Os diligentes preparativos internos do reinado de Luís XIV com vistas à dominação externa revelaramse inúteis Aparentemente tão próxima na Europa da década de 1660 a hora da supremacia de Ver salhes nunca chegou a soar Em 1715 o advento da Regência anunciou a reação social a esse fracasso Liberando subitamente os seus ressentimentos contra a auto cracia real até então contidos a alta nobreza preparou uma reaparição imediata O regente assegurou a concordância do Parlement de Paris para pôr de lado o testamento de Luís XIV em troca da restauração de seu direito tradicional de reclamação o governo passou às mãos dos pares que prontamente puseram fim ao sistema ministerial do rei fale cido assumindo eles próprios o poder direto no chamado polysyno die Assim tanto unoblesse dépée como a noblesse de robe foram ins titucionalmente reintegradas pela Regência A nova época viria efeti vamente acentuar o aberto caráter de classe do absolutismo o século XVIII presenciaria à regressão da influência nãonobre no aparelho de Estado e a dominação coletiva de uma alta aristocracia cada vez mais unificada O controle dos magnatas sobre a própria Regência não du raria muito sob Fleury e depois sob os dois frágeis monarcas que o sucederam o sistema decisório na cúpula do Estado reverteu ao antigo modelo ministerial agora não mais dirigido por um monarca impera tivo Mas a partir daí a nobreza manterseia firmemente aferrada aos mais altos cargos do governo de 1714 a 1789 apenas três ministros não eram aristocratas com título31 Da mesma forma a magistratura ofi cial áosparlements formaria agora um restrito estrato nobiliário tanto em Paris como nas províncias do qual estavam excluídos os plebeus Os intendants reais outrora o flagelo dos proprietários rurais das pro víncias transformaramse por seu turno numa casta quase hereditá ria durante o reinado de Luís XVI catorze deles eram filhos de antigos intendants2 Na Igreja todos os bispos e arcebispos eram de origem nobre na segunda metade do século e a maior parte das abadias prio ratos e canonicatos estavam sob controle da mesma classe No exército os mais altos comandos militares estavam solidamente ocupados pelos grandes nobres a compra de companhias por roturiers foi abolida na 31 Albert Goodwin The Social Structure and Economic and Polítical Alti tudes of the French Nobility in the 18th Century Xllth International Congress of His toricalSciences Rapports I p 361 32 J McManners France em Goodwin Org TheEuropean Nobility in the 18th Century pp 335 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 107 década de 1760 quando se tornou necessário dispor de inquestionável origem nobre para qualificarse ao grau de oficial A classe aristocrá tica em seu conjunto conservou um rigoroso estatuto da última fase feudal constituía uma ordem juridicamente definida com cerca de 250 mil pessoas isenta do grosso dos impostos e com o monopólio dos mais elevados escalões da burocracia do judiciário do clero e do exército As suas subdivisões eram agora meticulosamente definidas do ponto de vista teórico e entre os altos pares e os mais inferiores hobereaux rurais existia um grande abismo Mas na prática lubrificantes como o dinheiro e o casamento fizeram das suas mais altas instâncias em mui tos aspectos um grupo distinto mais flexível que nunca A nobreza da França na época do iluminismo possuía uma completa segurança de seu domínio no interior das estruturas do Estado absolutista Todavia subsistia entre ambos um sentimento irredutível de desconforto e atrito mesmo neste último período de união ótima entre aristocracia e monar quia Pois o absolutismo independentemente da congenialidade de seus servidores ou dos atrativos de seu serviço continuava a ser um poder inacessível e irresponsável exercido por sobre a cabeça da no breza em seu conjunto A condição de sua eficácia enquanto Estado estava na sua distância estrutural em relação à classe na qual se recru tara e cujos interesses defendia O absolutismo na França nunca alcan çaria confiança e aceitação inquestionáveis por parte da aristocracia em que se baseava as suas decisões não podiam ser atribuídas à ordem titular que lhe deu vida e tal característica era necessária como veremos em razão da natureza inerente da própria classe e também arriscada devido ao perigo de ações impensadas ou arbitrárias do Exe cutivo que teriam repercussões sobre ela A plenitude do poder real mesmo quando exercido com brandura alimentava reservas dos se nhores diante dele Montesquieu presidente do Parlement de Bor déus no complacente regime de Fleury deu expressão incontestável ao novo tipo de oposicionismo aristocrático característico do século Na verdade a monarquia Bourbon do século XVII efetuou bem poucos movimentos de tipo nivelador contra os poderes interme diários que Montesquieu e seus consortes tanto elogiavam Na França o ancien regime preservou a sua selva desconcertante de jurisdições divisões e instituições heteróclitas pays détatspays dêléctions par lements sénésckaussés généralités até a revolução Após Luís XIV Nome dado na França à pequena nobreza que tiranizava os seus campo neses N T 108 PERRY ANDERSON quase não ocorreu nenhuma racionalização adicional do sistema polí tico nunca foram criados tarifas alfandegárias nem sistema fiscal co dificação de leis ou administração local com caráter uniforme A única tentativa da monarquia de impor uma nova conformação a um corpo coletivo foi o seu persistente esforço para assegurar a obediência teo lógica do clero através da perseguição ao jansenismo vigorosa e invariavelmente combatido pelo Parlement de Paris em nome do gali canismo tradicional A anacrônica querela em torno dessa questão ideológica tornouse o principal ponto de destaque nas relações entre o absolutismo e a noblesse de robe desde a Regência à época de Choi seul quando os jesuítas foram formalmente expulsos da França por iniciativa dosparlements numa vitória simbólica do galicanismo Mui to mais sério porém seria o impasse que se estabeleceu por fim entre a monarquia e a magistratura Luís XIV deixara um Estado totalmente afundado em dívidas a Regência as reduzira à metade com o recurso às moratórias mas os custos da política externa a partir da Guerra da Sucessão da Áustria aliados à extravagância da corte mantiveram o erário em déficit veloz e cada vez mais profundo Experiências suces sivas de lançar novos impostos rompendo a imunidade fiscal da aris tocracia foram alvo de resistência ou sabotagem nos Parlements e nos Estados das províncias mediante a recusa do registro dos éditos ou a apresentação de protestos indignados As contradições objetivas do ab solutismo manifestavamse aí em sua forma mais direta A monarquia procurava taxar a riqueza da nobreza enquanto esta reivindicava o controle sobre as políticas da monarquia a aristocracia na verdade recusavase a alienar os seus privilégios econômicos sem conquistar di reitos políticos sobre a condução do Estado monárquico Na sua luta contra os governos absolutistas nesse campo a oligarquia judicial dos Parlements passou cada vez mais a utilizarse da linguagem radical àosphilosophes as errantes noções burguesas de liberdade e represen tação passaram a freqüentar a retórica de um dos ramos da aristocracia francesa mais marcados pelo conservadorismo inveterado e pelo espí rito de casta33 Nas décadas de 1770 e 1780 tornavase nítida na Fran ça uma curiosa contaminação cultural de seções da nobreza pelo estado situado abaixo dela O século XVIII assistira nesse ínterim a uma rápida expansão das fileiras e das fortunas da burguesia local A época posterior à Re 33 Para as atitudes dos Parlements nos últimos anos do ancien regime ver J Egret La PréRevolution Française 17871788 Paris 1962 pp 14960 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 109 gência foi de modo geral marcada pelo crescimento econômico com constante aumento de preços relativa prosperidade agrária pelo me nos no período de 1730 a 1774 e recuperação demográfica a popula ção da França subiu de 1819 para 2526 milhões de habitantes entre 1700 e 1789 Enquanto a agricultura continuava a ser o ramo ampla mente dominante da produção as manufaturas e o comércio registra vam notáveis avanços A indústria francesa apresentou um crescimento em sua produção da ordem de 60 por cento durante esse séculoM no setor têxtil começaram a aparecer verdadeiras fábricas lançaramse os alicerces das indústrias do ferro e do carvão Muito mais rápido po rém seria o progresso do comércio sobretudo no plano internacional e colonial O comércio exterior propriamente dito quadruplicou de 1716 20 a 178488 com um excedente regular de exportações O intercâmbio colonial conseguiu um crescimento mais rápido com o desenvolvimento das plantações de açúcar café e algodão nas Antilhas nos anos que precederam a revolução chegaria a dois terços do comércio externo da França35 O surto comercial naturalmente estimulava a urbanização houve uma onda de novas construções nas cidades e pelo final do sé culo as cidades provinciais da França ainda suplantavam as da Ingla terra em número e tamanho a despeito do nível muito mais elevado da industrialização no outro lado do canal Enquanto isso decrescia a venda de cargos com o cerco aristocrático ao aparelho de Estado O absolutismo do século XVIII recorria crescentemente aos empréstimos públicos o que não criava um mesmo grau de intimidade com o Es tado os rentiers não recebiam o enobrecimento ou a imunidade fiscal como acontecera com os officiers O grupo específico de maior riqueza no seio da classe capitalista francesa continuava a ser o dosfinanciers cujos investimentos especulativos colhiam os imensos lucros dos con tratos com o exército das arrecadações de impostos e dos empréstimos fornecidos ao rei Mas de um modo geral a diminuição do acesso dos comuns ao Estado feudal simultaneamente ao desenvolvimento de uma economia comercial externa a este emancipara a burguesia de sua dependência subalterna frente ao absolutismo Os comerciantes donos de manufaturas e armadores da época do iluminismo e os juristas e jornalistas que cresceram com eles prosperavam agora cada vez mais fora do âmbito do Estado com resultados inevitáveis para a autonomia política da classe burguesa no seu conjunto 34 A Soboul La Révolutian Française I Paris 1964 p 45 35 J Lough An Introduction to 18th Century France Londres 1960 pp 713 110 PERRY ANDERSON A monarquia por sua vez mostrouse incapaz de proteger os interesses burgueses mesmo quando estes coincidiam nominalmente com os do próprio absolutismo Em nenhuma outra parte isso foi tão claro como nas políticas externas do Estado Bourbon da última fase As guerras daquele século seguiram um padrão infalivelmente tradicio nal As pequenas anexações de território na Europa sempre adquiriam na prática maior prioridade que a defesa ou aquisição de colônias ul tramarinas o poder marítimo e comercial foi sacrificado ao militarismo territorial36 Propenso à paz Fleury assegurou o êxito da absorção da Lorena nas breves campanhas em torno da sucessão da Polônia em 1730 das quais a Inglaterra se manteve afastada Contudo a Guerra da Sucessão da Áustria veria a frota britânica castigar os navios fran ceses desde o Caribe ao oceano Indico infligindo à França imensas perdas comerciais enquanto Saxe conquistava o sul dos Países Baixos numa campanha territorial bem realizada mas fútil a paz restaurou o status quo ante em ambos os lados mas Pitt na Inglaterra assimilara bem as lições estratégicas A Guerra dos Sete Anos 175663 na qual a França comprometeuse a apoiar um ataque austríaco à Prússia con trário a qualquer interesse dinástico racional levou ao desastre o im pério colonial Bourbon Desta vez os exércitos franceses lutaram apa ticamente na guerra continental na Vestfália ao passo que a guerra na val desencadeada pela Inglaterra varria o Canadá a índia a África ocidental e as índias ocidentais Com a Paz de Paris a diplomacia de Choiseul recuperou as possessões Bourbon nas Antilhas mas a chance da França presidir um imperialismo mercantil em escala mundial es tava terminada A Guerra da Independência Americana permitiu a Paris alcançar uma revanche política contra Londres por procuração mas o papel da França na América do Norte embora vital para o su cesso da Revolução Americana foi essencialmente uma operação de pilhagem que trouxe poucos ganhos positivos à França Na verdade foram os custos da intervenção Bourbon na Guerra da Independência Americana que precipitaram a derradeira crise fiscal do absolutismo francês no plano interno Em 1788 a dívida do Estado era tão grande apenas o pagamento dos juros significava quase 50 por cento das despesas correntes e o déficit orçamentário era tão sério que os últi mos ministros de Luís XVI Calonne e Loménie de Brienne resolveram 36 O orçamento naval nunca ultrapassou a metade do da Inglaterra Dorn Competition for Empire p 116 Dorn apresenta um relato revelador sobre as deficiên cias gerais das frotas francesas na época LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 111 impor à nobreza e ao clero um imposto territorial Os Parlements re sistiram furiosamente a tais planos a monarquia em desespero de cretou a sua dissolução em seguida recuando perante a comoção sur gida no seio das classes proprietárias acabou por restabelecêlos e finalmente capitulando às exigências dos Parlements que queriam a convocação dos EstadosGerais antes da aprovação de qualquer re forma fiscal chamou os três estados em meio à desastrosa escassez de cereais ao desemprego generalizado e à miséria popular de 1789 A reação aristocrática contra o absolutismo passou com isso à revolução burguesa que o derrubaria Apropriadamente o colapso histórico do Estado absolutista francês estava diretamente ligado à inflexibilidade de sua formação feudal A crise fiscal que detonou a revolução de 1789 foi provocada por sua incapacidade jurídica em taxar a classe que re presentava A própria rigidez do vínculo entre Estado e nobreza aca baria por precipitar a sua derrocada comum Inglaterra Durante a Idade Média a monarquia feudal da Inglaterra ioi de modo geral muito mais poderosa que a da França As dinastias anglonormanda e angevina criaram um Estado monárquico sem rival em autoridade e eficácia em todo o Ocidente europeu Foi precisa mente a força da monarquia medieval inglesa que permitiu as suas am biciosas aventuras territoriais no continente em detrimento da França A Guerra dos Cem Anos ao longo da qual sucessivos reis ingleses ao lado de sua aristocracia tentaram conquistar e subjugar vastas áreas da França atravessando uma arriscada barreira marítima representou um feito militar sem similares na Idade Média sinal agressivo da supe rioridade organizacional do Estado insular Contudo a mais forte mo narquia medieval do Ocidente foi justamente aquela que produziu o absolutismo mais fraco e de menor duração Enquanto a França se tor nava a terra natal do mais formidável Estado absolutista da Europa ocidental a Inglaterra experimentava uma variante de governo absolu tista particularmente acanhada em todos os sentidos A transição da época medieval para o início da época moderna correspondeu assim na história inglesa apesar de todas as lendas locais sobre uma inque brantável continuidade a uma inversão profunda e radical de muitos dos traços mais característicos do primitivo desenvolvimento feudal Naturalmente certos padrões medievais de grande importância também foram preservados e ficaram como herança foi precisamente a fusão contraditória das forças novas e tradicionais que definiu a parti cular ruptura política ocorrida na ilha durante a Renascença LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 113 A precoce centralização administrativa do feudalismo normando determinada pela primitiva conquista militar e pela modesta extensão do país originou como vimos uma classe nobre invulgarmente limitada e regionalmente unificada sem potentados territoriais semi independentes comparáveis aos do continente As cidades segundo as tradições anglosaxônicas sempre fizeram parte dos domínios do rei e por isso gozavam de privilégios comerciais sem a autonomia política das comunas do continente na época medieval nunca foram bastante numerosas ou fortes para desafiar o seu status subordinado Tam pouco os senhores eclesiásticos chegariam a adquirir enclaves senho riais sólidos ou de grande extensão De tal modo a monarquia me dieval da Inglaterra foi poupada dos perigos inerentes ao governo uni tário que os governantes feudais tiveram de enfrentar na França Itália ou Alemanha Resultaria daí uma centralização concorrente tanto do poder real como da representação nobre no seio do conjunto da orga nização política medieval Esses dois processos eram na realidade não opostos mas complementares Dentro do sistema parcelar da sobera nia feudal o poder monárquico situado fora da suserania só encon trava apoio em geral no consentimento de assembléias de vassalos de caráter excepcional capazes de votarem ajuda econômica ou política fora da hierarquia mediatizáda das dependências pessoais Por esse motivo como já foi salientado os Estados medievais quase nunca po diam se contrapor diretamente à autoridade monárquica eles eram amiúde a precondição de sua existência A administração e a autori dade reais da Inglaterra angevina não tinham qualquer equivalente fiel em toda a Europa do século XII Mas o poder pessoal do monarca logo foi seguido o que reforça nossa argumentação por precoces insti tuições de caráter coletivo da classe dominante feudal com caracterís ticas singularmente unitárias os Parlamentos A existência na Ingla terra desses parlamentos medievais a partir do século XIII não cons tituía evidentemente uma peculiaridade nacional O que os distinguia era mais o fato de se tratarem de instituições ao mesmo tempo únicas11 e conglomeradas Em outras palavras havia apenas uma assem 1 Weber em sua análise das cidades inglesas medievais aponta entre outras coisas quanto é significativo que elas nunca tenham passado pela experiência de revo luções municipais ou corporativas como aconteceu no continente Economy and Só ciety III pp 127681 Houve em Londres uma breve conjuratio insurrecional em 12635 ver a este respeito Gwyn Williams Mediaeval London From Commune to Ca pital Londres 1963 pp 21935 Mas tratouse de um episódio excepcional ocorrido no contexto mais vasto da Revolta dos Barões 2 As primeiras funções judiciais do Parlamento inglês eram também inusita 114 PERRY ANDERSON bléia deste tipo cujos limites coincidiam com os do próprio país e não uma para cada província e no seio dessa assembléia não existia a divi são tripartida de nobres clero e burgueses geralmente predominante no continente Desde a época de Eduardo III os cavaleiros e as cidades dispunham de representação regular no Parlamento inglês lado a lado com os barões e os bispos O sistema bicameral de Lordes e Comuns desenvolveuse depois e não dividiu o Parlamento segundo os estados marcando basicamente uma distinção interna à classe nobiliária Uma monarquia centralizada produzia uma assembléia unificada A precoce centralização da organização política feudal inglesa gerou duas outras conseqüências Os Parlamentos unitários que se reuniam em Londres não alcançaram o mesmo grau de controle fiscal meticuloso nem os direitos de convocação regular que mais tarde ca racterizariam alguns dos sistemas de estados do continente Mas con seguiram assegurar uma tradicional limitação negativa do poder legis lativo do rei que teria grande importância na época do absolutismo depois de Eduardo I passou a ser aceito que nenhum monarca poderia decretar novos estatutos sem o consentimento do Parlamento Do ponto de vista estrutural este direito de veto correspondia estritamente às exigências objetivas do poder de classe da nobreza Com efeito uma vez que a administração real centralizada era desde o início geográ fica e tecnicamente mais fácil na Inglaterra que em qualquer outra região havia uma necessidade proporcionalmente menor de se equipar com uma autoridade decisória inovadora impossível de se justificar pelos riscos inerentes ao separatismo regional e à anarquia ducal De tal modo embora os poderes executivos reais dos monarcas medievais ingleses fossem habitualmente muito maiores que os dos reis franceses precisamente por essa razão eles nunca conquistaram a relativa auto nomia legislativa eventualmente desfrutada por estes Um outro traço comparável do feudalismo inglês foi a fusão invulgar entre monarquia e das este atuava como uma suprema corte encarregada das petições o que preenchia a maior parte de suas funções no século XIII quando se achava dominado principal mente por servidores do rei Para a origem e a evolução dos parlamentos medievais ver G O Sayles The Mediaeval Foundations afEngland pp 44857 G A Holmes The Later Middle Ages Londres 1962 pp 838 3 O significado último de tal limitação foi sublinhado por J P Cooper Dif ferences Between English and Continental Governments in the Early Seventeenth Cen tury em J J Bromley e E H Kossmann Orgs Britaín and the Netherlands Lon dres 1960 pp 6290 esp 6571 Como ele nota daí resultaria que o surgimento de uma nova monarquia no início da época moderna fosse precedido por um direito positivo inglês a limitála e não apenas o direito natural ou divino da teoria da sobe rania de Bodin LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 115 nobreza nos planos judicial e administrativo locais Enquanto no con tinente o sistema de tribunais achavase caracteristicamente dividido em jurisdições monárquicas e senhoriais separadas na Inglaterra a sobrevivência dos tribunais tribais préfeudais propiciara uma espécie de terreno comum no qual foi possível chegar a uma mistura de ambas Nesse sentido os sheriffs que presidiam os tribunais dos condados eram nomeados pelo rei em caráter n aohereditário todavia eram se lecionados no seio da pequena nobreza local e não em uma burocracia central ao passo que os próprios tribunais conservavam vestígios de seu caráter original de assembléias jurídicas populares nas quais os homens livres da comunidade rural compareciam perante os seus iguais Daí resultaria um bloqueio ao desenvolvimento posterior quer de um sistema abrangente de bailli da justiça real profissionalizada quer de uma extensa haute justice baronial em vez disso surgiria nos conda dos uma autoadministração aristocrática e nãoremunerada que de pois evoluiria para os juizes de paz do início da época moderna No próprio período medieval naturalmente o contrapeso dos tribunais de condado coexistia com os tribunais senhoriais e com algumas franquias senhoriais de tipo feudal ortodoxo como as que se encontravam por todo o continente Ao mesmo tempo a nobreza da Inglaterra na Idade Média cons tituía uma classe tão militarizada e predatória como qualquer outra da Europa na verdade distinguiase entre as suas parceiras pela ampli tude e constância de suas agressões externas Nenhuma outra aristo cracia feudal da Alta Idade Média irradiouse tão longe e tão livre mente enquanto o conjunto de uma ordem a partir de sua base terri torial As sucessivas pilhagens da França durante a Guerra dos Cem Anos foram os feitos mais espetaculares deste militarismo mas a Escó cia e Flandres a Renânia e Navarra Portugal e Castela foram também atravessadas por expedições militares vindas da Inglaterra no século XIV Nesta época os cavaleiros ingleses lutaram fora de seu país desde o Forth até o Ebro A organização militar de tais expedições refletia o desenvolvimento local de um feudalismo bastardo monetarizado O último exército feudal propriamente dito convocado com base na posse da terra foi recrutado em 1385 para o ataque de Ricardo II à Escócia A Guerra dos Cem Anos foi travada essencialmente por companhias contratadas alistadas com base em pagamentos em dinheiro por ini ciativa dos grandes senhores para servir à monarquia Deviam obe diência aos seus próprios capitães recrutamentos nos condados e mer cenários estrangeiros forneceram as forças suplementares Não houve a participação de um exército profissional e a escala das expedições era 116 PERRY ANDERSON numericamente modesta as tropas despachadas para a França nunca alcançaram muito mais que 10 mil homens Os nobres que chefiaram as sucessivas incursões em território Valois conservaram basicamente uma perspectiva de pirataria Os saques privados a busca de reféns e de terra eram os objetivos de sua ambição e os capitães mais bem sucedidos enriqueceramse maciçamente com as guerras nas quais as forças inglesas bateram repetidas vezes exércitos franceses muito maio res reunidos para expulsálas A superioridade estratégica dos agres sores ingleses durante a maior parte do conflito não se baseava como pode sugerir uma ilusão retrospectiva no controle do poder marítimo Com efeito as frotas dos mares do norte não passavam de transportes improvisados de tropas compostas em sua maioria por barcos comer ciais temporariamente apresados eram incapazes de patrulhar regu larmente o oceano Os barcos de guerra propriamente ditos confina vamse ainda em grande parte no Mediterrâneo onde a galera mo vida a remo era a arma das verdadeiras guerras marítimas As batalhas travadas no mar eram por conseguinte naquela época desconhecidas nas águas atlânticas os embates navais ocorriam de modo geral em baías ou estuários pouco profundos Sluys ou La Rochelle onde os navios em combate podiam engatarse para as lutas corpo a corpo entre os soldados a bordo Era impossível então o controle estratégico do mar Desse modo as costas de ambos os lados do canal não dispu nham de defesa contra os desembarques armados Em 1386 a França reuniu o maior exército e a mais ampla frota de toda a guerra para uma invasão em grande escala da Inglaterra os planos de defesa da ilha sequer chegaram a contemplar a possibilidade de deter esta força no mar mas confiavam em manter a frota inglesa fora da rota da agres são no Tâmisa a fim de atraila a uma decisão no interior À última hora a invasão foi cancelada mas a vulnerabilidade inglesa diante dos ataques marítimos foi amplamente demonstrada durante a guerra na qual os destrutivos ataques navais desempenharam um papel equiva lente às chevauchées militares em terra As frotas da França e de Caste la utilizando galeras de tipo meridional muito mais ágeis capturaram saquearam ou queimaram uma formidável lista de portos ingleses por toda a parte de Devon a Essex entre outras cidades Plymouth South hampton Portsmouth Lewes Hastings Winchelsea Rye Gravesend e Harwjch todas foram tomadas e pilhadas no decorrer do conflito 4 Quanto a este episódio revelador ver J J Palmer England France and Christendom 13371399 Londres 1972 pp 746 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 117 Assim a supremacia inglesa durante a maior parte da Guerra dos Cem Anos que determinou como campo de batalha permanente com todo o seu cortejo de danos e desolação o território francês não foi um resultado do poder marítimo5 Foi produto da integração e da solidez política muito maiores da monarquia feudal inglesa cuja capa cidade administrativa para explorar seu patrimônio e convocar sua no breza foi até o momento final da guerra muito maior que a da mo narquia francesa assolada por vassalos desleais na Bretanha ou na Borgonha e enfraquecida por sua primitiva incapacidade de desalojar o feudo inglês na Guiana Por sua vez a lealdade da aristocracia inglesa foi cimentada nas vitoriosas campanhas externas às quais foi levada por uma série de príncipes marciais Apenas quando a organização política feudal da França foi ela própria reorganizada sobre uma nova base militar e fiscal no governo de Carlos VII surgiram as condições para a mudança da maré Derrotados os seus aliados borgonheses as forças da Inglaterra logo passaram a ser enfrentadas por exércitos fran ceses cada vez maiores e melhor equipados A amarga conseqüência do colapso final do poder inglês na França seria a eclosão das Guerras das Duas Rosas dentro do país Uma vez que não mais existia uma auto ridade real vitoriosa para manter unida a alta nobreza a arcaica má quina de guerra medieval voltase sobre si própria enquanto as rivali dades entre os grandes senhores feudais liberavam por todo o país os seus embrutecidos dependentes e bandos de soldados contratados e usurpadores rivais engalfinhavamse na luta pela sucessão Uma gera ção de guerra civil acabou finalmente com a fundação da nova dinas tia Tudor em 1485 no campo de Bosworth O reinado de Henrique VII preparava agora gradualmente o aparecimento de uma nova monarquia na Inglaterra Durante o re gime Lancaster anterior desenvolveramse livremente as facções aristo cráticas que manipularam o Parlamento para seus próprios fins ao passo que os governantes da Casa York esforçaramse em meio à anar quia dominante no sentido de concentrar e fortalecer de novo as insti tuições centrais do poder real Sendo ele próprio um Lancaster por afi nidade Henrique VII desenvolveu essencialmente a prática adminis trativa York Antes das Guerras das Duas Rosas os Parlamentos eram virtualmente anuais e durante a primeira década da reconstrução de 5 Ver os pertinentes comentários de C F Richmond The War at Sea em K Fowler ÍOrg The Hundred Years War Londres 1971 p 117 e English Naval Power in the Füteenth Century History LII n 174 fevereiro de 1967 pp 45 Os estudos sobre este tema ainda estão no início 118 PERRY ANDHRSON pois de Bosworth isso voltou a ocorrer Mas uma vez aprimorada a se gurança interna e consolidado o poder Tudor Henrique VII descartou se da instituição de 1497 a 1509 os últimos doze anos de seu reinado esta tornou a reunirse apenas mais uma vez O governo real cen tralizado era exercido através de uma pequena roda seleta de conse lheiros pessoais e homens de confiança do monarca O seu objetivo pri mário foi a sujeição do poder dos magnatas que estivera em ascensão no período anterior com seus bandos uniformizados de dependentes armados o suborno sistemático de jurados e as constantes guerras pri vadas Este programa porém foi aplicado com muito maior persistên cia e êxito do que na fase York A suprema prerrogativa de justiça foi imposta à nobreza com o recurso à Star Chamber um tribunal conci liar que se tornaria o principal instrumento da monarquia contra mo tins ou sedição A turbulência regional no norte e no oeste onde os senhores fronteiriços reclamavam direitos de conquista e não a enfeu dação pelo monarca foi sufocada pela criação de conselhos especiais delegados para controlar tais áreas in situ Os ampliados direitos de asilo e os privilégios privados semireais foram gradualmente limitados proibiramse as tropas particulares uniformizadas A administração local foi subordinada ao controle monárquico com o recurso à seleção e supervisão vigilantes dos juizes de paz rebeliões de usurpadores rein cidentes foram esmagadas Criouse um pequeno corpo de guarda no lugar da polícia armada6 Os domínios reais foram muito ampliados pela retomada de terras cuja receita forneceu à monarquia um total quadruplicado durante o reinado as incidências feudais e os tributos alfandegários foram igualmente explorados ao máximo Por volta do final do governo de Henrique VII os rendimentos gerais da monarquia tinham quase triplicado e existia uma reserva de tesouro que ia de l a 2 milhões de libras7 De tal modo a dinastia Tudor efetivara um começo promissor no sentido da construção de um absolutismo inglês na vi rada do século XVI Henrique VIII herdou um Executivo poderoso e um próspero erário Os primeiros vinte anos do governo de Henrique VIII trouxeram poucas mudanças à posição de segurança interna da monarquia Tudor A administração política de Wolsey não foi marcada por inovações ins titucionais relevantes no máximo o cardeal concentrou em suas mãos 6 S T Bindoff Tudor England Londres 1966 pp 5666 fornece um bom resumo de todo o processo 7 G R Elton England under the Tudors Londres 1956 pp 49 53 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 119 poderes sem precedentes sobre a Igreja como legado papal na Ingla terra Tanto o rei como o ministro mostravamse preocupados princi palmente com os negócios externos As limitadas campanhas travadas contra a França em 151214 e 152225 constituiriam os principais acontecimentos do período para acudir aos custos de tais operações militares no continente foram necessários dois breves arremedos de convocação parlamentar8 Depois disso uma tentativa de taxação arbi trária promovida por Wolsey levantou uma oposição das classes pro prietárias contra Henrique VIII suficiente para desestimulála Não havia ainda sinais de qualquer desenvolvimento espetacular na orienta ção da política monárquica na Inglaterra Foi a crise matrimonial de 152728 causada pela decisão real de se divorciar de sua esposa espa nhola com o subseqüente impasse com o papado sobre uma questão que afetava a sucessão interna que viria subitamente alterar toda a situação política Para lidar com a obstrução papal inspirada pela hostilidade dinástica do imperador ao planejado novo casamento foi necessário recorrer a novas e mais radicais leis e reunir apoio político nacional contra Clemente VII e Carlos V Assim em 1529 Henrique convocou aquele que seria o Parla mento de maior duração a fim de mobilizar a classe fundiária a seu favor no conflito com o papado e o império e assegurar o endosso dela ao confisco político da Igreja por parte do Estado na Inglaterra Entre tanto tal renascimento de uma instituição até aí desprezada estava longe de representar uma capitulação constitucional de Henrique VIII ou de Thomas Cromwell que se tornou seu planejador político em 1531 não significou um enfraquecimento do poder real mas apenas um novo impulso no sentido de sua intensificação Com efeito os Par lamentos da Reforma não só aumentaram grandemente o padroado e a autoridade da monarquia ao transferir o controle de todo o aparelho eclesiástico para suas mãos Sob a direção de Cromwell eles também suprimiram a autonomia dos privilégios senhoriais destituindoos do poder de designar juizes de paz integraram os senhores fronteiriços aos condados e incorporaram o País de Gales jurídica e administrativa 8 C Russcll The Crísis of Paríiaments Oxford 1971 pp 412 afirma cate goricamente que o Parlamento inglês deste período com as suas breves sessões rara mente convocadas era uma força em declínio por outro lado enfatiza corretamente que o pacto constitucional entre a monarquia e o Parlamento baseavase na unidade de classe dos dirigentes do país Quanto à base social do parlamentarismo inglês ver as agudas observações de Penry Williams The Tudor State Past and Presení n 24 julho de 1963 pp 3958 120 PERRY ANDERSON mente ao reino da Inglaterra Ainda mais significativo foi o fato de os mosteiros terem sido dissolvidos e a sua vasta riqueza fundiária expro priada pelo Estado No ano de 1536 a combinação governamental de centralização política e reforma religiosa provocaria um levante poten cialmente perigoso no norte a Peregrinação da Graça uma reação re gional particularista contra um Estado real reforçado de tipo seme lhante às que ocorriam na Europa ocidental nesta época9 A rebelião foi dispersada e criouse um novo e permanente Conselho do Norte com o objetivo de controlar os territórios situados além do Trent En quanto isso Cromwell ampliava e reorganizava a burocracia central convertendo o cargo de secretário do rei no mais alto posto ministerial e criando os primeiros elementos de um conselho privado regular10 Logo após a sua queda o Conselho Privado foi formalmente instituciona lizado como a agência executiva mais íntima da monarquia e desde então tornouse o cerne da máquina política Tudor Um Estatuto das Proclamações aparentemente destinado a conferir poderes legislativos extraordinários à monarquia libertandoa para o futuro do beneplá cito do Parlamento foi por fim neutralizado pelos Comuns Tal re cusa evidentemente não impediu Henrique VIII de levar a cabo san guinários expurgos de ministros e magnatas ou criar um sistema de polícia secreta para delações e prisões sumárias O aparelho repressivo do Estado cresceu rapidamente ao longo do reinado ao seu final ti 9 Encontrase uma minuciosa análise sobre as implicações da Peregrinação da Graça em geral subestimadas em J J Scarisbricke Henry VIII Londres 1971 pp 4445 452 10 As asserções exageradas sobre a revolução administrativa de Cromwell feitas por Elton em The Tudor Revolution in Government Cambridge 1953 pp 160 427 e em England under the Tudors pp 12737 16075 1804 foram reduzidas a pro porções mais modestas por entre outros G L Harris Mediaeval Government and StateCraft Past and Present n 24 julho de 1963 pp 2435 para um comentário recente e representativo ver Russell The Crisis ofParliaments p 111 11 Nessa época debateramse também planos para um exército permanente e um pariato juridicamente privilegiado duas medidas que se implementadas teriam modificado o curso da história inglesa nos séculos XVI e XVII Na verdade nenhuma delas podia ser aceita por um Parlamento que apoiava o controle da Igreja pelo Estado e a paz do reino no campo mas conhecia a lógica das tropas profissionais e era adverso à constituição de uma hierarquia jurídica no seio da nobreza a qual atuaria social mente contra muitos de seus membros O projeto de um exército permanente prepa rado em 153637 e encontrado nos arquivos do gabinete de Cromwell é analisado em L Stone The Political Programme of Thomas Cromwell Bulletin of the Institute of Historical Research XXIV 1951 pp 118 Quanto à proposta de um estatuto jurídico privilegiado da propriedade fundiária para a nobreza titular ver Holdsworth A Histvry ofEnglish Law IV pp 4503 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 121 nham sido aprovadas nove diferentes leis sobre traição12 O uso que Henrique VIII fez do Parlamento do qual ele esperou e recebeu poucos incômodos foi de abordagem confiantemente legalista era um meio necessário aos fins do rei Dentro da estrutura herdada da organização política feudal inglesa que conferira poderes singulares ao Parlamento estava em construção um absolutismo nacional que na prática nada ficava a dever ao de qualquer de seus parceiros continentais Durante o seu período de vida o poder pessoal efetivo de Henrique VIII no seio de seu reino foi perfeitamente igual ao de seu contemporâneo Francisco I na França Apesar disso a nova monarquia Tudor funcionava no interior de uma limitação fundamental que a distinguia de suas congêneres no exterior faltava a ela um aparelho militar substancial Para compreen der por que o absolutismo inglês tomou a forma peculiar assumida no século XVI e no início do século XVII fazse necessário ultrapassar a herança original de um Parlamento legislador a fim de alcançar todo o contexto internacional da Europa renascentista Nesse sentido en quanto o Estado Tudor era construído com êxito no plano interno a posição geopolítica da Inglaterra no exterior sofrerá rápida e silencio samente uma drástica mudança Na época Lancaster o poder externo da Inglaterra podia enfrentar ou sobrepujar o de qualquer outro país do continente devido à natureza avançada da monarquia feudal na Inglaterra Mas por volta do início do século XVI o equilíbrio de for ças entre os Estados ocidentais mais importantes modificarase por completo A Espanha e a França ambas vítimas de invasões inglesas no período precedente eram agora monarquias dinâmicas e agres sivas que disputavam entre si a conquista da Itália A Inglaterra fora rapidamente superada por elas Todas as três monarquias tinham atin gido um nível comparável de consolidação interna mas foi justamente tal equiparação que possibilitaria que as vantagens naturais das duas grandes potências continentais da época se tornassem pela primeira 12 Joel Hurstfield Was there a Tudor Despotism after ali Transactions of the Royal Historical Society 1967 pp 83108 critica com eficácia os anacronismos apologéticos em que se baseiam até hoje os escritos sobre esse período Hurstfield põe em relevo o impulso real que estava por trás do Estatuto das Proclamações dos Atos sobre Traição e da censura e propaganda oficiais do reino A noção outrora aceita de que a monarquia Tudor não constituía uma forma de absolutismo não sobrevive à aná lise de Mousníer Quelques Problèmes Concernant Ia Monarchie Absolue pp 216 A atitude de Henrique para com o Parlamento achase bem exposta em Henry V77 pp 6534 122 PERRY ANDERSON vez decisivas A população da França era quatro ou cinco vezes supe rior à da Inglaterra A Espanha tinha o dobro da população inglesa para não falar de seu império americano e de suas possessões euro péias Esta superioridade demográfica e econômica era acentuada pela necessidade geográfica que tinham ambos os países de desenvolver exércitos modernizados e de caráter permanente para a guerra perpé tua daqueles tempos A criação das compagnies dordonnance e dos tercios o emprego de infantaria mercenária e da artilharia pesada tudo isso conduziu a um novo tipo de aparelho militar da monarquia muito maior e mais caro do que o que se conhecia no período medie val Para as monarquias da Renascença a construção de forças mili tares na área metropolitana era uma condição indispensável à sua pró pria sobrevivência O Estado Stuart foi poupado deste imperativo de vido à sua situação insular Por um lado o rápido aumento do custo e do tamanho dos exércitos no início da época moderna junto aos pro blemas de transporte de embarque e aprovisionamento de um grande número de soldados por via marítima tornaram o tipo medieval de expedições ultramarinas nas quais a Inglaterra tanto se destacara cada vez mais anacrônicas A preponderância militar das novas potên cias territoriais baseada em seus recursos financeiros e humanos muito mais amplos impediu toda a repetição vitoriosa das campanhas de Eduardo III ou Henrique V Por outro lado tal ascendência continen tal não se fez traduzir em uma idêntica capacidade de combate no mar não ocorrera ainda qualquer transformação importante na arte bélica naval e assim a Inglaterra continuava relativamente imune ao risco de uma invasão marítima Em decorrência disso na grave conjuntura da transição rumo a uma nova monarquia na Inglaterra não foi neces sário nem possível ao Estado Tudor construir uma máquina militar comparável às do absolutismo francês ou espanhol No aspecto subjetivo porém Henrique VIII e sua geração no seio da nobreza inglesa eram ainda incapazes de apreender a nova situação internacional O orgulho marcial e as ambições continentais de seus antecessores da última fase medieval ainda estavam vivos na memória da classe dominante inglesa da época O ultracauteloso Hen rique VII reavivara ele próprio as pretensões lancasterianas à monar quia francesa lutara para impedir a anexação da Bretanha pelos Va lois e planejara ativamente a conquista da sucessão de Castela Wolsey que dirigiu a política externa inglesa durante os vinte anos seguintes posou de árbitro da concórdia européia com o Tratado de Londres e aspirou nada mais nada menos ao próprio papado italiano Por sua vez Henrique VIII alimentou esperanças de se tornar imperador da LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 123 Alemanha Essas grandiosas aspirações foram descartadas como ilu sões fantasmagóricas pelos historiadores subseqüentes com efeito elas expressavam a dificuldade perceptual dos governantes ingleses em adaptarse à nova configuração diplomática na qual a estatura da In glaterra tanto diminuíra em termos reais precisamente numa época onde o seu próprio poder interno aumentava sensivelmente Na ver dade fora exatamente tal perda de posição internacional ignorada pe los protagonistas ingleses que esteve por trás de todo o erro de cálculo do divórcio real Nem o cardeal nem o rei compreenderam que o pa pado era praticamente obrigado a submeterse à pressão superior de Carlos V devido à hegemonia do poder Habsburgo na Europa A In glaterra fora marginalizada pelo conflito francoespanhol pela Itália espectador impotente os seus interesses pesavam pouco na Cúria A surpresa da descoberta iria impelir o Defensor da Fé para a Reforma Todavia as desventuras da política externa de Henrique VIII não se limitaram a este calamitoso revés diplomático Por três vezes a monar quia Tudor tentou intervir nas guerras ValoisHabsburgo no norte da França através de expedições que cruzaram o canal Os exércitos des pachados nestas campanhas de 151214 152225 e 154346 foram na turalmente de volume considerável compostos por recrutas ingleses reforçados com mercenários estrangeiros 30 mil em 1512 40 mil em 1544 Faltou em seu emprego um objetivo estratégico sério e não se conseguiu nenhum ganho significativo a retirada inglesa das linhas se cundárias da luta entre Espanha e França provouse tão custosa como fútil Contudo estas guerras a esmo de Henrique VIII cuja falta de propósito coerente já foi tantas vezes destacada não foram meramente o produto de um capricho pessoal correspondiam precisamente a um curioso intervalo histórico em que a monarquia inglesa tinha perdido a sua antiga importância militar na Europa mas não encontrara ainda o futuro papel marítimo que a aguardava Não deixaram de ter para a própria Inglaterra as suas conse qüências fundamentais O último ato importante de Henrique VIII a sua aliança com o império e o ataque à França em 1543 viria a ter conseqüências fatais para o destino ulterior da monarquia inglesa A intervenção militar no estrangeiro foi mal conduzida seus custos cres ceram muitíssimo chegando a totalizar dez vezes mais que os da pri meira guerra do seu reinado com a França para cobrilos o Estado não recorreu apenas a empréstimos compulsórios e ao aviltamento da moe da mas começou também a descarregar no mercado o imenso fundo de propriedade agrária que acabara de adquirir dos mosteiros e que significava talvez um quarto do território do reino A venda dos domí 124 PERRY ANDERSON nios da Igreja pela monarquia multiplicouse à medida que a guerra se arrastava até a morte de Henrique Mas quando a paz foi restaurada o grosso do resultado deste grande golpe de sorte estava exaurido13 e com ele a única grande chance que teve o absolutismo inglês de cons truir uma sólida base econômica independente da tributação parlamen tar Tal transferência de fundos não apenas enfraqueceria o Estado a longo prazo fortaleceria também em grande escala a pequena no breza que constituiu os principais compradores destas terras e cujo nú mero e riqueza cresceu rapidamente daí em diante Assim uma das guerras mais inconseqüentes e sem brilho da história inglesa teve conse qüências enormes ainda que ocultas sobre o equilíbrio interno de for ças na sociedade inglesa As duas facetas deste episódio final do governo henriquino pres sagiavam na verdade a maior parte da evolução da classe fundiária inglesa no seu conjunto Nesse sentido o conflito militar da década de 1640 foi na prática a última guerra de agressão travada pela Ingla terra no continente até o fim do século As ilusões de Crêcy e Agincourt se desvaneceram Mas o desaparecimento gradual de sua vocação tra dicional alterou profundamente o semblante da nobreza da Inglaterra A ausência da pressão limitadora causada pela possibilidade constante de uma invasão permitiu à aristocracia inglesa dispensar um aparelho militar modernizado na época da Renascença não estava diretamente ameaçada pelas classes feudais rivais no estrangeiro e tinha relutância como qualquer outra nobreza num estádio de evolução similar em sub meterse à construção maciça do poder real no plano interno conse qüência lógica de um grande exército regular No contexto isolacionista do reino insular houve assim uma desmilitarização excepcionalmente precoce da própria classe nobre Em 1500 todo par do reino inglês portava armas à época de Elizabeth já se calculou apenas metade da aristocracia possuía alguma experiência de combate14 Nas vésperas da guerra civil do século XVII pouquíssimos nobres dispunham de al gum passado militar Verificavase uma progressiva dissociação da no breza com respeito à função militar básica que a definia na ordem social medieva num processo muito mais precoce do que qualquer outro do continente tal fato necessariamente teria importantes reper 13 No final do remado dois terços dos domínios monásticos haviam sido alie nados a receita da venda das terras eclesiásticas alcançava em média 30 por cento a mais que a das rendas das terras retidas pelo rei Ver F Dietz English Government Finance 14851558 Londres 1964 pp 147 149 158 214 14 Stone The Crísis ofthe Aristocracy pp 2656 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 125 cussões na própria classe fundiária No seu contexto marítimo pecu liar a derrogação propriamente dita sempre ligada a um intenso sentimento das virtudes da espada e codificada contra as tentações da bolsa nunca chegou a ocorrer Isso permitiria por sua vez uma conversão gradual da aristocracia às atividades comerciais muito antes de qualquer outra classe rural européia do mesmo gênero A predomi nância da criação de gado lanífero setor em crescimento na agricultura do século XV acelerou naturalmente tal tendência ao passo que a indústria têxtil rural contígua àquela proporcionava alternativas na turais ao investimento da pequena nobreza A trajetória econômica que conduziu das metamorfoses da renda feudal nos séculos XIV e XV à emergência de um setor capitalista rural em expansão no século XVII estava pois aberta Uma vez iniciada tornouse praticamente impos sível sustentar o caráter juridicamente separado da nobreza inglesa Durante a Idade Média a Inglaterra tal como a maioria dos outros países experimentou uma tendência acentuada no sentido de uma estratificação formal de camadas no seio da aristocracia com a introdução de novos títulos uma vez que a hierarquia feudal primitiva de vassalos e suseranos tinha sido minada pelo surgimento das relações sociais monetarizadas e pela dissolução do sistema feudal clássico Por toda a parte a nobreza sentiu a necessidade de novos e mais abun dantes graus nobiliárquicos já que as dependências pessoais tinham em geral declinado Na Inglaterra os séculos XIV e XV presenciariam a adoção de novos graus duques marqueses barões e viscondes no interior da nobreza os quais juntamente com os expedientes desti nados a garantir o direito de primogenitura da herança separariam pela primeira vez um pariato distinto do restante da classe15 Daí em diante tal estrato compreenderia sempre o grupo mais poderoso e opulento da aristocracia Ao mesmo tempo formouse um Colégio He ráldico que deu definição jurídica à pequena nobreza limitandoa às famílias detentoras de escudos de armas e estabelecendo os procedi mentos necessários para a investigação das pretensões a esse estatuto 15 A transição do baronato do início da Idade Média para o pariato do final desse período e a evolução concomitante da classe dos cavaleiros para a pequena no breza estão traçadas em N DenholmYoung En Remontant lê Passe de rAristocracie Anglaise lê Moyen Age Annales maio de 1937 pp 25769 O próprio título de barão adquiriria novo significado como grau de direito em fins do século XIV pas sando a ser usado de forma distinta A consolidação do sistema de pariato é analisada por K B Macfarlane The English Nobility in the Later Middle Ages XUth Inter national Congress ofHistorical Sciences Viena 1965 Relatórios I pp 33745 que sa lienta o seu caráter novo e a sua descontinuidade 126 PERRY ANDERSON Dessa maneira bem podia terse desenvolvido na Inglaterra como aconteceu noutros países uma ordem aristocrática mais rigorosa e de dupla linhagem juridicamente demarcada dos roturíers abaixo dela Mas a crescente propensão nãomilitar e protocomercial do conjunto da nobreza estimulada pela venda de terras e pelo surto agrário da época Tudor tornou impossível um tribunal de derrogação Em conseqüência o critério estritamente heráldico tornouse em grande medida inoperante Daí a peculiaridade então surgida pela qual a aris tocracia social inglesa não coincidia com o pariato patenteado que era o único setor dela a dispor de privilégios jurídicos e a pequena nobreza sem títulos e os filhos mais jovens dos pares podiam dominar uma assim chamada Câmara dos Comuns Assim as idiossincrasias da classe fundiária inglesa na época do absolutismo viriam a ser historica mente entrelaçadas ela era inusitadamente civil em sua formação co merciante por profissão e plebéia de linhagem O correlato dessa classe era um Estado com uma pequena burocracia um fisco limitado e sem um exército regular A tendência inerente à monarquia Tudor era como vimos surpreendentemente homóloga à de suas opositoras do conti nente até mesmo quanto às semelhanças de personalidade tantas ve zes notadas entre Henrique VII Luís XI e Fernando II e Henrique VIII Francisco I e Maximiliano I mas os limites de seu desenvolvi mento estavam estabelecidos pelo caráter da nobreza que a circundava Enquanto isso o legado imediato da última incursão de Henri que VIII na França foi um agudo desespero popular no campo à me dida que a depreciação monetária levava à insegurança rural e a uma temporária depressão comercial A minoridade de Eduardo VI assistiu assim a uma rápida regressão na estabilidade da autoridade política do Estado Tudor com as previsíveis trapaças entre os grandes senhores territoriais pelo controle da corte numa década marcada pela inquie tação camponesa e por crises religiosas Os levantes rurais em East Anglia e no sudoeste foram esmagados por mercenários contratados na Itália e na Alemanha17 Mas logo a seguir em 1551 essas tropas profis sionais foram dissolvidas para aliviar o erário a última explosão agrá 16 É preciso não esquecer que a própria oi de dérogeance foi uma criação tar dia da Renascença francesa que data apenas de 1560 Enquanto a função da nobreza era nitidamente militar tal medida foi desnecessária assim como os próprios títulos graduados ela se constituía numa reação à nova mobilidade social 17 O governo não podia confiar na lealdade dos recrutamentos feitos nos con dados durante essa crise W K Jordan Edward VI The Young King Londres 1968 p 467 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 127 ria de relevância em quase trezentos anos tinha sido reprimida pela última força importante de soldados estrangeiros que esteve no plano interno à disposição do monarca Neste ínterim a rivalidade entre os duques de Somerset e de Northumberland com as suas respectivas clientelas de nobres menores funcionários e homens em armas con duzia a golpes e contragolpes velados no Conselho Privado em meio à tensão religiosa e à incerteza dinástica A unidade do aparelho de Es tado Tudor parecia temporariamente ameaçada Entretanto não seria apenas a morte do jovem soberano que cortaria pela raiz o perigo de uma real desintegração era improvável que se desenvolvesse um fac símile fiel dos conflitos aristocráticos na França devido à ausência de tropas leais à disposição dos magnatas em luta O desfecho do inter regno de governo de Somerset e Northumberland viria meramente radi calizar a Reforma local e fortalecer a dignidade monárquica contra os grandes nobres A breve passagem de Maria Tudor com sua subordi nação dinástica à Espanha e a efêmera restauração católica quase não deixou nenhum traço político O último ponto de apoio inglês no conti nente foi perdido com a reconquista francesa de Calais O longo reinado de Elizabeth na última metade do século iria res taurar e desenvolver em seguida o status quo ante no plano interno sem recorrer a inovações radicais O pêndulo religioso oscilou outra vez na direção de um protestantismo moderado com o estabelecimento de uma Igreja anglicana obediente No aspecto ideológico a autoridade real foi grandemente acentuada à medida que a popularidade pessoal da rainha atingia o ápice No aspecto institucional entretanto houve comparativamente pouco progresso Na primeira metade do reino o Conselho Privado concentrouse e se estabilizou sob o longo e firme secretariado de Burghley A rede de espionagem e polícia ocupada principalmente com a repressão às atividades católicas foi ampliada por Walsingham Se comparada ao reinado de Henrique VIII a ati vidade legislativa reduziuse muito18 As rivalidades de facções no seio da alta nobreza assumiam agora a forma de intrigas de corredor em busca de honrarias e cargos na corte A última e vulgar tentativa de putsch armado da alta nobreza a rebelião promovida por Essex o Guise inglês no final do reinado foi facilmente derrotada Por outro lado a influência e a prosperidade políticas da pequena nobreza que 18 Ver os estudos comparados dos estatutos elaborados por Elton em The Political Creed of Thomas Cromwell Transactions of the Royal Histórica Socieiy 1956 p 81 128 PERRY ANDERSON os Tudor haviam inicialmente apoiado como um contrapeso do pa riato eram agora cada vez mais um obstáculo evidente à prerroga tiva real Convocado por treze vezes em 45 anos basicamente em vir tude de emergências externas o Parlamento começava a revelar inde pendência na crítica às medidas do governo Ao longo do século a Câ mara dos Comuns aumentou grandemente em volume passando de 300 para 460 membros entre os quais a proporção de fidalgos rurais crescia rapidamente à medida que os assentos dos burgos eram apro priados pelos cavaleiros rurais ou seus patronos19 A dilapidação moral da Igreja ao termo do predomínio secular e dos ziguezagues doutriná rios dos cinqüenta anos anteriores permitiu a difusão gradual de um puritanismo de oposição em setores consideráveis dessa classe Assim os últimos anos de dominação Tudor seriam marcados por nova recal citrância e rebeldia do Parlamento cuja importunação religiosa e obs trução fiscal levariam Elizabeth a efetuar novas vendas de terras reais a fim de minimizar a dependência em relação a ele A máquina repres siva e burocrática da monarquia permaneceu muito exígua se compa rada com o seu prestígio político e autoridade executiva Acima de tudo faltavalhe o motor de propulsão das guerras por territórios que acelerara o desenvolvimento do absolutismo no continente Evidentemente o impacto da guerra renascentista não ignorou a Inglaterra elizabetana Os exércitos de Henrique VIII mantiveram um caráter híbrido e improvisado o arcaico recrutamento aristocrático realizado no país ainda se combinava com a utilização de mercenários flamengos borgonheses italianos e alemães contratados fora do país20 O Estado elizabetano agora confrontado com perigos externos reais e constantes da época de Alba e Farnese recorreu a uma extensão ilegal do sistema tradicional de milícias inglês a fim de reunir forças adequadas para as suas expedições ultramarinas Tecnicamente pre parados apenas para servir como uma guarda nacional cerca de 12 mil homens receberam treinamento especial voltado principalmente para a defesa dentro do país Os restantes geralmente arrebanhados entre a população vadia foram empregados para a ação no estrangeiro O de senvolvimento de tal sistema não produziu um exército permanente ou profissional mas proporcionou um fluxo regular de tropas em escala 19 J E Neale The Elizabethan House ofCummons Londres 1949 pp 140 1478 302 20 C Oman A History of the Art of War in tke Sixteenth Century Londres 1937 pp 28890 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 129 modesta para os numerosos compromissos externos do governo de Eli zabeth Os governadores dos condados adquiriram maior importância como autoridades encarregadas do recrutamento gradualmente foi introduzida a organização em regimentos e as armas de fogo venceram o apego nativo ao arco e flecha21 De modo geral mesmo os contingen tes das milícias eram combinados com soldados mercenários escoceses ou alemães Nenhum dos exércitos despachados para o continente che garia a ultrapassar 20 mil homens metade do tamanho da última expedição henriquina e a maioria era consideravelmente menor O de sempenho desses corpos nos Países Baixos e na Normandia foi geral mente marcado pelo desperdício O seu custo era desproporcional mente alto em relação a sua utilidade o que desencorajou qualquer progresso semelhante na mesma direção22 A inferioridade militar do absolutismo inglês continuou a impedir qualquer expectativa expansio nista no continente Dessa maneira a política externa de Elizabeth ficou largamente limitada a finalidades negativas prevenção da recon quista espanhola das Províncias Unidas prevenção da ocupação fran cesa dos Países Baixos prevenção da vitória da Liga na França Neste caso tais objetivos limitados seriam alcançados ainda que o papel dos exércitos ingleses no resultado final dos intrincados conflitos europeus do período tenha sido bastante secundário A vitória decisiva da Ingla terra na guerra com a Espanha teve origem em outro fator a derrota da Armada mas não pôde ser capitalizada em terra A ausência de qual quer estratégia continental positiva resultou nas perdulárias e inúteis diversões militares da última década do século A longa guerra com a Espanha depois de 1588 que custou à monarquia inglesa tão caro em riqueza nacional terminou sem aquisições de território ou tesouro Apesar disso o absolutismo inglês alcançaria uma importante conquista militar neste período Incapaz de enfrentar frontalmente as grandes monarquias continentais o expansionismo elizabetano atirou os seus maiores exércitos contra a pobre e primitiva sociedade de clãs da Irlanda A ilha celta permanecera como a mais arcaica formação social do Ocidente até o final do século XVI talvez mesmo em todo o 21 C G Cruickshank Elizabeth Armv Oxford 1966 pp 123 1920 24 10 513 285 22 Cruickshank sugeriu que a ausência de um soberano adulto do sexo mascu lino que comandasse pessoalmente as tropas em campanha durante aproximadamente Mísenta anos após Henrique VIII pode ter contribuído para o nãosurgimento de uni xército regular nesta época Army Royal Oxford 1969 p 189 130 PERRY ANDERSON continente O último dos filhos da Europa23 na expressão de Bacon ficara fora do mundo romano não fora tocada pelas conquistas germâ nicas tinha sido visitada mas não subjugada pelas invasões vikings Cristianizada no século VI o seu sistema rudimentar de clãs conse guira sobreviver de forma peculiar à conversão religiosa sein a cen tralização política a Igreja preferiu adaptarse à ordem social local nesse distante posto avançado da fé deixando de lado a autoridade episcopal em troca da organização monástica comunitária Chefes e nobres hereditários exerciam o domínio sobre camponeses livres agru pados em unidades de parentesco ampliado e a eles vinculados por laços comendatários A economia pastoril dominava o campo Não ha via uma monarquia centralizada e as cidades eram inexistentes em bora uma cultura letrada tenha florescido do século VII ao IX o nadir da Idade das Trevas nos outros países nas comunidades mo násticas Sucessivos ataques escandinavos durante os séculos IX e X desintegrariam tanto a vida cultural como o localismo clânico na ilha Os enclaves nórdicos criaram as primeiras cidades da Irlanda sob a pressão estrangeira acabaria por surgir no interior uma autoridade monárquica central com o objetivo de expulsar o perigo viking no iní cio do século XI A precária alta realeza da Irlanda logo viria a se fragmentar outra vez em federações antagônicas incapazes de resistir a uma invasão mais avançada No final do século XII a monarquia an gevina na Inglaterra adquiriu do papado o senhorio da Irlanda e forças de barões anglonormandos atravessaram o mar para subjugar e colonizar a ilha O feudalismo inglês com a sua pesada cavalaria e fortes castelos estabeleceu gradualmente o controle formal sobre a maior parte do país com a exceção do extremo norte nos cem anos seguintes Mas a densidade do povoamento anglonormando nunca foi suficiente para estabilizar o seu sucesso militar No último período me 23 A Irlanda é o último exfiliis Europae a ser resgatada à desolação e ao de serto em muitas partes para o povoamento e o cultivo e aos costumes selvagens e bár baros para a humanidade e a civilidade The Works of Francis Bacon Londres 1971 vol IV p 280 Para outros exemplos destes mesmos sentimentos coloniais ver pp 4428 Bacon como todos os seus contemporâneos estava agudamente consciente das vantagens materiais da missão civilizadora da Inglaterra na Irlanda Isto direi con fiantemente se Deus der a este reino a sua bênção de paz e justiça nenhum usurário pode estar tão certo de dobrar o seu capital no espaço de dezessete anos a juros sobre juros como este reino na mesma medida de tempo de dobrar as suas reservas de ri queza e de população Não é fácil nem mesmo em todo o continente achar tal confluência de bens como se a m3o do homem andasse a par com a mão da natureza pp 280 444 Notese a clareza da concepção que vê a Irlanda como uma saída alterna tiva à expansão para o continente LINHAGENS DO ESTADO ABSOLU TIS IA 131 dieval enquanto as energias da monarquia e da nobreza inglesas esta vam totalmente envolvidas na França a sociedade clânica da Irlanda recuperou terreno rapidamente O perímetro do domínio inglês restrin giuse ao pequeno Pale em redor de Dublin fora do qual ficavam as difusas liberdades dos magnatas territoriais de origem anglonor manda agora cada vez mais gaelicizados cercados por sua vez pelas renascentes chefias tribais celtas cujas zonas de controle abarcavam de novo a maior parte da ilha24 O advento de um Estado Tudor renovado no início da época moderna trouxe consigo os primeiros esforços importantes no sentido da reafirmação e fortalecimento da suserania inglesa sobre a Irlanda em um século Henrique VII enviou o seu auxiliar Poynings para que brar em 149496 a autonomia do Parlamento dos barões locais No entanto o potentado da dinastia Kildare estreitamente vinculado por laços de casamento às principais famílias gaélicas continuou a dispor de um poder feudal predominante revestido da dignidade de Lord Representante Com Henrique VIII a administração de Cromwell ini ciou a introdução de instrumentos burocráticos de governo mais regu lares no Pale em 1534 Kildare foi deposto e foi esmagada uma rebe lião liderada por seu filho Em 1540 Henrique VIII depois de rom per com o papado que havia originalmente investido a monarquia in glesa na suserania da Irlanda como um feudo de Roma assumiu o novo título de rei da Irlanda Na prática porém a maior parte da ilha ficou fora de qualquer controle Tudor dominada seja pelos chefes Velhos Irlandeses seja pelos senhores Velhos Ingleses a eles rela cionados tanto uns como outros adeptos da fé católica ao passo que a Inglaterra experimentava a Reforma Até o período de Elizabeth havia apenas dois condados fora do Pale Depois disso viriam a eclodir vio lentas rebeliões em 155966 Ulster em 156972 Munster e em 157983Leinster e Munster à medida que a monarquia tentava impor sua autoridade e instalar colônias de Novos Ingleses para apaziguar o país Finalmente em 1595 durante a longa guerra entre Inglaterra e Espanha o chefe do clã Ulster ONeill desencadearia uma insurreição em toda a ilha contra a opressão dos Tudor apelando ao auxílio do Papa e da Espanha Decidido a conseguir uma resolução definitiva para o problema irlandês o regime de Elizabeth mobilizou os maiores exércitos de seu reinado para a reocupação da ilha e a anglicização do 24 Para a situação no início do século XVI ver M MacCurtain Tudor and Stuart Ireland Dublin 1972 pp 15 18 3941 132 PERRY ANDERSON país de uma vez por todas As táticas de guerrilha adotadas pelos ir landeses defrontaramse com impiedosas medidas de extermínio25 A guerra durou nove anos antes que toda a resistência fosse pulverizada pelo comandante inglês Mountjoy Quando morreu Elizabeth a Ir landa achavase milítarmente anexada No entanto essa notável operação iria permanecer como um triunfo solitário das armas Tudor em terra vencida com os maiores esforços contra um inimigo préfeudal ela não poderia se repetir em outras arenas O avanço estratégico decisivo para o caráter geral da classe fundiária inglega e seu Estado não estaria aí e sim na lenta reo rientação no sentido do aparelhamento e da expansão navais durante o século XVI Por volta de 1500 a tradicional divisão vigente no Medi terrâneo entre a galera longa movida a remo e construída para a guerra e a sua congênere redonda movida a vento e utilizada para o comércio começava a ser superada nos mares setentrionais com a construção de grandes navios de guerra equipados com armas de fo go26 No novo tipo de vasos de guerra as velas tomaram o lugar dos remos e os soldados começaram a ser substituídos pelos canhões Ao construir a primeira doca seca inglesa em Portsmouth em 1496 Hen rique VII mandou fazer dois desses navios Entretanto seria Henrique VIII o responsável pela expansão sistemática e sem precedentes do poder naval inglês2 nos primeiros cinco anos depois de sua ascensão ao trono ele acrescentou 24 navios de guerra à marinha através da compra ou da construção no país quadruplicando o seu volume Ao final de seu reinado a monarquia inglesa possuía 53 navios e um Gabi nete da Marinha criado em 1546 As imensas carracas desta fase com os seus mal equilibrados castelos de gávea e a sua recéminstalada arti lharia constituíam ainda artefatos pouco aprimorados As batalhas navais continuava a ser essencialmente disputas corpo a corpo entre tropas sobre a água e na última guerra de Henrique VIII as galeras 25 Para alguns traços das táticas usadas para a submissão dos irlandeses ver C Falls Elizabeths Irísh Wars Londres 1950 pp 3269 341 343 345 A fúria in glesa na Irlanda foi provavelmente mais letal que a fúria espanhola nos Países Baixos com efeito não há indícios de que tenha sido restringida por considerações como aque las que por exemplo impediram a Espanha de destruir os diques da Holanda uma medida considerada genocida pelo governo de Filipe II Ver a comparação em Parker The Army ofFlanders and the Spanish Road pp 1345 26 Para este processo ver Cipolla Guns and Saih in the Early Phase of Euro pean Expansion pp 7881 M Lewis The Spanish Armada Londres 1960 pp 6180 que atribui à Inglaterra uma prioridade talvez duvidosa 27 G J Marcus A Naval History of England I The Formative Ceníuries Londres 1961 p 30 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 133 francesas detiveram ainda a iniciativa ao atacar o Solent Durante o reinado de Eduardo VI construiuse em Chatham uma nova doca mas houve por outro lado uma nítida diminuição do poder marítimo Tu dor nas décadas seguintes quando o desenho naval dos portugueses e espanhóis passou à frente dos ingleses com a invenção do galeão muito mais rápido Mas de 1579 em diante a gestão de Hawkins no Gabi nete da Marinha presenciaria uma rápida expansão e modernização da frota real os galeões de baixo calado foram equipados com canhões de longo alcance o que os transformava em plataformas de tiro com grande capacidade de manobra projetadas para afundar os equipa mentos estrangeiros a grande distância no curso de uma batalha A eclosão de uma guerra marítima com a Espanha longamente ensaiada pela pirataria inglesa na costa setentrional da América do Sul viria demonstrar a superioridade técnica desses novos navios Em 1588 Elizabeth I era senhora da marinha mais poderosa que a Europa ja mais conhecera A Armada foi vencida pelas meiacolubrinas ingle sas e perdeuse em meio à tempestade e à névoa Asseguravase assim a segurança insular ao tempo em que se lançavam as bases para um futuro imperial O novo domínio dos mares conquistado pela Inglaterra teve re sultados decisivos em dois campos A substituição da guerra terrestre pela guerra naval tendia a especializar e a segregar a prática da violência armada deslocandoa prudentemente para os mares Os navios que a transportavam constituíamse evidentemente prisões flutuantes onde o trabalho forçado era explorado com particular crueldade Ao mesmo tempo o interesse da classe dominante pelas atividades navais condu ziria proeminentemente a uma orientação comercial Com efeito en quanto o exército sempre fora uma instituição com uma única finali dade a marinha por sua própria natureza era um instrumento de dupla utilidade relacionado não apenas à guerra como também ao comércio29 Ao longo do século XVI a frota inglesa era ainda consti tuída basicamente por navios mercantes convertidos aos objetivos béli cos pela adição de canhões mas ainda passíveis de retomarem as fim 28 Garrett Mattingly The Defeat of the Spanish Armada Londres 1959 p 175 29 Na verdade por volta do século XVIII quando o almirantado represen tava o departamento mais dispendioso do governo a marinha não apenas contava com a City para pressionar pela aprovação de seu orçamento tinha que barganhar com ela sobre que interesses mercantis ou estratégicos deveriam ter precedência na determina ção das rotas de navegação de suas esquadras Ver Daniel Baugh Naval Âdministra tion in lhe Age of Walpole Princeton 1965 p 19 134 PERRY ANDERSON ções comerciais Naturalmente o Estado incentivava tal adaptabili dade dando preferência aos navios cujo desenho as servisse Desse modo a marinha não apenas se tornaria o instrumento adulto do aparelho repressivo do Estado inglês mas também o seu artefato am bidestro com profundas conseqüências para a configuração da classe dirigente30 pois os custos da construção e da manutenção navais em bora fossem mais altos por unidade31 eram muito inferiores ao preço de um exército permanente Nas últimas décadas do reinado de Eliza beth a proporção das despesas era de um para três E todavia os seus rendimentos mirante os próximos séculos seriam muito superiores o império colonial britânico seria o somatório de todos eles A grande colheita desta vocação naval ainda viria a ocorrer Mas foi em grande medida por sua causa que já no século XVI a classe fundiária pôde desenvolverse não em antagonismo mas em aliança com o capital mercantil dos portos e dos condados Em 1603 com a extinção da linhagem Tudor e o advento da di nastia Stuart criouse uma situação política fundamentalmente nova para a monarquia pois a subida ao trono de Jaime I permitiu que a Escócia pela primeira vez ficasse ligada à Inglaterra numa união pes soal Duas organizações políticas radicalmente distintas combinavam se agora sob a mesma casa reinante O impacto da Escócia sobre o padrão de desenvolvimento inglês mostrouse inicialmente muito tê nue devido precisamente à distância histórica entre as duas formações sociais mas a longo prazo viria a se revelar de grande importância para os destinos do absolutismo inglês A Escócia tal como a Irlanda permanecera como uma fortaleza celta fora dos limites do controle ro mano O seu variegado mapa clânico que recebera na Idade das Tre 30 Hintze comentou laconicamente talvez com simplismo excessivo Segura em sua insularidade a Inglaterra não necessitava de um exército regular ou pelo menos de um exército com as dimensões similares aos do continente mas apenas de uma marinha que poderia servir os interesses do comércio e os objetivos da guerra em razão disso não desenvolveu um absolutismo E acrescenta de forma característica O poderio terrestre produz uma organização que domina o próprio corpo do Estado e lhe dá uma forma militar O poder marítimo é meramente um braço armado que se arremessa contra o mundo à sua frente não se pode usálo contra um exército inter no Gesammelte Abhandlungen I pp 59 72 O próprio Hintze um ardente defen sor do imperialismo naval guilhermino antes da Primeira Guerra Mundial tinha suas razões para dar atenção à história marítima inglesa 31 No século seguinte os custos per capita eram duas vezes maiores no mar que em terra além disso evidentemente a marinha necessitava de uma indústria de suprimentos e de manutenção muito mais avançada Ver Clark The Seventeenth Cen tury p 119 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 135 vás um misto de imigrações irlandesas germânicas e escandinavas en contravase sujeito a uma monarquia centralizada cuja jurisdição al cançava todo o país com a exceção do noroeste durante o século XI Na Alta Idade Média o choque do feudalismo anglonormando refor mularia também aí a configuração do sistema político e social indígena mas enquanto na Irlanda este tomou a forma de uma precária con quista militar que em breve seria varrida com o refluxo celta na Escó cia foi a própria dinastia nativa dos Canmore que importou colonos e instituições inglesas promovendo casamentos mistos da nobreza meri dional e imitando as estruturas do reino mais avançado do outro lado áoBorder com os seus castelos sheriffs camareiros e magistrados O resultado foi uma feudalização muito mais profunda e completa da sociedade escocesa A normandização autoimposta eliminou as an tigas divisões étnicas do país e criou uma nova linha de demarcação social e lingüística entre as Lowlands onde a língua inglesa se fixou ao lado dos domínios e dos feudos e as Highlands onde o gaélico conti nuou a ser o idioma dos atrasados clãs de pastores Ao contrário do que ocorria na Irlanda o setor puramente celta foi reduzido a uma mino ria confinada ao noroeste Durante o último período medieval não logrou consolidar uma disciplina real sobre os seus domínios Uma contaminação recíproca entre os padrões políticos das Lowlands e das Highlands conduziu à semisenhorialização nas chefias dos clãs celtas nas montanhas e inoculou características clânicas na organização feu dal escocesa das planícies32 Além disso as constantes guerras de fron teira com a Inglaterra golpeavam repetidas vezes o Estado monárquico Nas condições de anarquia dos séculos XIV e XV em meio às inces santes turbulências na fronteira os barões apropriaramse do controle hereditário sobre os xerifados e estabeleceram jurisdições privadas os magnatas extorquiram regalias provinciais à monarquia e uns e outros patrocinaram redes de parentesco vassalizadas A dinastia Stuart que se sucederia atormentada por menorida des instáveis e governos de regência mostrouse incapaz de realizar qualquer avanço contra a desordem endêmica do país nos 150 anos seguintes enquanto a Escócia tornavase cada vez mais amarrada à aliança diplomática com a França como escudo contra as pressões da Inglaterra Em meados do século XVI a dominação direta da França 32 Para esse processo ver T C Smout A History ofthe Scottish Peopte Fj60 1830 Londres 1969 pp 447 que inclui uma análise social aguda da Escócia anterior à Reforma 136 PHRRY ANDERSON através da regência Guise suscitou uma xenofobia aristocrática e po pular que constituiu a grande força motriz da Reforma local as cida des os lairds e os nobres se rebelaram contra a administração francesa cujas vias de comunicação com o continente foram cortadas pela mari nha inglesa em 1560 o que asseguraria o sucesso do protestantismo escocês Mas a transformação religiosa que daí em diante iria separar a Escócia da Irlanda pouco contribuiu para alterar a configuração política do país As Highlands gaélicas única região a manterse fiel ao catolicismo viriam a tornarse ainda mais selvagens e turbulentas com o passar do século Enquanto as mansões rurais envidraçadas passa vam a ser a nova marca da paisagem Tudor no sul castelos maciça mente fortificados continuavam a ser construídos na região do Border e nas Lowlands As disputas armadas de caráter privado foram freqüen tes durante todo o reinado Somente a partir de 1587 com a ascensão de Jaime VI ao poder é que a monarquia escocesa melhoraria seria mente a sua posição Jaime VI com o recurso a uma mistura de conci liação e coerção incrementou um poderoso Conselho Privado favore ceu os grandes magnatas ao mesmo tempo que os jogava uns contra os outros criou novos pariatos introduziu gradualmente novos bispos na Igreja fez crescer a representação dos pequenos barões e burgos no Parlamento local subordinou este último através da criação de fecha das comissões de trabalho os Lords ofArticles e pacificou a fronteira Na virada do século XVII a Escócia era aparentemente um país re construído No entanto a sua estrutura sóciopolítica ainda apresen tava um notável contraste em relação à da Inglaterra contemporânea A população era escassa cerca de 750 mil pessoas as cidades eram pequenas pouco numerosas e dominadas por pastores As maiores casas da nobreza compreendiam potentados rurais de um tipo desco nhecido na Inglaterra Hamilton Huntly Argyll Angus com o controle de vastas regiões do país plenos poderes reinantes escoltas militares e clientelas de dependentes Os domínios senhoriais eram abundantes entre os barões menores os juizes de paz prudentemente enviados pelo rei haviam sido neutralizados A numerosa classe dos pequenos proprietários de terras estava habituada a pequenas querelas armadas O campesinato oprimido livre da servidão desde o século XIV nunca ensaiara uma rebelião importante Economicamente pobre e culturalmente isolada a sociedade escocesa era ainda marcada por 33 G Donaldson Scotland James V to James VII Edímburgo 1971 pp 21528 28490 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 137 um caráter acentuadamente feudal o Estado escocês era pouco mais forte que a monarquia inglesa após Bosworth A dinastia Stuart transplantada para a Inglaterra perseguiu no entanto os ideais da realeza absolutista que eram então regra geral de todas as cortes da Europa ocidental Jaime I habituado a um país onde os magnatas territoriais faziam a sua própria lei e o Parlamento pouco valia defrontavase agora com um reino onde o militarismo da alta nobreza tinha sido vergado mas não conseguiu enxergar que por outro lado o Parlamento representava o lugar central do poder da nobreza Assim o caráter muito mais avançado da sociedade inglesa fez com que por um certo tempo esta lhe parecesse ilusoriamente mais fácil de ser governada O regime jacobiano com o seu desprezo e incompreen são perante o Parlamento não realizou qualquer tentativa para aplacar o temperamento crescentemente oposicionista da pequena nobreza in glesa As extravagâncias da corte combinaramse a uma política ex terna imobilista que procurava a reaproximação com a Espanha am bos esses aspectos gozariam de igual impopularidade junto à maioria da classe fundiária As doutrinas do direito divino da monarquia riva lizavam com o ritualismo religioso áaHigh Church Usavase a justiça prerrogativa contra o direito comum a venda de monopólios e cargos contra a recusa do Parlamento a novos impostos Mal recebida na In glaterra a orientação do governo monárquico não encontrou porém uma resistência similar na Escócia e na Irlanda onde as aristocracias locais foram persuadidas por uma política de clientela astutamente exercida pelo rei e a colonização em massa do Ulster a partir das Low lands assegurou o predomínio do protestantismo Mas por volta do final do reinado a posição política da monarquia Stuart achavase pe rigosamente isolada no seu reino central Com efeito a estrutura social subjacente na Inglaterra começava a escapar de seu controle à medida que se perseguiam objetivos institucionais que estavam sendo atingidos com êxito em quase todo o continente No século seguinte à dissolução dos mosteiros enquanto a popu lação da Inglaterra duplicava a nobreza e a pequena nobreza tripli cavam em volume e a sua parcela da riqueza nacional crescia mais que proporcionalmente com um salto particularmente notável no início do século XVII quando a elevação das rendas venceu o aumento dos pre ços beneficiando toda a classe fundiária o rendimento líquido da pe quena nobreza deve ter quadruplicado nos cem anos posteriores a Do rei Jaime I da Inglaterra 138 PERRY ANDERSON 153034 O sistema tripartido de senhores de terra rendeiros e trabalha dores rurais futuro arquétipo da área rural inglesa já se prenun ciava nas zonas mais ricas da Inglaterra rural Ao mesmo tempo veri ficavase em Londres uma concentração sem precedentes de comércio e manufaturas tornandoa sete ou oito vezes maior no reinado de Carlos I do que o fora no de Henrique VIII a capital mais influente da Europa na década de 1630 No final do século a Inglaterra já constituíra algo semelhante a um mercado interno unificado35 O capitalismo agrário e mercantil registrara portanto progressos muito mais rápidos que em qualquer outra nação à exceção dos Países Baixos e importantes filei ras da própria aristocracia inglesa o pariato e a pequena nobreza conseguiram adaptarse a ele com sucesso Desse modo o refortaleci mento político de um Estado feudal deixara pois de corresponder ao caráter social da maior parte da classe em que teria inevitavelmente de se basear Tampouco estava presente um perigo social proveniente das camadas inferiores que compelisse ao estreitamento dos vínculos entre a monarquia e a pequena nobreza Como não havia necessidade de manter um grande exército os níveis fiscais na Inglaterra conservaram se notavelmente baixos talvez um terço ou um quarto de seu equiva lente na França no início do século XVII36 Poucos desses encargos re caíam sobre as massas rurais ao passo que os pobres das paróquias recebiam uma caridade preventiva dos fundos públicos Daí resultaria uma relativa paz social no campo em seguida à inquietação rural de meados do século XVI Além disso o campesinato não apenas estava sujeito a uma carga fiscal mais suave que em outros países como tam bém apresentava uma diferenciação interna muito maior Por sua vez com o impulso adicional do comércio esta estratificação tornou pos sível e proveitoso o quase abandono da cultura dominial em troca do arrendamento da terra por parte da aristocracia e da pequena nobreza O resultado foi a consolidação de um estrato kulak relativamente prós pero yeomanry e de um grande número de trabalhadores rurais assa lariados lado a lado com as massas camponesas Dessa forma a situa 34 L Stone The Causes ofthe English Revolutíon 15291642 Londres 1972 pp 725 131 Esta obra admirável na sua sobriedade e em seu poder de síntese é de longe a melhor visão geral da época 35 E J Hobsbawm The Crisis of the Seventeenth Century em Aston Org Oísíí in EurQpe 15601660 Londres 1965 pp 479 36 Christopher Hill The Century ofRevolution Londres 1961 p 51 Em 1628 Luís XIII extraiu da Normandia rendimentos equivalentes à receita fiscal total de Carlos l na Inglaterra L Stone em Discussions of TrevorRopers General Crisis Past and Present n 18 novembro de 1960 p 32 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 139 cão nas aldeias era relativamente segura para a nobreza que já não tinha a temer a insurreição rural e portanto não tinha interesse numa poderosa máquina repressiva à disposição do Estado Ao mesmo tem po o modesto nível fiscal que tanto contribuíra para esta calma agrária impediu o aparecimento de uma grande burocracia erigida para gerir o sistema tributário Uma vez que a aristocracia assumira as funções administrativas locais desde a Idade Média a monarquia viuse sempre privada de qualquer funcionalismo regional A orientação Stuart no sentido de um absolutismo desenvolvido contou assim com impor tantes trunfos já em seus primeiros passos Em 1625 Carlos I de forma consciente embora inepta tomou a si a tarefa de construir um absolutismo mais avançado com os mate riais pouco promissores de que dispunha As auras divergentes de su cessivas administrações da corte não ajudavam a monarquia a combi nação peculiar de corrupção jacobiana e austeridade carlista de Bu ckimgham a Laud provou ser extremamente desagradável a grande parte da pequena nobreza37 Os caprichos da política externa contri buíram também para enfraquecêla no início do reinado o fracasso de uma intervenção inglesa na Guerra dos Trinta Anos combinouse a uma guerra desnecessária e malsucedida com a França confusa inspi ração de Buckimgham Uma vez terminado esse episódio porém a orientação geral da política dinástica tornouse relativamente coerente O Parlamento que denunciara a conduta na guerra e o ministro res ponsável por ela foi dissolvido indefinidamente Na década de poder pessoal que se seguiu a monarquia tendia de novo a aproximarse da alta nobreza ao revigorar a hierarquia formal de nascimento e posição no seio da aristocracia através da concessão de privilégios ao pariato agora que o risco do militarismo senhorial na Inglaterra estava afas tado Nas cidades os monopólios e os benefícios seriam reservados ao estrato superior dos mercadores urbanos que constituía tradicional mente o patriciado municipal O grosso da pequena nobreza e os novos interesses mercantis foram excluídos do concerto monárquico As mes 37 Esses aspectos do governo Stuart fornecem o colorido mas não os contornos do crescente conflito político do início do século XVII São evocados com grande brilho por TrevorRoper em sua penetrante análise desses anos Historical Essays Londres 1952 pp 13045 Entretanto é um erro pensar que os problemas da monarquia Stuart pudessem ser solucionados apenas com o recurso a uma superior habilidade e compe tência política como ele sugere Na prática nenhum erro Stuart foi tão fatal como a imprevidente venda de terras feitas pelos seus predecessores Tudor Não seria a falta de habilidades pessoais mas de bases institucionais o que impediria a consolidação da absolutismo inglês 140 PERRY ANDERSON mas preocupações estavam evidentes na reorganização episcopal da Igreja efetuada durante o reinado de Carlos I que restaurou a disci plina e a moral do clero às custas de uma ampliação da distância religiosa entre os ministros locais e os cavaleiros Contudo os êxitos do absolutismo Stuart confinaramse largamente ao aparelho ideológico clerical do Estado o qual tanto sob Jaime I como sob Carlos I passou a inculcar o direito divino e o ritual hierático Mas o aparelho econô micoburocráüco permaneceu sujeito a agudas restrições fiscais O Par lamento controlava o direito de taxação propriamente dito e desde os primeiros anos do reinado de Jaime I resistia a todos os esforços no sentido de ignorálo Na Escócia a dinastia podia aumentar os impos tos à sua livre vontade especialmente nas cidades pois não existia ne nhuma forte tradição de negociação das concessões nos Estados Na Irlanda a administração draconiana de Strafford recuperou terras e rendimentos da pequena nobreza aventureira que para lá se mudara depois da conquista elizabetana e fez da ilha pela primeira vez uma fonte lucrativa de recursos para a Estado38 Mas na própria Inglaterra onde se situava o problema central tais remédios não eram exeqüíveis Tolhido pela anterior prodigalidade Tudor com os domínios reais Car los I recorreu a todos os expedientes feudais e neofeudais disponíveis em busca da receita fiscal capaz de sustentar uma máquina de Estado ampliada fora do controle do Parlamento renovação da tutela multas para as obrigações dos cavaleiros direito de fornecimento multiplica ção dos monopólios inflação das honrarias Foi particularmente nesses dias que a venda de cargos tornouse pela primeira vez uma impor tante fonte de rendimentos para a monarquia 30 a 40 por cento e ao mesmo tempo a remuneração dos detentores de cargos uma parte relevante das despesas do Estado39 Todos esses artifícios revelaramse inadequados a sua profusão serviu apenas para antagonizar a classe fundiária a maior parte da qual aferravase a uma aversão puritana tanto à nova corte como à nova Igreja Sintomaticamente o último gesto de Carlos I para a criação de uma base fiscal de importância foi uma tentativa para estender o único imposto tradicional de defesa exis tente na Inglaterra o pagamento do imposto naval pelos portos para a 38 O significado do regime de Strafford em Dublin e a reação por este provo cada no seio da classe senhorial dos Novos Ingleses são discutidos por T Ranger Strafford ín Ireland a Revaluation em Aston Org Crísis in Europe 15601660 pp 27193 39 G Aylmer The Kings Servants The Civil Service of Charles I Londres 1961 p248 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 141 manutenção da Marinha No espaço de poucos anos este seria sabo tado pela recusa dos juizes de paz locais em cobrálo A escolha deste sistema e a sua sina revelavam en creux os ele mentos que impediam uma versão inglesa de Versalhes O absolutismo continental fora construído sobre os seus exércitos Por uma estranha ironia o absolutismo insular só podia existir com os seus parcos ren dimentos conquanto não tivesse que erguer um exército Com efeito apenas o Parlamento poderia propiciar os recursos para tanto e uma vez convocado em breve começaria a desmantelar a autoridade Stuart Todavia pelas mesmas razões históricas a nascente revolta política contra a monarquia na Inglaterra não dispunha de instrumentos ime diatos para uma insurreição armada a oposição da pequena nobreza não contava sequer com um foco para o assalto constitucional ao domí nio pessoal do monarca pois o Parlamento não era convocado O im passe entre os dois antagonistas foi rompido na Escócia Em 1638 o clericalismo carlista que já ameaçara a nobreza escocesa com a reto mada das terras e dos dízimos eclesiásticos secularizados acabou por provocar uma sublevação religiosa com a imposição da liturgia angli canizada Os Estados escoceses uniramse na sua rejeição e a Conven ção que assinaram contra ela adquiriu imediata força material pois na Escócia a aristocracia e a pequena nobreza não tinham sido desmili tarizadas As estruturas sociais arcaicas do reino Stuart originário pre servavam os vínculos guerreiros de uma organização política da última fase medieval A Convenção conseguiu armar um formidável exército em poucos meses para enfrentar Carlos I Os grandes nobres e os pro prietários de terra chamaram às armas a sua clientela os burgos forne ceram fundos para a causa os veteranos mercenários da Guerra dos Trinta Anos preencheram os postos de oficiais O comando desse exér cito sustentado pelo pariato foi confiado a um general que servira na Suécia40 A monarquia inglesa não poderia reunir uma força militar comparável Assim havia uma lógica subjacente ao fato de a invasão escocesa de 1640 ter finalmente posto fim ao domínio pessoal de Carlos I O absolutismo inglês pagou o tributo de sua falta de armas O seu desvio das normas da última forma de Estado feudal apenas serviu 40 Os coronéis do exército eram nobres os capitães lairds e os soldados rasos robustos e jovens lavradores que trabalhavam como seus arrendatários Donalàson Scotland James Vto James VII pp 1002 Alexander Leslie comandante do exército da Convenção era um exgovernador Vasa de Stralsund e de FrankfurtonOder com ele e com seus colegas a experiência européia da Guerra dos Trinta Anos veio para a Ingla terra 142 PERRY ANDERSON como confirmação negativa da necessidade delas O Parlamento con vocado in extremis pelo rei para ocuparse da derrota militar frente aos escoceses procedeu à supressão de todas as vantagens obtidas pela mo narquia Stuart proclamando o retorno a um quadro constitucional mais primitivo Um ano depois a rebelião católica irrompia na Ir landa41 O segundo elo mais frágil da paz Stuart se quebrara A luta pelo controle do exército inglês forçado a se reunir para esmagar a insurreição irlandesa lançou o Parlamento e o rei na Guerra Civil O absolutismo inglês foi levado à crise pelo particularismo aristocrático e pelo desespero dos clãs em sua periferia forças que historicamente se situavam atrás dele Mas foi derrubado no centro da nação por uma pequena nobreza mercantilizada um grande centro urbano capita lista um artesanato e uma pequena burguesia rural plebeus forças que o empurravam para frente Antes que pudesse chegar à sua matu ridade o absolutismo inglês foi interrompido por uma revolução bur guesa 41 Ê possível embora não seja certo que Carlos I tenha deflagrado inadverti damente o levante Old frish no Ulster com as suas negociações clandestinas com os notáveis Velhos Ingleses na Irlanda em 1641 ver A Clarke The Old English in Ireland Londres 1966 pp 2279 Itália O Estado absolutista nasceu na era da Renascença Muitas das suas técnicas essenciais tanto administrativas como políticas foram criadas pela primeira vez na Itália Colocase assim a questão por que razão a própria Itália nunca construiu o seu absolutismo nacional É evidente que as instituições medievais do papado e do império com seu caráter universalista atuaram no sentido de frustrar o desenvolvimento de uma monarquia territorial ortodoxa na Itália e na Alemanha Na Itália o papado resistiu a toda tentativa de unificação territorial da península Todavia por si só este fator não bastaria para bloquear tal resultado pois o papado foi notoriamente frágil durante longos perío dos Um rei francês poderoso como Filipe o Belo não teve dificuldades para lidar com ele manu militari com meios simples e óbvios se qüestro em Anagni cativeiro em Avignon Foi a ausência na Itália de um poder com tal ascendência que permitiu ao papado as suas mano bras políticas É preciso buscar noutra parte o determinante funda mental que possibilitou a formação de um absolutismo nacional Este reside precisamente no desenvolvimento prematuro do capital mercan til nas cidades do norte da Itália que impediu o surgimento de um poderoso Estado feudal reorganizado no nível nacional A riqueza e a vitalidade das comunas da Toscana e da Lombardia derrotaram o es forço mais importante de construção de uma monarquia feudal unifi cada que poderia ter fornecido a base para um posterior absolutismo a tentativa realizada por Frederico II no século XIII para expandir o seu Estado baronial relativamente avançado a partir de sua base no sul 144 PERRY ANDERSON O imperador dispunha de muitos recursos para seus projetos O sul da Itália era a única parte da Europa ocidental onde uma hie rarquia feudal piramidal implantada pelos normandos combinarase com um forte legado bizantino de autocracia imperial O Remo da Sicilia caíra em abandono e confusão nos últimos anos do domínio nor mando quando os barões locais se apropriaram dos poderes provin ciais e das propriedades reais Frederico II marcou a sua chegada ao sul da Itália com a promulgação das leis de Cápua em 1220 que rea firmaram um formidável controle centralizado do Regno Os bailios do rei substituíram os prefeitos nas cidades Os castelos mais importantes foram retomados dos nobres a herança de feudos ficou sujeita à super visão do monarca foram canceladas as doações de terras dominiais e restaurados os tributos feudais para a manutenção da frota1 As leis de Cápua foram impostas na ponta da espada e complementadas uma década depois pelas Constituições de Melfi 1231 que codificaram o sistema jurídico e administrativo do reino suprimindo os últimos vestí gios de autonomia urbana e restringido severamente os senhorios cle ricais Nobres prelados e cidades foram subordinados à monarquia graças a um apurado sistema burocrático que compreendia um corpo de magistrados reais com função de comissários e de juizes nas provín cias que trabalhavam com documentos escritos e estavam sujeitos a um esquema de rodízio a fim de prevenir que se envolvessem com os interesses senhoriais locais2 Multiplicaramse os castelos para intimi dar as cidades e os senhores rebeldes A população muçulmana da Si cília ocidental que resistia nas montanhas tornandose um tormento constante para o Estado normando foi submetida e transferida para a Apúlia daí em diante a colônia árabe de Lucerna passou a fornecer a Frederico uma excelente força de tropas profissionais islâmicas para as suas campanhas na Itália No aspecto econômico não era menos ra cional a organização do Regno Abolidos os pedágios internos foi ins talado um severo serviço de alfândegas externas O controle pelo Es tado do comércio de grãos com o exterior permitiu grandes lucros para os domínios reais os maiores produtores de trigo da Sicilia Os impor tantes monopólios de mercadorias e os crescentes impostos regulares sobre a terra rendiam receitas fiscais consideráveis criouse até mesmo uma moeda de ouro com valor nominal A solidez e a prosperidade 1 G Masson Frederick IIofHohenstaufen Londres 1957 pp 7782 2 Para este corpo de funcionários judiciais ver E Kantorowicz Frederick the Second Londres 1931 pp 27279 3 Masson Frederick flof Hohenstaufen pp 16570 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 145 desta fortaleza Hohenstaufen no sul permitiram a Frederico II fazer a temível aposta da criação de um Estado imperial unitário que abran gesse toda a península Reclamando a herança de toda a Itália e contando com o apoio dos senhores feudais dispersos pelo norte à sua causa o imperador tomou a Marca e invadiu a Lombardia Por um breve período as suas ambições pareceram estar prestes a se realizarem em 123940 Frede rico estruturou um esquema para a futura administração da Itália como um Estado monárquico unificado dividido em províncias gover nadas por vigáriosgerais e capitãesgerais inspirados nos magistrados sicilianos e nomeados pelo imperador dentre a sua corte da Apúlia4 Os ventos mutantes da guerra impediram a estabilização desta estrutura mas a sua lógica e coerência eram inquestionáveis Até mesmo os reve ses finais e a morte do imperador não destruíram a causa gibelina Seu filho Manfredo ilegítimo e sem título imperial em breve estaria pronto a restaurar o predomínio estratégico do poder Hohenstaufen na penín sula depois de dispersar os guelfos florentinos em Montaperti alguns anos depois os seus exércitos ameaçaram capturar o Supremo Pontí fice em Orvieto numa ação que prefigurava o futuro coup de main francês em Anagni Os êxitos temporários da dinastia iriam porém revelarse ilusórios nas prolongadas guerras entre guelfos e gibelinos a linha Hohenstaufen foi finalmente derrotada e destruída O papado foi o vencedor formal desta disputa tendo orquestrado ruidosamente a luta contra o Anticristo imperial e a sua descendên cia Mas o papel diplomático e ideológico de sucessivos papas Ale xandre III Inocêncio IV e Urbano IV no ataque ao poder Hohens taufen na Itália nunca correspondeu à verdadeira força política e mili tar do papado Durante longo tempo faltaram à Santa Sé até os mo destos recursos administrativos de um principado medieval só no sé culo XII após a Questão das Investiduras com o imperador da Ale manha o papado adquiriu um aparato de corte normal comparável ao dos Estados Seculares da época com a constituição da Cúria Ro mana5 Daí em diante o poder papal seguiu caminhos curiosamente divergentes ao longo de sua trajetória dual eclesiástica e secular No seio da própria Igreja universal o papado construiu gradualmente uma autoridade autocrática e centralista cujas prerrogativas ultrapassavam em muito as de qualquer monarquia temporal da época A plenitude 4 Kantorowicz Frederick the Second pp 48791 5 G Barraclough The Mediaeval Papacy Londres 1958 pp 93100 146 PERRY ANDERSON de poder concedida ao papa estava totalmente isenta das restrições feudais costumeiras estados ou conselhos Os benefícios clericais de toda a cristandade passaram a ser controlados por ele as transações legais concentraramse nas suas cortes foi lançado com êxito um im posto geral sobre os rendimentos do clero6 Ao mesmo tempo porém a posição do papado como Estado italiano continuava a ser extrema mente frágil e ineficaz Esforços enormes foram dispendidos por suces sivos papas na tentativa de consolidar e expandir o Patrimônio de Pedro na Itália central Mas o papado medieval não conseguiu sequer estabelecer um controle sólido e confiável sobre a modesta região colo cada sob sua suserania nominal As pequenas cidades situadas nas co linas da Umbria e da Marca opuseramse vigorosamente à intervenção papal em seu governo enquanto a própria cidade de Roma foi muitas vezes desleal ou causava problemas7 Nenhuma burocracia viável foi criada para administrar o Estado pontifício cujas condições internas por conseguinte foram por longos períodos anárquicas e desorgani zadas As receitas fiscais do Patrimônio significavam apenas 10 por cento dos rendimentos totais do papado o custo de sua manutenção e proteção era provavelmente na maior parte do tempo muito superior ao rendimento que produzia O serviço militar a que estavam sujeitos os súditos papais as cidades e os feudatários dos territórios pontifí cios era também inadequado para suprir as necessidades de defesa existentes8 Financeira e militarmente o Estado pontifício como prin cipado italiano era uma unidade deficitária Confrontado isolada mente com o Regno do sul não tinha nenhuma chance A principal razão do fracasso Hohenstaufen em sua tentativa de unificar a península residia em outro fator na decisiva superioridade econômica e social do norte da Itália que possuía o dobro da popula ção do sul e a esmagadora maioria dos centros urbanos de produção comercial e manufatureira O Reino da Sicília tinha apenas três cida des com mais de 20 mil habitantes o norte tinha mais de vinte9 As exportações de cereais que constituíam a principal fonte de riqueza no sul eram na realidade um sintonia indireto da supremacia comercial do norte Com efeito as prósperas comunas da Lombardia Ligúria e 6 G Barraclough The MediaevalPapacy pp 1206 7 D Waley The Papal State in lhe Thirteenth Century Londres 1961 pp 6890 descreve a natureza e os principais acontecimentos relativos a tal atitude recalci trante das cidades 8 Waley The Papal State in Thirteenth Century pp 273 275 2956 9 G Procacci Storia degliltaliani I Bari 1969 p 34 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 147 Toscana importavam o cereal devido à sua avançada divisão de traba lho e concentração demográfica ao passo que os excedentes do Mezzo giorno eram pelo contrário indício de um fraco povoamento do cam po Os recursos das comunas eram portanto muito superiores aos que o imperador podia mobilizar na Itália embora aquelas se encontras sem com freqüência divididas e a sua própria existência como cidades repúblicas autônomas fosse ameaçada pela perspectiva de umamonar quia peninsular unitária A primeira tentativa Hohenstaufen de impor a soberania imperial na Itália quando Frederico II atravessou os Alpes vindo da Alemanha no século XII foi celebremente recha çada pela Liga Lombarda com a grande vitória de suas milícias ur banas sobre o exército de Barbaroxa em Legnago em 1160 Com a transferência da base dinástica do poder Hohenstaufen da Alemanha para a Sicília e a implantação da monarquia centralizada de Frederico II em solo do sul da Itália o risco de absorção real e senhorial cresceu para as comunas proporcionalmente Uma vez mais foram basica mente as cidades lombardas chefiadas por Milão que frustraram o avanço do imperador rumo ao norte com o apoio de seus aliados feu dais da Sabóia e do Vêneto Depois de sua morte a tentativa de recupe ração das posições gibelinas por Manfredo foi enfrentada com mais eficácia na Toscana Os banqueiros guelfos de Florença no exílio de pois de Montaperti foram os artífices financeiros da ruína final da causa Hohenstaufen Foram os seus maciços empréstimos 200 mil livres tournois ao todo que tornaram possível a conquista angevina do Regno10 enquanto por outro lado nas batalhas de Benevento e Togliacozzo foi a cavalaria florentina que contribuiu para dar aos franceses a sua margem de vitória Na longa luta contra o espectro de uma monarquia italiana unificada o papado forneceu regularmente os anátemas os fundos e a maioria das tropas foram fornecidos até o momento final pelas comunas As cidades da Lombardia e da Tos cana revelaramse suficientemente fortes para sufocar qualquer intuito de reagrupamento territorial de base feudalrural Por outro lado elas eram intrinsecamente incapazes de edificar por si próprias a unificação da península o capital mercantil não tinha naquela altura absoluta mente nenhuma possibilidade de dominar uma formação social de di mensões nacionais Assim embora a Liga Lombarda pudesse defender 10 E JordanZes Origines ae h DominationAngévineenltaíie Paris 1909 II pp 547 556 A fim de levantar as somas necessárias ao seu aliado francês junto aos banqueiros da Toscana e de Roma a Igreja teve que penhorar grande parte de suas propriedades fixas em Roma a título de garantia 148 PERRY ANDERSON vitoriosamente o norte contra as invasões imperiais não tinha capaci dade própria para conquistar o sul feudal os cavaleiros franceses ti veram que lançar o ataque ao Reino da Sicília Logicamente não fo ram as cidades da Toscana ou da Lombardia que herdaram o sul mas os nobres angevinos xs instrumentos necessários da vitória urbana que se apropriaram de seus frutos Logo a seguir a revolta das Vés peras sicilianas contra o domínio francês pôs fim à integridade do pró prio Regno Os territórios baroniais do sul se dividiram entre os preten dentes angevinos e aragoneses em luta num confuso conflito cujo re sultado final foi eliminar qualquer perspectiva de dominação da Itália a partir do sul O papado agora um simples hóspede da França foi deportado para Avignon abandonando totalmente a península por meio século As cidades do norte e do centro viramse assim em liberdade para promover o seu próprio e fascinante desenvolvimento políticocultural O eclipse simultâneo do império e do papado fez da Itália o elo mais fraco do feudalismo ocidental de meados do século XIV à metade do século XVI as cidades entre os Alpes e o Tibre viveram a revolucio nária experiência histórica a que os próprios homens chamaram Re nascença o renascimento da civilização da Antigüidade clássica após a escuridão intermediária da Idade Média A inversão radical de tempo implícita nestas definições em contradição com toda a crono logia evolucionista ou religiosa forneceu desde então os fundamentos das estruturas categoriais da historiografia européia a época que a posteridade veria como o principal marco divisório do passado traçou ela própria os limites que a separavam de seus predecessores e demar cou os seus antecedentes remotos dos imediatos uma realização cul tural sem precedentes Não houve um sentido de distância real a sepa rar a Idade Média da Antigüidade ela sempre viu a era clássica sim plesmente como a sua própria extensão natural no passado em direção a um mundo précristão ainda não redimido A Renascença descobriu a si própria com uma nova e intensa consciência de ruptura e de per da11 A Antigüidade habitava o passado remoto separada por toda a 11 A Idade Média deixou insepulta a Antigüidade e alternativamente reani mou e exorcizou o seu cadáver A Renascença chorou à sua sepultura e tentou ressus citarlhe a alma E num momento faüdicamente auspicioso conseguiu seu intento E Panofsky Renaissance and Renascenses in Western Art Londres 1970 p 113 a grande obra histórica sobre o renascimento da Antigüidade digna de seu tema De modo geral a moderna literatura sobre a Renascença italiana é curiosamente limitada e árida como se a própria magnitude de suas criações tivesse o efeito de desalentar os historia dores que dela se aproximassem A desproporção entre o tema e os estudos a ele dedi LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 149 obscuridade do médium aevum que se interpunha entre elas e no en tanto estava muito à frente do rude barbarismo preponderante nos sé culos subseqüentes O apelo apaixonado de Petrarca no limiar da nova época anunciava a vocação do futuro Este sono de esquecimento não durará para sempre uma vez dissipada a escuridão poderão os nossos netos retornar à pura radiação do passado A aguda percepção de uma longa ruptura de um hiato após a queda de Roma combinouse à firme determinação de atingir uma vez mais o paradigma exemplar dos antigos A recriação do mundo clássico seria a soberba inovação e o ideal do mundo moderno A Renascença italiana foi assim testemunha da revitalização e imitação deliberadas de uma civilização por outra em toda a amplitude de sua vida cívica e cultural sem exemplos ou continuação na história O direito e as magistraturas romanas já ti nham ressurgido nas comunas medievais da última fase a propriedade quiritária deixara por toda parte a sua chancela nas relações econômi cas das cidades italianas enquanto os cônsules latinos substituíam as autoridades episcopais no seu governo Em breve os tribunos da plebe serviam de modelo para os Capitães do Povo das cidades italianas O advento da Renascença propriamente dita que trouxe consigo as novas ciências da arqueologia epigrafia e crítica dos textos a fim de iluminar o passado clássico ampliou subitamente a lembrança e a emulação da Antigüidade numa escala enorme e explosiva Arquitetura pintura escultura poesia história filosofia teoria política e militar todas ansiavam por recuperar a liberdade e a beleza das obras antes destina das ao esquecimento As igrejas de Alberti derivam de seus estudos sobre Vitrúvio Mantegna buscou emulação em Apeles Piero di Co simo pintou painéis inspirados em Ovídio as odes de Petrarca basea vamse em Horácio Guicciardini aprendeu em Tácito a sua ironia o espiritualismo de Ficino descendia de Plotino os discursos de Maquia cados é particularmente evidente no legado de Marx e Engels sempre relativamente indi ferentes às artes visuais ou à música nem um nem outro viuse criativamente atraído pelos problemas apresentados ao materialismo histórico pela Renascença como Fenô meno total O livro de Panofsky tem um enfoque puramente estético toda a história econômica social e política do período passa à sua margem No entanto a sua qualidade e método estabelecem o manancial apropriado para o trabalho que ainda resta a ser feito nesse campo Acima de tudo Panofsky considerou com mais seriedade que qualquer outro historiador a relação retrospectiva entre a Renascença e a Antigüidade através da qual a própria época se concebia em sua obra o mundo clássico é um pólo ativo de comparação real e não meramente uma nomenclatura de aroma vago Na ausência dessa dimensão a história política e econômica da Renascença italiana está ainda por ser escrita com similar profundidade 150 PERRY ANDERSON vel eram um comentário sobre Tito Lívio os seus diálogos sobre a guerra uma invocação de Vegécio A civilização renascentista que se ergueu na Itália resplandescia com tal vitalidade que ainda hoje parece uma verdadeira réplica da Antigüidade a única Naturalmente o fato de ambas se assentarem em sistemas de cidadesEstados fornecia uma base objetiva para a su gestiva ilusão de encarnações correspondentes Os paralelismos entre o florescimento urbano da Antigüidade clássica e a Renascença italiana são bastante notáveis Ambas foram o produto original de cidadesre públicas compostas por cidadãos com consciência municipal Ambas foram no início dominadas por nobres e em ambas a maioria da cida dania primitiva possuía propriedades fundiárias nos territórios rurais que cercavam a cidade12 Ambas evidentemente eram intensos cen tros de trocas de mercadorias O mesmo mar oferecia a ambas as prin cipais rotas de comércio13 Ambas exigiam serviço militar de seus ci dadãos cavalaria ou infantaria segundo o grau de sua propriedade Até mesmo algumas das singularidades políticas da polis grega tinham os seus equivalentes próximos nas comunas italianas a altíssima pro porção de cidadãos que detinham temporariamente cargos no Estado ou o uso do sorteio para a escolha dos magistrados11 Todas essas ca racterísticas comuns pareciam formar uma espécie de sobreposição parcial de uma forma histórica na outra Na realidade evidentemente toda a natureza sócioeconômica das cidadesEstados antigas e da Re nascença era profundamente diversa As cidades medievais eram como vimos enclaves urbanos dentro do modo de produção feudal estrutu 12 DWaley The Italian CityRepublics Londres 1969 p 24 reconhece que na maior parte das cidades do final do século XIII cerca de dois terços das famílias pos suíam terras Ê preciso notar que esse padrão era especificamente italiano nem as ci dades alemãs nem as flamengas tinham na época um número semelhante de proprietá rios rurais Da mesma forma em Flandres e na Renânia não havia um equivalente real do contado controlado pelas cidades da Lombardia e da Toscana As cidades da Europa setentrional tiveram sempre um caráter mais exclusivamente urbano Para uma boa aná lise do fracasso das cidades flamengas em anexar a área rural que as circundava ver D Nicholas Towns and Countryside Social and Economic Tensions in Fourteenth Century Flanders Comparative Studies in Society and History X n 4 1968 pp 45885 13 Em comparação os custos mais favoráveis eram ainda de longe os do trans porte marítimo No século XV era possível enviar cargas de Gênova a Southampton por pouco mais de um quinto do que custava o seu transporte por tenra numa distância tão curta como a de Gênova a Asti J Bernard Trade and Finance in tke Middle Ages 900 1500 Londres 1971 p 46 14 Waley The Italian CityRepublics pp 634 836 1079 estima que talvez um terço dos cidadãos de uma típica comuna italiana tinham ocupado cargos num ano ou noutro LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 151 ralmente possibilitadas pelo parcelamento da soberania elas existiam essencialmente numa tensão dinâmica com o campo enquanto as ci dades antigas constituíam uma continuação simbólica dele As cidades italianas começaram como centros mercantis dominadas pela pequena nobreza e povoadas por semicamponeses que muitas vezes combina vam as ocupações rurais e urbanas a lavoura e os ofícios Mas elas rapidamente assumiram uma configuração inteiramente distinta de suas antecessoras clássicas Mercadores banqueiros artesãos e juristas viriam a formar a elite patrícia das cidadesrepúblicas ao passo que a grande maioria dos cidadãos passou a formarse de artífices em con traste polar com as cidades antigas onde a classe dominante sempre foi a aristocracia proprietária de terras e o grosso da população era consti tuído de pequenos lavradores ou plebeus despossuídos enquanto os escravos representavam a numerosa classe subalterna de produtores diretos totalmente excluída da cidadania15 As cidades medievais não apenas não faziam uso evidentemente do trabalho escravo na indús tria doméstica e na agricultura16 como também baniram a servidão em seu território O conjunto da orientação econômica das duas civiliza ções urbanas era portanto antípoda tfm seus aspectos principais Ainda que ambas representassem avançados núcleos de intercâmbio de mercadorias as cidades italianas eram fundamentalmente centros de produção urbana cuja organização interna assentava nas corporações de ofícios ao passo que as cidades antigas sempre foram primaria mente centros de consumo articuladas em associações clânicas ou ter ritoriais17 Nas cidades da Renascença a divisão do trabalho e o nível técnico das indústrias manufatureiras têxteis ou metalúrgicas eram em conseqüência muito mais desenvolvidos que os da Antigüi dade tal como os transportes marítimos O capital mercantil e ban 15 A primeira análise sistemática dessas antíteses sociais devese a Weber Eco nomy and Society III pp 134043 Apesar da compreensão oscilante que Weber tem das relações entre cidade e campo nas repúblicas italianas toda a parte intitulada A democracia antiga e a medieval que conclui a obra continua a ser até hoje a melhor B mais original análise da questão Se houve avanços subseqüentes em termos de pesqulia estes não foram compensados por idênticos benefícios na síntese 16 As colônias ultramarinas de Gênova e Veneza situadas no Mediterrlneo oriental empregavam o trabalho escravo nas plantações de açúcar de Creta e nas minai de alumínio de Fócea nessas cidades também os servidores domésticos eram multai vezes escravos na sua maioria mulheres em contraste com os da Antigüidade Neite sentido houve mesmo um certo recrudescimento da escravidão mas sem que esta adqui risse importância econômica no plano interno na Itália Para a natureza e os limitei de tal fenômeno ver C Verlinden The Beginnings of Modem Colonization Ithaca 1970 pp 2632 17 Wéber Economy and Society IIIpp 134347 152 PERRY ANDERSON cario sempre imperfeito no mundo clássico devido à ausência das ne cessárias instituições financeiras que assegurassem a sua sólida acumu lação expandiase agora de forma livre e vigorosa com o advento das sociedades por ações das letras de câmbio e da escritura contábil de duas colunas o artifício da dívida pública desconhecido nas cidades antigas aumentou tanto os rendimentos do Estado como as alterna tivas de investimento para os investidores urbanos Acima de tudo as bases completamente diversas dos modos de produção escravo e feudal evidenciavamse nas relações diametral mente opostas que se estabeleciam entre a cidade e o campo As cida des do mundo clássico formavam uma unidade cívica e econômica com o seu meio rural Os municipia compreendiam indistintamente o centro urbano e a sua periferia agrária e a cidadania jurídica era extensiva a ambos O trabalho escravo ligava os dois sistemas produtivos e não havia uma organização econômica especificamente urbana a cidade funcionava essencialmente como um simples aglomerado de consumi dores da produção agrária e da renda fundiária As cidades italianas em contraste achavamse nitidamente separadas de sua zona rural o contado rural era em geral um território subjugado cujos habitantes não tinham direito de cidadania na organização urbana Desse nome aliás derivouse a designação vulgar e desdenhosa de contadini para os camponeses As comunas combatiam habitualmente certas instituições centrais do feudalismo agrário a vassalagem era com freqüência ex pressamente banida nas cidades e a servidão foi abolida na área rural por elas controlada Ao mesmo tempo as cidades italianas exploravam de forma sistemática o seu contado em benefício do lucro e da produ ção urbana colhiam aí os cereais e os recrutas fixavam preços e im punham um meticuloso regime de culturas à população agrícola subju gada18 Esta política antirural era uma parte essencial das cidades repúblicas da Renascença cujo dirigismo econômico era totalmente estranho às suas antepassadas da Antigüidade O meio de expansão fundamental da cidade clássica era a guerra A pilhagem de riquezas terra e trabalho eram as metas econômicas perseguidas no modo de produção escravista e a estrutura interna das cidades gregas e romanas derivava em grande parte daí a vocação militar dos hoplitas ou assidui tinha importância central em sua constituição municipal A agressão armada era uma constante nas comunas italianas mas nunca chegou a 18 Waley Theltalian CityRepublics pp 935 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 153 adquirir uma primazia semelhante O Estado escapava de uma tal defi nição militar porque a competição comercial e manufatureira am parada e reforçada pela coerção extraeconômica as despesas de pro teção da épocal9 tornarase por seus próprios méritos um objetivo econômico da comunidade mercados e empréstimos eram mais impor tantes que prisioneiros a pilhagem tinha menos valor que o açambar camento As cidades da Renascença italiana como o demonstraria o seu destino final eram complexos organismos comerciais e industriais cuja capacidade beligerante em terra ou no mar iria se revelar relati vamente limitada Estes grandes contrastes sócioeconômicos tiveram inevitavel mente os seus reflexos no florescimento cultural e político em que as cidadesEstados da Antigüidade e da Renascença pareciam convergir mais estreitamente A infraestrutura artesanal livre das cidades renas centistas onde o trabalho manual nas corporações nunca foi contami nado com a degradação social servil produziu uma civilização na qual as artes plásticas e visuais como a pintura a escultura e a arquitetura ocupavam uma posição absolutamente predominante Os escultores e pintores organizavamse por sua vez em corporações artesanais e goza vam de início da posição social média conferida a atividades análogas acabariam por alcançar honra e prestígio incomparavelmente maiores que os seus predecessores gregos ou romanos As nove musas do mundo clássico omitiam significativamente as artes visuais20 A imaginação sensível foi o domínio supremo da Renascença produzindo uma ri queza e profusão artísticas que ultrapassaram a própria Antigüidade e disso orgulhosamente se aperceberam os próprios contemporâneos Por outro lado as realizações teóricas e intelectuais da cultura renascen tista na Itália foram muito mais restritas A literatura a filosofia e a ciência segundo a ordem descendente de suas contribuições não produziram um conjunto de obras comparável ao da civilização antiga A base escrava do mundo clássico que divorciou o trabalho manual do 19 A noção de renda de proteção foi desenvolvida por F C Lane Venise and History Baltimore 1966 pp 373428 para pôr em relevo as conseqüências econômicas da fusão característica entre guerra e negócios nos primeiros empreendimentos comer ciais e coloniais das cidadesEstados italianas tanto as incursões agressivas e a pira taria como a guarda defensiva e as escoltas eram inseparáveis das práticas comerciais da época 20 Só a música e a poesia eram admitidas em sua companhia que por outro lado incluía principalmente o que hoje se chama de ciências e humanidades Ver a notável análise sobre as modificações na ordem e na definição das artes em P O Krís Icller Renaissance Thought Nova Iorque 1965 pp 16889 154 PERRY ANDERSON cerebral de forma muito mais radical do que jamais o conseguiu a civi lização medieva produziu uma classe proprietária ociosa muito diversa do patriciado affairé das cidadesEstados da Itália As palavras e os números em sua abstração eram mais íntimos do universo clássico as imagens tiveram precedência em seu renascimento O humanismo literário e filosófico com as suas preocupações seculares e acadêmicas sempre esteve confinado a uma elite intelectual frágil e restrita durante a Renascença italiana21 a ciência faria breve e isolada aparição so mente em seu epílogo A vitalidade estética das cidades tinha raízes cívicas muito mais profundas e sobreviveria a ambas Galileu expiraria na solidão e no silêncio enquanto Bernini deslumbrava a capital e a corte que o haviam excluído Mas a evolução política das cidades renascentistas divergiria ain da mais de seus protótipos antigos do que a sua configuração cultural Até certo ponto havia acentuadas analogias formais entre as duas Depois da expulsão do poder episcopal uma préhistória que pode ser comparada à derrubada da realeza na Antigüidade as cidades italianas foram dominadas pela aristocracia fundiária Os regimes con sulares daí resultantes em breve dariam origem a um regime oligár quico com um sistema externo áepodestà que depois seria assaltado pelas guildas plebéias mais prósperas criadoras de suas próprias con trainstituições cívicas enquanto isso o estrato superior dos mestres deofício notários e mercadores que liderou a luta dopopolo aliouse à nobreza urbana para formar um único bloco municipal de poder e privilégio reprimindo e manipulando a massa de artesãos sob seu do mínio A forma e a composição exatas de tais lutas variou de cidade para cidade e a evolução política dos diferentes centros urbanos podia abreviar ou dilatar a sua seqüência Em Veneza o patriciado mercantil cedo colheu os frutos de uma rebelião de artesãos contra a velha aristo cracia e pôs freio a qualquer evolução política posterior cerrando rigi damente as suas fileiras aserrata de 1296 suspendeu a possibilidade de constituição de umpopolo Por outro lado em Florença os jornaleiros 21 Os dois alemães que trouxeram a imprensa para a Itália em 1465 e a leva ram a Roma dois anos depois foram à falência em 1471 simplesmente porque não havia mercado para as suas edições dos clássicos latinos Mesmo quando o Renascimento estava em seu apogeu só uma minoria muito restrita entendia e acalentava os seus ideais R Weiss The Renaissance Discovery of Amiquity Oxford 1969 pp 2056 Gramsci naturalmente foi intensamente tocado por esta falha no passado cultural de seu país mas como Marx e Engels antes dele tinha pouca sensibilidade plástica e tendia a ver a Renascença básica ou meramente como um iluminismo espiritual de dimensões rarefeitas LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 155 esfaimados um miserável proletariado que se situava abaixo da classe dos artesãos revoltaramse por sua vez contra um governo neoconser vador dirigido pelas corporações em 1378 sendo a rebelião esmagada Mas na maioria das cidades surgiram repúblicas urbanas com um sis tema formal de voto ampliado que eram efetivamente governadas por grupos restritos de banqueiros proprietários de manufaturas merca dores e senhores cujo denominador comum já não era o nascimento mas a riqueza a posse de capital fixo ou móvel A seqüência verificada na Itália de bispados para consulados e depodesteria parapopoo com os sistemas constitucionais mistos que daí resultaram faz sem dú vida lembrar em certos aspectos a trajetória da monarquia para a aristocracia e da oligarquia para a democracia ou tribunato com seus complexos resultados que teve lugar no mundo clássico Mas havia uma diferença nítida e central entre as duas ordens de sucessão Na Antigüidade as tiranias em geral sobrevieram no período que separou as constituições aristocráticas das populares como sistemas de transi ção destinados a ampliar as bases da organização política elas foram um prelúdio à ampliação dos direitos e das liberdades da agora Na Renascença ao contrário as tiranias encerravam o desfile das formas públicas as signorie representaram o último episódio das cidadesrepú blicas e significaram a sua derrocada final num autoritarismo aristo crático O destino final das cidadesEstados da Antigüidade e da Renas cença revela talvez melhor do que outro elemento em sua história o grande abismo que as separava As repúblicas municipais da época clássica podiam dar origem a impérios universais sem que ocorresse nenhuma ruptura básica em sua continuidade social pois o expansio nismo territorial era o prolongamento natural de sua vocação agrária e militar O campo foi sempre o eixo incontestável de sua existência por isso elas se achavam em princípio perfeitamente adaptadas a anexa ções de terra cada vez mais extensas e o seu crescimento econômico assentava na condução bemsucedida da guerra que sempre fora um objetivo cívico central A conquista militar revelouse assim uma via relativamente direta das repúblicas para os Estados imperiais e estes últimos podiam ser vistos como um ponto de chegada predestinado As cidades da Renascença por sua vez sempre foram centros urbanos divergentes do campo as leis de seu movimento estavam centradas na própria economia urbana cuja relação com a área rural circundante caracterizavase por um antagonismo estrutural O advento das signo rie ditaduras principescas com um vago passado agrário não con duziria assim a nenhum ciclo posterior de crescimento político ou eco 156 PERRY ANDERSON nômico relevante Em vez disso estas marcariam o fim da prosperi dade das cidades italianas no seu conjunto Com efeito as repúblicas renascentistas não tinham qualquer chance de realizar uma carreira de unificação e conquista imperiais precisamente devido a sua quintes sência urbana jamais poderiam congregar e comandar o conjunto das formações sociais feudais ainda dominadas nitidamente pelo campo Elas não dispunham de alternativa para a expansão política em escala peninsular Além disso as suas forças militares eram radicalmente ina dequadas para tal tarefa O surgimento da signoria como forma insti tucional foi um presságio de seu impasse futuro A Itália setentrional e central constituía uma exceção na econo mia européia da última fase da Idade Média a região mais avançada e próspera do Ocidente como vimos O apogeu das comunas no século XIII foi uma época de vigorosa explosão urbana e crescimento demo gráfico Essa situação de liderança logo propiciou à Itália uma posição peculiar no subseqüente desenvolvimento econômico do continente Como todos os outros países da Europa Ocidental ela foi assolada pelo despovoamento e pela depressão do século XVI o refluxo comercial e as falências dos bancos reduziram a produção manufatureira e prova velmente estimularam o investimento na construção de edifícios des viando o capital para os gastos suntuários e os domínios reais A traje tória da economia italiana no século XV é mais obscura22 A queda drástica na produção de tecidos de lã era agora compensada por uma mudança para a produção de seda embora seja difícil avaliar a exten são dos efeitos compensatórios Um novo aumento na população e pro dução deve ter permitido níveis gerais de atividade econômica ainda in 22 A opinião acadêmica achase nitidamente dividida quanto à questão do ba lanço geral da economia italiana do século XV Lopez com o apoio de Miskimin de fendeu que a Renascença foi essencialmente uma época de depressão entre outros índi ces o capital do banco dos Mediei na Florença do século XV era apenas a metade do dos Peruzzi cem anos atrás ao passo que os tributos alfandegários pagos a Gênova no início do século XVI eram ainda inferiores aos da última década do século XIII Cípolla pôs em dúvida a validade de efetuar deduções gerais a partir dessas evidências e sugeriu que a produção per capita deve ter crescido na Itália a par da divisão internacional do traba lho Para este debate ver R Lopez Hard Times and Investment in Culture republi cado em A Molho Org Social and Economic Foundations ofthe Renaissance Nova Iorque 1969 pp 95116 R Lopez e H Miskimin The Economic Depression of the Renaissance Economic History Review XIV n 3 abril de 1962 pp 40826 Cipolla Economic Depression of the Renaissance Economic History Review XVI n 3 abril de 1964 pp 51924 com réplicas de Lopez e Miskimin pp 5259 Uma análise mais recente que abarca a última parte do século XV e o início do século XVI apresenta um balanço de modo geral otimista do comércio das iinanças e das manufaturas P Laven Renaissance Italy 14641534 Londres 1966 pp 35108 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 157 feriores ao ápice atingido no século XIII No entanto parece provável que as cidadesEstados tenham superado a crise geral do feudalismo eu ropeu em melhores condições que qualquer outra região do Ocidente A flexibilidade geral do setor urbano e o caráter relativamente moderno do setor agrário pelo menos na Lombardia permitiram talvez à Itália setentrional recuperar o impulso econômico quase meio século antes que o restante da Europa ocidental por volta de 1400 Agora porém os mais rápidos ganhos demográficos pareciam se localizar no campo e não nas cidades e o investimento de capitais tendia a orientarse cada vez mais para a terra23 A qualidade das manufaturas tornouse gra dualmente mais sofisticada voltandose para as mercadorias de elite as indústrias da seda e do vidro situavamse entre os setores mais dinâ micos da produção urbana dessa época Além disso durante os cem anos que se seguiram a reanimação da demanda européia manteve as exportações italianas de bens de luxo em altos níveis Contudo certos limites iriam imporse à prosperidade comercial e industrial das ci dades Com efeito a organização corporativa que distinguiu as cidades renascentistas das cidades clássicas levantou por sua vez restrições inerentes ao desenvolvimento da indústria capitalista na Itália As cor porações de ofícios impediam a separação completa entre os produtores diretos e os meios de produção condição prévia do modo de produção capitalista no seio da economia urbana elas se definiam por uma uni dade persistente entre o artesão e os seus instrumentos de trabalho que não podia romperse dentro deste quadro A indústria de tecidos de lã em alguns centros avançados como Florença chegou a atingir em certa medida uma organização protofabril baseada no trabalho assalariado propriamente dito mas a norma geral nas manufaturas têxteis sempre foi o sistema de produção doméstica sob o controle do capital mercan til Num setor após o outro os artesãos rigidamente agrupados em guildas regulamentavam os seus métodos e ritmos de trabalho segundo as tradições e costumes das corporações o que representava um formi dável obstáculo ao progresso da técnica e da exploração do trabalho Veneza desenvolveu a última e mais competitiva indústria de tecidos de lã da Itália no século XVI quando tomou os mercados de Florença e Milão talvez o mais notável êxito comercial da época Todavia mesmo em Veneza as corporações de ofícios viriam a se revelar uma 23 C M Cipolla The Trends in Italian Economic History in the Later Middle Ages Economic History Review II n 21949 pp 1814 158 PERRY ANDERSON barreira insuperável ao progresso técnico também aí podese dizer que todo o conjunto da legislação corporativa tinha como finalidade impedir qualquer tipo de inovação24 Assim o capital manufatureiro propriamente dito operava num espaço restrito com pouca possibili dade de reprodução ampliada a concorrência das indústrias estrangei ras mais livres e localizadas em áreas rurais com menores custos de produção acabaria por leválo à ruína O capital mercantil sobreviveu por mais tempo pois o comércio não estava sujeito a tais restrições mas também esse viria a pagar o tributo da relativa inércia técnica quando o predomínio marítimo deslocouse da navegação mediterrânea para a atlântica com o advento de formas de transporte naval mais rá pidas e baratas desenvolvidas pelos holandeses e ingleses25 O capital financeiro manteve os seus níveis de lucratividade durante um tempo maior por estar mais dissociado dos processos materiais de produção Contudo a sua dependência parasitária das cortes e exércitos interna cionais o tornaria particularmente vulnerável às suas vicissitudes As carreiras de Florença Veneza e Gênova vítimas dos tecidos ingleses ou franceses da navegação portuguesa ou holandesa e das falências bancárias da Espanha ilustrariam bem estas sucessivas contingên cias A liderança econômica das cidades renascentistas da Itália reve louse precária Ao mesmo tempo a estabilização política das oligar quias republicanas que em geral emergiram das lutas entre os patricia dos e as guildas mostrouse muitas vezes difícil o ressentimento social da massa de artesãos e de trabalhadores pobres das cidades continuou a existir sob a superfície da vida municipal pronto a explodir a cada nova crise sempre que o círculo estabelecido dos poderosos se divi disse em facções26 Finalmente a grande expansão na escala e na in 24 C M Cipolla The Decline of Italy Economic History Review V n 2 1952 p 183 As corporações da indústria de tecidos para exportação mantiveram um alto nível de qualidade e resistiram às reduções de salários as suas fazendas nunca foram modificadas para adaptarse às exigências da moda O resultado foi que os tecidos ita lianos caros e fora de moda acabaram por ficar fora de preço e foram retirados do mercado 25 F Lane Discussion Journal of Economic History XXIV dezembro de 1964 n 4 pp 4667 26 A multiplicação dos contatos e das rivalidades políticas entre as cidades de sempenhou também um importante papel no surgimento das signoríe nesta época To das as signoríe do norte da Itália todas sem exceção nasceram com a ajuda direta ou indireta de forças estranhas à cidade que seria palco do novo senhorio E Sestan Lê Origini delle Signorie Cittadine Un Problema Storico Esaurito Bolletino delVIslituto Storico Italiano per II Médio Evo n 73 1961 p 57 Para o exemplo de Florença ver abaixo LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 159 tensidade da guerra com o advento da artilharia de campanha e da infantaria profissional de lanceiros tornou cada vez mais ultrapassadas as modestas capacidades de defesa das pequenas cidadesEstados As repúblicas italianas passavam a ser tanto mais vulneráveis quanto mais se desenvolvia o volume e o poder de fogo dos exércitos europeus do início da época moderna A conjugação dessas tendências visível em diferentes graus e em diferentes fases nas cidades do norte e do centro preparou a cena para a ascensão das signoríe O pano de fundo social para a aparição desses senhorios adven tícios sobre as cidades encontravase na hinterlândia feudal das zonas rurais A rede de comunas nunca chegou a cobrir inteiramente o norte e o centro da península entre elas persistiram vastos interstícios rurais dominados por nobres senhoriais Estes haviam fornecido grande parte do apoio aristocrático para as campanhas Hohenstaufen contra as ci dades dos guelfos e a origem das signoríe pode ser traçada até os alia dos ou lugarestenentes de Frederico II na nobreza nas regiões menos urbanizadas de Saluzzo ou do Veneto27 Na Romagna a própria ex pansão das comunas em direção ao campo através da criação dos con tados subjugados conduziu à conquista de cidades pelos senhores ru rais cujos territórios tinham sido incorporados àquelas28 A maior parte dos primeiros tiranos do norte era composta de feudatários ou condot tierí que tomavam o poder por serem detentores ásipodesteria ou capi taneria das cidades em muitos casos gozaram de uma temporária sim patia popular por terem suprimido as odiadas oligarquias municipais ou restaurado a ordem pública apôs surtos endêmicos de violência fac cionária entre as famílias anteriormente dominantes Quase sempre trouxeram ou criaram um aparelho militar ampliado e melhor adap tado às modernas necessidades da guerra As conquistas que efetua vam nas províncias tendiam assim por sua própria natureza a aumen tar a importância do componente rural das cidadesEstados que eles agora governavam29 27 Jordan Lês Origines de Ia Domination Angévine I pp 6872 274 28 J Larner The Lordsofthe Romagna Londres 1965 pp 1417 76 29 O contraste entre as cidades italianas e alemãs é neste aspecto particular mente notável no século XV As cidades do Reno e da Suábia nunca possuíram como veremos a periferia rural que distinguia as suas equivalentes da Lombardia e da Tos cana Em contrapartida o seu território econômico compreendia um complexo mineiro prata cobre estanho zinco e ferro de um tipo quase desconhecido na Itália e deu origem a uma indústria metalúrgica muito mais dinâmica que qualquer outra ao sul dos Alpes Assim enquanto as cidades italianas foram pródigas em criatividade artística as cidades italianas desta época foram o cenário do maior leque de invenções técnicas da 160 PERRY ANDERSON Com efeito o vínculo que ligava as signorie à terra de onde ex traíam as tropas e os rendimentos mantevese sempre estreito como o testemunhou o seu padrão de expansão Originandose das alas mais atrasadas da Itália setentrional ao longo dos passos alpinos no oeste e do delta do Pó a oriente o poder dos príncipes deslocouse para o so fisticado centro da cena política com a tomada de Milão antiga alma comunal da Liga Lombarda pelos Visconti no final do século XIII Desde essa data Milão passou a representar o principado mais estável e poderoso entre as mais importantes cidades italianas dada a especí fica composição interna do Estado Não era um porto marítimo nem um grande centro manufatureiro sendo as suas indústrias prósperas e numerosas mas também pequenas e fragmentárias por outro lado possuía a zona agrícola mais avançada da Itália com as campinas irri gadas da planície lombarda que iria resistir à depressão agrária do século XIV provavelmente melhor que qualquer outra região na Eu ropa Milão a cidade de maior riqueza rural entre os centros urbanos importantes da Itália seria o trampolim natural para a primeira signo ria de significado internacional no norte Pelo final do século XIII a maior parte da Itália além dos Apeninos tinha caído em mãos de pe quenos senhores ou aventureiros militares A Toscana resistiu ainda por cem anos mas no curso do século XV sucumbiu também às tira nias iluminadas Florença o maior centro bancário e manufatureiro da península escorregou finalmente para o sereno controle hereditário dos Mediei embora não sem recidivas republicanas foram necessárias a proteção diplomática e militar dos Sforza senhores de Milão30 e mais tarde a pressão dos papas Mediei em Roma para assegurar a vitória final do regime dos príncipes em Florença Na própria Roma o go verno do papa Delia Rovere Júlio II no início do século XVI impeliu pela primeira vez a estrutura militar e política do Estado papal a uma forma próxima à dos poderes rivais do alémTibre Como era de prever Europa imprensa refinação de minério fundição material bélico fabricação de reló gios praticamente todos os principais progressos tecnológicos da época foram criados ou aperfeiçoados no ambiente das cidades alemãs 30 A brandura e prudência da dominação de Cosimo de Mediei em Florença exercida indiretamente através da manipulação eleitoral correspondia à relativa fra queza das bases sociais do domínio da família Lorenzo somente aceitou pacificamente o poder devido à ameaça da intervenção de Milão caso não o fizesse Quanto ao caráter original do primado dos Mediei em Florença e do apoio que recebiam de Milão ver N Rubinstein The Government of Florence under íke Mediei 14341494 Oxford 1966 pp 12835 161175 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 161 us duas repúblicas marítimas Gênova e Veneza resistiram sozinhas contra o surgimento de um novo tipo de corte e de príncipe salva guardadas pela ausência relativa de cinturões rurais ao seu redor Con tudo a serrota veneziana gerou uma minúscula facção hereditária de governantes que congelaram a partir daí o desenvolvimento político da cidade e revelaramse incapazes de integrar os territórios metropolita nos que a República conseguiu adquirir num Estado moderno ou uni tário31 O patriciado genovês mercenário e antisocial sobreviveu no esteio do imperialismo hispânico Em todas as outras partes as cida de srepúblicas desapareceram No aspecto cultural naturalmente a Renascença atingiu o seu apogeu neste último ato da civilização urbana da Itália antes do que viria a ser visto como as novas invasões bárbaras vindas do outro lado dos Alpes e do Mediterrâneo Os príncipes e clérigos patronos dessas novas e suntuosas cortes da península investiram prodiga mente nas letras e nas artes arquitetura escultura pintura filologia e história todas se beneficiaram na tepidez de estufa de um ambiente abertamente aristocrático de erudição e etiqueta No aspecto econô mico a rasteira estagnação da técnica e das empresas foi encoberta pela explosão no resto da Europa ocidental que continuou a aumentar a demanda de artigos italianos de luxo mesmo depois das manufaturas terem deixado de inovar e garantiu a ostensiva riqueza das signorie Mas no aspecto político o potencial desses Estados submonárquicos mostrouse muito limitado O mosaico das comunas no norte e no cen tro dera lugar a um número menor de tiranias urbanas consolidadas que se engajaram então em constantes guerras e intrigas recíprocas em busca do predomínio na Itália Mas nenhum dos cinco principais Es tados da península Milão Florença Veneza Roma e Nápoles tinha poder suficiente para vencer os outros ou mesmo para absorver os numerosos principados e cidades menores O retorno forçado de Gian Galeazzo Visconti aos seus limites na Lombardia sob a pressão combinada de seus adversários na virada do século XV marcou o fim da mais bemsucedida aspiração de supremacia A incessante rivali dade política e militar entre os Estados de força intermediária chegaria por fim a um precário equilíbrio com o Tratado de Lodi em 1451 Nesta altura as cidades renascentistas já tinham desenvolvido o instru mental básico da arte do governo e da agressão que haveriam de legar ao absolutismo europeu uma herança cuja enorme importância já 31 Ver os agudos comentários de Procacci Storia degli Italiani l pp 14447 162 PERRY ANDERSON observamos As imposições fiscais as dívidas consolidadas a venda de cargos as embaixadas no estrangeiro e as agências de espionagem tudo isso surgiu pela primeira vez nas cidadesEstados italianas numa espécie de ensaio em pequena escala do grande sistema político inter nacional e de seus conflitos que estavam por vir32 No entanto o regime das signorie não podia alterar os parâme tros básicos do impasse a que chegara o desenvolvimento político ita liano instaurado após a derrota do projeto de uma monarquia imperial unitária na época Hohenstaufen As comunas tinham sido estrutural mente incapazes de alcançar a unificação da península devido à pró pria precocidade de seu desenvolvimento comercialurbano As signo rie representaram uma reafirmação política do meio ambiente rural e senhorial em que sempre estiveram inseridas Mas uma verdadeira vi tória social do campo sobre as cidades nunca foi possível na Itália se tentrional ou central a força de atração das cidades era muito maior ao passo que a classe fundiária local nunca chegou a constituir uma nobreza feudal coesa com uma tradição ancestral ou esprit de corps Os senhores que usurparam o poder nas repúblicas eram muitas vezes mercenários arrivistas ou aventureiros enquanto outros eram altos banqueiros ou mercadores Em decorrência disso a soberania exercida pelas signorie sempre foi ilegítima no sentido mais profundo31 ba seavase num poder recentemente adquirido e na fraude pessoal sem o respaldo de qualquer sanção coletiva no direito ou na hierarquia aris tocrática Os novos principados extinguiram a vitalidade cívica das ci dadesrepublicanas mas não podiam confiar na lealdade ou disciplina de um setor rural dominado por senhores Assim a despeito de seu modernismo aparentemente ousado de meios e de técnicas a sua famosa introdução da pura política da força enquanto tal as signorie eram na realidade inerentemente incapazes de gerar a forma estatal carac terística do início da época moderna um absolutismo monárquico uni tário Da confusa experiência histórica desses senhorios nasceu a teoria política de Maquiavel Convencionalmente apresentada como a culmi nância da moderna Realpolitik prenunciando a prática das monar quias seculares da Europa absolutista era na verdade um programa 32 Ver Mattingly Renaissance Diplomacy pp 5860 33 Evidentemente o tipo e o grau dessa ilegitimidade variavam na Romanha os tiranos locais adquiriram gradualmente uma certa regularidade dinástica por volta do século XV Larner The tords ofthe Romagna pp 78154 LINHAGFNS DO ESTADO ABSOLUTISTA 163 idealizado para uma signoria de toda a Itália talvez meramente da Itália central nas vésperas da superação histórica dessa forma34 A acurada inteligência de Maquiavel estava consciente da distância que existia entre os Estados dinásticos da Espanha ou da França e as tira nias provinciais da Itália Ele notou que a monarquia francesa estava cercada por uma poderosa aristocracia e baseavase numa veneranda legitimidade os seus traços distintivos eram a proeminência de nobres autônomos e de leis tradicionais O rei da França está cercado por uma companhia de nobres de tradicional linhagem reconhecidos e amados pelos seus próprios súditos eles têm as suas prerrogativas e o rei não pode priválos delas sempôr em risco a sua própria sorte O reino da França é mais regulamentado por leis que qualquer outro reino atual de que tenhamos conhecimento35 Mas não conseguiu compreender que o poder das novas monarquias territoriais fundamen tavase precisamente nesta combinação de nobreza feudal e legalidade constitucional para ele osparlements franceses não passavam de uma fachada para a intimidação da aristocracia e o apaziguamento das massas36 Na verdade a aversão de Maquiavel pela aristocracia era tão intensa e geral que o levava a considerar uma pequena nobreza fundiá ria incompatível com qualquer tipo de ordem política viável ou estável Aqueles Estados cuja vida política mantémse incorrupta não permi tem que os seus cidadãos sejam fidalgos ou vivam à moda dos fidalgos Para elucidar o termo direi que por fidalgo se entende aqueles que vivem ociosamente à custa dos abundantes rendimentos de seus domínios sem desempenhar qualquer papel no cultivo e sem efetuar qualquer das tarefas necessárias à vida Tal tipo de homens é perni cioso em toda república e em toda província mas ainda mais maléficos são aqueles que além das rendas de seus domínios controlam castelos e comandam súditos que os obedecem Homens deste jaez são to 34 Chabod a mais lúcida autoridade no tema considera que Maquiavel visava tão somente a última um poderoso principado na Itália centrai e não um Estado penin sular Scrittisu Machiavelli Turim 1965 pp 647 35 Niccolò Machiavelli ü Príncipe e Discorsi sopra Ia Prima Deca de Tito Livio introdução de Giuliano Procacci Milão 1960 pp 26 262 a melhor das edições re centes 36 II Príncipe e Discorsi pp 778 A compreensão que Maquiavel tinha sobre a natureza e o papel da nobreza francesa era na realidade basicamente insegura e con fusa Em seu Ritratto di Cose di Francia ele descreve a aristocracia francesa como ex tremamente dócil ossequentissimi diante da monarquia em total contradição com as suas afirmações anteriores acima citadas Ver Arte delia Guerra e Scritti Politici Minori Milão 1961 p 164 164 PERRY ANDERSON talmente inimigos de qualquer forma de governo cívico37 Mencio nando com inveja as cidades alemãs que não tinham periferia senho rial38 conservava um certo republicanismo nostálgico composto de vagas recordações da República de Soderini à qual servira e de uma reverência de antiquado pela idade heróica de Roma registrada por Tito Lívio Mas o republicanismo de Maquiavel nos Discursos era no fundo sentimental e fortuito Com efeito todos os regimes políticos eram do minados por um restrito círculo íntimo do poder Em todos os Esta dos seja qual for a sua forma de governo os verdadeiros governantes nunca são mais que quarenta ou cinqüenta cidadãos A grande massa da população abaixo desta elite cuidava apenas de sua própria segurança a esmagadora maioria daqueles que exigem Überdade ape nas deseja viver em segurança Um governo bemsucedido sempre po dia suprimir as liberdades tradicionais conquanto deixasse intata a propriedade e a família de seus súditos se tanto deveria promover os seus empreendimentos econômicos desde que isso contribuísse para o seu próprio proveito O príncipe pode sempre inspirar medo e contudo eximirse ao ódio se ele se abstém da propriedade de seus súditos e cidadãos e de suas mulheres Tais máximas valiam para qualquer tipo de sistema político principado ou república As constituições republicanas contudo serviam apenas à continuidade podiam pre servar uma organização existente mas não inaugurar uma nova41 A fim de fundar um Estado italiano capaz de resistir aos invasores bárba ros vindos da França Suíça e Espanha tornavase necessária a vontade concentrada e a energia implacável de um príncipe único Estava aí a verdadeira paixão de Maquiavel As suas recomendações dirigiamse essencialmente ao futuro arquiteto de um necessariamente parvenu domínio peninsular O Príncipe declara logo de início que irá exa minar os dois tipos de principado o hereditário e o novo e nunca chega a perder de vista a distinção entre eles Mas a candente preocu pação do tratado que domina do princípio ao fim o seu conteúdo é essencialmente a criação de um novo principado tarefa que Maquiavel termina por proclamar expressamente como a maior realização de 37 IlPhncipeeDiscorstp 256 38 Ibidpp 25556 39 Ibid p 176 40 Ibid p 70 41 Ibid p 265 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 165 qualquer governante O novo príncipe se observar com cuidado as lições expostas acima tomará a aparência de um governante tradicio nal e o seu governo logo se tornará mais firme e seguro do que se há longo tempo nele estivesse investido Pois que os feitos de um novo príncipe atraem muito mais notoriedade que os de um governante here ditário e quando as suas ações são de valor cativam e prendem os homens melhor que o sangue real O novo príncipe terá uma dupla glória Este desequilíbrio velado no enfoque do tema é evidente em todo o livro Assim Maquiavel declara que os dois principais fundamentos do governo são boas leis e boas armas mas acrescenta pronta mente que uma vez que a coerção cria a legalidade e não viceversa ele irá ocuparse apenas da coerção Os principais fundamentos de todo Estado novos antigos ou mistos são as boas leis e as boas armas e desde que não há boas leis sem que haja boas armas e onde houver boas armas é preciso que haja boas leis eu não me ocuparei das leis mas falarei das armas43 Na que é talvez a passagem mais famosa do Príncipe repete o mesmo e revelador deslize conceituai A lei e a força são respectivamente os modos naturais de conduta dos homens e dos animais e um príncipe deve ser um centauro que possa combi nar as duas Mas na prática a combinação principesca que ele ana lisa não é a do centauro metade homem e metade animal e sim num deslizamento imediato a de dois animais o leão e a ra posa a força e a astúcia Há duas formas de lutar pela lei e pela força A primeira é própria dos homens a segunda dos animais mas como a primeira forma é com freqüência inadequada é necessário re correr à segunda Por essa razão o príncipe deve saber fazer bom uso do animal e do homem Os autores antigos instruíam os príncipes nessa lição por meio de uma alegoria contavam como Aquiles e muitos ou tros governantes da Antigüidade foram na infância entregues a um cen tauro Quíron para serem educados e treinados por ele O sentido desta história de um mestre metade animal metade homem é o de que um príncipe deve adquirir a natureza de ambos se ele possuir as quali dades de um e não as de outro estará perdido Por esse motivo como o 42 Príncipe e Discorsi p 97 Comparese o tom aí usado com esta passagem de Bodin Aquele que por sua própria autoridade se fez príncipe soberano sem eleição direito hereditário ou sorteio apenas pela guerra ou por apelo divino é um tirano Tal governante pisa sobre as leis da natureza Lês Six Livres de Ia Republique pp 211 218 43 II Príncipe e Discorsi p 53 166 PERRY ANDERSON príncipe é forçado a saber agir como um animal deverá aprender com a raposa e o leão C44 O temor é sempre preferível à afeição dos súditos a violência e a fraude sempre superiores à legalidade como forma de controlálos Podese dizer dos homens em geral são ingra tos desleais falsos e mentirosos tementes do perigo e ávidos de di nheiro O amor é um vínculo de obrigação que essas miseráveis criaturas rompem assim que lhes convém ao passo que o temor os prende firmemente pelo receio do castigo que nunca se abandona45 Estes preceitos sumários eram com efeito as normas domésticas pelas quais se regiam as pequenas tiranias da Itália estavam muito afastados das realidades da estrutura ideológica e política muito mais complexa do poder de classe das novas monarquias da Europa ociden tal Maquiavel pouco percebia da imensa força histórica da legitimi dade dinástica na qual estavam as raízes do absolutismo emergente O seu mundo era o dos aventureiros transitórios e dos tiranos arrivistas das signorie da Itália o seu ponto de referência César Bórgia O resul tado do ilegitimismo calculado da perspectiva de Maquiavel foi o seu famoso tecnicismo a defesa do recurso a meios moralmente não san cionados para a consecução de fins políticos convencionais dissociados de imperativos e restrições éticas A conduta de um príncipe só podia ser uma longa lista de perfídia e crimes uma vez que se dissolviam todas as bases jurídicas e sociais da dominação Em épocas futuras este despojamento no exercício prático do poder de toda a ideologia feudal ou religiosa pareceu ser o segredo e a grandeza da modernidade de Maquiavel46 Na realidade porém a sua teoria política aparente mente tão moderna na sua intenção de racionalidade clínica padecia de forma significativa da ausência de um conceito sólido e objetivo de Estado Há em seus escritos uma constante ondulação do vocabulário em que os termos città governo republica ou stato alternamse de um modo incerto embora todos tendam a subordinarse à noção que dá nome à sua obra central O Príncipe que podia ser o senhor tanto de uma república como de um principado47 Maquiavel nunca dis 44 n Príncipe e Discorri p 72 45 II Príncipe e Discorsi pp 6970 46 Tampouco estavam errados evidentemente Em certo sentido foi precisa mente a falta de ancoragem nas correntes principais de sua própria época o que permitiu a Maquiavel produzir uma obra política com significado mais geral e perene depois da passagem delas 47 Para exemplos ver II Príncipe e Discorsi pp 12931 30911 35557 Ver os comentários de Chabod em Alcuni Questioni di Terminologia Stato Nazione Pátria nelLinguaggiodelCÍnquecentoiWeaíftVazíone Bari 1967 pp 14553 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 167 tinguiu completamente a figura pessoal do governante que podia em princípio cair em qualquer parte ao acaso César Bórgia ou os seus pares da estrutura impessoal de uma ordem política com território fixo48 A interconexão funcional entre ambos era bastante real na época do absolutismo mas Maquiavel não tendo apreendido o vínculo social necessário entre monarquia e nobreza que a mediava tendia a reduzir a sua noção de Estado meramente à de propriedade passiva do príncipe enquanto indivíduo ornamento acessório da sua vontade A conseqüência de tal voluntarismo foi o paradoxo curioso e central da obra de Maquiavel a sua denúncia constante dos mercenários e a apologia da milícia urbana como único tipo de organização militar capaz de executar os projetos de um príncipe poderoso que pudesse ser o fautor de uma nova Itália É este o tema da vibrante proclamação final de sua obra mais célebre dirigida aos Mediei Mercenários e auxiliares são inúteis e perigosos levaram a Itália à escravidão e à ignomínia querendo pois a vossa ilustre casa seguir o exemplo daqueles grandes homens que salvaram as suas províncias é necessá rio antes de mais nada proverse de tropas próprias49 Maquiavel dedicaria depois a Arte da Guerra à defesa de sua tese militar de um exército inteiramente composto de cidadãos reforçandoa com todos os exemplos disponíveis da Antigüidade Para Maquiavel os mercenários eram a ruína que causara a fra queza política da Itália e na qualidade de secretário da República ele próprio tentara armar os camponeses locais para a defesa de Florença O fato é que os mercenários eram a condição prévia dos novos exércitos monárquicos além dos Alpes enquanto as suas novas milícias comu nais eram desbaratadas com toda facilidade pelas tropas regulares50 A razão desse seu equívoco militar porém tinha raízes no cerne de seus princípios políticos pois Maquiavel confundia os mercenários eu 48 Há em Maquiavel algumas passagens fugazes que indicam uma consciência dos limites da sua concepção dominante de Estado Os governos que surgem de súbito como tudo o que na natureza nasce e cresce muito rápido não podem ter raízes e mem bros firmes e são derrubados à primeira rajada de vento H Príncipe e Discorsi p 34 Procacci na sua competente introdução tira grande partido dos termos barbe e carres pondenzie raízes e membros como prova de que Maquiavel possuía efetivamente uma noção objetiva do Estado principesco Intraduzione pp L e segs Mas o que é real mente mais notável nesta frase de grande propriedade é a ausência geral de ecos ou conseqüências dela em O Príncipe em seu conjunto 49 Príncipe e Discorsi pp 53 58 104 50 Quanto a este episódio ver Oman A History of War in the Sixteenth Cen tury pp 967 168 PERRY ANDERSON ropeus com o sistema italiano dos condottieri A diferença é precisa mente que os condottieri da Itália possuíam as suas próprias tropas podendo colocálas em hasta pública ou deslocálas de uma parte à outra nas guerras locais ao passo que os governantes reais além dos Alpes constituíam ou contratavam corpos de mercenários diretamente sob seu próprio controle a fim de construir os precursores dos exércitos regulares e profissionais Foi a combinação do conceito próprio de Ma quiavel do Estado como propriedade adventícia do príncipe com a sua aceitação dos aventureiros como príncipes que o induziu ao erro de conceber os voláteis condottieri como elementos típicos da guerra mer cenária na Europa O que ele não conseguiu ver foi a força da autori dade dinástica com raízes na nobreza feudal que tornava a utilização doméstica de tropas mercenárias não apenas segura como superior a qualquer outro sistema militar então disponível A incongruência ló gica de uma milícia de cidadãos sob o domínio de uma tirania usur pada como fórmula para a libertação da Itália era apenas um sinal desesperado da impossibilidade histórica de uma signoria peninsular Exceto isso restava apenas o receituário banal de trapaça e ferocidade que passou a levar o nome de maquiavelismo Tais conselhos do se cretário de Florença eram uma mera teoria da fraqueza política o seu tecnicismo um empirismo cego incapaz de identificar as causas so ciais mais profundas dos acontecimentos que registrava confinado à vã manipulação superficial dos fatos utópica e mefistofélica A obra de Maquiavel refletia pois fundamentalmente em sua estrutura interna o impasse final das cidadesEstados italianas na vés pera de sua absorção Continua a ser o melhor guia para o seu fim ine vitável Na Prússia e na Rússia como se verá surgiu um superabsolu tismo sobre um vazio urbano Na Itália e na Alemanha a oeste do Elba a densidade urbana produziu apenas uma espécie de microabsolu tismo uma proliferação de pequenos principados que cristalizou as divisões do país Esses Estados em miniatura não estavam em posição de resistir às monarquias feudais vizinhas e em breve a ação de con quistadores estrangeiros alinharia forçosamente a península às normas 51 Este aspecto da obra de Maquiavel que deu origem à sua fama sensa cional nos séculos subseqüentes é em geral desconsiderado por seus mais sérios comen tadores atuais por suposta falta de interesse intelectual Na realidade é conceitualmente inseparável da estrutura teórica de sua obra e não pode ser urbanamente ignorado ele constitui o resíduo lógico e necessário de seu pensamento Aquela que é de longe a me lhor e mais vigorosa anáüse do significado real do maquiavelismo encontrase em Georges Mounin Machiavel Paris 1966 pp 20212 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 169 européias A França e a Espanha travaram um debate pelo seu controle nas primeiras décadas de suas respectivas integrações políticas nos úl timos anos do século XV Incapaz de produzir um absolutismo nacio nal internamente a Itália estava condenada a sofrer o alheio a partir de fora No espaço de meio século decorrido entre a marcha de Carlos VIII sobre Nápoles em 1494 e a derrota de Henrique II em São Quin tino em 1557 os Valois foram repelidos pelos Habsburgo e o prêmio foi para as mãos da Espanha A partir de então o domínio espanhol sediado na Sicília em Nápoles e Milão coordenou a península e do brou o papado sob a bandeira da ContraReforma Paradoxalmente seria o avanço econômico da Itália setentrional que a condenaria depois a um longo ciclo de atraso político O resultado final uma vez conso lidado o poder Habsburgo foi a regressão também econômica a rura lização dos patriciados urbanos que em sua decadência abandona ram as finanças e as manufaturas para investir na terra Daí as cem cidades do silêncio às quais Gramsci aludiria seguidamente52 Por uma curiosa compressão de épocas históricas seria por fim a monar quia piemontesa a responsável pela unificação nacional na era das revoluções burguesas do Ocidente Com efeito o Piemonte dispunha da base lógica para tal unificação somente aí surgiu um verdadeiro absolutismo nativo claramente alicerçado numa nobreza feudal em uma formação social dominada pela servidão O Estado erigido por 52 Passato e Presente p 98 Note sul Machiavelli p 7 Rissórgimento p 95 A frase foi emprestada do período poético de DAnnunzio As análises de Gramsci sobre o problema da unidade italiana na Renascença com o qual estava profundamente preo cupado padecem do pressuposto implícito de que as novas monarquias européias que unificaram a França a Inglaterra e a Espanha tinham caráter burguês ou pelo menos oscilavam entre a burguesia e a aristocracia Ele tende assim a sobrepor de modo ilegí timo dois problemas históricos distintos a ausência de um absolutismo unitário na Re nascença e a falta posterior de uma revolução democrática radical no Risorgimento Ambos surgem como evidências do fracasso da burguesia italiana o primeiro devido ao corporativismo e à involuçao das comunas no final da época medieval e início da mo derna o segundo devido ao conluio dos moderados com os latifundiários meridionais no século XIX Na realidade como vimos o oposto é que é verdadeiro Foi a falta de uma nobreza feudal dominante que impediu o absolutismo peninsular e portanto um Estado unitário contemporâneo dos da França ou da Espanha e foi a presença regional de tal nobreza no Piemonte que permitiu a criação de um Estado que serviria de trampolim para uma unificação tardia na época do capitalismo industrial O equívoco de Gramsci reflete em grande parte a sua confiança em Maquiavel como o prisma básico através do qual ele via a Renascença e a sua convicção de que Maquiavel representava um jaco binismo precoce ver especialmente Note sul Machiavelli pp 67 146 Com efeito Maquiavel confundiu em sua própria época dois períodos históricos distintos ao imaginar que um príncipe italiano podia formar um Estado autocráüco poderoso re criando as milícias de cidadãos típicas das comunas do século XII há muito extintas 170 PERRY ANDERSON Emanuele Filiberto e Cario Emanuele na Sabóia era economicamente rudimentar se comparado a Veneza ou Milão precisamente por tal razão revelouse o único núcleo territorial capaz de realizar no futuro um avanço político A posição geográfica a cavaleiro dos Alpes foi fundamental para esse seu destino excepcional pois representou por três séculos a possi bilidade de Sabóia manter a sua autonomia e ampliar as suas frontei ras jogando uma contra a outra as duas mais importantes potências do continente primeiro a França contra a Espanha depois a Áustria contra a França Em 1460 nas vésperas das invasões estrangeiras que encerrariam a Renascença o Piemonte era o único Estado indepen dente na Itália com um sistema de Estados influente53 justamente por ser a formação social de caráter mais feudal da península Os Es tados organizavamse num sistema convencional de três cúrias domi nado pela nobreza Os rendimentos dos duques eram escassos e a sua autoridade limitada embora o clero proprietário de um terço do país fosse em geral seu aliado Os Estados recusaramse a conceder subsí dios para um exército permanente Então na década de 1530 tropas francesas e espanholas ocuparam as regiões ocidental e oriental do Pie monte respectivamente Na área francesa os Estados foram mantidos como états provinciais do reino Valois ao passo que na parte espa nhola seriam suprimidos depois de 1555 A administração francesa reorganizou e modernizou a arcaica organização política local o bene ficiário dessa obra foi o duque Emanuele Filiberto Educado na Espa nha combatente em Flandres este aliado Habsburgo e vencedor de São Quintino recuperou o conjunto de seu patrimônio em 1559 com o Tratado de CateauCambrésis O autoritário e vigoroso duque Testa di Ferro para os seus contemporâneos convocou os Estados pela última vez em 1560 levantou uma ampla subvenção para um exército regular de 24 mil homens e a seguir dissolveuos para sempre Depois disso as inovações institucionais de trinta anos de domínio Valois foram pre servadas e desenvolvidas um Conselho de Estado com função execu tiva parlamentos judiciais lettere di giussione reais isto é lits de jus tice um código de leis unitário cunhagem única de moedas um erá rio reorganizado e leis suntuárias Quintuplicando as suas receitas 53 Ao lado da Sicflia que era previsivelmente a outra região a possuir um poderoso sistema de estados embora fazendo parte então do reino aragonês H G Koe nigsberger The Parliaments of Piedmont during the Renaissance 15401560 Studies Presentedfor the International Commission for the History of Representaíive and Partia meníary Institutions IX Louvain 1952 p 70 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 171 Emanuele Filiberto criou uma nova e leal nobreza de corte com uma astuta distribuição de títulos e cargos Sob o governo de um duque que foi um dos primeiros governantes na Europa a proclamarse isento de restrições legislativas Noi come principi siamo da ogni legge sciolti e liberi54 o Piemonte caminhou rapidamente em direção a uma precoce centralização principesca A partir daí a dinastia piemontesa sempre tendia a tomar em prestados os mecanismos e as formas políticas do absolutismo francês ainda que resistisse a ser territorialmente absorvida por este O século XVII contudo presenciou recaídas prolongadas em anárquicas guer ras civis e em discórdia entre os nobres sob o reinado de governantes fracos os ecos mais graves e prolongados da Fronda Os múltiplos en claves e as incertas fronteiras do Estado numa região intermediária da Europa dificultavam um controle ducal mais sólido dos planaltos alpi nos O avanço rumo ao absolutismo centralizado foi decisivamente con cluído por Vitorio Emanuele II no início do século XVIII Uma habi lidosa mudança de lados na Guerra da Sucessão Espanhola da França para a Áustria garantiu ao Piemonte o condado de Montferrat e a ilha da Sardenha e o reconhecimento europeu de sua elevação de ducado para monarquia Sinuoso na guerra Vitorio Emanuele usou a paz que se seguiu para instalar uma severa administração copiada à de Colbert onde não faltavam sequer um Conselho e o sistema de intendants Ele então desenfeudou amplas faixas de terras da nobreza com o recurso a um novo registro cadastral a perequazione de 1731 aumentando desse modo as receitas fiscais já que os domínios alodiais estavam su jeitos a impostos55 construiu um amplo aparelho diplomático e militar 54 Nós como príncipe estamos de todas as leis soltos e libertos a proclama ção do duque era evidentemente uma versão direta da famosa máxima romana Para um relato das reformas de Emanuele Filiberto no Piemonte ver Vittorio de Caprariis LTtalia nellEtà delia Controriforma em Nino Valeri Org Storia dIíalia II Tu rim 1965 pp 52630 55 Aperequazione é analisada em S J Woolf Studi sulla Nobiltà Piemontese nellEpoca deirAssoluíismo Turim 1963 pp 6975 É bastante claro o significado deste gesto para a história geral do absolutismo Na organização medieval onde não existia um sistema fiscal centralizado o interesse econômico do governante era multiplicar o nú mero de feudos com o dever de serviço militar e tributos feudais e reduzir o número de alódios com o seu regime de posse incondicional e a conseqüente isenção de prestar obrigações a um superior feudal Com o advento de um sistema fiscal centralizado a situação se inverteu os feudos ficaram fora da tributação fiscal porque deviam um serviço militar que era agora meramente simbólico ao passo que as propriedades alodiais podiam ser tributadas como qualquer propriedade urbana ou camponesa Na Prússia praticamente à mesma época Frederico Guilherme I introduziu em 1717 uma reforma semelhante a fim de comutar o serviço militar dos cavaleiros em imposto convertendo 172 PERRY ANDERSON na qual se integrou a aristocracia extinguiu as imunidades do clero e subordinou a Igreja Além disso perseguiu um vigoroso mercantilismo protecionista que incluiu a abertura de estradas e canais a promoção das manufaturas de exportação e a construção de uma capital engran decida em Turim O seu sucessor Cario Emanuele III aliouse habil mente com a França contra a Áustria na Guerra da Sucessão Polonesa a fim de conquistar uma parte da planície lombarda e em seguida juntouse à Áustria contra a França na Guerra da Sucessão Austríaca com o objetivo de conservála O absolutismo piemontês foi portanto um dos mais coerentes e bemsucedidos de sua época Como as duas outras experiências setentrionais de um absolutismo forte e moderni zado em pequenos Estados o regime de Tanucci em Nápoles e o de Pombal em Portugal esteve cronologicamente em atraso o auge de sua criatividade ocorreu no século XVIII e não no século XVII Mas sob outros aspectos o seu modelo foi estreitamente semelhante ao de seus mentores mais vastos Na verdade na época de seu apogeu o absolutismo piemontês talvez dispendesse mais com o seu exército um corpo profissional altamente treinado que qualquer outro Estado da Europa ocidental6 Tal aparelho militar aristocrático viria a ser a ga rantia de seu futuro a propriedade feudal em propriedade alodial e com isso pondo efetivamente fim à imu nidade fiscal da nobreza A medida provocou uma tempestade de indignação entre os junkers56 G Quazza Lê Riforme in Piemoníe nella Prima Meta dei Settecento Mô dena 1957 pp 1036 Quazza considera provável que nesse século só a Prússia tenha igualado ou ultrapassado o Piemonte em despesas militares Suécia A súbita ascensão de um absolutismo sueco nos primeiros anos do século XVI numa passagem quase sem transição de um tipo de Es tado feudal medieval adiantado para um tipo moderno adiantado não teve nenhum equivalente real no ocidente da Europa O apareci mento do novo Estado foi precipitado a partir de fora Em 1520 o novo rei dinamarquês Cristiano II marchou com seus exércitos sobre a Sué cia para impor aí a sua autoridade derrotando e executando a facção oligárquica Sture que governara o país de facto como regência local nos últimos anos da União de Kalmar A perspectiva de imposição de uma poderosa monarquia estrangeira na Suécia reuniu a aristocracia local e setores do campesinato independente sob o comando de um nobre usurpador Gustavo Vasa que se insurgiu contra a dominação dinamarquesa e estabeleceu o seu próprio domínio sobre o país três anos mais tarde com o auxílio de Lübeck inimiga e rival hanseática da Dinamarca Gustavo uma vez instalado no poder procedeu pronta e implacavelmente à instalação das bases de uma monarquia estável na Suécia O seu primeiro e decisivo gesto foi pôr em andamento a expro priação da Igreja aproveitandose do oportuno pretexto da Reforma Iniciado em 1527 o processo veio a completarse efetivamente em 1544 quando a Suécia tornouse oficialmente um país luterano A Reforma Vasa foi sem dúvida a mais bemsucedida operação econômica dessa espécie levada a cabo por uma dinastia européia Com efeito em con 174 PERRY ANDERSON traste com os dispersos resultados obtidos pelos Tudor com o confisco dos mosteiros ou pelos príncipes alemães com a secularização das ter ras eclesiásticas na Suécia quase toda a fortuna dos domínios da Igre ja passou en bloc para as mãos da monarquia Por meio de tais confis cos Gustavo quintuplicou as terras da coroa além de anexar dois ter ços das dízimas anteriormente cobradas pelos bispos à população e além de se apropriar das maciças baixelas de prata provenientes das igrejas e dos mosteiros Com a exploração de minas de prata o incen tivo às exportações de lingotes e o controle minucioso dos rendimentos e receitas do reino Gustavo tinha acumulado um vasto excedente à época de sua morte sem um aumento correspondente dos impostos Ao mesmo tempo ampliou o aparelho administrativo real para a ges tão do país triplicando o número de bailios e ensaiando uma buro cracia central projetada para ele por conselheiros alemães A autono mia regional dos turbulentos distritos mineiros do Dalarna foi supri mida e Estocolmo permanentemente guarnecida de tropas A nobreza cuja rivalidade econômica com o clero servira para associála à expro priação das terras eclesiásticas passou a ser cada vez menos investida com o feudo direto de cavaleiro o antigo lãn pá tjãnst sendolhe em seu lugar concedido o novoòWawmg uma espécie de benefício semi ministerial de alcance muito mais limitado importando na alocação de rendimentos reais específicos em troca de tarefas administrativas par ticulares Tal medida centralizadora não descontentou a aristocracia que demonstrou uma solidariedade básica com o regime durante todo o reinado de Gustavo que se intensificou com a sua vitória sobre as re lações camponesas em Dalarna 1527 e Smalãnd 154344 e a sujei ção militar de Lübeck O tradicional rãd da alta nobreza foi preservado como órgão de consulta em questões de importância política mas ex cluído da administração de rotina A inovaçãochave da máquina polí tica Vasa foi antes o recurso constante na primeira fase do reinado de Gustavo à Assembléia dos Estados o Riksdag que foi convocado re petidas vezes a fim de legitimar os atos da nova dinastia emprestando às decisões reais a chancela da aprovação do povo Neste aspecto a mais importante realização de Gustavo foi assegurar em 1544 a acei tação pelos Estados em Vãsterâs do princípio de que a monarquia 1 Michael Roberts The Earfy Vasas Cambridge 1968 pp 1789 O leitor de língua inglesa tem a sorte de ter a seu dispor a ampla e notável oewvre deste historiador da Suécia do início da Idade Moderna LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 175 deixaria de ser eletiva e passaria a ser hereditária em benefício dos Vasa2 Os filhos de Gustavo I Érico e João herdaram assim um Estado vigoroso embora em certos aspectos primitivo que mantivera relações cordiais com a aristocracia impondo poucos encargos e respeitando os privilégios Érico XIV que subiu ao trono em 1560 reformou e am pliou o exército intensificando os deveres de serviço militar da no breza Criou também um novo sistema de títulos conferindo aos mag natas as dignidades de conde e barão e investindoos com feudos clás sicos hereditários No plano externo o seu reinado inaugurou o expan sionismo sueco no Báltico setentrional Frente ao colapso iminente da Ordem dos Cavaleiros Livonianos face ao ataque russo e à intervenção da Polônia para assegurar a sua sucessão a Suécia ocupou Reval do outro lado do golfo da Finlândia Seguiuse um conflito confuso e intri cado entre as potências bálticas pelo controle da Livônia Em 1568 Érico XIV alvo de violentas suspeitas por parte dos grandes nobres foi deposto como desequilibrado mental O seu irmão João III seu suces sor prosseguiu as guerras da Livônia com maior êxito voltandose para uma aliança com a Polônia contra a Rússia No fim da década de 1570 as forças polacas varreram o exército de Ivã IV até Pskov ao passo que as tropas suecas conquistavam a Estônia estavam lançados os alicerces do império ultramarino dos suecos Enquanto isso no plano interno verificouse um rápido incremento dos benefícios forlâ ning cada vez mais confiados pelo monarca aos novos funcionários e bailios até que por volta da década de 1590 apenas um terço deles estava nas mãos da nobreza3 Quando findou o século os atritos entre a monarquia e a aristocracia desenvolviamse visivelmente apesar dos êxitos Vasa nas guerras da Livônia A ascensão do filho católico de João III Segismundo em 1592 logo precipitou um período de agudos con flitos religiosos e políticos que ameaçaram toda a estabilidade do Es tado monárquico Segismundo um adepto fervoroso da ContraRe forma fora eleito rei da Polônia cinco anos antes em parte devido aos 2 A pétrea personalidade de Gustavo Vasa recorda inevitavelmente a da suces são de construtores de Estados os governantes da Europa ocidental que vieram antes dele Henrique VII Luís XI e Fernando II Da mesma forma o seu extravagante tilho mais velho Érico XIV guarda certa semelhança com a brilhante instabilidade de Henri que VIII e Francisco I O estudo sóbrio de tais agrupamentos e desvios generacionais pode às vezes revelarse de maior interesse que as biografias convencionais 3 Roberts The Earfy Vasas p 306 176 PERRY ANDERSON laços matrimoniais da dinastia Vasa com a agora extinta linhagem Ja gelônia Forçado pela nobreza sueca como condição de sua aceitação a respeitar o luteranismo na Suécia e a absterse de toda a unificação administrativa dos seus dois reinos residiu na Polônia como rei absen teísta por dez anos Na Suécia o seu tio Carlos duque de Sõderman land e o râd da alta nobreza governavam o país Segismundo foi man tido efetivamente afastado do seu reino do norte por uma aliança entre o duque e a nobreza O poder pessoal cada vez mais arbitrário que Carlos concentrou acabaria por gerar o antagonismo da alta aristocra cia que se juntou a Segismundo quando este regressou em 1604 a fim de reclamar o seu patrimônio usurpado pelo tio O confronto armado que se seguiu terminou com a vitória ducal com amplo respaldo da propaganda antipapal contra Segismundo apresentado como uma ameaça de recatolicização da Suécia A tomada do poder pelo duque que então tornouse Carlos IX foi assinalada pelo massacre judicial da alta nobreza constitucionalista do râd que alinhara com o contendor vencido no conflito dinástico Caracteristicamente a repressão e neutralização do râd por Carlos IX foram acompanhadas por uma onda de convocações do Riksdag que provouse mais uma vez um instrumento dócil e manipulável do abso lutismo sueco A nobreza foi mantida à distância da administração central e as suas obrigações militares foram aumentadas Para apazi guar o desprezo e o descontentamento da aristocracia com a sua usur pação o rei distribuiu as terras confiscadas aos magnatas da oposição que tinham fugido para o exílio com Segismundo e concedeu uma maior parcela de fõrlaningar à nobreza4 Mas à data de sua morte em 1611 o grau de suspeita e tensão existente entre a dinastia e os aristocratas acumulado durante anos revelouse com agudeza Á no breza aproveitouse imediatamente da oportunidade de ver a coroa em minoria para impor em 1612 uma Carta que condenava formalmente as ilegalidades do reinado anterior restaurava o poder do râd em ma téria de impostos e sobre os assuntos de Estado garantia o primado da nobreza nas indicações para a burocracia e dava segurança de posse e salário fixo aos funcionários do Estado O reinado de Gustavo Adolfo foi portanto precedido por um corpo constitucional cuidadosamente concebido para evitar a repetição das tiranias de seu pai Na realidade Gustavo Adolfo não mostrou inclinação de reverter a uma rígida auto 4 Roberts The Early Vasas p 440 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 177 cracia real O seu governo ao contrário presenciou a reconciliação e a integração da monarquia e da nobreza o aparelho de Estado deixou de ser um patrimônio dinástico rudimentar à medida que a aristocracia se alistava coletivamente na moderna e poderosa administração e no exército então construídos na Suécia O chanceler de Gustavo Adolfo o grande nobre Oxenstierna reorganizou todo o sistema executivo em cinco colégios centrais ocupados por burocratas originários da nobreza O râd tornouse um Conselho Privado regular para deliberação sobre as políticas públicas A composição e os procedimentos legislativos do Riksdag foram codificados em 1617 uma Ordenação dividiu juridica mente a aristocracia em três graus e concedeulhe uma Câmara espe cial ou Riddarhus em 1626 que se tornou a partir daí o ponto de convergência fundamental das assembléias dos Estados O país foi di vidido em 24 unidades provinciais designadas oficialmente lãn em cada uma das quais era instalado um landhòvding ou governador esco lhido entre a nobreza5 Incentivouse um moderno sistema educacio nal ao passo que a ideologia oficial exaltava a ascendência étnica da classe dominante sueca cujos ancestrais góticos tinham no passado dominado a Europa Enquanto isso as despesas com a frota cresciam seis vezes no decorrer do reinado de Gustavo Adolfo e os efetivos do exército quadruplicavam6 Essa súbita racionalização e refortaleci mento do absolutismo sueco no plano interno propiciou a plataforma para a expansão militar de Gustavo Adolfo externamente Desembaraçandose da malsucedida guerra com a Dinamarca que lhe fora legada por Carlos IX com a assinatura de uma custosa paz no início de seu reinado o rei concentrou as suas primeiras iniciativas no teatro do Báltico setentrional onde a Rússia sofria ainda as con vulsões da Época das Dificuldades e onde o seu irmão Carlos Filipe quase foi instalado como czar com apoio boiardo e cossaco Logo se consumaram conquistas de territórios às custas da Rússia Pelo Tra tado de Stolbova em 1617 a Suécia adquiriu a íngria e a Carélia o que lhe deu o controle total do golfo da Finlândia Quatro anos depois Gustavo Adolfo tomou à Polônia o porto de Riga Então em 162526 os exércitos suecos fizeram recuar as forças polonesas em toda a Livô nia conquistando a região A operação seguinte foi um ataque anfíbio 5 Michael Roberts Gusíavus Adolphus A History of Sweden 10111632 I Londres 1953 pp 26578 2937 31924 6 Pierre Jeannin LEurope du NordOuest et du Nord aux XVHe et XVIIIt Siècles Paris 1969 p 130 178 PERRY ANDERSON à própria Polônia onde ainda reinava Segismundo Foram tomadas as vias de aproximação estratégica à Prússia oriental com a anexação de Memel Pilau e Elbing e lançados pesados impostos sobre o comércio de cereais do sul do Báltico daí em diante O encerramento da cam panha polonesa em 1629 seria prontamente seguido pelo desembar que sueco na Pomerânia em 1630 que deu início à oportuna inter venção de Gustavo Adolfo na luta pela Alemanha durante a Guerra dos Trinta Anos Nessa altura o total dos efetivos do aparelho militar sueco compreendia cerca de 72 mil homens em armas dos quais mais da metade era constituída de soldados do país os planos de guerra para 1630 visavam o emprego de 46 mil homens na expedição à Ale manha mas na prática esta meta não foi atingida7 No entanto em dois breves anos Gustavo Adolfo levou seus exércitos vitoriosamente em um grande arco que ia de Brandenburgo à Baviera através da Renâ nia estilhaçando a posição Habsburgo no Império À morte do rei em 1632 no campo triunfal da Lützen a Suécia era o árbitro da Alemanha e a potência dominante em todo o norte da Europa O que tornou possível esta ascensão meteórica do absolutismo sueco Para compreender a sua natureza e dinâmica é necessário voltar os olhos às características distintivas da Escandinávia medieval ante riormente delineadas A peculiaridade central da formação social sueca nas vésperas da época Vasa era o caráter nitidamente incompleto da feudalização das relações de produção na economia rural Um pequeno campesinato de tipo préfeudal ainda ocupava metade das terras culti vadas no início do século XVI O que não quer dizer contudo que a Suécia nunca tenha conhecido o feudalismo como muitas vezes se afirma8 Com efeito a outra metade da agricultura sueca estava inse rida no complexo monárquicoclericalnobiliário onde se extraía um excedente de tipo feudal de um campesinato dependente embora neste setor os arrendatários nunca tenham sido juridicamente reduzidos à servidão os tributos e serviços eram extraídos por coação extraeconô mica como era costume em todo o Ocidente europeu nesta época Dessa maneira o setor predominante na economia sueca durante esse 7 Roberts Gustavus Adolphus A History of Sweden 16112632 II Londres 1958 pp 415 444 Na realidade o rei iniciou as suas campanhas alemãs com 26 mil homens8 Ver por exemplo E Hecfcsher An Economic History ofSweden Cambridge EUA 1954 pp 368 M Roberts Introduction a Ingvar Andersson A Hisíory of Sweden Londres 1956 p 5 o qual é refutado no próprio livro prefaciado compare as pp 434 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 179 período foi sempre sem dúvida a agricultura feudal propriamente dita uma vez que se havia uma igualdade aproximada entre a super fície cultivada dos dois setores podese afirmar com segurança que a produtividade e a produção eram de modo geral mais elevadas nos do mínios da monarquia e da nobreza regra geral na Europa ocidental Apesar disso o extremo atraso do conjunto da economia era à pri meira vista a sua característica mais surpreendente em qualquer pers pectiva comparativa Menos da metade do solo era adequado para o cultivo de arado A cevada era de longe a principal cultura cerealífera A consolidação dos domínios era muito limitada até meados do sé culo XVII apenas 8 por centç das terras eram unidades senhoriais9 Além disso a excepcional extensão da pequena produção nas aldeias leva a crer que o índice de comercialização na agricultura era provavel mente o mais reduzido do continente Em vastas áreas do país predo minava uma economia natural em tal proporção que até a década de 1570 apenas 6 por cento dos rendimentos da coroa impostos e rendas eram pagos em dinheiro enquanto a maior parte dos funcionários do Estado eram também remunerados em espécie10 Em tais condi ções em que a temperatura do intercâmbio monetário era subártica não havia possibilidade de uma economia urbana florescente As cida des suecas eram poucas e frágeis a maior parte delas de fundação e colonização alemã o comércio exterior era monopólio virtual dos mer cadores hanseáticos Prima fade esta configuração parece particular mente pouco propícia à súbita e bemsucedida emergência de um ab solutismo moderno Qual a explicação para o êxito histórico do Estado Vasa A resposta a esta questão levanos ao ponto central do caráter específico do absolutismo sueco A centralização do poder real nos sé culos XVI e XVII não constituiu uma resposta à crise da servidão e à desintegração de um sistema senhorial pela troca de mercadorias e a diferenciação social nas aldeias Tampouco foi o reflexo indireto do crescimento do capital mercantil local e de uma economia urbana O seu impulso inicial veio de fora foi a ameaça de uma rigorosa domi nação dinamarquesa que mobilizou a nobreza sueca sob o comando de Gustavo I e foi o capital de Lübeck que financiou o seu esforço de guerra contra Cristiano II Mas a conjuntura da década de 1520 não configurou a matriz fundamental do absolutismo sueco esta deve ser 9 Roberts Gustavus Adolphus II p 152 10 Ibid p 44 180 PERRY ANDERSON buscada na relação triangular das forças de classe dentro do país Para nossos propósitos o seu padrão social básico e determinante pode ser resumido numa fórmula breve O panorama característico do Ocidente no início da época moderna era o de um absolutismo aristocrático edi ficado sobre a base social de um campesinato nãoservil e cidades em ascensão o panorama típico do Leste era o de um absolutismo aristo crático edificado sobre a base de um campesinato servil e cidades sub jugadas O absolutismo sueco ao contrário foi construído sobre uma base peculiar porque pelas razões históricas esboçadas atrás combinava camponeses livres e cidades insignificantes em outras pa lavras um conjunto de duas variáveis contraditórias que se situava entre a linha divisória básica do continente Nas sociedades predomi nantemente rurais da época o primeiro termo do panorama particular da Suécia um campesinato livre de dominação pessoal era domi nante e assegurava a convergência fundamental da história sueca com a da Europa ocidental e oriental com os seus pontos de partida tão diferentes Mas o seu segundo termo a insignificância das cida des por sua vez corolário de um amplo setor camponês de subsistência que nunca fora sangrado por mecanismos feudais ortodoxos de extra ção de excedentes foi suficiente para conferir à nascente estrutura estatal da monarquia sueca o seu matiz característico Com efeito a nobreza embora em certo sentido contasse com um menor predomínio na área rural se comparada às suas parceiras das outras regiões da Europa ocidental era também objetivamente muito menos constran gida pela presença de uma burguesia urbana Havia poucas chances de uma inversão total da posição do campesinato pois o equilíbrio das forças sociais na economia rural inclinavase acentuadamente contra a possibilidade de uma imposição violenta da servidão As profundas raí zes e a ampla extensão da propriedade camponesa independente tor navam tal hipótese impraticável uma vez que a própria magnitude deste setor reduzira a um nível excepcionalmente baixo o contingente da nobreza situado fora dele É preciso lembrar sempre que a aristo cracia sueca durante todo o primeiro século de domínio dos Vasa era uma classe muito pequena com relação ao padrão europeu As sim em 1611 contava umas quatrocentas ou quinhentas famílias numa população total de l milhão e 300 mil pessoas No entanto pelo menos metade talvez dois terços dela compunhase de provin cianos modestos e rústicos ou knapar cujos rendimentos pouco di feriam dos de um camponês próspero Quando Gustavo Adolfo es tabeleceu um Riddarhusordning para fixar juridicamente os limites deste estado apenas 126 famílias passaram nos testes de ingresso nele LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 181 em 1626 Destas umas 25 ou 30 famílias constituíam o círculo fe chado de magnatas que fornecia tradicionalmente os conselheiros do ràd A parte mais importante da aristocracia sueca daquela época era assim estruturalmente inadequada para um assalto frontal ao campesinato Ao mesmo tempo não havia qualquer ameaça dos bur gos ao seu monopólio do poder político A ordem social sueca era portanto invulgarmente estável até que pressões externas viessem a abaterse sobre ela Vimos que foram precisamente tais pressões que precipitaram o advento inicial do domínio Vasa Neste ponto uma outra peculiaridade da situação sueca tornase importante Durante a Idade Média nunca existira no seio da aristocracia uma hierarquia feudal bem articulada com amplo parcelamento da soberania ou uma cadeia de subenfeuda mento O próprio sistema de feudos era tardio e imperfeito Por isso nunca se desenvolveram potentados territoriais ou separatismos feudais do tipo dos que existiam no continente E justamente porque o sistema de vassalagem era recente e relativamente superficial nunca produziu divisões regionais profundas entre a reduzida nobreza da Suécia Quan do pela primeira vez deuse o surgimento de um poder provincial fis síparo este foi uma criação subseqüente da própria monarquia unitá ria e não um obstáculo prévio a ela os apanágios ducais da Finlândia Õstergõtland e Sõdermanland que foram legados por Gustavo Vasa a seus filhos mais novos e desapareceram no século seguinte12 Como resultado uma vez que a degradação do campesinato era impraticável e não era difícil o controle das cidades a urgência interna de um abso lutismo centralizado não existia na Suécia e tampouco eram grandes os obstáculos à sua implantação por parte da classe dominante fundiária Uma nobreza pequena e compacta podia adaptarse com relativa faci lidade a uma monarquia centralizada O caráter pouco agudo das pres sões sociais da situação de classe básica subjacente ao absolutismo sue co que determinou a sua forma e evolução era visível no peculiar pa pel nele desempenhado pelo sistema de estados Com efeito por um 11 Ibid p 57 A estimativa acima inclui a Finlândia a Suécia tinha nesta época uma população total de uns 900 mil habitantes 12 A divisão do país com a criação desses perigosos apanágios decidida por Gustavo Vasa em seu leito de morte denota após toda uma vida de centralização mo nárquica uma característica tipicamente feudal de muitos dos fundadores do absolu tismo europeu Pode ser comparada às disposições testamentárias ainda mais drásticas para o desmembramento dos domínios Hohenzollerns deixadas pelo próprio Grande Eleitor supremo arquiteto do Estado prussiano Para aqueles governantes um patri mônio dinástico era sempre potencialmente passível de divisão 182 PERRY ANDERSON lado o Riksdag era no aspecto político excepcional com a inclusão de um estado camponês distinto em seu sistema quadricurial não ha via nada semelhante em nenhum outro país importante da Europa Por outro lado o Riksdag em geral e principalmente os seus delegados camponeses constituíram um corpo político curiosamente passivo para a época destituído de iniciativa legislativa e com uma complacência quase inabalável perante as petições reais Desse modo o governo Vasa pôde recorrer com tal freqüência ao Riksdag que sem paradoxo foi possível descrevêlo como o epítome do absolutismo parlamentar praticamente todos os incrementos relevantes do poder real desde a apropriação das terras da Igreja por Gustavo I em 1527 até a procla mação do direito divino por Carlos IX em 1680 foram solenizados por uma assembléia leal A resistência aristocrática à monarquia centrou se assim quase sempre no rad descendente direto de uma cúria regis medieval e não no Riksdag onde o soberano reinante podia habitualmente manipular contra ela os estados nãonobres em caso de conflito13 O Riksdag à primeira vista uma instituição audaciosa para a época era na realidade um órgão extraordinariamente inócuo A monarquia nunca teve qualquer dificuldade em usálo para os seus pro pósitos políticos Uni outro reflexo complementar da mesma situação social básica subjacente à docilidade dos estados encontravase no exér cito Graças precisamente à existência de um campesinato indepen dente o Estado sueco podia manter um exército de recrutas o único em toda a Europa renascentista O decreto de Gustavo Vasa que criou em 1544 o sistema utskrívning de alistamento rural nunca trouxe o risco de armar umjacquerie pois os homens assim recrutados nunca tinham sido servos a sua condição jurídica e material era compatível com a lealdade no campo de batalha Entretanto a questão permanece como o absolutismo sueco ad quiriu não apenas o seu equipamento políticoideológico mas os recur sos econômicos e militares necessários à sua exibição européia com uma população doméstica que não ultrapassava os 900 mil habitantes no início do século XVII Neste aspecto não se pode fugir à regra geral de que um absolutismo viável pressupõe um nível substancial de mone tarização Uma economia rural natural parecia impedilo Na Suécia porém existia um enclave crucial de produção de mercadorias cujos 13 A tradição e o papel do rad so examinados no ensaio de Roberts On Aristocratic Constitucionalism in Swedish History 15201720 Essays in Swedish His tory pp 145 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 183 lucros desproporcionados compensaram a comercialização abaixo da média da agricultura e proporcionaram as fortunas do Estado Vasa em sua fase de expansão externa Tratavase da riqueza mineral dos depó sitos de ferro e cobre de Bergslagen A extração de minérios ocupava em todos os países uma posição especial nas economias de transição do início da Europa moderna não apenas porque durante muito tempo representou a maior concentração de trabalhadores numa única forma de empresa mas porque sempre foi o esteio direto da economia mone tária ao suprir os metais preciosos sem contudo necessitar de um ín dice avançado de processo manufatureiro ou de demanda de mercado Além disso a tradição de prerrogativa real sobre a exploração do sub solo na Europa feudal significava que tal setor era sempre de um modo ou de outro um pertence dos príncipes O cobre e o minério de ferro suecos podem pois ser comparados à prata e ao ouro da Espanha quanto ao seu impacto sobre o absolutismo local Ambos permitiram a combinação de um Estado poderoso e agressivo com uma formação social que não dispunha nem de uma grande riqueza agrária nem de um relevante dinamismo mercantil a Suécia evidentemente sentia mais falta deles que a Espanha Com efeito o apogeu do surto do cobre na Suécia esteve diretamente relacionado ao colapso da moeda de prata em Castela Foi a emissão do novo vellôn de cobre por Lerma na desva lorização de 1599 que criou uma elevada demanda internacional para a produção de Kopparberg e Falun Gustavo Adolfo lançou pesados tributos régios sobre as minas de cobre organizou uma companhia real de exportação para monopolizar os fornecimentos e fixou níveis de preço ao mesmo tempo que conseguiu crédito considerável junto à Ho landa para financiar suas guerras com a garantia de sua riqueza mi neral Embora o vellôn tenha sido retirado de circulação em 1626 a Suécia continuou a deter o virtual monopólio do cobre em toda a Eu ropa Enquanto isso a indústria do ferro progredia rapidamente au mentando em cinco vezes a sua produção por volta do final do século XVII quando alcançou metade das exportaçõesH Tanto o cobre como o minério de ferro não eram ademais somente fontes diretas de receita líquida para o Estado absolutista constituíam também as matérias primas indispensáveis para a sua indústria bélica O canhão de bronze fundido era a arma decisiva da artilharia da época ao passo que todos os outros tipos de armamento exigiam ferro de primeira qualidade Com a chegada do legendário empreendedor valão Luís De Geer na 14 Stewart Oakley TheStory of Sweden Londres 1966 p 125 184 PERRY ANDERSON década de 1620 a Suécia em breve passaria a contar com um dos maio res complexos de produção de armamentos da Europa Assim as mi nas propiciaram oportunamente ao absolutismo sueco tanto a infra estrutura financeira como a militar necessária ao seu avanço no Bál tico Os tributos da Prússia o botim alemão e os subsídios da França completaram o seu orçamento militar durante toda a duração da Guer ra dos Trinta Anos e tornaram possível a contratação de grandes quan tidades de mercenários que chegaram mesmo a suplantar as próprias tropas expedicionárias suecas15 O império assim conquistado revelouse razoavelmente lucrativo ao contrário das possessões espanholas na Europa As províncias do Báltico em particular com os seus carregamentos de cereais para a Suécia sempre produziram uma receita fiscal considerável que dei xava um amplo excedente líquido uma vez deduzidas as despesas lo cais A sua participação nos rendimentos totais do reino representavam bem mais de um terço no orçamento de 1699 Além disso a nobreza sueca adquiriu domínios particularmente extensos com a conquista da Livônia onde a agricultura aproximavase muito mais de um padrão senhorial do que ocorria no interior da Suécia Os ramos ultramarinos da aristocracia desempenharam por sua vez um importante papel no preenchimento dos postos na dispendiosa máquina militar da expansão imperial sueca no início do século XVIII um em cada três oficiais de Carlos XII em suas campanhas da Polônia e da Rússia era oriundo das províncias bálticas Na realidade o absolutismo sueco funcionou com mais suavidade durante as fases de expansão externa agressiva ao longo dos reinados dos generalíssimos Gustavo Adolfo Carlos X e nos últimos anos do governo de Carlos XII a harmonia entre monar quia e nobreza foi habitualmente maior Mas os êxitos externos do absolutismo sueco nunca resolveram inteiramente as suas limitações internas Padecia de uma su b determinação fundamental devido à con figuração de classes relativamente inerte que existia na própria Suécia Dessa maneira ele permaneceu sempre como uma forma de governo facultativa para a própria classe nobiliária Em condições sociais 15 Gustavo Adolfo iniciou sua campanha na Alemanha com um exército em que metade dos efetivos tinha sido recrutada na Suécia À época de Breitenfeld estes haviam caído para um quarto À época de Lützen os recrutas suecos eram menos de um décimo 13 mil num total de 140 mil Roberts Gusíavus Adolphus II pp 2067 Assim o alistamento interno de modo algum bastava para eximir o absolutismo sueco das leis gerais ao militarismo europeu da época 16 Jeannin LEuropeduNordOuestetduNord p 330 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 185 atônicas o absolutismo tendia a acusar a ausência de pressão de uma necessidade vital de classe Daí a curiosa trajetória pendular do abso lutismo sueco distinta de qualquer outra na Europa Em vez de uma progressão através de contradições inicialmente graves até uma estabi lização e uma integração final e tranqüila da nobreza o que como vimos era a evolução normal nos outros países na Suécia a monar quia absoluta sofreu reveses periódicos todas as vezes em que teve lugar uma minoridade monárquica Não obstante recuperou com a mesma freqüência o terreno perdido às Cartas aristocráticas de 1611 1632 e 1720 que limitavam o poder real seguiuse o recrudescimento do po der absoluto nas décadas de 1620 e 1680 e nos anos 17728917 O mais surpreendente nessas oscilações é a relativa facilidade com que a aris tocracia conseguia adaptarse a uma ou a outra forma de Estado monárquica ou representativa Ao longo de seus três séculos de existência o absolutismo sueco sofreu várias recaídas institucionais mas nunca enfrentou uma verdadeira rebelião política da nobreza como as da Espanha França e Inglaterra Justamente porque no plano interno este era em certa medida um Estado facultativo para a classe dominante a aristocracia podia avançar ou recuar frente a ele sem sofrer muito comoção ou malestar A história da Suécia desde a morte de Gustavo Adolfo em 1632 até o putsch de Gustavo III em 1789 é em grande parte a desses sucessivos ajustamentos Naturalmente as divisões e conflitos no interior da própria no breza constituíam um dos mecanismos centrais de regulação dessas transformações periódicas Assim o Protocolo de Governo imposto por Oxenstierna sobre Lützen oficializou o domínio dos magnatas no rd preenchido agora com seus próprios parentes durante a regência de 163240 O chanceler em breve se defrontou com uma baixa estratégica na Alemanha a vitória imperial em Nordlingen em 1634 foí seguida pela deserção da maior parte dos príncipes protestantes em 1635 en quanto os lucrativos tributos prussianos de importância crítica para os esforços de guerra suecos prescreviam por tratado As receitas fiscais suecas cobriam apenas a manutenção da frota do Báltico tri plicada para noventa navios por Gustavo Adolfo e da defesa interna A partir daí os subsídios franceses tornaramse indispensáveis para que Estocolmo prosseguisse a luta em 1641 alcançaram um terço do 17 Roberts assinala que o constitucionalismo aristocrático nunca conseguiu uma vitória sobre um rei na maioridade era a relativa freqüência de herdeiros menores que lhe proporcionava oportunidades periódicas de reafirmação Essays in Swedish fíis tory p 33 186 PERRY ANDERSON rendimento doméstico do Estado18 Às campanhas na Alemanha du rante a metade final da Guerra dos Trinta Anos travadas com exér citos muito menores que as enormes hostes mobilizadas em Breitenfeld ou Lützen foram financiadas por empréstimos e subvenções estrangei ras e por somas extorquidas impiedosamente pelos comandantes em ação no estrangeiro Em 1643 Oxenstierna liberou Torstensson o melhor general sueco para uma campanha secundária contra a Di namarca O resultado desse ataque foi satisfatório conquistas provin ciais ao longo da fronteira com a Noruega e bases insulares no Báltico que puseram termo ao controle dinamarquês sobre as duas margens do Sund No conflito mais amplo as tropas suecas tinham já atingido Praga quando a paz foi restaurada em 1648 O Tratado de Vestfália consagrou a estatura internacional da Suécia como parceira da França na vitória final da longa disputa na Alemanha O Estado Vasa adquiriu a Pomerânia ocidental e Bremen na própria pátria alemã além do con trole da foz do Elba do Oder e do Veser os três maiores rios do norte da Alemanha Enquanto isso no entanto a ascensão de Cristina em 1644 levara formalmente à reafirmação do poder monárquico mas este foi usado pela insensata rainha para cumular de títulos e terras o estrato superior da aristocracia e o enxame de aventureiros burocráticomilitares que tinham sido chamados ao serviço da Suécia durante a Guerra dos Trin ta Anos Cristina multiplicou por seis o número de condes e de barões no estrato mais alto do Riddarhus e duplicou o tamanho dos dois estra tos inferiores Pela primeira vez a nobreza sueca adquiriu força numé rica apreciável recrutada principalmente no exterior mais de metade da aristocracia viria a ser de origem estrangeira por volta de 170019 Além disso por sugestão de Oxenstierna que advogava a transforma ção das tradicionais receitas estatais em espécie em fluxos monetários mais seguros a monarquia alienou em enorme escala as terras e os impostos reais a uma elite de funcionários e dependentes entre 1611 e 1652 a área total das propriedades fundiárias da nobreza duplicou ao passo que no reinado de Cristina as receitas do Estado despencaram na mesma proporção20 A transferência para os proprietários privados 18 Roberts Sweden and the Baltic 16111654 The New Cambridge Modem History IV p 401 19 R M Hatton CharlesXIIof Sweden Londres 1968 p 38 20 As receitas totais caíram em 40 por cento na década entre 1644 e 1653 Para uma descrição de todo o episódio ver o ensaio de Roberts Queen Christina and the General Crisisof the SeventeenthCentury Essays in Swedish History pp 11137 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 187 das receitas fiscais provenientes dos camponeses livres ameaçava redu zir estes últimos a uma dependência total diante dos primeiros o que provocou vigorosa reação do campesinato Mas foi a hostilidade da pequena nobreza que não se beneficiara da prodigalidade gratuita da rainha que assegurou a brevidade desta revolução nos padrões de pro priedade da Suécia Em 1654 Cristina abdicou a fim de abraçar o catolicismo depois de ter preparado a sucessão de seu primo O novo rei Carlos X re lançou imediatamente o expansionismo sueco com uma selvagem agres são à Polônia em 1655 Cortando o avanço russo a partir do leste e dispersando os exércitos poloneses as forças expedicionárias suecas to maram Potsdam Varsóvia e Cracóvia numa rápida sucessão a Prús sia oriental foi oficialmente declarada um feudo sueco e a Lituânia anexada Os sucessivos ataques da Holanda pelo mar e a recuperação polonesa afrouxaram o controle dessa ocupação espetacular mas foi o ataque direto da Dinamarca à Suécia na retaguarda do rei que anulou a conquista da Polônia Fazendo recuar rapidamente as suas tropas através da Pomerânia Carlos X marchou sobre Copenhagen e afastou a Dinamarca da guerra A vitória no Sund possibilitou a anexação da Scania A abertura de novas hostilidades para estabelecer o controle sueco sobre a passagem para o Báltico foi frustrada pela intervenção holandesa Em 1660 a morte de Carlos X pôs fim à aventura na Polô nia e ao conflito na Dinamarca Seguiuse uma outra regência da alta nobreza durante a minoridade de 166072 dominada pelo chanceler De La Gardie Os planos monárquicos de recuperação dasreceitas que Carlos X imaginara por breve tempo antes de suas precipitadas campa nhas ultramarinas foram abandonados Um inseguro governo da alta nobreza continuou a vender as propriedades da monarquia enquanto buscava uma política externa despretensiosa Significativamente foi nesta década que foram impostos pela primeira vez na história da Sué cia os códigos senhoriais degârdsratt que conferiam aos proprietários de terra a jurisdição privada sobre os seus próprios camponeses21 A eclosão de uma grande guerra européia com o ataque de Luís XIV à Holanda acabou por forçar este regime como aliado e cliente da Fran ça a um Letárgico conflito diversivo com o Brandenburgo em 1674 O fracasso militar na Alemanha desacreditou a camarilha de De La Gar die e pavimentou o caminho para a espetacular reascensão da monar 21 Foram de novo abolidos na década de 1670 Jeannin LEvrope du Nord Ouest et du Nord p 135 188 PERRY ANDERSON quia sob o novo soberano que atingira a sua maioridade durante as guerras Em 1680 Carlos XI serviuse do Riksdag para abolir os privi légios tradicionais do rãd e para recuperar as terras e rendimentos da dinastia que tinham sido alienadas contando com o apoio da baixa nobreza As reduções reais ocorreram em enorme escala 80 por cento de todos os domínios alienados foram recuperados pela monar quia sem compensações e a proporção de terras cultivadas nas mãos da nobreza sueca caiu para metade22 Foi proibida a criação de novas pro priedades isentas de impostos As reduções foram realizadas com minúcia particular nas possessões ultramarinas Não afetaram a conso lidação senhorial dentro das propriedades da aristocracia o seu resul tado final foi a restauração do status quo ante na distribuição da pro priedade agrária que vigorava no início do século23 Os rendimentos do Estado renovados por tal programa às custas do estrato mais alto da nobreza foram ainda mais aumentados com a elevação dos impostos cobrados ao campesinato O Riksdag assentiu submissamente a este crescimento sem precedentes do poder pessoal de Carlos XI que acom panhou a reduktion abdicando a virtualmente todos os seus direitos de controle ou limitação de seu governo Carlos XI aproveitou sua posição para reformar o exército através da implantação de um campesinato militar em terras especialmente distribuídas segundo o sistema de lo teamento chamado indelningsverket o que aliviou o tesouro dos paga 22 Quanto às reduções ver J Rosen Scandinavia and the Baltic The New Cambridge Modem History ofEurope V p 534 Em 1655 os nobres possuíam 23 das terras do país Por volta de 1700 a proporção era de 33 por cento para a nobreza 36 por cento para a coroa e 31 por cento para os camponeses que pagavam impostos As redu ções fizeram crescer as receitas da monarquia em 2 milhões de daleres por ano no final do reinado deste acréscimo 23 derivavam de reapropriações realizadas nas províncias ultramarinas 23 As dramáticas peripécias que caracterizaram as alienações e devoluções do patrimônio real sueco em meados do século XVII e que num breve espaço de tempo embaralharam todo o padrão de propriedade do país têm sido interpretadas como indício de uma profunda luta social pela terra na qual o campesinato sueco apenas se salvou de uma servidão livoniana graças às reduções Apesar de muito difundido tal ponto de vista é inaceitável Com efeito as origens deste interlúdio estão manifestamente relacio nadas aos caprichos pessoais de Cristina As suas temerárias doações foram feitas em tempo de paz e não correspondiam a qualquer necessidade objetiva da monarquia tam pouco resultavam de exigências ou pressões coletivas irrecusáveis provenientes da no breza Conquistadas sem esiorço pela alta aristocracia foram abandonadas sem resis tência Nunca houve um confronto pela terra com gravidade equivalente aos interesses formalmente envolvidos Podese afirmar que seria necessário mais que a liberalidade irresponsável de uma rainha para quebrar as liberdades do campesinato sueco LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 189 mentos em dinheiro às tropas estacionadas no país O aparelho militar permanente foi ampliado para uma força de 63 mil homens na década de 1680 dos quais mais de um terço eram unidades profissionais esta cionadas no exterior A frota foi cuidadosamente reconstruída por ra zões tanto estratégicas como comerciais A burocracia à qual a baixa nobreza tinha agora livre acesso foi adestrada e dinamizada A Scania e a Livônia foram submetidas a estreita centralização e suecização24 O poder real estava consumado na última década do reinado em 1693 o Riksdag acabou por aprovar uma servil resolução que declarava o di reito divino do rei à soberania absoluta sobre o seu reino como repre sentante ungido do criador Carlos XI que como Frederico Guilherme I da Prússia foi no exterior um monarca comedido e cauteloso não tolerou oposição a sua vontade dentro do país A melhor expressão de sua obra foi o espantoso reinado de seu filho Carlos XII que ultrapassou o pai em um poder autocrático ideo logicamente proclamado desde o dia em que subiu ao trono em 1697 Ultimo dos reis guerreiros da dinastia Vasa foi capaz de passar dezoito anos no exterior nove dos quais cativo na Turquia sem que na sua ausência a administração civil de seu país jamais se visse ameaçada ou interrompida Ê improvável que qualquer outro governante da época tenha sido tão confiante quanto a seu patrimônio Com efeito quase todo o reinado de Carlos XII foi ocupado com a sua longa odisséia na Europa oriental durante a Grande Guerra do Norte Por volta de 1700 o sistema imperial sueco no Báltico aproximavase de seu dia decisivo Apesar da rigorosa revisão administrativa por que passara recente mente sob o governo de Carlos XI a sua base econômica e demográfica era muito limitada para sustentar sua expansão contra a hostilidade combinada de seus vizinhos e rivais Uma população doméstica de tal vez l milhão e 500 mil pessoas atingia duplicandose 3 milhões de habitantes com a população ultramarina as suas reservas humanas e financeiras permitiram no máximo a mobilização de 110 mil soldados inclusive os mercenários estrangeiros na época de Carlos XII dos quais menos da metade esteve disponível para as suas mais importantes campanhas ofensivas25 A centralização Vasa provocara ademais uma reação particularista entre a nobreza semigermânica das províncias bálticas vítima especial das recuperações monárquicas do reinado an 24 Rosen Scandinavia and the Baltic pp 5357 25 O ataque à Rússia em 1709 foi lançado com cerca de 44 mil homens Hatton Charles XííofSweden p 233 190 PERRY ANDERSON terior A experiência da Catalunha e da Escócia seria agora reeditada na Livônia Por volta de 1699 a Dinamarca a Saxônia a Polônia e a Rússia congregaramse contra a Suécia o sinal para a guerra foi uma revolta separatista na Latívia conduzida pela nobreza local que defen dia a incorporação à Polônia Carlos XII atacou primeiro a Dina marca rapidamente derrotada com o auxílio naval angloholandês a seguir a Rússia onde uma pequena força sueca aniquilou o exército de Pedro I em Narva veio depois a Polônia onde Augusto II foi expulso do país após pesadas batalhas sendo instalado em seu lugar um prín cipe nomeado pela Suécia e por fim a Saxônia impiedosamente ocu pada e saqueada Após esta evolução militar em torno do Báltico o exército sueco penetrou profundamente na Ucrânia para se juntar aos cossacos de Zaporozhe e marchar sobre Moscou26 Entretanto o abso lutismo russo era agora algo mais que um simples exercício para as colunas de Carlos XII em 1709 em Poltava e Perevolotchna o império sueco foi destruído no ponto historicamente mais remoto de sua pene tração militar no Leste Uma década depois terminava a Grande Guerra do Norte com a Suécia arruinada e despojada da Ingria Caré lia Livônia e Pomerânia ocidental além de Bremen A autocracia imperial de Carlos XII desapareceu com ele Quan do os desastres da Grande Guerra do Norte desembocaram na morte do rei em meio a uma disputada sucessão a nobreza engendrou habil mente um sistema constitucional que fez dos estados o supremo órgão político e transformou temporariamente a monarquia num simples símbolo A Era da Liberdade de 1720 a 1772 estabeleceu um cor rupto regime de parlamentarismo aristocrático dividido por conflitos faccionários entre os partidos dos Chapéus e das Boinas manipulados por sua vez pela burocracia nobiliária e insuflados por gratificações e subvenções da Inglaterra França e Rússia A nova ordem perdeu o conteúdo de alta nobreza o grosso da média e da baixa nobreza que dominara o serviço público e o exército ganhou cada vez mais uma estatura própria Aboliuse a divisão do estado nobre em três ordens 26 É notório o erro crasso implícito nesta aventura Devese notar que o talento militar do absolutismo sueco esteve quase sempre associado à miopia política Seus go vernantes de modo geral empenharamse com consumada perícia em objetivos errôneos Gustavo Adolfo vagou em vão pela Alemanha quando os interesses de longo prazo da Suécia apontavam para a conquista da Dinamarca e o domínio do Sund Carlos XII investiu inutilmente sobre a Ucrânia incitado pela Inglaterra quando uma aliança com a França e o ataque à Áustria teria modificado todo o curso da Guerra da Sucessão Es panhola e salvo a Suécia de seu completo isolamento após o término da luta no Leste A dinastia jamais superou um certo provincianismo em sua visão estratégica LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUT1STA 191 No seu conjunto os privilégios sociais e econômicos da aristocracia fo ram ciosamente preservados estava proibido o acesso plebeu às terras da nobreza ou aos casamentos com nobres O Riksdag de cujo Co mitê Secreto foram excluídos os representantes camponeses tomou se o centro formal da organização política ao passo que a sua arena real passou a ser o Riddarhus21 Finalmente a crescente agitação so cial contra os privilégios da nobreza entre o baixo clero as cidades me nores e o campesinato ameaçava romper o círculo encantado de mano bras no interior do sistema Em 1760 o programa do Novo Partido da Boina embora associado a uma impopular deflação da economia ex primia a vaga crescente de descontentamento plebeu O alarme aristo crático diante da perspectiva de uma contestação vinda de baixo pro duziu então um súbito abandono final do parlamentarismo A ascensão de Gustavo III veio a ser o sinal para que mais uma vez a aristocracia se alinhasse a uma fórmula absolutista sem maiores percalços efetuouse umpittsch monárquico apoiado pelo corpo de guardas com a conivên cia da burocracia O Riksdag apaticamente deixou passar sem oposi ção uma nova Carta constitucional que de novo consagrava a autori dade da monarquia inicialmente sem retorno pleno ao absolutismo de Carlos XI ou de Carlos XII O novo monarca entretanto enveredou energicamente por um despotismo iluminado de modelo setecentista renovando a administração e reservando um poder cada vez mais arbi trário a sua pessoa Quando a nobreza resistiu a essa orientação Gus tavo III impôs ao Riksdag um Ato de União e Segurança como medida de emergência que restaurou em 1789 um absolutismo consumado A fim de atingir os seus objetivos o rei teve que prometer aos estados mais baixos o acesso ao serviço público e ao judiciário o direito de aquisição de terras da nobreza e outras reivindicações sociais de caráter igualitário Assim as horas finais do absolutismo sueco foram vividas numa anômala atmosfera de carreira aberta aos talentos e de restri ção dos privilégios da nobreza Com isso a racionalidade política da monarquia absoluta soltava as suas amarras mais importantes indício seguro de fim próximo Numa última e bizarra troca de papéis o auto crata radical tornouse o defensor europeu mais fervoroso da inter venção contrarevolucionária diante da Revolução Francesa enquanto os nobres descontentes adotavam os ideais republicanos dos Direitos do Homem Em 1792 Gustavo foi assassinado por um funcionário aristo 27 Ver Roberts Essays in Swedish History pp 2728 a interdição de compra de terras da nobreza pelos plebeus limitouse depois apenas aos camponeses ao passa que as restrições matrimoniais também foram atenuadas 192 PERRY ANDERSON crata dissidente A subdeterminação histórica do absolutismo sue co nunca foi tão visível como neste estranho clímax Um Estado fa cultativo encontrava aparentemente o seu fim numa absoluta casua lidade SEGUNDA PARTE Europa oriental O absolutismo no Leste É necessário agora que retornemos à metade oriental da Europa ou mais precisamente a essa parte poupada à invasão otomana que varreu os Bálcãs em sucessivas ondas invasoras submetendoos a uma história regional distinta da história do restante do continente Vimos já como a grande crise que abalou as economias européias nos séculos XIV e XV gerou uma violenta reação senhorial a leste do Elba A re pressão desencadeada pelos senhores de terra contra os camponeses cresceu em intensidade durante todo o século XVI O resultado político desse processo na Prússia e na Rússia foi um absolutismo no Leste contemporâneo do absolutismo do Ocidente porém de linhagem basi camente diferente O Estado absolutista do Ocidente foi o aparelho político recolocado de uma classe feudal que aceitara a comutação das obrigações Foi uma compensação pelo desaparecimento da servidão no contexto de uma economia crescentemente urbana que ele não con trolava completamente e à qual tinha de adaptarse O Estado absolu tista do Leste ao contrário foi a máquina repressiva de uma classe feudal que acabara de suprimir as tradicionais liberdades comunais da população pobre Foi um mecanismo para a consolidação da servidão num ambiente onde não existiam cidades autônomas ou uma resis tência urbana A reação senhorial no Leste significou que um nove mundo tinha que ser implantado de cima para baixo à viva força A dose de violência injetada nas relações sociais foi proporcionalmente muito maior O Estado absolutista do Leste nunca perdeu os sinais desta experiência originária 196 PERRY ANDERSON Não obstante ao mesmo tempo a luta de classes no seio das formações sociais do Leste e o resultado dela a imposição da servi dão ao campesinato não basta para explicar completamente o surgi mento de um tipo distinto de absolutismo na região A distância entre ambos pode ser cronologicamente medida na Prússia onde a reação senhorial da nobreza já derrubara a maior parte do campesinato com a difusão do Gutsherrschaft no século XVI cem anos antes do estabele cimento do Estado absolutista no século XVII Na Polônia a pátria clássica da segunda servidão jamais surgiu um Estado absolutista embora esta fosse uma falha pela qual a classe nobre pagaria com a sua própria existência nacional Aí também entretanto o século XVI pre senciaria a dominação feudal descentralizada regida por um sistema representativo totalmente controlado pela aristocracia e onde era frágil o poder dos príncipes Na Hungria a imposição definitiva da servidão ao campesinato foi consumada após a Guerra AustroTurca na virada do século XVII enquanto a nobreza magiar resistia com êxito à impo sição de um absolutismo Habsburgo1 Na Rússia a implantação do regime servil e a edificação do absolutismo foram mais estreitamente coordenados mas mesmo aí o aparecimento do primeiro precedeu à consolidação do segundo e posteriormente nem sempre acompanhou pari passu o seu desenvolvimento Uma vez que as relações servis de produção envolvem uma fusão direta de propriedade e soberania do mínio do poder e domínio da terra não há nada em si de surpreen dente em um Estado nobiliário policêntrico como o que existiu origi nalmente na Alemanha transelbiana na Polônia ou na Hungria depois da reação senhorial no Leste Para explicar a ascensão subseqüente do absolutismo é necessário em primeiro lugar reinserir todo o processo da segunda servidão no sistema político internacional da Europa feudal na última fase Vimos que tem sido muitas vezes exagerado o impacto da econo mia ocidental mais avançada sobre o Leste nessa época como a única ou principal força responsável pela reação senhorial Na realidade em bora o comércio de cereais tenha sem dúvida intensificado a exploração servil na Alemanha oriental ou na Polônia este não a inaugurou em nenhum desses países nem desempenhou qualquer papel no desenvol vimento paralelo da Boêmia ou da Rússia Em outras palavras se é 1 Ver Zs Pach Die ungarische Agrarentwicklung im 1617 Jahrhundert pp 3841536 quanto às fases desses processos eo impacto da Guerra dos Treze Anos sobre a condição dos camponeses LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 197 incorreto atribuir importância central aos vínculos econômicos do co mércio de exportação e importação entre o Leste e o Ocidente isso se deve a que o próprio modo de produção feudal de maneira alguma superado na Europa ocidental durante os séculos XVI e XVII era incapaz de criar um sistema econômico internacional unificado apenas o mercado mundial do capitalismo industrial conseguiu realizálo ao irradiarse a partir dos países mais avançados para moldar e dominar o desenvolvimento dos países atrasados As economias ocidentais compó sitas da época de transição que combinavam via de regra uma agricultura semimonetarizada e feudal pósservil com enclaves de ca pital mercantil e manufatureirp não dispunham dessa força com pulsiva O investimento estrangeiro era mínimo exceto nos impérios coloniais e em certa medida na Escandinávia O comércio externo ainda representava uma pequena porcentagem do produto nacional de todos os países com exceção da Holanda e de Veneza Desse modo era intrinsecamente implausível qualquer integração em bloco do Leste eu ropeu em um circuito econômico da Europa ocidental como pare cem sugerir certas expressões utilizadas pelos historiadores tais como economia colonial ou interesses da empresa agrícola quando se referem ao sistema Gutsherrschaft além do Elba Não se pretende afirmar entretanto que o impacto da Europa ocidental sobre a oriental não tenha sido determinante para as estru turas políticas que ai surgiram Com efeito a interação transnacional dentro do feudalismo sempre se realizou primordialmente no nível polí tico e não no econômico precisamente porque se tratava de um modo de produção fundado na coerção extraeconômica a conquista e não 2 O índice real de monetarização das diversas agriculturas da Europa ocidental nos séculos XVI e XVII era provavelmente muito inferior ao que vulgarmente se pensa Jean Meuvret nota que na França do século XVI o campesinato vivia praticamente por toda a parte num regime de quaseautarquia doméstica ao passo que a vida coti diana dos artesãos inclusive os pequenos burgueses era efetivamente regida pelo mesmo princípio nomeadamente o de viver sobretudo de alimentos cultivados no solo das terras que possuíam e apenas comprar e vender um mínimo pois para satisfazer as necessi dades ordinárias o uso das moedas de ouro ou de prata era completamente desnecessá rio Com efeito dado o número limitado de transações comerciais indispensáveis podia se muitas vezes passar sem o dinheiro Jean Meuvret Circulatíon Monétaire et Útil i sation Economique de Ia Monnaie dans Ia France du XVIe et du XVIIe siècle1 Êtudes dHistoire Moderne et Contemporaine 1947 vol I p 20 Porshnev caracteriza apro priadamente a situação geral ao definila como a contradição entre a forma monetária e a base natural da economia feudal na época e comenta que as dificuldades fiscais do absolutismo originavamse em toda a parte desta contradição Lês Soulèvements Popu laires en France p 558 198 PERRY ANDERSON o comércio era a sua forma básica de expansão O desenvolvimento desigual do feudalismo na Europa encontrou pois a sua expressão mais direta e característica não nas balanças de comércio mas no equi líbrio militar entre as diversas regiões do continente Em outros termos a mediação principal entre o Leste e o Ocidente nesta época era militar Foi a pressão internacional do absolutismo do Ocidente o aparelho político de uma aristocracia feudal mais poderosa que dominava socie dades mais avançadas que forçou a nobreza do Leste a adotar uma máquina de Estado identicamente centralizada para poder sobreviver De outra maneira a superioridade militar dos exércitos absolutistas ampliados e reorganizados cobraria inevitavelmente o seu tributo atra vés da forma habitual de competição interfeudal a guerra A própria modernização das tropas e das táticas efetuada pela revolução mili tar no Ocidente depois de 1560 tornara a agressão aos vastos espaços do Leste mais viável que nunca aumentando na mesma escala os riscos de uma invasão para as aristocracias daquela região Assim numa épo ca em que divergiam as relações de produção infraestruturais ocorria uma convergência paradoxal no nível das superestruturas nas duas zo nas da Europa o que constituía evidentemente um indício da exis tência de um modo de produção em última análise comum A forma concreta inicialmente assumida pela ameaça militar do absolutismo ocidental foi para a sorte das nobrezas orientais historicamente indi reta e transitória Em vista disso são ainda mais surpreendentes os efeitos imediatamente catalíticos que tiveram sobre o conjunto do pa drão político do Leste Na direção sul a frente entre as duas regiões foi ocupada pelo extenso duelo austroturco que por 250 anos desviou a atenção dos Habsburgo para os seus inimigos otomanos e seus vassalos da Hungria No centro a Alemanha constituía um labirinto de peque nos e frágeis Estados divididos e neutralizados por conflitos religiosos Foi portanto do norte relativamente primitivo que veio o ataque A Suécia o mais novo e surpreendente de todos os absolutismos oci dentais um país recente com uma população muito limitada e uma economia rudimentar revelouse o flagelo do Leste O seu impacto na Prússia Polônia e Rússia nos noventa anos que decorreram entre 1630 e 1720 exige a comparação com o da Espanha na Europa oci dental numa época anterior embora nunca tenha sido estudado com a mesma atenção Esse foi não obstante um dos maiores ciclos de ex pansão militar na história do absolutismo europeu No seu auge a ca valaria sueca entrou vitoriosamente em cinco capitais Moscou Var sóvia Berlim Dresden e Praga descrevendo um vasto arco de terri tórios na Europa oriental que excedia mesmo as campanhas dos tercios LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 199 espanhóis na Europa ocidental Na Áustria e na Prússia na Polônia e na Rússia os sistemas estatais sofreram sem exceção o seu impacto formativo A primeira conquista externa da Suécia foi a tomada da Estônia durante a longa Guerra da Livônia travada com a Rússia nas últimas décadas do século XVI Entretanto foi a Guerra dos Trinta Anos que produziu o primeiro sistema político internacional completamente for malizado da Europa que marcou com propriedade o início decisivo da irrupção sueca para leste A marcha espetacular dos exércitos de Gus tavo Adolfo sobre a Alemanha fazendo retroceder o poder Habsburgo para espanto da Europa revelouse o ponto crucial da guerra enquan to os êxitos posteriores de Baner e Torstensson frustraram qualquer recuperação a longo prazo da causa do Império A partir de 1641 as tropas suecas ocuparam permanentemente amplas áreas da Morávia3 e quando a guerra terminou em 1648 estavam acampadas na mar gem oriental do Vitava em Praga A intervenção sueca destruíra defi nitivamente a perspectiva de um Estado imperial Habsburgo na Ale manha daí em diante o curso e o caráter do absolutismo austríaco seria totalmente determinado por tal derrota que afastou qualquer possibilidade de instaurar uma sede territorial consolidada nos terri tórios tradicionais do Reich e às suas custas desviou o seu centro de gravidade para leste Ao mesmo tempo o impacto do poderio sueco sobre a evolução da Prússia menos visível no plano internacional foi no plano interno ainda mais decisivo Desde 1631 o Brandenburgo passou a ser ocupado por exércitos suecos e embora tecnicamente fosse um aliado da causa protestante foi imediatamente submetido a impla cáveis requisições militares e exações fiscais jamais conhecidas ante riormente os privilégios tradicionais dos Estados junkers foram des truídos sem demora pelos comandantes suecos4 O trauma desta expe riência associouse à aquisição da Pomerânia ocidental pela Suécia com o Tratado de Vestfália em 1648 que assegurou aos suecos uma ampla e permanente cabeça de ponte no litoral sul do Báltico As guar nições suecas controlavam agora o Odra colocando sob ameaça direta a até então desmilitarizada e descentralizada classe dominante do Brandenburgo uma região que praticamente não dispunha de exército 3 Ver J V Polisensky The Thirty Years War Londres 1971 pp 22431 4 Carsten The Oríginsof Prússia p 179 Gustavo Adolfo tomara alguns anos antes as estratégicas fortalezas de Memel e Pillau na Prússia oriental que controlavam o acesso a Kônigsberg e aí lançou tributos para a Suécia cp cit pp 2056 200 PERRY ANDERSON A construção do absolutismo prussiano a partir da década de 1650 por iniciativa do Grande Eleitor constituiu em grande medida uma res posta direta à latente ameaça dos suecos o exército permanente que seria a pedra de toque da autocracia Hohenzollern e o seu sistema fis cal foram aceitos pelos junkers em 1653 para acudir a uma situação de guerra iminente no teatro do Báltico e para resistir aos perigos exter nos Na verdade a Guerra SuecoPolaca de 165560 revelouse o ponto crucial na evolução política de Berlim que evitara o impacto da agres são sueca ao participar da luta como apreensivo parceiro menor de Estocolmo O próximo grande passo na construção do absolutismo prussiano foi dado uma vez mais em resposta ao conflito militar com a Suécia Durante a década de 1670 nos estertores das campanhas suecas contra o Brandenburgo que constituíram o teatro setentrional da guerra desencadeada pela França no Ocidente o notável General kriegskommissariat iria ocupar as funções do antigo conselho privado passando a moldar daí para a frente toda a estrutura da máquina de Estado Hohenzollern O absolutismo prussiano na sua configuração definitiva veio à luz durante a época e sob a pressão do expansionismo sueco Enquanto isso foi nessas mesmas décadas posteriores ao Tratado de Vestfália que se abateu sobre o Leste o mais forte dos ventos nórdi cos A invasão da Polônia pela Suécia em 1655 despedaçou rapida mente a tênue confederação aristocrática dos szlachta Caíram Varsó via e Cracóvia e todo o vale do Vístula foi lacerado pelas marchas e contramarchas das tropas de Carlos X A principal conseqüência estra tégica da guerra foi privar a Polônia de toda a suserania sobre o ducado da Prússia Mas os resultados sociais do devastador ataque sueco foram mais sérios o panorama econômico e demográfico polonês foi tão gra vemente afetado que a invasão sueca passou a ser conhecida como o Dilúvio que separou para sempre a anterior prosperidade da Rzecz pospolita da crise e do declínio irrecuperáveis nos quais esta se afundou desde então A última e breve recuperação das armas polonesas na década de 1680 quando Sobieski chefiou o auxílio a Viena contra os turcos foi logo seguida pela segunda devastação da Comunidade pelos suecos durante a Grande Guerra do Norte de 17011721 na qual o principal teatro da destruição foi uma vez mais a Polônia Quando os últimos soldados escandinavos deixaram Varsóvia a Polônia deixara de ser uma potência européia importante A nobreza polaca por razões que discutiremos depois não conseguiu gerar um absolutismo durante essas ordálias Com isso demonstrou na prática as conseqüências de não têlo feito para uma classe feudal do Leste incapaz de se recuperar LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 201 dos golpes mortais infligidos pela Suécia a Polônia acabou por deixar de existir como Estado independente A Rússia como sempre representa um caso algo diferente num terreno histórico comum Aí mais cedo que em qualquer outra região da Europa oriental tornouse nítido o impulso existente no seio da nobreza para uma monarquia militar Em parte tal se devia à pré história do Estado kieviano e à tradição imperial bizantina que este transmitiu através da caótica Idade Média russa por intermédio da ideologia da Terceira Roma Ivâ III casarase com a sobrinha do último imperador paleólogo de Constantinopla passando a reivindicar o título de czar ou imperador em 1480 A ideologia da translatio imperii era duvidosa porém menos importante do que a constante pressão exercida sobre a Rússia pelos pastores tártaros e turcomanos da Ãsia central A suserania política da Horda de Ouro sobreviveu até o final do século XV Os canatos de Kazã e Astrakã que a sucederam lançaram constantes incursões de captura de escravos a partir do Oriente até serem derrotados e anexados em meados do século XVI Nos cem anos seguintes os tártaros da Criméia então sob o domínio otomano varreram o território russo a partir do sul as suas expedições de pilhagem e escravizaçao fizeram da maior parte da Ucrânia uma região selvagem e despovoada5 No início da Idade Moderna faltava aos cavaleiros tártaros a capacidade de conquistar ou ocupar com cará ter de permanência Mas a Rússia sentinela da Europa tinha que suportar o impacto de seus ataques e o resultado foi um impulso no sentido de um Estado centralizado mais precoce e intenso no ducado da Moscóvia que no bem protegido Eleitorado do Brandenburgo ou na Comunidade polonesa Mas a partir do século XVI a ameaça militar do Ocidente foi sempre muito maior que no Leste já que a artilharia pesada e a infantaria moderna suplantavam agora com facilidade os arqueiros montados como armas de guerra Portanto também na Rússia as fases realmente decisivas da transição para o absolutismo ocorreram durante as etapas sucessivas da expansão sueca O reinado crucial de Ivã IV no final do século XVI foi dominado pelas longas Guerras da Livônia cujo vencedor estratégico foi a Suécia com a ane Território de um cã N T 5 Na véspera do ataque de Ivã IV ao canato tártaro de Kazan em 1552 estima se que haveria aí uns 100 mil escravos russos O número total de escravos capturados pelas incursões tártaras provenientes da Criméia na primeira metade do século XVII ultrapassa 200 mu G Vernadsky The Tsardom ofMoscow 15471682 Yale 1969 pp 12514 202 PERRY ANDERSON xação da Estônia pelo Tratado de Yam Zapolsky em 1582 um tram polim para o domínio do litoral norte do Báltico A Época das Dificul dades no início do século XVII que terminou com a importante as censão da dinastia Romanov viu a bandeira da Suécia desfraldarse nas longínquas reuniões da Rússia Em meio ao caos crescente uma unidade comandada por De La Gardie abriu caminho até Moscou para sustentar o usurpador Shuisky três anos depois um pretendente sueco o irmão de Gustavo Adolfo ficou a um triz da eleição para a própria monarquia russa sendo apenas bloqueado pela escolha de Mi khail Romanov em 1613 O novo regime foi prontamente forçado a ceder a Carélia e a íngria à Suécia que no espaço de mais uma década tomou toda a Livônia à Polônia o que lhe deu o controle virtualmente total do Báltico A influência sueca estendeuse também ao próprio sistema político russo nos primeiros anos da dominação Romanov E enfim evidentemente o maciço edifício estatal de Pedro I no início do século XVIII foi erguido na época e diante da suprema ofensiva militar sueca sobre a Rússia chefiada por Carlos XII que começou por dis persar os exércitos russos em Narva e por fim penetrou profundamente na Ucrânia O poder czarista foi pois forjado e testado no conflito internacional com o império sueco pela supremacia no Báltico O Es tado austríaco fora afastado da Alemanha graças à expansão sueca o Estado polonês totalmente desmembrado os Estados prussiano e russo ao contrário o enfrentaram e repeliram assumindo sua forma desenvolvida ao longo do conflito O absolutismo oriental foi por tanto fundamentalmente determinado pelas coações impostas pelo sistema político internacional em que as nobrezas de toda a região es tavam objetivamente integradas J Foi este o preço de sua sobrevivência numa civilização marcada pela incessante guerra territorial o desen volvimento desigual do feudalismo forçouas a confrontarse com as estruturas políticas do Ocidente antes de terem atingido um estágio semelhante de transição econômica para o capitalismo Não obstante este absolutismo foi também e inevitavelmente sobredeterminado pelo curso da luta de classes no seio das formações 6 J H Billington Thelcon and the Axé Londres 1966 p 110 este é um tema que convida a novas pesquisas 7 Para um reconhecimento desse fato por parte de um historiador russo ver A N Chistozvonov Nefcotorye Aspekty Froblemy Genezisa Absoliutizma Voprosy Is torii n 5 maio de 1968 pp 601 Embora contenha algumas opiniões extravagantes sobre a Espanha por exemplo este ensaio comparado é provavelmente a melhor aná lise soviética recente sobre as origens do absolutismo na Europa oriental e ocidental LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 203 sociais do Leste É necessário considerar agora as pressões endógenas que contribuíram para o seu surgimento Uma concordância inicial é surpreendente A decisiva consolidação econômica e jurídica da servi dão na Prússia Rússia e Boêmia ocorreu precisamente durante as mes mas décadas em que foram lançados os fundamentos seguros do Es tado absolutista Esta dupla evolução institucionalização da servi dão e inauguração do absolutismo esteve nos três casos estreita e nitidamente vinculada na história de cada uma destas formações so ciais No Brandenburgo o Grande Eleitor e os Estados firmaram o famoso acordo de 1653 consignado formalmente numa Carta por meio da qual a nobreza votava os impostos para um exército perma nente e o príncipe decretava ordenações que vinculavam irreversivel mente a força de trabalho rural à terra Os impostos seriam cobrados às cidades e aos camponeses e não aos próprioswwfrers ao passo que o exército seria o coração de todo o Estado prussiano Tratavase de um pacto que ao mesmo tempo aumentava o poder político da dinastia sobre a nobreza e o da nobreza sobre o campesinato A servidão da Alemanha oriental era assim normalizada e padronizada em todas as terras Hohenzollern do alémElba enquanto isso o sistema de Estados era implacavelmente suprimido pela monarquia província após pro víncia Por volta de 1683 o Landtage do Brandenburgo e da Prússia oriental tinha perdido todo o poder definitivamente8 Entretanto ocorria na Rússia uma conjuntura muito semelhante Em 1648 a Zems ky Sobor Assembléia da Terra reuniuse em Moscou para aprovar a histórica Sobornoe Ulozhenie que pela primeira vez codificou e uni versalizou a servidão para a população rural instituiu um estrito con trole estatal sobre as cidades e seus habitantes e ao mesmo tempo confirmou e instaurou a obrigação formal de todas as terras nobres prestarem serviço militar A Sobornoe Ulozhenie foi o primeiro código jurídico abrangente a ser publicado na Rússia e o seu advento marcou um importante acontecimento proporcionou efetivamente ao czarismo o corpo jurídico normativo para a sua consolidação como sistema polí tico Também aí a solene proclamação da passagem dos camponeses russos ao regime servil foi seguida pela rápida queda em desuso do sistema de Estados No espaço de uma década a Zemsky Sobor tinha efetivamente desaparecido enquanto a monarquia construía um gran 8 Quando os nobres reunidos adquiriram a melancólica convicção em Branden burgo de que os antigos privilégios dos Estados estavam virtualmente anulados e diluí dos de tal modo que nenhuma umbra libertatis parecia subsistir Citado por Carsten The QriginsofPrusxia p 200 204 PERRY ANDERSON de exército semipermanente que acabou por superar as antigas tropas recrutadas pela pequena nobreza A última e insignificante Zemsky Sobor passou ao esquecimento em 1683 quando já constituía um es pectral grupo da corte O pacto social entre a monarquia e a aristocra cia russas estava firmado estabelecendose o absolutismo em troca da consecução da servidão Um sincronismo semelhante ocorreu no desenvolvimento da Boê mia mais ou menos à mesma época se bem que no contexto diverso da Guerra dos Trinta Anos O Tratado de Vestfália que pôs fim em 1648 ao longo conflito militar consagrou a dupla vitória da monarquia Habsburgo sobre os Estados boêmios e da alta nobreza fundiária sobre o campesinato tcheco O grosso da antiga aristocracia tcheca fora eli minado após a Batalha do Monte Branco e com ela a constituição política que abrigava o seu poder local A Verneuerte Landesord nung que então entrou incontestavelmente em vigor concentrou todo o poder executivo em Viena os Estados uma vez extinto o seu tra dicional predomínio social foram reduzidos a um secundário papel protocolar A autonomia das cidades foi esmagada No campo segui ramse implacáveis medidas que reduziram à servidão os camponeses dos grandes domínios As amplas prescrições e confiscos sofridos pela antiga nobreza tcheca criaram uma nova e cosmopolita aristocracia de aventureiros e funcionários da corte que a partir daí conjuntamente com a Igreja passou a controlar quase três quartos das terras da Boê mia Houve imensas perdas demográficas após a Guerra dos Trinta Anos originandose dai graves crises de mãodeobra As prestações de serviços dos robot logo atingiram metade da semana de trabalho en quanto os tributos as dízimas e os impostos feudais chegavam a alcan çar dois terços da produção dos camponeses9 O absolutismo austríaco refreado na Alemanha triunfou na Boêmia e com tal triunfo extin guiamse as derradeiras liberdades do campesinato tcheco Portanto em todas as três regiões a consolidação do controle senhorial sobre os camponeses e a discriminação contra as cidades estiveram relacionadas a um acentuado incremento das prerrogativas da monarquia e foram seguidas pelo desaparecimento do sistema de Estados As cidades da Europa oriental como vimos foram de um modo geral despojadas e reprimidas na última depressão feudal O surto eco nômico que se verificou em todo o continente no século XVI alimentou porém um novo embora desigual crescimento das cidades em algu 9 Polisensky The Thirty Years War p 245 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 205 mas áreas do leste da Europa A partir de 1550 as cidades da Boêmia reconquistaram muito da sua prosperidade embora sob a égide de pa triciados urbanos estreitamente vinculados à nobreza por sua condição de proprietários das terras municipais e sem a vitalidade popular que outrora as distinguira na época hussita Na Prússia oriental Kõnigs berg permanecia como uma robusta guarda avançada da autonomia dos burgos Na Rússia Moscou florescera após a instauração formal do czarismo com Ivã III passando a beneficiarse largamente do comér cio de longa distância entre a Europa e a Ásia que atravessava a Rús sia do qual participavam também os antigos centros mercantis de Nov gorod e Pskov O amadurecimento dos Estados absolutistas no século XVII acabou por desferir um golpe fatal na possibilidade de um renas cimento da independência urbana no Leste As novas monarquias Hohenzollern Habsburgo e Romanov asseguraram de forma inaba lável a supremacia política da nobreza sobre as cidades A única pessoa jurídica seriamente capaz de resistir à Gleichshaltung do Grande Elei tor após o Recesso de 1653 foi a cidade de Kõnigsberg na Prússia oriental esta seria esmagada em 166263 e 1674 sob o olhar impávido âosjunkers locais10 Na Rússia a própria Moscou não dispunha de uma substancial classe burguesa sendo o comércio monopolizado pelos boiardos funcionários e um pequeno círculo de mercadores gostí que dependiam do governo quanto ao seu status e privilégios mas possuía muitos artesãos uma anárquica força de trabalho semirural e os tru culentos e corrompidos mosqueteiros da milícia streltsy A causa ime diata da convocação da fatídica Zemsky Sobor que promulgou a Sobor noe Ufozhenie foi a súbita explosão destes grupos heterogêneos As multidões amotinadas enraivecidas pelos crescentes preços das merca dorias básicas em razão dos aumentos nos impostos decretados pela administração Morozov tomaram Moscou e forçaram o czar a fugir da cidade enquanto o descontentamento ecoava nas províncias rurais na direção da Sibéria Uma vez recuperado o controle monárquico sobre a capital a Zemsky Sobor foi convocada e decretada a Ulozhenie Nov gorod e Pskov revoltaramse contra as exações fiscais e foram defini tivamente sufocadas deixando de ter qualquer importância econômica a partir daí Os últimos tumultos urbanos em Moscou ocorreram em 1662 quando os artesãos em revolta foram facilmente subjugados e em 1683 quando Pedro I liquidou finalmente astreltsy Desde então as cidades russas jamais criariam problemas à monarquia ou à aristo 10 Carsten The Originsof Prússia pp 2124 2201 206 PERRY ANDERSON cracia Nas terras tchecas a Guerra dos Trinta Anos abateu o orgulho e a prosperidade das cidades boêmias e morávias as incessantes devas tações e cercos durante as campanhas da guerra aliados ao cancela mento da autonomia municipal que as seguiu reduziramnas desde então a elementos passivos no interior do império Habsburgo Não obstante o mais importante fundamento interno do absolu tismo do Leste situavase no campo O seu complexo aparelho de re pressão dirigiase básica e primordialmente contra o campesinato O século XVII foi em quase toda a Europa uma época de queda de preços e de população No Leste as guerras e os desastres civis originaram crises de mãodeobra particularmente agudas A Guerra dos Trinta Anos infligira um acentuado recuo a toda a economia alemã a leste do Elba Em muitos distritos do Brandenburgo ocorreram perdas demo gráficas de até 50 por cento11 Na Boêmia a população total caiu de l milhão e 700 mil habitantes para l milhão à época da Paz de Vestfá lia12 Em terras da Rússia a pressão insuportável das Guerras da Li vônia e da Oprichnina conduziram à calamitosa evacuação e ao despo voamento da Rússia central nos últimos anos do século XVI de 76 a 96 por cento das povoacões da própria província de Moscou foram abandonadas13 A Época das Dificuldades com suas guerras civis in vasões estrangeiras e rebeliões rurais veio acrescentar a instabilidade e a escassez de força de trabalho à disposição da classe dos proprietários fundiários Assim a queda demográfica dessa época iria criar ou agra var uma escassez constante de trabalho rural para o cultivo dos domí nios Havia além disso um permanente pano de fundo regional para este fenômeno o endêmico problema do feudalismo do Leste configu rado na proporção terratrabalho existiam pouquíssimos campo neses espalhados por regiões extremamente vastas Uma comparação pode fornecer uma idéia aproximada do contraste de tais condições com as que existiam na Europa ocidental a densidade populacional da Rússia no século XVII era de três a quatro pessoas por quilômetro quadrado na mesma época em que na França chegava a quarenta ou seja dez vezes mais14 Nas férteis regiões agrícolas do sudeste da Polônia e da Ucrânia ocidental a mais rica região rural da Rzeczpos polita a densidade populacional era um pouco mais elevada entre 11 Stoye Europe Unfolding 16481688 p 31 12 Polisensky The Thirty Years War p 245 13 R H Hellie Enserfment mdMiütary Change in Muscovy p 95 14 R Mousnier Peasant Uprisings pp 157159 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 207 três a sete pessoas por quilômetro quadrado15 A maior parte da planí cie central da Bulgária situada agora na zona fronteiriça entre os impérios austríaco e turco era igualmente despovoada O principal objetivo da classe senhorial não era portanto como no Ocidente fixar o nível dos tributos a serem pagos pelo campesinato mas deter a mobi lidade dos aldeões e prendêlos aos domínios Inversamente em am plas áreas da Europa oriental a forma mais característica e eficaz de luta de classe empregada pelo campesinato era simplesmente a fuga o abandono coletivo da terra rumo a outras regiões desabitadas e inex ploradas Já descrevemos as medidas tomadas pelas nobrezas prussiana austríaca e tcheca para impedir tal mobilidade tradicional na última fase da Idade Média naturalmente estas foram intensificadas na épo ca inicial do absolutismo Quanto mais para leste na Rússia e na Po lônia mais sério ficava o problema Não havia fronteiras ou limites estáveis a definir a colonização nos vastos territórios do interior do Pon to entre os dois países as densas florestas do norte da Rússia foram tradicionalmente uma zona camponesa de terra negra fora do con trole senhorial ao passo que no Sudeste as regiões da Sibéria oci dental e do VolgaDon constituíam áreas de expansão remotas e des providas de caminhos ainda em processo gradual de ocupação A emi gração rural clandestina em todas essas direções oferecia a possibili dade de trocar a exploração senhorial pelo cultivo camponês indepen dente em condições pioneiras embora agrestes Ao longo do século XVII o longo e exaustivo processo de passagem à servidão sofrido pelo campesinato russo deve ser considerado tendo como pano de fundo este contexto natural rudimentar a existência de uma vasta margem friável em torno da sistema nobiliário de propriedade de terras Assim cons titui um paradoxo histórico o fato de que a Sibéria tenha sido em gran de parte desbravada por pequenos proprietários camponeses das comu nidades terra negra do norte em busca de maior liberdade indi vidual e de melhores oportunidades econômicas precisamente à época em que a grande massa do campesinato do centro afundava na mais abjeta servidão16 Esta ausência de uma fixação regular ao solo foi a responsável na Rússia pela surpreendente sobrevivência da escravi 15 P Skwarczyúski Poland and Lithuania The New Cambridge Modem History of Europe III Cambridge 1968 p 377 16 A N Sakharov O Dialektike Istoricheskovo Razvitiya Russkovo Krest yanstva Voprosy Istorii n l janeiro de 1970 pp 267 sublinha tal contraste 208 PERRY ANDERSON dão em escala considerável no final do século XVI os escravos ainda cultivavam entre 9 e 15 por cento dos domínios russos17 Com efeito como mostramos repetidamente a presença da escravidão rural numa formação social feudal sempre significa que o próprio sistema servil ainda não estava concluído e que um número considerável de produto res diretos estava ainda livre na área rural A posse de escravos era um dos principais bens da classe boiarda conferindolhes uma importante vantagem econômica em seus domínios frente à pequena nobreza de serviço18 tal deixou de ser necessário somente quando a rede da ser vidão colhera todo o campesinato russo no século XVIII Enquanto isso assistiase a uma feroz concorrência interfeudal pelo controle das almas necessárias ao cultivo das terras da nobreza ou da Igreja os boiardos e os mosteiros detentores de domínios mais lucrativos e ra cionais acolhiam muitas vezes servos fugidos de propriedades meno res obstruindo a sua recuperação pelos antigos senhores para a fúria da pequena nobreza fundiária Somente quando se estabeleceu uma estável e poderosa autocracia centralizada dispondo de um aparelho repressivo capaz de impor a vinculação à terra em toda a Rússia cessa ram estes conflitos Foi portanto a constante preocupação senhorial com o problema da mobilidade da mãodeobra no Leste o fator que esteve por trás de grande parte do impulso interno em direção do abso lutismo A legislação senhorial que vinculava o campesinato ao solo fora amplamente promulgada na época anterior Mas como vimos a sua implementação permaneceu habitualmente muito imperfeita os padrões reais da força de trabalho nem sempre correspondiam às provi dências dos livros legais Por toda a parte a missão do absolutismo foi converter a teoria jurídica em prática econômica Um aparelho repres sivo impiedosamente centralizado e unitário era uma necessidade obje tiva para a vigilância e a supressão da mobilidade rural generalizada em épocas de depressão econômica uma mera rede de jurisdições se 17 Mousnier Peasant Uprisings pp 1745 18 Ver a notável comunicação de Vernadsky Serfdom in Rússia X Con gressoInternazionalediScienzeStoriche Relazioni III Florença 1955 pp 24772 que salienta com acerto a importância da escravidão rural na Rússia como uma particulari dade do sistema agrário 19 Ê possível ter uma idéia aproximada da magnitude do problema para a clas se dominante russa a partir do fato de que ainda em 171819 muito tempo depois da consolidação jurídica da servidão geral o censo ordenado por Pedro I revelou nada me nos que 200 mil servos fugitivos o que ascendia a 34 por cento do total da população servil e que foram repatriados a seus antigos senhores Ver M Ya Volkov O Stanov lenii Absolitizmav Rossii Istoriya SSSR janeiro de 1970 p 104 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 209 nhoriais individualizadas por mais despótica que fosse já não conse guia enfrentar adequadamente o problema Neste aspecto as funções internas de polícia necessárias à segunda servidão no Leste foram mais exigentes que as requeridas pela primeira servidão no Ocidente O re sultado foi tornar possível um Estado absolutista que estava à frente das relações de produção nas quais se baseava contemporâneo ao do Ocidente na transição para relações pósservis A Polônia uma vez mais foi a exceção aparente à lógica desse processo Mas tal como no plano externo esta pagara o tributo do Dilúvio sueco por não ter gerado um absolutismo internamente o preço de seu fracasso foi a maior insurreição camponesa da época a ordália da Revolução Ucraniana de 1648 que lhe custou um terço do território e desferiu no moral e no orgulho da szlachta um golpe do qual esta nunca se recuperou completamente Este foi na verdade o prelú dio imediato à guerra contra a Suécia com a qual se encadeou O ca ráter particular da Revolução Ucraniana foi resultado direto do pro blema básico da mobilidade e do êxodo camponês no Leste20 Com efeito tratouse de uma rebelião desencadeada por cossacos relativa mente privilegiados do Dnieper originalmente camponeses russos e ru tênios fugitivos ou montanheses circassianos que haviam se estabele cido nas vastas regiões fronteiriças entre a Polônia a Rússia e o canato tártaro da Criméia Nessa terra de ninguém vieram a adotar um modo de vida seminômade e eqüestre semelhante ao dos tártaros contra os quais eles tradicionalmente lutavam Com o tempo desenvolveuse nas comunidades cossacas uma complexa estrutura social A sua sede polí tica e militar passou a ser a ilha fortificada sech abaixo das corredei ras do Dnieper criada em 1557 que formava um acampamento guer reiro organizado em regimentos que elegiam delegados a um conselho de oficiais ou starshina o qual por sua vez escolhia um comandante supremo ou Hetman Fora da sech de Zaporozhe bandos errantes de salteadores e homens das florestas mesclavamse às aldeias de lavra dores chefiados pelos anciãos A nobreza polaca ao depararse com tais comunidades em sua expansão na Ucrânia achou necessário tole rar a força armada dos cossacos de Zaporozhe limitandoa a alguns regimentos registrados e tecnicamente sob comando polonês Tropas cossacas foram utilizadas como cavalaria auxiliar nas campanhas da Polônia na Moldávia Livônia e Rússia e os oficiais vitoriosos chegaram 20 Para um relato completo sobre a estrutura social ucraniana e a revolução de 164854 ver Vernadsfcy The Tsrdom oMoscow I pp 43981 210 PERRY ANDERSON a constituir uma elite fundiária que dominava as fileiras cossacas por vezes chegando a tornarse membros da nobreza polaca Essa convergência social com a szlachta local que expandira gradualmente suas terras para leste não alterou a anomalia militar configurada na independência dos regimentos da sech com sua base semipopular de saqueadores tampouco afetou os grupos de lavradores cossacos que viviam entre a população servil dedicandose ao cultivo dos latifúndios da aristocracia polonesa na região A mobilidade cam ponesa deu pois origem nas pradarias do Ponto a um fenômeno sociológico praticamente desconhecido no Ocidente naquela época massas rurais plebéias capazes de reunir exércitos organizados contra a aristocracia feudal Á súbita amotinação das companhias registradas sob o comando de seu Hetman Khmelnitsky em 1648 estava por tanto profissionalmente qualificada para enfrentar os exércitos polo neses enviados contra ela A revolta por sua vez desencadeou um am plo levante geral dos servos da Ucrânia que lutaram lado a lado com o campesinato cossaco pobre para livrarse de seus senhores polacos Três anos depois os próprios camponeses da Polônia revoltaramse na região cracoviana de Podhale num movimento rural inspirado pela rebelião dos cossacos e servos ucraníanos Travouse na Galícia e na Ucrânia uma selvagem guerra social na qual os exércitos szlachta fo ram batidos repetidas vezes pelas forças de Zaporozhe À luta terminou com a fatídica transferência de vassalagem da Polônia para a Rússia jurada por Khmelnitsky pelo Tratado de Pereyaslavl em 1654 que colocou toda a Ucrânia alémDnieper sob o domínio dos czares e ga rantiu os interesses da starshina cossaca21 O campesinato ucraniano cossaco e nãocossaco foi a vítima principal dessa operação a pacificação da Ucrânia com a integração dos corpos de oficiais no Estado russo restabeleceu suas amarras Na verdade após uma longa evolução os esquadrões cossacos viriam a formar um corpo de elite da autocracia czarista O Tratado de Pereyaslavl simbolizou com efeito a parábola respectiva dos dois grandes rivais da região no século XVII O fragmentado Estado polonês revelouse incapaz de derrotar e subordi nar os cossacos tal como não soube resistir aos suecos A centralizada autocracia czarista realizou ambas as coisas repeliu a ameaça sueca e não apenas subjugou como afinal utilizou os cossacos como corpo de cavalaria na repressão de suas próprias massas 21 Para as negociações e cláusulas do Tratado de Pereyaslavl ver a sucinta exposição em C B OBrien Muscovy and the Ukraine BerkeleyLos Angeles 1963 pp 217 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 211 O levante ucraniano foi a mais formidável guerra camponesa de sua época no Leste Mas não foi o único Todas as principais nobrezas da Europa oriental defrontaramse numa ou noutra ocasião do século XVII com rebeliões servis No Brandenburgo ocorreram repetidas ex plosões de violência rural no distrito central de Prignitz durante a úl tima fase da Guerra dos Trinta Anos e a década que se lhe seguiu em 1645 1646 1648 1650 e de novo em 165622 A concentração do poder nas mãos do Grande Eleitor deve ser compreendida à luz deste pano de fundo de inquietação e desespero reinante nas aldeias O campesinato da Boêmia submetido à rápida degradação de sua posição econômica e jurídica após o Tratado de Vestfalia rebelouse contra os senhores por todo o país em 1680 quando tropas austríacas tiveram que ser envia das para dominálo Acima de tudo registrouse na própria Rússia um número jamais igualado de insurreições rurais que duraram desde a Época das Dificuldades na virada do século XVII à era do ilumi nismo no século XVIII Em 16067 camponeses plebeus e cossacos da região do Dnieper tomaram o poder provincial sob o comando do exescravo Bolotnikov os seus exércitos quase chegaram a instalar o Falso Dmitri como czar em Moscou Em 163334 servos e desertores da zona de luta de Smolensk revoltaramse sob a chefia do camponês Balash Em 167071 quase todo o sudeste de Astrakã a Simbirsk escorraçou o poder senhorial enquanto inumeráveis exércitos campo neses e cossacos subiam o vale do Volga tendo à frente o bandido Razin Em 17078 as massas rurais do Baixo Don seguiram o cossaco Bulavin numa violenta revolta contra a crescente carga de impostos e o trabalho forçado nos estaleiros imposto por Pedro I Finalmente em 17734 teve lugar a última e maior das insurreições a terrível suble vação das múltiplas populações exploradas desde os contrafortes dos Urais e os desertos de Bashkiria às margens do Cáspio sob a liderança de Pugachev que reuniu cossacos das estepes e das montanhas traba lhadores empregados em fábricas camponeses das planícies e tribos de pastores numa série de levantes que requereu todo o poderio do exér cito imperial da Rússia antes de se deixar derrotar Todas essas revoltas populares tiveram origem nas fronteiras in determinadas do território russo Galícia BieloRússia Ucrânia As trakã e Sibéria Com efeito aí o poder do Estado central perdia força e as massas errantes de aventureiros saqueadores e fugitivos mistura vamse com plantações de servos e propriedades da nobreza as quatro 22 Stoye Europe Vnfolding 16481688 p 30 212 PERRY ANDERSON maiores rebeliões foram comandadas por cossacos armados que forne ciam a experiência e a organização militares que as tornaram tão peri gosas para a classe feudal Significativamente foi apenas com o fecha mento definitivo das fronteiras da Ucrânia e da Sibéria no fim do sé culo XVIII uma vez completados os planos de colonização de Po temkin que o campesinato russo foi finalmente forçado a uma quie tude sombria Assim por toda a Europa oriental a intensidade da luta de classes no campo sempre latente sob a forma de êxodos rurais detonou também explosões camponesas contra a servidão através das quais ameaçou frontalmente o poder e a propriedade do conjunto da nobreza Á planura da geografia social da maior parte daquela região que a distinguia do espaço mais segmentado da Europa ocidental23 podia emprestar a essa ameaça formas particularmente graves O pe rigo geral advindo de seus próprios servos atuou portanto como uma força centrípeta generalizada sobre as aristocracias do Leste A ascen são do Estado absolutista no século XVII respondeu basicamente ao temor social o seu aparelho políticomilitar de repressão era a garantia da estabilidade da servidão Havia portanto para o absolutismo orien tal uma ordem interna que complementava as suas determinações ex ternas a função do Estado centralizado era defender a posição de clas se da nobreza feudal ao mesmo tempo contra os seus rivais estrangeiros e os seus camponeses dentro do pais A organização e a disciplina de uns e a fluidez e a contumácia de outros impuseram uma apressada unidade política O Estado absolutista foi assim reproduzido além do Elba tornandose um fenômeno europeu geral Quais as características específicas da variante oriental desta má quina feudal fortificada Duas peculiaridades básicas e interrelacio nadas podem ser salientadas Em primeiro lugar a influência da guer ra na sua estrutura era ainda mais preponderante que no Ocidente e assumiu formas sem precedentes A Prússia talvez represente o limite extremo atingido pela militarização na gênese deste Estado Aí a ên fase na função bélica reduziu efetivamente o incipiente aparelho de Estado a um subproduto da máquina militar da classe dominante O absolutismo do Grande Eleitor do Brandenburgo nasceu como vimos em meio à turbulência motivada pelas expedições suecas através do Báltico na década de 1650 A sua evolução e organização internas vi 23 O contraste entre a topografia plana e infindável do Leste que facilitava as fugas e o relevo mais acidentado e restrito do Ocidente que auxiliava o controle sobre os trabalhadores é salientado por Lattimore Feudalism in History pp 556 e Mousnier Peasant Uprisings pp 157 159 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 2L3 riam a representar uma efetivação expressiva da máxima de Treitschke A Guerra é o pai da cultura e a mãe da criação Com efeito toda a estrutura fiscal o serviço civil e a administração local do Grande Elei tor vieram à luz como sub departamento s técnicos do Generalkriegs kommissariat A partir de 1679 durante a guerra com a Suécia essa peculiar instituição tornouse sob a chefia de Von Grumbkow o órgão supremo do absolutismo Hohenzollern Em outras palavras a burocra cia prussiana nasceu como uma ramificação do exército O General kriegskommissariat constituía um onipotente ministério da guerra e das finanças que cuidava não apenas da manutenção do exército per manente como da coleta de impostos da regulamentação da indústria e da nomeação dos representantes do Estado brandenburguês nas pro víncias O grande historiador prussiano Otto Hintze assim descreveu o desenvolvimento desta estrutura ao longo do século seguinte Toda a organização do funcionalismo estava interligada com os objetivos mili tares e existia para servilos Os próprios oficiais da polícia provincial dependiam dos comissariados da guerra Todo ministro de Estado era simultaneamente intitulado ministro da Guerra todos os conselheiros das câmaras administrativas e fiscais eram ao mesmo tempo denomi nados conselheiros da guerra Os exoficiais tornavamse conselheiros provinciais e mesmo presidentes e ministros os funcionários admi nistrativos eram em sua maior parte recrutados entre os inspetores e os oficiaisintendentes dos regimentos as posições inferiores eram na me dida do possível preenchidas por oficiais nãocomissionados e inválidos de guerra Todo o Estado adquiriu assim um semblante militar Todo o sistema social foi posto ao serviço do militarismo Os nobres os bur gueses e os camponeses existiam apenas para servir ao Estado e tra vaillerpour lê rói de Ia Prusse24 cada qual em sua esfera Por volta do final do século XVIII a porcentagem da população engajada no exér cito era talvez quatro vezes superior à da França contemporânea25 habitualmente suprida por pelotões recrutados implacavelmente entre os camponeses e os desertores O controle dosjunkers sobre seu co mando era virtualmente absoluto Essa formidável máquina de guerra absorvia regularmente de 70 a 80 por cento das receitas fiscais do Es tado à época de Frederico II O absolutismo austríaco como se verá foi sempre de estrutura muito mais heteróclita apresentando uma combinação imperfeita das 24 Hintze Gesammelte Abhandlungen I p 161 25 Dorn CompetitionforEmpire p 94 26 A J P Taylor The Course oGerman History Londres 1961 p 19 214 PEKRY ANDERSON características ocidentais e orientais condizente com a sua base terri torial mista na Europa central Nunca se viu em Viena uma concentra ção comparável à que prevaleceu em Berlim Ê contudo visível que no seio do eclético sistema administrativo do Estado Habsburgo o sólido núcleo e a força inovadora de meados do século XVI até o fim do século XVIII derivaram em grande parte do complexo militar imperial Na verdade durante longo tempo foi este o único fator a fornecer uma realidade prática à unidade dinástica dos diferentes territórios sob do mínio Habsburgo De tal modo o Supremo Conselho de Guerra ou tíofkriegsrat foi a única agência do governo com jurisdição sobre todos os territórios que no século XVI pertenciam aos Habsburgos o único agente executivo que os unificava sob a linhagem dominante A par de suas tarefas de defesa contra os turcos o Hofkriegsrat era responsável diretamente pela administração civil de toda a faixa de terras ao longo da fronteira sudeste da Áustria com a Hungria guarnecida por milícias Grenzer a ele subordinadas O seu papel subseqüente no lento cresci mento da centralização Habsburgo e na edificação de um absolutismo desenvolvido teve sempre um caráter determinante Entre todos os órgãos centrais de governo foi sem dúvida o mais influente no auxílio à unificação dos vários territórios hereditários e todos eles inclusive a Boêmia e particularmente a Hungria para cuja proteção fora de início concebido aceitavam o seu controle supremo sobre os assuntos mili tares27 O exército profissional que surgiu após a Guerra dos Trinta Anos selou a vitória da dinastia sobre os Estados da Boêmia mantido pelos impostos coletados na Boêmia e na Áustria este se tornou o pri meiro aparelho permanente de governo em ambos os reinos permane cendo sem um equivalente civil efetivo por mais de um século Também nos territórios magiares foi a extensão do exército Habsburgo em dire ção à Hungria no início do século XVIII que finalmente operou uma estreita união política com as outras possessões dinásticas Aí o poder absolutista residia exclusivamente no ramo militar do Estado a Hun gria forneceu a partir de então acantonamentos e tropas para os exér citos Habsburgos os quais ocupavam áreas geográficas que de outro modo ficariam fora dos limites do restante da administração imperial Ao mesmo tempo os territórios recentemente conquistados aos turcos mais para leste foram colocados sob o controle do exército a Transil vânia e o Banat foram administrados diretamente pelo Supremo Conse 27 H F Schwarz The Imperial Prívy Councilin he Seventeentk Century Har vard 1943 p 26 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 215 lho de Guerra localizado em Viena que organizou e supervisionou a colonização sistemática dessas regiões por emigrantes alemães Por tanto a máquina de guerra foi sempre o esteio mais constante do de senvolvimento do absolutismo austríaco Não obstante os exércitos austríacos nunca ascenderam à posição de seus congêneres prussianos a militarização do Estado colidia com os limites de sua centralização A ausência básica de uma rigorosa unidade política nos domínios Habs burgos acabaria por impedir uma supremacia comparável do establish ment militar no seio do absolutismo austríaco Por outro lado o papel do aparelho militar na Rússia foi pouco menor que na Prússia Em sua análise sobre a especificidade histórica do império moscovita Kliuchevsky comentou A primeira dessas pe culiaridades foi a organização bélica do Estado O império moscovita era a Grande Rússia em armas28 Os artífices mais celebrados de tal edifício Ivã IV e Pedro I conceberam o seu sistema administrativo visando basicamente aumentar a capacidade bélica da Rússia Ivã IV procurou reorganizar todo o modelo de propriedade fundiária da Mos cóvia convertendoo em posse com obrigação de serviço militar e com prometendo cada vez mais a nobreza com tarefas militares permanen tes no Estado moscovita A terra tornouse o meio econômico para ga rantir ao Estado a autosuficiência de serviço militar ao passo que a posse de terras pela classe dos oficiais passou a ser a base de um sis 29 tema de defesa nacional A guerra foi ininterrupta durante a maior parte do século XVI com os suecos os poloneses os lituanos os tártaros e outros adversários Ivã IV lançouse finalmente nas longas Guerras da Livônia que resultaram numa catástrofe generalizada na década de 1580 A Época das Dificuldades e a subseqüente consolida ção da dinastia Romanov confirmaram entretanto a tendência básica a vincular a propriedade da terra à construção do exército Pedro I daria a este sistema a sua forma mais implacável e universal Todas as terras tornaramse sujeitas a obrigações militares e todos os nobres ti nham que iniciarse no serviço do Estado com quinze anos sem previ são de duração Dois terços dos membros de toda família nobre deviam ingressar no exército apenas o filho terceiro tinha permissão para ser vir na burocracia civil30 As despesas navais e militares de Pedro I tota 28 V O Kliuchevsky A History of Rússia II Londres 1912 p 319 29 Kliuchevsky op cit p 120 30 M Beloff Rússia in Goodwin Org TheEuropean Nobility in Century pp 1745 216 PERRY ANDERSON lizaram 75 por cento das receitas do Estado em 1724 um dos úni cos anos de paz em seu reinado Tal ênfase irresistível do Estado absolutista nos interesses da guer ra não era excessiva Correspondia a convulsões de expansão e conquis ta muito maiores do que as que tiveram lugar no Ocidente A carto grafia do absolutismo oriental correspondia estritamente a sua estru tura dinâmica Durante os séculos XV e XVI a Moscóvia multiplicou por doze a sua extensão original absorvendo Novgorod Kazan e Astra kã O Estado russo expandiuse rapidamente no século XVII anexan do a Ucrânia ocidental e parte da BieloRússia ao passo que no século XVIII tomou os territórios do Báltico o restante da Ucrânia e a Cri méia O Brandenburgo adquiriu a Pomerânia no século XVII o Estado prussiano duplicou o seu tamanho com a conquista da Silésia no sé culo XVIII O Estado Habsburgo com base na Áustria reconquistou a Boêmia no século XVII submeteu a Hungria no XVIII e anexou a Croácia a Transilvânia e a Oltênia nos Bálcãs Finalmente a Rússia a Prússia e a Áustria dividiram entre si toda a Polônia outrora o maior Estado da Europa Este desenlace final forneceu uma simétrica demonstração da lógica e da necessidade de um superabsolutismo no Leste através do exemplo de sua ausência A reação senhoria das no brezas prussiana e russa encontrou sua expressão acabada num absolu tismo aperfeiçoado A sua homóloga polaca após uma não menos feroz sujeição do campesinato fracassou em construílo Ao preservar zelo samente os direitos individuais do menor dos cavaleiros diante de seus iguais e os direitos de todos eles frente a qualquer dinastia a pequena nobreza polaca cometeu um suicídio coletivo O seu medo patológico de um poder político centralizado acabou por institucionalizar uma anarquia nobiliária O resultado era previsível a Polônia foi varrida do mapa por seus vizinhos que demonstraram no campo de batalha a suprema necessidade do Estado absolutista A extrema militarização do Estado esteve relacionada à segunda mais importante peculiaridade do absolutismo tanto na Prússia como na Rússia Esta reside na natureza da ligação funcional entre os pro prietários feudais e as monarquias absolutistas A diferença crítica en tre as variantes ocidental e oriental evidenciase nos respectivos modos de integração da nobreza na nova burocracia por elas criada Nem na Prússia nem na Rússia existiu a venda de cargos em grande escala Os junkers do alémElba caracterizaramse por sua cupidez em relação à 31 V O Kliuchevsky A History of Rússia IV pp 1445 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 21 coisa pública no século XVI quando era geral a corrupção a malver sação de fundos do Estado o culto de sinecuras e as manipulações dos créditos régios32 Esta seria a época da incontestada dominação do Herrenstand e do Ritterschaft e da debilitação de toda a autoridade pública central O advento do absolutismo Hohenzollern no século XVII modificou radicalmente tal situação O novo Estado prussiano imporia a partir de então uma crescente probidade financeira na sua administração Passou a ser proibida a compra de posições vantajosas na burocracia por parte dos nobres É significativo que apenas nos enclaves socialmente muito mais avançados de Clêves e da Marca na Renânia onde havia uma burguesia urbana florescente a venda de cargos tenha sido oficialmente sancionada por Frederico Guilherme I e seus sucessores33 Na própria Prússia o serviço público era notoria mente conhecido por seu profissionalismo consciencioso Na Rússia por sua vez as fraudes e o desvio de fundos constituíam doenças en dêmicas nas máquinas políticas dos Estados moscovita e Romanov que perdiam regularmente uma grande quantidade de receitas por essa via No entanto tal fenômeno era meramente uma variedade direta e primi tiva do peculato e do furto embora numa escala caótica e imensa A venda de cargos propriamente dita como sistema regulamentado e legal de recrutamento para a burocracia jamais se estabeleceu ver dadeiramente na Rússia Tampouco representou uma prática signifi cativa no relativamente mais avançado Estado austríaco o qual ao contrário de alguns dos principados vizinhos do sul da Alemanha nunca abrigou uma classe de funcionários que tivesse comprado os seus postos na administração As razões que determinaram esta dispa ridade oriental em relação ao padrão do Ocidente são óbvias O minu cioso estudo de Swart sobre a distribuição do fenômeno da venda de cargos salienta com justeza a sua conexão com a existência de uma classe comercial local34 Em outras palavras no Ocidente a venda de cargos correspondia à sobredeterminação do Estado feudal tardio pelo rápido crescimento do capital mercantil e manufatureiro A relação contraditória que se estabeleceu entre função pública e indivíduos pri vados refletia as concepções medievais de soberania e contrato nas quais não estava presente uma ordem cívica impessoal no entanto 32 Hans Rosenberg The Rise of the Junfcers in BrandenburgPrússia 1410 1563 American Histórica Review outubro de 1943 p 20 33 Hans Rosenberg Bureaucracy Aristocracy and Autocracy The Prussian Experiencel6801815 Cambridge 1958 p 78 34 K W Swart Saíe ofOffices in the Seveníeeníh Century p 96 218 PERRY ANDERSON tratavase simultaneamente de uma relação monetária a refletir a pre sença e a interferência de uma economia monetária e de seus futuros senhores a burguesia urbana Comerciantes juristas e banqueiros te riam acesso à máquina do Estado se pudessem desembolsar as somas ne cessárias à compra de posições em seu seio A natureza de troca da tran sação era também obviamente um índice das relações internas de clas se entre a aristocracia e o seu Estado a unificação pela corrupção e não pela coerção gerou um absolutismo mais brando e mais avançado Por sua vez no Leste não havia burguesia urbana para infletir o caráter do Estado absolutista este não tinha a temperálo um setor mercantil As asfixiantes medidas antiurbanas das nobrezas da Prússia e da Polônia já foram mencionadas antes Na Rússia os czares contro lavam o comércio freqüentemente através de seus próprios monopó lios e administravam as cidades De forma singular os habitantes das cidades eram também servos Em decorrência disso o fenômeno híbrido da venda de cargos era impraticável Princípios rigorosamente feudais iriam presidir à construção da máquina do Estado O expe diente da nobreza de serviço foi em muitos aspectos o correlato orien tal da venda de cargos do Ocidente A classe dos junkers prussianos foi diretamente incorporada ao Comissariado da Guerra e a seus serviços financeiros e fiscais por recrutamento do Estado Na burocracia civil sempre existiria um importante fermento de elementos nãoaristocrá ticos ainda que via de regra estes ascendessem à nobreza quando al cançavam posições em seu topo5 Na área rural os junkers detinham um rigoroso controle sobre a Gutsbezirke local dotandose assim de uma completa panóplia de poderes fiscais jurídicos de polícia e alis tamento sobre os seus camponeses Também os órgãos burocráticos provinciais do serviço civil do século XVIII sugestivamente intitulados KriegsundDomãnenKammern Câmaras da Guerra e dos Domí nios passaram a ser cada vez mais dominados por eles No próprio exército os postos dos oficiaisgenerais constituíam uma reserva profis sional da classe fundiária Só os jovens provenientes da nobreza eram admitidos nas companhias e escolas de cadetes que ele Frederico Gui lherme I fundou e os oficiais nobres nãocomissionados eram mencio nados pelo nome nos relatórios trimestrais apresentados a seu filho indicando que esses nobres estavam eo ipso na categoria de aspirantes a oficial Embora muitos plebeus tenham sido comissionados durante o esforço da Guerra da Sucessão Espanhola estes foram removidos logo 35 Roenberg Bureaucracy Aristocracy and Autocracy pp 13943 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 219 após o seu término Dessa maneira a nobreza se tornou uma nobreza de serviço ela identificava os seus interesses com os do Estado que lhe garantia posições honrosas e lucros Na Áustria não havia um entrosamento tão rigoroso entre o apa relho do Estado absolutista e a aristocracia a insuperável heterogenei dade das classes fundiárias dos reinos Habsburgo o impedia Não obs tante também aí se verificou um esforço drástico embora incompleto de criação de uma nobreza de serviço com efeito a reconquista da Boêmia pelos Habsburgos durante a Guerra dos Trinta Anos foi se guida pela destruição sistemática das antigas aristocracias tcheca e ale mã dos territórios boêmios repovoados com uma nova nobreza estran geira de fé católica e origem cosmopolita que devia os seus domínios e fortuna inteiramente à vontade da dinastia que a criara A partir daí a nova nobreza boêmia iria fornecer a maior parte dos quadros do Estado Habsburgo tornandose a base social mais importante do abso lutismo austríaco Mas o abrupto radicalismo de sua construção a par tir de cima não iria reproduzirse nas formas subseqüentes de sua inte gração à máquina do Estado a organização dinástica compósita gover nada pelos Habsburgos tornaria impossível uma cooptação burocrática uniforme ou regulamentada da nobreza para o serviço do absolu tismo37 Os cargos militares acima de certos postos ou ao fim de certos períodos de serviço conferiam automaticamente títulos no entanto fal tou uma vinculação geral ou institucionalizada entre o serviço do Es tado e a ordem aristocrática em detrimento do poderio internacional do absolutismo austríaco Por outro lado no ambiente mais primitivo que vigorava na Rús sia os princípios de uma nobreza de serviço iriam muito mais longe que na Prússia Ivã IV promulgou aí um decreto em 1556 que tornava obrigatório a todos os senhores o serviço militar e estabelecia com pre cisão os contingentes de soldados a serem fornecidos conforme a exten são das terras consolidando assim a classe pomeshchik da pequena nobreza que começara a formarse ao tempo de seu predecessor Em contrapartida só aqueles que se encontravam ao serviço do Estado po deriam a partir de então possuir formalmente a terra na Rússia à parte as instituições religiosas Este sistema nunca alcançou na prática a universalidade ou a eficácia que lhe eram conferidas pela letra da lei e 36 Carsten The Origins of Prússia p 272 37 Schwarz contudo comenta que a antiga alta nobreza do Estado Habsburgo devia a sua ascensão essencialmente ao serviço no Conselho Privado imperial durante o século XVII The ImperialPrivy Councilin the Seventeenth Century p 410 220 PERRY ANDERSON de modo algum acabou com o poder autônomo da antiga classe dos grandes nobres boiardos cujos domínios continuaram sob o regime alodial Todavia apesar dos muitos meandros e vicissitudes os suces sores de Ivã souberam herdar e desenvolver a sua obra É de Blum o seguinte comentário sobre o primeiro Romanov O Estado que Miguel foi chamado a governar constituía um tipo único de organização polí tica Era um Estado de serviço e o czar era o seu chefe absoluto As atividades e os deveres de todos os súditos do mais importante senhor ao mais humilde camponês eram determinados pelo Estado em aten ção à sua política e aos seus interesses Todos os súditos estavam vin culados a certas funções específicas destinadas a preservar e engran decer o poder e a autoridade do Estado Os senhores estavam vincula dos ao serviço no exército e na burocracia e os camponeses estavam vinculados aos senhores de forma a fornecerlhes os meios para desem penhar a sua função no Estado Quaisquer liberdades ou privilégios de que um súdito pudesse gozar cabiamlhe apenas porque o Estado lhos concedera como atributo das funções desempenhadas ao seu servi ço Esta passagem constitui uma evocação retórica das pretensões da autocracia czarista ou samoderzhavie não uma descrição da pró pria estrutura efetiva do Estado as realidades práticas da formação social russa estavam longe de corresponder ao sistema político onipo tente que ela sugere A ideologia do absolutismo russo jamais coincidiu com os seus poderes materiais que sempre foram muito mais limitados do que pensaram os observadores ocidentais contemporâneos em geral inclinados ao exagero típico dos viajantes Ê no entanto indiscu tível à luz de qualquer perspectiva européia comparativa a peculiari dade do complexo de serviço público moscovita No final do século XVII e início do XVIII Pedro I generalizou e radicalizou ainda mais os seus princípios normativos Anulando a distinção entre os domínios condicionais e os hereditários ele assimilou as classes pomeshchik e boiarda Daí para a frente todos os nobres tornaramse servidores per manentes do czar A burocracia do Estado foi dividida em catorze ní veis hierárquicos implicando os oito níveis superiores um status nobre hereditário e os seis inferiores um status aristocrático nãohereditário Deste modo fundiramse organicamente a ordem feudal e a hierarquia burocrática o sistema da nobreza de serviço fazia do Estado em prin cípio um simulacro virtual da estrutura da classe fundiária sob o po der centralizado de seu delegado absoluto 38 JeromeBlum Lord and Peasant in Rússia p 150 Nobreza e monarquia a variante oriental Resta ainda examinar a questão do significado histórico da no breza de serviço É observando o desenvolvimento da relação entre a classe feudal e seu Estado desta vez no Leste que melhor poderemos realizálo Vimos já que antes da expansão do feudalismo ocidental em direção ao Leste na Idade Média as principais formações sociais es lavas da Europa oriental não tinham chegado a produzir uma organi zação feudal integralmente articulada do tipo da que resultou da sín tese romanogermânica no Ocidente Todas elas se encontravam em bora em estágios diferentes na fase de transição das federações tribais rudimentares das colonizações originais para hierarquias sociais estra tificadas com estruturas estatais estabilizadas O padrão típico como se recordará combinava uma aristocracia dominante de guerreiros com uma população heteróclita de camponeses livres servos por divi das e escravos capturados ao passo que a estrutura do Estado era ainda muitas vezes próxima ao sistema de séquito do chefe militar tradicional Mesmo a Rússia kieviana a área mais avançada de toda a região não tinha produzido uma monarquia unitária e hereditária O impacto do feudalismo ocidental sobre as formações sociais do Leste já foi analisado no plano de seus efeitos sobre o modo de produção pre dominante nos domínios e nas aldeias e sobre a organização das ci dades Tem sido menos estudada a sua influência sobre a própria no breza mas como vimos é evidente que se verificou uma crescente adaptação às normas hierárquicas ocidentais no seio da classe domi nante A alta aristocracia da Boêmia e da Polônia por exemplo ga 222 PERRY ANDERSON nhou forma precisamente entre os meados do século XII e o início do século XIV o período do apogeu da expansão germânica Foi também por essa época que surgiram os rytiri e os vladky tchecos ou a classe dos cavaleiros ao lado dos grandes senhores ou barones enquanto isso o uso de armas e títulos vindo da Alemanha era adotado em ambos os países na segunda metade do século XIII1 Na verdade na maior parte dos países orientais o sistema de títulos foi importado dos usos germâ nicos ou mais tarde dinamarqueses designações como conde mar quês duque e outras foram sucessivamente naturalizadas nos idiomas eslavos Não obstante ao longo de toda a era de expansão econômica dos séculos XI ao XIII e de depressão nos séculos XIV e XV destacamse dois traços fundamentais das classes dominantes do Leste que remon tam à ausência da síntese feudal ocidental Em primeiro lugar a insti tuição da posse condicional o sistema do feudo propriamente dito nunca chegou a estabelecerse verdadeiramente alémElba2 Ê certo que inicialmente ele seguiu as pegadas da colonização germânica e teve sempre mais força nas terras transelbianas permanentemente ocupadas pelos junkers alemães que em quaisquer outras Mas os domínios ger mânicos com dever de serviço de cavalaria no Leste eram formalmente alodiais no século XIV embora prestassem obrigações militares3 Por volta do século XV as facções de direito eram virtualmente ignoradas no Brandenburgo e o Rittergut tendia a tornarse um domínio heredi tário neste aspecto o processo não diferia muito do que tinha lugar no ocidente da Alemanha Também em outras regiões a posse condi cional não chegou a criar raízes Na Polônia os domínios alodiais ul trapassavam os feudos durante a Idade Média mas tal como na Ale manha oriental ambos os tipos de propriedade tinham dever de serviço militar embora mais atenuado no primeiro Á partir da segunda me tade do século XV a pequena nobreza obteve sucesso ao transformar muitos domínios feudais em propriedades alodiais contra os esforços 1 F Dvornik The Slavs Their Early History and Civilization p 324 idem The Slavs in European History and Civilization pp 1218 2 Bloch apreendeu bem este aspecto embora propondo uma explicação erro neamente culturalista ao afirmar que os eslavos nunca conheceram a distinção entre a concessão em troca de serviço e a pura doação Ver a sua nota Féodalité et Noblesse Polonaises Annales janeiro de 1939 pp 534 Na verdade a concessão de terras em troca de serviço foi conhecida na Rússia ocidental do século XIV ao século XVI e reapa receu depois no sistema áopomeste 3 Hermann Aubin The Lands East oi the Elbe and German Colonization Eastwards em The Agrarian Life of theMiddle Ages p 476 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 223 da monarquia para inverter tal processo De 1561 a 1588 a Sejm aca bou por votar diversos atos que comutavam a posse feudal em alodial em toda parte4 Na Rússia como vimos a típica propriedade boiarda foi sempre a votchina alodial a imposição a partir de cima do sistema condicional dopomest e foi obra posterior da autocracia czarista Em todos estes países ademais havia poucos ou não havia senhorios inter mediários entre os cavaleiros e os monarcas grandes proprietários do tipo daqueles que desempenharam um papel tão importante nas com pactas hierarquias feudais do Ocidente Com efeito não se conheciam as complexas cadeias de retrovassalagem ou subenfeudação Por outro lado também a autoridade pública nunca chegou a ser tão limitada ou dividida juridicamente como no Ocidente medieval Em todos esses paí ses os cargos da administração local eram preenchidos mais por nomea ção que por direito hereditário e os governantes detinham o direito for mal de cobrar impostos sobre toda a população camponesa que não es capava ao domínio público por via de imunidades ou jurisdições priva das integrais embora na prática os poderes jurídicos e fiscais dos prín cipes ou duques fossem com freqüência muito limitados Daí resultaria umarede de relações interfeudais muito menos coesa do que no Ocidente Não restam dúvidas de que este padrão estava ligado à situação espacial do feudalismo oriental Na mesma medida em que os vastos e escassamente povoados territórios do Leste criavam à nobreza proble mas específicos para a exploração do trabalho dada a possibilidade de fugas também criavam problemas especiais para a integração hierár quica da nobreza pelos príncipes e suseranos O caráter fronteiriço das formações sociais do Leste tornava extremamente difícil para os gover nantes dinásticos o reforço dos laços de vassalagem dos colonos mili tares ou dos senhores de terra num ambiente desprovido de limites que convidava às aventuras armadas e às veleidades anárquicas Em conseqüência a solidariedade feudal vertical era muito mais frágil do que no Ocidente Havia poucos vínculos orgânicos a ligar internamente as várias aristocracias Tal situação não se alterou substancialmente com a introdução do sistema senhorial durante a grande crise do feuda lismo europeu O cultivo dos domínios e o trabalho servil aproximavam agora mais estreitamente a agricultura oriental das normas de produ ção do princípio da época medieval no Ocidente Mas a reação senho rial que os criou não reproduziu simultaneamente o característico sis 4 P Skwarczyiíski The Problem of Feudalism in Poland up to the Beginning of the 16thcentury Slavonic and East European Review 34 19556 pp 2969 224 PERRY ANDERSON tema de feudos que os complementava Uma das conseqüências disso evidentemente foi a concentração do poder senhorial sobre o campe sinato em proporções desconhecidas no Ocidente onde o parcelamento da soberania e a propriedade escalonada criaram uma multiplicidade de jurisdições sobre os vilões com confusões e superposições objetiva mente propícias à resistência camponesa Na Europa oriental ao con trário a dominação territorial pessoal e econômica fundiase numa única autoridade senhorial que exercia direitos cumulativos sobre os servos subjugados5 Esta concentração de poderes podia ir tão longe que na Rússia e na Prússia os servos podiam na realidade ser vendidos a outros proprietários separadamente dos domínios em que trabalha vam uma condição de dependência pessoal próxima da pura escra vidão Portanto o sistema senhorial não afetou inicialmente o tipo pre dominante de propriedade aristocrática da terra embora o ampliasse largamente às custas das antigas terras comuns e das pequenas pro priedades camponesas Ao contrário aumentou o poder local despótico no seio da classe senhorial As duas ordens de pressões que acabaram por criar o Estado absolutista no Leste já foram salientadas acima O que importa reter é que a transição para o absolutismo não poderia ter seguido um per curso idêntico ao do Ocidente não apenas por causa do anulamento das cidades e da redução do campesinato à servidão mas também de vido ao caráter peculiar da nobreza que as realizou Esta não passara pela longa e secular adaptação a uma hierarquia feudal relativamente disciplinada capaz de preparar a sua integração a um absolutismo aris tocrático E no entanto uma vez confrontada com os riscos históricos da conquista estrangeira ou das deserções camponesas a nobreza ne cessitava de um instrumento capaz de dotála ex novo de uma unidade de ferro O tipo de integração política realizada pelo absolutismo na Rússia e na Prússia sempre carregou as marcas dessa situação de classe original Até aqui enfatizamos a rapidez com que andava o relógio do absolutismo na Europa oriental até que ponto ele se constituía numa estrutura política à frente das formações sociais que lhe serviam de base por que se nivelava com os Estados ocidentais com os quais se defrontava É agora necessário destacar o reverso da mesma contradi ção dialética Precisamente a construção do edifício absolutista mo 5 Skizkin insiste acertadamente neste ponto Osnovnye Problemy tak Nazy vaemovo Vlnmvo Izdaniya Krepostnichestva v Srednei i Vostochnoi Evrope pp 99100 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 225 derno no Leste requeria a criação da arcaica relação de serviço ou trora característica do sistema feudal do Ocidente Tal relação nunca criara raízes profundas no Leste todavia à medida que ia desapare cendo no Ocidente com o advento do absolutismo ela aparecia no Leste por exigência do absolutismo O exemplo mais nítido desse pro cesso foi sem dúvida a Rússia Os séculos de Idade Média que se se guiram à queda do Estado kieviano conheceram a autoridade política mediatizada e relações recíprocas de vassalagem e suserania entre prín cipes e nobres mas ambas dissociadas do senhorio dominial e da posse da terra que permaneceu dominada pela votchina alodial da classe boiarda6 A partir do início da época moderna contudo todo o pro gresso do czarismo foi construído sobre a conversão das posses alodiais em posses condicionais com a implantação do sistema pomest e no século XVI o seu predomínio sobre a votchina no século XVII e a fusão final de ambos no século XVIII Pela primeira vez a terra era dada em troca do serviço prestado pelo cavaleiro ao suserano feudal o czar numa réplica formal do feudo do Ocidente medieval Na Prússia não se verificou uma alteração jurídica assim radical do regime de posse da terra à parte a ampla recuperação dos domínios reais que se seguiu às alienações do século XVI pois aí sobreviviam ainda os traços de um sistema feudal Mas também neste país a dispersão horizontal da classe junker foi rompida por uma rigorosa integração vertical no Es tado absolutista sob o imperativo ideológico do dever universal da classe nobre de servir o seu suserano feudal Na verdade o ethos do serviço militar ao Estado assumiria na Prússia uma profundidade muito maior que na Rússia e acabaria por originar talvez a aristocracia mais dedicada e disciplinada da Europa Havia portanto uma necessidade menor da reforma jurídica e da coerção material que o czarismo se viu forçado a aplicar tão implacavelmente em seus esforços para obrigar a classe fundiária russa ao serviço militar do Estado7 Não obstante em 6 Há uma excelente delimitação e análise do importante padrão histórico em terras da Rússia no ensaio extremamente lúcido de Vernadsky Feudalism in Rússia Speculum vol 14 1939 pp 30023 À luz do sistema posterior dopomeste é impor tante salientar que as relações de vassalagem do período medieval eram genuinamente contratuais e recíprocas como se pode verificar pelas homenagens da época Para um relato e exemplos ver Alexandre Eck Lê Moyen Age Russe pp 195212 7 Devese notar entretanto que o absolutismo prussiano não desdenhava a coerção quando a julgava necessária O ReiSargento proibiu todo o deslocamento dos junkers ao estrangeiro que não tivesse o seu consentimento expresso a fim de obrigálos a servir como oficiais no exército A Goodwin Prússia em Goodwin Org TheEuro pean Nobility in the I8th Cenlury p 88 226 PERRY ANDERSON ambos os casos o renascimento da relação de prestação de serviço na Europa operou na verdade uma drástica modificação neste Com efeito o serviço militar agora exigido já não era devido simplesmente a um suserano feudal na cadeia mediatizada de dependência pessoal que era a hierarquia feudal da época medieva ele era prestado a um Estado absolutista hipercentralizado Tal deslocamento da relação trouxe duas conseqüências inevitá veis Em primeiro lugar o serviço em questão já não consistia na pres tação militar ocasional e autônoma do cavaleiro convocado pelo seu superior feudal a convencional excursão eqüestre de quarenta dias no campo de batalha estipulada por exemplo pelo sistema feudal normando Tratavase da introdução num aparelho burocrático com tendência a tornarse vocacional e permanente O caso extremo foi o da legislação de Pedro I que tornou o dvoriantsvo juridicamente vincu lado ao serviço vitalício do Estado Uma vez mais a própria ferocidade e irrealismo de tal sistema refletiam a crescente dificuldade prática de integrar a nobreza russa no aparelho de Estado czarista e não um alto grau de êxito efetivo nessa integração Não havia necessidade de tais medidas extremas na Prússia onde a classe junker era desde o início menor e mais maleável Em ambos os casos é evidente que o serviço burocrático propriamente dito fosse militar ou civil contradiz um princípio central do contrato feudal primitivo da Idade Média no Oci dente notadamente a sua natureza recíproca O sistema feudal pro priamente dito sempre compreendeu um componente explícito de mu tualidade o vassalo não tinha apenas deveres para com o senhor mas também direitos que este era obrigado a respeitar O direito medieval incluía expressamente a noção de felonia senhorial o rompimento ilegal do acordo por parte do superior feudal não por seu subordinado Parece agora óbvio que uma tal reciprocidade pessoal com as suas garantias jurídicas relativamente rigorosas era incompatível com um absolutismo consumado que pressupõe um novo e unilateral poder do aparelho de Estado centralizado Assim chegase a que o segundo traço distintivo da relação de serviço no Leste era necessariamente a sua heteronomia Opomeshchik não era um vassalo com direitos pró prios que pudesse invocar contra o czar Era um servidor que recebia domínios da autocracia e estava vinculado a esta por laços de incondi cional obediência A sua submissão era juridicamente direta e inequí voca não era mediatizada por instâncias intermediárias de uma hie rarquia feudal Esta concepção czarista extrema nunca foi assimilada na Prússia Mas também ali o elemento central da mutualidade estava totalmente ausente no vínculo entre o junker e o Estado Hohenzollern LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 227 O ideal do ReiSargento achavase notavelmente expresso na sua rei vindicação Devo ser servido com corpo e alma casa e riqueza honra e consciência tudo me é devido exceto a salvação eterna que per tence a Deus mas todo o resto a mim pertence8 Em nenhum país o culto da obediência militar mecânica a Kadavergehorsamkeit da bu rocracia e do exército prussianos impregnou do mesmo modo a no breza fundiária Nunca houve portanto no Leste uma réplica com pleta da síntese feudal do Ocidente quer antes quer depois da linha divisória da última crise medieval Em vez disso os elementos compo nentes desse feudalismo foram estranhamente recombinados em asso ciações aleatórias e assincrônicas sem que qualquer uma delas viesse jamais a possuir a coerência e a unidade da síntese primitiva Assim o sistema dominial funcionou tanto sob a anarquia nobiliária como sob o absolutismo centralizado a suserania dispersa existiu mas em épocas de posse nãocondicional da terra a posse condicional apareceu mas com laços de serviço nãorecíprocos a hierarquia feudal chegou a ser codificada no quadro de uma burocracia estatal O absolutismo constituiu ele próprio a mais paradoxal reconjugação de todas estas em termos ocidentais uma mistura bizarra de estruturas modernas e medievais conseqüência da peculiar temporalidade comprimida do Leste A própria adaptação dos proprietários de terra da Europa oriental ao advento do absolutismo não foi um processo suave sem vicissitudes tal como não o fora também no Ocidente Na verdade a szlachta polo nesa única entre as classes sociais desse tipo na Europa derrotou todos os esforços de criação de um poderoso Estado dinástico por ra zões que serão examinadas depois De modo geral no entanto a re lação entre monarquia e nobreza no Leste seguiu uma trajetória pouco diversa da ocorrida no Ocidente embora com certas características re gionais significativas Assim prevaleceu durante o século XVI uma relativa despreocupação aristocrática seguida por conflitos e turbulên cias generalizados no século XVII que cederam lugar a uma nova épo ca de confiante concórdia no século XVIII Não obstante este padrão político foi distinto do modelo ocidental em vários aspectos importan tes Para começar o processo de construção do Estado absolutista ori ginouse muito mais tarde no Leste Não houve verdadeiros equivalen tes das monarquias renascentistas da Europa ocidental na Europa 8 R A Dorwart The Administrative Reforms of Frederick William f of Prús sia Cambridge EUA 1953 p 226 228 PERRY ANDERSON oriental do mesmo século O Brandenburgo era ainda uma província estagnada sem o poder notável de um príncipe a Áustria estava emara nhada no sistema imperial medieval do Reich a Hungria perdera a sua dinastia tradicional e fora amplamente devastada pelos turcos a Polô nia continuou a ser uma comunidade aristocrática a Rússia viveu a experiência de uma prematura e forçada autocracia que logo entrou em colapso O único país que produziu uma cultura renascentista genuína foi a Polônia cujo sistema político era virtualmente o de uma república nobiliária O único país a conhecer uma poderosa monarquia préab solutista foi a Rússia cuja cultura permaneceu muito mais primitiva que a de qualquer outro Estado da região Fenômenos diversos mas ambos de curta vida Foi somente no século seguinte que Estados abso lutistas duráveis seriam edificados no Leste após a plena integração militar e diplomática do continente em um único sistema internacional e a conseqüente pressão ocidental que resultou de sua formação O destino das assembléias dos Estados na região foi sempre o mais claro indício do progresso da absolutização Os três sistemas de Estados mais poderosos do Leste eram os da Polônia da Hungria e da Boêmia todos reivindicavam o direito constitucional de eleger seus respectivos monarcas A Sejm polonesa uma assembléia bicameral na qual apenas os nobres estavam representados não apenas frustrou a ascensão de uma autoridade monárquica central na Comunidade após as suas significativas vitórias no século XVI como aumentou as prer rogativas anárquicas da pequena nobreza com a introdução do liberum veto no século XVII pelo qual qualquer membro da Sejm a podia dis solver com um simples voto negativo A Polônia foi um caso único na Europa a posição da aristocracia era de tal modo inabalável que nem mesmo chegou a ocorrer nessa época um conflito sério entre a monar quia e a nobreza pois nenhum dos reis eleitos conseguiu jamais acu mular poder suficiente para desafiar a constituição szlachta Na Hun gria pelo contrário os Estados tradicionais entraram em choque fron tal com a dinastia Habsburgo quando esta encaminhouse para a cen tralização administrativa a partir do final do século XVI A pequena nobreza magiar incentivada pelo particularismo nacionalista e prote gida pelo poderio turco resistiu ao absolutismo com toda a força ne nhuma outra nobreza européia registrou uma luta tão feroz e persis tente contra a intromissão da monarquia Importantes parcelas de classe fundiária húngara levantaramse em armas contra o Hofburg nada menos que quatro vezes no espaço de cem anos em 16048 162021 167882 e 170111 sob a chefia de Bocskay Bethlen Tõ kõlli e Rákôczi Ao final deste longo e virulento conflito o separatismo LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 229 magiar fora efetivamente esmagado e a Hungria passou a ser ocupada por exércitos absolutistas unitários enquanto os servos locais eram su jeitos a impostos centralizados Mas em quase todos os outros aspec tos os privilégios dos Estados foram preservados e a soberania Habs burgo na Hungria ficou como uma pálida sombra de sua homóloga austríaca Na Boêmia em contraste a revolta da Snem que precipitou a Guerra dos Trinta Anos foi suprimida na batalha da Montanha Bran ca em 1620 a vitória do absolutismo austríaco em território tcheco foi total e definitiva extinguindo por completo a antiga nobreza boêmia Os sistemas de Estados sobreviveram formalmente tanto na Áustria como na Boêmia mas tornaramse via de regra obedientes caixas de ressonância da dinastia Não obstante nas duas regiões que viram nascer os mais desen volvidos e dominadores Estados absolutistas da Europa oriental o pa drão histórico foi diferente Na Prússia e na Rússia não ocorreram grandes revoltas aristocráticas contra a iminência de um Estado centra lizado Na verdade é notável que na difícil fase de transição para o absolutismo a nobreza desses países tenha desempenhado um papel menos proeminente do que as suas homólogas ocidentais nos levantes políticos da época Os Estados Hohenzollern e Romanov nunca se de frontaram com fenômenos equivalentes às Guerras Religiosas à Fron da à Revolta Catalã ou mesmo à Peregrinação da Graça Em ambos os países o sistema de Estados exauriuse por volta do final do século XVII sem protestos ou lamúrias O Landtag do Brandenburgo anuiu passivamente ao crescente absolutismo do Grande Eleitor após o re cesso de 1653 A única resistência séria a este veio dos burgueses de Konigsberg os proprietários da Prússia oriental ao contrário aceita ram a supressão sumária pelo Grande Eleitor dos antigos direitos do ducado sem grandes desassossegos As implacáveis medidas antiurba nas adotadas pelas nobrezas orientais tiveram aí o seu efeito uma vez posto em marcha o processo de absolutização9 Na Prússia as relações entre a dinastia e a nobreza de forma alguma estiveram ao abrigo de tensões e desconfianças no fim do século XVII e início do século XVIII nem o Grande Eleitor nem o ReiSargento foram monarcas populares para a sua própria classe que foi muitas vezes rudemente tratada por eles Mas nunca se verificou uma ruptura grave entre monarquia e aris 9 O Landtag prussiano existiu oficialmente até lena mas na prática já na década de 1680 tinha apenas funções decorativas No século XVIII reuniase apenas para prestar homenagem aos novos reis que subiam ao trono 230 PERRY ANDERSON tocracia sequer de caráter transitório na Prússia desta época Na Rús sia a assembléia dos Estados a Zemsky Sobor era uma instituição particularmente frágil e sediciosa10 criada originalmente por Ivã IV por razões táticas no século XVI A sua composição e convocação eram em geral facilmente manipuladas pelos grupos da corte na capital o princípio dos Estados como tal nunca alcançou uma vida indepen dente na Moscóvia As divisões sociais no seio da classe fundiária entre o estrato dos grandes senhores boiardos e a pequena nobreza pome shchik cuja ascensão fora promovida pelos czares do século XVI con tribuíram para enfraquecêlo ainda mais Assim embora tivessem se desenvolvido gigantescas lutas sociais durante a transição para o absolutismo numa escala muito superior a tudo o que se viu na Europa ocidental elas foram dominadas pelas classes exploradas rurais e urbanas e não pelas classes privilegiadas e proprietárias que no seu conjunto revelaram uma considerável pru dência nas suas relações com o czarismo Através da nossa história escreveria o conde Stroganov num memorando confidencial a Alexan dre l têm sido os camponeses a fonte de todas as perturbações ao passo que a nobreza nunca se mexeu se o governo tem uma força a temer ou grupo a vigiar esse é o dos servos e não qualquer outra classe11 Os grandes acontecimentos do século XVII que pontuaram a decadência da Zemsky Sobor e da Duma boiarda não foram revoltas separatistas dos nobres mas as guerras camponesas de Bolotnikov e Razin os motins urbanos dos artesãos de Moscou os surtos de turbu lência cossaca ao longo do Dnieper e do Don Tais conflitos configura ram o contexto histórico em que se resolveram as contradições intra feudais entre os boiardos e ospomeshchik por sua vez tão agudas como jamais o foram na Prússia Durante a maior parte do século XVII grupos boiardos controlaram a máquina central do Estado na ausên cia de czares fortes enquanto a pequena nobreza perdia terreno poli ticamente mas os interesses sociais de ambos estavam protegidos pelas novas estruturas do absolutismo russo à medida que este se ia gra dualmente consolidando A repressão autocrática a um ou outro aristo crata foi na Rússia é certo muito mais feroz que no Ocidente na falta de um equivalente das tradições jurídicas da última fase medieval Mas nem por isso deixa de ser surpreendente a estabilidade conseguida pela monarquia russa mesmo quando pequenos grupos da corte ou do exér 10 Ver a aguda análise de suas atividades em J L H Keep The Decline of the Zemsky Sobor TheSlavonic andEast European Review 3619578 pp 10022 11 Ver H SetonWatson The RussianEmpire 18011917 Oxford 1967 p 77 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 231 cito no seio da nobreza travavam lutas febris pelo seu controle a força da função absolutista ultrapassava de tão longe a dos ocupantes nomi nais do trono que depois de Pedro I a vida política pôde tornarse por algum tempo uma agitada série de intrigas e golpes de guardas pala cianos sem que isto afetasse os poderes do czarismo como tal e sem que a estabilidade política do país se achasse ameaçada Na realidade o século XVIII presenciou o apogeu da harmonia entre a aristocracia e a monarquia na Prússia e na Rússia tal como na Europa ocidental Esta foi a época em que a nobreza de ambos os países adotou o francês como a língua culta da classe dominante o idioma em que Catarina II haviade declarar candidamente Je suis une aristocrate cest mon métier a epígrafe da era12 A consonância entre a classe fundiária e o Estado absolutista foi de fato ainda maior nas duas grandes monarquias do Leste do que no Ocidente A debili dade histórica dos elementos contratuais e de reciprocidade que carac terizaram a vassalagem feudal na Europa oriental na época anterior já foram aqui assinaladas A hierarquia de serviço do absolutismo russo e prussiano nunca reproduziu o compromisso recíproco da homenagem medieval uma pirâmide burocrática excluía necessariamente os votos interpessoais de uma hierarquia senhorial colocando ordens onde ha via compromissos Mas o abandono das garantias individuais entre se nhor e vassalo que em princípio asseguravam uma relação cavalhei resca entre eles não significava que os nobres orientais estivessem por isso entregues à arbitrariedade ou à tirania implacável de seus monar cas Com efeito a aristocracia enquanto classe estaya coletivamente ratificada no seu poder social pela natureza objetiva do Estado que se erguia acima dela O serviço prestado pela nobreza na máquina do absolutismo era a garantia de que o Estado absolutista servia aos inte resses políticos da nobreza O vínculo que os unia envolvia mais coação do que no Ocidente mas também uma maior intimidade Desse modo as normas gerais do absolutismo europeu apesar das aparências ideo lógicas nunca foram seriamente violadas no Leste A propriedade pri vada e a segurança da ciasse fundiária permaneceram como o talismã doméstico dos regimes monárquicos por mais autocráücas que fossem 12 A difusão do francês entre as classes dominantes da Prússia Áustria e Rús sia no século XVIII evidencia naturalmente a inexistência na Europa oriental da feição protonacionalista adquirida pelo absolutismo da Europa ocidental numa época anterior o que por sua vez era determinado pela falta de uma burguesia ascendente no Leste europeu desta fase A monarquia prussiana como é óbvio continuou a mostrarse con fessadamente hostil aos ideais nacionalistas até a véspera da unificação da Alemanha a austríaca até o final de sua existência 232 PERRY ANDERSON as suas pretensões13 A composição da nobreza podia ser forçosamente alterada e embaralhada nas grandes crises como acontecia no Oci dente medieval a sua implantação estrutural na formação social sem pre se mantinha O absolutismo oriental não menos queo ocidental detevese nos portões dos domínios inversamente a aristocracia buscou a sua riqueza e o seu poder fundamentais na posse estável da terra e não na permanência temporária no Estado O grosso da propriedade agrária mantevese juridicamente hereditário e individualizado no seio da classe nobre em toda a Europa Os graus da nobreza podiam com binarse com postos no exército e na administração mas nunca foram reduzidos a estes os títulos sempre subsistiram fora do serviço do Es tado indicando mais honra do que função Não surpreende portanto que a parábola das relações entre a monarquia e a aristocracia no Leste fosse a despeito das grandes dife renças no conjunto da formação histórica das duas metades da Europa tão semelhante àquela que se desenhou no Ocidente O imperioso ad vento do absolutismo encontrou inicialmente a incompreensão e a re cusa depois passada a confusão e a resistência este foi finalmente aceito e acolhido pela classe fundiária Em toda a Europa o século XVIII foi uma época de reconciliação entre a monarquia e a nobreza Na Prússia Frederico II encetou uma política confessadamente aristo crática de recrutamento e promoção no aparelho do Estado absolutista excluindo os estrangeiros e os roturiers de qualquer posto que outrora haviam ocupado no exército e no serviço civil Também na Rússia os oficiais de carreira estrangeiros que tinham sido um dos principais esteios dos regimentos czaristas modernizados do final do século XVII foram afastados e o dvorianstvo reocupou seu lugar nas forças arma das imperiais enquanto os seus privilégios administrativos provinciais eram generosamente ampliados e confirmados pela Carta da Nobreza de Catarina II No império austríaco Maria Tereza conseguiu mesmo diluir numa extensão sem precedentes a hostilidade húngara para 13 A mais flagrante demonstração dos estritos limites objetivos ao poder abso lutista iria ser o prolongado sucesso da resistência da nobreza russa ao czar quando este favoreceu a emancipação dos servos no século XIX Por essa altura tanto Alexandre I como Nicolau I dois dos mais poderosos monarcas que a Rússia conhecera consi deravam pessoalmente que a servidão era em princípio um entrave social embora na prática acabassem por transferir mais camponeses para a dependência privada Mesmo quando a emancipação foi finalmente decretada por Alexandre II na segunda metade do século XIX a forma de sua implementação foi largamente determinada pelos movimen tos de oposição de uma aristocracia combativa Para tais episódios ver SetonWatson TheRussian Empire pp 778 2279 3937 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 233 com a dinastia Habsburgo ligando os grandes senhores magiares à vida da corte de Viena e criando uma Guarda Húngara especial para o seu serviço pessoal na capital Em meados do século o poder central das monarquias era maior do que nunca e não obstante a relação entre os respectivos governantes e os proprietários de terras do Leste era mais estreita e pacífica que em qualquer outra época passada Além disso e ao contrário do Ocidente o absolutismo tardio do Leste estava então em seu apogeu político O despotismo iluminado do século XVIII foi essencialmente um acontecimento da Europa central e orien tal l simbolizado pelos três monarcas que finalmente partilharam a Polônia Frederico II Catarina II e José II O coro de louvores entoado à sua obra pelos philosophes burgueses do iluminismo ocidental por todos os seus equívocos tantas vezes irônicos não foi simplesmente um mero acidente histórico a energia dinâmica e a competência pareciam terse passado para Berlim Viena e São Petersburgo Este período cor respondeu ao ponto alto do desenvolvimento do exército da burocra cia da diplomacia e da política econômica mercantilista do absolu tismo no Leste A partilha da Polônia calma e coletivamente efetivada em desafio às potências ocidentais impotentes às vésperas da Revolu ção Francesa aparece como um símbolo de sua ascensão internacional Ansiosos por mirarse no espelho da civilização ocidental os go vernantes absolutistas da Prússia e da Rússia inspiravamse assidua mente nos feitos passados dos seus êmulos da França ou da Espanha e incensavam os escritores ocidentais que ali chegavam para que regis trassem o seu esplendor15 Em alguns aspectos limitados os absolutis mos ocidentais desse século foram curiosamente mais avançados do 14 Este fato ressalta claramente do melhor estudo recente sobre o assunto Lê Despotismo Ecluiré de François Bluche Paris 1968 O livro de Bluche oferece uma pri morosa análise comparada dos despotismos iluminados do século XVIII O seu quadro explicativo é porém deficiente baseandose essencialmente numa teoria de exemplos generativos pela qual Luís XIV teria fornecido um modelo original de governo que ins pirou Frederico II o qual por sua vez inspirou os outros soberanos da época pp 3445 Sem negarmos a importância do fenômeno relativamente novo da imitação inter nacional consciente entre Estados no século XVIII saltam à vista as limitações de uma tal genealogia 15 Os comentários tecidos por Bluche sobre a incauta e crédula admiração dos philosophes pelos monarcas do Leste são sardônicos e vigorosos Lê Despotisme Edairé pp 31740 Voltaire foi o coryphée do absolutismo prussiano na pessoa de Frederico K Diderot o do absolutismo russo na pessoa de Catarina II ao passo que Rousseau carac teristicamente reservava os seus louvores para a classe dos proprietários rurais da Polô nia aos quais aconselhava a não se precipitarem na abolição da servidão Os fisiocratas Mercier de Ia Rivière e De Quesnay elogiaram genericamente os méritos do despotismo jurídico e patrimonial 234 PERRY ANDERSON que seus protótipos ocidentais do século anterior devido à evolução geral da época Enquanto Filipe II e Luís XIV expulsaram imprevi dentemente os mariscos e os huguenotes Frederico II não apenas aco lheu os refugiados religiosos como estabeleceu no estrangeiro escritó rios de imigração a fim de promover o crescimento demográfico de seu reino uma nova volta no parafuso do mercantilismo Políticas popu lacionais foram também fomentadas na Áustria e na Rússia que pro moveram ambiciosos programas de colonização no Banat e na Ucrânia A tolerância religiosa e o anticlericalismo foram oficialmente encora jados na Áustria e na Prússia em contraste com a Espanha ou a Fran ça16 Inaugurouse ou expandiuse a educação pública e notáveis pro gressos foram conseguidos nas duas monarquias germânicas particu larmente nos reinos Habsburgo O recrutamento foi introduzido em toda a parte com maior êxito na Rússia No aspecto econômico o mercantilismo e o protecionismo absolutistas foram perseguidos com vigor Catarina presidiu à grande expansão da indústria metalúrgica dos Urais e levou a cabo uma grande reforma monetária na Rússia Tanto Frederico II como José II duplicaram o número de estabeleci mentos industriais nos seus reinos na Áustria o mercantilismo tradi cional foi mesmo atenuado pelas influências mais modernas da fisio cracia com sua ênfase na produção agrária e nas virtudes do laissez faire doméstico Todavia nenhum desses avanços aparentes alterou realmente o caráter e a posição relativos dos exemplares orientais do absolutismo europeu na época do iluminismo As estruturas subjacentes a essas mo narquias permaneciam arcaicas e retrógradas mesmo no momento de seu maior prestígio A Áustria abalada pela derrota na guerra contra a Prússia foi o cenário de uma tentativa monárquica de restaurar o po der do Estado através da emancipação do campesinato17 as reformas 16 José II podia declarar no tom da época A tolerância religiosa é um efeito desse benéfico crescimento do saber que agora ilumina a Europa e que devemos à filo sofia e ao esforço de grandes homens é uma prova convincente do aprimoramento da mentalidade humana que ousadamente reabriu através dos domínios da superstição um caminho que fora trilhado há séculos por Zoroastro e Confúcío o qual para a fortuna da humanidade é agora a estrada dos reis S K Padover The Revolutionary Etnperor Joseph U 17411790 Londres 1934 p 206 17 O primeiro projeto oficial de abolição das corvéias dos robots e de distri buição de terras ao campesinato foi esboçado em 1764 pelo Hofkriegsrat com o objetivo de aprimorar o recrutamento para o exercito W E Wright Serf Seigneur and Sove reign Agrarian Refortn in Eighteenth Century Bohemia Minneapolis 1966 p 56 Em seu conjunto o programa de José II deve ser sempre considerado no quadro das humilhações militares Habsburgo na Guerra da Sucessão da Áustria e na Guerra dos Sete Anos LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 235 agrárias de José II acabaram porém em fracasso inevitável uma vez que a monarquia se achou isolada da sua nobreza circundante O abso lutismo austríaco foi sempre débil e inferior O futuro estava com os absolutismos russo e prussiano A servidão foi preservada por Frede rico II e ampliada por Catarina II os fundamentos senhoriais do abso lutismo oriental sobreviveram intatos nas duas potências dominantes da região até o século seguinte Então mais uma vez seria o impacto do ataque militar do Ocidente que outrora contribuíra para trazer à luz o absolutismo oriental que poria fim à servidão sobre a qual este se assentara Agora o assalto veio de Estados capitalistas e era impossível resistirlhe A vitória de Napoleão em lena levou diretamente à eman cipação jurídica do campesinato prussiano em 1811 A derrota de Ale xandre II na Criméia precipitou a emancipação formal dos servos rus sos em 1861 Não obstante em nenhum dos casos estas reformas re presentariam o fim do próprio absolutismo na Europa oriental O pe ríodo de vida de ambos ao contrário das expectativas lineares mas em conformidade com a marcha oblíqua da história não coincidiu o Es tado absolutista no Leste como veremos haveria de sobreviver à aboli ção da servidão Prússia Após analisar os seus determinantes comuns podemos agora considerar brevemente a evolução divergente das formações sociais es pecíficas do Leste A Prússia representa o caso europeu clássico de um desenvolvimento desigual e combinado que acabaria originando o maior Estado do capitalismo industrializado do continente a partir de um dos menores e mais atrasados territórios feudais do Báltico Os pro blemas teóricos colocados por esta trajetória foram propostos especifi camente por Engels na sua famosa carta a Bloch de 1890 sobre a importância irredutível dos sistemas jurídico político e cultural na es trutura de toda a determinação histórica Segundo a concepção ma terialista da história o elemento determinante em última instância na história é a produção e a reprodução da vida real Nem eu nem Marx afirmamos mais do que isso Também o Estado prussiano nasceu e se desenvolveu a partir de causas históricas em última instância eco nômicas Mas seria difícil defender sem pedantismo que entre os vários pequenos Estados do norte da Alemanha o Brandenburgo tenha si do especificamente determinado pela necessidade econômica para se tornar a grande potência que personificou as diferenças econômi cas lingüísticas e depois da Reforma também religiosas entre o norte e o sul e não igualmente por outros elementos acima de tudo pelo seu entrelaçamento com a Polônia devido à posse da Prússia e portanto com as relações políticas internacionais que na ver dade foram também decisivas na formação do poder dinástico na LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 237 Áustria Ao mesmo tempo parece evidente que as complexas causas da supremacia do Brandenburgo contêm também a resposta ao grande enigma de toda a história da Alemanha moderna por que razão a uni ficação nacional da Alemanha na época da Revolução Industrial reali zouse em última análise sob a égide política do domínio agrário dos junkers da Prússia A ascensão do Estado Hohenzollern em outras pa lavras concentra de uma forma particularmente clara algumas das questões gerais fundamentais sobre a natureza e a função do absolu tismo no desenvolvimento político da Europa Os seus primórdios não foram particularmente auspiciosos A casa Hohenzollern foi originalmente transplantada pelo imperador Se gismundo durante a sua luta contra a revolução hussita na Boêmia do sul da Alemanha onde fora tradicionalmente uma linhagem aristo crática em forte desacordo com a cidade comercial de Nuremberg para o Brandenburgo no início do século XV Frederico o primeiro margrave Hohenzollern do Brandenburgo foi feito Eleitor do Império pelos serviços prestados a Segismundo em 14152 O margrave que o sucedeu suprimiu a autonomia municipal de Berlim enquanto os seus sucessores capturaram à Liga Hanseática as outras cidades da Marca subordinandoas por sua vez Por volta do início do século XVI como vimos não havia no Brandenburgo cidades livres Todavia a derrota das cidades assegurou a supremacia da nobreza às custas da dinastia nessa remota zona de fronteira A aristocracia local aumentou rapida mente os seus domínios cercando as terras comunais das aldeias e 1 Marx e Engels Selected Correspondence p 417 Althusser selecionou tal passagem como uma pedra de toque no seu famoso ensaio Contradiction et surdéter mination Pour Marx Paris 1967 mas limitase a demonstrar a importância teórica geral das formulações de Engels sem propor qualquer solução para os problemas histó ricos reais por elas levantados A ênfase expressa de Engels no caráter complexo e sobre determinado da ascensão prussiana é tanto mais notável quando comparada com os comentários de Marx sobre o mesmo tema Com efeito Marx precisamente reduz a emergência do Estado Hohenzollern no Brandenburgo a uma caricatura virtual da neces sidade meramente econômica Em seu artigo de 1856 Das gõttliche Recht der Hohen zollern Werke vol 12 pp 95101 ele atribuía a elevação da dinastia simplesmente a uma sórdida série de subornos Os Hohenzollern adquiriram o Brandenburgo a Prússia e o título real através do mero suborno Em sua correspondência privada com Engels ã mesma época usa uma fraseologia semelhante Pequenos furtos suborno compra di reta procedimentos ilícitos para apropriarse de heranças etc é de tais mesquinha rias que é feita a história da Prússia Selected Correspondence p 96 Este materia lismo vulgar e extremado é um alerta contra os riscos de tomar como ponto pacifico uma superioridade geral de Marx sobre Engels especificamente no campo histórico um exame da perspicácia de ambos revelará talvez de modo geral um resultado oposto 2 Para o contexto deste gesto ver Barraclough The OriginsoGermanyp38 238 PERRY ANDERSON privou os pequenos camponeses de suas terras à medida que o cultivo para a exportação se tornava mais lucrativo Ao mesmo tempo a classe fundiária abarcava os graus mais altos da justiça comprava os domí nios do Eleitorado e monopolizava os cargos administrativos enquanto uma série de monarcas incapazes afundavamse em dívidas crescentes e em impotência Um enraizado sistema de Estados sob o domínio da nobreza vetou o desenvolvimento de um exército permanente e vir tualmente de qualquer política externa fazendo do Eleitorado um dos mais nítidos exemplos de um Stãndestaat descentralizado na Alema nha da Reforma Assim após a crise econômica do fim da Idade Mé dia o Brandenburgo instalouse numa modesta prosperidade domi nial com um poder monárquico muito débil na época da revolução dos preços no Ocidente Beneficiandose com os lucros do comércio do trigo mas sem dar mostras de um impulso político mais agressivo a sociedade junker configurouse por todo o século XVI como uma região atrasada provinciana e sonolenta3 Entretanto a Prússia oriental tor narase feudo hereditário de um outro ramo da família Hohenzollern quando Alberto Hohenzollern feriu a Ordem Teutônica na pessoa de seu grãomestre ao tomar o partido da Reforma em 1525 obtendo de seu suserano polonês o título secular de duque A dissolução da ordem religiosamilitar dominante há muito decadente desde que fora derro tada e subjugada pela Polônia no século XV levou à fusão de seus ca valeiros com os proprietários de terras laicos e daí à criação de uma classe senhorial unificada pela primeira vez na Prússia oriental Uma revolta camponesa contra o novo regime foi prontamente esmagada e consolidouse assim uma sociedade muito semelhante à do Branden burgo No campo prosseguiram as expulsões e a servidão compulsória enquanto os arrendatários livres em breve se viam reduzidos à condição de vilões Por outro lado um pequeno estrato de Cõlmer outrora pe quenos servidores dos cavaleiros teutônicos conseguiu sobreviver No século anterior quase todas as cidades com alguma importância tinham sido anexadas pela Polônia com a exceção de Kõnigsberg a única cidade relativamente grande e destemida da região No aspecto consti tucional o poder do príncipe no novo ducado era muito limitado e frágil embora os próprios territórios ducais fossem extensos Os Es tados da Prússia na realidade detinham talvez privilégios mais amplos 3 Hans Rosenberg The Rise of the Junkers in BrandenburgPrussia 1653 American Hiatorical Review outubro de 1943 pp 122 e janeiro de l044 22842 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 239 do que qualquer outra instituição desse tipo na Alemanha incluindo nomeações para a administração poderes judiciais e direitos perma nentes de apelar à monarquia polonesa contra os duques4 O signifi cado internacional da Prússia oriental era então ainda menor que o do Brandenburgo Em 1618 os dois principados até então politicamente separa dos foram reunidos quando o Eleitor do Brandenburgo subiu ao trono da Prússia oriental através de um casamento entre famílias no entanto o ducado continuou a ser um feudo da Polônia Quatro anos antes uma outra conquista geográfica fora efetuada na Baixa Renânia quando os dois pequenos territórios de Clèves e da Marca enclaves ocidentais densamente povoados e urbanizados foram acrescentados por herança ao patrimônio Hohenzollern Contudo as novas aquisições dinásticas do início do século XVII continuaram desprovidas de uma ligação territorial com o Brandenburgo estrategicamente as três pos sessões do Eleitor estavam dispersas e vulneráveis Pelos padrões ale mães o próprio Eleitorado era ainda um Estado isolado e indigente merecendo dos contemporâneos o apelido de caixa de areia do Santo Império Romano Nada indicava que o Brandenburgo ou a Prússia desempenhariam um dia um papel relevante nas questões da Alema nha ou da Europa5 Foram os vendavais da Guerra dos Trinta Anos e da expansão sueca que arrastaram o Estado Hohenzollern para fora de sua inércia O Brandenburgo ingressou pela primeira vez no mapa da política internacional quando os exércitos imperiais de Wallenstein marcharam vitoriosos através da Alemanha rumo ao Báltico O Eleitor Jorge Guilherme um luterano hostil à perspectiva de um governante calvinista em Praga alinharase politicamente ao imperador Habsburgo Fernando II quando dos acontecimentos da Boêmia que estiveram na origem do conflito um papel militar estava além de suas possibili dades uma vez que efetivamente não possuía qualquer exército Não obstante o seu indefeso território foi ocupado e pilhado pelas tropas austríacas em 1627 enquanto Wallenstein instalarase pessoalmente em Mecklenburgo Nesse ínterim Gustavo Adolfo conquistara na Prússia oriental PUau e Memel as duas fortalezas que defendiam Kò nigsberg na continuação de sua guerra com a Polônia e a seguir lan çava impostos sobre todo o tráfico marítimo para o ducado Então em 1631 o exército expedicionário sueco desembarcava na Pomerânia e 4 Carslen The Origins of Prússia pp 1689 5 Idemp 174 240 PERRY ANDERSON invadia o Brandenburgo Jorge Guilherme que fugira para a Prússia oriental em desespero de causa foi forçado por Gustavo Adolfo a mu dar de partido e declararse contra a causa imperial Quatro anos mais tarde desertava para assinar uma paz separada com o imperador Mas por todo o período de duração da Guerra dos Trinta Anos as tropas suecas ficaram acampadas no Eleitorado que se achava à mercê das suas extorsões fiscais Os Estados foram naturalmente postos de lado pela potência ocupante O Brandenburgo despediuse do longo conflito tão passivamente como nele entrara De forma paradoxal po rém ganhou com o Tratado de Vestfália pois durante a guerra a Pomerânia retornara juridicamente à linhagem Hohenzollern com a morte de seu último duque A conquista sueca da Pomerânia a prin cipal base do Báltico para as operações nórdicas no círculo da Baixa Saxônia impedira esta herança de se efetivar durante a guerra mas por insistência dos franceses o lado mais pobre e oriental da província foi então relutantemente entregue ao Brandenburgo que obteve tam bém compensações menores ao sul e a oeste do Eleitorado No plano externo o Estado Hohenzollern emergiu da Guerra dos Trinta Anos sem grandes créditos políticos ou militares ainda que territorialmente ampliado pela paz No plano interno as suas instituições tradicionais achavamse profundamente abaladas mas nenhuma instituição nova aparecera para as substituir O novo Eleitor o jovem Frederico Guilherme I que fora educado na Holanda ingressou em seu patrimônio pela primeira vez em condi ções normais apôs a conclusão da paz A experiência das décadas de ocupação estrangeira deixara duas lições indeléveis a necessidade ur gente de constituir um exército capaz de enfrentar a expansão imperial no Báltico e em complemento o exemplo administrativo do sistema coercitivo de coleta de impostos dos suecos exercido no Brandenburgo e na Prússia oriental em desafio aos protestos dos Estados locais A preocupação imediata do Eleitor foi portanto assegurar uma base fi nanceira estável para a criação de um aparelho militar permanente de defesa e integração de seus domínios As forças Vasa não evacuaram de fato a Pomerânia oriental até 1654 Então em 1652 o Eleitor reuniu um Landtag geral no Brandenburgo convocando para ele toda a no breza e todas as cidades da Marca com o propósito de instituir um novo sistema financeiro que sustentasse o exército real Seguiuse uma longa disputa com os Estados que terminou no ano seguinte com o famoso Recesso de 1653 consagrando os primórdios do pacto social entre o Eleitor e a aristocracia que haveria de servir de alicerce perma nente ao absolutismo prussiano Os Estados recusaramse a conceder LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 241 impostos regulares mas votaram um subsídio de meio milhão de tale res por seis anos para a construção de um exército que seria o núcleo do futuro Estado burocrático Em contrapartida o Eleitor decretou que daí para a frente todos os camponeses do Brandenburgo seriam considerados servos Leibeigene salvo prova em contrário as jurisdi ções senhoriais foram confirmadas impediuse a compra de proprieda des da nobreza por parte dos plebeus e a imunidade fiscal aristocrática foi preservada6 Passados dois anos da conclusão desse contrato a guerra rebentou outra vez no Báltico com o ataque relâmpago da Sué cia à Polônia em 1655 Frederico Guilherme escolheu o partido sueco neste conflito e em 1656 o seu recémcriado exército entrou em Var sóvia lado a lado com as tropas de Carlos X A recuperação militar polonesa sustentada pela intervenção russa e austríaca em breve en fraqueceu a posição dos suecos atacados também à retaguarda pela Dinamarca Em razão disso o Brandenburgo mudou habilmente de partido em troca da renúncia formal da suserania polaca sobre a Prús sia oriental O Tratado de Labiau em 1657 estabeleceu pela primeira vez a soberania incondicional dos Hohenzollern sobre o ducado O Elei tor ocupou então rapidamente a Pomerânia ocidental com o recurso a uma força mista de poloneses austríacos e brandenburgueses Con tudo o Tratado de Oliva em 1660 restituiu essa província à Suécia com a restauração da paz por insistência dos franceses A Guerra do Báltico de 165660 alterou entretanto de modo abrupto e drástico o equilíbrio interno de forças no seio das possessões Hohenzollern No Brandenburgo na Prússia oriental e em Clèves Marca o Eleitor banira todos os favores constitucionais em nome da necessidade militar cobrando impostos sem o consentimento das as sembléias locais e constituindo uma força militar de 22 mil homens reduzida à metade mas não dispersada com a cessação das hostili dades Tornouse então possível um confronto mais drástico com o par ticularismo dos Estados A Prússia oriental onde a nobreza se acostu mara a recostarse na suserania polaca para resistir às pretensões Ho henzollern e onde as cidades exprimiram abertamente o seu descon tentamento durante a guerra foi o primeiro local a experimentar o novo poderio do Eleitorado Em 166163 foi convocada uma longa ses são do Landtag A recusa dos burgueses de Kònigsberg em aceitar a plena soberania dináslica no ducado foi rompida pela prisão sumária do cabeça da resistência urbana e instituiuse um imposto regular para 6 ídempp 1859 242 PERRY ANDERSON a manutenção do exército O Eleitor teve que prometer a convocação trienal dos Estados e a nãodecretação de impostos a partir daí sem o seu consentimento mas estas concessões viriam a revelarse em grande parte formais Enquanto isso em Clèves e na Marca os Estados foram forçados a aceitar o direito do monarca de ai instalar tropas e nomear oficiais à sua vontade Em 1672 a Guerra FrancoHolandesa lançou o Estado Hohen zollern aliado diplomático e cliente financeiro das Províncias Unidas em novo conflito militar desta vez em escala européia Por volta de 1674 o Eleitor era o comandante titular das forças alemãs combinadas em luta contra a França no Palatinado e na Alsácia No ano seguinte a Suécia invadiu o Brandenburgo como aliada da França na ausência do Eleitor Retornando às pressas à pátria Frederico Guilherme devol veu o golpe na batalha de Fehrbellin em 1675 onde pela primeira vez as tropas brandenburguesas bateram os veteranos escandinavos nas regiões pantanosas a noroeste de Berlim Por volta de 1678 toda a Pomerânia sueca fora invadida pelo Eleitor Mas uma vez mais a inter venção francesa rouboulhe as conquistas os exércitos Bourbon mar charam sobre Clèves e a Marca e ameaçaram Minden o posto avan çado Hohenzollern no oeste A França pôde assim ordenar a restituição da Pomerânia ocidental à Suécia em 1679 Improfícua no aspecto geo gráfico esta guerra foi contudo proveitosa no plano institucional para a construção de um absolutismo monárquico A Prússia foi submetida a impostos territoriais e de consumo sem o consentimento de uma assem bléia representativa apesar dos murmúrios de dissidência dos nobres e das sonoras ameaças de revota burguesa KÒnigsberg foi o centro da resistência em 1674 um súbito golpe militar apoderouse da cidade e esmagou definitivamente a sua autonomia municipal A partir daí os Estados da Prússia votaram documente as grandes contribuições que lhes foram exigidas ao longo de toda a guerra7 A assinatura da paz não trouxe qualquer abrandamento na con centração do poder nas mãos do Eleitor Em 1680 impôsse no Bran denburgo um imposto urbano obrigatório deliberadamente limitado às cidades com o fim de separar a nobreza dos burgos Um ano depois o mesmo separatismo fiscal foi ensaiado na Prússia oriental e por volta do final do reinado do Eleitor fora estendido à Pomerânia Magde burgo e Minden Os encargos rurais eram suportados apenas pelos camponeses no Brandenburgo e em Clèves e na Marca na Prússia 7 Idem pp 21921 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 243 oriental a nobreza prestava urna leve contribuição mas o grosso dos encargos era sustentado pelos seus arrendatários A divisão adminis trativa entre cidade e campo criada por esse dualismo fracionou irre mediavelmente a oposição social potencial ao absolutismo Os impostos foram de fato confinados às cidades e aos camponeses numa propor ção de três para dois A nova carga fiscal foi particularmente danosa para as cidades pois a imunidade aos impostos de que gozavam as cer vejarias e outras empresas nos seus domínios permitia aos proprietários de terra competir impunemente com as manufaturas urbanas O pode rio econômico das cidades do Brandenburgo e da Prússia oriental já muito abalado pela depressão gera do século XVII foi portanto ain da mais reduzido graças à política do Estado E logo que o imposto de consumo adquiriu um caráter permanente as cidades ficaram efetiva mente privadas de maior representação no Landtag Em contraste a nobreza recebeu um tratamento especial tanto no aspecto financeiro como no jurídico Não apenas os seus privilégios tradicionais foram confirmados nas principais províncias orientais como nos enclaves oci dentais de Clèves e da Marca o Eleitor chegou a conferir de novo juris dições senhoriais e imunidade fiscal à aristocracia local que nunca antes as possuíra8 O gélido clima econômico do final do século XVII proporcionou à classe fundiária um novo incentivo para se aliar ao edi fício político do poder monárquico então em ascensão nos reinos Ho henzollern as perspectivas de colocação em seu seio constituíam um convite adicional ao abandono das posições retrógradas ditadas pela tradição Com efeito enquanto o sistema de Estados era aceleradamente demolido o aparelho burocráticomilitar do absolutismo centralizado foi rápida e inexoravelmente edificado Desde 1604 existia o Conselho Privado para a Marca do Brandenburgo mas este foi em pouco tempo colonizado pelos nobres locais tornandose um organismo paroquial e sem importância cujas atividades desapareceram virtualmente por completo durante a Guerra dos Trinta Anos Frederico Guilherme o revitalizou após a Paz de Vestfália quando ele passou a assumir inter mitentemente a direção central dos domínios Hohenzollern ainda que se mantivesse particularista na sua forma subjacente e primitivo no seu funcionamento administrativo No entanto durante a guerra de 1665 1670 foi criado um departamento especializado para a condução dos assuntos militares em todos os territórios da dinastia o Generalkriegs 8 Idem pp 2369 2469 244 PERRY ANDERSON kommissariat Com o restabelecimento da paz tal comissariado viuse reduzido em suas funções e em seu pessoal mas não foi abolido sobre viveu sob o controle formal do Conselho Privado Até então a evolução do absolutismo brandenburguês seguira uma via administrativa seme lhante à das primeiras monarquias ocidentais A eclosão da guerra de 167278 marcou uma súbita e decisiva virada Com efeito o General kriegskommissariat começou então a comandar quase toda a máquina do Estado Em 1674 foi formada uma Generalkriegskasse que no es paço de uma década tornouse o erário central dos Hohenzollern à medida que a coleta fiscal era cada vez mais confiada aos funcionários do Comissariado Em 1679 o Generalkriegskommissariat passou a ser chefiado por um soldado de carreira o aristocrata pomerânio Von Grumbkow alargaramse as suas fileiras em seu interior foi criada uma hierarquia burocrática e a suas responsabilidades externas foram diversificadas No curso da década seguinte organizou a colonização dos refugiados huguenotes e dirigiu uma política de imigração con trolou o sistema das corporações nas cidades supervisionou o comércio e as manufaturas e lançou as bases dos empreendimentos navais e colo niais do Estado O Generalkriegskommissar tornouse pessoalmente na prática chefe do EstadoMaior ministro da Guerra e ministro das Finanças O Conselho Privado viuse tolhido por este crescimento imen so A burocracia do Comissariado era recrutada numa base unitária e interprovincial utilizada como principal arma da dinastia contra o particularismo local e as assembléias renitentes9 Todavia o General kriegskommissariat nunca foi em qualquer sentido uma arma contra a própria aristocracia Ao contrário os seus escalões superiores eram preenchidos por nobres de escol tanto no nível central como no provin cial os plebeus concentravamse no departamento comparativamente menos importante da coleta dos impostos urbanos A função primordial desse aparelho tentacular que era o Comis sariado era evidentemente assegurar a manutenção e a expansão das forças armadas do Estado Hohenzollern Com este fim as receitas ge rais foram triplicadas entre 1640 e 1688 uma renda fiscal per capita quase duas vezes mais elevada que a da França de Luís XIV um país muito rico Quando da ascensão de Frederico Guilherme o Branden burgo possuía apenas um exército de 4 mil homens ao final do reinado daquele a quem os contemporâneos chamavam o Grande Eleitor estava de pé um exército permanente de 30 mil soldados bem treinados 9 Idempp 25965 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 245 comandados por um corpo de oficiais recrutado na classe junker e im buído de lealdade marcial para com a dinastia10 A morte do Grande Eleitor revelou até que ponto a sua obra era sólida Frederico o seu fútil e inconseqüente sucessor comprometeu a casa Hohenzollern na coligação européia contra a França a partir de 1688 Os contingentes brandenburgueses desobrigaramse com competência de sua missão nas guerras da Liga de Augsburgo e da Sucessão Espanhola ao passo que o príncipe reinante recorria a empréstimos externos devido às suas extravagâncias internas e fracassava em assegurar qualquer ganho ter ritorial com a sua política externa A única realização de destaque des se reinado foi a aquisição pela dinastia do título monárquico de rei da Prússia concedido por via diplomática em 1701 pelo imperador Car los VI em troca de uma aliança oficial HabsburgoHohenzollern e juridicamente garantido pelo fato de a Prússia oriental ficar fora das fronteiras do Reich onde estavam vedadas as monarquias abaixo da dignidade imperial Não obstante a monarquia prussiana continuou a ser um Estado pequeno e atrasado empoleirado nas margens do nor deste da Alemanha A população total dos territórios Hohenzollern não passava de l milhão de almas nos últimos anos do reinado do Grande Eleitor 270 mil no Brandenburgo 400 mil na Prússia oriental 150 mil em ClèvesMarca e talvez uns 180 mil nos domínios menores À morte de Frederico I em 1713 o reino da Prússia ainda não dispunha de mais de l milhão e 600 mil habitantes Este modesto legado seria notavelmente engrandecido pelo novo rei Frederico Guilherme I O ReiSargento votou a sua carreira à edi ficação do exército prussiano que duplicou os seus contingentes de 40 para 80 mil homens no reinado de um homem que simbolicamente foi o primeiro príncipe europeu a vestir permanentemente o uniforme A eficácia e o treinamento militares eram as obsessões reais as obras de intendência e as fábricas de tecidos para o suprimento do exército fo ram incansavelmente promovidas foi introduzido o recrutamento fun douse uma escola de cadetes para os jovens da nobreza e o serviço de oficiais em exércitos estrangeiros foi rigorosamente proibido o comis sariado da guerra foi reorganizado sob o comando do filho de Von Grumbkow A utilização das novas tropas foi extremamente prudente a Pomerânia ocidental foi afinal tomada à Suécia em 1719 quando a Prússia aliouse à Rússia e à Dinamarca contra Carlos XII nas etapas finais da Grande Guerra do Norte Por outro lado o exército era cau 10 Idempp 26671 246 PERRY ANDERSON telosamente secundado por uma diplomacia pacífica Também a buro cracia foi reorganizada e racionalizada O aparelho de Estado estivera até então dividido entre o domínio e o comissariado isto é as agências financeiras privada e pública da monarquia responsáveis res pectivamente pela administração dos domínios reais e pela coleta dos impostos civis Estas duas divisões fundiramse agora num único pilar central com a memorável designação de GeneralOberFinanzKriegs undDomãnenDirektorium com responsabilidade sobre todos os en cargos administrativos à exceção dos negócios estrangeiros a justiça e a Igreja Criouse um corpo de polícia secreta ou de fiscais especiais para exercer vigilância sobre o serviço públicon A economia foi objeto de não menor atenção Na área rural fizeramse investimentos em di ques drenagens e projetos de povoamento com o recurso a técnicas e profissionais holandeses Imigrantes franceses e alemães foram contra tados para trabalhar nas manufaturas locais controladas pelo Estado O mercantilismo real incentivou a indústria têxtil e outros produtos de exportação Ao mesmo tempo as despesas da corte foram contidas em um mínimo frugal O resultado foi que o ReiSargento governava no final de seu reinado uma receita anual de 7 milhões de taleres e legou a seu sucessor um excedente fiscal de 8 milhões de taleres Talvez ainda mais importante é o fato de que a população do reino tenha alcançado os 2 milhões e 250 mil habitantes crescendo quase 40 por cento em menos de três décadas12 Em 1740 a Prússia acumulara silenciosa mente as precondições sociais e materiais que fariam dela uma gran de potência européia sob o comando geral de Frederico II e que em última instância a levaram a assegurar a liderança da unificação alemã Podese assim levantar a questão qual era a configuração polí tica geral da Alemanha que tornou lógica e possível a futura suprema cia da Prússia no seu seio E inversamente quais os traços específicos que distinguiam o absolutismo Hohenzollern dos Estados territoriais rivais no interior do Sacro Império Romano com condições semelhan tes para reivindicar a ascendência germânica no início da época mo derna A princípio é possível traçar uma simples linha divisória básica 11 Para uma análise da estrutura e funcionamento do Generaloberdirektvrium ver R A Dorwart The Administrative Reforms of Frederick William I of Prússia pp 1709 No seio da administração os fiscais não eram assalariados mas recebiam co missões sobre as multas resultantes das ações iniciadas por suas investigações 12 H Holborn A History of Modem Germany 16481840 Londres 1965 pp 192202 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 247 ao longo do Reich separando as suas regiões ocidental e oriental A Alemanha ocidental estava em seu conjunto salpicada de cidades A partir da Alta Idade Média a Renânia foi uma das mais florescentes zonas comerciais da Europa situada ao longo das rotas de comércio que ligavam as duas civilizações urbanas de Flandres e da Itália e beneficiandose da mais longa via fluvial natural do continente No centro e no norte a Liga Hanseática dominava as economias do Báltico e do mar do Norte estendendose desde a Vestfália até os postos colo niais avançados de Riga e Reval na Livônia até Estocolmo e Bergen na Escandinávia ao mesmo tempo que detinha posições privilegiadas em Bruges e em Londres No sudoeste as cidades da Suábia benefi ciavamse do comércio transalpino e dos excepcionais recursos em mi nérios de que dispunha o seu território A importância particular de cada uma dessas cidades nunca foi suficientemente grande para criar cidadesEstados do tipo italiano com extensas terras de cultivo a elas sujeitas aquelas que chegaram a dispor de um modesto cinturão agrí cola como Nuremberg constituíam mais a exceção do que a regra O seu tamanho era em média consideravelmente menor do que o das cidades da Itália Por volta de 1500 de cerca de 3 mil cidades alemãs apenas quinze tinham população superior a 10 mil habitantes e so mente duas tinham mais que 30 mil habitantes13 Augsburgo a maior delas contava 50 mil almas numa época em que Veneza e Milão contavam mais de 100 mil Por outro lado a sua força e vitalidade tinhamlhes assegurado durante a Idade Média a posição de cidades livres imperiais sujeitas apenas à suserania nominal do imperador havia deste tipo 85 cidades e tinham dado mostras de uma capaci dade política para a ação coletiva à escala regional que alarmara os príncipes territoriais do império Em 1254 as cidades renanas forma ram uma liga militar defensiva em 1358 as cidades hanseáticas con cluíram a sua federação econômica em 1376 as cidades suábias cria ram uma associação armada contra o conde de Wittenberg A Bula de Ouro de meados do século XIV proibiu oficialmente as ligas urbanas mas isto não impediu as cidades renanas e suábias de assinarem um pacto de união da Alemanha meridional em 1381 que acabou por ser esmagado por um exército dos príncipes sete anos mais tarde durante a escuridão da última depressão feudal e a concomitante anarquia no seio ao Reich Não obstante o crescimento econômico das cidades teu 13 H Holborn A History of Modem Germany The Reformation Londres 1965 p 38 248 PERRY ANDERSON tônicas foi rapidamente retomado na segunda metade do século XV e atingiu o seu apogeu no período entre 1480 e 1530 quando a Alemanha converteuse numa espécie de centro diversificado do comércio euro peu A Liga Hanseática foi essencialmente uma associação comercial que não possuía muitas empresas manufatureiras nas cidades propria mente ditas os seus lucros eram provenientes dos entrepostos comer ciais de cereais e do controle da pesca do arenque somados às transa ções financeiras internacionais A Renânia com as cidades mais anti gas da Alemanha contava indústrias tradicionais de linho lã e metais além do controle das vias comerciais entre Flandres e a Lombardia A prosperidade das cidades suábias era mais recente mas a mais flores cente de todas as indústrias têxteis a mineração e a metalurgia confe riamlhes uma avançada base produtiva à qual se acrescentavam as fortunas financeiras dos Fuggers e dos Welsers na época de Carlos V Na virada do século XVI as cidades do sul da Alemanha superavam as suas parceiras italianas pelo menos quanto à capacidade tecnológica e ao progresso industrial Elas foram as pontas de lança do primeiro avanço popular da Reforma Contudo a expansão da economia urbana na Alemanha declinou subitamente em meados do século A adversidade adquiriu vários as pectos interrei acionados De início verificouse uma lenta inversão da relação entre os preços agrícolas e industriais à medida que a demanda ultrapassava a oferta de gêneros alimentícios e os preços dos cereais elevavamse rapidamente A ausência de uma integração estrutural co meçou a tornarse cada vez mais evidente na própria rede comercial da Alemanha Os extremos setentrional e meridional do longo arco de ci dades que ia do mar do Norte até os Alpes nunca estiveram propria mente ligados num sistema articulado14 A Liga Hanseática e as ci dades renanassuábias sempre constituíram setores mercantis separa dos com zonas de influência e mercados distintos O comércio marí timo propriamente dito o trunfo mais importante de todo o comércio medieval confinavase à Hansa que outrora dominara os mares da Inglaterra à Rússia Mas a partir de meados do século XV as frotas mais competitivas da Holanda e da Zelândia melhor concebidas e equipadas romperam a tenaz monopolística dos portos hanseáücos nas águas do Norte As frotas holandesas de pesca apossaramse dos 14 Os marxistas enfatizaram muitas vezes este ponto ver inter alia o represen tativo ensaio de Lukács Uber einige Eigentümlichkeiten Entwicklung Deutschland Die Zersiõrung der Vernunft NeuwiedBerlim 1962 p 38 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 249 pesqueiros de arenque que migravam da costa do Báltico para a da Noruega enquanto os cargueiros da Holanda atravessaram o comércio de cereais de Dantzig Por volta de 1500 os navios batavos que cruza vam o estreito do Sund suplantavam os alemães na proporção de cinco para quatro A prosperidade hanseática atingira portanto o apogeu durante o período da máxima expansão comercial da Alemanha em seu conjunto A Liga ainda continuava rica e poderosa na década de 1520 como vimos Lübeck servira de meio para a instalação de Gustavo Vasa na Suécia e a derrubada de Cristiano II na Dinamarca O grande aumento absoluto do tráfego do Báltico durante o século XVI compensou em certa medida o precipitado declínio da parte que aí lhe cabia Mas a Liga perdeu as suas posições vantajosas em Flandres foi privada de seus privilégios na Inglaterra 1556 e por volta do fim do século estava reduzida a apenas um quarto do volume da navegação holandesa através do Sund15 Cada vez mais dividida entre as suas alas vestfalianas e vêneda era uma força exaurida Enquanto isso as cida des renanas eram também vítimas de um modo diferente do dina mismo holandês Com efeito a Revolta dos Países Baixos levara ao fechamento do rio Escalda em 1585 depois da conquista espanhola da Antuérpia o término tradicional do tráfego rio abaixo e daí re sultará um estreito controle dos próprios estuários do Reno pelas Pro víncias Unidas Assim a grande expansão do poderio naval e manufa tureiro dos Países Baixos no final do século XVI e início do século XVII comprimiu ou asfixiou gradualmente a economia renana situada rio acima desde que o capital holandês dominava as suas saídas para o mar As cidades mais antigas da Renânia tendiam por conseguinte a retirarse a um conservantismo rotineiro com o seu arcaico sistema corporativo sufocando qualquer adaptação às novas circunstâncias Colônia a mais ilustre foi uma das poucas grandes cidades alemãs a manterse como um bastião do catolicismo tradicional ao longo de todo o século As novas indústrias da região tendiam a estabelecerse em localidades menores e rurais livres de restrições corporativas Por sua vez as cidades do sudoeste dispunham de uma base ma nufatureira mais sólida e o seu bemestar durou mais tempo Mas com a enorme expansão do comércio marítimo internacional a partir da época dos descobrimentos a sua posição interior tornouse um impor tante obstáculo econômico ao passo que a utilização do Danúbio como compensação estava bloqueada pelos turcos As espetaculares opera 15 H Holborn A History of Modern Germany The Refvrmation pp 512 250 PERRY ANDERSON ções das casas bancárias de Augsburgo no sistema imperial habsbur guês ao financiar Carlos V e Filipe II em sucessivas aventuras milita res acarretaram as suas próprias punições Os Fuggers e os Welsers finalmente se arruinaram devido a seus empréstimos à dinastia Para doxalmente as cidades italianas cujo declínio relativo tivera início mais cedo terminaram o século XVI numa situação de maior pros peridade do que a das cidades alemãs cujo futuro parecia melhor asse gurado à época do saque de Roma por um exército de Landsknechten A economia mediterrânea resistira aos efeitos da ascensão do comércio do Atlântico por um tempo mais longo que a da enclausurada Suábia Naturalmente o refluxo dos centros urbanos na Alemanha desta época não foi uniforme Algumas cidades notadamente Hamburgo Frank furt e em menor grau Leipzig fizeram rápidos progressos e atingi ram grande importância econômica no período 15001600 Pelos pa drões da época a Alemanha ocidental continuava a ser no início do século XVII uma região de modo geral rica e urbanizada embora já não registrasse um crescimento substancial A relativa densidade ur bana demarcava assim um complexo padrão político semelhante ao do norte da Itália Pois também aí precisamente em razão do poderio e da pluralidade das cidades mercantis não havia espaço para a expansão do absolutismo aristocrático O ambiente social de toda a região era avesso aos grandes Estados monárquicos e não apareceu nenhum prín cipe com poder territorial de importância Faltava a nobreza domi nante necessária à sua construção Ao mesmo tempo porém as pró prias cidades da Renânia e da Suábia embora numerosas eram mais fracas que as da Toscana ou da Lombardia Elas via de regra nunca possuíram um contado rural do tipo italiano durante o período medie val e na época moderna mostraramse incapazes de evoluir para cida desEstados propriamente ditas comparáveis às senhorias de Milão ou Florença ou às oligarquias de Veneza e de Gênova16 A relação política entre a classe senhoria e as cidades era portanto bastante diversa na Alemanha ocidental Em vez de um mapa simplificado de uns poucos Estados urbanos de média dimensão governados por aventureiros ou 16 São contundentes os comentários de Brecht sobre a mentalidade cívica das cidades livres da Alemanha em geral e da sua Ausburgo natal em particular como nos relata Benjamin Understanding Brecht Londres 1973 p 119 Constituem um curioso contraponto às desiludidas reflexões de Gramsci sobre as cidades italianas da mesma época Com efeito Brecht admirava as cidades italianas da Renascença ao passo que Gramsci louvava a Reforma urbana na Alemanha cada qual procurava a virtude histó rica no vício nacional do outro LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 251 patrícios neoaristocratas havia uma multiplicidade de pequenas cida des livres em meio a um labirinto de diminutos principados Os pequenos Estados territoriais da Alemanha ocidental distin guiamse em particular por um notável contingente de principados eclesiásticos Dos quatro eleitores ocidentais do Império três eram ar cebispados Colônia Mogúncia e Treviso Estes curiosos fósseis polí ticos datavam do início da época feudal quando os imperadores saxões e suábios tinham usado o aparelho eclesiástico como um de seus prin cipais instrumentos de dominação regional Enquanto na Itália o domí nio episcopal cedo fora derrubado nas cidades do norte onde o prin cipal perigo que ameaçava as comunas eram os desígnios políticos de sucessivos imperadores e o principal aliado delas contra estes era o papado na Alemanha pelo contrário os imperadores tinham em geral patrocinado tanto a autonomia urbana como a autoridade episcopal contra as pretensões dos barões e príncipes seculares em conluio com as intrigas papais Em conseqüência tanto os pequenos Estados eclesiás ticos como as cidades livres conseguiram sobreviver até o início da época moderna No campo a propriedade agrária tomou por toda a parte a forma da GrundkerrscHaft na qual os arrendatários campone ses livres pagavam tributos em espécie ou em gêneros pela posse da terra a senhores feudais que com freqüência eram proprietários ab senteístas No sudoeste da Alemanha um grande número de nobres menores resistiu com êxito à absorção por principados territoriais me diante a aquisição do estatuto de cavaleiros imperiais com dever de vassalagem direta ao próprio imperador no lugar da homenagem ao senhor local Por volta do século XVI havia cerca de 2500 desses Reichsritter cujas possessões territoriais não ultrapassavam no total mais de 65 mil hectares Muitos deles é certo tornaramse mercená rios empedernidos e sem escrúpulos mas muitas outras famílias inte graramse nos peculiares complexos políticoeclesiásticos disseminados por toda a Alemanha ocidental ocupando neles cargos e prebendas17 duas formas sociais anacrônicas que se perpetuavam mutuamente Neste panorama confuso não havia lugar para o desenvolvimento de um Estado absolutista sólido ou convencional mesmo numa escala re gional Os dois principados seculares mais importantes no oeste eram o Palatinado do Reno e o ducado de Württemberg Ambos continham muitos cavaleiros imperiais e pequenas cidades mas não uma nobreza territorial importante Württemberg com os seus 400 a 500 mil habi 17 Holborn A History of Modem Germany Tke Reformaíion pp 31 38 252 PERRY ANDERSON tantes nunca jogou um papel significativo no conjunto da política ale mã ou pareceu poder fazêlo O Palatinado que fornecia us quatro eleitores ocidentais do império e controlava os tributos do médio Reno era um Estado mais rico e considerável cujos governantes adquiriram uma autoridade absolutista relativamente precoce no século XVI Mas a sua única tentativa de expansão importante a fatal pretensão de Frederico a Boêmia no início do século XVII que detonou a Guerra dos Trinta Anos condenouo ao desastre poucas áreas da Alemanha foram tão fustigadas pelos exércitos contendores no conflito militar eu ropeu que se seguiu O final do século XVII e o início do século XVIII trouxeram poucos intervalos para a recuperação Tanto o Palatinado como Württemberg estiveram na linha de frente das guerras de Luís XIV de 1672 a 1714 e foram selvagemente devastados não só pelas tropas francesas como pelos soldados do império A vulnerabilidade estratégica desses dois principados ocidentais somavase às suas limita ções territoriais Por volta de meados do século XVIII constituíam meramente o dinheiro miúdo da diplomacia internacional sem peso político dentro da própria Alemanha Assim o terreno histórico representado pela Alemanha ocidental fmostrouse incompatível com a emergência de qualquer absolutismo importante A mesma necessidade histórica que determinou a sua au sência no Oeste assegurou que todas as experiências significativas de construção de um Estado absolutista que demonstraram uma possibi lidade real de estabelecimento de uma hegemonia definitiva no seio do império viessem do Leste Excluindo de momento os territórios Habs burgo na Áustria e na Boêmia que serão considerados mais tarde as chances futuras de uma unidade germânica assentavam basica mente nos três Estados orientais que formavam uma fileira do Ti rol ao Báltico Baviera Saxônia e Brandenburgo A partir do sé culo XVI eram estes os únicos verdadeiros candidatos à liderança de uma Alemanha unificada à parte a Casa da Áustria Com efeito foi apenas no leste mais atrasado e de colonização mais recente onde as cidades eram mais fracas e em muito menor número que uma forte máquina absolutista livre das amarras da proliferação urbana e apoiada numa poderosa nobreza pôde se desenvolver Para com preendermos por que foi o mais setentrional destes Estados que assu miu a ascendência final na Alemanha é necessário examinar a estru 18 Para as condições sociais em Württemberg e no Palatinado ver F L Cars ten Princes and Purliaments in Germany Oxford 1959 pp 24 3417 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 253 tura interna de cada um deles A Baviera era de longe o mais antigo peça importante do império carolíngio e um dos grandes ducados de estirpe do século X No final do século XII a Casa Wittelsbach tor nouse senhora da Baviera Daí para a frente nenhuma outra linhagem viria a suplantála a dinastia Wittelbach viria a conseguir o mais longo recorde jamais superado de domínio sobre a sua região hereditária em relação a qualquer outra família reinante na Europa 11801918 As suas possessões foram freqüentemente subdivididas durante a Idade Média mas em 1505 foram reunificadas outra vez por Alberto IV num único e poderoso ducado cerca de três vezes mais extenso que a Marca do Brandenburgo Durante os levantes religiosos do século XVI opta ram sem hesitação pela causa católica e fizeram do seu reino o mais sólido baluarte da ContraReforma na Alemanha A sua enérgica su pressão do luteranismo foi acompanhada pela firme insubordinação dos Estados locais principal foco de resistência protestante no ducado Consumouse o controle dinástico sobre o arcebispado de Colônia que mantevese como uma importante conexão familiar com a Renânia por quase dois séculos após 1583 Os governantes Wittelsbach responsá veis por este programa político e religioso introduziram também os pri meiros complementos burocráticos do absolutismo na Baviera uma Câmara de Finanças um Conselho Privado e um Conselho de Guerra moldados segundo a linha austríaca todos fundados na década de 1580 As influências administrativas provenientes da Áustria não signi ficam porém que a Baviera fosse em qualquer sentido um satélite Habsburgo nessa época Na realidade a ContraReforma na Baviera foi muito mais avançada que a austríaca e forneceu tanto o exemplo como os agentes da recatolicização dos territórios Habsburgo o futuro imperador Fernando II foi ele próprio um produto da educação jesuí ta em Ingolstadt numa época em que o protestantismo era ainda a fé dominante das classes fundiárias na Boêmia e na Áustria Em 1597 Maximiliano I ascendeu ao título ducal e em breve mostrouse o mais resoluto e capaz dos governantes da Alemanha Convocando um Land tag submisso apenas duas vezes antes da Guerra dos Trinta Anos con centrou todos os poderes judiciais financeiros políticos e diplomáticos em sua pessoa duplicou os impostos e acumulou 2 milhões de florins de reserva para uma caixa de guerra Assim quando eclodiu a Guerra dos Trinta Anos a Baviera era o líder natural dos Estados católicos da Alemanha contra a ameaça de uma tomada do poder pelos calvinistas na Boêmia Maximiliano I recrutou e equipou um exército de 24 mil homens para a Liga Católica que viria a desempenhar um papel vital na vitória da Montanha Branca em 1620 para no ano seguinte atacar 254 PERRY ANDERSON e conquistar o Palatinado Ao longo das prolongadas vicissitudes do conflito militar subseqüente o duque lançou pesados impostos sobre o seu reino com completo descaso pelos protestos do comitê dos Estados diante do custo de seus esforços de guerra em 1648 a Baviera tinha pago nada menos que 70 por cento das despesas totais em que haviam incorrido os exércitos da Liga Católica durante a Guerra dos Trinta Anos a qual entrementes devastara a economia local e dizimara a po pulação levando o ducado a uma profunda depressão19 Não obstante MaximíHano emergiu da Paz da Vestfália como o mais poderoso mo narca da Alemanha praticando um absolutismo mais desinibido e in flexível que o de Frederico Guilherme no Brandenburgo depois dele A Baviera fora ampliada pela anexação do Alto Palatinado e adquirira a dignidade de Eleitorado Parecia o mais forte Estado cinicamente alemão do império O futuro porém iria desmentir tais aparências O absolutismo bávaro consumarase precocemente mas assentava em bases muito li mitadas e inelásticas A estrutura social do ducado efetivamente não permitiria uma grande expansão posterior cortando pela raiz qualquer pretensão do Estado Wittelsbach a um papel panalemão de destaque A formação social bávara ao contrário da de Württemberg ou do Pala tinado não continha muitas cidades livres ou cavaleiros imperiais Muito menos urbanizada que estes principados ocidentais as suas ci dades eram quase todas de exíguas dimensões Munique a capital tinha apenas 12 mil habitantes em 1500 e menos que 14 mil em 1700 A aristocracia local constituíase de proprietários de terra tradicionais que deviam vassalagem direta à autoridade ducal Foi naturalmente esta configuração social que tornou possível o rápido surgimento de um Estado absolutista na Baviera e a sua posterior estabilidade e longe vidade Por outro lado a natureza da sociedade rural bávara não era propícia a qualquer expansão dinâmica de seu reino Pois se a nobreza era numerosa os seus domínios eram limitados e dispersos O campe sinato por ela controlado formava um estrato de arrendatários livres que pagavam aos seus senhores tributos relativamente leves as presta ções de serviço nunca adquiriram uma importância real chegando a um máximo de quatro a seis dias por ano no século XVI Tampouco a nobreza gozava da jurisdição superior sobre a sua força de trabalho Os domínios aristocráticos estavam mal consolidados em parte talvez de vido à falta de escoadouros para a exportação de cereais em razão do 19 Idem pp 392406 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 255 posicionamento geográfico da Baviera internada na grande massa con tinental da Europa central sem vias fluviais que a ligassem ao mar O traço mais notável da agricultura Grundherrschaft no sudeste da Alemanha era a predominância econômica da Igreja que possuía nada menos que 56 por cento de toda a terra cultivada em meados do sé culo XVIII em comparação com os meros 24 por cento controlados pela aristocracia e os 13 por cento da dinastia20 A relativa fraqueza da classe nobre que este padrão de propriedade revela refletiase na sua posição jurídica Não conseguiu plena imunidade fiscal embora pagas se impostos naturalmente muito menos elevados que os outros esta dos e os seus esforços para impedir a aquisição de suas terras por nãonobres oficialmente corporificados na lei que proibia tais vendas aprovada no último Landtag do século XVII foram efetivamente sabo tados por operações dissimuladas do clero no mercado de terras Além disso a aguda falta de mãodeobra devido ao despovoamento causado pela Guerra dos Trinta Anos redundou em desvantagem da aristocracia bávara dada a sua primitiva carência de superioridade jurídica sobre as aldeias Isso significava que na prática o campesinato estava em condições de barganhar com sucesso a mitigação dos tributos e a me lhoria dos contratos de cultivo enquanto muitas propriedades nobres eram hipotecadas Este panorama social impôs estreitos limites políti cos ao potencial do absolutismo bávaro que em breve mostraramse evidentes O mesmo esquema pequenos domínios nobres peque nas cidades e pequenos camponeses21 que oferecera pouca resistên cia ao surgimento de um absolutismo ducal infundiulhe também um ímpeto modesto O ducado chegou ao final da Guerra dos Trinta Anos com unia população equivalente à controlada pelo Eleitor Hohenzollern no norte cerca de l milhão de súditos O sucessor de Maximiliano I Fer nando Maria fortaleceu o aparelho civil do governo Wittelsbach esta belecendo a supremacia do Conselho Privado e utilizando o polivalente Rentmeister como o principal funcionário da gestão administrativa lo cal o último Landtag foi dissolvido em 1669 embora sobrevivesse ainda um comitê permanente de pouca eficácia durante o século se guinte Mas enquanto o Grande Eleitor edificava rapidamente um exército permanente no Brandenburgo as tropas bávaras eram dispen sadas depois de Vestfália Só em 1679 o novo duque Max Emmanuel 20 Idem pp 3502 21 Idem p 352 256 PERRY ANDERSON reconstituiria uma força militar Wittelsbach Mas mesmo então esta nunca foi capaz de atrair o conjunto da nobreza bávara ao seu serviço os aristocratas locais formavam uma pequena minoria do corpo de oficiais num exército que de qualquer modo continuava a ser muito modesto cerca de 14 mil homens em meados do século XVIII Max Emmanuel um ambicioso e despreocupado general que conquistara sua fama na luta contra os turcos em auxílio a Viena tornouse regente dos Países Baixos espanhóis por casamento em 1672 e candidato ao próprio trono da Espanha na virada do século XVIII Jogando as para das mais altas compartilhou a sorte com Luís XIV em 1702 quando da eclosão da Guerra da Sucessão Espanhola A aliança francobávara em breve dominava o terreno no sul da Alemanha ameaçando a pró pria Viena mas Bleinheim logo desfez as duas perspectivas de vitória na Europa central A Baviera foi ocupada por tropas turcas até o final do conflito enquanto Max Emmanuel destituído de seus títulos e exilado do império fugia para a Bélgica A tentativa de usar o po derio da França para estabelecer a supremacia Wittelsbach na Alema nha resultará em desastroso fracasso À época da Paz de Utrecht o duque tinha tão pouca confiança no futuro de seu patrimônio bávaro que propôs à Áustria trocálo pelo sul dos Países Baixos plano ve tado pela Inglaterra e pela França e que reapareceria outra vez mais tarde A dinastia retornou a uma terra devastada por uma década de pilhagem e destruição A Baviera do pósguerra afundou num estado semiletárgico de introversão e corrupção As extravagâncias da corte em Munique absorviam uma porcentagem do orçamento muito mais elevada do que em qualquer outro Estado da Alemanha da época As dividas do Estado aumentavam rapidamente à medida que os arreca dadores de impostos dissipavam a receita pública a população rural continuava obcecada pela superstição religiosa e os nobres mais incli nados às prebendas eclesiásticas do que às obrigações militares22 A extensão do ducado e a preservação de um pequeno exército assegura vam ainda à Baviera a importância diplomática no seio do império Mas por volta de 1740 já não era um candidato convincente à lide rança política da Alemanha A Saxônia o reino vizinho ao norte representava uma versão algo diferente do desenvolvimento absolutista da cadeia oriental de Es tados germânicos A casa reinante local a dinastia Wettin adquirira originalmente o Ducado e o Eleitorado da Saxônia em 1425 poucos 22 Holborn A History of Modem Germany 16481840 pp 2923 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 257 anos depois de a linhagem Hohenzollern ter obtido a Marca do Bran denburgo e de modo bastante similar como concessão do imperador Segismundo em troca dos serviços militares prestados nas guerras con tra os hussitas nas quais Frederico de Meissen o primeiro eleitor Wet tin fora um de seus principais lugarestenentes Partilhadas em 1485 entre os ramos ernestino e albertino da família com capitais respecti vamente em Wittenberg e em DresdenLeipzig as terras saxônias per maneceram não obstante como a região mais rica e avançada da Ale manha oriental Deviam a sua proeminência às ricas minas de prata e de estanho das montanhas e às indústrias têxteis que se desenvolveram nas cidades A encruzilhada comercial de Leipzig como vimos fora uma das poucas cidades alemãs a crescer ininterruptamente durante o século XVI O grau relativamente elevado de urbanização da Saxônia em contraste com a Baviera e o Brandenburgo e os privilégios dos príncipes locais na indústria de mineração originaram um modelo polí tico e social distinto do de seus vizinhos meridionais e setentrionais Não existiu aí uma reação senhorial comparável à da Prússia no final da época medieval ou início da era moderna o poder da nobreza saxô nia não era suficientemente grande para reduzir os camponeses à ser vidão dada a importância das cidades na formação social Os domí nios senhoriais eram mais extensos que na Baviera em parte porque as terras clericais eram muito mais insignificantes Mas a tendência bá sica no campo era no sentido do cultivo por arrendatários livres com a comutação das prestações de serviços em rendas em dinheiro em outras palavras o sistema mais brando do Grundherrschaft A aristo cracia não atingiu a imunidade fiscal plena as suas propriedades alo diais estavam sujeitas a impostos e não foi capaz de assegurar o impe dimento legal à venda da propriedade nobre aos plebeus Todavia es tava bem representada no sistema de Estados que se tornaram cada vez mais estáveis e influentes ao longo do século XVI Por outro lado as cidades também estavam vigorosamente representadas no Landtag embora tivessem que suportar o impacto do imposto sobre o álcool que constituía a fonte principal das receitas monárquicas com vantagem para a nobreza os representantes urbanos também estavam excluídos do Obersteuercollegium que a partir de 1570 administrava o fisco no Eleitorado Em tal contexto econômico a dinastia Wettin conseguiu amea lhar força e riqueza sem um ataque direto aos Estados ou o desenvol vimento considerável do governo burocrático Nunca renunciou às altas prerrogativas judiciais e controlava uma vultosa receita independente com origem nos seus direitos sobre a mineração que supriam cerca 258 PERRY ANDERSON de dois terços da receita do erário albertino na década de 1530 en quanto a prosperidade da região permitiu desde o início a cobrança de impostos de consumo lucrativos e toleráveis23 Não admira assim que a Saxônia tenhase tornado o primeiro Estado monárquico a dominar a arena política alemã na época da Reforma O eleitorado ernestino foi o berço religioso do luteranismo a partir de 1517 mas foi o ducado alber tino que não se passara para o campo protestante até 1539 que domi nou o centro do cenário político no complexo drama que se seguiu à eclosão da Reforma na Alemanha Com efeito Maurício da Saxônia que sucedeu ao duque em 1541 superou rapidamente todos os prínci pes rivais e o próprio imperador na busca de superioridade dinástica e de engrandecimento territorial Ao juntarse ao ataque imperial de Carlos V à Liga de Esmalcalda ele participou do aniquilamento dos exércitos protestantes em Mühlberg adquirindo assim o grosso dos territórios ernestinos e o título de Eleitor Ao orquestrar o ataque fran coluterano a Carlos V cinco anos depois destruiu a chance dos Habs burgos de reconverter a Alemanha e confirmou a unificação da Saxônia sob o seu domínio À data de sua morte o novo Estado saxônio era o mais poderoso e próspero principado da Alemanha Seguiramse cin qüenta anos de crescimento pacífico durante os quais os Estados fo ram regularmente convocados e os impostos subiram rapidamente no Eleitorado A eclosão da Guerra dos Trinta Anos contudo apanhou a Saxô nia despreparada no aspecto militar como no diplomático no início do século XVII Enquanto a Baviera desempenhava o papel principal en tre os Estados alemães durante o conflito a Saxônia viuse reduzida a uma fraqueza hesitante muito similar à do Brandenburgo Os eleitores Wettin e Hohenzollern embora protestantes alinharamse com o cam po imperial Habsburgo nos estágios iniciais da guerra depois ambos foram ocupados e devastados pela Suécia e impelidos para o bloco antiHabsburgo enfim ambos se insurgiram buscando a paz sepa rada com o imperador Pelo Tratado de Vestfália a Saxônia adquiriu a Lusácia e seus príncipes um imposto de guerra regular que foi utili zado para criar um modesto exército permanente A riqueza do país permitiulhe recuperarse relativamente depressa dos efeitos da Guerra dos Trinta Anos Os impostos diretos cresceram de cinco a seis vezes entre 1660 a 1690 O aparelho militar do Estado Wettin aumentara os seus efetivos para cerca de 20 mil homens por volta do fim do século 23 Carsten Princes and Parliaments in Germany pp 1916 2014 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 259 quando levou a cabo com competência ao lado de análogos contin gentes bávaros a luta contra os turcos para a libertação de Viena Em 1700 a Saxônia tinha ainda uma margem de vantagem sobre o Bran denburgo como potência alemã oriental O seu exército era um pouco menor e o seu sistema de Estados ainda não fora subjugado No en tanto possuía uma população duas vezes maior uma indústria bem mais desenvolvida e um tesouro proporcionalmente mais rico O início do século XVIII testemunhou de fato a maior tentativa saxônia pela supremacia política no seio do sistema estatal alemão Com efeito em 1697 o eleitor Frederico Augusto I abraçou o catolicismo a fim de con seguir o apoio da Áustria à sua candidatura à monarquia da Polônia Tal manobra foi coroada de êxito O Eleitor tornouse o primeiro go vernante alemão a obter um título real como Augusto II e ganhou o direito político de retenção sobre a vizinha Polônia separada da Saxô nia apenas pela estreita faixa da Silésia Ao mesmo tempo um imposto geral sobre as vendas foi lançado com êxito na Saxônia contra a resis tência dos Estados de forma significativa porém o imposto saxônio ao contrário do brandenburguês estendeuse das cidades aos campos em detrimento da nobreza24 O exército foi então ampliado para 30 mil homens aproximandose de seu correlato do Brandenburgo Não obstante a União SaxoPolaca consumouse no mesmo ins tante em que a última grande investida do imperialismo sueco veio despedaçála Carlos XII marchou sobre a Polônia expulsou do país Augusto II e depois em 1706 invadiu a própria Saxônia esmagando o exército Wettin e impondo ao ducado uma implacável ocupação A vi tória da Rússia sobre a Suécia na Ucrânia acabou por restaurar inter nacionalmente a posição da Saxônia no final da Grande Guerra do Norte A dignidade real polonesa foi restituída a Augusto II o exército foi reerguido na década de 1730 os Estados foram crescentemente des prezados Mas a imagem exterior do Estado Wettin ostentado na bar roca elegância de sua capital em Dresden não mais correspondia a sua força interna A associação com a Polônia era um engodo decorativo que trouxe mais despesas que ganhos devido ao caráter fictício da mo narquia szlachta a investidura saxônia fora aceita precisamente por que a Rússia e a Áustria calculavam que a casa Wettin era demasiado frágil para se tornar um rival perigoso A guerra que ela ocasionara acarretou grandes danos à economia do ducado Além disso ao con trário do ReiSargento em Berlim Augusto II faziase notar pela extra 24 Idempp 2456 260 PERRY ANDERSON vagância de sua corte ao lado de suas ambições militares Esses encar gos combinados enfraqueceram criticamente a Saxônia nos mesmos anos em que a Prússia acumulava recursos para a luta que se aproxi mava no seio da Alemanha A população da Saxônia 2 milhões de ha bitantes em 1700 caíra para l milhão e 700 mil na década de 1720 ao passo que a da Prússia crescera de cerca de l milhão em 1688 para 2 milhões e 250 mil em 1740 os valores demográficos de cada uma ti nham se invertido25 A nobreza saxônia mostrara pouco ardor pelas aventuras externas do Eleitor e perdia terreno no plano interno à me dida que avançava o século com a venda de terras aos burgueses Os Estados sobreviveram em parte devido às distrações polonesas da di nastia e em seu interior a importância das cidades de certo modo au mentou A máquina burocrática do Estado permaneceu inexpressiva menos desenvolvida que a da Baviera Na ausência de uma disciplina contábil as finanças monárquicas viramse inundadas por dívidas Em decorrência o absolutismo saxônio a despeito de seus primórdios pro missores e da propensão autocrática dos sucessivos governantes Wet ün nunca conseguiu real firmeza ou coerência a formação social era demasiado fluida e heterogênea Ê agora possível examinar por que o Brandenburgo seria tão sin gularmente destinado para o predomínio na Alemanha Houve uma progressiva eliminação das alternativas Em toda a Europa o Estado absolutista foi fundamentalmente um aparelho político da dominação aristocrática o poder social da nobreza era o motor central de sua existência No seio da fragmentada arena do Reich pósmedieval so mente aquelas regiões que possuíam uma classe fundiária economica mente forte e estável tinham possibilidade de alcançar uma liderança diplomática e militar na Alemanha somente elas poderiam gerar um absolutismo capaz de rivalizar com as grandes monarquias européias Desse modo a Alemanha ocidental estava de início afastada dada a densidade de sua civilização urbana A Baviera não possuía cidades de grande importância e desenvolveu um absolutismo precoce sob o signo da ContraReforma Mas a sua nobreza era demasiado fraca o clero excessivamente privilegiado e o campesinato gozava de suficiente liber dade para que fosse possível fundar um principado dinâmico A Saxô nia tinha uma aristocracia mais ampla mas as suas cidades eram tam bém muito fortes e o campesinato não mais servil Por volta de 1740 ambos os Estados tinham passado o seu apogeu Na Prússia pelo con 25 Idempp 2501 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 26 L trário a classe junker mantinha uma servidão férrea em seus domínios e uma vigilante tutela sobre as cidades o poder senhorial alcançou a sua mais pura expressão nos territórios Hohenzollern os postos avan çados mais remotos da colonização alemã no Leste Não foi portanto a divisa externa da Prússia na Polônia que determinou a sua supre macia dentro da Alemanha como pensava Engels26 Na verdade como vimos o entrelaçamento com a Polônia a expressão é de Engels foi um dos resultados do declínio da Saxônia o papel ulterior da Prússia nas partilhas da Polônia foi apenas o epílogo às decisivas vitórias mili tares já obtidas no interior da própria Alemanha e pouco fez para fortalecêla internacionalmente É a natureza interna da formação so cial prussiana que explica por que ela eclipsou subitamente todos os outros Estados alemães na época do iluminismo e presidiu afinal a uni ficação germânica Esta ascensão foi sobredeterminada pela complexa totalidade histórica de todo o Reich que impediu o nascimento de um absolutismo de tipo ocidental na Renânia fragmentou o território do império em cerca de 2 mil unidades políticas e expulsou a Casa da Áus tria para as suas fronteiras nãogermânicas A principal força externa a afetar os destinos respectivos da Prússia e da Áustria no seio da Ale manha não foi a Polônia mas a Suécia Com efeito foi o poder sueco que destruiu a oportunidade de uma unificação Habsburgo do império na Guerra dos Trinta Anos e foi a proximidade sueca a principal ameaça estrangeira a agir como força centrípeta sobre a edificação do Estado Hohenzollern força cujos efeitos a Baviera e a Saxônia os outros principados da Alemanha oriental nunca experimentaram na mesma medida embora a Saxônia não tenha escapado de se tornar a vítima final do militarismo nórdico A capacidade da Prússia em resis tir à expansão sueca e em colocar fora de combate todos os seus rivais alemães deve por sua vez ser referida à disposição peculiar da própria classe junker com a consolidação pelo Grande Eleitor e pelo ReiSar gento numa transparente base de classe de um absolutismo dinástico De início a própria dimensão do país no final do século XVII e início do século XVIII deixou a sua marca na aristocracia prussiana O conjunto dos territórios Hohenzollern no Leste Brandenburgo 26 Ver acima p 236 Weber parece ter partilhado opinião semelhante Vejase o seu comentário sobre os ataques inimigos nas fronteiras da Alemanha medieval que considera responsáveis pelo fato de que seus governadores eram em toda a parte dota dos de grandes poderes E concluía Foi por esta razão que na Alemanha o desenvol vimento mais acentuado para um Estado territorial unificado ocorreu no Brandenburgo e nu Áustria Economy andSociety III p 1051 262 PERRY ANDERSON Prússia oriental e mais tarde a Pomerânia ocidental era ainda de tamanho diminuto e de povoacão escassa Em 1740 a sua população total era inferior a 2 milhões de habitantes excluídos os enclaves oci dentais da dinastia a densidade relativa da população era provavel mente duas vezes menor que a da Saxônia Uma das mais constantes motivações da política do Estado a partir do Grande Eleitor seria a busca de imigrantes para colonizar esta região despovoada O caráter protestante da Prússia revelarseia fundamental neste aspecto Os re fugiados provenientes do sul da Alemanha depois da Guerra dos Trinta Anos e os huguenotes após o Édito de Nantes foram entusiasticamente recebidos nos primeiros anos com Frederico II vieram os holandeses os alemães e mais franceses Mas é preciso ter sempre em mente que a Prússia até a conquista da Silésia continuava a ser um país bastante modesto se comparado com o curso geral das monarquias européias da época Essa escala provinciana contribui para reforçar certos traços notáveis da classe junker Com efeito acima de tudo a aristocracia prussiana distinguiase entre as principais nobrezas européias no sen tido de que não possuía em seu seio um espectro muito amplo de for tunas veremos depois que a szlachta polonesa em muitos aspectos semelhante era a este respeito o seu oposto direto Assim o Rittergüter médio a unidade agrícola comercial feudal da nobreza prussiana era de dimensão mediana Não havia um estrato de grandes magnatas detentores de imensos latifúndios muito maiores que as propriedades da nobreza menor como ocorria em tantos outros países europeus27 O antigo Herrenstand da alta nobreza por volta de meados do século XVI perdera o seu predomínio diante da massa do Ritterschaft28 O único proprietário realmente latifundiário era o próprio monarca os domínios da coroa ascendiam a um terço da terra arável no século XVIII29 Em decorrência disso seguiamse duas importantes conse 27 Assim o valor médio de uma amostra de cem propriedades na região mais rica do Brandenburgo não excedia 60 mil taleres talvez equivalentes a 15 mil libras no século XVIII Walter Dorn The Prussian Bureaucracy ín the Eighteenth Century Political Science Quarterly vol 47 1932 n 2 p 263 Em parte devido à ausência de uma tradição de primogenitura a maior parte dos domínios mesmo os mais vastos estavam sobrecarregados de dívidas 28 Este ainda dominava os comitês do Landtag nessa época dos quais os nobres menores e mais pobres estavam excluídos mas a tensã0 entre o conjunto da aristocracia e as cidades era muito mais aguda tanto no aspecto econômico como no político do que qualquer fissura no seio da própria classe fundiária Otto Hintze Die Hohenzollern und ikr Werk Berlim 1915 pp 1467 29 Goodwin Prússia em Goodwin Org The European Nobilily in the Eighteenth Century p 86 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 263 qüências para o caráter da classe junker Por um lado no aspecto so cial ela era menos dividida que a maior parte das outras aristocracias européias no seu conjunto formava um bloco coeso de proprietários médios de mentalidade semelhante sem grandes divergências regio nais Por outro oywnfcerpadrão tendia a exercer uma função direta na organização da produção quando não estava engajado na prestação de serviço Em outras palavras ele era com freqüência o administrador efetivo e não apenas nominal de seus domínios O costume de residên cia permanente da nobreza prussiana encorajava naturalmente esta tendência uma vez que as cidades eram poucas e espaçadas Era pouco comum o fenômeno dos grandes proprietários absenteístas que legavam as funções de gestão dos domínios a bailios e administradores Enquanto a relativa paridade das fortunas distinguia os junkers dos seus homólogos polacos a atenção cuidadosa ao domínio diferenciava os da nobreza russa A disciplina do mercado de exportação contribuiu inegavelmente para uma administração mais racional do Gutherr schaft Os junkers prussianos do final do século XVII e início do século XVIII constituíam portanto uma compacta classe social num país pe queno com rústicas tradições de atividade rural Assim quando o Grande Eleitor e Frederico Guilherme l empreenderam a construção do novo Estado absolutista o primitivo padrão peculiar da nobreza produziu uma estrutura administrativasuigeneris Ao contrário de quase todos os outros absolutismos o modelo prussiano foi capaz de utilizarse proveitosamente das instituições re presentativas tradicionais da aristocracia uma vez dissolvido o seu nú cleo central Como vimos os Estados ou Landtage provinciais declina ram progressivamente depois da década de 1650 a última reunião efe tiva do Landtag do Brandenburgo em 1683 devotouse basicamente a lamentar a onipotência do Generalkriegskommissariat Mas os Estados locais de condados ou Kreistage tornaramse a unidade burocrática básica na área rural A partir de 1702 estes conselhos junkers passa ram a eleger candidatos da nobreza local ao posto de Landrat dentre os quais um era oficialmente designado para o cargo pela monarquia A instituição ao Landrat investido de todos os poderes administrativos fiscais e militares nos distritos rurais lembra de certo modo os Juizes de Paz na Inglaterra com o seu sábio compromisso entre a autoadmi nistração autônoma da pequena nobreza e a autoridade central do Es tado No entanto a semelhança é enganosa uma vez que a divisão das esferas na Prússia assentava num sólido alicerce de trabalho servil Tecnicamente a servidão podia assumir duas formas na Prússia La beigenschaft era a sujeição pessoal hereditária dos camponeses sem 264 PERRY ANDERSON quaisquer direitos civis ou de propriedade que podiam ser vendidos separadamente da terra Erbuntertãnigkeit era a condição da depen dência hereditária vinculada ao domínio com alguns direitos legais mínimos mas ligada à terra e aos serviços obrigatórios na casa e no campo do senhor Na prática havia pouca diferença entre os dois Assim o Estado não exercia nenhuma jurisdição direta sobre a massa da população rural que estava sob o controle dosjunkers nos seus Gutsbezirke sob a supervisão áoLandrat e cujos tributos dois quin tos da produção camponesa30 eram diretamente coletados por seus senhores Por sua vez as cidades e o domínio real eram governados por uma burocracia profissional arma direta do absolutismo Um esme rado sistema de controle dos pedágios e da circulação regia os movi mentos das pessoas e das mercadorias de um setor para outro desta administração dual A própria casta militar como vimos era predominantemente cooptada na nobreza em 1739 todos os 34 generais 56 dos 57 coro néis 44 dos 46 tenentescoronéis e 106 dos 108 majores eram aristo cratas31 A alta burocracia civil era também extensa e crescentemente recrutada no seio da classe junker O ReiSargento teve o cuidado de equilibrar o número de nobres e de burgueses em suas câmaras provin ciais mas o seu filho promoveu deliberadamente os aristocratas em detrimento dos funcionários de classe média Rigorosos princípios cole giais regiam a organização deste serviço civil cuja célula básica era o conselho de oficiais coresponsáveis não o funcionário individual um sistema bem concebido para inculcar o sentido da probidade e do dever impessoais e coletivos numa nobreza luterana32 A notável disci plina e eficácia destas instituições eram um reflexo da unidade da classe que as servia Não havia rivalidades entre grandes nobres e suas clien telas no seio do aparelho de Estado era mínima a venalidade nos car gos devido à pouca importância das cidades não existiam sequer cole 30 Holborn A History of Modem Germany 16481840 p 196 31 Alfred Vagts A History of Militarism Londres 1959 p 64 Até 1794 o exército prussiano fora comandado por 895 generais provenientes de 518 famílias da nobreza Em todos os corpos de oficiais os estrangeiros eram muito mais numerosos que os burgueses 32 Dorn The Prussian Bureaucracy in the Eighteenth Century Political Science Quarterly vol 46 1931 n 3 p 406 que analisa os trabalhos das Kriegsund DomãnenKammern A organização colegial de modo algum produzira a eficácia e dili gência administrativa na Espanha indubitavelmente o contraste deve em parte ser explicado pela força ética particular do protestantismo na Prússia uma variável à qual Engels entre outros conferiu grande importância para a ascensão geral do país LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUT1STA 265 tores de impostos até Frederico II que importou a Régie da França pois a cobrança dos tributos aos camponeses estava confiada aos pró prios cavaleiros e as contribuições urbanas eram controladas por Steuer rãte profissionais enquanto os domínios da coroa rendiam por seu lado uma grande receita ao erário Qsjunkers prussianos detinham tão firmemente o comando do Estado e da sociedade no século XVIII que não sentiam sequer a necessidade do vinculismo de seus homólogos oci dentais Frederico II tentou incentivar o maiorat dos primogênitos a fim de consolidar os domínios da aristocracia mas o seu zelo ideológico en controu pouca resposta junto aos proprietários de terra que preserva ram mesmo as antigas normas feudais de consentimento coletivo agnatí cio para os empréstimos familiares33 Eles não se achavam ameaçados por uma burguesia ascendente que forçasse gradualmente a venda das terras e por isso não sentiam necessidade de proteger a sua posição social deserdando os filhos mais moços os domínios junkers eram habitual mente divididos com a morte de seus proprietários o que por sua vez contribuía para manter exíguo o seu tamanho Livre de tensões inter nas reinando suprema sobre as cidades senhora de seus camponeses a classe fundiária prussiana estava mais solidamente de acordo com o seu Estado do que qualquer outra na Europa A unidade burocrática e a autonomia rural conciliavamse de modo único neste paraíso das plan tações de repolho O absolutismo junker edificado sobre tais funda mentos continha um formidável potencial de expansão Em 1740 morreram Frederico Guilherme I e o imperador Carlos VI O herdeiro da Prússia Frederico II atacou imediatamente a Silésia Esta rica província Habsburgo foi rapidamente ocupada pelo exército Hohenzollern A França aproveitou a oportunidade para garantir o apoio prussiano a uma candidatura bávara à dignidade imperial Em 1741 o duque Wittelsbach Carlos Alberto foi eleito imperador e as tro pas francobávaras marcharam sobre a Boêmia Os objetivos bélicos da Prússia não incluíam a restauração da primazia da Bavária no sul da Alemanha ou o predomínio da França no império Frederico II após derrotar a França no campo de batalha concluiu a seguir uma paz em separado com Viena em 1742 deixando a Prússia na posse da Silésia A recuperação militar Habsburgo na luta contra a França e o alinha mento da Saxônia com a Áustria precipitaram a sua reentrada na guerra dois anos depois para proteger as suas conquistas A SaxÔnLa foi derrotada e saqueada os exércitos da Áustria foram mantidos à 33 Goodwin Prússia pp 957 266 PERRY ANDERSON distância após duros combates Em 1745 o conflito internacional es tava concluído com a restituição do título imperial e do reino da Boê mia à herdeira Habsburgo Maria Tereza e a confirmação da con quista da Silésia pelos Hohenzollern As vitórias de Frederico II na Guerra da Sucessão da Áustria longamente preparadas pela obra de seus antecessores foram o ponto crucial estratégico na carreira euro péia do absolutismo prussiano convertendoo pela primeira vez num poder triunfante na Alemanha Berlim de fato derrotara simultanea mente Munique Dresden e Viena A última oportunidade de expansão política da Baviera fora frustrada os exércitos da Saxônia foram des baratados e o império austríaco fora privado de sua província mais industrializada no centro da Europa onde se localizava o eixo comer cial de Breslau Em contrapartida a aquisição da Silésia fez crescer de um só sopro em 50 por cento a população da Prússia elevandoa para 4 milhões de habitantes ao mesmo tempo em que a dotava pela pri meira vez de uma região econômica relativamente avançada a leste com uma longa tradição de manufaturas urbanas têxteis Não obs tante a ordem feudal da Prússia em seu conjunto não foi grandemente modificada por esta extensão a massa da população rural da Silésia tal como a do Brandenburgo era de Erbuntertãnigen A nobreza local apenas possuía maiores domínios Em termos relativos a anexação da Silésia foi efetivamente talvez a mais importante e lucrativa conquista específica de qualquer Estado europeu continental da época34 Está na magnitude das vitórias da Prússia em 174045 na mu dança rápida e decisiva na balança de poder que ela representou a explicação para a extraordinária escala da coalizão que o chanceler austríaco Kaunitz reuniu contra aquela na década seguinte A vingança deveria assumir uma proporção equivalente à enormidade da derrota em 1757 a revolução diplomática de Kaunitz unira contra a Prús sia a Áustria a Rússia a França a Suécia a Saxônia e a Dinamarca O conjunto da população dessas forças era pelo menos vinte vezes su perior à da vítima pretendida pela sua aliança o objetivo da coligação era nada menos do que varrer o Estado prussiano do mapa da Europa Cercado por todos os lados Frederico II em desespero de causa ata cou primeiro inaugurando oficialmente a Guerra dos Sete Anos com a invasão da Saxônia A dura luta que se seguiu foi a primeira guerra verdadeiramente paneuropéia na qual todas as grandes potências da Rússia à Inglaterra da Espanha à Suécia estavam simultaneamente 34 Ver a opinião de Dorn Competition for Empire pp 1745 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 267 envolvidas uma vez que o conflito continental conjugouse com o con flito marítimo e colonial entre a GrãBretanha e a França O aparelho militar prussiano comandado por Frederico II dispondo agora de um exército de cerca de 150 mil homens sobreviveu a retiradas e revezes devastadores para emergir com uma leve margem final de vitórias con tra todos os seus inimigos As campanhas diversionistas financiadas pela Inglaterra na Vestfália desviando forças francesas e a posterior defecção da Rússia constituíram os fatores fundamentais para o mi lagre da Casa de Brandenburgo Mas o verdadeiro segredo da resis tência prussiana foi a rematada eficácia de seu absolutismo a estrutura política para a qual Kaunitz previra uma rápida e completa destruição mostrouse bem mais preparada para suportar as enormes tensões eco nômicas e logísticas da guerra que os desconexos impérios coligados contra ela em todo o Leste Nenhum território mudou de mãos pela paz de 1763 A Silésia continuou a ser uma província Hohenzollern e Viena terminou a guerra em condições financeiras mais precárias do que Ber lim A repulsa ao grande ataque empreendido pela Áustria provarseia uma derrota definitiva dos exércitos Habsburgo na Alemanha como os fatos subseqüentes se encarregariam de demonstrar as suas conse qüências mais profundas apenas se revelariam mais tarde A Saxônia repetida e impiedosamente pilhada por Frederico II teve de suportar a metade dos custos da guerra prussiana a partir de então afundouse numa insignificância política irreversível perdendo o seu medalhão po lonês poucos meses depois da paz A Prússia embora sem alcançar conquistas territoriais ou vencer campanhas decisivas tornouse estra tegicamente mais forte no seio do equilíbrio alemão depois da Guerra dos Sete Anos Enquanto isso os propósitos da política externa de Frederico II eram complementados pela sua obra política interna As fileiras supe riores da burocracia e do exército foram conscienciosamente aristocra tizadas pela monarquia Von Cocceji reformou o judiciário e a venali dade foi amplamente eliminada do sistema jurídico35 A economia foi estimulada por programas oficiais tanto na agricultura como na in dústria Organizaramse trabalhos de drenagem nos campos de colo nização e de melhorias no sistema de transportes Foram fundadas manufaturas estatais fomentadas as atividades naval e mineira e de senvolvidas as indústrias têxteis Surgiram aí as primeiras políticas 35 Para o papel de Von Cocceji ver Rosenberg Bureaucracy Arisíocracy and Autocracy pp 12234 268 PERRY ANDERSON populacionais sistemáticas da Europa com a instalação de centros de recrutamento de imigrantes no exterior36 Frederico foi também responsável por uma audaciosa inovação do absolutismo prussiano que estava destinada a ter conseqüências de grande alcance no século seguinte embora de início não passasse de uma medida no papel a instituição da educação primária obrigatória para toda a população masculina com o Generallandsckulreglement de 1763 Por sua vez os gestos voltados para proteger os camponeses da opressão senhorial e das expulsões foram largamente motivados pelo receio de exaurir a re serva de homens aptos para a guerra e revelaramse uniformemente ineficazes Os bancos hipotecários destinados a auxiliar os proprietá rios em dificuldades embora de início recebidos com suspeita pela classe junker viriam a ter grande importância As finanças públicas escrúpulosamente controladas e expurgadas de qualquer despesa da corte cresceram notavelmente apesar das guerras do reinado Os ren dimentos anuais da coroa triplicaram de 7 para 23 milhões de taleres 174086 enquanto as reservas quintuplicavam de 10 para 54 mi lhões37 O grosso do orçamento do Estado ia evidentemente para o exército que cresceu de 80 para 200 mil homens sob Frederico II a maior proporção entre soldados e população de qualquer país da Eu ropa a quantidade de regimentos estrangeiros contratados ou arre gimentados no exterior foi deliberadamente maximizada a fim de poupar a limitada população produtiva interna A partilha da Polônia em 1772 por acordo com a Rússia e a Áustria acrescentou a Prússia ocidental e a Ermlândia aos domínios Hohenzollern no Leste consoli dandoos num único bloco territorial e aumentando o potencial demo gráfico do Estado A população total da Prússia duplicou passando de 2 milhões e meio para 5 milhões e 400 mil habitantes por volta do final do reinado38 No plano internacional a reputação militar do absolu tismo prussiano após a Guerra dos Sete Anos era agora tão extraordi nária que Frederico II pôde efetivamente ditar a solução das duas prin cipais crises no interior da Alemanha nas décadas seguintes sem ser obrigado a recorrer seriamente às armas Em 177879 e de novo em 178485 a Áustria tentou recuperar a sua posição no seio da Alemanha realizando a troca do sul dos PaísesBaixos pela Baviera em ambas as vezes com base num acordo com o Eleitor Wittelsbach A fusão da 36 Bluche dános um colorido relato Lê DespotismeÉclairé pp 835 37 Holborn A History of Modem Germany 16481840 p 268 38 Idemp 262 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 269 Baviera com a Áustria teria transformado a história da Alemanha ao tornar a dinastia Habsburgo inexpugnavelmente forte no sul e ao redi recionar o conjunto da orientação política de Viena fundamentalmente para o Reich Em ambas as ocasiões bastou o veto da Prússia para liqui dar o projeto Na primeira bastaram algumas escaramuças simuladas na Boêmia Na segunda o alinhamento por Berlim de um bloco comum contra a Áustria compreendendo o Hanover a Saxônia o Mainz e ou tros principados constituiu um veto adequado a Associação de Prín cipes reunida por Frederico II em 1785 um ano antes de sua morte anunciou e selou a supremacia Hohenzollern no norte da Alemanha Quatro anos depois rebentou a Revolução Francesa e com ela a viabilidade de qualquer ancien regime na Europa por mais jovem que fosse politicamente foi posta em questão pois diferentes tempos histó ricos opunhamse nos campos de batalha da guerra revolucionária A Prússia que teve um papel insignificante na primeira coligação contra revolucionária contra a França no Ocidente aproveitou a oportunidade para dividir o restante da Polônia com a Rússia e a Áustria e depois deixou prontamente a luta contra a República em 1795 O dia do ajuste de contas foi apenas postergado pela neutralidade Hohenzollern du rante a década seguinte de conflito europeu Em 1806 o ataque de Napoleão colocou o Estado absolutista prussiano diante de seu teste supremo Seus exércitos foram esmagados em lena e a Prússia viuse obrigada a assinar um tratado de paz em Tilsit que a reduziu à con dição de satélite da França Todo o seu território a oeste do Elba foi confiscado guarnicões francesas foram instaladas em suas fortalezas e foramlhe impostas pesadas indenizações Foi esta a crise que produziu a Era das Reformas Nesta em seu momento de maior risco e fragi lidade o Estado prussiano mostrouse capaz de preservar uma notável reserva de talentos políticos militares e culturais que garantiriam a sua existência e renovariam sua estrutura Muitos desses talentosos refor madores eram originários na verdade do centro e do oeste da Alema nha regiões socialmente muito mais avançadas que a própria Prússia Stein o líder político da resistência contra Napoleão era um cavaleiro imperial da Renânia Gneisenau e Scharnhorst os artífices do novo exército eram oriundos respectivamente do Hanover e da Saxônia Fichte ò ideólogo filosófico da guerra de libertação contra a França era natural de Hamburgo Hardenberg o nobre diretamente responsá vel pela versão definitiva das reformas vinha de Hanover39 A prove 39 Praticamente a única figura importante comprometida com as reformas que era prussiano de origem foi o pedagogo Von Huraboldt embora Clausewitz a mais 270 PERRY ANDERSON niência mista dos reformadores encerrava algo de premonitório O ab solutismo prussiano passaria daí em diante por novas formas de vida e por profundas alterações de caráter devido ao fator básico configurado na sua contigüidade cultural e territorial com o resto da Alemanha Desde que Napoleão chegou aos portões de Berlim cessaram as possi bilidades do Estado Hohenzollern se desenvolver en vase dose De iní cio porém o impulso reformista não foi muito longe Stein um emi grado francófobo influenciado por Montesquieu e Burke introduziu planos de igualdade civil reforma agrária autonomia de governo local e mobilização nacionalista contra Napoleão Em um ano no cargo 18078 pôs de lado o então incômodo Generaldirektorium e instituiu um sistema ministerial convencional com departamentos organizados segundo as linhas da monarquia francesa enquanto funcionários espe ciais eram despachados da capital para supervisionar os assuntos pro vinciais O resultado foi na prática uma acentuada centralização de todo o aparelho estatal que as garantias de uma limitada autonomia das cidades contrabalançavam apenas nominalmente No campo a ser vidão foi oficialmente abolida e revogado o sistema jurídico dos três estados Tais medidas encontraram veemente oposição entre a classe junker por seu radicalismo e quando Stein começou a atuar contra as jurisdições patrimoniais e a imunidade fiscal da nobreza e a plane jar uma levée armada geral contra a França foi prontamente desti tuído O seu sucessor o político da corte Hardenberg aplicou então uma hábil dose de legislação exatamente calculada para modernizar o absolutismo prussiano e a classe que este representava na medida ne cessária para revigorálos sem afetar a natureza essencial do Estado feudal A reforma agrária foi implementada entre 1810 e 1816 de modo a intensificar ainda mais a miséria rural Em troca da emanci pação jurídica os camponeses sofreram a espoliação econômica de cerca de l milhão de hectares e 260 milhões de marcas como compen sação aos seus antigos senhores pela liberdade conquistada40 A cha alta eminência intelectual desta geração fosse também brandenburguês por nasci mento 40 W M Simon The Failure of the Prussian Refortn Movement 18071819 Nova Iorque 1971 pp 88104 Os camponeses tiveram que pagar compensações tanto em terra como em dinheiro pela comutação das corvéias aos seus antigos senhores Até 1865 ainda havia camponeses redimindo tais serviços A estimativa para os pagamentos de remissão que fornecemos acima foi extraída de Theodore Hamerow The Social Foun dations of German Unification Princeton 1969 p 37 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 271 mada Bauernlegen foi um Instrumento friamente concebido para a ex propriação do campesinato Foram eliminadas as terras comunais e o sistema de assolamento trienal Em conseqüência os domínios senho riais aumentaram e criouse uma massa crescente de trabalhadores ru rais sem terra mantidos à disposição áosjunkers por estritas ordens jurídicas De uma só vez Hardenberg ampliou o acesso à propriedade da terra à burguesia que não podia comprar domínios e o acesso às profissões por parte da nobreza que não mais se rebaixava por dedi carse à profissão jurídica ou aos negócios A vitalidade e a versatili dade da classe junker foram assim incrementadas sem perda grave dos seus privilégios Uma tentativa para pôr fim ao papel do Landrat foi liquidada pela aristocracia e as tradicionais assembléias de condado permaneceram intatas Na realidade o controle da nobreza sobre o campo foi efetivamente ampliado com a extensão da autoridade do Landrat às cidades rurais As obrigações senhoriais persistiram ainda por muito tempo depois da abolição da servidão Até 1861 o Rittergut esteve isento dos impostos territoriais o direito de polícia nos domínios mantevese até 1871 o monopólio junker da administração dos con dados até 1891 Nas cidades Hardenberg aboliu o monopólio das cor porações mas não conseguiu acabar com o dualismo fiscal enquanto isso Humboldt ampliou e modernizou drasticamente o sistema de edu cação pública desde a Volksschule elementar à fundação da nova Uni versidade de Berlim Entrementes Scharnhorst e Gneisenau organiza vam um sistema de reservistas para fugir às disposições assinadas em Tilsit que limitavam o tamanho do exército prussiano medida esta que popularizou o recrutamento mas ao mesmo tempo fez crescer a milítarização institucional do conjunto da ordem social Os regula mentos militares e os treinamentos táticos foram atualizados As fun ções de comando oficialmente abertas aos recrutas burgueses mas os oficiais podiam vetar novas admissões em seus regimentos a fim de ga rantir o controle junker O efeito fundamental da Era das Reformas foi fortalecer mais do que moderar o Estado monárquico na Prússia De forma significativa porém foi neste período que a classe junker a nobreza mais leal da Europa durante a difícil expansão do absolu tismo nos séculos XVII e XVIII a única a não recorrer à luta civil contra a monarquia mostrouse pela primeira vez sonoramente in satisfeita A ameaça aos seus privilégios representada pelos reforma 41 Quanto às reformas militares ver Gordon Craig The Politics ofthe Prvssian Army 16401945 Nova Iorque 1964 pp 3853 6970 272 PERRY ANDERSON dores embora prontamente controlada despertou uma oposição ideo lógica de caráter consciosamente neofeudal Von Marwitz o líder da dissidência brandenburguesa contra Hardenberg denunciou de maneira reveladora tanto o absolutismo como o parlamentarismo em nome da constituição dos Estados há muito esquecida e que datava de antes do advento do Grande Eleitor A partir daí esteve sempre pre sente na Prússia um colérico conservadorismo junker um espírito cu riosamente deslocado do século XVII ao século XIX freqüentemente em conflito com a monarquia A soma final das reformas possibilitou à Prússia participar compe tentemente da última coligação que derrotou a França napoleônica Todavia foi essencialmente um ancien regime tradicional que compa receu ao Congresso de Viena na companhia dos seus vizinhos a Áus tria e a Rússia Embora os reformadores prussianos não agradassem a Metternich que os considerava quase jacobinos o Estado Hohen zollern era ainda em certos aspectos socialmente menos avançado que o império Habsburgo após as reformas josefinas do final do século XVIII O verdadeiro ponto crucial na história do absolutismo prus siano deve ser localizado não na obra das reformas mas nos ganhos que a paz lhe proporcionou Para impedir que obtivesse a Saxônia e para compensála pela absorção da maior parte da Polônia pela Rús sia os aliados concederamlhe as províncias do Reno e da Vestfália no outro extremo da Alemanha em grande medida contra o desejo de Berlim Com este gesto deslocaram todo o eixo histórico do Estado prussiano Destinadas pela Áustria e pela GrãBretanha a conter a sua consolidação territorial no centroleste da Alemanha as províncias re nanas estavam separadas do Brandenburgo pelo Hanover e pelo Hesse deixando os domínios Hohenzollern estrategicamente dispersos no nor te da Alemanha com a arriscada tarefa de defesa ocidental contra a França As conseqüências reais do acordo não foram previstas por nenhuma das partes intervenientes As novas possessões Hohenzollern possuíam uma população mais numerosa do que a de todas as antigas províncias reunidas 5 milhões e 500 mil habitantes no Oeste 5 mi lhões no Leste De um só golpe o peso demográfico da Prússia dupli cou para mais de 10 milhões de habitantes a Baviera o segundo maior Estado alemão tinha apenas 3 milhões e 700 mil42 Além disso as pro víncias do RenoVestfália eram das mais avançadas regiões da Alema nha ocidental Os camponeses ainda pagavam os tributos habituais e os 42 iDTQzLaFarmationdelUnitéAIlemandel7f91871 Paris 1970 p 126 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 273 proprietários de terra gozavam do direito especial de caça ao lado de outros Mas a pequena propriedade agrícola estava bem entrincheirada e a classe nobre compunhase em geral de senhores de terra absenteís tas não de gestores de seus próprios domínios como ocorria na Prús sia As assembléias rurais Amt incluíam a representação camponesa ao contrário do Kreistage dosjunkers As relações sociais no campo eram portanto muito mais brandas As novas províncias continham também um grande número de cidades florescentes com longa tradi ção de autonomia municipal intercâmbio comercial e atividades ma nufatureiras Muito mais importante que isso evidentemente foi o fato de que devido aos seus recursos minerais ainda inexplorados a região estava destinada a tornarse a zona industrial mais gigantesca da Europa Assim as aquisições militares do Estado prussiano feudal aca baram por incorporar o espaço vital natural do capitalismo alemão A evolução do novo Estado compósito para uma Alemanha unifi cada ao longo do século XIX integrase na sua essência no ciclo das revoluções burguesas que será considerado em outro trabalho Aqui bastanos salientar três aspectos cruciais da evolução sócioeconômica da Prússia que tornaram possível o sucesso posterior do programa bis marckiano Em primeiro lugar no que se refere à região oriental a reforma agrária efetuada por Hardenberg em 1816 levou a um rápido e impressionante avanço de toda a economia cerealífera Tornando livre o mercado de terras a reforma depurou o campo dosjunkers incapazes e endividados Em contrapartida aumentou o número de investidores burgueses na terra surgiu um estrato de lavradores prósperos ou Grossbauern e ocorreu uma acentuada racionalização da gestão agrária por volta de 1855 45 por cento dos Rittergüter das seis provín cias orientais tinham proprietários nãoaristocratas43 Ao mesmo tem po os junkers que ficaram nas terras eram agora proprietários de domínios maiores e mais produtivos ampliados tanto por compra a outros nobres como pela expropriação de camponeses e pequenos la vradores Na década de 1880 70 por cento das maiores propriedades agrárias mais de mil hectares eram propriedades da nobreza44 Todo o setor agrícola entrou numa fase de expansão e de prosperidade Os rendimentos das colheitas e as áreas cultivadas aumentaram conjunta mente na verdade ambos dobraram na Prússia alémElba entre 1815 43 John Gillis Aristocracy and Bureaucracy in Nineteenth Century Prússia PastandPresent n 41 dezembro de 1968 p 113 44 Hamerow The SocialFoundations of German Unificaíionp59 274 PERRY ANDERSON e 186445 Os novos latifúndios eram cultivados por trabalhadores assa lariados transformandose cada vez mais em empresas capitalistas or todoxas Não obstante o próprio trabalho assalariado era regido por um Gesindeordnung feudal que sobreviveu até o século XX e impôs uma implacável disciplina dominial aos trabalhadores agrícolas e aos empregados domésticos na qual se previa a prisão em caso de greve e estritas limitações à mobilidade A Bauernlegen não significara um êxodo dos campos produziu um numeroso proletariado rural cujos efetivos cresciam à medida que aumentava a produção o que permitia manter baixos os salários A aristocracia junker conseguiu assim uma bemsucedida conversão cumulativa à agricultura capitalista ao mes mo tempo que ainda explorava todos os privilégios patrimoniais que pôde manter Os nobres realizaram sem dificuldade a transição da agricultura dominial para a capitalista enquanto grande número de camponeses ganhava a permissão de banharse nas águas purificadoras da liberdade econômica46 Entrementes a burocracia prussiana desempenhava uma função essencial ao estabelecer uma ponte entre a economia agrária do Leste e a revolução industrial em marcha nas províncias do Oeste No início do século XIX o serviço civil que sempre proporcionara uma alterna tiva ocupacional para a classe média subdesenvolvida dos domínios Ho henzollern tradicionais que no entanto nunca ascendeu aos seus pos tos superiores era responsável pela instauração gradual do Zollve rein que ligava a maior parte da Alemanha com a Prússia numa única região mercantil Von Motz e Maassen do Ministério das Finanças foram os dois artífices deste sistema construído entre 1818 e 1836 que efetivamente excluía a Áustria do desenvolvimento econômico da Ale manha e vinculava comercialmente à Prússia os Estados menores47 O surto da construção ferroviária a partir da década de 1830 estimulou por sua vez o rápido crescimento econômico no seio da União Adua neira As iniciativas burocráticas também tiveram importância quanto a propiciar auxílio tecnológico e financeiro à nascente indústria prus 45 David Landes Japan and Europe Contrasts in Industrialization em W LockwoodOrg The State andEconomic Enterprise in Japan Princeton 1965 p 162 O ensaio de Landes é basicamente uma longa comparação entre o desenvolvimento da Prússia e do Japão e contém muitas reflexões e análises sobre a história alemã no sé culo XIX 46 Simon TheFaüureofthePrussian Reform Movement p 104 47 Ver Pierre Benaerts Lês Origines de Ia Grande Industrie Allemande Paris 1934 pp 3152 Droz oferece alguns comentários gerais perspicazes sobre o papel da burocracia em La Fvrmation de 1Unité Allemande p 113 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 275 sianaBeuth Rother Na década de 1850 oZollverein foi estendido à maior parte dos principados setentrionais restantes A intromissão da Áustria em seu interior foi habilmente impedida por Delbrück no Mi nistério do Comércio A política de tarifas alfandegárias rebaixadas firmemente perseguida pela administração civil prussiana e que veio a culminar no Tratado de Paris com a França em 1864 constituía um instrumento crucial na competição diplomática e política entre Berlim e Viena no seio da Alemanha a Áustria não podia permitir a libe ralização econômica que chamava para o lado da Prússia os Estados do sul da Alemanha outrora dependentes do comércio internacional48 Na mesma época porém o curso fundamental da unificação ale mã estava sendo traçado pelo tempestuoso crescimento industrial do Ruhr no interior das próprias províncias ocidentais da Prússia A bur guesia renana cujas fortunas advinham da nova economia manufatu reira e mineradora do Oeste constituía um grupo politicamente muito mais ambicioso e disposto que os obedientes cidadãos a leste do Elba Foram os seus portavozes Mevissen Camphausen Hansemann e outros que organizaram e dirigiram o liberalismo alemão lutando na Prússia desse período pela promulgação de uma constituição bur guesa com uma assembléia responsável O seu programa significava de fato o fim do absolutismo Hohenzollern e suscitou naturalmente a obstinada hostilidade da classe dominanteywner do Leste Os levantes populares de 1848 alimentados sobretudo pelas massas de artesãos e camponeses possibilitaram a esta burguesia liberal a breve existência de um gabinete ministerial em Berlim e de uma plataforma ideológica em Frankfurt antes que o exército real esmagasse a revolução alguns meses mais tarde A constituição prussiana resultado abortado da crise de 1848 estabelecia pela primeira vez um Landtag nacional com uma câmara baseada num sistema eleitoral de três classes que assegu rava candidamente o predomínio da grande propriedade e uma outra predominantemente recrutada no seio da nobreza hereditária ambas sem nenhum poder sobre o executivo uma assembléia tão apagada que em média apenas 30 por cento dos que tinham direito a voto partici pavam na sua eleição49 Portanto a classe capitalista renana perma necia na oposição mesmo quando obtinha votações majoritárias nesse 48 A importância do tratado de comércio com a França é especialmente des tacada por Helmut Boehme Deutschlands Weg zur Grossmacht ColôniaBerlim 1966 pp 10020 1656 um estudo pioneiro embora excessivamente economicista 49 Hamerow The SocialFoundations of German Unifícation pp 3012 276 PERRY ANDERSON simulacro de instituição A leste do Elba os junkers vigiavam aten tamente a monarquia em busca de sinais de fraqueza chegando mesmo a conseguir a restauração em 1856 dos seus poderes senhoriais de polícia abolidos num momento de pânico por Frederico Gui lherme IV em 1848 Assim o conflito constitucional dos anos 1860 entre os liberais e o Estado aparece como um choque frontal pelo poder político entre a antiga e a nova ordem Não obstante as bases econômicas para uma reaproximação en tre as duas classes estavam sendo lançadas pela rápida capitalização da agricultura oriental durante o surto cerealífero e pelo crescimento ver tical da importância da indústria pesada no seio de toda a formação social prussiana Por volta de 1865 a Prússia era responsável por nove décimos da produção de carvão e ferro por dois terços das máquinas a vapor por metade da produção têxtil e por dois terços da mãodeobra industrial da Alemanha50 A mecanização da indústria alemã já ultra passara a da França Bismarck outrora um reacionário extremo tru culento campeão do ultralegitimismo foi o primeiro representante po lítico da nobreza a ver que esta força efervescente podia ser acomodada na estrutura do Estado e que sob a égide das duas classes possuidoras do reino Hohenzollern os junkers prussianos e o capital renano seria possível a unificação da Alemanha O triunfo do exército prus siano sobre a Áustria em 1866 apaziguou subitamente a discórdia entre as duas classes A barganha efetuada por Bismarck com os liberais nacionalistas da qual resultou a Constituição da Alemanha do Norte de 1867 selou um importante pacto social virtualmente contrário aos matizes políticos de ambas as partes signatárias Três anos mais tarde a Guerra FrancoPrussiana completou com esplendor a obra de uni dade nacional O Reino da Prússia fundiuse num Império Alemão A estrutura fundamental do novo Estado era inequivocamente capita lista A Constituição da Alemanha imperial dos anos 1870 incluía uma assembléia representativa eleita pelo sufrágio universal masculino a cédula secreta a igualdade civil um código jurídico uniforme um sis tema monetário unificado a educação secular e a completa liberdade de comércio interno O Estado alemão assim criado não era de forma alguma um exemplo puro do seu tipo e nem existia tal Estado na Europa desta época51 Estava fortemente marcado pela natureza feu 50 Pierre Ayçoberry L Unité Allemande 18001871 Paris 1968 p 90 51 Taylor salienta que a Constituição da Coníederaçâo da Alemanha do Norte de 1867 da qual derivou a Constituição imperial previa na verdade o mais amplo sufrágio de todos os principais países da Europa e o único com verdadeiro voto secreto LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 277 dal do Estado prussiano que o precedera Na verdade num sentido literal e visível o desenvolvimento combinado que definia a conjuntura estava corporificado na arquitetura do novo Estado Com efeito a constituição prussiana não fora anulada sobrevivia no seio da consti tuição imperial uma vez que a Prússia era agora uma das unidades confederadas do Império inclusive o sistema eleitoral de três classes com direitos civis limitados O corpo de oficiais de seu exército que constituía naturalmente a parte predominante do aparelho militar im perial não era responsável perante o chanceler mas jurava fidelidade direta ao imperador que o controlava pessoalmente através de sua casa militar52 Os escalões superiores da burocracia depurada e reorgani zada por Von Puttkamer tornaramse mais do que nunca um santuá rio da aristocracia nas décadas seguintes a 1870 Além disso o chan celer imperial não era responsável perante o Reichstag e podia ampa rarse em receitas permanentes derivadas das alfândegas e impostos sobre o consumo fora do controle parlamentar embora os orçamentos devessem ser aprovados e as leis promulgadas pelo Reichstag Alguns direitos administrativos e fiscais de menor importância ficaram sob o controle das várias unidades federais do império limitando formal mente o caráter unitário da constituição Tais anomalias conferiram ao Estado alemão do final do século XIX um feitio desconcertante A própria caracterização marxiana do Estado de Bismarck revela um misto de irritação e desconcerto Numa frase célebre e irada que Rosa Luxemburgo gostava de citar ele o descrevia como nichts anderes ais ein mit parliamentàrischen Formen verbramter mit feudalem Beisatz vermischter schon von der Bour geoisie beeinflusster bürokratisch gezimmerter polizeilich gehüteter MUitardespotismus nada mais do que um despotismo militar en feitado de formas parlamentares mesclado a ingredientes feudais já influenciado pela burguesia mobiliado pela burocracia e protegido pela polícia153 A aglutinação de epítetos indica a dificuldade concei tuai sem solucionála Engels viu muito mais nitidamente que Marx que o Estado alemão a despeito de suas peculiaridades juntarase en tão às fileiras de seus rivais inglês e francês Ele escreveu sobre a Guer anterior ao Segundo Ato de Reforma na Inglaterra e ao advento da Terceira Republica na França A J P Taylor Bismarck Londres 1955 p 98 52 Para um bom estudo da Constituição da Alemanha imperial ver K Pinson Modem Germany Its History and Civilization Nova Iorque 1966 pp 15663 53 A passagem aparece na Crítica do Programa de Gotha Marx e Engels Werke vol 19 p 29 278 PERRY ANDERSON rã FrancoPrussiana e o seu autor Bismarck compreendeu a guerra civil de 1866 como o que ela realmente era notadamente uma revo lução e estava preparado para levála a cabo com métodos revolu cionários4 O resultado histórico do conflito com a Áustria foi que as próprias vitórias do exército prussiano abalaram os fundamentos da estrutura estatal prussiana de tal modo que as bases sociais do velho Estado sofreram uma completa transformação5 Comparando o bismarckismo com o bonapartismo afirma expressamente que a constituição criada pelo chanceler prussiano era uma forma moderna de Estado que pressupõe a abolição do feudalismo56 Por outras pala vras o Estado alemão era agora um aparelho capitalista sobredetermi nado pela sua ascendência feudal mas fundamentalmente homólogo da formação social que no início do século XX era amplamente domi nada pelo modo capitalista de produção a Alemanha imperial seria em breve a maior potência industrial da Europa O absolutismo prussiano transmutarase assim após muitas vicissitudes num outro tipo de Es tado Nos aspectos geográfico e social no social porque no geográfico este fora lentamente rebocado do Leste para o Ocidente As condições de possibilidade teóricas de tal transmutação permanecem por deter minar serão consideradas mais à frente 54J F Engels The Role of Force in History Londres 1968 pp 645 55 Marx e Engels Selected Works pp 2467 Í56 Idem p 247 Polônia A ascensão da Prússia a partir de meados do século XVII foi contrabalançada no Leste pelo declínio da Polônia O único grande país que não conseguiu produzir um Estado absolutista na região acabou por desaparecer numa demonstração gráfica a contrario da racionalidade do absolutismo para uma classe nobre As razões pelas quais a szlachta polonesa nunca foi capaz de gerar um Estado feudal centralizado parecem nunca ter sido convenientemente estudadas a derrocada desta classe coloca um problema que não foi ainda cabal mente resolvido pela historiografia moderna1 Quando muito ressal tam dos materiais existentes alguns elementos essenciais que sugerem respostas parciais ou possíveis A Polônia sofreu a última crise feudal em grau menor que qual quer outro país do Leste europeu a Peste Negra quando não as epide mias secundárias passoulhe ao largo enquanto os seus vizinhos eram devastados A monarquia Piast reconstituída no século XIV atingiu o seu apogeu político e cultural durante o reinado de Casimiro III depois de 1333 Com a morte deste monarca em 1370 extinguiuse a dinastia c o título real passou para Luís de Anjou rei da Hungria Monarca ab 1 Ê o que ressalta inequivocamente de uma pesquisa recente e representitivE sobre as causas mencionadas pelos historiadores poloneses para as Partilhas da Polônia muitas das quais nada mais fazem do que recolocar o problema Boguslaw Lesnodarski Lês Partages de Ia Pologne Analyse dês Causes et Essai dune Theorie Acta Histórica VII 1963 pp 730 280 PERRY ANDERSON senteísta Luís viuse forçado a conceder à nobreza da Polônia o Privi légio de Kosice em 1374 em troca da confirmação dos direitos de sua filha Jadwiga à sucessão do trono polaco a aristocracia ganhou a ga rantia da imunidade econômica frente a novos impostos e a autonomia administrativa em suas localidades numa carta inspirada em modelos húngaros anteriores2 Doze anos depois Jadwiga casou com Jagiello grãoduque da Lituânia que tornouse rei da Polônia fundando uma união pessoal entre os dois reinos Tal associação viria a ter efeitos profundos e permanentes em toda a história subseqüente da Polônia O ducado lituano era uma das estruturas mais recentes e notáveis da época Uma sociedade tribal do Báltico tão remota em seus pântanos e matas que se mantinha paga no final do século XIV construíra subi tamente um Estado vitorioso que se transformou num dos maiores im périos territoriais da Europa A pressão ocidental proveniente das or dens militares da Prússia e da Livônia provocara a rápida formação de um principado centralizado a partir das confederações tribais da Lituâ nia o vazio oriental criado depois da subjugação da Rússia póskie viana pelos mongóis permitiulhe a sua expansão externa em direção da Ucrânia Sob os governos sucessivos de Gedymin Olgerd Jagiello e Witold o poder lituano atingiu o Oka e o mar Negro A população destas vastas regiões era em sua maior parte eslava e cristã bielo russa ou rutena a Lituânia exerceu sobre ela uma dominação através de suserania militar que reduzia os senhores locais à condição de vas salos Este Estado poderoso mas primitivo achavase agora vincu lado ao reino da Polônia menor em extensão mas muito mais antigo e avançado Jagiello converteuse ao cristianismo e mudou para a Polô nia para assegurar a União de 1386 enquanto o seu primo Witold ficou na região oriental a fim de governar a Lituânia Com a ascensão de um príncipe estrangeiro a szlachta polonesa conseguiu impor o princípio de que a monarquia era eletiva embora na prática a dinastia jage lônia continuasse a ser investida no trono durante os duzentos anos seguintes A força e o dinamismo acumulados da nova União polonesa lituana em breve se evidenciaria Em 1410 Jagiello infligiu aos Cava leiros Teutonicos a histórica derrota de Grünewald ponto crucial para o destino da Ordem na Prússia Em meados do século renovouse o 2 Quanto a este episódio ver O Halecki From the Union with Hungary to the Union with Lithuania W F Reddaway et alii Org The Cambridge History of Pó land Cambridge 1950 pp 19193 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 281 ataque polonês à Prússia quando os Estados alemães locais se revol taram contra o domínio da Ordem A Guerra dos Treze Anos terminou em 1466 com uma vitória decisiva dos jagelônios Pela Segunda Paz de Torun a Polônia anexou a Prússia ocidental e a Ermlândia a Prússia oriental tornouse um feudo polonês governado como vassalo pelo grãomestre da Ordem Teutonica que a partir daí passou a dever ho menagem e serviço militar à monarquia polaca O poderio da Ordem foi definitivamente rompido e a Polônia adquiriu acesso territorial ao Báltico Danzig Gdansk o maior porto de toda a região tornouse uma cidade autônoma com privilégios municipais especiais sob a sobe rania real polonesa Casimiro IV o vencedor da guerra governava o reino mais extenso do continente Entretanto no seio da própria Polônia assistiuse no final do século XV a um rápido crescimento da posição política e social da pe quena nobreza em detrimento tanto da monarquia como do campesi nato Para assegurar a sucessão de seu filho Jagiello concedeu à no breza em 1425 o princípio de neminem captivabimus imunidade jurídica à prisão arbitrária pelo Privilégio de Brzeg Casimiro IV por sua vez tivera que fazer concessões adicionais à classe fundiária O longo conflito da Guerra dos Treze Anos exigiu a contratação de tropas mercenárias de quase toda a Europa A fim de obter os fundos neces sários para pagálos o rei concedeu à aristocracia o Privilégio de Nieszawa em 1454 que preparava as conventiones particulares regu lares a serem realizadas pela pequena nobreza nas suas regiões a partir daí não era permitido levantar tropas ou impostos sem o seu consen timento3 Sob o seu filho João Alberto veio à luz uma sólida assembléia nacional ou Sejm assistida por assembléias locais e provinciais sej miki da classe fundiária A Sejm era uma assembléia bicameral cons tituída por uma Câmara de Deputados e um Senado a primeira com punhase de representantes eleitos áassejmiki o segundo por altos dig nitários do Estado eclesiásticos e laicos As cidades estavam excluídas de ambas as casas o nascente sistema de Estados polonês era exclusi vamente aristocrático4 Em 1505 a Constituição de Radom consagrou oficialmente os poderes da Sejm a lei de nihil novi privou a monarquia do direito de legislar sem o consentimento dos Estados ao passo que a 3 Ver A Gieysztor em S Kieniewicz Org History ofPoland Varsóvia 1968 pp 1456 4 Os burgueses de Cracóvia e mais tarde de Wilno eram admitidos aos hta balhos da Sejm mas não tinham direito a voto 282 PERRY ANDERSON autoridade dos funcionários da coroa foi cuidadosamente limitada5 No entanto a convocação da Sejm ficava ainda ao arbítrio do mo narca Enquanto isso também nesta época era decretada a servidão jurídica do campesinato polonês Os Estatutos de Piotrkow proibiram em 1496 todo o deslocamento de mãodeobra das aldeias à exceção de um único camponês de cada comunidade por ano Seguiramse me didas adicionais de adscrição à terra em 1501 1503 1510 e 1511 indí cios das dificuldades de implementação da lei Finalmente em 1520 assinouse uma ordenação referente aos tributos feudais impondo cor véias de até seis dias por semana ao vilão ou wloka polonês6 A servi dão dos camponeses que tompuse cada vez mais rigorosa ao longo do século XVI fundamentou a nova prosperidade da szlachta Com efeito a nobreza polaca beneficiouse mais do que qualquer outro grupo so cial da região com o surto cerealífero do Báltico naquela época Os lotes camponeses foram gradualmente reduzidos enquanto o cultivo dominial se expandia para atender à demanda do mercado de exporta ção Na segunda metade do século o volume de cereais embarcado para fora do país duplicou Durante o ápice do comércio de cereais entre 1550 e 1620 a inflação ocidental garantiu à classe fundiária am plos e inesperados rendimentos em virtude dos termos de intercâmbio Considerando uma fase mais longa calculase que entre 1600 e 1750 o valor da produção comercializada dos magnatas tenha triplicado o da pequena nobreza duplicado e o dos camponeses decaído7 Contudo estes lucros não foram produtivamente reinvestidos A Polônia tornou se o celeiro da Europa mas as técnicas de cultivo continuaram primi tivas com índices de rendimento pouco elevados O aumento da pro dução agrícola foi conseguido pela extensão da superfície cultivada especialmente nas terras fronteiriças do sudeste e não pelo aprimora mento intensivo dos cultivos Além disso a aristocracia polonesa usou o seu poder econômico para uma política mais sistematicamente anti urbana que a de qualquer outra classe dominante da Europa No início do século XVI impuseramse preços máximos às manufaturas nativas das cidades cujas comunidades mercantis eram principalmente ale 5 J Tazbir em Kieniewicz Org History ofPoland p 176 6 R F Leslie TkePolish Questton Londres 1964 p 4 7 Witold Kula UnEconomia Agraria Senza Accumulazione Ia Polônia dei SeicoliXVIXVHI Studi Storici n 34 1968 pp 6156 As variações de rendimentos eram muito menores evidentemente devido ao caráter de subsistência da maior parte da produção camponesa estimada por Kula em 90 por cento LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 283 mas judaicas ou armênias Em 1565 os mercadores estrangeiros rece beram privilégios exorbitantes cujo efeito objetivo foi inevitavelmente o enfraquecimento e a ruína dos comerciantes locais A prosperidade comercial da época foi também acompanhada pela expansão urbana e os senhores mais abastados fundaram cidades privadas controladas por eles enquanto outros nobres convertiam no campo oficinas de fundição em moinhos de cereais Mas a autonomia municipal dos patriciados urbanos foi praticamente suprimida em toda parte e com ela as possi bilidades de desenvolvimento industrial Apenas o porto germânico de Danzig escapou à liquidação dos privilégios urbanos medievais por parte da szlachta o controle monopolista das exportações de que passou a desfrutar contribuiu para asfixiar ainda mais as cidades do interior Dessa maneira criouse cada vez mais uma monocultura agrária que importava os seus bens manufaturados do Ocidente numa prefiguração aristocrática das economias ultramarinas do sé culo XIX A classe nobiliária que se constituiu sobre tais bases econômicas não tinha paralelo em qualquer outro lugar da Europa O grau de pres são servil que ela exercia sobre o campesinato era extraordinário com corvéias previstas na lei de até seis dias por semana em 1574 adquiriu oficialmente umjits vitae et necis sobre os servos que permi tia em teoria o direito de os executar arbitrariamente9 A aristocracia que controlava tais poderes era de composição notavelmente diversa da de seus vizinhos Com efeito a teia de parentesco clâriico indício se guro de uma estrutura social préfeudal sobrevivera na sociedade rela tivamente atrasada e amorfa da Polônia do início da era medieval du rante muito mais tempo do que em qualquer outra região a ponto de afetar os contornos da nobreza feudal quando esta apareceu num pe ríodo que desconhecia a hierarquia de vassalagem organizada Quan 8 Tazbir minimiza os eieitos práticos imediatos desta medida mas a sua inten ção é bastante clara Tazbir History ofPoland p 178 9 Leslie ThePolish Question pp 45 10 Esses clãs não eram descendentes diretos de unidades de organização tribal mas formações mais recentes calcadas naquelas Para o conjunto do problema da herál dica clânica na Polônia ver K Gorski Lês Stmctures Sociales de Ia Noblesse Polanaise au Moyen Age Lê Moyen Age 1967 pp 7385 Etimologicamente a palavra sslachta deriva talvez do antigo alto alemão síahta no alemão moderno Geschlecht que significa família ou raça embora a sua origem não seja absolutamente certa Devese notar que a nobreza húngara não diferia da polaca em dimensão e caráter devido também ã pre sença de princípios clânicos pré feudais na sua formação inicial mas os dois casos não devem ser confundidos uma vez que os magiares foram de fato um povo nômade até o 284 PERRY ANDERSON do na Idade Média as insígnias heráldicas foram importadas do Oci dente não foram famílias isoladas que as adotaram mas clãs inteiros cujas redes de parentesco e clientela ainda subsistiam na zona rural O resultado foi a criação de uma classe nobre relativamente numerosa compreendendo talvez umas 700 mil pessoas ou 7 a 8 por cento da população no século XVI No seio desta classe não havia títulos a dis tinguir um grau aristocrático de outro Mas esta igualdade jurídica dentro da nobreza sem equivalentes na Europa era complementada por uma desigualdade econômica também sem paralelos na época A grande massa da szlachta talvez mais da metade possuía dimi nutas propriedades de quatro a oito hectares com freqüência iguais às de um camponês médio Este estrato concentravase nas antigas pro víncias do ocidente e do centro da Polônia na Mazóvia por exemplo constituía cerca de um quinto da população totalI2 Outro setor impor tante da nobreza compunhase de pequenos cavaleiros com pequenas propriedades que não possuíam mais do que uma ou duas aldeias E no entanto nominalmente no seio desta mesma nobreza existiam al guns dos maiores magnatas territoriais da Europa donos de colossais latifúndios situados principalmente nas regiões lituana e ucraniana a leste do país Nestes territórios mais recentes legado da expansão li tuana do século XIV não ocorreu uma idêntica difusão heráldica e a alta aristocracia sempre conservou muito do caráter de uma pequena casta de potentados sobreposta a um campesinato etnicamente estran geiro Durante o século XVI a nobreza lituana tornouse progressiva mente assimilada em sua cultura e em suas instituições à sua homó loga polonesa à medida que a pequena nobreza local conquistava gra dualmente direitos semelhantes aos da szlachta 13i A conseqüência constitucional de tal convergência foi a União de Lublin em 1569 que final do século X e portanto tiveram uma história e uma estrutura social anteriores muito diferentes das dos eslavos ocidentais 11 Para um esboço sociológico ver Andrzej Zajaczkowski Cadres Structurels de Ia Noblesse Annales ESC janeirofevereiro de 1968 pp88102 Os grandes senho res lituanos que reclamavam a descendência de Gedymin ou de Rurik usavam o título honorífico de príncipe mas essa pretensão não tinha força jurídica 12 P Skwarczynski Poland and Lithuania The New Cambridge Modem History ofEurope III p 400 13 Quanto a este processo ver Vernadsky Rússia at the Dawn ofthe Modem Age pp 196200 O livro de Vernadsky inclui um dos melhores relatos existentes sobre o Estado lituano sob o título West Rússia Quanto ao pano de fundo e aos dispositivos da União de Lublin em parte determinada pela pressão militar da Moscóvia sobre a Lituânia ver pp 2418 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUT1STA 285 fundiu finalmente os dois reinos em uma única organização política a Rzeczpospoíita Polska com moeda e parlamento comuns Por outro lado a massa da população das províncias orientais não experimentou tal fusão permanecendo em sua maioria ortodoxos por religião e bie lorussos ou rutenos quanto ao idioma Portanto menos da metade dos habitantes da Comunidade polonesa era étnica e lingüisticamente po laca O caráter colonial da classe fundiária no leste e no sudeste expressavase na dimensão de seus domínios No final do século XVI o chanceler João Zamoyski era senhor de cerca de 800 mil hectares localizados sobretudo na Pequena Polônia e exercia jurisdição sobre umas oitenta cidades e oitocentas aldeias14 No início do século XVII o império Wisnowiecki na Ucrânia oriental estendiase por terras ocu padas por 230 mil súditos15 No século XVIII a família Potocki pos suía na Ucrânia cerca de l milhão e 200 mil hectares a casa Radziwill da Lituânia possuía domínios estimados em 4 milhões de hectares16 Portanto sempre existiu uma extrema tensão entre a ideologia de pari dade jurídica e a realidade de tremenda disparidade econômica no seio da aristocracia polonesa No entanto durante o século XVI o conjunto da szlachta bene ficiouse provavelmente mais do que qualquer outro grupo da Europa com a revolução dos preços Esta foi a época de sonolência do Bran denburgo e de declínio da Prússia oriental a Rússia encontravase em expansão mas em meio a terríveis retrocessos e convulsões A Polônia era em contraste a maior e mais rica potência do Leste Coubelhe a principal parte da prosperidade do Báltico na fase mais pujante do comércio de cereais O brilho cultural da Renascença polonesa o melo ambiente de Copérnico foi disso um resultado No aspecto político no entanto é difícil não suspeitar que a precoce e abundante boa fortuna da szlachta tenha em certo sentido paralisado a sua capacidade de centralização construtiva numa época posterior A Polônia infernas rusticorum para o campesinato proporcionava à nobreza uma áurea libertas não se sentia a necessidade premente de um Estado forte no paraíso dos cavaleiros A passagem relativamente despreocupada da 14 Tazbir History of Poland p 196 além de seus próprios domínios Zamoyski controlava vastas áreas do domínio real Na Polônia as terras pertencentes ao monarca eram amplamente alienadas como garantia dos empréstimos realizados junto aos mag natas 15 A Maczak The Social Distribution of Landed Property in Poland from lhe 16th to the 18th Century Third International Conference ofEconomic History p 461 16 B Boswell Poland em A Goodwin Org The European Nobitity in the 18th Century pp 1678 286 PERRY ANDERSON Polônia pela grande crise econômica e demográfica do feudalismo eu ropeu no fim da Idade Média da qual emergiu menos ferida que qual quer outro país da região seguida pelo maná comercial do início da época moderna talvez tenha preparado a desintegração política que estava por vir Além disso no plano estratégico a Comunidade polo nesa do século XVI não enfrentou nenhuma ameaça militar impor tante A Alemanha estava presa às cruentas discórdias internas da Re forma A Suécia era ainda uma potência menor A Rússia expandiase mais em direção ao Volga e ao Neva que ao Dnieper o desenvolvimento do Estado moscovita embora começando a parecer grandioso perma necia imaturo e a sua estabilidade precária No sul todo o peso da pressão turca era dirigido contra as fronteiras Habsburgo na Hungria e na Áustria enquanto a Polônia era amortecida pela Moldávia um débil Estadovassalo do sistema otomano No sudeste os ataques irre gulares dos tártaros da Criméia embora destrutivos constituíam um problema localizado Portanto não havia a necessidade urgente de um Estado monárquico centralizado capaz de construir uma ampla má quina militar de defesa contra os inimigos externos A imensa extensão da Polônia e o tradicional valor da szlachta como cavalaria feudal pe sada pareciam garantir a segurança geográfica da classe possuidora Assim justamente numa época em que o absolutismo estava em avanço em toda a Europa os poderes da monarquia polonesa eram drástica e definitivamente reduzidos pela aristocracia Em 1572 a di nastia j agelônia extinguiuse com a morte de Segismundo Augusto que não deixou sucessores Seguiuse um leilão internacional pela digni dade real Em 1573 40 mil nobres reuniramse numa assembléia virí tim nas planícies de Varsóvia e elegeram Henrique de Anjou para o trono Estrangeiro sem quaisquer laços com o país o príncipe francês foi forçado a assinar os famosos Artigos Henriquinos que tornaram se a partir daí a carta constitucional da Comunidade polonesa ao mesmo tempo um esquema separado ou Pacta Convento entre o mo narca e a nobreza estabeleceu os precedentes para os contratos pes soais com obrigações específicas e vinculatórias a serem assinados pelos reis poloneses no ato de sua ascensão Nos termos dos Artigos Henriquinos o caráter nãohereditário da monarquia foi expressa mente reconfirmado O próprio monarca foi privado de praticamente todos os poderes substantivos no governo do reino Não podia exonerar os funcionários civis ou militares da sua administração ou ampliar o minúsculo exército de 3 mil homens O consentimento da Sejm que a partir daí devia reunirse a cada dois anos era necessário para qual quer decisão política ou fiscal de importância A infração a estas res LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 287 trições legitimava a rebelião contra o monarca17 Em outras palavras a Polônia tornouse em tudo menos no nome uma república nobiliária com um rei decorativo Jamais uma dinastia polonesa nativa presidiria outra vez o reino a classe fundiária preferiu deliberadamente gover nantes franceses húngaros suecos e saxônios com o intuito de asse gurar a debilidade do Estado central A linhagem jagelônia contara com um extenso domínio hereditário em seus territórios da Lituânia os reis estrangeiros que se sucederam na Polônia não dispunham de uma tal base econômica dentro do país para apoiálos As receitas e as tropas sob o comando dos maiores magnatas eram com freqüência tão grandes como as do próprio soberano Embora alguns príncipesguer reiros fossem ocasionalmente eleitos Bathory Sobieski a monar quia nunca mais recuperou poderes efetivos ou permanentes Além das vicissitudes dinásticas e da heterogeneidade étnica da União polacoli tuana existia talvez uma tradição política mais antiga por trás deste resultado anômalo A Polônia não compartilhara nem a herança impe rial dos bizantinos nem a dos carolíngios a sua nobreza não experi mentara uma integração original numa organização política monár quica comparável à da Rússia de Kiev ou à da Alemanha medieval A genealogia clânica da szlachta era um sinal da distância que as sepa rava De tal modo a sua Renascença não conheceu o culto autocrático de uma monarquia Tudor Valois ou Habsburgo mas o florescimento de uma comunidade aristocrática A fase final do século XVI mal indicava as crises que se avizi nhavam Ao Pacta Conventa de 1573 seguiuse três anos mais tarde após a partida de Henrique para a França a eleição do príncipe Es tevão Bathory da Transüvânia como rei da Polônia Bathory hábil e experiente general magiar controlava uma fortuna e um exército pes soais originários de seu principado vizinho cuja economia relativa mente próspera e urbanizada lhe proporcionava recursos e tropas pro fissionais independentes A sua autoridade política na Polônia estava portanto fortemente escorada em sua base territorial além dos Tatras Ele próprio um governante católico promoveu discretamente a Contra Reforma na Polônia evitando as provocações religiosas àqueles setores da nobreza que tinhamse tornado protestantes O seu reinado se dis 17 Quanto aos Artigos Henriquinos e ao Pacta Conventa ver F Nowak The Interregna and Stephen Batory The Cambridge History of Poland I pp 3723 O melhor estudo geral do sistema constitucional polonês tal como se apresentava nesta época está em Skwarczyriski The Constitution of Poland Before the Partitions The Cambridge History of Poland II pp 4967 288 PERRY ANDERSON tinguiu acima de tudo pela vitória militar contra a Rússia nas Guerras do Báltico Tendo iniciado a campanha contra Ivã IV em 1578 com um exército misto de cavalaria polaca infantaria transilvana e cossacos ucranianos Bathory conquistou a Livônia e varreu as forças russas para além do Polotsk À data de sua morte em 1586 a supremacia da Polônia na Europa oriental parecia maior do que nunca A escolha da szlachta para o seu sucessor recaiu desta vez num sueco Segismundo Vasa Durante o seu reinado o expansionismo polonês pareceu atingir o apogeu Explorando os levantes políticos e sociais na Rússia durante a Época das Dificuldades a Polônia apoiou o breve governo do Falso Dimitri em 16056 um usurpador protegido em sua capital por tropas polonesas Depois em 1610 as forças polacas comandadas pelo het man Zolkiewski reocuparam Moscou e instalaram como czar o filho de Segismundo Ladislau A reação popular russa e as operações contrá rias da Suécia forçaram a guarnição polonesa a evacuar Moscou em 1612 e no ano seguinte o czarado passou à dinastia Romanov No entanto a intervenção polaca na Época das Dificuldades resultou em importantes ganhos territoriais no Armistício de Deulino em 1618 através do qual a Polônia anexou uma ampla faixa da Rússia Branca Nestes anos a Rzeczpospolita atingiu as suas mais vastas fronteiras Não obstante duas fendas fatais de caráter geopolítico prejudi caram este Estado polonês apesar do orgulho inabalado da nobreza husarja nas operações da cavalaria Ambas eram sintomas do indivi dualismo monádico da classe dominante polaca Por um lado a Polô nia fracassara em eliminar o domínio alemão na Prússia oriental As vitórias j agelônias sobre a Ordem Teutônica no século XV reduziram os cavaleiros alemães a vassalos da monarquia polonesa No início do século XVI foi aceita a secularização da Ordem pelo seu grãomestre em troca da manutenção da suserania polaca sobre o que passava a ser o ducado da Prússia Em 1563 Segismundo Augusto o último gover nante jagelônio aceitou partilhar a investidura do ducado com o margrave do Brandenburgo em troca de benefícios diplomáticos tran sitórios Quinze anos mais tarde Bathory vendeu a tutela do duque da Prússia oriental para o Eleitor do Brandenburgo a troco de recursos para financiar a guerra com a Rússia Finalmente em 1618 a monar quia polonesa permitiu a unificação dinástica da Prússia oriental com o Brandenburgo sob a chefia de um governante comum Hohenzollern Assim por uma série de concessões jurídicas que acabaram por resul tar numa completa renúncia à suserania polaca o ducado foi entregue aos Hohenzollern A loucura estratégica que este processo constituiu em breve se evidenciaria Ao perder a oportunidade de integrar a Prús LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 29 sia oriental a Polônia perdeu também a chance de controlar o litoral do Bãltico e nunca se tornou uma potência marítima A falta de uma frota iria tornála vulnerável a invasões anfíbias vindas do norte As razões de tal inércia devem indubitavelmente ser procuradas no caráter da nobreza Tanto o domínio da costa como a construção de uma ma rinha exigiam uma poderosa máquina de Estado capaz de erradicar os junkers da Prússia oriental e de mobilizar o investimento público neces sário à construção de fortes estaleiros e instalações portuárias O Es tado russo de Pedro o Grande pôde realizar esta tarefa assim que atingiu o Báltico A szlachta polonesa não se mostrou interessada Çon tentavase em contar com o esquema tradicional do transporte de ce reais através de Danzig em cargueiros holandeses ou alemães O con trole real sobre as políticas de comércio de Danzig foi abandonado na década de 16408 A nobreza era indiferente à sorte do Báltico A sua expansão assumiria uma forma completamente diferente um im pulso em direção às regiões fronteiriças do sudeste na Ucrânia Aí era possível e lucrativa a penetração e colonização de caráter privado não havia um Estado organizado para resistir a tal avanço e não eram necessárias inovações econômicas para criar novos latifúndios nas ter ras excepcionalmente férteis de ambos os lados do Dnieper Assim no início do século XVII a propriedade senhorial polonesa estendeuse ainda mais profundamente para além da Volínia e da Podólia através da Ucrânia oriental A imposição da servidão ao campesinato ruteno local exacerbada pelos conflitos religiosos entre as Igrejas católica e ortodoxa e complicada pela turbulenta presença das colônias de cossa cos fez desta região selvagem um constante problema de segurança No aspecto econômico a mais lucrativa projeção da Comunidade ela era no plano social e político a área mais explosiva do Estado nobi liário Dessa maneira a reorientação da szlachta do Báltico para o mar Negro viria a revelarse duplamente desastrosa para a Polônia As suas conseqüências finais seriam a Revolução da Ucrânia e o Dilú vio sueco Nos primeiros anos do século XVII tornavamse visíveis no seio da Polônia inquietantes sinais de crise iminente Na virada do século os limites da economia agrária tradicional na região central do país que fornecera a base produtiva ao poder externo da Polônia começaram a se fazer sentir A expansão do sistema senhorial não fora acompanhada 18 H Jablonowski PolandLithuania 16091648 The New Cambridge Mo dem HistoryofEurope IV Cambridge 1970 pp 6001 290 PERRY ANDERSON por melhorias reais na produtividade a superfície arável crescera ao passo que as técnicas permaneciam grandemente estacionárias Além disso tornavase agora evidente o preço a pagar pela desordenada ex tensão da agricultura dominial às custas das posses camponesas Havia sinais de exaustão agrícola mesmo antes que os preços dos cereais co meçassem a cair com a depressão européia que passou a instalarse gradualmente a partir da década de 1620 A produção começou a de clinar e o que era ainda mais grave os rendimentos diminuíram19 Ao mesmo tempo a coesão política do Estado ficava seriamente debi litada com novas derrogações da autoridade central que a monarquia mantivera tenazmente Em 16079 uma grave revolta da nobreza con tra Segismundo II a rebelião Zebrzydowski forçou o rei a aban donar seus planos de um poder monárquico reformado A partir de 1613 a Sejm nacional delegou fasçjmiki locais o encargo de estabele cer impostos tornando ainda mais difícil a instauração de um sistema fiscal efetivo Na década de 1640 as sejmiki conquistaram ainda maior autonomia financeira e militar nas suas localidades Enquanto isso a revolução que à época se operava nas técnicas militares não levava em conta szlachta a sua perícia na cavalaria tornavase crescentemente anacrônica em batalhas decisivas por infantarias treinadas e artilharia móvel O principal exército da Comunidade compunhase ainda de apenas 4 mil homens em meados do século e escapava ao controle real graças ao comando independente dos ketmctns vitalícios enquanto isso os magnatas fronteiriços mantinham muitas vezes exércitos priva dos de dimensão virtualmente equivalente20 Na década de 1620 a rá pida conquista sueca da Livônia o domínio do litoral da Prússia orien tal e a extorsão de pesados tributos no Báltico tinham revelado a vul nerabilidade das defesas polonesas no norte entretanto no sul suces sivos levantes cossacos foram pacificados com dificuldade nos anos 1630 Estava montado o cenário para o espetacular colapso do país no reinado do último rei Vasa João Casimiro Em 1648 os cossacos ucranianos revoltaramse sob a chefia de Khmeltnitsky e na esteira do levante desencadeouse uma jacqiterie camponesa contra a classe senhorial polaca Em 1654 os líderes cos 19 Jerzy Topolski La Régression Économique en Pologne du XVIe au XVIIIe Siècle Acta Polônias Histórica VII 1962 pp 2849 20 Tazbir History of Poland p 224 Em teoria evidentemente um recruta mento geral da nobreza poderia fornecer a força principal para as guerras com o estran geiro LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 291 sacos levaram consigo para o Estado russo rival vastas porções do su deste com o Tratado de Pereyaslavl os exércitos russos marcharam para o ocidente capturando Minsk e Wilno Em 1655 a Suécia lançou um devastador ataque em tenaz através da Pomerânia e da Curlândia o Brandenburgo aliouse a ela para uma invasão conjunta Varsóvia e Cracóvia caíram rapidamente nas mãos das tropas suecas e prussianas enquanto os grandes senhores Htuanos apressavamse em desertar para juntarse a Carlos X e João Casimiro escapava para um refúgio na Áustria A ocupação sueca na Polônia suscitou na szlachta uma feroz resistência Seguiuse a intervenção internacional para impedir o alar gamento do império sueco as frotas holandesas deram cobertura a Danzig a diplomacia austríaca auxiliou o rei fugitivo as tropas russas assaltaram a Livônia e a Ingria finalmente a Dinamarca lançouse sobre a retaguarda sueca Em conseqüência a Polônia ficou livre de exércitos suecos em 1660 depois de imensa destruição A guerra com a Rússia durou ainda mais sete anos Quando a Comunidade encontrou de novo a paz em 1667 depois de aproximadamente duas décadas de conflito perdera a Ucrânia oriental com Kiev as extensas terras fron teiriças cujo centro era Smolensk e todas as pretensões residuais sobre a Prússia oriental na década seguinte a Turquia tomava a Podólia As perdas territoriais ascendiam a um quinto do território polonês Mas os efeitos econômicos sociais e políticos daqueles anos desastrosos foram ainda mais graves Os exércitos suecos que varreram o país tinhamno deixado de ponta a ponta destruído e despovoado o rico vale do Vís tula foi a região mais duramente atingida A população da Polônia decresceu de um terço entre 1650 e 1675 ao passo que as exportações de cereais via Danzig caíram em mais de 80 por cento entre 1618 e 169121 A produção cerealífera de muitas regiões entrou em colapso devido à devastação e à queda demográfica a produção nunca se recu perou Verificouse uma contração da área cultivada e muitas szlachta se arruinaram A crise econômica que se seguiu à guerra acelerou a concentração da terra em condições em que apenas os grandes senho res tinham os recursos para reorganizar a produção e muitos domínios menores estavam à venda As exações servis se intensificaram em meio 21 Henry WÜlets Poland and the Evolution of Rússia em TrevorRoper Org TheAgeofExpansion p 265 Para um relato minucioso do que foram as devas tações do Dilúvio na região de Mazóvia ver I Gíeysztorowa Guerre et Régression en Mazovie aux XVIe et XVIIe Siècles Annales ESC outubronovembro de 1958 pp 65168 que aborda também o declínio econômico que aí se registrara antes da guerra a partir do início do século XVII A população da Mazóvia caiu de 638 mil para 305 mil habitantes entre 1578 e 1601 ou em cerca de 52 por cento 292 PERRY ANDERSON menores estavam à venda As exações servis se intensificaram em meioà à nova estagnação A desvalorização da moeda e a depressão dos salá rios fulminaram as cidades No plano cultural a szlachta vingouse da história que a desa pontara adotando uma mórbida mitomania um surpreendente culto de imaginários ancestrais sármatas do passado préfeudal combi nouse com um fanatismo provinciano ligado à ContraReforma num país onde a civilização urbana refluía acentuadamente A ideologia pseudoatávica do sarmatianismo não constituía uma mera aberração ela refletia a situação do conjunto da classe que encontrava a sua mais viva expressão no próprio reino constitucional Com efeito no plano político o efeito conjunto da Revolução da Ucrânia e do Dilúvio sueco estilhaçou a frágil unidade da Comunidade polaca A grande brecha aberta na história e na prosperidade da classe nobiliária não a congre gou na criação de um Estado centralizado que pudesse enfrentar novos ataques externos ao contrário mergulhoua numa fuite en avant de caráter suicida A partir de meados do século XVII a lógica anárquica da organização política polonesa atingiu uma espécie de paroxismo institucional com a norma da unanimidade parlamentar o famoso liberum veto12 Desde então um único voto negativo podia dissolver a Sejm e paralisar o Estado O liberum veto foi exercido pela primeira vez por um deputado à Sejm em 1652 depois disso o seu uso cresceu rapidamente e estendeuse ksejmiki provinciais que eram agora mais de setenta A classe fundiária que há muito tornara o executivo prati camente impotente acabava assim por neutralizar também o legisla tivo O eclipse da autoridade real foi doravante completado pela desin tegração do governo representativo Na prática o caos apenas foi evi tado pelo crescente predomínio dos grandes magnatas orientais no seio da nobreza pois os seus vastos latifúndios cultivados por servos rutenos ou russos brancos conferiamlhes preponderância sobre os pequenos cavaleiros da Polônia central e ocidental Um sistema de clientela for neceu assim uma certa estrutura organizada à classe szlachta ainda que as rivalidades entre as famílias dos grandes senhores Czarto ryski Sapieha Potocki Radziwill e outras rompessem constante mente a unidade da nobreza pois ao mesmo tempo eram eles que 22 O estudo clássico sobre este dispositivo singular é o de L Konopczynki Lê Liberum Veto Paris 1930 Konopczynski conseguiu localizar apenas uma instituição similar o direito formal de dissentimiento em Aragão Mas o veto aragonês era na prática comparativamente inócuo LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 293 com mais freqüência lançavam mão do liberum veto23 O reverso cons titucional do veto era a confederação um artifício jurídico que permitia às facções aristocráticas se autoproclamarem em estado de insurreição armada contra o governo24 Por ironia o voto majoritário e a disciplina militar estavam juridicamente previstos para as confede rações rebeldes ao passo que a Sejm unitária era constantemente imo bilizada pela intriga política e pelo voto unânime A vitoriosa subleva ção da nobreza chefiada pelo grande marechal Lubomirski que evitou a eleição vivente rege de um sucessor de João Casimiro em 16656 e precipitou a abdicação do rei pressagiava a orientação futura da política dos grandes senhores Na era de Luís XIV e Pedro I nascia no Vístula uma negação total e radical do absolutismo A Polônia ainda continuava a ser o segundo maior país da Eu ropa Nas últimas décadas do século XVII o reiguerreiro João So bieski restaurou algumas de suas anteriores posições externas Levado ao poder pelo perigo de renovados ataques dos turcos na Podólia So bieski conseguiu ampliar o exército central para 12 mil homens e mo dernizálo pela inclusão de unidades de dragões e de infantaria As forças polonesas desempenharam o principal papel na libertação de Viena em 1683 e os avanços otomanos na região do Dniester foram contidos Mas os frutos mais importantes desta última e bemsucedída mobilização dá szlachta foram colhidos pelo imperador Habsburgo o auxílio polaco contra os turcos apenas permitiu ao absolutismo aus tríaco expandirse rapidamente em direção aos Bálcãs No plano in terno de pouco valeu a Sobieski a sua reputação internacional Todos os seus projetos para uma monarquia hereditária viramse frustrados o liberum veto tornouse cada vez mais freqüente na Sejm Na Lituâ nia onde o clã Sapieha exercia amplos poderes o mandado do mo narca deixou virtualmente de existir Em 1696 a nobreza rejeitou o seu filho como sucessor uma disputada eleição acabou com a instalação de outro príncipe estrangeiro no trono Augusto II da Saxônia sustentado pela Rússia O novo governante Wettin tentou usar os recursos indus triais e militares saxônios para estabelecer um Estado monárquico mais 23 O deputado Sicinski que inaugurou o uso do veto em 1652 era um instru mento de Boguslaw Radziwill Para uma análise estatística do exercício do liberum veto nos cem anos seguintes que demonstra o caráter acentuadamente regional de sua uti lização 80 por cento dos deputados que o exerceram eram originários da Lituânia ou da Pequena Polônia ver Konopczynski Lê Liberum Veto pp 2178 A família Potocki detinha o recorde de recursos dos grandes senhores ao veto 24 Para o dispositivo da confederação ver Skwarczynski The Constitutíon of Poland before the Partitions p 60 294 PERRY ANDERSON convencional com um programa econômico mais convincente Plane jouse criar uma companhia comercial saxopolaca para o Báltico a construção portuária foi revitalizada enquanto as tropas Wettin domi navam a Lituânia25 Aszlachta Logo reagiu em 1699 oPacta Conventa foi imposto a Augusto II estipulando a retirada de seu exército alemão do país Em conluio com Pedro I Augusto levou então as suas tropas através da fronteira rumo ao norte para um ataque à Livônia sueca Tal operação precipitou a Grande Guerra do Norte em 1700 A Sejm repudiou energicamente os planos pessoais do rei mas o contraataque sueco às forças saxônias em 17012 mergulhou o país no torvelinho da guerra Ao cabo de devastadores combates Carlos XII invadiu a Polô nia depôs Augusto II e instalou no trono um pretendente nativo Esta nislau Leszczynski Defrontada com a ocupação a nobreza dividiuse os grandes senhores do leste como em 1655 optaram pela Suécia ao passo que a massa dos pequenos cavaleiros do oeste juntouse relutan temente à aliança saxorussa A derrota de Carlos XII em Poltava res taurou Augusto II na Polônia Contudo quando em 17134 o rei saxão tentou reintroduzir o seu exército e ampliar o poder real prontamente se formou uma confederação rebelde e a intervenção militar russa im pôs o Tratado de Varsóvia a Augusto II em 1717 Por injunção de um enviado russo o exército polonês foi fixado em 24 mil homens as tro pas saxônias foram limitadas a 1200 guardas pessoais do monarca e os funcionários alemães da administração foram repatriados A Grande Guerra do Norte revelouse um segundo Dilúvio Os rigores da ocupação sueca e a desolação deixada por sucessivas campa nhas dos exércitos escandinavos alemães e russos em solo polonês co braram um pesado tributo A população da Polônia atingida pela guerra e pela peste caiu para cerca de 6 milhões de habitantes As extorsões econômicas das três potências que disputavam o controle es tratégico do país cerca de 60 milhões de taleres montaram a três vezes a receita pública total da Comunidade durante o conflito27 Mais grave que isso a Polônia era pela primeira vez um objeto inerte do 25 Para uma reavaliação recente dos primeiros planos saxonios na Polônia ver 3 Gierowski e A Kaminski The Eclipse of Poland The New Cambridge Modem Hisíory ofEurope VI pp 6878 26 Na verdade embora o Tratado de Varsóvia permitisse a convocação de 24 mil homens somente cerca de 12 mil foram recrutados uma vez que a dimensão do exército central antes da guerra alcançava 18 mil soldados o resultado foi uma nova redução do poderio militar polonês E Rostworowski History of Poland pp 2812 289 27 Gierowski e Kaminski The Eclipse of Poland pp 7045 Em 1650 a população da Polônia atingira cerca de 10 milhões de habitantes LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 295 conflito internacional que se travava no seu território A passividade política da szlachta na disputa triangular entre Carlos XII Pedro I e Augusto II só foi rompida por sua sombria resistência a todo movi mento no sentido de fortalecer o poder monárquico na Polônia e por tanto a capacidade defensiva polonesa Augusto II cuja base de apoio na Saxônia era mais rica e avançada do que jamais o fora na Transil vânia foi incapaz de repetir a experiência de Bathory um século de pois Para impedir que a União saxopolaca frutificasse a nobreza es tava disposta a aceitar o protetorado da Rússia O convite à invasão feito em 1717 a São Petersburgo inaugurou uma época de crescente submissão às manobras czaristas na Europa oriental Em 1733 a eleição para a monarquia foi mais uma vez bastante disputada A França tentou apoiar a candidatura de Leszczynski como natural da Polônia e aliado de Paris A Rússia apoiada pela Áustria e pela Prússia optou por uma sucessão saxÔnia como alternativa mais frágil a despeito da eleição legítima de Leszczynski Augusto III foi devidamente imposto pelas baionetas estrangeiras O novo governante ao contrário de seu pai um monarca absenteísta que residia em Dresden não fez qualquer tentativa de remodelar o sistema político na Polônia Varsóvia deixou de ser a capital uma vez que o país se tornou uma vasta província estagnada ocasionalmente cruzada por exércitos vizinhos Os ministros saxonios distribuíram sinecuras no Es tado e na Igreja enquanto as facções de magnatas reduziam os vetos na Sejm sob injunção ou suborno das potências estrangeiras rivais Rússia Áustria Prússia e França28 A szlachta que durante o apogeu da Reforma e da ContraReforma mantivera um padrão de tolerância religiosa raro na Europa era agora na Época das Luzes tomada por um fanatismo católico já esquecido as febres de perseguição que se apoderaram da nobreza foram o sintoma decadente de seu patrio tismo Do ponto de vista econômico verificouse uma certa recupera ção no final do século XVIII A população elevouse de novo aos níveis anteriores ao Dilúvio ao passo que a exportação de cereais através de Danzig duplicava nos quarenta anos seguintes à Grande Guerra do Norte embora permanecendo muito inferior aos índices máximos obti dos no século anterior A concentração de terras e de servos continuou em benefício dos grandes senhores29 28 Após a imposição inicial de Augusto II todas as sessões da Sejm que reu niuse treze vezes durante o reinado foram interrompidas pelo uso do liberam veto 29 Os comentários de Montesquieu sobre a Polônia eram bem característicos da opinião do iluminismo na época A Polônia não tem praticamente nenhuma da 296 PERRY ANDERSON Em 1764 Poniatowski amante polonês de Catarina II ligado à facção Czartoryski tornouse o novo monarca por escolha russa A permissão inicial de São Petersburgo de proceder a reformas centra lizadoras em breve foi revogada a pretexto da supressão dos direitos dos súditos ortodoxos e protestantes na Polônia advogada pelos Czar toryskis As tropas russas intervieram em 1767 acabando por suscitar uma reação da nobreza contra a dominação estrangeira sob a bandeira da intolerância religiosa e não da reforma política A Confederação de Bar revoltouse em 1768 contra Poniatowski e a Rússia em nome do exclusivismo católico Os camponeses ucranianos aproveitaram a opor tunidade para levantarse contra os seus senhores poloneses enquanto as tropas confederadas recebiam auxílio da França e da Turquia Ao fim de quatro anos de luta a Confederação foi esmagada pelos exérci tos do czar Do imbróglio diplomático entre a Rússia a Prússia e a Áustria em torno desta questão resultou a Partilha da Polônia em 1772 um esquema destinado a reconciliar as três cortes A monarquia Habsburgo tomou a Galícia a monarquia Romanov ficou com a maior parte da Rússia Branca a monarquia Hohenzollern adquiriu a Prússia ocidental e com ela o prêmio do controle absoluto do litoral do sul do Báltico A Polônia perdeu 30 por cento de seu território e 35 por cento de sua população No aspecto físico era ainda mais extensa que a Es panha Mas a prova de sua impotência era agora irrefutável O impacto causado pela Primeira Partilha deu origem tardia mente a uma maioria no seio da nobreza favorável a uma revisão da estrutura do Estado O crescimento de uma burguesia urbana em Var sóvia que quadruplicou em tamanho durante o reinado de Ponia towski contribuiu para a secularização da ideologia da classe fundiá ria Em 178891 conseguiuse um precário consentimento da Prússia para um novo arranjo constitucional nos seus últimos momentos de vida a Sejm votou a abolição do liberum veto e a supressão do direito de confederação o estabelecimento de uma monarquia hereditária a criação de um exército de 100 mil homens e a instauração de um im posto territorial ao lado de privilégios um pouco mais amplos30 A quelas coisas que chamamos os bens móveis do universo à parte o trigo de suas terras Uns poucos senhores possuem províncias inteiras eles oprimem os camponeses para obter uma quantidade maior de trigo a ser vendido no exterior a fim de granjearem a si pró prios os objetos requeridos por seu luxo Se a Polônia não comerciasse com outras na ções o seu povo seria mais felizeljprif das Low Paris 1961 II p 23 30 Para a Constituição de 1791 ver R F Leslie Polish Politics and the Revo lution ofNovember830 Londres 1956 pp 278 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 297 Rússia retribuiu rápida e condignamente Em 1792 os soldados de Catarina II invadiram o país na retaguarda de uma frente de magnatas da Lituânia e a Segunda Partilha foi executada A Polônia perdeu em 1793 três quintos dos territórios que lhe restavam e a sua população viuse reduzida a 4 milhões de almas desta vez a Rússia ficou com a parte do leão com a anexação de todo o resto da Ucrânia enquanto a Prússia absorvia a Poznânia O ato final da Rzeczpospolita teve lugar dois anos depois em meio a uma confusão e explosão apocalípticas de épocas e de classes Em 1794 eclodiu uma insurreição nacionalista e liberal chefiada por Kosciuszko um veterano da Revolução Americana e cidadão da República francesa a massa da nobreza alistouse numa causa que reclamava a emancipação dos servos e reunia as massas ple béias da capital misturando as correntes contrárias do sarmatianismo e do jacobinismo num despertar confuso e desesperado da nobreza sob o impacto combinado do absolutismo estrangeiro no Leste e da revolu ção burguesa no Ocidente O radicalismo da Insurreição Polonesa de 1794 decretou a sentença de morte do Estado szlachta Para as cortes legitimistas que a cercaram era como se subitamente se visse subir ao longo do Vístula o fulgor refletido e longínquo dos incêndios do Sena As ambições territoriais dos três impérios vizinhos adquiriram então a urgência ideológica de uma missão contrarevolucionária Depois que Kosciuszko rechaçou um ataque prussiano a Varsóvia Suvorov foi en viado com um exército russo para apagar a revolta A derrota da rebe lião marcou o fim da independência da Polônia Em 1795 o país desa pareceu por completo sob a Terceira Partilha As razões internas pelas quais a nobreza particularmente capri chosa e turbulenta que governava a Polônia foi incapaz de consumar um absolutismo nacional estão sem dúvida por explorar3Í propuse mos aqui apenas alguns elementos para uma explicação Mas o Estado feudal que ela criou fornece uma singular elucidação das razões pela quais o absolutismo era a forma natural e normal de poder da classe 31 A tutela política estrangeira era certamente mais aceitável para a szlachta devido à relativa ausência de violação dos interesses econômicos da nobreza enquanto classe Por outro lado parece claro também que a nobreza tolerou por tanto tempo a erosão progressiva da independência nacional em parte porque fracassara em construir o seu próprio Estado centralizado Se tivesse existido um absolutismo polonês de qualquer espécie a partilha teria privado um importante setor da nobreza de suas posições na máquina do Estado tão importantes e lucrativas para as outras aristocracias da Eu ropa A reação à perspectiva de anexação teria sido então mais pronta e vigorosa A mudança final na disposição e nos objetivos que esteve por trás da tardia tentativa de criar uma monarquia reformada no século XVIII também exige uma compreensão mais aprofundada para uma explicação satisfatória da história da szlachta 298 PERRY ANDERSON nobre após o fim da Idade Média Com efeito uma vez dissolvida a cadeia integrada de suseranias mediatizadas que constituía o sistema político medieval a nobreza não tinha outra fonte de unificação A aristocracia achavase habitualmente dividida em uma hierarquia ver tical de graus em contradição estrutural com qualquer distribuição horizontal de representação tal como a que mais tarde caracterizaria os sistemas políticos burgueses Impunhase portanto um princípio ex terno de unidade para mantêla coesa a função do absolutismo foi precisamente impor de fora à nobreza uma rigorosa ordem formal Daí a possibilidade de conflitos constantes entre os governantes absolutistas e as suas aristocracias o que como vimos ocorreu em toda a Europa Tais tensões estavam inscritas na própria natureza da relação solidária entre ambos desde que no seio da classe nobre era impraticável uma mediação imanente de interesses O absolutismo somente poderia go vernar para a aristocracia se se mantivesse acima dela Apenas na Polônia a dimensão paradoxal da szlachta e a ausência formal de títu los em seu interior produziram no seio da nobreza uma caricatura autodestrutiva de um sistema propriamente representativo A incom patibilidade entre ambos foi grotescamente demonstrada pelo liberum veto Na verdade dentro de um tal sistema não havia motivos para que um membro da nobreza renunciasse a sua soberania as sejmiki provin ciais podiam ser dissolvidas por um simples cavaleiro e a Sejm por um delegado de uma única sejmik O clientelismo informal não podia for necer um substituto adequado do princípio de unidade A anarquia a impotência e as anexações eram os resultados inevitáveis A república nobiliária foi finalmente eliminada pelos absolutismos vizinhos Deve se a Montesquieu o epitáfio desta experiência alguns anos antes de seu fim Sem monarquia não há nobreza sem nobreza não há mo narquia Áustria Em certo sentido o Estado austríaco representou o oposto consti tucional da Comunidade polonesa Com efeito ele se baseou de forma mais completa e exclusiva no princípio de organização dinástica do que qualquer outro da Europa A linhagem Habsburgo teria poucos rivais quanto à duração de seu domínio conservou o poder na Áustria de modo ininterrupto do final do século XIII ao princípio do século XX E o que é mais significativo a única unidade política existente entre as diversas regiões que viriam a formar o império austríaco era a identi dade da dinastia que as governava O Estado Habsburgo foi sempre de modo incomparável um Hausmacht familiar um agrupamento de heranças dinásticas sem um denominador comum étnico ou territorial A monarquia atingiu aí a sua mais pura ascendência E todavia por essa mesma razão o absolutismo austríaco nunca conseguiu criar uma estrutura estatal coerente e integrada semelhante à dos seus rivais prussiano e russo Em certa medida sempre representou uma forma híbrida com elementos ocidentais e orientais devido às divisões políticas e territoriais de suas partes constituintes dispostas ao longo da linha entre o Báltico e o Adriático no centro geométrico da Europa Assim em alguns aspectos importantes o caso austríaco situase na interseção de uma tipologia regional do absolutismo europeu É esta posição histórica e geográfica particular que empresta um interesse es pecial ao desenvolvimento do Estado Habsburgo a Europa centrar produziu com propriedade um absolutismo de características formal mente intermediárias cuja divergência em relação às normas estritas 300 PERRY ANDERSON do Ocidente ou do Leste confirma e especifica a sua polaridade As estruturas heteróclitas do absolutismo austríaco refletem a natureza compósita dos territórios que ele presidia e que nunca foi capaz de reduzir de maneira duradoura a uma estrutura política única E no entanto ao mesmo tempo tal combinação de motivos não impediu uma tonalidade dominante O império austríaco que se formou ao longo do século XVII revelouse apesar das aparências pouco propenso à fissão porque continha uma uniformidade social básica capaz de tornar as suas várias partes compatíveis entre si Em dife rentes formas e matizes a agricultura servil predominava no conjunto dos territórios Habsburgo A grande maioria das populações campone sas governadas pela dinastia tchecos eslovacos húngaros alemães ou austríacos estavam atadas ao solo com dever de serviços aos seus senhores e sujeitas a jurisdições senhoriais Os camponeses de cada uma dessas terras não formavam uma massa rural indiferenciada re gistravam diferenças de condição de importância considerável Mas não restam dúvidas quanto ao predomínio absoluto da servidão no seio do império austríaco na época da ContraReforma quando pela pri meira vez este assumiu uma forma duradoura Portanto devese classi ficar taxonomicamente o Estado Habsburgo na sua configuração ge ral como um absolutismo do Leste na prática como veremos as suas peculiares características administrativas não escondiam a sua verda deira descendência A família Habsburgo era natural da Alta Renânia e atingiu proe minência pela primeira vez em 1273 quando o conde Rodolfo de Habs burgo foi eleito imperador pelos príncipes alemães ansiosos por impe dir a ascensão do rei premíslida da Boêmia Ottokar II que anexara a maior parte dos territórios austríacos a leste e era o principal preten dente à dignidade imperial Os domínios Habsburgo concentravamse ao longo do Reno em três blocos separados em Sundgau a oeste do rio Breigau a leste e Aargau ao sul depois da Basiléia Rodolfo I conseguiu mobilizar uma coligação imperial para atacar Ottokar II que foi derrotado em Marchfeld cinco anos mais tarde a linhagem Habsburgo adquiriu assim o controle sobre os ducados austríacos muito mais vastos que os seus territórios renanos transferindo para aí a sua principal base Os objetivos estratégicos da dinastia eram agora duplos conservar o domínio da sucessão imperial com toda a sua in fluência política e ideológica dentro da Alemanha confusa mas consi derável e consolidar e ampliar a base territorial de seu poder Os du cados austríacos recentemente conquistados formavam um bloco subs tancial de Erblande hereditárias que faziam dos Habsburgos pela pri LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 301 meira vez uma força importante no seio da política alemã Mas eles permaneciam de certo modo excêntricos ao Reich a via óbvia de en grandecimento seria associar os novos bastiões austríacos às velhas ter ras renanas a fim de constituir um único bloco geográfico por todo o sul da Alemanha com acesso direto aos centros da riqueza e do poder imperiais Para garantir a sua eleição Rodolfo I fizera promessas de nãoagressão na Renânia1 mas todos os primeiros governantes Habs burgo se esforçaram vigorosamente pela expansão e unificação de seus domínios No entanto esta primeira tentativa histórica de construção de um Estado germânico ampliado encontrou pela frente um obstáculo fatal No meio do caminho entre as terras da Renânia e as da Áustria havia os cantões suíços A intromissão Habsburgo nesta regiãochave provocou uma resistência popular que derrotou repetidas vezes os exér citos austríacos e culminou na criação da Suíça como uma confedera ção autônoma totalmente desvinculada do império A peculiaridade e o interesse da revolta suíça residem em que ela aglutinou dois elementos sociais do complexo inventário do feudalismo europeu que em nenhuma outra parte se acharam reunidos de forma similar as montanhas e as cidades Foi esse também o segredo de seu êxito singular num século no qual em toda parte as revoltas campone sas eram derrotadas Desde os primeiros tempos da Idade Média como vimos o modo de produção feudal teve sempre uma difusão topográ fica bastante desigual nunca penetrou nas terras altas na mesma ex tensão em que conquistou as planícies e os pântanos As regiões mon tanhosas em toda a Europa ocidental sempre constituíram redutos remotos da pequena propriedade camponesa alodial ou comunal cujo solo exíguo ou pedregoso oferecia relativamente poucos atrativos para o cultivo senhorial Os Alpes suíços a cadeia de montanhas mais elevada do continente eram naturalmente um exemplo acabado deste padrão Não obstante eles também se situavam ao longo de uma das principais rotas de comércio terrestres da Europa entre as duas regiões urbanas densamente povoadas do sul da Alemanha e do norte da Itália Por tanto os seus vales estavam pontílhados de centros comerciais locais que tiravam vantagem de uma situação estratégica entre os altos pas sos O cantonalismo suíço do século XIV foi o produto da confluência dessas forças Inicialmente influenciada pelo exemplo das vizinhas co munas da Lombardia na sua luta contra o império a revolta suíça con tra os Habsburgos reuniu montanheses rurais e burgueses urbanos 1 A Wandruszka The Houseof Habsburg Londres 1964 pp 401 302 PERRY ANDERSON numa combinação vitoriosa A direção política coube aos três cantões florestais cuja infantaria camponesa desbaratou a cavalaria senhorial austríaca pouco à vontade nos estreitos vales na batalha de Morgar ten em 1315 Em conseqüência a servidão foi abolida no Uri no Schwyz e no Unterwalden no espaço de uma década2 Em 1330 houve uma revolução municipal em Lucerna e em 1336 em Zurique ambas voltadas contra os patriciados próHabsburgo No ano de 1351 selou se uma aliança formal entre essas duas cidades e os cantões florestais Finalmente as suas tropas combinadas repeliram e derrotaram os exér citos Habsburgo em Sempach e Nafels em 1386 e 1388 Em 1393 nasceu a Confederação Suíça a única república independente da Eu ropa3 Os camponeses lanceiros suíços tornarseiam a força militar de elite da arte bélica do final da Idade Média e do início da época mo derna pondo fim à longa predominância da cavalaria com as suas vitórias sobre os cavaleiros borgonheses reunidos em auxílio à Áustria no século seguinte e inaugurando as novas proezas da infantaria merce nária Por volta do início do século XV a dinastia Habsburgo perdera para os suíços todos os seus territórios situados além da curva do Reno e fracassara em unir as suas possessões em Sundgau e Breisgau4 As suas províncias renanas não eram mais que enclaves dispersos simbolica mente rebatizadas de Vorderòsterreich e administradas a partir de Inns bruck Toda a orientação da dinastia desviouse então para o leste Entretanto na Áustria propriamente dita o poder Habsburgo não encontrara os mesmos infortúnios O Tirol foi anexado em 1363 o título de arquiduque foi adquirido quase à mesma época os Estados que apareceram a partir de 1400 foram mantidos sob razoável con trole após alguns conflitos intensos Por volta de 1440 a dignidade imperial perdida no início do século XIV após as primeiras derrotas 2 W Martin A History ofSwitzerland Londres 1931 p 44 3 O singular aparecimento da plebéia Confederação Suíça no seio da Europa aristocrática e monarquísta traz à luz uma característica importante e geral da organi zação política do fim da Idade Média o mesmo parcelamento da soberania que existia ao nível nacional podia também operar em um plano internacional por assim dizer permitindo brechas e interstícios anômalos no sistema global de suserania feudal As comunas italianas já o tinham demonstrado em um plano municipal ao sacudirem a autoridade imperial Os cantões suíços alcançaram a independência de toda uma região através de sua confederação uma anomalia que só era possível num sistema político como o feudalismo europeu A dinastia Habsburgo jamais os perdoou quatro séculos mais tarde a Suíça ainda era para Maria Tereza um refúgio de dissolutos e crimi nosos 4 HF Feine Die Territorialbildung der Habsburger im deutschen Südwes tenZeitschriftderSavignyStiftungfürRechtsgeschichteGerm Abt LXVII 1950 pp 272 277 306 o mais extenso estudo recente sobre o tema LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 303 na Suíça foi recuperada pela dinastia com o colapso do poder Lu xemburgo na Boêmia e nunca mais voltaria a escapar demasiado ao seu controle Em 1477 uma aliança matrimonial com a Casa de Bor gonha aliada da Áustria na luta contra a Suíça assegurou tempo rariamente o prêmio inesperado do FrancheComté e dos Países Bai xos Não obstante antes de passarem para a órbita da Espanha na época de Carlos V os domínios borgonheses deixaram talvez à Casa da Áustria a inspiração que lhe permitiria dar os primeiros passos em dire ção à modernidade administrativa Maximiliano I cercado por uma corte de borguinhões e holandeses criou um erário centralizado em Innsbruck e estabeleceu as primeiras agências conciliares de governo na Áustria Um ataque final à Suíça revelouse infrutífero mas a Gorí zia foi absorvida nas fronteiras do sul enquanto Maximiliano perse guia uma avançada política externa italiana e imperial Foi contudo o seu sucessorFernando I cujo reinado subitamente demarcou o vasto espaço que caberia futuramente ao poder Habsburgo na Europa cen tral que lançou os fundamentos da singular estrutura estatal que ha veria de erigirse nessa base Em 1526 o rei jagelônio da Boêmia e da Hungria Luís II foi derrotado e morto em Mohacs diante do avanço dos exércitos otomanos tropas turcas devastaram a maior parte da Hungria impelindo o poder do sultanato para bem dentro da Europa central Fernando reivindicou com sucesso as monarquias vagas refor çando os seus laços matrimoniais com a dinastia jagelônia com a ameaça turca no que dizia respeito às nobrezas tcheca e magiar Na Morávia e na Silésia as duas províncias mais remotas do Reino da Boê mia Fernando foi reconhecido como monarca hereditário mas os Es tados da Hungria e da Boêmia recusaramlhe categoricamente tal título e obtiveram do arquiduque o reconhecimento expresso da sua quali dade de príncipe eletivo em seus territórios Fernando ademais teve que travar uma longa luta tripartida contra o pretendente da Transil vânia Zapolyai e os turcos que terminou em 1547 com a partilha da Hungria em três zonas uma região ocidental governada pelos Habs burgos o centro ocupado pelos turcos e um principado transilvano na re gião oriental desde então vassalo do Estado otomano A guerra contra os turcos na planície do Danúbio arrastouse por mais uma década de 1551 a 1562 ao longo de todo o século XVI a Hungria custou à dinastia Habsburgo um esforço de defesa superior às receitas que aí recolhia5 Não obstante com todas as suas limitações internas e externas p 38 5 V S Mamatey Riseofthe Habsburg Empire 15261815 Nova Iorque 1971 304 PERRY ANDERSON os novos domínios representavam um imenso aumento potencial do poder internacional Hàbsburgo Fernando esforçouse com persistên cia em desenvolver a autoridade monárquica em todos os seus territó rios criando novas instituições dinásticas e centralizando as já existen tes Os vários Landtage austríacos mostraramse relativamente dóceis nesta fase e asseguraram ao domínio Hàbsburgo uma base política relativamente segura no próprio arquiducado Os Estados da Boêmia e da Hungria não foram tão complacentes e frustraram os planos de Fer nando de estabelecer uma assembléia suprema que abarcasse todos os seus domínios capaz de impor uma moeda única e de lançar impostos uniformes Mas um conjunto de órgãos governamentais sediados em Viena aumentou grandemente o alcance da dinastia entre eles a Hof kanzlei Chancelaria da Corte e a Hofkammer Erário da Corte A mais importante destas instituições era o Conselho Privado Imperial criado em 1527 que em breve se tornou o eixo de todo o sistema ad ministrativo Hàbsburgo na Europa central6 As origens e as orientações imperiais deste conselho eram um indício da permanente importân cia das ambições germânicas no Reich para a Casa da Áustria Fer nando tentou favorecêlas reavivando o Conselho Áulico Imperial como a mais alta corte de justiça do império diretamente controlada pelo imperador Mas uma vez que a Constituição imperial fora reduzida pelos príncipes alemães a um arcabouço legislativo e judicial sem con teúdo privado de qualquer autoridade executiva ou de coerção os ganhos políticos foram limitados7 Muito mais importante a longo prazo foi a introdução de um Conselho de Guerra permanente o Hof kriegsrat criado em 1556 e desde o início mais voltado para a frente oriental das operações Hàbsburgo do que para a sua frente ociden tal Planejado para organizar a resistência militar aos turcos o Hof kriegsrat foi substituído por um Conselho de Guerra local em Graz que coordenava as fronteiras militares especiais criadas ao longo dos limites do sudeste nas quais se instalaram colônias militares de aventu reiros Grenzers da Sérvia e da Bósnia8 O poderio otomano não se en 6 H F Schwarz The Imperial Privy Council m the Seventeenth Century pp 5760 7 Ver a análise em G D Ramsay The Austrian Habsburgs and the Empíre The New Cambrídge Modem History III pp 32930 8 Para um relato sobre a origem dos grenzers ver Gunther Rothenburg The Austrian Military Border in Croácia 15221747 Urbana 1960 pp 2965 Os grenzers além de seu papel na defesa contra os turcos foram utilizados como arma da dinastia contra a nobreza local da Croácia que sempre se mostrou extremamente hostil à pre sença deles nas áreas fronteiriças LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 305 fraquecera A partir de 1593 a Guerra dos Treze Anos assolou a Hun gria ao seu final após sucessivas devastações do país que deixaram a agricultura magiar em ruínas e o campesinato na servidão as tropas Hàbsburgo tinham sido colocadas em xeque pelos turcos Na virada do século XVII a Casa da Áustria registrara mode rados avanços na construção de seu Estado mas a unidade política das suas possessões ainda era muito tênue O domínio dinástico gozava de uma situação jurídica diversa em cada uma delas e nenhuma institui ção comum à parte o Conselho de Guerra atuava para mantêlas uni das Os próprios territórios austríacos só em 1602 foram pela primeira vez declarados indivisíveis As aspirações imperiais dos governantes Hàbsburgo não constituíam um substituto para a integração prática dos territórios que lhes deviam vassalagem para todos os efeitos a Hungria ficava fora do Reich de forma que não havia sequer uma relação inclusiva entre o reino do império e as terras do imperador Além disso na última metade do século XVI a oposição latente nos vários Estados da aristocracia nos domínios Hàbsburgo recebera um novo e acentuado alento com a eclosão da Reforma Com efeito en quanto a dinastia mantevese como um pilar da Igreja romana e da ortodoxia tridentina a maioria da nobreza de quase todas as suas pos sessões aderiu ao protestantismo De início o grosso da classe fundiá ria tcheca há muito habituada à heresia local converteuse ao lutera nismo a seguir a nobreza magiar adotou o calvinismo e finalmente a própria aristocracia austríaca no coração do poder Hàbsburgo foi conquistada para a religião reformada Por volta da década de 1570 as maiores famílias nobres dnsErblande eram protestantes Dietrichstein Starhemberg Khevenhüller Zinzendorf9 Esta evolução ameaçadora prenunciava seguramente conflitos mais profundos A iminente subida de Fernando II ao trono de Viena em 1617 desencadeou portanto mais do que uma explosão local a Europa em breve se viu mergulhada na Guerra dos Trinta Anos Com efeito Fernando educado pelos je suítas bávaros tinha sido um feroz e eficaz estandarte da ContraRe forma como duque da Estíria a partir de 1595 inflexível centralização administrativa e repressão religiosa severa foram as marcas registradas de seu regime provincial em Graz O absolutísmo espanhol era o fiador internacional de sua candidatura no seio da família Hàbsburgo à su cessão dinástica no império e na Boêmia truculentos generais e diplo matas hispânicos dirigiram desde o início a sua corte Caprichosos e 9 Mamatey Rise ofthe Habsburg Empire p 40 306 PERRY ANDERSON impacientes os Estados da Boêmia aceitaram inicialmente Fernando como rei para depois ao primeiro sinal de intolerância religiosa nas terras tchecas levantarem a bandeira da rebelião A Defenestração de Praga abriu a mais ampla crise do sistema estatal Habsburgo na Europa central A autoridade dmástica entrou em colapso na própria Boêmia de forma ainda mais perigosa os Es tados da Hungria e da Áustria iniciaram uma guinada no sentido de se aproximarem dos Estados da Boêmia conjurando o espectro de um levante geral da nobreza insuflado pelo particularismo e pelo protes tantismo latentes Nesta emergência a causa Habsburgo foi salva pela conjunção de dois fatores decisivos A aristocracia tcheca após a histó rica repressão dos movimentos populares hussitas na Boêmia não dis punha de condições para congregar qualquer entusiasmo social pro fundo por sua revolta no seio das massas rurais e urbanas cerca de dois terços da população era protestante mas em nenhum momento o zelo religioso contribuiu para soldar um bloco entre as classes diante do contraataque da Áustria do tipo do que caracterizou a luta dos ho landeses contra a Espanha Os Estados da Boêmia achavamse politica e socialmente isolados a Casa da Áustria não A solidariedade mili tante de Madri para com Viena mudou o curso dos acontecimentos à medida que as armas os aliados e o dinheiro da Espanha eram mobi lizados para esmagar o secessionismo tcheco constituindo na verdade a base de todo o esforço de guerra de Fernando II O resultado foi a batalha da Montanha Branca que destruiu toda a antiga nobreza da Boêmia A década seguinte presenciou os exércitos imperiais coman dados por Wallenstein marcharem vitoriosamente sobre o Báltico es tendendo pela primeira vez o poder Habsburgo até o norte da Alema nha e acenando com a possibilidade de um império germânico reno vado e centralizado sob o domínio da Casa da Áustria A intervenção sueca na década de 1630 destruiu tal ambição o impulso agressivo da política imperial Habsburgo perdeuse para sempre A Paz de Vestfá lia que pôs fim à Guerra dos Trinta Anos consagrou o veredicto do conflito militar A Casa da Áustria não haveria de dominar o império mas adquirira a supremacia na Boêmia a estaca inicial do conflito As conseqüências desse acordo ditaram toda a estrutura interna do poder Habsburgo no seio dos territórios dinásticos da Europa danubiana 10 O próprio Fernando II declarou que o enviado espanhol Onate era o ho mem cuja ajuda franca e amistosa resolvia todos os assuntos da família Habsburgo Para um relato do papel político decisivo desempenhado por Onate na crise ver Bohdan Chudoba Spain and the Empire 15291643 Chicago 1952 pp 2208 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 307 Graças à sua vitória na Boêmia o Hofburg efetivara um enorme avanço interno na direção do absolutismo Em 1627 Fernando II pro mulgou uma nova constituição para os territórios conquistados na Boê mia A Verneuerte Landesordnung fez do governo Habsburgo uma monarquia hereditária não mais sujeita a eleição converteu todos os funcionários locais em agentes do rei impôs o catolicismo como reli gião única e restabeleceu a representação do clero nos Estados investiu a dinastia com privilégios jurídicos supremos e elevou o alemão ao nível de idioma oficial equivalente ao tcheco A Snem não foi abolida e a necessidade de seu consentimento para o lançamento de novos im postos foi confirmada Mas na prática a sua sobrevivência não colo cou obstáculos à implantação do absolutismo na Boêmia As assem bléias locais outrora órgão vital da política dos proprietários de terra desvaneceramse a partir da década de 1620 enquanto a participação nos Estados declinava rapidamente à medida que a Snem perdia im portância política Tal processo foi facilitado pelas convulsões provo cadas pela guerra na composição e no papel sociais da própria nobreza A reconquista militar da Boêmia fora acompanhada pela prescrição política do grosso da velha classe senhorial e pela expropriação econô mica de seus domínios Mais da metade das herdades feudais da Boê mia foram confiscadas depois de 162012 este imenso botim agrário foi distribuído entre uma nova e heterogênea aristocracia de fortuna for mada por capitães expatriados e sicários emigrados da ContraRefor ma No final do século XVII apenas um quinto ou um oitavo da no breza tinha origem antiga alemã ou antiga tcheca apenas cerca de oito ou nove das linhagens tchecas mais importantes que tinham permane cido fiéis à dinastia por razões religiosas sobreviveram na nova or dem13 A grande maioria da aristocracia boêmia era agora de origem estrangeira uma mistura de italianos Piccolomini alemães Schwar zenberg austríacos Trautmansdorff eslovenos Auersperg valões Bucquoy lorenos Desfours ou irlandeses Taaffe Pelo mesmo golpe a propriedade fundiária sofreu uma notável concentração os senhores e os clérigos controlavam quase três quartos de todo o territô 11 Para a Verneuerte Landesordnung ver R Kerner Bohemia in the Eight eenth Century Nova Iorque 1932 pp 1722 12 J Polisensky The Thirty YearsWar Londres 1971 pp 1434 os domínios confiscados eram em média muito mais vastos que os que escaparam à expropriação assim a proporção de terra que efetivamente mudou de mãos era consideravelmente maior que o número de herdades propriamente ditas 13 H G Schenk Áustria em GoodwinOrg TheEuropean Nobiliiy in the Itfíh Century p 106 Kerner Bohemia in the Eighteenth Century pp 6771 308 PERRY ANDERSON rio ao passo que a parcela da antiga pequena nobreza despencou de um terço para um décimo Da mesma forma piorou a sorte dos campo neses Já atados à terra e enfraquecidos pela guerra estes eram agora sobrecarregados com crescentes obrigações em serviços as prestações médias do robot chegaram a três dias por semana enquanto mais de um quarto dos servos trabalhava todos os dias exceto aos domingos e dias santos para seus senhores14 Além disso se antes da Guerra dos Trinta Anos os proprietários de terra da Boêmia ao contrário de seus homólogos poloneses e húngaros tinham pago impostos ao lado de seus vilões depois de 1648 a nova nobreza cosmopolita adquiriu na prá tica a imunidade fiscal desviando virtualmente toda a carga fiscal para as costas de seus servos Tal transferência naturalmente facilitou o an damento das deliberações entre a aristocracia e a monarquia nos Es tados a partir daí a dinastia limitavase a requisitar a estes somas glo bais deixandolhes a tarefa de fixar e coletar os impostos que satis fizessem suas demandas Com esse sistema as pressões fiscais podiam ser facilmente aumentadas já que orçamentos mais elevados signifi cavam de modo geral que os Estados simplesmente concordavam em aumentar os encargos que eles próprios impunham a seus ar rendatários e súditos15 A Boêmia sempre fora de longe o mais lu crativo domínio das terras Habsburgo e o novo poder financeiro da monarquia sobre a região fortalecia significativamente o absolutismo vienense Entretanto nas próprias Erblande a administração centralizada e autocrática fazia consideráveis progressos Fernando II criara a Chan celaria da Corte austríaca uma versão ampliada do seu instrumento favorito de poder na Estíria a fim de coroar a máquina de governo do arquiducado Este organismo conseguiu gradual ascendência entre os conselhos de Estado em detrimento do Conselho Privado Imperial cuja importância decresceu inevitavelmente após a relutante retirada do poder Habsburgo da Alemanha Em 1650 fato de vital importância foi criado pela primeira vez um exército permanente de cerca de 50 mil homens dez regimentos de infantaria e nove de cavalaria na esteira de Vestfália desde então a conduta dos Estados austríacos e boêmios foi inelutavelmente temperada pela presença desta força ar mada Ao mesmo tempo o absolutismo Habsburgo realizou um feito cultural e ideológico único a Boêmia a Áustria e a Hungria as três 14 Polisensky The Thirty Years War pp 142 246 Betts The Habsburg Lands The New Cambridge Modem History V Cambridge 1969 pp 4801 15 J Stoye The SiegeofVienna Londres 1964 p 92 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 309 partes constituintes de seu domínio retornaram progressivamente ao seio da Igreja de Roma O protestantismo foi reprimido na Estíria na década de 1590 as religiões reformadas foram banidas da Baixa Áus tria em 1625 da Boêmia em 1627 e da Alta Áustria em 1628 Na Hun gria uma solução autoritária revelouse impossível mas os primazes húngaros Pazmány e Lippay conseguiram reconverter a maior parte dos grandes senhores magiares Os senhores e os camponeses da Áus tria as cidades da Boêmia e os proprietários de terra da Hungria aca baram por ser igualmente recatolicizados pela perícia e energia da ContraReforma sob os auspícios da dinastia Habsburgo um fato sem precedentes em qualquer outra parte do continente O vigor de cruzada do catolicismo danubiano parece ter encontrado a sua apoteose com a triunfante libertação de Viena das mãos dos turcos em 1683 e as vi tórias subseqüentes que varreram o poder otomano da Hungria e da Transilvânia e recuperaram para a cristandade territórios há muito perdidos expandindo notavelmente rumo ao leste o domínio Habs burgo O sistema militar que alcançou tais conquistas agora conside ravelmente ampliado mostrouse capaz também de desempenhar um importante papel na aliança que refreou o avanço Bourbon no Reno A Guerra da Sucessão Espanhola demonstrou o novo peso interna cional da Casa da Áustria A Paz de Utrecht a contemplou com a Bélgica e a Lombardia Todavia o ápice do poder austríaco subitamente atingido logo foi ultrapassado Nenhum outro absolutismo europeu teve uma fase tão breve de confiança e iniciativa militares Iniciada em 1683 estava finda em 1718 com a curta tomada de Belgrado e a Paz de Passarowitz A partir de então podese dizer que a Áustria praticamente não mais venceu uma guerra com um Estado rival outra vez16 Uma interminável série de derrotas estendeuse lugubremente pelos dois séculos seguin tes apenas amenizadas pela inglória participação em vitórias alheias Tal inércia externa era um índice do impasse e da imperfeição interna do absolutismo austríaco mesmo no auge de seu poder As realizações mais grandiosas e características do domínio Habsburgo na Europa central consistiram no agrupamento de territórios díspares sob uma mesma cúpula dinástica e na reconversão dos mesmos ao catolicismo Não obstante os triunfos ideológicos e diplomáticos da Casa da Áustria o seu instinto felino em matéria de religião e de matrimônios constituíram bons substitutos de avanços burocráticos e militares mais ccçflo 16 As suas campanhas contra o Piemonte em 1848 constituiriam a única ex 310 PERRY ANDERSON expressivos A influência dos jesuítas na corte de Viena durante a época da ContraReforma foi sempre muito maior que na corte irmã de Ma dri onde o fervor católico estava geralmente associado a um antipa pismo vigilante Conselheiros e agentes eclesiásticos permearam todo o sistema administrativo Habsburgo na Europa central durante o século XVII executando a maior parte das tarefas políticas cruciais para a época a sua obra maior foi a construção do bastião tridentino na Estí ria sob Fernando II em muitos aspectos a experiênciapiloto do absolutismo austríaco Do mesmo modo a recuperação da classe dos grandes senhores da Hungria para a fé romana sem o que teria sido provavelmente impossível a manutenção da suserania Habsburgo sobre a Hungria foi complementada pelas hábeis e pacientes missões ideo lógicas do clero Mas tal sucesso também tinha seus limites As uni versidades e escolas católicas reconquistaram a nobreza húngara ao protestantismo mas sob o preço de manter e respeitar cuidadosa mente os privilégios corporativos tradicionais da nação húngara que asseguravam à Igreja o controle espiritual mas deixavam o Estado en volvido em incômodos impedimentos A confiança que os Habsburgos depositavam internamente no clero tinha portanto o seu preço por mais astutos que fossem os padres nunca podiam ser funcionalmente equivalentes aoofficiers oupomeshchiki como elementos constitutivos do absolutismo Viena não se tornaria um centro metropolitano da venda de cargos ou de uma nobreza de serviço sua marca registrada continuou a ser um clericalismo maleável e uma administração desor denada De modo similar o extraordinário sucesso da política matrimo nial da dinastia Habsburgo sempre tendia a superar a sua capacidade marcial sem em última análise compensála A facilidade nupcial com que foram inicialmente adquiridas a Hungria e a Boêmia conduziu à dificuldade coercitiva de impor o centralismo austríaco na primeira e à eventual impossibilidade de reforçálo na segunda em última instân cia a diplomacia não podia substituir os armamentos E todavia a história militar do absolutismo austríaco foi sempre um tanto defei tuosa e anômala Os três maiores êxitos da dinastia foram a aquisição inicial da Boêmia e da Hungria em 1526 a sujeição da Boêmia em 1620 e a derrota dos turcos em 1683 que resultou na reconquista da Hungria e da Transilvânia No entanto a primeira foi o resultado negativo da derrota jagelônia em Mohacs e não o produto de uma vitória Habs burgo os turcos venceram a mais importante batalha do absolutismo austríaco em seu lugar A vitória da Montanha Branca foi também em larga medida uma conquista bávara da Liga Católica por outro lado LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 3LI as tropas reunidas sob o comando imperial incluíam contingentes ita lianos valoes flamengos e espanhóis17 A própria libertação de Viena foi basicamente conseguida pelos exércitos polacos e alemães depois que o imperador Leopoldo I tinha abandonado precipitadamente a ca pital as tropas Habsburgo representavam apenas um sexto da força que deu fama a Sobieski em 168318 Esta confiança sempre renovada nos exércitos aliados encontrou o seu curioso complemento no próprio generalato austríaco Com efei to a maior parte dos comandantes militares que serviram a Casa da Áustria até o século XIX eram empreendedores independentes ou aven tureiros estrangeiros Wallenstein Piccolomini Montecuccoli Eu gene Laudun Dorn O exército de Wallenstein foi talvez em termos relativos o conjunto mais impressionante a arvorar as cores da Áustria e no entanto era de fato uma máquina de guerra privada criada por seu general tcheco que a dinastia contratou mas não controlou daí o assassinato de Wallenstein Eugene ao contrário era totalmente leal a Viena mas um saboiano sem raízes nos territórios Habsburgo o ita liano Montecuccoli e o renano Dorn eram exemplos menores do mesmo caso A utilização constante de mercenários estrangeiros era evidente mente um traço normal e universal do absolutismo mas tratavase de soldados rasos não de oficiais no comando geral das forças armadas do Estado Estes eram naturalmente recrutados entre a classe dominante dos territórios em questão a nobreza local Não obstante nos domí nios Habsburgo não havia uma classe senhorial única mas vários gru pos fundiários territorialmente distintos Foi esta falta de uma aristo cracia unificada que contou na definição da capacidade total de com bate do Estado Habsburgo As nobrezas feudais como vimos nunca foram de caráter primordialmente nacional podiam ser transplan tadas de um país para outro e cumprir o seu papel como classe fun diária sem possuir necessariamente qualquer vínculo étnico ou lingüís tico em comum com a população que subjugavam A separação cul tural configurada numa barreira lingüística podia muitas vezes ser pre servada para realçar a distância natural entre governantes e governa dos Por outro lado a heterogeneidade idiomática ou étnica dentro da aristocracia fundiária de uma mesma organização política feudal constituía de modo geral uma fonte de fragilidade e desintegração potenciais pois tendia a minar a solidariedade política da própria classe dominante As características acidentais e desordenadas do Es 17 Chudoba Spain andtheEmpire pp 2478 18 Stoye The Siege of Vienna pp 245 257 312 PERRY ANDERSON tado Habsburgo derivaram sem dúvida e em grande medida do cará ter compósito e irreconciliável das nobrezas que o constituíam De tal modo os inconvenientes da diversidade aristocrática estavam predizi velmente evidentes no setor mais sensível da máquina de Estado o exército Na ausência de uma nobreza socialmente unitária os exérci tos Habsburgo raramente atingiriam o desempenho de seus homólogos Hohenzollern e Romanov Portanto mesmo em seu apogeu faltou ao absolutismo austríaco congruência e segurança estrutural devido ao caráter conglomerado das formações sociais sobre as quais exercia seu domínio Os territórios germânicos da Áustria propriamente dita sempre representaram o nú cleo interno de confiança do império Habsburgo as possessões mais antigas e leais da dinastia na Europa central Os nobres e as cidades conservaram muitos dos privilégios tradicionais nosLandtage da Alta e da Baixa Áustria da Estíria e da Caríntia no Tirol e no Vorarlberg o próprio campesinato tinha representação efetiva nos Estados indício excepcional do caráter alpino dessas províncias As instituições inter mediárias herdadas da época medieval nunca foram suprimidas como ocorreu na Prússia mas no início do século XVII tinhamse convertido em instrumentos obedientes do poder Habsburgo cuja so brevivência jamais viria a obstruir seriamente a vontade da dinastia Os territórios arquiducais formavam assim a base central e segura da casa governante Desafortunadamente porém eram demasiado mo destos e limitados para conferir ao Estado Habsburgo em seu conjunto um dinamismo monárquico unitário Nos aspectos econômico e demo gráfico foram ultrapassados pelos territórios mais ricos da Boêmia já na metade do século XVI em 1541 as contribuições fiscais da Áustria para o tesouro imperial chegavam apenas a metade das da Boêmia e esta proporção continuou em vigor até o final do século XVIII19 A derrota dos exércitos de Wallenstein pelos suecos durante a Guerra dos Trinta Anos bloqueou toda a expansão das bases germânicas da dinas tia isolando efetivamente o arquiducado do Reich tradicional Além disso a sociedade rural austríaca era menos representativa do modelo agrário dominante nos territórios Habsburgo Com efeito o caráter semimontanhoso da maior parte da região fazia dela um terreno ingra to para os grandes domínios feudais O resultado foi a persistência da pequena propriedade camponesa nas terras altas e a preponderância do tipo ocidental de Grundherrschaft nas planícies endurecida pelas 19 Kerner Bohemia in the Eighteenth Century pp 256 O reino da Boêmia abrangia a própria Boêmia a Morávia e a Süésia LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 313 normas de exploração orientais20 as jurisdições patrimoniais e butos feudais eram generalizados as prestações em serviços er s sadas em muitas regiões mas as oportunidades de consolidação e tivos senhoriais e de vastos latifúndios era relativamente limitart ação solvente exercida pela capital do império sobre a força de tr a das suas imediações rurais viria a se tornar um embaraço adicio surgimento de uma economia de tipo Gutsherrschaft21 A ma a cisiva da própria aristocracia austríaca era portanto muito para constituir um centro magnético efetivo para o conjunto da dos proprietários de terra do império asse O esmagamento dos Estados da Boêmia durante a Guer Trinta Anos por outro lado propiciou ao absolutismo Habsbj seu maior êxito político os importantes e férteis territórios tcheç tavam agora inequivocamente sob seu domínio Nenhuma outra es cracia insurreta da Europa encontrou um destino tão sumário CQ aristocracia boêmia após a sua derrota uma nova classe funçh a que tudo devia à dinastia foi implantada nas suas terras A histôt na absolutismo europeu não conhece um episódio semelhante Contri necessário destacar uma peculiaridade reveladora da implajw Le Habsburgo na Boêmia A nova nobreza aí criada não se compunk sencialmente de casas originárias do baluarte austríaco da diju es excetuadas algumas poucas famílias católicas tchecas ela foi ÍK a tada do exterior A origem alienígena dessa camada indicava a cia de uma aristocracia local para ser transferida para a Boêmia Q en a curto prazo significava o fortalecimento do poderio Habsbur0 ue terras tchecas era ao mesmo tempo um indício de fraqueza a K prazo Os territórios boêmios eram os mais ricos e densamente p0 ê dos da Europa central durante praticamente todo o século seguim a grandes magnatas do império Habsburgo possuíram quase sJ os imensos domínios cultivados por servos na Boêmia e na Morávi centro de gravidade econômico da classe dirigente deslocouse tá para o norte Mas a nova aristocracia boêmia revelou falta de de corps ou mesmo de verdadeira fidelidade à dinastia na sua parte desertou de um só golpe para as forças de ocupação bv r durante a Guerra da Sucessão Austríaca na década de 1740 TalC as constitui o equivalente mais próximo de uma nobreza de serviço n0 e tema de Estado do absolutismo austríaco mas era o produto arbk 20 VL Tapié Monarchie et Peuples du Danube Paris 1969 p 144 21 Para a situação na Baixa Áustria ver Jerome Blum Noble Landown Agriculture in Áustria 18151848 Baltimore 1947 pp 17680 S tf 312 PERRY ANDERSON tado Habsburgo derivaram sem dúvida e em grande medida do cará ter compósito e irreconciliável das nobrezas que o constituíam De tal modo os inconvenientes da diversidade aristocrática estavam predizi velmente evidentes no setor mais sensível da máquina de Estado o exército Na ausência de uma nobreza socialmente unitária os exérci tos Habsburgo raramente atingiriam o desempenho de seus homólogos Hohenzollern e Romanov Portanto mesmo em seu apogeu faltou ao absolutismo austríaco congruência e segurança estrutural devido ao caráter conglomerado das formações sociais sobre as quais exercia seu domínio Os territórios germânicos da Áustria propriamente dita sempre representaram o nú cleo interno de confiança do império Habsburgo as possessões mais antigas e leais da dinastia na Europa central Os nobres e as cidades conservaram muitos dos privilégios tradicionais nosLandtage da Alta e da Baixa Áustria da Estíria e da Caríntia no Tirol e no Vorarlberg o próprio campesinato tinha representação efetiva nos Estados indício excepcional do caráter alpino dessas províncias As instituições inter mediárias herdadas da época medieval nunca foram suprimidas como ocorreu na Prússia mas no início do século XVII tinhamse convertido em instrumentos obedientes do poder Habsburgo cuja so brevivência jamais viria a obstruir seriamente a vontade da dinastia Os territórios arquiducais formavam assim a base central e segura da casa governante Desafortunadamente porém eram demasiado mo destos e limitados para conferir ao Estado Habsburgo em seu conjunto um dinamismo monárquico unitário Nos aspectos econômico e demo gráfico foram ultrapassados pelos territórios mais ricos da Boêmia já na metade do século XVI em 1541 as contribuições fiscais da Áustria para o tesouro imperial chegavam apenas a metade das da Boêmia e esta proporção continuou em vigor até o final do século XVIII A derrota dos exércitos de Wallenstein pelos suecos durante a Guerra dos Trinta Anos bloqueou toda a expansão das bases germânicas da dinas tia isolando efetivamente o arquiducado do Reich tradicional Além disso a sociedade rural austríaca era menos representativa do modelo agrário dominante nos territórios Habsburgo Com efeito o caráter setnimontanhoso da maior parte da região fazia dela um terreno ingra to para os grandes domínios feudais O resultado foi a persistência da pequena propriedade camponesa nas terras altas e a preponderância do tipo ocidental de Grundherrschaft nas planícies endurecida pelas 19 Kerner Bohemia in the Eighteenth Century pp 256 O reino da Boêmia abrangia a própria Boêmia a Morávia e a Silésia LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 313 normas de exploração orientaisM as jurisdições patrimoniais e os tri butos feudais eram generalizados as prestações em serviços eram pe sadas em muitas regiões mas as oportunidades de consolidação de cul tivos senhoriais e de vastos latifúndios era relativamente limitada A ação solvente exercida pela capital do império sobre a força de trabalho das suas imediações rurais viria a se tornar um embaraço adicional ao surgimento de uma economia de tipo Gutsherrschaft21 A massa de cisiva da própria aristocracia austríaca era portanto muito débil para constituir um centro magnético efetivo para o conjunto da classe dos proprietários de terra do império O esmagamento dos Estados da Boêmia durante a Guerra dos Trinta Anos por outro lado propiciou ao absolutismo Habsburgo o seu maior êxito político os importantes e férteis territórios tchecos es tavam agora inequivocamente sob seu domínio Nenhuma outra aristo cracia insurreta da Europa encontrou um destino tão sumário como a aristocracia boêmia após a sua derrota uma nova classe fundiária que tudo devia à dinastia foi implantada nas suas terras A história do absolutismo europeu não conhece um episódio semelhante Contudo é necessário destacar uma peculiaridade reveladora da implantação Habsburgo na Boêmia A nova nobreza aí criada não se compunha es sencialmente de casas originárias do baluarte austríaco da dinastia excetuadas algumas poucas famílias católicas tchecas ela foi impor tada do exterior A origem alienígena dessa camada indicava a ausên cia de uma aristocracia local para ser transferida para a Boêmia O que a curto prazo significava o fortalecimento do poderio Habsburgo nas terras tchecas era ao mesmo tempo um indício de fraqueza a longo prazo Os territórios boêmios eram os mais ricos e densamente povoa dos da Europa central durante praticamente todo o século seguinte os grandes magnatas do império Habsburgo possuíram quase sempre imensos domínios cultivados por servos na Boêmia e na Morávia e o centro de gravidade econômico da classe dirigente deslocouse também para o norte Mas a nova aristocracia boêmia revelou falta de esprit de corps ou mesmo de verdadeira fidelidade à dinastia na sua maior parte desertou de um só golpe para as forças de ocupação bávaras durante a Guerra da Sucessão Austríaca na década de 1740 Tal classe constitui o equivalente mais próximo de uma nobreza de serviço no sis tema de Estado do absolutismo austríaco mas era o produto arbitrário 20 VL Tapié Monarchie etPeuples du Danube Paris 1969 p 144 21 Para a situação na Baixa Áustria ver Jerome Blum Noble Landowners and Agrículture in Áustria 18151848 Baltimore 1947 pp 17680 314 PERRY ANDERSON de serviços passados e não a detentora de funções públicas orgânicas e contínuas e embora dela saíssem grande parte dos quadros adminis trativos da monarquia Habsburgo nunca se tornou uma força domi nante ou organizativa em seu seio Não obstante a despeito das limitações das classes fundiárias em cada setor a consolidação do poder imperial nas unidades austríaca e boêmia dos domínios Habsburgo parecia criar as premissas de um ab solutismo mais homogêneo e centralizado Seria a Hungria o obstáculo intransponível a um Estado real unitário Se fosse possível fazer uma analogia entre os dois impérios Habsburgo centrados respectivamente em Madri e em Viena na qual a Áustria pudesse se comparar a Castela e a Boêmia à Andaluzia a Hungria seria uma espécie de Aragão orien tal No entanto a comparação resulta imperfeita pois a Áustria nunca possuiu a predominância econômica e demográfica de Castela como cerne do sistema imperial ao passo que o poder e os privilégios da no breza húngara excediam mesmo os da aristocracia aragonesa e o ele mento unificador crucial constituído por uma língua comum esteve aí sempre ausente A classe fundiária magiar era extremamente nume rosa alcançando de 5 a 7 por cento da população total da Hungria Se bem que muitos desses nobres fossem cavaleiros de mocassim com diminutas parcelas de terra o setor mais importante da nobreza hún gara era o estrato dos chamados bene possessionati que detinham do mínios de dimensão média e dominavam a vida política das provín cias2 foram eles que deram ao conjunto da nobreza magiar a unidade e a supremacia social O sistema de Estados da Hungria funcionava plenamente e nunca concedera privilégios importantes à dinastia Habs burgo que reinava apenas em virtude de uma união pessoal e cuja autoridade era eletiva e revogável a constituição feudal incluía expres samente um jus resistendi que legitimava a revolta dos nobres contra qualquer usurpação por parte do monarca das sagradas liberdades da nação magiar A nobreza controlara desde o final da Idade Média a sua própria unidade de administração regional o comitatus assem bléia cujas comissões permanentes investidas de funções judiciais fi nanceiras e burocráticas eram todopoderosas nas regiões rurais e ga 22 Bela Király Hungary in the Late Eighteenth Ceníury Nova Iorque 1969 pp 33 108 Tudo indica que o papel dos bene possessionati no seio da classe fundiária húngara tenha sido um dos mais importantes fatores a distinguila da igualmente nume rosa nobreza polaca com a qual aliás tanto se parecia esta última estava muito menos polarizada entre magnatas e pequenos cavaleiros faltandolhe portanto a coesão de suas congêneres magiares LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 315 rantiam um alto grau de coesão política no seio da classe dos proprie tários de terra Os Habsburgos sempre tentaram dividir a aristocracia húngara afastando o seu setor mais rico através da concessão de hon rarias e privilégios com esse fim foram introduzidos no século XVI os títulos até então desconhecidos tanto na Hungria como na Polônia e assegurada uma separação jurídica entre os magnatas e o restante da nobreza no início do século XVII23 Tais táticas não conquistaram avanços consideráveis na luta contra o particularismo húngaro agora ainda mais fortalecido pela difusão do protestantismo Acima de tudo a proximidade do poder militar turco como força ocupante e suserana em dois terços dos territórios magiares situados além de Mohacs cons tituía um obstáculo objetivo fundamental à extensão à Hungria de um absolutismo austríaco centralizado Com efeito ao longo de todo o sé culo XVI e XVII havia nobres magiares vivendo na Hungria central sob domínio direto dos turcos ao passo que mais para leste a Tran silvânia constituía um Estado monárquico autônomo sob o domínio de governantes húngaros locais muitos deles de fé calvinista no interior do império otomano Assim quaisquer tentativas de Viena no sentido de atacar as veneráveis prerrogativas da aristocracia húngara podiam sempre ser enfrentadas com o recurso à aliança turca por outro lado governantes transilvanos ambiciosos tentaram repetidas vezes incitar seus compatriotas em território Habsburgo contra o Hofburg visando seus próprios interesses muitas vezes com o auxílio de um bem trei nado exército e com o objetivo de criar uma Transilvânia maior Por tanto a tenacidade do particularismo magiar foi também uma função de seus poderosos pontos de apoio do outro lado da fronteira otomana que mais de uma vez permitiram à nobreza da Hungria cristã reu nir em seu auxílio forças militares superiores ao seu próprio pode rio local Assim o século XVII a grande época de rebeldia e tensão da nobreza no Ocidente com o seu cortejo de conspirações e levantes aris tocráticos testemunhou também uma resistência senhorial de persis tência e êxito únicos diante de um crescente poder monárquico no Leste no seio de um absolutismo em desenvolvimento A primeira fase importante do conflito ocorreu durante a guerra austrootomana dos Treze Anos O avanço militar Habsburgo contra os turcos fezse acom panhar de perseguições religiosas e centralização administrativa nas regiões conquistadas Em 1604 o grande senhor calvinista Bocskay re 23 Mamatey RiseoftheHabsburgEmpire p 37 316 PERRY ANDERSON belouse reunindo a nobreza magiar e os aventureiros haiduk das fron teiras contra as forças de ocupação imperiais em aliança com os turcos em 1606 a Porta assegurou uma paz vantajosa a aristocracia húngara conseguiu de Viena a tolerância religiosa e Bocskay conquistou o prin cipado da Transilvânia Em 161920 o novo monarca transilvano Gá bor Bethlen aproveitou a sublevação da Boêmia para invadir e anexar vastas extensões da Hungria Habsburgo com o apoio dos proprietários de terra protestantes da região Em 1670 Leopoldo I esmagou uma conspiração de grandes nobres e deslocou suas tropas em grande nú mero para a Hungria a antiga constituição foi abolida e imposta uma nova e centralizadora administração sob a chefia de um vicegoverna dor alemão munido de tribunais extraordinários para a repressão A luta foi em breve retomada a partir de 1678 sob o comando do conde Imra Tõkõlli em 1681 Leopoldo viuse forçado a renunciar a seu golpe constitucional e a reafirmar os privilégios magiares tradicio nais já que Tõkõlli recorreu ao auxílio turco Os exércitos otomanos acorreram prontamente e seguiuse o famoso cerco de Viena em 1683 Finalmente as forças turcas acabaram por ser expulsas da Hungria em 1687 e Tõkõlli partiu para o exílio Leopoldo não era suficientemente forte para restaurar o anterior regime centralista do Gubernium mas foi capaz de extrair dos Estados magiares em Bratislava a aceitação da dinastia Habsburgo como hereditária e não mais eletiva na Hun gria e ao lado disso a revogação do jus resistendi Ademais a con quista austríaca da Transilvânia em 16901 serviu para circundar a partir daí a nobreza magiar com uni bloco estratégico de territórios à sua retaguarda diretamente sujeitos a Viena as Zonas de Fronteira Militar Especiais submetidas ao Hofkriegsrat estendiamse agora do Adriático aos Cárpatos entretanto o poder turco na bacia do Danúbio virase grandemente reduzido no início do século XVIII As terras re centemente adquiridas foram distribuídas a aventureiros militares es trangeiros e a um círculo seleto de senhores húngaros cuja lealdade política estava agora cimentada por enormes domínios no leste Não obstante a nobreza húngara aproveitaria a primeira oportu nidade proporcionada por um conflito internacional para lançarse uma vez mais com avidez à sedição armada Em 1703 os impostos de guerra e a perseguição religiosa conduziram os camponeses do noroeste à revolta capitalizando este levante popular o magnata Ferenc Ra kóczi liderou uma formidável e decisiva rebelião em aliança militar com a França e a Baviera cujo ataque em tenaz a Viena só foi contido pela batalha de Bleinheim Por volta do final de 1711 as tropas Habs burgo tinham posto fim à insurreição quatro anos mais tarde a classe LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 3L7 dos proprietários fundiários magiares foi pela primeira vez obrigada a aceitar o imposto imperial sobre os seus servos e aquartelamentos mili tares em seus condados ao mesmo tempo em que as fronteiras milita res além destes eram governadas pelo Hofskriegsrat A chancelaria húngara passou a ter lugar em Viena No entanto pela Paz de Szat már os privilégios sociais e políticos tradicionais dos proprietários de terra húngaros foram também confirmados a administração ficou ba sicamente sob o seu controle24 Após este acordo não mais ocorreram revoltas durante os 150 anos seguintes mas as relações entre a nobreza magiar e a dinastia Habsburgo continuaram a diferir das existentes entre as outras aristocracias emonarquias do Leste na época do abso lutismo A extrema descentralização aristocrática entrincheirada em leis e instituições medievais mostrouse irredutível napuszta A base austríaca do sistema imperial era demasiado restrita as extensões da Boêmia demasiado frágeis e a resistência da organização política hún gara demasiado firme para que um típico absolutismo orientalizado nascesse ao longo do Danúbio Em conseqüência bloqueouse a im plantação de qualquer rigor ou uniformidade nas estruturas estatais compósitas presididas pelo Hofburg Vinte anos após a Paz de Passarowitz ponto culminante de sua expansão nos Bálcãs e de seu prestígio europeu o absolutismo Habs burgo viria a sofrer uma derrota humilhante nas mãos de seu rival muito menor Hohenzollern A conquista da Silésia pela Prússia na Guerra da Sucessão Austríaca privouo da mais próspera e industriali zada província de seu império centroeuropeu Breslau se tornara o principal centro comercial dos territórios dinásticos tradicionais O controle do título imperial passou temporariamente para a Baviera e o grosso da aristocracia boêmia desertou para o novo imperador bávaro A Boêmia foi enfim recuperada porém na década seguinte o absolu tismo austríaco foi de novo profundamente sacudido pela Guerra dos Sete Anos na qual apesar da aliança com a Rússia e a França da avassaladora superioridade numérica e das imensas perdas não conse guiu reconquistar a Silésia A Prússia dispondo de um terço do tesouro e de um sexto da população da Áustria triunfara duas vezes sobre ela Este duplo choque precipitou duas drásticas febres de reformas no seio do Estado Habsburgo no reinado de Maria Tereza conduzidas pelos chanceleres Haugwitz e Kaunitz com o objetivo de modernizar e re 24 Em muitos aspectos os melhores comentários sinóticos sobre as sucessivas revoltas húngaras desta época podem ser encontrados em McNeill Europes Steppe Frontier Chicago 1964 pp 947 1478 1647 318 PERRY ANDERSON modelar o conjunto do aparelho de governo25 As chancelarias da Boê mia e da Áustria foram fundidas num órgão único os correspondentes tribunais de apelação foram incorporados e a ordem jurídica separada da nobreza boêmia completamente abolida Pela primeira vez foram cobrados impostos à aristocracia e ao clero de ambos os territórios mas não da Hungria e os seus Estados foram coagidos a aprovar subven ções decenais destinadas à construção de um exército permanente am pliado para 100 mil homens O Hofkriegsrat foi reorganizado e recebeu plenos poderes em todo o império Criouse um Conselho de Estado supremo para integrar e dirigir a máquina do absolutismo Funcioná rios permanentes da coroa os Kreishauptmãnner foram nomeados para todas as divisões da Boêmia e da Áustria a fim de reforçar a justiça e a administração centralizadas Foram abolidas as barreiras alfandegárias entre a Boêmia e a Áustria e instituídas tarifas sobre as importações estrangeiras As prestações em serviços dos camponeses foram legalmente limitadas Passouse a aplicar implacavelmente os privilégios fiscais da coroa com o intuito de elevar as receitas impe riais Para colonizar a Transilvânia e o Banat foram tomadas medidas de emigração organizada Logo porém estas medidas de Tereza se riam suplantadas pelo vasto programa de reformas adicionais imposto por José II O novo imperador rompeu espetacularmente com a tradição aus tríaca de clericalismo oficial onipresente Foi proclamada a tolerância religiosa as terras da Igreja foram dissolvidas e os mosteiros derruba dos os serviços da Igreja foram regulamentados e o Estado integrou as universidades O governo introduziu um avançado código penal refor mou os tribunais judiciários e aboliu a censura A educação secular foi vigorosamente incentivada pelo Estado e até o final do reinado talvez uma em cada três crianças estava na escola elementar Criaramse cur rículos modernizados para formar melhores engenheiros e funcioná rios O serviço público civil foi profissionalizado sua hierarquia orga nizada com base no mérito enquanto se assegurava a sua vigilância secreta por meio de uma rede de agentes policiais inspirada no sistema prussiano Os impostos deixaram de ser administrados pelos Estados passando a partir daí a ser diretamente coletados pela monarquia Os encargos fiscais foram rapidamente aumentados Suprimiramse as sessões anuais dos Estados os Landtage reuniamse agora apenas por convocação da dinastia Foi introduzido o recrutamento obrigatório e o 25 Bluche Lê Despotisme Eclairé pp 10610 oferece uma análise sucinta LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 319 exército atingiu 300 mil homens26 A fim de se assegurar a defesa do mercado interno criaramse tarifas cada vez mais elevadas ao mesmo tempo em que eram eliminadas as guildas e as corporações urbanas de modo a permitir a livre concorrência no interior do império O sistema de transportes foi aprimorado Tais medidas eram radicais mas não ultrapassavam ainda o âmbito das ações convencionais dos Estados ab solutistas na era do iluminismo O programa de José II contudo não parou por aí Por uma série de decretos única na história da monarquia absolutista a servidão foi oficialmente abolida em 1781 após graves levantes camponeses na Boêmia durante a década precedente e to dos os súditos viram assegurado o direito de livre escolha em matéria de casamento migração trabalho ocupação e propriedade Nos locais onde esta não existia foi assegurada aos camponeses a garantia da posse da terra e aos nobres proibiuse a compra de parcelas Final mente decretouse a abolição de todas as prestações obrigatórias em serviços para os camponeses das terras rústicas ou seja parcelas dos vilões que pagassem dois ou mais florins por ano em impostos as tari fas fiscais foram equiparadas e decretadas normas oficiais para a dis tribuição do produto agrícola global desses arrendatários 122 por cento para o Estado sob a forma de impostos 178 por cento para os senhores e o clero sob a forma de rendas e dízimas e 70 por cento para ser conservado pelo próprio camponês Embora de alcance bastante parcial pouco mais de um quinto dos camponeses da Boêmia foi alcançado por ela esta última medida continha a ameaça de drás ticas transformações nas relações sociais no campo e atingia direta mente interesses econômicos vitais da nobreza fundiária em todo o im pério27 A proporção do produto agrícola à disposição do produtor dire to girava habitualmente em torno de 30 por cento à épocaK a nova lei duplicava esta parcela reduzindo ao mesmo tempo quase pela metade o excedente extraído pela classe feudal O clamor aristocrático foi so noro e universal acompanhado por ampla obstrução e sonegação Entretanto o centralismo de José II causava burburinho político de um extremo a outro do império As corporações urbanas e as com panhias privilegiadas medievais das distantes províncias belgas tinham 26 O serviço militar obrigatório foi introduzido em 1771 Em 1788 José II mo bilizou 245 mil soldados de infantaria 37 mil de cavalaria e novecentos canhões para a nua guerra contra a Turquia H L Mikoletzky Osterreich Dasgrosse 18 Jahrhundert Viena 1967 pp 227 366 27 WrightSer Seigneur andSovereign p 147 28 Kerner Bohemia in the Eighteenth Century pp 445 320 PERRY ANDERSON sido arruinadas por Viena os sentimentos ofendidos do clero a hosti lidade patrícia e o patriotismo popular combinaramse para gerar uma revolta armada coincidente com a Revolução Francesa Ainda mais ameaçadora era a agitação na Hungria Com efeito José II fora tam bém o primeiro governante Habsburgo a integrar coercitivamente a Hungria numa estrutura imperial unitária Eugênio de Sabóia instara a dinastia a fazer dos seus territórios esparsos um todo organizado ein Totum tal ideal enfim se realizava metodicamente Todas as prin cipais reformas de José II eclesiásticas sociais econômicas e mili tares foram impostas na Hungria sob os protestos da nobreza ma giar A burocracia do Kreis foi estendida à Hungria e o antigo sistema de condados ficoulhe subordinado a imunidade fiscal da classe fun diária foi abolida e implementada a justiça real Por volta de 1789 os Estados da Hungria preparavam visivelmente a insurreição Ao mesmo tempo soçobrava a política externa da monarquia Por duas vezes José II fizera esforços para adquirir a Baviera na segunda delas propu serase mesmo a trocála pela Bélgica a Prússia bloqueou este objetivo lógico e racional cuja consecução teria transformado a posição estra tégica e a estrutura interna do império austríaco deslocandoo decisi vamente para oeste em direção à Alemanha Significativamente a Áustria não quis arriscar uma guerra com a Prússia por esse motivo sequer após o grande esforço de reconstrução militar realizado por José II Em decorrência disso o expansionismo austríaco desviouse nova mente para os Bálcãs onde os exércitos otomanos infligiam ao impe rador uma série de reveses Assim a meta final de todo o vigoroso impulso reformista do absolutismo austríaco a recuperação de sua posição militar no plano internacional fugiu de suas mãos O rei nado de José terminou em fracasso e desilusão Os impostos e as convo cações militares eram impopulares entre os camponeses a inflação criara imensa penúria nas cidades a censura fora restabelecida29 Por último as relações entre a monarquia e a aristocracia tinham atingido o ponto de ruptura Para evitar a rebelião na Hungria foi necessário renunciar à centralização aí conseguida A morte de José II foi o sinal para uma rápida e generalizada reação senhoria O seu sucessor Leo poldo II foi imediatamente forçado a revogar as Leis Agrárias de 1789 e a restaurar os poderes políticos da nobreza magiar Os Estados da 29 O isolamento do regime em seus anos finais está bem elucidado por Ernst Wangermann FromJoseph II to theJacobin Trials Oxford 1959 pp 289 O campe sinato desapontouse com os limites de sua reforma agrária e chocouse cora o seu anti clericalismo LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 321 Hungria anularam juridicamente as reformas de José e eliminaram os impostos sobre as terras da nobreza A eclosão da Revolução Francesa e as guerras napoleônicas voltaram a unir a partir daí a dinastia e a aristocracia em todo o império aferrandoas a um comum conservan tismo O episódio singular de um absolutismo demasiado iluminista estava terminado Paradoxalmente fora a própria aporia do absolutismo austríaco que o tornara possível A maior fraqueza e limitação do império Habs burgo era a ausência de uma aristocracia unitária capaz de formar uma nobreza de serviço de tipo oriental E contudo foi precisamente esta lacuna social que permitiu à autocracia josefina a sua latitude irresponsável Graças ao próprio fato de a classe fundiária não terse integrado no aparelho de Estado austríaco do modo como o fizera na Prússia e na Rússia a monarquia absoluta pôde fomentar um progra ma que lhe era efetivamente prejudicial Sem raízes em nenhuma no breza territorial dotada de uma forte e única coesão de classe a mo narquia podia conseguir um grau de expansiva autonomia desconheci do das suas vizinhas Daí o caráter singularmente antifeudal dos decretos josefinos em contraste com as reformas similares posteriores dos outros absolutismos do Leste30 O instrumento de renovação mo nárquica no império Habsburgo foi igualmente uma burocracia mais distinta da aristocracia do que em qualquer outra região recrutada basicamente na alta classe média das cidades germânicas cultural e socialmente separada da classe dos proprietários de terra Mas o rela tivo desligamento entre a monarquia e as heterogêneas classes fundiá rias de seu reino constituía também evidentemente uma causa de sua debilidade interna No campo internacional o programa josefino ter minou em desastre Internamente as leis sociais inerentes ao Estado absolutista foram rigorosamente reafirmadas numa demonstração elo qüente da impotência da vontade pessoal do monarca quando este transgride os interesses coletivos da classe que o absolutismo está his toricamente votado a defender O império austríaco emergiu assim da era napoleônica como o pilar central da reação européia com Metternich como o decano da contrarevolução monarquista e clerical em todo o continente O abso lutismo Habsburgo vagueou apaticamente pela primeira metade do sé culo XIX Entretanto a industrialização nascente criava uma nova 30 Todos os três programas reformistas o austríaco o prussiano e o russo foram motivados obviamente por derrotas militares 322 PERRY ANDERSON população urbana tanto trabalhadora como de classe média e a agri cultura comercial difundiase a partir do Ocidente com a introdução de novos cultivos beterraba sacarina batata trevo e a expansão da produção lanífera O campesinato fora emancipado da servidão mas ainda estava sujeito à jurisdição patrimonial de seus senhores por todo o império e em quase toda parte devia pesadas prestações em ser viços à nobreza Neste aspecto a Erbuntertãnigkeit de tipo tradicional ainda era predominante em cerca de 80 por cento de seu território incluindo todas as principais regiões da Europa central Alta Áus tria Baixa Áustria Estíria Caríntia Boêmia Morávia Galícia Hun gria e Transilvânia e o robot continuava a ser a grande fonte de mãodeobra na economia agrária31 O típico camponês alemão ou es lavo retinha ainda na década de 1840 somente 30 por cento de sua produção após pagar os impostos e tributos32 Ao mesmo tempo um número cada vez maior de proprietários de terra apercebiase de que a produtividade média do trabalho assalariado era muito superior à do trabalho do robot e começava a procurar substituílo uma mudança de atitude ilustrada estatisticamente por sua disposição em aceitar a comutação monetária do robot a preços bem inferiores ao pagamento mínimo do equivalente trabalho assalariado33 Ao mesmo tempo um número cada vez mais crescente de trabalhadores sem terra migrava para as cidades onde muitos deles se tornariam desempregados urba nos De forma inevitável a consciência nacional era agora estimulada na época pósnapoleônica primeiramente nas cidades para depois pe netrar no campo Em breve as reivindicações políticas burguesas ti nham um caráter mais nacional que liberal o império austríaco tor nouse a prisão dos povos Estas contradições acumuladas combinaramse e explodiram nas revoluções de 1848 A dinastia acabou por sufocar os levantes urbanos e suprimir as sublevações nacionais em todos os seus territórios Mas as revoltas camponesas que haviam fornecido às revoluções a sua força de massa só seriam pacificadas com o atendimento das reivindicações bá sicas das aldeias A Assembléia de 1848 prestou esse serviço à monar quia antes de ser posta de lado pela vitória da contrarevolução As jurisdições senhoriais foram suspensas eliminada a divisão rústico dominial da terra concedida a todos os arrendatários a garantia da posse e oficialmente abolidas as obrigações feudais em trabalho di 31 Blum Nuble Landowners andÁgriculturein Áustria pp 45 202 32 Idempn 33 Idempp 192202 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 323 nheiro ou espécie com indenização aos senhores suportada metade pelos arrendatários e metade pelo Estado As classes fundiárias da Áustria e da Boêmia já instruídas nos benefícios do trabalho livre não se opuseram a este arranjo os seus interesses foram generosamente contemplados pelas cláusulas de compensação aprovadas contra a re sistência dos portavozes camponeses34 Os Estados magiares lidera dos por Kossuth puseram fim ao robot de forma ainda mais vantajosa para a nobreza na Hungria as compensações foram integralmente pagas pelos camponeses A Lei Agrária de setembro de 1848 garantiu o predomínio das relações capitalistas no campo A propriedade da terra tornouse ainda mais concentrada à medida que os nobres menores vendiam seus domínios e os camponeses pobres afluíam às cidades en quanto os grandes senhores aumentavam os seus latifúndios e raciona lizavam a sua gestão e produção com os fundos das compensações rece bidas Abaixo deles consolidouse um estrato de prósperos Gross bauern especialmente em terras austríacas mas a distribuição funda mental do solo continuou talvez mais polarizada do que nunca após o advento da agricultura capitalista Na década de 1860 016 por cento das propriedades na Boêmia os vastos domínios da alta nobreza cobriam 34 por cento do território35 O regime Habsburgo baseavase agora numa agricultura cada vez mais capitalista Contudo o Estado absolutista emergiu não con formado das provações de 1848 As reivindicações liberais por liberda des civis e direito de voto foram silenciadas as aspirações nacionalistas suprimidas A ordem dinástica feudal sobrevivera à primavera po pular da Europa Mas a sua capacidade de evolução ou adaptação ati vas estava perdida As reformas agrárias austríacas foram obra da efê mera assembléia da revolução e não iniciativa do governo monár quico ao contrário das reformas prussianas de 180811 foram ape nas aceitas pelo Hofburg aposteriori Do mesmo modo a derrota mili tar da mais ameaçadora insurreição nacional da Europa central a constituição de um Estado independente pela nobreza húngara que contaria com o seu próprio ministério orçamento exército e política externa e estaria ligado à Áustria mais uma vez apenas por uma união pessoal fora conseguida não pelos exércitos da Áustria mas pelos da Rússia uma repetição inglória das tradições da dinastia A partir daí a monarquia Habsburgo reduziuse cada vez mais a um 34 Blum apresenta uma penetrante análise do acordo pp 2358 35 Tapié Monarchie et Peuples du Danube p 325 324 PERRY ANDERSON objeto passivo de acontecimentos e conflitos produzidos no exterior A frágil restauração de 1849 permitiulhe por uma breve década realizar a meta há muito acalentada da completa centralização administrativa O sistema Bach impôs uma burocracia uniforme e leis impostos e al fândegas unificados em todo o império guarnições de hussardos foram deslocadas para a Hungria a fim de reforçar a sua submissão Era no entanto impossível a estabilização desta autocracia centralista dema siado débil no plano internacional A derrota diante da França em Sol ferino e a perda da Lombardia em 1859 abalaram de tal modo a mo narquia que um recuo político interno passou a ser necessário A Carta Patente de 1861 concedeu um parlamento imperial ou Reichsrat eleito indiretamente a partir dos Landtage provinciais e composto de quatro cúrias além do sufrágio restrito com o intuito de assegurar a superio ridade germânica O Reichsrat não tinha poderes para controlar os ministros o recrutamento ou a coleta dos impostos já em vigor era um organismo sem importância e poder cuja criação não se fez acompa nhar de qualquer liberdade de imprensa ou mesmo da imunidade dos deputados36 A nobreza magiar recusouse a aceitálo e a dominação puramente militar foi de novo implantada na Hungria A derrota frente à Prússia em Sadowa ferindo e enfraquecendo mais uma vez a mo narquia arruinou este regime provisório no curto espaço de seis anos Toda a estrutura tradicional do Estado absolutista sofria agora um declínio súbito e drástico Ao longo de mais de três séculos o mais antigo e formidável inimigo do centralismo Habsburgo fora sempre a nobreza húngara a classe fundiária mais obstinadamente particu larista culturalmente coesa e socialmente repressiva de todo o império Como vimos a expulsão final dos turcos da Hungria e da Transilvânia no século XVIII pusera fim por um certo tempo à turbulência dos magiares Mas os cem anos que se seguiram embora aparentemente consagrassem a integração política da Hungria no império austríaco prepararam de fato uma última e espetacular reviravolta de papéis em seu interior Com efeito a reconquista da Hungria e da Transilvânia otomanas e a recuperação e colonização agrárias dos vastos espaços do leste aumentaram decisivamente o peso econômico da classe dominante húngara no conjunto do império Inicialmente a emigração campo nesa fora atraída para a planície húngara central devido aos vantajosos regimes de arrendamento mas uma vez que esta foi repovoada as pressões senhoriais endureceram imediatamente os domínios foram 36 A J P Taylor The Habsburg Monarchy Londres 1952 pp 10427 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 32S ampliados e as parcelas camponesas expropriadas37 O surto agrícola da época do iluminismo a despeito das políticas tarifárias discrimina tórias de Viena38 beneficiara grandemente a maior parte da nobreza e lançara os alicerces de fortunas da grande nobreza que viriam a atingir dimensões sem paralelo No aspecto histórico a nobreza baseada na Boêmia sempre fora a mais rica dos domínios Habsburgo por volta do século XIX o mesmo já não ocorria A família Schwarzenberg podia ter 190 mil hectares na Boêmia a família Esterhazy era senhora de 2 milhões e 800 mil na Hungria39 Assim a confiança e a agressividade da classe fundiária magiar em seu conjunto tanto os cavaleiros como os magnatas era cada vez mais reforçada pela nova extensão de suas possessões e pelo crescimento de sua importância no seio da economia centroeuropéia Não obstante a aristocracia húngara nunca foi admitida nos con selhos internos do Estado Habsburgo no século XVIII e no início do século XIX sempre foi mantida à distância do próprio aparelho polí tico imperial A sua oposição a Viena permanecia como o maior perigo doméstico que espreitava a dinastia a Revolução de 1848 mostrara o seu vigor quando ela impusera a seus camponeses um estatuto agrário mais implacável do que o de suas homólogas austríaca e boêmia e ao mesmo tempo resistira aos exércitos monárquicos até ser esmagada pela expedição que o czar enviara contra ela Portanto à medida que o absolutismo austríaco tornavase rapidamente mais fraco depois de sucessivos desastres no estrangeiro e a insatisfação popular tornavase cada vez maior no império a dinastia era lógica e irresistivelmente arrastada para o seu inimigo hereditário a mais combativa e feudal das nobrezas remanescentes da Europa central e a única classe fundiá ria então capaz de escorar o seu poder A vitória prussiana sobre a Áustria em 1866 assegurou a ascensão da Hungria à supremacia no seio do império Para salvarse da desintegração a monarquia foi forçada a aceitála como parceira formal O dualismo que criou a ÃustriaHun gria em 1867 conferiu à classe fundiária magiar o poder interno total na Hungria com governo orçamento assembléia e burocracia pró prios conservando apenas um exército e uma política externa comuns além de uma união aduaneira prorrogável Enquanto na Áustria a 37 Király Hungary in the Late Eighteenth Century pp 12935 38 Enfatizado pelos historiadores húngaros tradicionais ver por exemplo H MarczaliHungary in the Eighteenth Century Cambridge 1910 pp 39 99 39 Mamatey Rise of the Habsburg Empire p 64 C A Macartney Hun gary em Goodwin Orgf The European Nobility in the ISth Century p 129 326 PERRY ANDERSON igualdade civil a liberdade de expressão e a educação secular tiveram que ser concedidas pela monarquia na Hungria a nobreza não fez tais concessões A partir daí a nobreza húngara passou a representar a ala militante e autoritária da reação aristocrática no império que acabou por dominar cada vez mais o pessoal e as políticas do próprio aparelho absolutista de Viena40 Com efeito na Áustria os partidos políticos a agitação social e os conflitos nacionais minavam gradualmente a viabilidade do domínio autocrático No espaço de quatro décadas em 1907 o sufrágio univer sal masculino foi extraído à dinastia na Áustria em meio a greves ur banas e aos ecos populares da revolução russa de 1905 Na Hungria os proprietários de terra conservaram firmemente o seu monopólio de classe do direito de voto Portanto o império austríaco nunca conse guiu efetivar a transmutação que fizera do império alemão um Estado capitalista Quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial ainda não existia o controle parlamentar do governo imperial tampouco um pri meiroministro ou sistema eleitoral unificado O Reichsrat não tinha influência sobre as decisões e os seus membros não alimentavam espe ranças de realizar carreira pública Mais de 40 por cento da popu lação os habitantes da Hungria Croácia e Transilvânia estava excluída do voto secreto ou do sufrágio universal masculino os 60 por cento que gozavam desses direitos nos territórios austríacos dispunham de um direito meramente nominal uma vez que o seu voto não tinha nenhum valor nos assuntos do Estado Ironicamente apesar das frau des evidentes o exemplo mais próximo de um eleitorado efetivo e de um ministério responsável existia na Hungria justamente porque am bos estavam confinados à classe proprietária Ê óbvio que acima de tudo o império austríaco era a negação declarada do Estado nacional burguês representava a antítese de um dos símbolos essenciais da or dem política capitalista na Europa O seu rival alemão alcançara a sua transformação estrutural precisamente por ter presidido a construção 40 A grande exceção era o exército cujo comando supremo permaneceu basi camente como uma reserva austríaca durante todo o período que terminou com a Pri meira Guerra Mundial Mas a importância institucional do aparelho militar no Estado austríaco situouse sempre como vimos abaixo da média geral do absolutismo O Es tadoMaior desempenhou um papel crucial na crise de agosto de 1914 mas os seus fra cassos uma vez iniciada a luta em breve o relegaram outra vez a um relativo segundo plano em contraste direto com a ascensão de seu congênere alemão em Berlim en quanto a influência política magiar em Viena subia acentuadamente à medida que a guerra avançava 41 Taylor The Habsburg Monarchy p 199 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 327 nacional que o Estado austríaco recusara A evolução política oposta de cada um dos absolutismos teve portanto a sua contrapartida geopolí tica O Estado prussiano foi guindado de forma relutante mas inexo rável pura Ocidente à medida que se desenrolava o século XIX com a industrialização do Ruhr e o desenvolvimento capitalista do Reno O Estado austríaco tomava à mesma época uma direção oposta voltandose para o Leste com a crescente ascendência da Hungria e seu renitente senhorialismo Como era de se prever a última aquisição da dinastia constituiuse no território mais atrasado de todo o império as províncias balcânicas da Bósnia e da Herzegovina anexadas em 1909 onde a servidão tradicional dos camponeses kmet locais nunca fora seriamente modificada42 A eclosão da Primeira Guerra Mundial conduziu a trajetória do absolutismo austríaco ao seu destino os exér citos alemães lutaram as suas batalhas e os políticos húngaros determi naram a sua diplomacia Enquanto o general prussiano Mackensen comandava as operações de guerra o líder magiar Tisza chegava a chanceler efetivo do império A derrota fez desaparecer a prisão das nacionalidades 2256 42 O Jászi The Dissolution of the Habsburg Monarchy Chicago 1929 pp Rússia Chegamos assim ao último e mais estável dos absolutismos da Europa O czarismo russo sobreviveu a todos os seus precursores e con temporâneos para se tornar o único Estado absolutista no continente a subsistir intacto até o século XX As fases e os intervalos na gênese deste Estado muito cedo o situaram num plano à parte Com efeito o declínio econômico que marcou o aparecimento da última crise feu dal ocorreu como vimos sob a ameaça da tutela tártara Guerras conflitos internos epidemias despovoamento e abandono das regiões colonizadas caracterizaram o século XIV e a primeira metade do século XV A partir de 1450 iniciase uma nova era de recuperação e expan são econômicas Ao longo dos cem anos que se seguiram a população multiplicouse a agricultura prosperou o comércio interno e o uso da moeda difundiramse rapidamente enquanto o território do Estado moscovita crescia mais de seis vezes em superfície O sistema de afo Ihamento trienal até então praticamente desconhecido na Rússia co meçou a superar o cultivo camponês destrutivo e tradicional em con junto com a predominância do arado de madeira um pouco mais tar de generalizouse nas aldeias o uso dos moinhos1 Não havia agricul tura de exportação e os domínios eram ainda em grande medida autár quicos mas a presença de cidades de dimensões consideráveis sob o 1 A N Sakharov O Dialektike Istoricheskovo Razvitiya Russkovo Krest yantsva Voprosy Istorii 1970 n l pp 212 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 329 controle do grãoducado possibilitava um certo escoamento à produção dominial neste aspecto os domínios monásticos achavamse no pri meiro plano As manufaturas e o intercâmbio urbano beneficiavamse da unificação territorial da Moscóvia e da padronização monetária O volume do trabalho assalariado na cidade e no campo aumentou con sideravelmente enquanto em toda a Rússia florescia o comércio inter nacional2 Foi durante esta fase de expansão que Ivã III lançou os pri meiros fundamentos do absolutismo russo ao inaugurar o sistema do pomes te Até aí a classe fundiária russa compuserase essencialmente de príncipes autônomos e separatistas e de nobres boiardos muitos deles de origem tártara ou oriental senhores de vastos domínios alodiais e com freqüência de um número considerável de escravos Estes magna tas aproximaramse gradualmente da corte moscovita restaurada onde passaram a formar o séquito do monarca embora conservassem as suas próprias tropas e os seus círculos de dependentes Quando em 1478 Ivã III conquistou Novgorod tornou possível ao nascente Estado ducal expropriar largas faixas de território e colonizálas com uma nova no breza que passaria a formar a classe dos servidores militares da Mos cóvia A concessão do pomest e estava condicionada ao serviço perió dico nos exércitos do monarca tornandose o seu titular um servidor deste último sujeito a um estatuto rigorosamente definido Ospomesh chiki eram soldados de cavalaria armados de arco e espada para de sorganizadas e confusas batalhas tal como os cavaleiros tártaros que tinham por missão combater não usavam armas de fogo A maior par te das terras que lhes eram concedidas situavamse no centro e no sul do país próximas à frente de combate permanente com os tártaros Enquanto a típica votchina boiarda era um vasto domínio provido abundantemente de mãodeobra escrava e de camponeses dependentes a média no início do século XVII era de cerca de 520 unidades domés ticas na própria região de Moscou o pomeste da pequena nobreza constituía geralmente uma pequena propriedade com uma média de 5 a 6 famílias camponesas a seu serviço3 As reduzidas dimensões das 2 Já se afirmou que o volume do mercado interno era maior na década de 1560 que em meados do século XVII e a proporção do trabalho livre no conjunto da forca de trabalho era maior no século XVI que no século XVIII D I Makovsky Razvitie To varnoDenezhnykh Otnoshenii v Selskom Khozyaistve Russkovo Gosudarstva v XVI Veke Smolensko 1960 pp 203 206 3 R Hellie Enserfment andMilitary Change in Muscovy Chicago 1971 p 24 Hsta importante obra constituí a grande síntese recente sobre toda a questão da formação da servidão na Rússia e o papel da nobreza de serviço nos primórdíos do Estado czarista 330 PERRY ANDERSON posses pomeshchik e o rigor inicial do controle governamental sobre a sua exploração significava talvez que a sua produtividade fosse de modo geral bastante inferior à das terras alodiais boiardas e monásti cas A dependência econômica diante do grãoduque doador de suas terras era portanto muito estreita o que lhes deixava pouca margem para iniciativas sociais ou políticas Mas já em 1497 foi possivelmente a sua pressão que em parte resultou no decreto de Ivã III o Sudeb nik que restringia a duas semanas por ano antes e depois do dia de São Jorge em novembro o direito de movimentação dos camponeses o primeiro passo importante em direção à servidão jurídica do campe sinato russo embora o processo global tivesse ainda uma longa distân cia a percorrer Basílio III que subiu ao trono em 1505 seguiu as pe gadas de seu antecessor anexou Pskov e estendeu o sistema do po meste com suas vantagens políticas e militares para a dinastia Em alguns casos as terras alodiais apanágios de príncipes ou boiardos foram recuperadas e os seus possuidores estabelecidos em outras re giões em posses condicionais com dever de serviço militar ao Estado Ivã IV ao proclamarse czar estendeu e radicalizou este processo com a expropriação pura e simples de proprietários hostis e a criação de um corpo de guarda terrorista oprichniki que recebeu os domínios con fiscados ern troca de seus serviços A obra de Ivã IV embora tenhase constituído num passo deci sivo na construção de uma autocracia czarista tem sido freqüente mente dotada com uma coerência retrospectiva que não possuiu Na verdade o seu governo marcou três acontecimentos fundamentais para o futuro do absolutismo russo O poder tártaro no leste foi rompido pela libertação de Kazan em 1556 e pela anexação do canato de As trakan encerrando um pesadelo secular que entravava a expansão do Estado e da sociedade moscovitas Esta vitória memorável foi pre cedida pelo desenvolvimento de duas inovações cruciais no sistema mi litar russo o uso maciço de artilharia pesada e de minas contra as fortificações o que foi decisivo na captura de Kazan e a formação da primeira infantaria permanente de mosqueteiros streVtsy ambas de extrema importância para uma futura expansão externa Enquanto isso o sistema do pomest e generalizavase a uma nova escala o que acabou por alterar o equilíbrio de poder entre os boiardos e o czar Os confiscos âa oprichnina fizeram com que pela primeira vez o regime da posse condicional se tornasse a forma predominante de propriedade da terra na Rússia ao passo que os próprios domínios votchina passa vam a ser vinculados à prestação de serviço e o crescimento dos domí nios monásticos era limitado Tal mudança refletiuse no reduzido LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 331 papel da Duma boiarda durante o reinado de Ivã IV e na convocação da primeira Zemsky Sobor ou Assembléia da Terra na qual a nobreza menor estava proeminentemente representada4 E o que foi ainda mais importante Ivã IV garantiu então à classe pomeshchik o direito de determinar o nível das rendas a serem extraídas do campesinato de suas terras ao mesmo tempo que permitia que eles próprios as cole tassem tornandoos assim pela primeira vez os senhores efetivos da força de trabalho nos seus domínios5 Simultaneamente o sistema ad ministrativo e fiscal era modernizado com a abolição do sistema korm lenie de abastecimento na prática salários em espécie dos funcioná rios provinciais e a criação de um erário central para as receitas fiscais Uma rede local de autoadministração guba preenchida basicamente pela nobreza de serviço contribuiu para integrar ainda mais esta classe nascente ao aparelho de governo da monarquia russa Em seu con junto tais medidas militares econômicas e administrativas atuaram no sentido de fortalecer de modo considerável o poder político do Estado czarista central Por outro lado tanto os progressos externos como os domésticos seriam posteriormente minados pela desastrosa condução das intermi náveis Guerras da Livônia que exauriram o Estado e a economia e no plano interno pelas extorsões terroristas da oprichnina Estado acima do Estado6 oprichnina compunhase de 6 mil policiais militares e a ela estava confiada a administração da Rússia central A repressão que exercia não tinha qualquer objetivo racional correspondia apenas às próprias vinganças pessoais e insanas de Ivã IV Não ameaçava os boiardos enquanto classe somente selecionava certas pessoas em seu seio por sua vez as agitações que promovia nas cidades a dilaceração do sistema fundiário e a superexploração do campesinato foram causas diretas do colapso centrífugo absoluto da sociedade moscovita nos últi mos anos do reinado de Ivã Com efeito Ivã cometera um erro de cal 4 O exemplo da Sejm polonesa pode ser detectado na convocação desta institui ção que Ivã IV destinava talvez a atrair da Lituânia para a órbita moscovita os nobres da Rússia ocidental Billington The Icon and the Axé pp 99100 5 Hellie Enserfment and Military Change in Muscovy pp 37 45115 6 Frase cunhada por R G Skrynnikov e citada por A L Shapiro Ob Abso liutizme v Rossií Istoriya SSSR maio de 1968 p 73 O artigo de Shapiro é uma réplica a um ensaio de Avrekh a que aludimos anteriormente ver p 19 acima que iniciou um homérico debate entre os historiadores soviéticos sobre a natureza e o percurso do abso lutismo russo revelando uma gama extremamente ampla de posições com cerca de uma dúzia de contribuições à Istoriya SSSR e à Voprosy fstorii até a data em que escrevíamos este livro Há muitos pontos de interesse nessa discussão aos quais voltaremos a nos referir 332 PERRY ANDERSON culo fundamental após as suas vitórias no leste quando adotou uma política de expansão ocidental voltada para o Báltico em vez de dirigir se para o sul a fim de enfrentar a ameaça tártara na Criméia que se constituía em uma sangria permanente na segurança e na estabilidade da Rússia Capazes de derrotar os nômades orientais relativamente pri mitivos embora ferozes as novas forças militares russas eram porém incapazes de equipararse aos exércitos mais avançados da Polônia e da Suécia munidos de armas e táticas ocidentais Com a sua longa dura ção de 25 anos a Guerra da Livônia terminou num revés esmagador depois de arruinar a sociedade moscovita com enormes despesas e o de sarranjo da economia rural As derrotas na frente da Livônia combina ramse à desmoralização interna sob o chicote oprichnik para precipi tar um êxodo desastroso do campesinato da Rússia central e do no roeste para a recémanexada periferia do país deixando atrás de si re giões inteiras na maior desolação As calamidades seguiamse agora umas às outras num ciclo já familiar de extorsões fiscais más colhei tas epidemias e pestes pilhagens internas e invasões estrangeiras Os tártaros saquearam Moscou em 1571 e os oprichniki pilharam Novgo rod Numa tentativa desesperada de estancar este caos social Ivã IV proibiu toda a movimentação aos camponeses em 1581 interditando pela primeira vez o período de São Jorge o decreto proclamavase expressamente como de exceção cobrindo um ano específico ainda que tenha sido invocado intermitentemente ao longo da década Tais proibições não conseguiram controlar o problema imediato das fugas em massa enquanto grandes extensões dos tradicionais territórios da Moscóvia eram deixadas desertas Nas áreas mais atingidas a propor ção da terra cultivada por família camponesa caiu para um terço ou um quinto dos níveis anteriores verificouse uma regressão agrária genera lizada e extensas áreas ficaram sem cultivo na própria província de Moscou calculase que 76 a 96 por cento das colônias agrícolas foram abandonadas8 Em meio a este desmoronamento de toda a ordem rural laboriosamente erigida ao longo do século anterior houve um agudo recrudescimento da escravidão com muitos camponeses chegando a venderse a si próprios como escravos para escaparem à fome A derro cada final do reinado de Ivã IV íria prejudicar o progresso político e econômico da sociedade feudal russa por várias décadas corroendo 7 Veras opiniões coincidentes de Vernadsky The Tsardom ofMoscow vol II pp 1379 e Shapiro Ob Absoliutizme v Rossii pp 734 8 Hellie Enserfment and Military Change pp 957 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 333 mesmo os seus êxitos iniciais9 A ferocidade do governo de Ivã foi um sintoma do caráter histérico e artificial de grande parte de seu esforço de construção do absolutismo em condições onde qualquer autocracia sistemática era ainda prematura A década seguinte conheceu um certo alívio da profunda depres são econômica em que a Rússia tinha mergulhado mas a nobreza pomeshchik sentia ainda uma crítica escassez de mãodeobra campo nesa para cultivar as suas terras e passava a sofrer agora também com a aguda inflação Bóris Godunov o nobre que tomara o poder depois da morte de Ivã reorientou a política externa russa no sentido da paz com a Polônia a oeste do ataque aostáríaros da Criméia ao sul e acima de tudo da anexação da Sibéria a leste para isso necessitou da lealdade da nobreza de serviço militar Foi contra este pano de fundo que a fim de congregar o apoio dos nobres Godunov baixou um decreto em 1592 ou 1593 proibindo toda a mobilidade dos camponeses até determina ção em contrário suspendendo assim todas as restrições temporais de adscrição ao solo Este decreto foi o ponto culminante das medidas de servidão do final do século XVI e princípio do século XVII Foi prontamente seguido por um crescimento indiscriminado das presta ções em serviços e por medidas jurídicas que impediam o ingresso dos grupos sociais inferiores na classe pomeshchik No entanto ao elimi nar o último herdeiro da dinastia Rurik Godunov precipitou a sua queda O Estado russo desintegrouse então até quase ao caos com a Época das Dificuldades 160513 uma seqüela política de ação retar dada do colapso econômico da década de 1580 Intrigas sucessórias 9 E incorreto porém exagerar as conseqüências a longo prazo do recuo veri ficado na economia russa desses anos Makovsky considera que este teria ceifado o nas cente capitalismo russo precisamente no momento em que começava a se realizar e teria provocado uma regressão de mais de dois séculos com a consolidação da classe pomesh chik e da servidão Assim nas décadas de 60 e 70 do século XVI estavam presentes no Estado russo as condições econômicas necessárias à produção em larga escala mas a intervenção ativa da superestrutura com os onipotentes instrumentos de um Estado feu dal forte no seio das relações econômicas em benefício da nobreza não apenas impediu o desenvolvimento de novas relações como minou a situação do conjunto da economia do país Kazvitie TovarnoDenezhnykh Oínoshenii pp 2001 A oprichnina antes apre sentada como um salutar episódio antifeudal aparece nesta versão como um instrumento maléfico da reação feudal capaz de desviar toda a história russa de sua anterior traje tória progressista Um juízo deste tipo é manifestamente nãohistórico 10 V I Koretsky Zakreposhchenie Krestyan i Klassovaya Bora v Rossü vo VtoroiPolovineXVI v Moscou 1970 p 302 A pesquisa de Koretsky apontou com mais precisão que qualquer outro estudo anterior as fases e as circunstâncias exatas da ads crição jurídica à terra no final do século XVI para a sua abordagem do presumível de creto de Godunov cujo texto nunca foi recuperado ver pp 123512734 334 PERRY ANDERSON atos de usurpação entre grupos rivais conflitos entre grandes senhores no seio da classe boiarda e invasões estrangeiras da Polônia e da Suécia varreram o país As múltiplas fissuras na ordem dominante permitiram uma revolta camponesa chefiada pelos cossacos do tipo das que pon tuariam os dois séculos seguintes a insurreição de Bolotnikov em 16067 Liderada por um escravo fugitivo feito aventureiro uma hete rogênea força popular de extração urbana e rural do sudoeste marchou sobre Moscou numa tentativa de levantar a população pobre da capi tal contra o regime boiardo de usurpação no poder Tal ameaça uniu rapidamente forças hostis entre si como a pequena nobreza e os gran des senhores na luta contra os insurretos que acabaram por ser derro tados em Tula11 Mas a primeira revolta social das classes inferiores contra o aumento da repressão senhorial e da servidão serviu como advertência para as classes possuidoras das possíveis tormentas que estavam por vir Em 1613 a aristocracia cerrara o suficiente as suas fileiras para permitir a eleição do jovem boiardo Miguel Romanov como o novo im perador Na verdade o advento da dinastia Romanov iria semear lenta mente na Rússia um absolutismo que trezentos anos não conseguiriam extirpar O grupo de boiardos e funcionários diak que garantira a as censão de Miguel I conservou transitoriamente a Zemsky Sobor que a votara Em resposta às reivindicações da pequena nobreza o novo go verno promoveu a enérgica recuperação dos camponeses fugitivos in cluindo aqueles que tinham servido nas milícias antiestrangeiras da Época das Dificuldades A produção econômica foi retomada O pa triarca Filareto pai de Miguel que tornouse em 1619 o governante efetivo do país forneceu novos estímulos à classe pomeshchik entre gandolhe os territórios camponeses das terras negras no norte Mas o caráter e a orientação fundamental do novo regime Romanov estavam ligados aos grandes senhores e eram determinados pelos interesses dos boiardos metropolitanos e dos burocratas venais da capital e não dos nobres menores das províncias12 A partir daí o século XVII presen ciaria um divórcio e um conflito crescentes entre a massa da classe de serviço pomeshchik numericamente o grupo mais numeroso entre os 11 Para a revolta de Bolotnikov ver Paul Avrich Russian Rebels Londres 1973 pp 2032 12 J L H Keep The decline of the Zemsky Sobor Slavonic an East Euro pean Review 36195758 pp 1057 e The regime of Filaret 16191633 Slavonic and East European Review 38 1960 pp 33460 que oferece um minucioso relato das me didas políticas gerais do patriarca LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 335 proprietários de terra da Rússia cerca de 25 mil pessoas e o Estado absolutista tal como ocorria à mesma época na maior parte dos países europeus mas assumindo características particulares no contexto oriental de maior atraso A pequena elite boiarda da aristocracia russa cerca de quarenta a sessenta famílias era imensamente mais rica do que as fileiras da pequena nobreza era também de caráter bastante heterogêneo pois à sua composição tártara original juntaramse ao longo do século XVII elementos poloneses lituanos germânicos e sue cos Gozava de estreitos vínculos com os altos escalões da burocracia central a qual eralhe juridicamente adjacente na complexa estratifi cação da hierarquia de serviço moscovita ambos os grupos dispondo de posições situadas bem acima da pequena nobreza Foi este complexo de grandes senhores e funcionários constantemente dividido por que relas pessoais ou de facções que ditou a seu capricho as medidas go vernamentais de Moscou no início da época Romanov Duas grandes contradições o separavam da pequena nobreza de serviço Em primeiro lugar a superioridade bélica da Suécia e da Polô nia provada nas Guerras da Livônia e confirmada mais uma vez du rante a Época das Dificuldades impôs a renovação e modernização do exército russo A incerta cavalaria pomeshchik carente tanto de uma disciplina conjunta como de uma potência de fogo regular constituía um anacronismo na época da Guerra dos Trinta Anos na Europa tal como o era a desmoralizada streVtsy urbana o futuro pertencia aos regimentos de infantaria bem treinados empregados em formações em linha e munidos de mosquetes ligeiros em conjunto com os dragões de elite O regime de Filareto iniciou a formação de tropas permanentes deste tipo recorrendo a oficiais e mercenários estrangeiros No en tanto a nobreza de serviço recusouse a aderir às formas contemporâ neas da arte militar e a integrar tais regimentos de molde ocidental usados pela primeira vez na desafortunada guerra de Smolensk contra a Polônia 163234 A partir de então desenvolveuse uma crescente divergência entre a função de serviço nominal da classe pomeshchik e a verdadeira estrutura e composição das forças armadas russas que pas savam cada vez mais a ser constituídas por regimentos profissionais de infantaria e de cavalaria de novo estilo em vez das mobilizações oca sionais da pequena nobreza montada A partir da década de 1630 toda a racionalidade militar desta última tornouse crescentemente amea çada revelandose o seu papel tradicional obsoleto e redundante à 13 Hellie Enserfment and Afilitary Change pp 16474 336 PERRY ANDERSON mesma ocasião ocorriam atritos constantes entre boiardos e a pequena nobreza no seio da classe fundiária a propósito da disponibilidade da força de trabalho rural Com efeito embora o campesinato russo esti vesse então juridicamente vinculado ao solo as fugas eram ainda gene ralizadas em meio aos imensos e primitivos espaços desse país de mal definidas fronteiras ao norte a leste e ao sul Na prática os grandes senhores podiam atrair os servos dos domínios dos cavaleiros para os seus próprios latifúndios onde as condições agrárias eram habitual mente mais seguras e prósperas e os tributos feudais correspondente mente menos onerosos A pequena nobreza reclamou então energica mente a revogação de todas as restrições à recuperação de camponeses fugitivos enquanto os magnatas manobravam vitoriosamente no sen tido de manter os prazos de prescrição vencidos os quais não era mais possível a recuperação pela força dez anos depois de 1615 cinco anos após 1642 devido à crescente pressão pomeshchik A tensão entre boiardos e cavaleiros em torno das leis antifuga foi um dos temas cen trais da época e a agitação da pequena nobreza na capital foi insis tentemente utilizada para obter concessões do czar e da alta aristocra cia14 Por outro lado embora temporariamente graves os conflitos de interesses econômicos ou militares não podiam abalar a unidade social fundamental da classe fundiária em seu conjunto frente às massas ex ploradas do campo e das cidades Os grandes levantes populares dos séculos XVII e XVIII atuaram invariavelmente no sentido de reforçar a solidariedade da aristocracia feudal dominante15 14 N I Pavlenko K Voprosu o Genezisa Absoliutizma v Rossii Istoriya SSSR abril de 1970 pp 789 Pavlenko rejeitacorretamente a idéia defendida por outros participantes da polêmica historiográfica que ora se desenrola na União Soviética sob a influência da famosa fórmula de Engels segundo a qual a burguesia urbana jamais desempenhou um papel central e independente no advento do absolutismo russo Sa lienta ao contrário a importância dos atritos interfeudais entre grandes e pequenos proprietários exaustivamente analisadas por Hellie Enserfment and Military Cftange pp 1026 114 12838 15 Este fato é reconhecido mas nunca adequadamente integrado na análise geral por Hellie A grande fraqueza de seu livro é uma noção de Estado indevidamente restrita o governo russo é freqüentemente reduzido ao grupo mais elevado de grandes senhores e conselheiros de Moscou os seus propósitos a apetites individuais fortuitos impedindo qualquer preocupação com a adscrição do campesinato à terra Enserfment and Military Change p 146 Daí resulta o divórcio entre o processo social de redução à servidão e a estrutura política do Estado ao fazer desaparecer como por encanto a unidade básica da classe fundiária que determinava os vínculos entre ambos A servidão tornase assim um produto aleatório e ilógico da crise de 1648 uma imprevisível con cessão à nobreza no exato momento em que esta perdia a sua utilidade militar para o Estado que poderia muito bem nunca ter acontecido p 134 Na verdade é evidente LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 337 Foi justamente esta conjuntura que levou à codificação final da servidão na Rússia Em 1648 a elevação dos impostos e dos preços sus citou violentos levantes de artesãos em Moscou aos quais se juntaram uma explosão de revoltas camponesas nas províncias e um motim da streltsy Alarmado diante desses renovados perigos o governo boiardo em curso aceitou uma rápida convocação da decisiva Zemsky Sobor que suspendeu todas as limitações à recuperação pela força dos campo neses fugitivos atendendo assim à reivindicação fundamental da pe quena nobreza das províncias e integrandoa ao Estado central A Zemsky Sobor elaborou então o abrangente código jurídico que iria tornarse a carta social do absolutismo russo As Sobornoe Ulozhenie de 1649 codificaram e promulgaram em definitivo a servidão do cam pesinato a partir daí irreversivelmente vinculado ao solo Tanto as ter ras votchina como as do pomest e foram declaradas hereditárias e a compra e venda destas últimas foi proibida desde então todos os do mínios ficaram sujeitos ao serviço militar16 As cidades foram subme tidas a controles sem precedentes por parte do czar e meticulosamente isoladas do resto do país a sua população pobre posadskie foi assi milada aos servos do Estado somente os que pagavam impostos po diam nelas residir e nenhum habitante poderia deixálas sem permissão do monarca O estrato superior dos comerciantes gosti recebeu privi légios monopolistas no comércio e nas manufaturas mas de fato o desenvolvimento posterior das cidades foi estrangulado pela suspensão da migração rural devido à generalização da fixação à terra que gerou uma inevitável escassez da mãodeobra no reduzido setor urbano da economia A semelhança etitre as Ulozhenie russas e o Recess prus siano de quatro anos depois não precisa ser enfatizada Ambos lança ram os alicerces do absolutismo por meio de um pacto entre a monar que dois séculos de servidão na Rússia não dependeram dos acontecimentos casuais de um único ano A própria análise de Hellie demonstra posteriormente que a relação fun damental entre as frações boiarda e da pequena nobreza no seio da classe fundiária não era determinada pelos seus respectivos papéis administrativos ou pelas disponibili dades de mãodeobra mas pelo controle comum dos meios de produção mais impor tantes e pelo interesse solidário na exploração e na repressão do campesinato As nume rosas e graves disputas entre eles situamse sempre em tal contexto estrutural daí a sua instintiva solidariedade nas crises sociais quando tanto o poder do Estado como a pro priedade agrária eram ameaçados pela rebeldia camponesa 16 As principais cláusulas da Ulozhenie são descritas em Vernadsky The Tsar dom ofMoscow I pp 399411 O novo código pôs fim também ao que restava da auto nomia municipal de Novgorod e Pskov L A Fedosov Sotsiamaya Sushchnost i Evo liutsiya Rossiiskovo Absoliutizma Voprosy Istorii julho de 1971 pp 523 338 PERRY ANDERSON quia e a nobreza no qual a fidelidade política que uma buscava foi trocada pela servidão patrimonial exigida pela outra A última metade do século revelou a solidez desta união pela própria intensidade dos desafios políticos com que se defrontou A Zemsky Sobor em breve tornada inútil dissolveuse em 1653 No ano seguinte os cossacos da Ucrânia transferiram formalmente a sua vas salagem para a Rússia pelo Tratado de Pereyaslavl daí resultou a Guerra dos Treze Anos com a Polônia As tropas czaristas lançaramse à frente com alguns êxitos iniciais tomando Smolensk e avançando através da Lituânia onde Wilno foi capturada Entretanto o ataque sueco à Polônia logo complicou a situação estratégica a recuperação da Polônia custou uma década de penosas lutas e ao final as aquisi ções territoriais da Rússia mostraramse limitadas embora substan ciais Pelo Tratado de Andrussovo em 1667 o Estado czarista adquiria a metade oriental da Ucrânia alémDnieper incluindo Kiev e recupe rava a região de Smolensk ao norte Na década seguinte as incursões maciças dos turcos no sul a partir do mar Negro foram penosamente contidas à custa da devastação da maior parte da área povoada da Ucrânia Enquanto isso tais êxitos externos moderados eram acompa nhados por mudanças internas radicais na natureza do aparelho mili tar do nascente absolutismo russo Com efeito foi durante este pe ríodo à medida que o sistema de Estados declinava que o exército cresceu rapidamente atingindo um volume duas vezes superior entre 1630 e 1681 quando passou a contar com 200 mil homens em seu efetivo um nível superior ao dos maiores sistemas militares do Oci dente na época17 O papel das tropas pomeshchik não reformadas de clinou na mesma proporção Não só a nova linha fortificada de Bel gorod protegia a fronteira meridional dos ataques dos tártaros da Cri méia que outrora lhes cabia enfrentar como e acima de tudo os regi mentos semipermanentes da nova formação tornaramse o elemento primordial dos exércitos russos durante a Guerra dos Treze Anos com a Polônia Em 1674 a pequena nobreza fornecia apenas dois quintos dos efetivos da cavalaria que desde então viase no aspecto estratégico ultrapassada pela infantaria pesada Entretanto os pomeshchik eram 17 Para estimativas do volume das forças armadas durante o século XVII ver Hellie Enserfment and Military Change pp 2679 que defende incorretamente que no final da década de 1670 o exército russo era de longe o maior da Europa p 226 Na verdade o sistema militar francês era pelo menos equivalente a ele provavelmente maior Mas o volume relativo quando n3o a competência das forças armadas moscovi tas era mesmo assim impressionante LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 339 igualmente marginalizados na administração civil Com papel predo minante nas chancelarias centrais durante o século XVI foram pro gressivamente excluídos da burocracia do século XVII que passou a ser privilégio de uma casta quase hereditária de funcionários nos graus inferiores e de corruptos altos burocratas ligados aos grandes senhores nos escalões superiores18 Em 1679 além disso a dinastia Romanov aboliu a autoadministração local guba que outrora estivera nas mãos de pequenos nobres da província integrandoa na máquina cen tralizada dos governadores voevoda designados por Moscou Tampouco era satisfatória a situação dos trabalhadores nos do mínios pomeshchik Em 1658 foram decretadas novas leis que equi paravam as fugas de camponeses ao crime de felonia mas a existência inalterada das fronteiras meridionais e dos espaços agrestes da Sibéria abria expressivas fendas na consolidação jurídica da servidão embora nas regiões centrais do país a degradação dos camponeses se acentuasse cada vez mais enquanto os impostos triplicaram ao longo do século XVII a parcela média do camponês foi reduzida à metade entre 1550 e 1660 chegando a medir apenas de 15 a 2 hectares19 Esta contínua deterioração da condição camponesa desencadeou a grande insurreição rural de cossacos servos pobres dos subúrbios e escravos sob a chefia de Razin na região sudeste em 1670 que reuniu as tribos desalojadas dos Tchuvaches Maris e Mordvas e desencadeou sublevações popula res nas cidades ao longo do Volga O extremo perigo social que esta ampla jacquerie representava para o conjunto da classe dominante uniu imediatamente os boiardos e a pequena nobreza as agudas que relas entre proprietários das décadas precedentes foram esquecidas na mesma implacável repressão dos pobres A vitória militar do Estado czarista sobre a rebelião Razin na qual os novos regimentos permanen tes desempenharam um papel indispensável restabeleceu mais uma vez os vínculos entre a monarquia e a nobreza Nas duas últimas dé cadas do século foi a vez dos boiardos até aí a força propulsora por trás de sucessivos czares fainéant se curvarem e se adaptarem às exigências de um absolutismo ascendente Os grandes potentados que tinham surgido na Época das Dificuldades eram com freqüência de proveniência mista e origem recente tinham poucas razões para ape garse à antiquada e divisória hierarquia do mestnichestvo o labirín 18 Hellie Enserfment and Military Change pp 702 19 Idempp 229372 Em francês no original indolentes N T 340 PERRY ANDERSON tico sistema de posições no seio das famílias boiardas que datava do século XIV e tivera efeitos tão nocivos ao sistema de comando do novo aparelho militar do Estado Em 1682 o czar Teodoro queimou solene mente os veneráveis livros da precedência ancestral que registravam tal hierarquia a partir daí abolida condição prévia para uma maior unidade da aristocracia20 Estava montado o cenário para uma drástica reconstrução de toda a ordem política do absolutismo russo Evidentemente a máquina estatal erigida sobre estes novos fun damentos sociais foi acima de tudo a obra monumental de Pedro I O seu primeiro gesto ao subir ao poder foi dissolver a velha e incons tante streVtsy a milícia moscovita cuja turbulência fora uma fonte de freqüentes inquietudes para os seus predecessores e criar os exímios regimentos de guardas Preobrazhensky e Semenovsky que seriam a partir daí os corpos de elite do aparelho repressivo czarista21 A duali dade tradicional entre as frações boiarda e da pequena nobreza no seio da classe fundiária foi recomposta pela criação de um novo e abran gente sistema hierárquico e pela universalização do princípio do ser viço que uniu nobres e cavaleiros numa mesma estrutura política Im portaramse novos títulos da Dinamarca e da Prússia conde barão a fim de introduzir escalões mais sofisticados e modernos no seio da aristocracia que desde então passava a depender en bloc da corte tanto no aspecto social como no etimológico dvoriantsvo O poder independente dos magnatas foi implacavelmente suprimido a Dunia boiarda foi eliminada e substituída por um senado nomeado pelo czar A pequena nobreza foi reincorporada numa administração e nurn exér cito modernizados onde voltava a configurar o elemento central22 A votchina e o pomest e foram reunidos em um único modelo de pro priedade hereditária da terra e a nobreza foi indissoluvelmente ligada ao Estado por obrigações universais de serviço a partir dos catorze anos tanto no exército como na burocracia Para financiar estas insti tuições foi ordenado um novo censo da população e os antigos escravos foram assimilados à classe dos servos que passaram a ser vinculados à pessoa do senhor e não mais à terra que cultivavam podendo portanto ser vendidos por seus donos como os Leibeigene prussianos No mesmo 20 J H L Keep The muscovite elite and the approach to pluralism Slavo nicandEastEuropeanReview XLVIII 1970 pp 2178 21 M Ya Volkov O Stanovlenii Absoliutizma v Rossii Istoriya SSSR ja neiro de 1970 p 104 Também foi criado um terceiro regimento de guardas pessoais montados 22 Hellie Enserfment andMititary Change p 260 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 341 movimento as comunidades anteriormente livres das terras negras do norte e os colonos da Sibéria foram considerados servos do Estado com situação um pouco superior à dos servos privados mas com ten dência a aproximarse rapidamente da condição destes O patriarcado foi abolido e a Igreja foi firmemente subordinada ao Estado pelo novo departamento do Santo Sínodo onde o mais alto dignatário era um funcionário secular Construiuse em São Petersburgo uma nova e oci dentalizada capital O sistema administrativo foi reorganizado em go vernos províncias e distritos e o número de burocratas duplicou23 Os departamentos governamentais foram concentrados em nove colé gios centrais dirigidos coletivamente por conselhos Nos Urais insta louse uma moderna indústria metalúrgica que transformaria a Rússia num dos maiores produtores de ferro da época O orçamento foi qua druplicado basicamente com os recursos provenientes de um novo im posto sobre as almas servis A média dos impostos pagos pelos campo neses quintuplicou entre 1700 e 17078 A parte principal desta receita pública substancialmente am pliada de dois terços a quatro quintos dela foi destinada à construção de um exército profissional e de uma armada moderna os dois obje tivos dominantes de todo o programa de Pedro aos quais todos os ou tros se subordinavam Na Grande Guerra do Norte que se estendeu de 1700 a 1721 o ataque sueco à Rússia foi inicialmente coroado de êxito Carlos XII dizimou as forças czaristas em Narva invadiu a Polônia e levantou o hetman cossaco Mazeppa contra Pedro I na Ucrânia A vitória russa em Poltava no ano de 1709 complementada pelo triunfo naval no golfo da Finlândia e pela invasão da própria Suécia inverte ram todo o equilíbrio de forças na Europa oriental O poder sueco foi enfim repelido e derrotado e com a sua queda o império czarista regis trava duas conquistas geopolíticas decisivas Pelo Tratado de Nystadt em 1721 as fronteiras russas atingiam finalmente o Báltico foram ane xadas a Livônia a Estônia a íngria e a Carélia e assegurado um acesso marítimo direto para o Ocidente Ao sul num conflito separado os exércitos turcos quase infligiram uma catástrofe às tropas russas de masiado dispersas e o czar por sorte conseguiu desembaraçarse sem perdas mais sérias Não se registraram conquistas importantes ao longo do mar Negro mas a ameaça da Sech dos cossacos de Zaporozhie que 23 I A Fedosov Sotsialnaya Sushchnost i Evoliutsiya Rossiiskovo Absoliu tizma pp 5760 24 Hellie Enserfment and Military Change p 256 Para o aumento dos impos tos ver Avrich Kussian Rebels p 139 342 PERRY ANDERSON sempre impediram qualquer colonização permanente das terras do in terior da Ucrânia foi eliminada com a supressão da rebelião de Ma zeppa O absolutismo russo emergiu dos vinte anos de conflitos da Grande Guerra do Norte como uma força que se agigantava no leste da Europa No plano interno a rebelião de Bulavin contra a recaptura de servos e o trabalho forçado na região do baixo Don foi reprimida com êxito enquanto a longa revolta da Bashkíria contra a colonização russa na região do UralVolga era isolada e derrotada Todavia o perfil do Estado de Pedro com a sua incansável repressão e seus avanços terri toriais deve ser traçado sobre o fundo sombrio de um grande atraso que afetou profundamente o seu verdadeiro caráter Apesar de toda a reorganização e repressão exercida por Pedro I não foi possível superar o caráter endêmico da corrupção e do desvio de fundos públicos é de se supor que apenas um terço das receitas fiscais atingia os cofres do Es tado25 A tentativa de comprometer pela força o conjunto da nobreza ao serviço vitalício do czarismo revelouse após a morte de Pedro ex cessivamente dispendiosa Com efeito uma vez que uma aristocracia habituada ao absolutismo já estava solidamente formada e estabili zada os sucessores de Pedro podiam permitirse o relaxamento e a posterior eliminação do caráter compulsório das obrigações da no breza que foram rescindidas por seu neto Pedro III em 1762 por essa época a aristocracia estava já espontânea e seguramente integrada ao aparelho do Estado Sob os governos de uma série de monarcas fracos Catarina I Pedro II Ana e Elizabeth os regimentos da guarda criados por Pedro I tornaramse após a sua morte a arena dos conflitos entre os grandes senhores pelo poder em São Petersburgo e os seus vários putschs constituíram um tributo à consolidação do complexo institu cional czarista a partir de então os nobres conspiravam no seio da au tocracia não contra ela26 A ascensão de um novo soberano resoluto ao poder em 1762 foi portanto o sinal não para uma irrupção das tensões entre a monarquia e a nobreza mas para uma reconciliação mais harmoniosa entre ambas Catarina II revelouse o governante ideologicamente mais consciente da história da Rússia e o mais ampla 25 Dora Competition for Empire p 70 As receitas fiscais prussianas eram mais elevadas que as da Rússia na década de 1760 para um terço da população 26 A única tentativa de impor limites constitucionais à monarquia foi o projeto de Golitsyn que em 1730 preconizava o governo por um Conselho Privado oligárquico vagamente inspirado no modelo sueco foi imediatamente frustrada por uma revolta dos guardas LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 341 mente generoso com a sua classe Aspirando a uma reputação européia por seu iluminismo político promulgou um novo sistema educacional secularizou as terras eclesiásticas e fomentou o desenvolvimento mer cantilista da economia russa A moeda foi estabilizada a indústria do ferro expandida e o volume do comércio externo aumentado Os dois marcos divisórios do reinado de Catarina II foram porém a extensão da agricultura servil organizada ao conjunto da Ucrânia e a promulgação da Carta da Nobreza Para o primeiro contribuiu a destruição do ca nato tártaro da Criméia e o rompimento do poderio otomano ao longo do litoral setentrional do mar Negro Na sua condição de Estado vas salo da Turquia o canato da Griméia não impedia apenas o acesso rus so ao Euxino os seus perpétuos ataques sacudiam e devastavam as planícies do Ponto fazendo de grande parte da Ucrânia uma terrade ninguém insegura e despovoada muito tempo depois da sua incorpo ração oficial ao reino Romanov A nova imperatriz concentrou toda a força dos exércitos russos contra o controle islâmico do mar Negro Em 1774 o canato tinha sido separado da Porta e a fronteira otomana afastada para o rio Bug Em 1783 a Criméia era diretamente anexada Uma década mais tarde a fronteira da Rússia atingia o Dniester No novo litoral czarista foram fundadas Sebastopol e Odessa o acesso na val ao Mediterrâneo através dos estreitos parecia estar próximo No entanto as conseqüências deste avanço rumo ao sul se reve lariam muito mais importantes a curto prazo para a agricultura russa A eliminação definitiva do canato tártaro possibilitou a recuperação e a colonização organizada das vastas estepes ucranianas pela primeira vez largas faixas dessas terras foram convertidas em cultivos aráveis e ocupadas por uma população camponesa estável e sedentária estabe lecida em grandes domínios Dirigida por Potemkin a colonização agrária da Ucrânia representou talvez a maior ocupação geográfica da história da agricultura feudal européia Contudo não se registrou ne nhum progresso técnico na economia rural em conseqüência deste imenso avanço territorial tratouse de um ganho puramente extensivo No aspecto social serviu para submeter os habitantes outrora livres ou semilivres das regiões pioneiras à condição dos camponeses do centro provocando assim um rápido crescimento da população servil da Rús sia Durante o reinado de Catarina II o volume das rendas monetárias pagas pelos servos cresceu em alguns casos até cinco vezes o governo negouse a fixar limites máximos para as corvéias um número enorme de servos do Estado foi entregue aos nobres mais importantes para que ficassem sujeitos a um regime de exploração privada mais intensa Este episódio final e dramático do processo de redução das massas rurais à 344 PERRY ANDERSON servidão encontrou como resposta a última e a mais ampla das revoltas de inspiração cossaca chefiada por Pugatchev uma rebelião avassa ladora que abalou toda a região do Volga e dos Urais arrastando imensas e heterogêneas massas de camponeses trabalhadores metalúr gicos nômades montanheses hereges e pequenos proprietários num assalto final e desesperado contra a ordem dominante27 Todavia as cidades e as guarnições czaristas mantiveramse firmes enquanto o exército imperial era mobilizado para esmagar a revolta Sua derrota marcou o fechamento da fronteira oriental A partir daí as aldeias russas afundaram num profundo silêncio Em 1785 a Carta da No breza outorgada pela imperatriz completou a longa jornada do campe sinato rumo à servidão Através dela Catarina II garantia à aristocra cia todos os privilégios libertavaa de serviços compulsórios e lhe con cedia controle jurisdicional absoluto sobre a força de trabalho rural Á devolução de uma parcela da administração provincial transferiu gra dualmente as funções locais para a pequena nobreza28 Estava traçada a parábola característica do absolutismo em ascensão a monarquia nascera em concordância com a nobreza no século XVI Ivã IV elas colidiram às vezes violentamente durante o século XVII em meio à predominância dos grandes senhores às complexas rupturas e desloca mentos no seio do Estado e à turbulência social externa a este Miguel I a monarquia alcançou uma implacável autocracia por volta do início do século XVIII Pedro I a nobreza e a monarquia recuperaram a partir de então a harmonia e a serenidade recíprocas Catarina II A força do absolutismo russo revelouse em breve nos seus êxitos internacionais Principal inspiradora das Partilhas da Polônia Cata rina II foi também a sua maior beneficiária quando a operação foi com pletada em 1795 O império czarista foi ampliado em cerca de 500 mil quilômetros quadrados e estendiase agora até o Vístula Ao longo da 27 Avrich considera a rebelião de Pugatchev o mais extraordinário levante de massas na Europa entre as revoluções inglesa e francesa para sua análise da variada composição social da revolta ver Russian Kebels pp 196225 É evidente o gradual deslocamento geográfico das rebeliões camponesas na Rússia de Bolotnikov a Puga tchev elas se moveram numa ampla frente que ia do sul para o leste ao longo das áreas de fronteira onde era menor o controle e a presença da administração Ao contrário nunca ocorreu uma grande sublevação nas províncias centrais da antiga Moscóvia com a sua longa colonização homogeneidade étnica e proximidade da capital 28 Dukes num volume cuidadosamente documentado conclui que a subser viência da nobreza russa à autocracia czarista tem sido muito exagerada haveria antes uma fácil unidade social entre ambas Paul Dukes Catheríne the Great and the Russian Nobility Cambridge 1967 pp 24850 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 345 década seguinte a Geórgia foi anexada no Cáucaso No entanto foi a grandiosa prova de força constituída pelas Guerras Napoleônicas que demonstrou a nova primazia européia do Estado czarista A Rússia social e economicamente o mais atrasado absolutismo do Leste reve louse nos planos político e militar o único ancien regime de ponta a ponta do continente capaz de suportar o ataque francês Já na última metade do século XVIII os exércitos russos foram pela primeira vez na história enviados para regiões remotas do Ocidente Itália Suíça e Holanda para apagar as chamas da revolução burguesa ainda ati çadas pelo Consulado O novo czar Alexandre I participou da quarta e da quinta coligações contra Napoleão que resultaram em fracasso Mas enquanto os absolutismos austríaco e prussiano eram batidos em Ulm e em Wagram em lena e em Auerstadt o absolutismo russo con seguia uma trégua em Tilsit Uma vez divididas as esferas de influência entre os dois imperadores em 1807 foi possível à Rússia encetar a conquista da Finlândia 1809 e da Bessarábia 1812 em detrimento da Suécia e da Turquia Finalmente quando Napoleão lançou a sua invasão em grande escala da Rússia a Grande Armée mostrouse in capaz de desmantelar a estrutura do Estado czarista Vitorioso a prin cípio no campo de batalha o ataque francês foi aparentemente arrui nado pelo clima e pelas condições logísticas mas na realidade sua derrota se deveu à resistência impenetrável de um ambiente feudal de masiado primitivo para ser vulnerável à espada da expansão burguesa e da emancipação ocidental cuja lâmina estava agora embotada pelo bonapartismo29 A retirada de Moscou assinalou o fim da dominação francesa em todo o continente no espaço de dois anos as tropas russas achavamse aquarteladas em Paris O czarismo atravessou o século XIX como o guardião vitorioso da contrarevolução européia O Con gresso de Viena selou o seu triunfo outra grande fatia da Polônia foi anexada e Varsóvia tornouse uma cidade russa Três meses mais tar de a Santa Aliança foi solenemente encarregada por instâncias pes soais de Alexandre I de garantir a restauração monárquica e clerical do Guadarrama aos Urais 29 A ausência de uma classe média radical na Rússia privou a invasão francesa de qualquer ressonância política local Napoleão recusou seu apoio à emancipação dos servos durante o avanço sobre a Rússia embora delegações de camponeses o tivessem Inicialmente saudado e o governadorgeral de Moscou vivesse em constante temor de re beliões urbanas e rurais contra o governo czarista Napoleão porém contava chegar a um acordo com Alexandre I depois de derrotálo como fizera com Francisco II e n3o pretendia comprometer tal possibilidade com medidas sociais irreparáveis Ver os perti nentes comentários de SetonWatson The Russian Empire pp 12930133 346 PERRY ANDERSON As estruturas do Estado czarista tal como saíram dos acordos de Viena intocadas por qualquer transformação comparável às Reformas da Áustria e da Prússia não tinham paralelo em nenhum outro país da Europa O Estado foi oficialmente proclamado uma autocracia o czar governava por toda a nobreza em seu próprio nome apenas30 Abaixo dele uma hierarquia feudal estava cimentada aos próprios degraus do sistema de Estado Por um decreto de Nicolau I criouse em 1831 uma hierarquia modernizada no seio da classe nobiliária correspondente aos escalões hierárquicos da burocracia do Estado Em contrapartida todos os que ocupassem determinadas posições no serviço do Estado recebiam o grau de nobreza correspondente o qual acima de certos graus tornavase hereditário Títulos e privilégios aristocráticos conti nuaram portanto até 1917 a ser relacionados pelo sistema político com as diferentes funções administrativas A classe fundiária assim li gada ao Estado controlava cerca de 21 milhões de servos Ela própria se achava altamente es tratif içada quatro quintos desses servos estavam vinculados às terras de um quinto dos proprietários enquanto os maio res nobres apenas l por cento de toda a dvoriantsvo possuíam em seus domínios quase um terço de toda a população dos servos privados A partir de 183132 os pequenos cavaleiros em posse de menos de 21 almas foram excluídos das assembléias da nobreza A aristocracia rus sa manteve durante todo o século XIX a sua vocação para o serviço do Estado e a sua aversão pela gestão agrária Poucas famílias nobres ha bitavam o mesmo solo há mais de duas ou três gerações e a propriedade absenteísta era generalizada a residência nas cidades quer nas de pro víncia quer nas metrópoles era o ideal comum à médiae à alta aris tocracia31 As posições no aparelho de Estado eram os meios então ha bituais para atingila O Estado propriamente dito era proprietário de terras com 20 milhões de servos dois quintos da população camponesa da Rússia Era portanto o maior proprietário feudal direto do paísO exército era constituído por convocações ocasionais de servos e a nobreza hereditá ria dominava a sua estrutura de comando de acordo com o seu grau aristocrático Os grãoduques ocupavam as inspetorias gerais do exér cito e o conselho de guerra até a Primeira Guerra Mundial e durante o 30 H SetonWatson The Decline of Imperial Rússia Londres 1964 pp 527 oferece uma visão geral bastante clara da sociedade russa sob Nicolau 1 31 T Emmons The Russian Landed Gentry and the Peasant Emancipation of ítfóCambridge 1968 pp 311 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 347 seu curso os comandantesemchefe eram os primos ou tios do czar A Igreja era uma subdivisão do Estado subordinada a um departamento burocrático o Santo Sínodo cujo chefe o procuradorgeral era um funcionário civil nomeado pelo czar O Sínodo tinha o estatuto de um ministério com uma administração econômica que cuidava das propriedades eclesiásticas e era ocupada basicamente por funcionários leigos Os padres eram tratados como funcionários com dever de servir o o governo tinham que relatar as confissões que revelassem más inten ções contra o Estado O sistema educacional era controlado pelo Es tado em meados do século os reitores e professores das universidades eram designados diretamente pelo czar e por seus ministros No topo desta vasta e prolifera burocracia estava apenas a figura do autocrata e o governo de bastidores de sua chancelaria privada32 havia minis tros mas não gabinete três colméias de polícia concorrentes e peculato generalizado A ideologia da reação clerical e chauvinista que presidia este sistema era proclamada pela trindade oficial autocracia ortodo xia e nacionalidade O poder político e militar do Estado czarista na primeira metade do século XIX encontrou continua demonstração no expansionismo e no intervencionismo externos O Azerbaijão e a Ar mênia foram ocupados a resistência dos montanheses na Circássia e no Daguestão foi gradualmente anulada nem a Pérsia nem a Turquia achavamse em posição de resistir às anexações que a Rússia realizava no Cáucaso Na própria Europa os exércitos russos derrotaram uma revolta nacionalista na Polônia em 1830 e varreram a Revolução Hún gara de 1849 Nicolau l o principal executor da reação monárquica no exterior governava no plano interno sobre o único país importante do continente que não fora afetado pelas sublevações populares de 1848 O poder internacional do czarismo nunca parecera maior Na realidade a industrialização da Europa ocidental começava a converter esta confiança em algo anacrônico O primeiro grande cho que sofrido pelo absolutismo russo veio com a humilhante derrota que lhe foi infligida pelos Estados capitalistas da Inglaterra e da França na Guerra da Criméia de 185456 A queda de Sebastopol em suas 32 Os historiadores tendem a interpretar a Chancelaria Pessoal que descendia da Preobrazhensky Prikaz de Pedro I como uma decomposição dualista da centrali zação absolutista e um sintoma da decadência administrativa do czarismo no século XIX Ver por exemplo A Avrekh Russkii Absoliutizm i Evo Rol v Utverzhdenii Kapita Hzma v Rossii Istoríya SSR fevereiro de 1968 p 100 I A Fedosov Sotsialnaya Sushchnost Evoliutsiya Rossüskovo Absoliutizma Voprosy ístoríi julho de 1971 p 63 348 PERRY ANDERSON conseqüências internas pode ser comparada com a retirada de lena A derrota militar frente ao Ocidente levou à abolição da servidão por Alexandre II como a mais elementar modernização social das bases do ancien regime No entanto é necessário não exagerar este paralelo Com efeito a extensão do golpe recebido pelo czarismo foi bastante amena e limitada a Paz de Paris não era de modo algum o Tratado de Tilsit Portanto a Era das Reformas que a Rússia conheceu na década de 1860 foi apenas um eco longínquo de sua predecessora prus siana O processo jurídico foi um pouco liberalizado a nobreza rural obteve a criação de órgãos de administração autônoma zemstvo as cidades receberam conselhos municipais foi introduzido o sistema de recrutamento geral A emancipação do campesinato decretada por Ale xandre em 1861 foi executada de maneira não menos favorável à dvo riantsvo do que a de Hardenberg o fora para os junkers Distribuíram se aos servos as terras que anteriormente cultivavam nos domínios da nobreza em troca de um pagamento de compensações monetárias aos seus senhores O Estado adiantou à aristocracia o valor dessas indeni zações e depois reclamouo junto ao campesinato por vários anos na forma de pagamentos de resgates Na Rússia setentrional onde era baixo o valor das terras e os tributos servis eram pagos em espécie obrok os proprietários conseguiram extorquir quase o dobro do valor de mercado das terras em compensações monetárias Na Rússia meri dional onde as obrigações servis assumiam principalmente a forma de prestações de serviços barshchina e o rico solo negro permitia lucrati vas exportações de cereais a nobreza defraudou seus camponeses em até 25 por cento das terras melhores que lhes eram devidas as chama das otrezki33 O campesinato esmagado sob o peso dos resgates so freu assim uma redução líquida do total das terras que antes haviam cultivado para suas famílias Além disso a abolição da servidão não significou o fim das relações feudais no campo tal como já acontecera na Europa ocidental Na prática o labirinto de formas tradicionais de extração do excedente extraeconômico corporificado em direitos e deveres consuetudinários continuou a existir nos domínios russos No seu estudo pioneiro sobre O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia Lenin escreveu que após a abolição da servidão a eco nomia capitalista não podia surgir imediatamente e a economia da corvée não podia desaparecer imediatamente Deste modo o único sis 33 Geroid T Robinson Rural Rússia under tke Old Regime Nova Iorque 1932 pp 878 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 349 tema possível era uma economia da transição um sistema que combi nasse as características tanto do sistema da corvée como do capitalista Na verdade o sistema agrário praticado pelos proprietários de terra após a reforma comportava precisamente essas características Com toda a infindável variedade de formas características de uma época de transição a organização econômica da agricultura senhorial contem porânea remonta a dois sistemas básicos o sistema das prestações de serviços e o sistema capitalista Os sistemas mencionados estão na realidade entrelaçados da mais variada e espantosa maneira em gran de parte dos domínios senhoriais há uma combinação dos dois siste mas que são aplicados a operações de cultivo totalmente diversas34 Ao avaliar a incidência relativa dos dois sistemas Lenin calculava que por volta de 1899 embora o sistema de prestações de serviços predo mine nas gubernias puramente russas o sistema capitalista de cultivo deve ser considerado como dominante na agricultura senhorial da Rús sia européia em seu conjunto Uma década mais tarde porém os tremendos levantes camponeses contra as extorsões e opressões feudais da Rússia rural durante a Revolução de 1905 levaram Lenin a modifi car significativamente os termos deste juízo Em seu texto fundamental de 1907 O Programa Agrário da SocialDemocracia na Primeira Revo lução Russa ele salientava que Nas gubernias puramente russas a agricultura capitalista em grande escala passou incontestavelmente para segundo plano Nos grandes latifúndios predomina o cultivo em pequena escala compreendendo várias formas de posse agrícola ba seada na servidão e na vinculação Após acurada apreciação estatís tica da situação agrária global cobrindo a distribuição de terras durante o primeiro ano da reação de Stolypin Lenin resumia sua análise na seguinte conclusão geral dez milhões e quinhentas mil famílias cam ponesas na Rússia européia detêm 75 milhões de dessiatines de terra Trinta mil proprietários principalmente nobres rnas também novos ricos possuem quinhentas dessiatines cada um ao todo 70 milhões de dessiatines Tal é o plano de fundo principal da pintura São estas as principais razões para o predomínio dos senhores feudais no sistema agrário da Rússia e portanto no Estado russo em geral e no conjunto da vida russa Os proprietários dos latifúndios são senhores feudais no sentido econômico do termo a base da sua propriedade foi criada pela 34 V I Lenin Collected Works vol 3 Moscou 1964 pp 1945 35 Idemp 197 36 ífemvol 13 p 225 350 PERRY ANDERSON história da servidão pela história secular da pilhagem da terra pela nobreza A base dos seus métodos atuais de cultivo é o sistema de pres tação de serviços isto é uma sobrevivência direta da corvée a cultura da terra com os instrumentos dos camponeses e através da virtual es cravização dos pequenos agricultores sob uma infindável variedade de formas arrendamento de inverno rendas anuais métayage arrenda mentos baseados em rendas em serviços servidão por dívidas e por uso das terras isoladas das florestas dos prados das águas e assim por diante ad infinitum Cinco anos depois Lênin reafirmou tal opi nião de modo ainda mais categórico às vésperas da Primeira Guerra Mundial A diferença entre a Europa e a Rússia deriva do extremo atraso da Rússia No Ocidente o sistema agrário burguês está plena mente estabelecido o feudalismo foi há muito varrido e as suas sobre vivências são insignificantes e não desempenham papel de importância O tipo predominante de relação social na agricultura ocidental é o que estabelece entre o trabalhador assalariado e o patrão o fazendeiro ou proprietário de terra Sem dúvida estabeleceuse já firmemente na Rússia um sistema agrícola assim capitalista que está rapidamente se desenvolvendo É neste sentido que se desenvolve a agricultura tanto senhorial como camponesa Mas as relações puramente capitalistas no nosso país ainda estão obscurecidas em uma enorme extensão por relações feudais38 O desenvolvimento capitalista no seio da agricultura russa que Lênin e outros socialistas previram que teria ocorrido se o czarismo ti vesse conseguido restabelecer de forma duradoura o seu poder após a contrarevolução de 1907 seguiria o modelo da via prussiana de do mínios racionalizados do tipo junker com a utilização de trabalho as salariado e integrados no mercado mundial ao mesmo tempo que um estrato subsidiário de Grossbauern apareceria no campo Os escritos de Lênin do período 190614 alertavam repetidamente para a possibili dade de uma tal evolução na Rússia czarista e para o grave perigo que ela representaria para o movimento revolucionário As reformas de Sto lypin em particular foram destinadas a acelerar uma tal evolução através de sua aposta no mais forte a conversão da posse campo nesa divisível em hereditária nas aldeias a fim de incentivar o surgi mento de uma classe kulak Na realidade o programa de Stolypin ficou 37 cfemvol 13 p 421 38 Idem vol 18 p 74 Este importante artigo A natureza da Questão Agrá ria na Rússia escrito em maío de 1912 é normalmente ignorado pelos estudiosos dos escritos de Lênin sobre o tema LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 351 muito aquém de seus objetivos no nível do campesinato propriamente dito Com efeito enquanto metade das famílias camponesas possuía parcelas juridicamente hereditárias em 1915 apenas um décimo delas tinha lotes contíguos formando uma unidade a sobrevivência de um sistema de faixas de cultivo individuais e de campo aberto assegurava portanto a permanência das limitações comunais do m ir aldeão34 En quanto isso aumentavam de ano para ano os encargos das dívidas e impostos de resgate A solidariedade instintiva do campesinato russo contra a classe fundiária não foi seriamente ferida pelas reformas Os bolcheviques haveriam de surpreenderse com a unidade apaixonada dos sentimentos populares antifeudais no campo em 1917 como teste munharia Trotski mais tarde40 A superpopulação nas aldeias tornou se um problema endêmico nos últimos tempos da Rússia czarista A parcela dos cultivos camponeses no conjunto da propriedade fundiária cresceu em 50 por cento principalmente graças às aquisições dos ku laks nas quatro décadas que precederam 1917 ao passo que a proprie dade camponesa per capita decaía em um terço41 As massas rurais continuaram atoladas no atraso e na pobreza seculares Por outro lado as últimas décadas do czarismo tampouco teste munharam uma conversão dinâmica da nobreza fundiária à agricul tura capitalista Na verdade os temores quanto a uma via prussiana não se materializaram O dvoriantsvo revelouse organicamente inca paz de seguir as pegadas áosjunkers De início a sacudidela sofrida pela propriedade dominial da nobreza sugeria uma repetição da expe riência prussiana uma nova seleção e racionalização da classe fundiá ria Com efeito ocorreu um declínio da ordem de um terço na área ocupada por terras da nobreza nas três décadas anteriores a 1905 e os maiores compradores como na Prússia foram inicialmente ricos mer cadores e burgueses Não obstante após a década de 1880 as aquisi 39 Robinson Rural Rússia under the Old Regime pp 2138 40 History ofthe Russian Revolutíon Londres 1965 vol I pp 3779 ed bra sileira A História da Revolução Russa Rio Paz e Terra 1978 3 edição Ê necessário acrescentar que ocorreram em 1917 numerosos ataques de aldeões aos camponeses secessionistas que tinhamse aproveitado das reformas de Stolypin para abandonar suas comunas e as terras eram agora coletivamente reapropriadas por eles tal era a força dos sentimentos de solidariedade entre as massas dos camponeses Ver Launcelot Owen The Russian Peasant Movement 19061917 Nova Iorque 1963 pp 1534 165 72 1823 2002 20911 2345 41 Owen The Russian Peasant Movement p 6 A população cresceu de 74 milhões de habitantes em 1860 para 170 milhões em 1916 Em inglês o termo mire significa atoleiro o que permite um jogo de palavras com o termo russo mir 352 PERRY ANDERSON ções realizadas pelos camponeses ricos superaram as dos investidores urbanos Por volta de 1905 as propriedades dos mercadores eram em média mais extensas do que a dos nobres mas a área ocupada pelos kulaks representava metade da dos proprietários urbanos42 Portanto havia nitidamente um estrato de Grossbauern emergente na Rússia no período anterior à Primeira Guerra Mundial O que faltava era um salto capitalista na produtividade semelhante ao que se vira na Prússia Naturalmente as exportações de cereais para a Europa apresentaram um contínuo desenvolvimento ao longo do século antes e depois da reforma de 1861 a Rússia atingiu no século XIX a mesma posição desfrutada pela Polônia ou pela Alemanha oriental no mercado inter nacional dos séculos XVI ao XVIII embora os preços externos dos cereais tivessem sofrido uma queda depois de 1870 Entretanto no conjunto da agricultura russa a produção e o rendimento permane ceram muito baixos devido ao extremo atraso técnico O afolhamento trienal ainda predominava numa escala muito ampla praticamente inexistia o cultivo de forragens e metade dos camponeses ainda usava arados de madeira Além disso como vimos inúmeras formas de rela ções econômicas feudais continuavam a caracterizar o crepúsculo da era da reforma impedindo o progresso econômico nos grandes domí nios da Rússia central A nobreza não realizou a transição para uma agricultura capitalista moderna ou racional Não por acaso enquanto os bancos de crédito agrícola especialmente criados após a Era das Reformas na Prússia revelaramse uma medida altamente proveitosa para osjunkers garantindolhes o capital necessário para as hipotecas e os investimentos o homólogo russo criado pelo Estado em 1885 para servir à nobreza resultou num lúgubre fiasco os seus créditos foram em geral dissipados ao passo que os beneficiários afundavam em dí vidas43 Assim embora fosse inegável a rápida expansão das relações capitalistas de produção no campo no período anterior à Primeira Guerra Mundial elas nunca chegaram a adquirir a força de um grande êxito econômico e sempre continuaram enredadas na vegetação ras teira das relações précapitalistas Em conseqüência o setor predomi nante da agricultura russa em 1917 caracterizavase pelas relações feu dais de produção 42 Robinson Rural Rússia under the Old Regime pp 1315 43 M P PavlovaSilVanskaya K Voprosu Osobennostyakh Absoliutizma v Rossii Istoriya SSSR abril de 1968 p 85 O próprio Lênin tinha perfeita consciência das diferenças entre osjunkers e os dvoriane que ele caracterizava respectivamente como classes fundiárias capitalista e feudal Collected Works vol 17 p 390 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 353 Enquanto isso obviamente a industrialização avançava a passo rápido nas cidades No início do século XX a Rússia dispunha de grandes indústrias de carvão ferro petróleo e tecidos e contava com uma extensa rede de estradas de ferro Muitos dos seus complexos me talúrgicos estavam entre os de maior avanço tecnológico do mundo Ê inútil salientar aqui as conhecidas contradições internas da industria lização czarista o capital investido era basicamente financiado pelo Estado que dependia de empréstimos estrangeiros para elevar esses empréstimos era necessário garantir a solvência do orçamento o que levava à manutenção dos pesados encargos fiscais que recaíam sobre os camponeses tais encargos bloqueavam a expansão de um mercado in terno indispensável para sustentar novos investimentos44 Em nossa perspectiva interessa destacar que a despeito de todos os obstáculos o setor industrial russo nítida e completamente baseado em relações ca pitalistas de produção triplicou de volume nas duas décadas que pre cederam 1914 uma das mais altas taxas de crescimento registradas na Europa45 Nas vésperas da Primeira Guerra Mundial a Rússia era o quarto maior produtor de aço no globo acima da França O volume absoluto do setor industrial era o quinto do mundo A agricultura eqüi valia então a 50 por cento do produto nacional enquanto a indústria respondia talvez por 20 por cento excluindo o vasto sistema ferroviá rio46 Portanto calculando a importância das economias urbana e ru ral em conjunto não restam dúvidas de que em 1914 a formação social russa era uma estrutura compósita com um setor agrário pre dominantemente feudal mas com um setor capitalista agroindustrial combinado que era então no geral preponderante Lênin exprimiu este fato sinteticamente nas vésperas de deixar a Suíça quando afir mou que em 1917 a burguesia já dominava o país economicamente há vários anos47 Não obstante embora a formação social russa estivesse domi 44 Há uma refinada análise desse círculo vicioso em T Kemp Industrialization In Nineteenth Century Rússia Londres 1969 p 152 45 T H Von Laue Sergei Witíe and the Industrialization of Rússia Nova Iorque 1963 p 269 46 Raymond Goldsmith The economic growth of tsarist Rússia 18601913 Economic Development and Cultural Change IX nP 3 abril de 1961 pp 442 444 4701 uma das mais minuciosas análises da economia do período A participação da agricultura no produto nacional era em 1913 de cerca de 44 por cento na Rússia euro péia e de 52 por cento no conjunto do império czarista É difícil obter estimativas mais exatas devido às deficiências estatísticas 47 Lênin Collected Works vol 23 p 303 354 PERRY ANDERSON nada pelo modo de produção capitalista o Estado russo continuava a ser um absolutismo feudal Com efeito não ocorrera nenhuma mu dança básica em seu caráter de classe ou em sua estrutura política na época de Nicolau II Tal como antes a nobreza feudal continuava a ser a classe dominante da Rússia imperial o czarismo era o aparelho polí tico da sua dominação do qual ela nunca se afastou A burguesia era demasiado frágil para lançar um desafio autônomo e nunca conseguira ocupar posiçõeschave na administração do país A autocracia era um absolutismo feudal que sobrevivera até o século XX A derrota militar frente ao Japão e a explosão das massas populares contra o regime que se lhe seguiu de perto em 1905 forçaram o czarismo a efetuar uma série de modificações cujo sentido geral aos olhos dos liberais russos pareceu abrir a alternativa de uma evolução para a monarquia bur guesa A possibilidade formal de uma tal transformação cumulativa realmente existia como vimos no caso da Prússia Historicamente po rém os passos hesitantes do czarismo nunca se aproximaram seria mente deste objetivo Na seqüência da Revolução de 1905 o regime viria a criar uma Duma desprovida de poderes e uma Constituição de papel No espaço de um ano esta seria feita em pedaços pela dissolu ção daquela e por uma revisão do eleitorado que conferiu a todos os proprietários de terra um direito de voto equivalente ao de quinhentos trabalhadores O czar podia vetar qualquer legislação proposta por esta dócil assembléia enquanto os ministros agora agrupados num gabi nete convencional não eram responsáveis perante ela A autocracia podia decretar leis à sua vontade simplesmente prorrogando esta fa chada representativa Não havia portanto comparação possível com a situação da Alemanha imperial onde havia o sufrágio universal mas culino eleições regulares controle parlamentar do orçamento e ativi dade política irrestrita Na Rússia nunca teve lugar a transmutação política qualitativa que fez do Estado feudal prussiano o Estado capita lista alemão Tanto os princípios organizacionais como o funcionalismo czarista permaneceram intatos até o fim Lênin enfatizou expressamente e com insistência essa diferença em suas polêmicas com os mencheviques em 1911 Afirmar que o sistema de governo na Rússia já se tornou burguês como o faz Larin e que o poder governamental em nosso país já não é de natureza feudal ver o mesmo Larin e ao mesmo tempo referirse à Áustria e à Prússia como exemplos é desmentir a si mesmo Não se pode transferir para a Rússia a conclusão da revolução burguesa que se deu na Ale manha a história alemã de uma democracia que esgotou a si própria a revolução a partir de cima da década de 1860 e a legalidade alemã LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 355 realmente existente48 É evidente que a Lênin não escapava a autono mia necessária do aparelho de Estado czarista em relação à classe fun diária feudal uma autonomia inscrita nas próprias estruturas do absolutismo O caráter de classe da monarquia czarista de modo ne nhum se opõe à ampla independência e autosuficiência das autorida des e da burocracia czaristas de Nicolau II até o último dos poli ciais49 Ele procurou sublinhar o impacto crescente do capitalismo industrial e agrário sobre as políticas do czarismo e a interposição objetiva da burguesia no seu funcionamento Mas foi sempre categó rico ao caracterizar a natureza social fundamental do absolutismo rus so na sua própria época Em abril de 1917 declarou inequivocamente Antes da revolução de fevereiromarço de 1917 o poder político na Rússia estava nas mãos de uma antiga classe a nobreza fundiária feu dal chefiada por Nicolau Romanov50 Precisamente a primeira frase de Ás Tarefas do Proletariado na Nossa Revolução escrito logo após a sua chegada a Petrogrado recita O velho poder czarista repre sentava apenas um punhado de proprietários feudais que comandavam toda a máquina do Estado exército polícia e burocracia51 Esta límpida formulação constituía a pura verdade Contudo as suas con seqüências devem ainda ser exploradas Com efeito para recapitular a análise desenvolvida acima houve um deslocamento entre a formação social e o Estado nos últimos anos do czarismo A formação social russa era um conjunto complexo dominado pelo modo de produção capitalista mas o Estado russo continuava a ser um absolutismo feu dal Tal disjunção entre os dois está ainda por ser explicada e funda mentada teoricamente Por enquanto consideraremos as suas conseqüências empíricas para as estruturas do Estado russo Em sua essência o czarismo per maneceu até o último instante um absolutismo feudal Mesmo na sua fase final continuava a expandirse territorialmente para o exterior A Sibéria foi estendida para além do Amur e em 1861 foi fundada Vla 48 cemvol 17 pp 187 235 Este é um tema recorrente nos escritos de Lênin sobre o período ver vol 17 pp 1145 146 153 23341 vol 18 pp 707 Devemos voltar a esses textos cruciais com propósito diverso num estudo posterior 49 Idem vol 17 p 363 Lênin enfatizou que a autonomia da burocracia cza rista de modo algum se devia a um afluxo de funcionários burgueses os seus escalões de comando eram ocupados pela nobreza fundiária p 390 Na verdade parece provável que após a emancipação dos servos a nobreza tenha passado a contar mais do que nun ca com o desempenho de funções no Estado ver SetonWatson The Russian p 405 50 Idem vol 24 p 44 51 ífemp57 356 PERRY ANDERSON divostok Depois de duas décadas de conflitos a Ãsia central foi absor vida em 1884 Na Polônia e na Finlândia intensificouse a russificação administrativa e cultural Sobretudo no aspecto institucional o Es tado em certos aspectos decisivos era muito mais poderoso que qual quer outro absolutismo ocidental jamais o fora pois conseguiu sobre viver na época da industrialização européia tornandose assim capaz de importar a mais avançada tecnologia do mundo e de se apropriar dela em proveito próprio Com efeito o Estado renunciara ao seu do mínio sobre a agricultura através da venda de suas terras apenas para melhor se entrincheirar na indústria Possuía por tradição as minas e as instalações siderúrgicas dos Urais Financiava e construía agora a maior parte do novo sistema ferroviário que representava a segunda despesa orçamentária mais elevada depois das forças armadas Os contratos públicos eram de modo geral predominantes na indústria russa dois terços da produção em equipamentos era destinada ao Estado As tarifas aduaneiras eram extremamente elevadas quatro ve zes maiores que as da Alemanha ou as da França duas vezes mais altas que as dos Estados Unidos de forma que o capital local dependia ba sicamente da proteção e supervisão do Estado O Ministério das Finan ças controlava a política de empréstimos do Banco Central aos empre sários privados e estabeleceu sobre estes um predomínio geral graças às suas abundantes reservas de ouro Assim o Estado absolutista foi na Rússia o principal motor da rápida industrialização a partir de cima Em 1900 na época capitalista do laissezfaire o seu exacerbado papel econômico não tinha equivalentes no Ocidente desenvolvido O desenvolvimento desigual e combinado produzira portanto na Rússia um colossal aparelho de Estado que englobava de forma sufocante o conjunto da sociedade abaixo da classe dominante Esse Estado inte grara perfeitamente a hierarquia feudal em sua burocracia absorvera a Igreja e o ensino e supervisionara a indústria ao mesmo tempo em que gerava um exército e uma polícia de gigantescas proporções É evidente que tal aparelho feudal tardio era inevitavelmente sobredeterminado pela ascensão do capitalismo industrial no final do século XIX tal como as monarquias absolutas ocidentais tinham sido em sua época sobredeterminadas pela ascensão do capitalismo mer cantil Paradoxalmente porém a burguesia russa continuava a ser do ponto de vista político muito mais frágil que as suas predecessoras do Ocidente embora a economia que representava fosse muito mais forte do que o haviam sido as economias ocidentais da transição São bem conhecidas as razões históricas dessa debilidade insistentemente ana lisadas por Trotski e Lênin ausência do artesanato pequenoburguês LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 357 extensão limitada da burguesia devido às grandes empresas temor da irrequieta classe operária dependência das tarifas dos empréstimos e dos contratos do Estado Quanto mais se avança para leste mais frá gil e covarde se torna a burguesia proclamava o primeiro manifesto do POSDR Não obstante o Estado absolutista russo não deixou de revelar a marca da classe que se tornara o seu auxiliar relutante e ti morato mais do que seu oponente Tal como numa época anterior a venda de cargos permitia avaliar a presença subordinada da classe mer cantil no seio das formações sociais ocidentais assim a notória contra dição burocrática entre os dois principais pilares do Estado russo o Ministério do Interior e o Ministério das Finanças fornecia um índice dos efeitos do capital industrial na Rússia Por volta da década de 1890 havia um conflito constante entre estas duas instituições cen trais52 O Ministério das Finanças desenvolvia políticas consoantes com os objetivos ortodoxos da burguesia Os seus inspetores apoiavam os patrões em sua recusa a fazer concessões salariais aos operários era hostil às comunas aldeãs que representavam um obstáculo ao livre comércio da terra Em franco conflito com este o Ministério do Inte rior vivia obcecado pela manutenção da segurança política do Estado feudal Preocupavase sobretudo com a prevenção das desordens pú blicas e lutas sociais Na busca de tais objetivos a sua rede repressiva de espiões e provocadores policiais era imensa Contudo ao mesmo tempo tinha pouca simpatia pelos interesses corporativos do capital industrial Pressionava assim os patrões a fazer concessões aos traba lhadores de forma a evitar o perigo de estes virem a fazer reivindica ções políticas Reprimia todas as greves que aliás eram sempre ilegais mas pretendia manter agentes de polícia permanentes dentro das fábri cas com o intuito de estudar as suas condições e assegurar deste modo que não provocariam explosões Naturalmente os patrões e o Ministé rio das Finanças resistiam a estas medidas e daí resultou uma luta pelo controle das inspetorias fabris que foram conservadas pelo Ministério das Finanças somente depois de um compromisso de colaboração com a polícia No campo o Ministério do Interior encarava com burocrático paternalismo as comunas aldeãs nas quais lhe cabia e não ao Minis tério das Finanças a coleta dos impostos uma vez que as via como baluartes da submissão tradicional e barreiras contra a agitação revo lucionária Esta comédia de contradições reacionárias culminou na 52 Há uma esclarecedora análise de suas contradições em SetonWatson Tht Decline of Imperial Rússia pp 114 12691378143 PERRY ANDERSON criação dos sindicatos policiais pelo Ministério do Interior e na insti tuição das leis trabalhistas pelo carrasco Plehve Os efeitos de bume rangue desta experiência a Zubatovshchina que acabou por gerar l o padre Gapon são por demais conhecidos O que aqui aparece como sintomaticamente mais importante é esse delirante esforço final do Es l tado absolutista depois de ter incorporado a nobreza a burguesia o campesinato o ensino o exército e a indústria em procurar produzir até mesmo seus próprios sindicatos sob a égide da autocracia Poi tanto a abrupta máxima de Gramsci Na Rússia o Estado erM 53 l tudo a sociedade civil era primitiva e gelatinosa continha umtj veracidade histórica real Não obstante Gramsci não conseguiu enxergar por que as coisatl assim se passaram escapoulhe a definição científica do caráter histôj rico do Estado absolutista na Rússia Encontramonos agora em post cão de remediar esta lacuna de seu texto Uma vez situado o Estac russo na perspectiva européia da época as peças se encaixam em sei lugar Os seus contornos tornamse imediatamente evidentes A aut cracia russa era um Estado feudal embora a Rússia fosse no sécul XX uma formação social compósita dominada pelo modo de produçí capitalista uma dominância cujos efeitos remotos são visíveis nas ei truturas do czarismo A sua época não era a do império de Guilherr ou a da Terceira República seus rivais ou parceiros os seus verdade ros contemporâneos foram as monarquias absolutistas da transição feudalismo ao capitalismo no Ocidente A crise do feudalismo produzi no Ocidente um absolutismo que sucedeu à servidão a crise do feudl lismo no Leste gerou um absolutismo que institucionalizou a servidS O ancien regime russo sobreviveu longamente a seus correlatos ocic George Gapon foi o agente policial responsável pela organização do Sindici dos Trabalhadores Industriais da Rússia Foi também o líder da procissão popular qd em 1905 pretendia entregar uma petição dos operários ao czar Como ê sabido o ma crê dessa manifestação desencadeou a Revolução de 1905 passando à história como Domingo Sangrento N T 53 O objetivo de Gramsci era aqui estabelecer o contraste entre a Rússia i Europa ocidental No Ocidente havia uma justa relação entre Estado e sociedade i e quando o Estado tremia imediatamente se revelava uma poderosa estrutura da dade civil Note sul Machiavelli p 68 ed brasileira Maquiavel a Política e o EstQ Moderno Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1978 3 ed p 75 Retomar noutro lugar de forma mais extensa a esta passagem crucial na qual Gramsci analisar os diferentes problemas estratégicos com que se defrontava o movimento rio na Europa oriental e na Europa ocidental durante o século XX ver o texto de derson As Antinomias de Antônio Gramsci publicado originalmente na Afew Left t view N T LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 359 tais apesar de sua natureza de classe e funções comuns porque nasceu de uma matriz diferente Ao final ele extraiu do próprio advento do capitalismo industrial a força que concentrava no topo implantandoq j burocraticamente a partir de cima tal como os seus predecessores ti i flham feito para fomentar o capitalismo mercantil Os anceslrais de Witle foram Colbert ou Olivares O desenvolvimento internacional do i Imperialismo capitalista irradiado para o império russo a partir do f Ocidente foi que tornou possível essa combinação da mais avançada í tecnologia do mundo industrial com a mais arcaica monarquia da Eu ropa Por fim evidentemente o imperialismo que de início fora arma tdura do absolutismo russo acabou por engolfálo e destruílo as pro ivações da Primeira Guerra Mundial foram mais fortes que ele54 Pode le dizer que numa confrontação entre Estados imperialistas industria jurados ele estava literalmente fora de seu elemento Em fevereiro de 1917 bastou uma semana para que as massas o derrubassem Se as coisas se passaram assim é necessário ter a coragem de iXtrair as conseqüências A Revolução Rutisa não foi feita contra um fstado capitalista O czarismo que caiu em 1917 era um aparelho feu l o Governo Provisório não teve tempo de o substituir por um novo U estável aparelho burguês Os bolcheviques levaram a cabo uma re ão socialista mas do princípio ao fim jamais se defrontaram 5m o inimigo fundamental do movimento operário no Ocidente profunda intuição de Gramsci estava neste sentido correta o mo Brno Estado capitalista da Europa ocidental continuava a ser depois Revolução de Outubro um objeto político novo para a teoria mar ilta e para a prática revolucionária A profunda crise que abalou todo IK continente assolado pela guerra em 191720 deixou a sua própria irança importante e seletiva A Primeira Guerra Mundial pôs fim à uga história do absolutismo europeu O Estado imperial russo foi irrubado por uma revolução proletária O Estado imperial austríaco apagado do mapa por revoluções nacionalistas burguesas A des jlçSo e o desaparecimento de ambos teve caráter permanente A cau i do socialismo triunfou na Rússia em 1917 e foi brevemente agitada Hungria em 1919 Na Alemanha porém eixo estratégico da Eu 54 Evidentemente o próprio imperialismo czarista era uma combinação de ex lo feudal e capitalista com uma inevitável preponderância da componente feudal H In em 1915 teve o cuidado de fazer esta distinção necessária Na Rússia o impe no capitalista de tipo mais recente revelouse inteiramente na política do czarismo fflucão à Pérsia à Manchúria e à Mongólia mas em geral o imperialismo militar e 0dnl era predominante na Rússia Collected Works vol 21 p 306 360 PERRY ANDERSON ropa a transformação capitalista da monarquia prussiana assegurou a sobrevivência integral do antigo aparelho de Estado na época de Versa lhes Os dois derradeiros Estados feudais importantes da Europa orien tal caíram diante de revoluções vindas de baixo de caráter diverso O Estado capitalista que fora antes o seu confrade legitimista resistiu a todos os levantes revolucionários em meio ao desespero e aos escom bros de sua própria derrota diante da Entente O fracasso da Revolução de Novembro na Alemanha tão significativo para a história da Europa como o êxito da Revolução de Outubro na Rússia estava fundado na natureza diversa da máquina de Estado que cada uma delas enfrentou Os mecanismos da vitória e da derrota socialistas nesses anos vão às raízes nos mais profundos problemas da democracia burguesa e prole tária que ainda estão por resolver na teoria e na prática na segunda metade do século XX Os ensinamentos e as implicações políticas da queda do czarismo para um estudo comparado das formações sociais contemporâneas permanecem até hoje largamente inexplorados Neste sentido o obituário histórico do absolutismo que expirou em 1917 ainda está à espera de suas linhas finais A Casa do Islã A Primeira Guerra Mundial que lançou uns contra os outros os principais Estados capitalistas do Ocidente e destruiu os últimos Es tados feudais do Leste teve origem no único ponto da Europa onde o absolutismo jamais conseguiu se consolidar No aspecto geopolítico os Bálcãs constituíam uma subregião distinta cuja evolução anterior a separava do restante do continente Com efeito precisamente esta au sência de qualquer integração tradicional ou estável no sistema político internacional do fim do século XIX e início do século XX faria desta área o barril de pólvora da Europa que detonou a conflagração de 1914 Portanto o padrão geral de desenvolvimento nessa parte do con tinente serve adequadamente de prova e epílogo a qualquer pesquisa sobre o absolutismo Ao longo de sua existência no continente o Impé rio Otomano foi sempre uma formação social à parte Sob o domínio da Porta pela sujeição ao Islã os Bálcãs pareciam ter escapado à pers pectiva geral européia No entanto a estrutura e a dinâmica próprias do Estado turco conservam grande valor como termo de comparação pelo contraste que estabelecem com cada uma das variantes do absolu tismo europeu Além disso as características do sistema otomano ofe recem a explicação fundamental para o fato de a península balcânica ter continuado a evoluir após a última crise medieval segundo um padrão totalmente divergente do verificado no resto da Europa oriental com conseqüências que se prolongaram até este século Os guerreiros turcos que invadiram a Anatólia oriental no século XI eram ainda nômades do deserto Deviam o seu sucesso na Ásia Me nor onde os árabes tinham fracassado em parte à semelhança entre 362 PERRY ANDERSON esse ambiente climático e geográfico e aquele que conheciam dos pla naltos áridos e frios da Ásia central de onde provinham o camelo bac triano seu meio básico de transporte adaptavase perfeitamente às terras altas da Anatólia que se tinham mostrado intransitáveis para o dromedário árabe dos trópicos1 Todavia eles não chegaram simples mente como habitantes primitivos das estepes Desde o século IX os escravos turcos serviam como soldados as dinastias abássida e fatímida do Oriente Médio tanto nas fileiras como no oficialato chegando mes mo a obter postos da mais alta patente A analogia com o papel das tribos germânicas fronteiriças na fase final do Império Romano já foi muitas vezes salientada Cinqüenta anos antes da batalha de Manzi kert os seldjúcidas desceram de seus oásis no Turquestão para a Pérsia e a Mesopotâmia derrubaram o decadente Estado buída e criaram um grande império seldjúcida com capital em Bagdá A maior parte des ses conquistadores turcos tornouse rapidamente sedentária ao serviço do exército e da administração do novo sultanato que por sua vez herdou e assimilou as velhas e enraizadas tradições urbanas do Antigo Islã com as suas fortes influências persas transmitidas pelo legado do califado abássida Ao mesmo tempo contudo uma ala não pacifi cada dos nômades turcomanos lançavase em ataques desordenados contra as fronteiras do novo império Foi com o objetivo de encurralar e disciplinar essas tropas irregulares que Alp Arslan partiu para o Cáu caso e em seu caminho envolveuse na fatídica destruição do exército bizantino em Manzikert Como vimos anteriormente a esta vitória não se seguiu nenhuma invasão organizada da Anatólia pelo sultanato seldjúcida as suas preocupações militares voltavamse para o Nilo não para o Bósforo Foram as tribos pastoris turcomanas que herdaram os frutos de Manzikert e a partir daí puderam progredir sem oposição para o interior da Anatólia Estes soldados e aventureiros fronteiriços não buscavam apenas terras para seus rebanhos Por uma espécie de autoseleção estavam também caracteristicamente marcados pelo cha mado espírito ghazi uma fé militante de cruzada muçulmana que re jeitava toda a acomodação com o infiel do tipo que viria a definir os Estados constituídos do Antigo Islã3 Com efeito uma vez que a Ana 1 Xavier de Planhol Lês Fondements Géograpkiques de 1Histoire de IIslam Paris 1968 pp 3944 2089 2 C Cahen La campagne de Manzikert daprès lês sources musulmanes Byzantion IX 1934 pp 62142 3 Paul Wittek The Rise of the Ottoman Empire Londres 1963 pp 1720 Esta breve e brilhante monografia é a obra fundamental sobre a natureza da primitiva expansão otomana LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 363 tólia foi efetivamente ocupada com as sucessivas ondas migratórias do século XI ao XIII o mesmo conflito se reproduziu na Ásia Menor O sultanato de Rum ramo seldjúcida com o centro em Konia em pouco tempo recriou um próspero Estado de inspiração persa constante mente em conflito com os anárquicos emirados ghazi vizinhos espe cialmente o dos danichmênidas sobre os quais acabou por obter a su premacia Não obstante as invasões mongóis do século XIII em bre ve submeteriam todos os Estados turcos em luta na Anatólia A re gião converteuse num mosaico de pequenos emirados e de grupos de pastores nômades Desta confusão emergiu o sultanato osmanli a par tir de 1302 para se tornar a potência dominante não apenas na Tur quia mas em todo o mundo islâmico A dinâmica peculiar que animava o Estado otomano e que o ele vou tão acima dos seus rivais da Anatólia reside na combinação única dos princípios do espírito ghazi e da tradição do Antigo Islã4 Afortu nadamente situado às portas das planícies da Nicéia imediatamente vizinho do que restava do Império Bizantino a sua proximidade com as fronteiras do mundo cristão manteve efervescente o seu fervor religioso e militar quando outros emirados do interior se deixaram cair numa relativa frouxidão Desde o início os chefes osmanli consideravamse missionários do espírito ghazi empenhados numa guerra santa contra o infiel Ao mesmo tempo o seu território localizavase na principal rota de comércio terrestre através da Ãsia Menor e por isso atraía os mercadores e artesãos bem como os religiosos ulemás que formavam o elemento social indispensável a um Estado do Antigo Islã dotado de uma solidez institucional sem nomadismo e sem cruzadas O sultanato osmanli endurecido pelas guerras constantes de sua cavalaria entre 1300 e 1350 conseguiu assim aliar a sofisticação jurídica e administra tiva das cidades do Antigo Islã ao violento zelo militar e proselitista dos habitantes ghazi das fronteiras Simultaneamente uma parte de seu 4 Wittek op cit pp 3746 A análise de Wittek sobre os princípios duaüstas do Estado otomano é na realidade o reflexo indireto da famosa divisão proposta por Ibn Khaldun para a história islâmica em fases alternadas de asabiyya nômade caracterizada pelo fervor religioso pela solidariedade social e pelas proezas militares e úefarâgh ou dia urbana caracterizada pela prosperidade econômica pela sofisticação administrativa e pelo lazer cultural as quais ele acreditava serem mutuamente incompatíveis a civilização urbana não poderia resistir à conquista nômade a fraternidade nômade seria incapaz de sobreviver à corrupção urbana produzindose assim uma história cíclica de formação e desintegração do Estado A abordagem de Wittek sobre o Império Otomana pode ser interpretada como uma sutil inversão desta fórmula no Estado turco os dois princípios contraditórios do desenvolvimento político islâmico encontraram pela pri meira vez uma harmonia estrutural 364 impulso social básico repousava ainda na busca da terra pelos nôma des que fora a força propulsora da ocupação primitiva da Anatólia pelos turcos5 A expansão territorial era também um processo de colo nização econômica e demográfica O potencial explosivo desta fórmula política em breve se faria sentir na Europa cristã O avanço triunfante dos exércitos turcos em direção aos Bálcãs internandose profundamente na península e assim envolvendc a assediada capital bizantina a partir da retaguarda é um fato connecido Em 1354 instalaramse em Galípoli Em 1361 toma ram Andrinopla Em 1389 as forças da Sérvia da Bósnia e da Bulgária eram aniquiladas em Kossovo destruindo assim todas as possibilidades de resistência eslava organizada na maior parte da região Logo a se guir caíram a Tessália a Moréia e Dobrudja Em 1396 a expedição de cruzados enviada para impedir o seu avanço foi destruída em Nicópo lis Veio então uma breve pausa quando o exército de Bajazé ocupado em anexar pela força alguns emirados muçulmanos irmãos da Anató lia defrontouse com as hostes de Tamerlão que varriam aquela zona e foi esmagado em Ancara sobretudo em razão do abandono pelos con tingentes ghazi de uma causa que julgavam ímpia e fratricida Rude mente chamado à sua vocação religiosa o Estado osmanli reconstituiu se lentamente durante os cinqüenta anos seguintes no outro lado do Bósforo transferindo a sua capital para Adrianopla na linha de frente da guerra contra a cristandade6 Em 1453 Maomé II tomou Constan tinopla Na década de 1460 foram anexadas a Bósnia ao norte e o emirado caramânide na C11 í c ia Na década seguinte o canato târtaro da Criméia foi reduzido à condição de vassalo e Cafa recebeu uma guarnição turca Nos primeiros vinte anos do século XVI Salim I con quistou a Síria o Egito e o Hedjaz Na década subseqüente Belgrado foi capturada submeteuse a maior parte da Hungria e a própria Viena assediada Nesta altura quase toda a península balcânica fora inva dida Grécia Sérvia Bulgária Bósnia e Hungria oriental eram provín cias Otomanas A Moldávia a Valáquia e a Transilvânia eram princi pados tributários governados por monarcas cristãos dependentes cer 5 Ernst Werner Die Geburt einer Grossmacht Die Osmanen pp 19 95 A obra de Werner é o principal estudo marxista sobre o crescimento do poder otomano sua crítica ao descaso de Wittek em relação ao impulso tribal à busca da terra subjacente ao expansionismo osmanli em sua origem é no entanto corroborada pela pesquisa do historiador turco Omer Barkan 6 P Wittek De Ia défaite dAnkara à Ia prise de Constantinople un demi siècle dhistoire ottomane Revue dês Êtudes Islamiques 19481 pp 134 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 365 cados por territórios sob domínio direto dos turcos no Danúbio e no Dniester O mar Negro era um lago otomano Enquanto isso no Orien te Médio fora anexado o Iraque em seguida o Cáucaso foi absorvido No Magrebe Argel Trípoli e Túnis foram sucessivamente submetidas à soberania turca O sultão passara a ser o califa de todas as terras sunitas do Islã à época de seu apogeu sob o reinado de Solimão I em meados do século XVI o reino osmanli era o mais poderoso império do mundo Fazendo sombra a seu rival europeu mais próximo Solimão I contava com uma receita duas vezes maior que a de Carlos V Qual a natureza deste colosso asiático O seu perfil forma um estranho contraste com os contornos do absolutismo europeu seu con temporâneo O fundamento econômico do despotismo osmanli era a ausência virtualmente absoluta da propriedade privada da terra7 To dos os territórios aráveis e pastoris do império eram considerados pa trimônio pessoal do sultão à exceção das doações religiosas waqf8 Na teoria política otomana o supremo atributo de soberania era o direito ilimitado que assistia ao sultão de explorar todas as fontes de riqueza de seu reino bem como as possessões imperiais9 Daí advinha que não podia existir uma nobreza estável e hereditária no seio do império por que não havia garantia de propriedade que lhe servisse de base Honra e riqueza confundiamse efetivamente com o Estado e a posição social derivava simplesmente dos postos ocupados em seu seio O próprio Es tado achavase imprecisamente dividido em colunas paralelas mais 7 Esta era para Marx a característica fundamental de todas as formas do que ele chamou seguindo uma longa tradição despotismo asiático Em comentário à fa mosa descrição da índia mongol feita por Bernier escrevia ele a Engels Bernier consi dera acertadamente como base de todos os fenômenos orientais referese à Turquia à Pérsia ao Industao a ausência da propriedade privada da terra É esta a verdadeira chave até para o paraíso oriental Selected Carrespondence p 81 Os comentários de Marx sobre o modo de produção asiático levantam muitos problemas que conside raremos adiante Se retivermos por ora o uso do termo despotismo para o Estado otomano este deve ser entendido num sentido estritamente provisório e meramente des critivo Em grande medida ainda inexistem conceitos científicos para a análise dos Esta dos orientais desta época 8 H A R Gibb e H Bowen Islamic Society and the West vol I l parte Londres 1950 pp 2367 Os lotes onde se construíam as casas vinhedos e pomares situados dentro dos limites das aldeias eram propriedade privada mulk tal como a maior parte dos terrenos urbanos o significado dessas exceções horticultura e cidades será discutido no contexto geral do Islã Em 1528 cerca de 87 por cento do território otomano era constituído por propriedade mm ou do Estado Halil Inalcik The Ottoman Kmpire Londres 1973 p 110 9 Stanford Shaw The ottoman view of the Balkans em C e B Jelavich Orgs The Baikan in Transition BerkeleyLos Angeles 1963 pp 5660 ilustra com clareza esta concepção 366 PERRY ANDERSON tarde designadas pelos historiadores europeus não pelos pensadores otomanos o que é significativo como instituição governante e ins tituição religiosa ou muçulmana embora nunca tenha existido entre ambas uma separação rigorosa10 A instituição governante com preendia todo o aparelho burocrático e militar do império Os seus estratos superiores eram recrutados basicamente entre exescravos cris tãos cujo grupo principal foi iniciado nestas funções graças à criação do devshirme Tal instituição nascida provavelmente na década de 1380 foi a expressão mais notável da interpenetração dos princípios ghazi e do Antigo Islã que definiu o conjunto do sistema otomano em ascensão11 Todos os anos efetuavase um recrutamento de crianças do sexo masculino entre as famílias cristãs das populações subjugadas nos Bálcãs afastadas dos pais eram mandadas a Constantinopla ou à Anatólia para serem educadas como muçulmanas e treinadas para posições de comando no exército e na administração como servidores diretos do sultão Deste modo conciliavamse as tradições ghazi de conversão religiosa e expansão militar e a tradição do Antigo Islã de tolerância e tributação junto aos infiéis O recrutamento do devshirme fornecia à instituição governante entre mil e 3 mil escravos por ano a eles se somavam outros 4 ou 5 mil prisioneiros de guerra ou homens comprados no exterior que passa vam pelo mesmo processo de treinamento a educação na grandeza e na obediência12 O corpo de escravos do sultão assim constituído propor cionava as altas fileiras da burocracia imperial desde o cargo supremo de grãovizir até os postos provinciais dos beilerbeis e sanjkbeis e a totalidade do exército permanente da Porta composto pela cavalaria especial da capital e pelos famosos regimentos janízaros que consti tuíam a infantaria e a cavalaria de elite do poder otomano De início uma das funções principais do devshirme era precisamente formar sol dados de infantaria disciplinados e confiáveis numa época em que a 10 Os termos instituição governante e instituição muçulmana foram cu nhados por A H Lybyer The Government of lhe Ottoman Empirein íhe Timeof Sulei man lhe Magnificent Cambridge EUA 1913 pp 368 A sua aceitação generalizada pelos historiadores subseqüentes foi criticada por N Itzkowitz Eighteenth century otto man realities Studia Islâmica XVI 1962 pp 815 mas sem provas substanciais con tra o seu uso para o século XVI 11 S Vryonis Isidore Glabas and the turkish devshirme Speculum XXXI julho de 1956 n 3 pp 43343 estabeleceu a dataçSo moderna da instituição 12 Inalcik op cit p 78 L S Stavrianos The Balkans Since 1453 Nova Iorque 1958 p 84 Na Bósnia excepcionalmente o devshirme foi estendido às famílias muçulmanas locais LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 367 predominância internacional da cavalaria estava chegando ao fim e os cavaleiros turcomanos revelavamse material inadequado para uma conversão à infantaria profissional O surpreendente paradoxo que é uma sinarquia de escravos impensável no feudalismo europeu encon tra uma explicação inteligível no conjunto do sistema social do despo tismo osmanli13 Havia com efeito um vínculo estrutural entre a au sência da propriedade privada da terra e a eminência da propriedade estatal de homens Efetivamente uma vez que estava suspenso qual quer conceito jurídico estrito de propriedade no domínio fundamental da riqueza básica da sociedade as conotações convencionais da posse no domínio da mãodeobra diluíamse e se transformavam do mesmo modo Uma vez que toda a propriedade fundiária era uma prerrogativa da Porta deixava de ser degradante tornarse propriedade humana do sultão a escravidão não se definia pela oposição à liberdade mas pela proximidade de acesso ao comando imperial uma vizinhança ne cessariamente ambígua que envolvia a heteronomia completa e poder e privilégios imensos O paradoxo do devshirme era portanto perfeita mente lógico e funcional no seio da sociedade otomana em seus pri mórdios Por sua vez a instituição governante não se resumia apenas ao corpo de escravos do sultão Este coexistia com um estrato nativo de militares islâmicos os guerreiros sipahi que ocupavam uma posição muito diferente mas complementar no interior do sistema Esses ca valeiros muçulmanos formavam uma espécie de arma territorial nas províncias O sultanato lhes atribuía domínios fundiários ou timars 13 É evidente que o sistema otomano tinha profundas raízes nas primitivas tra dições muçulmanas Há na história islâmica significativos precedentes para os guardas e comandantes escravos de elite como veremos A condição histórica do domínio político dessas tropas palatinas era a ausência da utilização econômica do trabalho escravo no ramo principal da produção a agricultura O mundo muçulmano tradicionalmente importava escravos sobretudo para fins domésticos e suntuários e estes sempre se distin guiam nitidamente dos escravos militares privilegiados Somente no caso excepcional do Iraque meridional sob o domínio abássida a escravidão foi predominante na econo mia agrária e aí ela constituiu um episódio relativamente breve que desencadeou as insurreições Zanj no final do século IX No império turco alguns domínios que esca pavam ao sistema fundiário regular parecem ter sido cultivados por parceiros escravos adquiridos no estrangeiro pela guerra ou por compra mas essa força de trabalho mar ginal acabaria geralmente por se assimilar à condição camponesa ordinária durante o século XVI Ao mesmo tempo o monopólio jurídico da terra de que gozavam os sultões otomanos também se baseava em tradições islâmicas anteriores remontando às primei ras conquistas árabes no Oriente Médio Portanto as duas características do sistema turco discutidas acima não eram fenômenos arbitrários ou isolados mas a culminância de um longo e coerente desenvolvimento histórico que abordaremos mais à frente 368 PERRY ANDERSON em alguns casos unidades maiores os ziamets dos quais podiam ex trair rendimentos cuidadosamente fixados em troca dos serviços mili tares prestados A renda proveniente do tintar determinava a extensão das obrigações de seu titular para cada 3 mil aspres o timariot tinha que fornecer um cavaleiro Instituídos pela primeira vez por Murad I na década de 1360 estimase que em 1475 haveria cerca de 22 mil sipahis na Rumélia e 17 mil na Anatólia onde os timars eram em geral menos extensos14 O total da cavalaria mobilizável por este sistema era evidentemente muito maior Havia uma permanente competição pelos timars das fronteiras européias do império entre outros os janí zaros vitoriosos eram freqüentemente recompensados com eles em troca dos seus serviços A Porta nunca estendeu plenamente tal sistema aos remotos territórios árabes conquistados à sua retaguarda no século XVI onde lhe era possível dispensar a cavalaria necessária nas frontei ras cristãs e nas terras do interior da Turquia situadas atrás delas Portanto as províncias do Egito Bagdá Basra e do golfo Pérsico não tinham terras timar mas estavam guarnecidas por tropas janízaras e pagavam uma soma anual fixa em impostos ao erário central Essas regiões desempenhavam um papel muito mais importante no aspecto econômico do que no militar dentro do império O eixo original da ordem otomana estava nos estreitos e a sua forma básica era definida pelas instituições dominantes nas províncias pátrias da Rumélia e da Anatólia sobretudo da primeira Os timariots e os zaims constituíam o similar mais próximo de uma classe de cavaleiros no seio do Império Otomano Mas os domínios timar de modo algum eram genuínos feudos Embora os sipahis cum prissem certas funções administrativas e policiais para o sultanato em suas localidades não exerciam qualquer senhorio feudal ou jurisdição senhorial sobre os camponeses que trabalhavam em seus timars Os timariots não desempenhavam quase nenhum papel na produção rural eram essencialmente exteriores à economia agrária Na realidade os camponeses tinham a garantia hereditária de posse das terras que culti vavam e os timariots não os timars não eram hereditários e cada vez que um novo sultão subia ao trono os seus titulares eram sistematica mente renovados a fim de evitar o excessivo enraizamento na terra 14 Inalcik op cíf pp 108113 A história otomana é ainda pouco pesquisada as informações estatísticas que se lhe referem são em geral discrepantes de autor para autor O próprio estudo de Inalcik contém duas cifras aparentemente contraditórias para o número de sipahis no reinado de Solimão I pp 48 e 108 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 369 Mais próximos do sistema pronoia que jurídica e etimologicamente os precedera os timars tinham um âmbito muito mais limitado e estavam sujeitos a um controle muito mais rigoroso do que o sistema grego No Império Otomano compreendiam menos da metade da área culti vada na Rumélia e na Anatólia já que as restantes à parte os waqfs estavam reservadas ao uso direto do sultão da família imperial ou dos altos funcionários do palácio16 O estrato timariot era portanto nessa época um componente importante mas subordinado no as pecto econômico e no político no seio da ordem dominante Situada um tanto à parte do complexo burocráticomilitar da instituição governante estava a instituição muçulmana Com preendia o aparelho religioso jurídico e educacional do Estado e era naturalmente ocupada com poucas exceções por muçulmanos orto doxos nativos Juizes kadi teólogos ulemá professores medresa e uma multidão de outros clérigos assalariados desempenhavam as tarefas ideológicas e judiciais essenciais do sistema de dominação otomano O ápice da instituição muçulmana era oMufti de Istambul ou Sheik ulIslam supremo dignitário religioso que interpretava para os fiéis a lei sagrada do S fiaria A doutrina islâmica nunca admitiu qualquer separação ou distinção entre Igreja e Estado noção que para ela quase não tinha significado O império osmanli foi o primeiro sistema político muçulmano a criar uma hierarquia religiosa especialmente organizada com um clero comparável ao de uma verdadeira Igreja Além disso era esta hierarquia que proporcionava os principais funcionários forenses e civis ao aparelho temporal de Estado os kadis recrutados no seio do ulemato eram o esteio fundamental da administração das províncias otomanas Assim também aí estava presente uma nova composição de impulsos ghazi e do Antigo Islã O zelo religioso do primeiro encontrou um escoadouro no fanático obscurantismo do ulemato turco ao passo que a gravitas social do último era acatada graças a sua sólida inte gração nos mecanismos do sultanato Daí podia advir que o Sheikul íslam se opusesse às vezes às iniciativas da Porta invocando preceitos do Sharia de que era o guardião oficial1 Esta limitação formal da autoridade do sultão era em certo sentido o reverso da ampliação do 15 S Vryonis The bizantine legacy and ottoman forms Dumbarton Oaks Papers 196970 pp 2735 16 Gibb e Bowen Jslamic Society and the West II pp 4656 L Stavrianos Th Balkans Since 1453 pp 867 99100 17 Gibb e Bowen op cit II pp 856 370 PERRY ANDERSON poder do Estado otomano originária da criação de um aparelho ecle siástico profissionalizado Tal fato de modo algum anulava o despo tismo político exercido pelo sultão sobre as possessões imperiais que correspondia integralmente à definição weberiana de burocracia patri monial na qual os problemas jurídicos tendem sempre a tornarse sim ples questões de administração ligadas ao costume e à tradição18 Visto que todo o território arável do império era considerado pro priedade do sultão o objetivo interno fundamental do Estado otomano que determinava a sua organização e divisão administrativas era natu ralmente a exploração fiscal das possessões imperiais Com esse fim a população era dividida em uma classe dominante osmanlilar que in corporava as instituições governante e religiosa e a classe subjugada rayah incluindo muçulmanos e infiéis A imensa maioria desta última era composta evidentemente pelo campesinato que era cristão nos Bálcãs Durante o domínio otomano nunca se fez qualquer tentativa de conversão em massa das populações cristãs balcânicas Com efeito tal corresponderia a renunciar às vantagens econômicas derivadas da classe rayah de infiéis os quais com base nas remotas tradições do Antigo Islã e do Sharia podiam ser onerados com impostos especiais não extensivos aos súditos muçulmanos havia portanto um conflito di reto entre a tolerância de origem fiscal e a conversão de viés missioná rio O devshirme como vimos serviu aos osmanli para resolver este problema através do recrutamento de crianças para islamização dei xando o restante da população cristã na sua fé tradicional ao preço dos impostos tradicionais Todos os rayahs cristãos deviam ao sultão uma taxa especial de capitação e ao ulemato dizimas para a sua manuten ção Ao lado disso os camponeses que cultivavam a terra dos timars ou ziamets deviam tributos monetários aos titulares desses benefícios A proporção dessas obrigações era cuidadosamente fixada pela Porta e os 18 Ver as observações de Weber Economy and Society li pp 8445 Na ver dade Weber considerava o Oriente Próximo como o lugar clássico do que ele desig nava precisamente sultanismo Economy and Society III p 1020 Ao mesmo tempo era cauteloso em enfatizar que mesmo o mais arbitrário despotismo pessoal operava sempre dentro de uma estrutura ideológica consuetudinária Chamarseá autoridade patrimonial a dominação primordialmente tradicional mesmo quando exercida em vir tude da autonomia pessoal do governante quando opera primordialmente numa base discricionária chamarseá sultanismo Pode por vezes parecer que o sultanismo não encontra limites na tradição mas na realidade isso nunca acontece Contudo os elemen tos nãotradicionais não se racionalizam em termos impessoais mas consistem apenas num desenvolvimento extremo do poder discricionário do monarca É esse o traço que o distingue de todas as formas de autoridade racional Economy and Society I p 232 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 371 timariots ouzaims não podiam alterála arbitrariamente Os arrendatá rios tinham a garantia da estabilidade da posse a fim de assegurar a regularidade da receita fiscal e eram protegidos contra as extorsões senhoriais para impedir a drenagem local dos excedentes que deve riam ir para o centro do império As prestações em serviços que ha viam existido à época dos príncipes cristãos foram restringidas ou abo lidas19 O direito camponês de mudar de residência era controlado embora não tivesse sido eliminado na prática a competição entre os timariots para obter trabalhadores encorajava a mobilidade informal no campo Assim ao longo dos séculos XV e XVI o campesinato dos Bálcãs achouse subitamente liberto da crescente degradação servil e da exploração senhorial sob os monarcas cristãos e viuse transferido para uma condição social que paradoxalmente era em muitos aspec tos mais amena e mais livre do que em qualquer outra região da Eu ropa oriental na época O destino do campesinato balcânico contrasta com o dos seus senhores tradicionais Nas fases iniciais da conquista turca alguns se tores das aristocracias cristãs da região dos Bálcãs passaramse para os otomanos e muitas vezes lutaram ao seu lado como aliados secundá rios ou tropas auxiliares Tal colaboração ocorreu na Sérvia na Bul gária na Valáquia e em outras partes No entanto com a consolidação do poder imperial otomano na Rumélia a autonomia residual desses senhores chegou ao fim Alguns se converteram ao islamismo e foram assimilados à classe dominante otomana principalmente na Bósnia Outros receberam timars no novo sistema agrário sem se converterem Mas os timariots cristãos jamais foram muito numerosos e os seus do mínios eram habitualmente modestos com pequeno rendimento No espaço de poucas gerações desapareceram por completo20 Assim em toda a zona dos Bálcãs a nobreza étnica local em breve estava elimi nada um fato de grandes conseqüências para o ulterior desenvolvi mento social da região Além do Danúbio somente a Valáquia a Mol dávia e a Transilvãnia escaparam à ocupação e à administração diretas 19 O código de Dushan obrigava os camponeses sérvios a trabalhar na terra do senhor dois dias por semana De acordo com Inalcík sob o domínio otomano o rayafi devia ao sipahi apenas três dias de trabalho por ano The Ottoman Empire p 13 O seu próprio relato subseqüente dos serviços devidos aos detentores de timars não corresponde absolutamente a este número tão baixo pp 1112 Não há porém razões para duvidar de uma relativa melhora na situação do campesinato balcânico 20 H Inalcik Ottoman Methods of Conquest Studia Islâmica II 195 pp 10416 372 PERRY ANDERSON do sultanato Nas duas primeiras a recémformada classe de boiardos romena que acabara de entrar na fase de unificação política e de su jeição econômica do campesinato nativo pôde conservar as suas terras e o seu poder provincial pagando apenas um pesado tributo anual em espécie para Istambul Na Transilvânia os proprietários magiares con servaram o seu domínio sobre uma população que na sua maior parte era etnicamente estranha a eles romenos saxões ou magiares Exceto esses casos a dominação otomana no sudeste da Europa varreu dos Bálcãs a nobreza local Os resultados finais desta profunda modifica ção dos sistemas sociais autóctones foram complexos e contraditórios Por um lado como vimos tal processo conduziu a uma nítida melhoria das condições materiais do campesinato após a consolidação da conquista turca Não apenas as taxas e tributos rurais foram dimi nuídas como a longa paz otomana implantada na região sudeste aquém da frente da Europa central afastou dos campos a maldição das constantes guerras entre nobres Por outro lado as conseqüências so ciais e culturais da completa destruição das classes dominantes nativas tiveram um caráter inegavelmente regressivo As aristocracias balcâni cas exploravam o campesinato de forma muito mais opressiva do que a administração otomana nos seus primórdios Mas a própria constitui ção de uma nobreza fundiária na passagem da Idade Média para a época moderna representava um avanço histórico incontestável nessas formações sociais retardatárias pois assinalava uma ruptura com os princípios de organização clânica a fragmentação tribal e as formas políticas e culturais que lhes eram inerentes O preço pago por este avanço foi precisamente a estratificação de classe e uma maior explo ração econômica Os Estados balcânicos da última fase medieval eram como vimos notavelmente frágeis e vulneráveis Mas o colapso que sofreram antes das invasões turcas não significa a impossibilidade de um desenvolvimento potencial na verdade o padrão de aparentes fal sas partidas e subseqüentes recuperações era típico da Europa feudal em seu início tanto no Ocidente como no Leste e em geral assumiu a forma de estruturas administrativas prematuramente centralizadas como as que existiram nos Bálcãs do final da Idade Média A elimina ção pelos turcos da classe fundiária local impediu daí em diante qual quer dinâmica endógena Ao contrário a sua principal conseqüência política e cultural foi uma efetiva regressão às instituições clânicas e às tradições particularistas entre a população rural dos Bálcãs Assim nos territórios sérvios onde tal fenômeno tem sido particularmente es tudado reapareceriam agora como unidades difusas de organização so cial no campo formas já em vias de extinção quando da invasão oto LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 373 mana aplemena tribal oknez baseado no poder do chefe e zzadruga laços de parentesco21 A recidiva generalizada em um particularismo patriarcal foi acompanhada por um acentuado declínio no nível de ins trução A articulação cultural da vida das populações subjugadas tor nouse em grande parte um monopólio do clero ortodoxo cujo servi lismo para com os governantes turcos só era igualado por sua ignorân cia e superstição As cidades perderam a sua importância comercial e intelectual transformandose em centros militares e administrativos da dominação otomana semeados de artesãos e lojistas turcos Portanto embora a grande massa da população rural tivesse se beneficiado mate rialmente com o impacto inicialda conquista turca já que esta levou a uma redução do excedente extraído dos produtores diretos no campo a outra faceta do mesmo processo histórico foi a interrupção de qualquer desenvolvimento social autóctone em direção a uma ordem feudal mais avançada um regresso a formas patriarcais préfeudais e uma longa estagnação em toda a evolução histórica da península balcânica Enquanto isso as províncias asiáticas do império turco conhece ram notáveis progressos e recuperação durante o apogeu do poder oto mano no século XVI Se a Rumélia continuava a ser o principal teatro de guerra dos exércitos do sultão a Anatólia a Síria e o Egito gozavam os benefícios da paz e da unidade que a conquista osmanli trouxera ao Oriente Médio A insegurança criada pela decadência dos Estados ma melucos no Levante deu lugar a uma administração enérgica e centrali 21 O historiador Bósnio Branislav Djurdjev foi o grande responsável pela eluci dação deste processo de regressão social Para uma abordagem de sua obra e das discus sões que suscitou ver W S Vucinich The yugoslav lands in the ottoman period post war marxist interpretations of yndigenous and ottoman institutions The Journal of Modem History XXVII n 3 setembro de 1955 pp 287305 A ênfase de Djurdjev no caráter contraditório do impacto inicial provocado pelos otomanos sobre a sociedade balcânica contrasta com as opiniões russas e turcas predominantes que tendem a sa lientar unilateralmente como resultado da conquista otomana seja a destruição e a re pressão seja a pacificação e a prosperidade Para um exemplo das interpretações sovié ticas ver Z V UdaVtsova O Vnutrennykh Prichinakh Padenyia Vizantü v XV Veke Voprosy Istorii julho de 1953 n 7 p 120 um artigo que comemora ou lamenta o 500 aniversário da queda de Constantinopla e afirma que o domínio turco levou dire tamente à intensificação da exploração das massas rurais Para um exemplo das posições turcas ver H Inalcik Uempire ottomane Actes du Premier Congrès International dês Étudea Balkaniques et SudEst Européenes Sofia 1969 pp 815 As tensões entre as duas tendências estão presentes nas comunicações ao congresso que incluem uma ri gorosa declaração de Djurdjev recapitulando os seus pontos de vista B Djurdjev Lês changements historiques et ethniques chez lês peuples slaves du Sud après Ia conquête lurque pp 5758 22 VerV S Vucinich The nature of balkan society under ottoman rule Slavic Revíew dezembro de 1962 pp 603 6045 614 374 PERRY ANDERSON zada que suprimiu o banditismo e estimulou o comércio interregional A depressão do final da Idade Média nas economias da Síria e do Egito fustigadas por invasões e epidemias foi contida com a recuperação da agricultura e o aumento da população Estas duas províncias chega riam a fornecer um terço das receitas do tesouro imperial Na Anató lia o crescimento demográfico foi particularmente notável indício evi dente de expansão agrária a população rural deve ter aumentado em dois quintos ao longo do século O comércio floresceu tanto no interior das próprias províncias orientais como especialmente ao longo das ro tas de comércio internacionais que ligavam a Europa ocidental à Ásia ocidental através do Mediterrâneo ou do mar Negro As estradas eram bem conservadas com estações de posta construídas pelo governo para evitar a pirataria os mares eram patrulhados por tropas otomanas Especiarias sedas escravos veludos alúmen e outras mercadorias cruzavam o império em grandes quantidades levadas por mar ou em caravanas O comércio intermediário do Oriente Médio florescia sob a proteção da Porta para benefício do Estado otomano Esta prosperidade comercial por sua vez conduziu a um surto de crescimento urbano A população das cidades parece ter duplicado no século XVI Em seus primórdios a sociedade osmanli contava com um número limitado mas florescente de centros manufatureiros em Bursa Edirna e outras cidades onde se produziam ou se beneficia vam as sedas os veludos e outros bens de exportação25 Após conquis tar Bizâncio Maomé II promoveu uma política econômica mais escla recida do que a dos imperadores comenos ou paleólogos aboliu os pri vilégios comerciais genoveses e venezianos e instituiu tarifas protecio nistas bastante amenas para fomentar o comércio local No espaço de um século de domínio turco a própria Istambul aumentou talvez de 40 para 400 mil habitantes No século XVI era de longe a maior cidade da Europa Não obstante a expansão econômica do império na sua fase de supremacia tinha desde o início limites bem definidos A recuperação agrícola das províncias asiáticas durante o século XVI parece não ter 23 Inalcik TheOttoman Empire p 128 24 Omer Lutfi Barkan Essai sur lês données statistiques dês registres de ré censement dans 1Empire Ottomane aux XVe et XVIe siècles Journal ofthe Economic and Social History ofthe Orient vol ll agosto de 1957 pp 278 à parte a macroce falia da própria Istambul acompanhada pelo declínio de Alepo e Damasco a população de doze cidades provinciais importantes aumentou cerca de 90 por cento no século XVI 25 Halü Inalcik Capital formation in the Ottoman Empire The Journal of Economic History XXIX n l março de 1969 pp 10819 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 375 KÍdo acompanhada por qualquer aperfeiçoamento significativo no do mínio da tecnologia rural A inovação mais importante na área rural do Oriente Médio no limiar da época moderna a introdução do milho americano ocorreu numa fase posterior quando todo o império já se achava em franco declínio O surto demográfico na Anatólia pode ser em grande parte atribuído à restauração da paz e à sedentarização das tribos nômades uma vez que a estabilização do domínio otomano permitira à colonização agrícola uma nova expansão depois da última queda demográfica do Império Bizantino Este processo em breve en contraria os seus limites à medida que a disponibilidade de terra se esgotava com os níveis técnicos existentes Ao mesmo tempo o reflo rescimento do comércio através do império não se refletia necessaria mente na atividade das manufaturas locais ou na importância dos mer cadores Com efeito o caráter particular da economia e do governo ur banos nos territórios otomanos esteve sempre determinado pelas limita ções impostas pelo sultanato Nem a presença de um artesanato provin cial e de uma vasta capital nem o interesse episódico de alguns gover nantes puderam alterar o relacionamento basicamente hostil existente entre o Estado otomano e as cidades e indústrias Nas tradições polí ticas islâmicas não havia lugar para o conceito de liberdades urbanas As cidades não dispunham de autonomia corporativa ou municipal na verdade podese dizer que não tinham sequer existência jurídica Da mesma forma como não havia Estado mas um governante e seus agen tes não havia tribunais mas um juiz e seus auxiliares também não havia cidades mas um conglomerado de famílias quarteirões e guil das cada qual com os seus próprios chefes e dirigentes Em outras palavras as cidades estavam desprovidas de defesas diante da vontade do Comandante dos Fiéis e seus servidores A regulamentação oficial dos preços das mercadorias e a aquisição obrigatória de matériaspri mas limitavam os mercados urbanos As corporações de ofício eram cuidadosamente vigiadas pelo Estado e o seu conservadorismo técnico era por ele reforçado Além disso o sultanato intervinha quase sempre contra os interesses das comunidades autóctones de mercadores urba nos encarados com constante suspeita pelos ulemás e detestado pelo populacho artesão As medidas econômicas do Estado tendiam a dis criminar o capital comercial de grande escala e a proteger a pequena produção com seu arcaísmo corporativo e fanatismo religioso27 A tí 26 Bernard Lewis The Emergence of Modem Turkey Londres 1969 p 393 Hvidentemente Lewis exagera ao defender que não havia Estado 27 Inalcik Capital formation in the Ottoman Empire pp 1036 376 PERRY ANDHRSON pica cidade turca passou a ser dominada por um menu peuple deca dente e atrasado que impedia qualquer inovação ou acumulação de ca ráter empresarial Dada a natureza do Estado otomano não existia um espaço protecionista onde pudesse desenvolverse uma burguesia mer cantil turca e a partir do século XVII as funções comerciais foram crescentemente devolvidas às comunidades minoritárias de infiéis gregos judeus ou armênios que sempre haviam dominado o comér cio de exportação para o Ocidente Assim os comerciantes muçulma nos ficaram em geral confinados às modestas ocupações de lojistas e artesãos De tal modo mesmo no seu apogeu o nível da economia oto mana nunca atingiu um grau de desenvolvimento comparável ao da organização política otomana A força motriz fundamental da expan são do império foi sempre e inexoravelmente de caráter militar No plano ideológico a estrutura da dominação turca não conhecia limites geográficos Na cosmogonia osmanli o planeta dividiase em duas gran des áreas a Casa do Islã e a Casa da Guerra A Casa do Islã com preendia os territórios habitados pelos verdadeiros fiéis que seriam gradualmente reunidos sob os estandartes do sultão A Casa da Guerra abarcava o resto do mundo povoado por infiéis cujo destino era serem conquistados pelos Soldados do Profeta38 Num sentido prático isso significava a Europa cristã em cujas portas os turcos tinham estabele cido a sua capital Na verdade ao longo de toda a história do império o verdadeiro centro de gravidade da classe dominante osmanlilar foi a Rumélia a própria península balcânica e não a Anatólia terra natal dos turcos Daí partiriam um após outro os seus exércitos mar chando rumo ao norte para a Casa da Guerra a fim de ampliar a pre sença do Islã O fervor o número e a perícia das tropas do sultão fi zeramnas invencíveis na Europa por duzentos anos desde a sua pri meira entrada em Galípoli A cavalaria sipahi que saía regularmente para as batalhas ou ataques de surpresa juntamente com a infantaria janízara de elite revelaramse os instrumentos fatais da expansão oto mana no sudeste da Europa Os sultões além disso não hesitaram em utilizar os recursos humanos e o saber cristão de várias maneiras dife rentes do devshirme fonte de suas tropas terrestres A artilharia turca estava entre as mais avançadas da Europa sendo em certas ocasiões especialmente preparada para a Porta por engenheiros ocidentais rene gados A armada turca logo rivalizava com a de Veneza graças à expe 28 GibbeBowenIslamicSocietyandíhe West ll pp 201 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 377 riência de seus capitães e tripulantes gregos29 Apropriandose voraz mente de técnicos e artífices militares da Europa a máquina de guerra otomana associava em seu apogeu a modernidade qualitativa dos me lhores exércitos cristãos com uma mobilização quantitativa muito su perior à de qualquer Estado cristão isolado que viesse a enfrentála Apenas as coligações conseguiram contêla ao longo da fronteira do Danúbio Até a data do cerco de Viena em 1529 as lanças espanholas e austríacas foram incapazes de dobrar os sabres dos janízaros No entanto a partir do momento em que estancou a expansão turca a decadência de seu despotismo lentamente se instaurou O fe chamento das fronteiras osmanli na Rumélia provocaria uma reação em cadeia império adentro Comparado com os Estados absolutistas do final do século XVI e início do século XVII o Império Otomano era cultural tecnológica e comercialmente atrasado A sua penetração na Europa fizerase através do ponto mais frágil do continente as esfa celadas defesas dos Bálcãs da última fase medieval Confrontado com as mais robustas e mais representativas monarquias Habsburgo foi em última instância incapaz de alcançar o triunfo seja em terra Viena seja no mar Lepanto Desde a época da Renascença o feudalismo europeu vinha dando origem ao capitalismo mercantil que nenhum despotismo asiático podia reproduzir muito menos o da Porta com a sua completa carência de invenções e seu desprezo pelas manufaturas A interrupção do expansionismo turco foi determinada pela crescente superioridade econômica social e política da Casa da Guerra Foram múltiplos os resultados desta inversão de forças para a Casa do Islã A estrutura da classe dominante osmanlilar basearase na perpétua con quista militar Fora isso que permitira a anomalia configurada no con trole do aparelho de Estado por uma elite escrava de origem nãomu çulmana enquanto as fronteiras cediam ao avanço dos exércitos oto manos a necessidade e a racionalidade dos corpos de janízaros e do devshirme viase justificada na prática para o conjunto da ordem do minante as vitórias de Vânia Rodes Belgrado e Mohacs pagaram esse preço Foi também tal característica que tornou possível o nível inicialmente moderado da exploração rural nos Bálcãs e a severa vigi lância do Estado central Com efeito a classe osmanlilar podia contar com as fortunas advindas da anexação de territórios cada vez mais ex tensos da Casa da Guerra com a multiplicação dos timars e ziameís 29 Para uma ênfase particular sobre a utilização de técnicos e artesãos europeus pela Porta ver R Mousnier Lês XVIe et XVIIe siècles Paris 1954 pp 4634 474 378 PERRY ANDERSON que se seguia ao avanço para o norte Dessa maneira os mecanismos sociais do botim eram fundamentais para as rígidas unidade e disci plina do Estado turco no seu zênite Contudo uma vez interrompida a expansão territorial era inevi tável uma lenta involuçao de toda esta enorme estrutura Os privilégios de um corpo de escravos de origem alienígena uma vez destituídos de suas funções militares tornaramse progressivamente intoleráveis para a maior parte da classe dominante do império que acabou por lançar mão de sua força de inércia para normalizar e recuperar o comando do aparelho político da instituição governante A população rural exce dente que fora incorporada nas tropas auxiliares e grupos de pilhagem do exército da Porta voltouse para a revolta social ou para o bandi tismo quando a máquina militar deixou de poder absorvêla Além disso a suspensão das extensas aquisições de terra e tesouro levaria inevitavelmente a formas muito mais intensas de exploração dentro das fronteiras do poder turco às custas da classe subjugada rayah Do fim do século XVI ao início do XIX a história do Império Otomano é por tanto essencialmente a da desintegração do Estado imperial centrali zado da consolidação de uma classe fundiária nas províncias e da de gradação do campesinato Este longo e exaustivo processo que não se fez sem passageiras fases de recuperação política e militar não decor reu do isolamento dos Bálcãs frente ao restante do continente europeu Ao contrário foi aprofundado e agravado pelo impacto internacional da supremacia econômica da Europa ocidental diante de cujo poder o Império Otomano estagnado no parasitismo tecnológico e no obscu rantismo religioso viuse progressivamente derrotado Da revolução dos preços no século XVI à Revolução Industrial do século XIX o desenvolvimento do capitalismo ocidental afetaria de modo sempre crescente a sociedade balcânica O lento declínio do Império Otomano foi determinado pela supe rioridade econômica e militar da Europa absolutista A curto prazo os seus maiores reveses foram sofridos na Ásia A Guerra dos Treze Anos com a Áustria entre 1593 e 1606 revelouse um dispendioso beco sem saída Mas as guerras com a Pérsia mais longas e destrutivas que duraram com breves interrupções de 1578 a 1639 terminaram em derrota e frustração A consolidação vitoriosa do Estado safávida na Pérsia marcou uma imediata guinada nos destinos do Estado osmanli As guerras contra a Pérsia que resultaram na perda do Cáucaso infli giram imensos danos ao exército e à burocracia da Porta A Anatólia terra natal da população imperial de etnia turca nunca se constituíra como vimos no seu centro político Foi na Rumélia que o novo sistema LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 379 social otomano se implantou sistematicamente no século XIV e XV com um sistema de posse da terra e de administração militar adaptado às necessidades internacionais do Estado imperial A Anatólia pelo contrário manteve a sua estrutura social e religiosa tradicional com fortes reminiscências da antiga organização nômade e clânica visíveis nos beyliks do interior e na latente hostilidade para com a complacên cia cosmopolita de Istambul Os timars da Anatólia eram de modo geral menores e mais pobres que os da Rumélia A classe sipahi local sobre a qual recaíam as crescentes despesas da participação nas cam panhas periódicas em virtude da acelerada inflação do final do século XVI demonstrava um entusiasmo cada vez menor pelo conflito inter muçulmano com os persas Ao mesmo tempo a expansão agrária na Anatólia rural estava nesta altura interrompida o grande aumento da população acabara por criar uma classe cada vez mais numerosa de camponeses sem terra ou levandat nas terras altas Recrutados em massa nas mobilizações promovidas pelos governadores provinciais para a frente da Pérsia os levandats adquiriram o treinamento mas não a disciplina militar Assim o esforço das guerras e as vitórias ini migas na fronteira oriental precipitaram lentamente um colapso de toda a ordem social da Anatólia O descontentamento dos timariots combinouse à miséria dos camponeses numa série de tumultuados le vantes as chamadas revoltas jelali que eclodiram entre 1594 e 1610 e entre 1622 e 1628 misturando insubordinação provincial banditismo social e restauração religiosa30 Foi também nesses anos que as incur sões dos cossacos através do mar Negro fustigaram com êxito humi lhante Varna Sinope Trebizonda e mesmo os subúrbios de Istambul Finalmente os líderes sipahi das rebeliões jelali da Anatólia deixaram se comprar enquanto os levandats que os seguiam eram reprimidos Mas foram vultosos os danos causados pela onda de banditismo e anar quia da Anatólia ao ânimo interno do sistema otomano O século XVII ainda presenciaria novas explosões jelali nesses mesmos campos onde a pacificação nunca fora completa Entretanto na própria Porta os custos do longo conflito com a Pérsia eram agravados pela crescente inflação importada do Ocidente À altura do final do século o afluxo dos metais americanos à Europa 30 Quanto ao fenômeno do levandat anatoliano e as revoltas jelali em geral ver V J Parry The Ottoman Empire 15661617 The New Cambridge Modem Hàtoryr III pp 37274 e The Ottoman Empire 16171648 The New Cambridge Modem His tory IV pp 62730 380 PERRY ANDERSON renascentista tinha aberto caminho através do império turco Nos do mínios otomanos a relação ouroprata era inferior à do Ocidente o que tornava a exportação de moedas de prata para estas regiões um negócio altamente lucrativo para os comerciantes europeus que ressar ciam a diferença em ouro O resultado dessa maciça injeção de prata foi naturalmente uma súbita elevação dos preços que o sultanato tentou em vão compensar com a desvalorização da aspre Entre 1534 e 1591 o valor das receitas do tesouro decaiu pela metade3 A partir de então os orçamentos anuais registraram regularmente um crescente déficit à medida que se desenrolavam as guerras contra a Áustria e a Pérsia Como conseqüência inevitável abateuse sobre os súditos do império um grande aumento dos encargos fiscais O imposto de capita ção rayah pago pelo campesinato cristão cresceu seis vezes entre 1574 e 1630n Tais medidas porém funcionavam apenas como paliativo numa situação na qual o próprio aparelho de Estado dava sinais de males e crises cada vez mais sérias Os corpos de janízaros e o estrato devshirme que constituíram a cúpula do aparelho imperial otomano na época de Maomé II foram os primeiros a revelar sintomas gerais de decomposição Logo no início do século XVI durante o reinado de Solimão I os janízaros conquistaram o direito de casar e ter filhos que outrora lhes era negado Os encargos com os dependentes elevaram naturalmente o custo de sua manuten ção que já tinham subido bastante devido à inflação transmitida pelo afluxo de prata vinda da Europa ocidental através do comércio medi terrâneo do império o qual quase não produzia manufaturas Assim entre 1350 e 1600 o soldo dos janízaros quadruplicou enquanto a aspre turca era constantemente desvalorizada e o nível geral dos preços decu plicava33 Conseqüentemente a fim de atender a seu sustento os janí zaros foram autorizados a suplementar os seus rendimentos mediante atividades artesanais ou no comércio quando não estavam em guerra Depois em 1574 quando Salim II subiu ao trono obtiveram o direito de alistar seus filhos nos regimentos janízaros Dessa maneira o que era uma elite profissional de militares selecionados pelo mérito conver teuse gradualmente numa milícia hereditária e semiartesanal Na mesma proporção desintegrouse a sua disciplina Em 1589 o pri 31 Inalcik The Ottoman Empire p 49 32 Inalcik UEmpireOttomane pp967 33 Stavrianos The Balkans Since 1453 p 121 Lewis The Emergence of Mo dem Turkey pp 289 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 381 meiro motim vitorioso dos janízaros por aumento de soldo derrubou o grãovizir governante e deu início a um padrão que assumiria carac terísticas endêmicas na vida política de Istambul em 1622 pela pri meira vez um levante de janízaros derrubava o sultão Enquanto isso o isolamento outrora hermético do estrato devshirme em relação ao restante da classe dominante osmanlilar começou a se enfraquecer o que previsivelmente resultou na dissolução completa da identidade pró pria do devshirme No reinado de Murad II no final do século XVI os nativos muçulmanos adquiriram o direito de ingressar nas fileiras dos janízaros Finalmente na década de 1630 no tempo de Murad IV as mobilizações do cfevsíirmetinham desaparecido por completo Os regimentos de janízaros porém continuavam a gozar de isenções fis cais e outros privilégios costumeiros Por isso havia uma permanente demanda de alistamento nesses corpos por parte da população muçul mana ao mesmo tempo que a agitação social do período jelali obrigava a uma multiplicação das guarnições de janízaros em todas as cidades provinciais do império por razões de segurança interna Assim a par tir de meados do século XVII os janízaros tornaramse cada vez mais vastos corpos de milícia urbana com pouco ou nenhum treinamento e muitos deles já não residiam nas casernas mas em suas próprias tendas e oficinas trabalhando como lojistas e artesãos a sua presença nas corporações levou muitas vezes a um rebaixamento nos padrões arte sanais enquanto os mais prósperos adquiriam direitos sobre as terras locais O valor militar dos janízaros em breve tornouse mínimo a sua principal função política na capital era servir de masse de manoeuvre ao fanatismo do ulemato ou às intrigas palacianas Entretanto o sistema tintar passava por uma degeneração não menos dramática Com o aperfeiçoamento da artilharia européia e a consolidação dos exércitos permanentes pelas potências cristãs a cava laria ligeira constituída pelos sipahis ficara militarmente obsoleta as relutantes sorridas de verão dos cavaleiros timaríot cuja firmeza no campo de batalha se enfraquecera com a depreciação de seus rendi mentos revelaramse totalmente inadequadas para enfrentar o poder de fogo dos fuzileiros alemães Assim no ambiente de crescente cor rupção que reinava em Istambul o Estado tendia a conceder aos altos oficiais cada vezmais timars para propósitos nãomilitares ou a recu perálos para o tesouro público Daí resultou uma notória diminuição dos efetivos sipahi por volta do início do século XVII O exército oto mano passou a se basear principalmente em companhias de mosque teiros assalariados as unidades sekban originalmente tropas auxi liares irregulares sediadas nas províncias que passaram agora a confi 382 PERRY ANDERSON gurar as formações militares mais importantes do império311 A manu tenção das tropas sekban como força permanente contribuiu tantopara intensificar como para monetarizar os encargos fiscais nos territórios otomanos numa conjuntura de provável recessão econômica na maior parte do Mediterrâneo oriental As novas terras aráveis tinham se esgo tado na Anatólia O comércio das especiarias e da seda foi capturado e desviado pelos navios ingleses e holandeses cujas operações no Oceano Índico cercavam agora o Império Otomano pela retaguarda O Egito por outro lado onde a atividade agrícola se mantivera em boa ativi dade35 reverteu rapidamente ao controle local dos mamelucos As difi culdades políticas e financeiras enfrentadas pelo Estado combinaram se à degeneração da dinastia Com efeito no século XVII a tempera dos governantes do império cuja autoridade despótica tinha outrora sido exercida com considerável habilidade entrou em colapso de vido a um novo sistema sucessório A partir de 1617 o sultanato passou a caber ao mais velho dos varões da linhagem osmanli que habitual mente era encerrado desde o nascimento no Cárcere dos Príncipes uma prisão adamascada que parecia concebida para produzir desequi líbrio patológico ou imbecilidade Tais sultões não estavam em situação de controlar ou conter a rápida deterioração do sistema estatal que governavam Foi por essa época que as manobras clericalistas do SheikulIslam começaram a entrincheirarse no sistema de decisões políticas36 que tornouse rapidamente mais venal e instável Não obstante na segunda metade do século XVII o Império Otomano mostrouse capaz de um último e grande esforço militar na Europa Os reveses das guerras com a Pérsia as desordens do bandi tismo da Anatólia as humilhações infligidas pelas incursões cossacas e j a desmoralização dos corpos de janízaros foram seguidas por uma rea ção efetiva se bem que temporária no interior da Porta Entre 1656J e 1676 os viziratos dos Koprülü restauraram uma vez mais em Istam bul uma administração vigorosa e marcial As finanças otomanas ram recompostas mediante empréstimos forçados e extorsões tributa rias a supressão das sinecuras serviu para cortar as despesas nos reg mentos permanentes aperfeiçoouse o treinamento e a equipagem infantaria a ainda temível cavalaria tártara foi melhor utilizada na 34 Inalcik The Ottoman Empire p 48 35 Ver Stanford Shaw The Financial and Administrative Organization OU Developmeni of Ottoman Egypt 15171798 Princeton 1962 p 21 36 Inalcik LEmpire Ottomane p 95 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA teatro de guerra do Ponto Concomitantemente o declínio do regime safávida na Pérsia afrouxou as pressões a leste e permitiu um derra deiro avanço turco rumo ao Ocidente Os principados do Danúbio cujos governantes vinham dando mostras de crescente agitação foram trazidos à ordem Uma guerra com Veneza de vinte anos de duração foi satisfatoriamente concluída com a tomada de Creta em 1669 En tão em 1672 com a mobilização dos contingentes de cavalaria do ca nato da Criméia as forças otomanas conquistaram a Podólia aos polo neses Ao longo da década seguinte travouse um extenso e selvagem conflito com a Rússia pelo controle da Ucrânia Finalmente contido neste embate que termlnouem 1682 num armistício sancionando o status quo ante após devastar a Ucrânia o poder turco voltouse em seguida contra a Áustria em 1683 O novo vizir Kara Mustafá ainda mais agressivo que o seu antecessor Maomé Koprülü reuniu um gran de exército para um ataque frontal a Viena Cento e cinqüenta anos depois do cerco de Solimão II à capital Habsburgo um novo ataque era lançado O fracasso do primeiro significara apenas a estabilização da Unha de frente do avanço turco sobre a cristandade A derrota do se gundo com a libertação vitoriosa de Viena por uma força mista com posta por tropas polonesas imperiais saxônias e bávaras em 1683 resultou no colapso de toda a situação otomana na Europa central A recuperação Koprülü mostrouse assim artificial e de vida curta os seus triunfes iniciais levaram a Porta a ir além de suas próprias forças com conseqüências desastrosas e irreversíveis Ao desastre de Viena seguiuse uma longa retirada que findou em 1699 com a perda total da Hungria e da Transilvânía para os Habsburgo enquanto a Polônia recuperava a Podólia e Veneza ocupava a Moréia Daí para a frente a Casa do Islã estaria em perpétua defensiva nos Bálcãs capaz quando muito de conter temporariamente os avanços dos infiéis cedendo sem pre e definitivamente diante deles O impacto do recuo turco nos cem anos subseqüentes beneficiou sobretudo o absolutismo russo mais que o austríaco O ímpeto militat Habsburgo esgotouse relativamente depressa após a conquista do Ba nat em 171618 As forças otomanas derrotaram os exércitos austría cos em 173639 recuperando Belgrado Mas no norte a expansão Romanov na região do Euxino não pôde ser detida A derrota diante da Rússia em 176874 provocou a perda dos territórios situados entre o Bug e o Dniester e o estabelecimento do direito de intervenção do czar na Moldávia e na Valáquia Em 1783 a Criméia foi absorvida pela Rússia em 1791 foi anexado o Jedisan Enquanto isso todo o tecido administrativo do Estado otomano se deteriorava rapidamente O Di 384 PERRY ANDERSON vã tornouse um joguete dos grupos rapaces da capital empenhados em elevar ao máximo os ganhos da venalidade e da malversação de fundos Depois de 1700 os funcionários civis turcos e os mercadores gregos fanariotas de Istambul adquiriram crescente poder e influência na Porta à medida que a capacidade militar do Estado otomano se enfra quecia os primeiros sempre em ascensão tornaramse paxás e go vernadores nas províncias37 ao passo que os últimos conquistavam postos lucrativos no erário e tornavamse hospodares na Romênia Os cargos que outrora estavam reservados ao devshirme com promo ção baseada no mérito eram agora vendidos no atacado à melhor oferta mas como não havia garantia de posse após a compra ao con trário dos sistemas europeus os detentores tinham que extrair com extrema rapidez os lucros de seu investimento antes de serem afasta dos o que aumentava a pressão das extorsões sobre as massas sujeitas a suportar o fardo de uma tal administração Em meio à corrupção administrativa generalizada desenvolveuse um amplo mercado negro dos bilhetes de pagamentos dos janízaros que passaram a ser compra dos e vendidos entre membros fictícios dos regimentos Por volta do final do século havia cerca de 100 mil janízaros registrados dos quais uma fração mínima tinha treinamento militar no entanto a ampla maioria tinha acesso às armas e podia utilizálas para a extorsão e inti midação das populações locais38 Os janízaros estavam agora em toda a parte como uma massa gangrenosa que tomava conta das cidades do império Dos seus membros mais poderosos saíam muitas vezes os no táveis locais ayan que a partir de então se tornaram um traço carac terístico da sociedade provincial otomana Entretanto todo o regime de propriedade da terra sofria uma transformação O timar há muito decaíra como instituição juntamente com a cavalaria sipahi que sustentara A Porta perseguiu uma política deliberada de recuperação dos domínios dos antigos timariots seja por sua anexação aos domínios da casa imperial para entregálos depois outra vez à especulação a fim de obter maiores rendimentos monetá rios seja simplesmente alugandoos a testasdeferro manipulados por Conselho de Estado turco N T 37 N Itzkowitz EighteenthCenturyottomanrealities pp 867 Antigos príncipes de certos vassalos do sultão de Constantinopla N T 38 Para relatos sobre a decadência do sistema janízaro ver Gíbb e Bowen Is lamic Society and the West II pp 1804 Stavrianos The Balkans Since 1453 pp 120221920 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 385 funcionários do palácio Verificouse assim uma modificação geral na forma otomana de exploração do timar que deu lugar ao iltizam os benefícios militares foram convertidos em rendas fiscais que propor cionavam crescentes fluxos monetários para o tesouro O sistema ilti zam foi inicialmente desenvolvido pela Porta nas longínquas províncias asiáticas como o Egito onde não havia necessidade dos guerreiros montados do tipo dos que se concentraram na Rumélia39 Contudo a generalização dessas rendas a todo o império correspondia não apenas às necessidades financeiras do Estado osmanli mas também à homo geneização muçulmana de toda a classe dominante com o declínio e o desaparecimento do devshirme Uma das mais importantes razões es truturais para este processo foi na verdade a alteração introduzida em toda a composição do império pela conquista das províncias árabes A difusão das unidades fiscais iltizam a partir de seus territórios islâmicos às custas do timar completou arsim a dissolução da instituição que fora o complemento funcional do devshirme no sistema original do expan síonismo otomano Como fenômeno concomitante aumentou o nú mero de terras waqf nominalmente domínios religiosos coletivos doa dos pelos fiéis que constituíam a única forma importante de posse da terra que não cabia em definitivo ao sultanato40 Tradicionalmente eram utilizados como um disfarce para a atribuição de direitos heredi tários sobre a terra a uma só família investida na administração do waqf Os primeiros monarcas osmanli mantiveram um controle vigi lante sobre esta devota instituição Maomé II de fato chegara a fo 39 Para o surgimento e o caráter do sistema iltizam no Egito ver Shaw The Financial and Administrative Organization and Development of Ottoman Egypt pp 2939 40 Os historiadores húngaros conferiram muito relevo demasiado relevo à importância das terras waaf na iormação social otomana ao desenvolver a sua tese de que esta tinha um caráter essencialmente feudal classificação que é rejeitada a meu ver corretamente pela maioria dos historiadores turcos Uma vez que as terras waqf cons tituíam a categoria jurídica mais próxima da propriedade privada a sua extensão pode ser usada para argumentar que existia um conteúdo feudal oculto por trás das fíccoes jurídicas de controle religiosoimperial Na verdade não há razões para crer que as terras waqf tenham alguma vez predominado na área rural nos Bálcãs ou na Anatólia ou que tenham determinado as relações fundamentais de produção na formação social otomana No entanto a sua expansão na época do declínio otomano está bem confirmada Para uma análise competente do fenômeno waqf ver V Mutafcieva e S Dimitrov DLe Agrarverhàltnisse im Osmanichen Reiches im XVXVI Jh Actes du Premier Congrês dês Études Balkaniques pp 689702 que estima que os waqf ocupavam talvez um terço da superfície total dos territórios natais do império concentrados principalmente na Trácia no mar Egeu e na Macedônia eram quase ou completamente desconhecidos na SérviaenaMoréia 386 PERRY ANDERSON mentar uma reapropriação geral dos territórios waqf pêlo Estado No entanto à época do declínio otomano as posses waqf multiplicaram se mais uma vez sobretudo na Anatólia e nas províncias árabes O advento do sistema iltizam e a influência que exerceu trans formaram a situação do campesinato Os timariots não podiam desa propriar ou impor tributos acima dos limites estatutários prescritos pelo sultão Os senhores de terra da nova época não se detinham pe rante tais restrições a própria brevidade de seus títulos iniciais os inci tava à superexploração dos camponeses de seus domínios Durante o século XVIII um número crescente de terras vitalícias ou mali kane f oi concedido pela Porta o que moderou as exigências imediatas destes notáveis rurais mas estabilizou o seu poder a longo prazo sobre as aldeias41 E assim o tintar deu lugar finalmente nos Bálcãs ao sis tema que ficou conhecido como chiflik O titular de um chiflik dispu nha de controle praticamente irrestrito sobre a força de trabalho à sua disposição podia tirar seus camponeses da terra ou impedir que a abandonassem enredandoos em dívidas Podia ampliar a sua própria reserva senhorial ou hassachiflik às custas das parcelas de seus arren datários que foi o que em geral aconteceu Habitualmente apoderava se de metade da colheita dos produtores diretos que ficavam apenas com um terço de seu produto uma vez pagos os impostos fundiários e as taxas de coleta112 Em outras palavras a condição do campesinato dos Bálcãs piorou juntamente com a do restante da Europa oriental igualandose ambas na miséria comum Na prática os camponeses achavamse agora vinculados ao solo e podiam ser legalmente recupe rados se abandonassem as suas terras Tal como o crescimento do co mércio do trigo com a Europa ocidental conduzira ao agravamento da taxa de exploração servil na Polônia ou na Alemanha oriental sem ter sido a sua causa assim a produção comercial do algodão e do milho para exportação ao longo das costas e dos vales da Grécia da Bulgária e da Sérvia elevou as pressões exercidas pelos senhores nos chifliks e contribuiu para a sua difusão O traço mais característico das relações rurais no sudeste foi a quebra de qualquer ordem pública severa im posta de cima o banditismo tornouse galopante encorajado pelo re levo montanhoso da região que faziam dela para os camponeses o 41 Gibb e Bowen Islamic Socieíy and the West ll pp 2556 Os senhores de terra mais opressivos eram sempre os que arrematavam os impostos seguidos de perto pelas autoridades religiosas op cit p 247 42 Stavrianos The Balkanssince 1453 pp 13842 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 387 equivalente mediterrâneo das áreas de fuga nas planícies do Báltico Em contrapartida os senhores de terra mantinham bandos armados de sicários em seus domínios as tropas irregulares kirjali para se prote gerem das revoltas e reprimir os seus arrendatários3 Com efeito a fase final da longa involução do Estado otomano traduziuse na quase completa paralisia da Porta e na usurpação do poder provincial pri meiro pelos paxás da Síria ou do Egito depois pelos derebeis ou se nhores dos vales da Anatólia e enfim pelas ayans dinastias de notá veis locais da Rumélia Pelo final do século XVIII o sultanato contro lava apenas uma fração dos 26 eyalets em que se dividia oficialmente a administração imperial A prolongada decomposição do despotismo osmanli não deu ori gem contudo a um feudalismo consumado O título imperial de pro priedade sobre todas as terras seculares não foi abandonado pelo im pério embora a outorga de grande número de malikane limitasse o seu usufruto O sistema chiflik nunca recebeu sanção jurídica oficial e tampouco os camponeses foram juridicamente vinculados ao solo Até 1826 as fortunas dos funcionários e dos coletores de impostos que fus tigavam a população submetida podiam ser arbitrariamente confisca das pelo sultão quando aqueles morressem44 Não havia qualquer ga rantia de propriedade muito menos títulos de nobreza A liquefação da velha ordem social e política não conduziu à emergência de uma outra ordem convincente O Estado osmanli continuava a ser no século XIX um território estagnado sustentado artificialmente pela rivali dade das potências européias que aspiravam à sua herança Foi possí vel dividir a Polônia entre a Áustria a Prússia e a Rússia porque as três eram potências territoriais com facilidades de acesso e interesses idênticos nesse país O mesmo não acontecia com os Bálcãs porque não havia compatibilidade entre os três principais contendores interes sados na região a Inglaterra a Áustria e a Rússia A GrãBretanha detinha a supremacia marítima no Mediterrâneo e a primazia comer cial na Turquia na realidade por volta de 1850 o Império Otomano importava mais mercadorias inglesas que a França a Itália a Áustria ou a Rússia o que fazia dele uma região vital para o imperialismo econômico vitoriano O poderio naval e industrial britânico excluía 43 T Stoianovich Land tenure and related sectors of the balkan economy 16001800 The Journal of Economic History XX verSo de 1953 n 3 pp 401 40911 44 Serií Mardin Power civil society and culture in the Ottoman Empke Comparative Síudies in Society and History rol II 1969 p 277 388 PERRY ANDERSON todo e qualquer acordo harmonioso sobre a distribuição do Império Otomano frustrando os esforços da Rússia no sentido de partühálo Ao mesmo tempo o progressivo despertar nacionalista dos povos bal cânicos após a época napoleônica impedia qualquer estabilização da situação política no sudeste europeu Em 1804 eclodia a revolta da Sérvia em 1821 seguiase uma insurreição na Grécia A invasão cza rista em 182829 desbaratou os exércitos turcos e impôs a autonomia formal da Sérvia da Moldávia e da Valáquia em relação à Porta en tretanto as intervenções anglofrancesa e russa garantiam e delimita vam a independência da Grécia em 1830 Tais perdas originadas de movimentos locais que nem Londres nem Viena podiam controlar dei xaram ainda à Turquia um império balcânico que se estendia da Bós nia à Tessália e da Albânia à Bulgária A proteção internacional haveria de adiar por cerca de um século a extinção definitiva do Estado otomano inspirando nesse ínterim sucessivas tentativas de renovação liberal a fim de estabelecer uma conformidade com as normas do capitalismo ocidental Quem as inau gurou foi Mahmud II na década de 1820 num esforço para moderni zar o aparelho administrativo e econômico do sultanato Os janízaros foram dispensados e eliminados os timarsi as terras waqf foram nomi nalmente reclamadas ao tesouro do império importaramse oficiais es trangeiros para treinar um novo exército O controle central foi resta belecido nas províncias e o reinado dos derebeis chegou ao fim Essas medidas em breve se revelaram ineficazes para sustar a queda do sis tema imperial Os exércitos de Mahmud foram derrotados pelas tropas egípcias de Maomé Ali enquanto seus governadores e funcionários se mostravam ainda mais corruptos e opressores que os nobres locais que os precederam A esta derrocada se seguiram renovados esforços anglo franceses para liberalizar e reorganizar o governo otomano Deles re sultaram as reformas de Tanzimat em meados do século mais estrita mente adaptadas às preocupações jurídicas e comerciais do Ocidente O Édito da Câmara Rosa de 1839 finalmente assegurou a garantia jurídica da propriedade privada no império e a igualdade política pe rante a lei4 Ambas as medidas haviam sido insistentemente reclama das pelo corpo diplomático em Istambul Não obstante a propriedade estatal da terra permaneceu dominante nos territórios natais do impé rio Só em 1858 foi decretada uma lei da terra concedendo direitos limitados de sucessão aos que a controlavam ou dela usufruíam Insa 45 Lewis The EmergenceofModem Turkey pp 1068 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 389 tisfeitas com tais medidas as potências ocidentais desenvolveram pres sões no sentido da extensão desses direitos a qual veio a ser concedida em 1867 quando os proprietários locais finalmente adquiriram a pro priedade jurídica de seus domínios46 Mas o caráter artificial do novo rumo político em breve se tornou evidente Quando os nacionalistas turcos tentaram impor uma constituição representativa não foi difícil ao sultão Abdul Hamid II restabelecer um despotismo pessoal frágil mas brutal em 1878 Pelo final do século verificouse uma estabiliza ção das classes dos detentores de cargos e dos senhores de terra graças às garantias de propriedade conferidas pelas reformas tanzimat Mas por outro lado não se viu surgir ao Império Otomano uma nova ordem política e social à medida que este se contraía gradualmente diante das lutas sucessivas pela libertação dos povos balcânicos subjugados e das manobras das principais potências européias para frustrálas ou explorálas Em 1875 foi esmagada uma revolta popular na Bulgária A Rússia interveio e a Turquia foi novamente derrotada no campo de batalha enquanto a Inglaterra se mobilizava uma vez mais para a sal var das conseqüências do desastre O resultado foi um acordo entre as potências européias que garantiu plena independência para a Sérvia a Romênia e o Montenegro criou uma Bulgária autônoma sujeita à suse rania residual dos otomanos e devolveu a Bósnia ao controle da Áus tria Na década seguinte a Grécia comprou a Tessália e a Bulgária conquistou a sua independência Foi a frustração resultante do acelerado declínio do império e do inusitado imobilismo burocrático durante o governo de Abdul Hamid que inspirou os militares que vieram a ser chamados de Jovens Turcos a tomar o poder por um golpe militar em 1908 Uma vez satisfeitas as ambições de carreira e esquecidos os princípios comteanos o programa político dos Jovens Turcos ficou reduzido a um intensificado centra lismo ditatorial e a um regime de repressão das nacionalidades subme tidas ao império47 A derrota da Primeira Guerra dos Bálcãs e a desin tegração após a Primeira Guerra Mundial marcaram o seu fim ignomi nioso Durante os últimos séculos de sua existência o Estado otomano 46 H Inalcik Land Problems in turkish history The Moslem World XLV 1955 pp 2267 Inalcik comenta que os conceitos jurídicos ocidentais só foram plena mente aplicados à propriedade fundiária sem condições ou ressalvas em 1926 pela primeira vez 47 Até o mais indulgente dos estudos recentes sobre os Jovens Turcos e seu regime conclui que este foi incapaz de criar qualquer instituição nova limitandose a explorar os mecanismos tradicionais de dominação em proveito próprio Feroz Ahmed The Young Turks Oxford 1969 pp 1645 390 PERRY ANDERSON sofreu então subtrações e modificações mas nunca adquiriu um novo impulso social O antigo vigor inicial simplesmente se tornou cada vez mais distorcido e debilitado A reforma negativa voltada contra os abusos era por natureza incapaz de desembocar numa reconstrução positiva do império seja sob a forma de um novo sistema político seja pela restauração do antigo O feudalismo não presidiu à formação do Império Otomano o absolutismo não participou de seu declínio Igual mente fúteis foram as tentativas das potências européias para ali nhar a Porta pelas normas institucionais vigentes em Viena São Pe tersburgo e Paris era um outro universo Das abortadas reformas de Mahmud II e da época tanzimat a que se seguiriam a reação hami diana e o fiasco dos Jovens Turcos não resultou um neodespotismo turco nem um absolutismo oriental nem naturalmente um parlamen tarismo de tipo ocidental O nascimento de uma nova forma de Estado teve de esperar até que a preservação diplomática das relíquias da an tiga chegasse a seu fim com o conflito internacional da Primeira Guer ra Mundial que finalmente libertou de sua miséria o reino osmanli Os Bálcãs porém foram libertados da dominação otomana antes do dénoument da própria Turquia À medida que todo o sistema oto mano ia sendo expulso país após país a partir do início do século XIX um inesperado sistema agrário aparecia na península distinto dos pa drões em vigor tanto na Europa oriental como na ocidental A Romê nia uma terra de ninguém historicamente tardia situada entre os tipos de desenvolvimento regional dos Bálcãs e das regiões do alémElba passou pela mais estranha das guinadas sofridas pelos novos países surgidos depois de 1815 Com efeito tornouse o único país da Europa onde terminado o período da primeira servidão ocorreu uma efe tiva segunda servidão indubitavelmente determinada pelo comércio do trigo Como vimos os territórios romenos tinham sido deixados à sua própria classe boiarda pelo Estado otomano quando este os inva diu no século XVI A formação de uma sociedade rural estratifiçada com uma nobreza senhorial e um campesinato submetido à servidão tinha caráter recente devido ao papel acentuadamente retardatário de sempenhado nessa região pelo domínio nômade predatório que só de sapareceu com a expulsão gradual dos cumanes e dos tártaros no século XIII48 Até o século XIV era comum a propriedade comunal aldeâ e só 48 As origens históricas da formação social romena no final da Idade Média estão compiladas em H H Síahl Lês Anciennes Communautés Villageoises Roumaines Asservissement et Pénétration Capitaiiste Bucareste 1969 pp 2545 uma obra notável que lança luz sobre muitos aspectos do desenvolvimento social da Europa oriental LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 391 com a formação dos principados da Moldávia e da Valáquia no século XV tomou forma uma aristocracia fundiária que a princípio explorava os produtores rurais mais através dos impostos que sob o modelo feu dal à maneira dos nômades turcos que a instruíram49 A breve unifi cação dos dois Estados sob Miguel I no final do século XVI assinalou a generalizada adscrição ao solo do campesinato romeno A partir daí a servidão se consolidou sob a suserania otomana No século XVIII a Porta confiou a administração dessas províncias a famílias de gregos fanariotas provenientes de Istambul que vieram a constituir uma di nastia dominante intermediária dos chamados hospodares nesses prin cipados onde a coleta de impostos e o comércio eram já controlados por gregos expatriados O senhorialismo boiardo era agora cada vez mais fustigado pela resistência camponesa sob a forma caracteristicamente oriental dos grandes êxodos de camponeses em fuga aos impostos e tributos Ofi ciais austríacos ansiosos por consolidar os recémconquistados territó rios fronteiriços Habsburgo no sudeste da Europa ofereciam intencio nalmente aos refugiados romenos o asilo ansiado atrás das fronteiras50 Seriamente preocupado com a deteriorada situação do trabalho nos principados o sultão ordenou em 1744 a um dos hospodares Constan tino Mavrokordatos a sua pacificação e repovoamento Influenciado pelo iluminismo europeu Mavrokordatos decretou a abolição gradual dos vínculos servis tanto na Valáquia 1746 como na Moldávia 1749 garantindo a todo camponês o direito de comprar a sua emancipação51 uma medida facilitada pela inexistência de uma categoria jurídica equivalente à servidão nas províncias do império sob administração turca Não houve nesse século exportação de cereais porque a Porta detinha um monopólio comercial de Estado e limitavase a enviar para Istambul um tributo em espécie No entanto o Tratado de Adrianopla em 1829 que deu à Rússia uma virtual cosuserania sobre a Romênia revogou o controle muçulmano sobre as exportações O resultado foi um súbito e espetacular surto dos cereais ao longo da bacia do Danú bio Com efeito em meados do século XIX o advento da revolução 49 Encontrase uma meticulosa periodização de todo o processo em Stahl op cípp 16389 50 W H MacNeffl Europes Steppe Frontier 15001800 Chicago 1964 p 204 51 Para uma abordagem dos decretos sobre a emancipação dos servos e a reação boiarda a eles ver A Otetea Lê second asservissement dês paysans roumains 1746 i821YNouveliesÉludesdHistoire I Bucareste 1955 pp 299312 392 PERRY ANDERSON industrial no ocidente da Europa criara um mercado mundial capita lista de tipo desconhecido nos séculos XVI e XVII com uma vitalidade capaz de transformar em poucas décadas regiões atrasadas do ponto de vista agrícola A produção de grãos dos principados romenos dupli cou entre 1829 e 1832 e o valor das exportações dobrou de 1831 a 1833 Á superfície das terras voltadas para o cultivo de cereais efetivamente decuplicou no espaço de uma década de 1830 a 184052 A força de trabalho para um crescimento deste quilate foi obtida mediante a reim posição das obrigações servis sobre o campesinato romeno e a intensi ficação das prestações de serviços a níveis superiores aos que vigoravam antes dos decretos de Mavrokordatos no século anterior De tal modo o único exemplo europeu de autêntica segunda servidão foi obra do capitalismo industrial não mercantil e só podia ser assim Aí se tor nara possível uma causalidade intereconômica direta e maciça que operava em toda a extensão do continente o que não fora possível dois ou três séculos atrás O campesinato romeno continuou desvalorizado e ávido de terras depois disso em condições muito semelhantes às dos camponeses russos As limitações servis foram mais uma vez abolidas por uma reforma em 1864 diretamente inspirada na proclamação cza rista de 1861 como na Rússia o campo permaneceu sob o domínio de senhores feudais até a Primeira Guerra Mundial A Romênia contudo foi a exceção dos Bálcãs Em quase toda a parte ocorreu um processo quase oposto Com efeito na Croácia na Sérvia na Bulgária e na Grécia as aristocracias locais tinham sido varridas pela conquista otomana as terras diretamente anexadas ao sultanato e ocupantes turcos transferidos para elas por volta do sé culo XIX principalmente a poderosa e parasitária classe dos notáveis locais ayan Sucessivas revoltas nacionais e guerras de libertação aca baram por expulsar os exércitos turcos da Sérvia 18041913 da Gré cia 18211913 e da Bulgária 18751913 A conquista da indepen dência política por esses países foi nessas condições automaticamente acompanhada por uma convulsão econômica no campo Os senhores de terra turcos lógica e compreensivelmente levantaram acampa mento junto com as tropas que os protegiam abandonando os seus do mínios aos camponeses que os cultivavam Tal processo variou conside ravelmente conforme a duração da luta pela independência Onde esta foi lenta e prolongada como na Sérvia e na Grécia houve mais tempo 52 A Otetea Lê second servage dans lês principautés danubiennes Nouvel lês Études áffistoire II Bucareste 1960 p 333 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTÍSTA 393 para que durante a luta se formasse e expandisse um estrato de pro prietários rurais nativos que nas fases finais apropriouse diretamente dos chifliks as famílias gregas abastadas por exemplo adquiriram muitos domínios turcos intatos na Tessália quando esta foi obtida à Porta em 1881M Na Bulgária por outro lado o ritmo mais violento e rápido da luta pela independência abriu muito menos possibilidades a tais transferências Mas nos três países a economia rural que acabou por se consolidar era muito semelhante54 Uma vez independentes a Bulgária a Grécia e a Sérvia tornaramse essencialmente países de pe quenos proprietários camponeses numa época em que a Prússia a Polônia a Hungria e a Rússia eram ainda territórios do latifúndio no biliário Naturalmente a exploração rural não chegou ao fim nos Es tados independentes os usurários comerciantes e funcionários repu seramna sob novas formas Mas o regime agrário básico dos Bálcãs continuava a se fundamentar na pequena produção em meio à cres cente superpopulação parcelamento das posses e endividamento das aldeias A recessão do domínio turco significou o término da proprie dade senhorial tradicional Toda a Europa oriental sofreu um retarda mento social e econômico na virada do século XX que a separou da Europa ocidental Mas o Sudeste permaneceu dentro dela como uma península à parte 53 Stavrianos TheBalkanssince 1453 pp 4789 54 A Albânia constitui um caso distinto devido à islamizacão da maioria da população sujeita ao domínio otomano e à preservação dos padrões sociais tribais nas montanhas Era tradicional o recrutamento de albaneses para o aparelho de Estado osmanli a reação hamidiana confiou fundamentalmente em sua lealdade Assim os notáveis muçulmanos locais optaram pela independência apenas no último momento em 1912 quando já era óbvio que o poder turco estava extinto nos Bálcãs Em conseqüência D senhorialismo mantevese intato até o final do domínio otomano o tribalimo alpino que caracterizou a maior parte do país por outro lado limitou inevitavelmente a agri cultura de grande propriedade Conclusões Ocupante do sudeste da Europa por quinhentos anos o Estado otomano instalouse no continente sem nunca ter adotado o seu sistema social ou político Sempre permaneceu quase como um estranho para a cultura européia um intruso islâmico na cristandade que coloca até hoje problemas insolúveis para a sua apresentação em uma história unitária do continente Na verdade a longa e íntima presença em solo europeu de uma formação social e de uma estrutura de Estado tão diferentes do padrão predominante na região proporcionou um modelo apropriado frente ao qual é possível afirmar a especificidade histórica da sociedade européia antes do advento do capitalismo industrial Realmente desde a Renascença os pensadores políticos europeus da época do absolutismo procuraram repetidas vezes definir o caráter do seu próprio mundo por oposição à ordem turca tão próxima e no en tanto tão remota nenhum deles reduziu à distância simples ou princi palmente a uma questão de religião Maquiavel na Itália do início do século XVI foi o primeiro teó rico a tomar o Estado otomano como antítese de uma monarquia euro péia Em duas passagens centrais de O Príncipe ele distingue a buro cracia autocrática da Porta como uma ordem institucional que a sepa rava do resto da Europa Todo o império turco é governado por um senhor e todos os outros são seus escravos divide o seu reino em sand jaks e para cada um envia governadores transfereos e trocaos ao seu belprazer todos são escravos ligados a ele1 Acrescentava ainda 1 IIPríncipe e Discorsi pp 267 398 PERRY ANDERSON que o tipo de exército permanente à disposição dos monarcas osmanli era algo de desconhecido na Europa daquela época O príncipe dos nossos dias não tem exércitos estabelecidos nas províncias há tanto tempo como os governos e as administrações que os acompanham O GrãoTurco é uma exceção porque controla um exército perma nente de 12 mil infantes e 15 mil cavaleiros dos quais depende a segu rança e a força de seu reino o princípio supremo de seu poder é a manutenção de sua lealdade2 Tais reflexões como muito bem salien tou Chabod constituem uma das primeiras abordagens implícitas para uma autodefinição de Europa3 Sessenta anos mais tarde nos ester tores das Guerras Religiosas na França Bodin desenvolveu o contraste político entre monarquias limitadas pelo respeito às pessoas e aos bens de seus súditos e impérios com domínio irrestrito sobre eles as primei ras representavam a soberania real dos Estados europeus os segun dos o poder senhorial de despotismos como o Estado otomano es sencialmente estranhos à Europa O rei dos turcos é chamado de Grand Seignior não tanto pela extensão de seu reino pois o do Rei Católico é dez vezes maior mas unicamente por ser senhor completo das pessoas e dos bens Só os servidores educados e criados na sua casa se chamam escravos Mas os timariots a quem estão atados os outros súditos só são investidos com seus timars através de seu consentimento explícito os seus contratos têm que ser renovados de dez em dez anos e se morrerem os herdeiros só levam os bens móveis No resto da Europa e nos reinos da Barbárie não há monarquias senhoriais Os povos da Europa mais orgulhosos e guerreiros que os da Ásia ou da África nunca toleraram ou conheceram uma monarquia senhorial desde o tempo das invasões húngaras4 Na Inglaterra do início do século XV11 Bacon sublinhava que a distinção entre os sistemas turco e euro peu era a total ausência de uma aristocracia hereditária no reino oto mano Uma monarquia onde não há nobreza é sempre uma tirania pura e absoluta como a dos turcos Porque a nobreza tempera a sobe rania e desvia de algum modo os olhos do povo da linhagem real2 Duas décadas depois após a derrubada da monarquia Stuart o repu 2 Príncipe e Discorsi pp 834 3 F Chabod Storia dellldea dEuropa Bari 1964 pp 4852 4 Lês Six Livres de La Republique pp 2012 Os pensadores europeus dessa época tinham visível dificuldade em encontrar uma terminologia para discutir as peculia ridades do Estado otomano Daí o título curiosamente inapropriado de Grand Sei gnior aplicado ao sultão A noção de despotismo mais tarde empregada relativa mente à Turquia foi um neologismo do século XVLII 5 The Essays or Conseils Civil and Moral Londres 1632 p 72 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 399 blicano Harrington deslocava o fulcro da diferença para os fundamen tos econômicos do Império Otomano como a linha divisória essencial entre os Estados turco e europeus o monopólio jurídico do sultão sobre a propriedade da terra era a verdadeira marca registrada da Porta Se um só homem é senhor de um território ou excede o povo por exem plo três partes em quatro ele é um Grand Seignior e assim é cha mado o GrãoTurco por suas propriedades e o seu império é uma mo narquia absoluta posto que na Turquia é ilegal alguém que não o Grand Seignior possuir terra6 Pelo final do século XVII o poder do Estado otomano já ultra passara o seu apogeu e o tom 4os comentários a seu respeito alterouse perceptivelmente Pela primeira vez o tema da superioridade histórica da Europa passou a ocupar um lugar central na discussão do sistema turco ao passo que os defeitos deste eram generalizados para todos os grandes impérios da Ãsia Foi o médico francês Bernier que deu este novo passo de forma decisiva Bernier viajando através dos reinos turco persa e mongol tornarase o médico pessoal do imperador Au rangzeb da índia No seu regresso à França descreveu a índia mongol como uma versão ainda mais extrema da Turquia otomana a base da desoladora tirania relatava era a ausência da propriedade privada da terra cujos efeitos ilustrava por comparação aos risonhos campos go vernados por Luís XIV Como são insignificantes a riqueza e o poder do Estado do GrãoTurco em comparação com as suas vantagens natu rais Vamos apenas supor que país rico e populoso seria se o direito de propriedade privada fosse lá conhecido e é impossível duvidar que po deria manter exércitos tão poderosos como outrora Viajei por todas as partes do império e presenciei o modo incrível como se encontra arrui nado e despovoado Direi portanto que tirar aos particulares o direito da propriedade da terra é introduzir ao mesmo tempo como conseqüência infalível a tirania a escravatura a injustiça a mendi cância e a barbárie a terra deixará de ser cultivada e se transformará em deserto estará aberto o caminho para a destruição das nações a ruína dos reis e dos Estados A esperança que anima o homem é de que possa reter os frutos de sua indústria e transmitilos a seus descenden tes e este é o fundamento principal do que há de belo e de bom neste mundo de forma que se passamos os olhos pelos diferentes reinos do globo veremos que eles prosperam ou declinam de acordo com o res peito ou a condenação da propriedade em uma palavra é a predomi 6 The Commonwealth ofOceana Londres 1658 pp 4 5 400 PERRY ANDERSON nância ou descaso por este princípio o que muda e diversifica a face da terra A mordaz narrativa de Bernier sobre o Oriente exerceu uma profunda influência sobre as subseqüentes gerações de pensadores du rante o iluminismo No inicio do século XVIII fazia eco à mesma des crição do Estado turco de forma bastante próxima O Grand Seignior doa a maior parte das terras aos seus soldados e dispõe delas segundo a sua fantasia apoderase de todas as heranças dos oficiais do império quando um súdito morre sem deixar filhos varões as filhas são deixa das apenas com o usufruto dos bens pois o monarca turco adquire a propriedade daí resulta que a posse da maior parte dos bens na socie dade é precária De todos os governos despóticos nenhum oprime mais que aquele cujo príncipe se declara proprietário de todas as terras e o herdeiro de todos os súditos A conseqüência é sempre o abandono dos cultivos e se o príncipe interfere no comércio a ruína de toda a indústria8 Nessa época evidentemente a expansão colonial européia tinha explorado e atravessado quase todo o globo e o escopo das noções polí ticas outrora derivadas do encontro específico com o Estado otomano nos Bálcãs fora agora estendido concomitantemente até os confins da China e além dela De tal modo a obra de Montesquieu incorporava pela primeira vez em De 1Esprit dês Lois uma teoria comparada da quilo que categoricamente denominava despotismo como uma for ma geral de governo extraeuropéia cuja estrutura era totalmente oposta aos princípios nascidos do feudalismo europeu A generali dade do conceito continha apesar disso uma denotação geográfica tradicional explicada pela influência do clima e da geografia A Ãsia é a região do mundo onde o despotismo está por assim dizer naturali zado9 Legada pelo iluminismo os destinos da noção de despotismo oriental no século XIX são famosos e não nos interessam aqui10 será suficiente dizer que a partir de Hegel conservouse o cerne das mes mas concepções básicas sobre a sociedade asiática cuja função intelec tual foi sempre a de estabelecer um contraste radical entre a história européia cuja especificidade Montesquieu localizara originalmente no 7 Traveis in tke Mogul Empire traduzido por Archibald Constable reedição Oxford 1934 pp 234 238 Para o original ver François Bernier Voyages I Amster dam 1710 pp 313 31920 8 De 1Esprit dês Lois I pp 667 9 Idemp6S 10 São analisadas no apêndice sobre O modo de produção asiático pp adiante LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 401 feudalismo e cuja descendência moderna ele discernira no absolutismo e o destino dos outros continentes Em nosso século teóricos marxistas persuadidos das sucessivas fases do desenvolvimento sócioeconômico registradas na Europa têm afirmado ao contrário que o feudalismo foi um fenômeno de dimen são mundial que abrangeu tanto os Estados africanos e asiáticos como os europeus Reconheceuse e estudouse o feudalismo otomano egíp cio marroquino persa hindu mongol ou chinês A reação política contra as ideologias imperialistas da superioridade européia conduziu a uma extensão intelectual dos conceitos historiográficos derivados do passado de um continente para explicar a evolução de outros ou de todos Nenhum outro termo sofreu uma difusão tão penetrante e indis criminada como o conceito de feudalismo que muitas vezes na prá tica tem sido aplicado a qualquer formação social situada entre os pólos de identidade tribal e capitalista não marcada pelo escravismo O modo de produção feudal é assim definido como a combinação da grande propriedade da terra com a pequena produção camponesa onde a classe exploradora extrai um excedente ao produtor imediato pelas formas costumeiras de coerção extraeconômica corvéias pres tações em espécie ou rendas em dinheiro e onde a troca de merca dorias e a mobilidade do trabalho são correspondentemente restritasn Apresentase este complexo como o núcleo econômico do feudalismo que pode subsistir dentro de um amplo leque de formas políticas alter nativas Em outras palavras os sistemas jurídicos e constitucionais tor namse elaborações facultativas e externas a um centro produtivo inva riável As superestruturas políticas e jurídicas são separadas da infra estrutura econômica que constitui por si só o verdadeiro modo de produção feudal Nesta perspectiva hoje difundida entre os teóricos marxistas o tipo de propriedade agrária a natureza da classe possui dora e a matriz do Estado podem variar enormemente sobre uma or dem rural comum que constitui a base de toda a formação social Em particular a soberania parcelada a hierarquia de vassalagem e o sis 11 Será suficiente um único exemplo para definir a formação social otomana de que nos ocupamos especificamente aqui Desenvolveramse entre os otomanos as rela ções de produção de tipo puramente feudal A preponderância da pequena economia camponesa o predomínio da agricultura sobre o artesanato e do campo sobre a cidade D monopólio da propriedade fundiária por uma minoria a apropriação do sobretrabalho camponês pela classe dominante todas essas marcas registradas do modo de produçã0 feudal podem ser encontradas na sociedade otomana Ernst Werner Die Geburt einer jrossmacht die Osmanen p 305 Esta passagem é corretamente criticada por Ernst Mandei The Formaíion of the Economic Thought of Karl Marx Londres 1971 p 127 402 PERRY ANDERSON tema de feudos da Europa medieval deixam de ser sob qualquer as pecto características originais ou essenciais do feudalismo A sua com pleta ausência é compatível com a presença de uma formação social feudal desde que se verifique a combinação de exploração agrária de grande escala e a produção camponesa baseada em relações extraeco nomicas de coerção e dependência De tal modo a China Ming a Tur quia seldjúcida a Mongólia de Gêngis Khan a Pérsia safávida a índia mongol o Egito tulúnida a Síria umaída o Marrocos almorávida e a Arábia wahabita todos passam a ser passíveis de serem classificados como feudais ao lado da França capetíngia da Inglaterra normanda e da Alemanha Hohenstaufen Ao longo desta pesquisa encontramos três exemplos representativos desta categorização como vimos as confede rações nômades dos tártaros o Império Bizantino e o sultanato oto mano foram todos eles designados Estados feudais por teóricos quali ficados de suas respectivas histórias12 com o argumento de que as evi dentes divergências superestruturais em relação às normas ocidentais ocultam uma convergência subjacente de relações de produção infra estruturais O privilégio do desenvolvimento ocidental tende assim a desaparecer no processo multiforme de uma história mundial secreta mente una desde seu princípio O feudalismo nesta versão da historio grafia materialista tornase um oceano de absolvição no qual quase todas as sociedades podem receber o batismo A invalidade científica deste ecumenismo teórico fica demons trada pelo paradoxo lógico que dele resulta Com efeito se o modo de produção feudal pode ser definido independentemente das variáveis superestruturas jurídicas e políticas que o acompanham de tal modo que a sua presença pode registrarse em todo o globo onde quer que as formações sociais primitivas e tribais tenham sido superadas coloca se então a questão como explicar o dinamismo excepcional do teatro europeu do feudalismo internacional Nenhum historiador afirmou ainda que o capitalismo industrial se desenvolveu espontaneamente em qualquer outro lugar fora da Europa e da sua extensão americana que precisamente então conquistava o resto do mundo em virtude do seu primado econômico bloqueando ou implantando o modo de produção capitalista em outros países de acordo com as necessidades e tendên cias de seu próprio sistema imperial Se existia uma base econômica comum ao feudalismo de toda essa massa territorial desde o Atlântico 12 Ver acima pp 3867 Passages fram Antiquity to Feudalistn pp 21922 2823 ed portuguesa Afrontamento 1982 pp 23447 3134 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 403 até o Pacífico apenas dividida pelas formas jurídicas e constitucionais e no entanto só uma região produziu a revolução industrial que levaria em última análise à transformação de todas as sociedades do mundo a determinante deste sucesso transcendente deve ser procurada nas su perestruturas políticas e jurídicas únicas que as diferenciam As leis e os Estados desqualificados como secundários e insubstanciais reapa recem com ímpeto como autores aparentes da mais significativa rup tura da história moderna Em outras palavras uma vez que toda a estrutura da soberania e da legitimidade é dissociada da economia de um feudalismo universal é paradoxalmente o seu fantasma que go verna o mundo pois ele se torna o único princípio capaz de explicar o desenvolvimento diferencial de todo o modo de produção A própria onipresença do feudalismo que reside nesta concepção reduz o destino dos continentes ao jogo superficial dos meros costumes locais Um ma terialismo daltônico incapaz de apreciar a verdadeira riqueza de grada ções do espectro de totalidades sociais diversas dentro do mesmo corte temporal da história termina inevitavelmente num idealismo perverso E óbvio mas pouco notado que a solução para o paradoxo está na própria definição dada por Marx às formações sociais précapita listas Nas sociedades de classes anteriores ao capitalismo todos os modos de produção extraem sobretrabalho dos produtores imediatos através de meios de coerção extraeconômica O capitalismo é o pri meiro modo de produção na história em que os meios pelos quais o excedente é extraído do produtor direto têm forma puramente eco nômica o contrato salarial a toca de equivalentes entre duas partes livres que reproduz dia a dia e hora a hora a desigualdade e a opres são Todos os modos de produção anteriores operam através de sanções extraeconômicas de parentesco consuetudinárias religiosas jurí dicas ou políticas Portanto é sempre impossível por princípio inter pretálas a partir das simples relações econômicas As superestrutu ras do parentesco da religião do direito ou do Estado fazem parte necessariamente da estrutura constitutiva do modo de produção nas formações sociais précapitalistas Intervém diretamente sobre o nexo interno da extração de excedente ao passo que nas formações sociais capitalistas que pela primeira vez na história separam a economia como uma ordem formalmente autônoma elas constituem em con traste as suas precondições externas Em conseqüência os modos de produção précapitalistas não podem ser definidos exceto por suas superestruturas políticas jurídicas e ideológicas uma vez que são estas que determinam o tipo de coerção extraeconômica que lhes é especí fico As formas jurídicas precisas de dependência de propriedade e de 404 PERRY ANDERSON soberania que caracterizam uma formação social précapitalista longe de serem apenas epifenômenos acessórios ou contingentes constituem pelo contrário os índices principais do modo de produção determinado nelas dominantes Portanto uma taxonomia escrupulosa e exata des sas configurações jurídicas e políticas é um pressuposto para a elabo ração de qualquer tipologia abrangente dos modos de produção pré capitalistas13 De fato é evidente que a complexa imbrícação de explo ração econômica com instituições e ideologias extraeconômicas cria uma gama muito mais vasta de modos de produção possíveis antes do capitalismo do que é possível deduzir da generalidade relativamente simples e maciça do próprio modo de produção capitalista que acabou por ser na época do imperialismo industrial o seu terminus ad quem comum e involuntário Ê preciso portanto resistir às tentações a priori de préalinhar os primeiros pela uniformidade do último A possibilidade de uma plura lidade de modos de produção précapitalistas posteriores ao tribalismo e nãoescravistas é inerente ao seu mecanismo de extração de exceden tes Os produtores imediatos e os meios de produção incluindo tanto os instrumentos como os objetos de trabalho por exemplo a terra são sempre dominados pela classe exploradora através do sistema de propriedade em vigor intersecção nodal entre direito e economia Mas como as relações de propriedade por sua vez se articulam diretamente na ordem política e ideológica que de fato muitas vezes rege ex pressamente a sua distribuição por exemplo confinando a proprie dade da terra aos aristocratas ou excluindo a nobreza do comércio o aparelho total de exploração ascende sempre à esfera das próprias superestruturas As relações sociais em sua totalidade formam o que agora se designa por propriedade escrevia Marx a Annenkov14 Isso não significa que a propriedade jurídica propriamente dita passe a ser uma mera ficção ou ilusão passível de ser abandonada ou dissipada através de uma análise direta da infraestrutura econômica em que se 13 Esta necessidade fundamental foi claramente percebida pelo historiador so viético Zelin em seu notável ensaio Printsipy Morfologicheskoi Klassifikatsii Form Zavisimosti em K K ZeFin e M V Trofimova Formy Zavisimosti v Vostochnom Sre dizemnomore Ellenisticheskovo Período Moscou 1969 pp 1151 especialmente 29 33 O texto de ZelÍn contém uma crítica das antinomias presentes nas análises conven cionais sobre o feudalismo feitas por marxistas o que fundamentalmente o preocupa é uma definição mais rigorosa das formas de dependência nem feudais nem escravista j que caracterizaram o mundo helenístico 14 MarxEngels Selected Correspondence p 38 retraduzido Para uma edi ção brasileira ver MarxEngels Editora Âtica 1983 p 435 Org Florestan Fernandes LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 405 assenta procedimento que conduz diretamente ao colapso lógico já indicado Ao contrário significa que para o materialismo histórico a propriedade jurídica nunca pode ser separada seja da produção econô mica seja do poder políticoideológico a sua posição absolutamente central dentro de qualquer modo de produção decorre da sua vincula ção com ambos que nas formações sociais précapitalistas tornase uma fusão direta e oficial Não é portanto por acaso que Marx dedicou a quasetotalidade de seu crucial manuscrito sobre as sociedades pré capitalistas nos Grundrisse o seu único trabalho de comparação teó rica sistemática entre diferentes modos de produção a uma profunda análise dasormos de propriedade agrária em modos de produção su cessivos ou contemporâneos na Europa Ãsia e América O fio condutor de todo o texto é a mudança no caráter e na posição da propriedade fundiária e as suas relações interligadas com os sistemas políticos do tribalismo primitivo ao limiar do capitalismo Já vimos que Marx ao contrário dos autores marxistas posterio res distingue especificamente o pastoreio nômade de todas as formas de agricultura sedentária como um modo de produção distinto ba seado na propriedade coletiva da riqueza imóvel terra e na proprie dade individual da riqueza móvel rebanhos15 Assim não surpreende que Marx enfatize como um dos traços fundamentais definidores do feudalismo a propriedade privada nobiliâria da terra Neste aspecto são especialmente relevantes os seus comentários sobre o estudo de Ko valevsky relativo à dissolução da propriedade comunal aldeã Kova levsky um jovem historiador russo admirador e correspondente de Marx dedicou uma parte substancial de sua obra ao que ele afirmava ser o lento surgimento do feudalismo na índia após as conquistas mu çulmanas Não desprezou as diferenças políticas e jurídicas entre os sistemas agrários mongol e europeu como elementos sem importância e admitia que a persistência jurídica da propriedade imperial exclusiva da terra conduziu a uma intensidade menor de feudalização na ín dia em relação à Europa No entanto defendia que na realidade um vasto sistema de feudos com toda uma hierarquia de subenfeuda mento evoluíra para um feudalismo indiano antes que a conquista bri tânica viesse a interromper a sua consolidação16 Embora o estudo de Kovalevsky fosse em grande medida influenciado pela obra de Marx e o 15 Ver Passages from Antiquity to Feudalism p 220 edição portuguesa pp 2445 16 M Kovalevsky Obshchinnoe Zemleviadenie Prichiny Khod i Posledstviya vttnnykh Rukopisei Karla Maksa Sovetskoe Vostokovedenie n 5 1968 p 12 As ano 406 PERRY ANDERSON tom de suas anotações inéditas no exemplar que o teórico russo lhe enviara fosse de modo geral benevolente é significativo que Marx cri tique repetidas vezes as passagens em que Kovalevsky assimila as insti tuições sócioeconômicas indianas ou islâmicas às do feudalismo euro peu Na mais vigorosa e elucidativa dessas intervenções Marx rejeita a atribuição de um modo de produção feudal à índia mongol Com base na constatação da existência na índia do sistema de benefícios da Venda de cargos que de resto não é puramente feudal como o prova Roma e da commendatio Kovalevsky vê aí um feudalismo no sentido da Europa ocidental Kovalevsky esquece entre outras coisas que a servidão que representa um elemento importante no feudalismo não existia na índia Além disso no que se refere ao papel individual dos senhores feudais exercendo as funções de condes enquanto prote tores não apenas de camponeses nãolivres mas de camponeses livres cf Palgrave também este fator desempenha um papel insignificante na índia excetuandose os waqfs Tampouco encontramos na índia mais do que em Roma essa poesia da terra Bodenpoesie tão carac terística do feudalismo romanogermânico cf Maurer Na índia a terra nunca é nobre no sentido por exemplo de ser inalienável aos plebeus Por outro lado o próprio Kovalevsky vê uma diferença funda mental a ausência de justiça patrimonial no campo do direito civil no império do Grande Mongol Em outra passagem Marx refuta par ticularmente a afirmação de Kovalevsky de que a conquista da índia pelos muçulmanos ao impor ao campesinato o imposto islâmico sobre a terra ou kharaj converteu em feudal a propriedade alodial O pa gamento do kharaj não transformou as suas terras em propriedade feu dal tal como o impôtfoncier não tornou feudal a propriedade fundiá ria dos franceses Aqui todas as descrições de Kovalevsky são absolu tamente inúteis18 Também a natureza do Estado era diversa da dos principados feudais da Europa Pela lei hindu o poder político não estava sujeito à divisão entre os herdeiros desse modo estava afastada u 19 uma importante fonte do feudalismo europeu 17 Materialy Instituta MarksizmaLeninizma pri Tsk KPSS Iz Neopubliko vannykh Rukopisei Karla Maksa Sovetskoe Vostokovedenie n 5 1968 p 12 As ano tações de Marx a Kovalevsky só foram publicadas na Rússia em Sovetskoe Vostokove denie 1958 n 3 pp 413 n 4 pp 322 n 5 pp 328 Problemy Vostokovedenie 1959 n l pp 317 Há uma introdução aos manuscritos por L S Gamayunov em Sovetskoe Vostokovedenie 1958 n 2 pp 3545 18 Sovetskoe Vostokovedenie 1958 n 4 p 18 19 Sovetskoe Vostokovedenie 1958 n 5 p 6 Notese ainda a crítica que Marx faz a Kovalevsky por descrever as colônias militares turcas na Argélia como feudais por LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 407 Essas importantes passagens mostram nitidamente que o próprio Marx estava consciente dos riscos de uma extensão promíscua do rótulo de feudalismo fora da Europa e recusavase a aceitar a índia do sulta nato de Délhi ou o Império Mongol como uma formação social feudal As suas anotações marginais revelam além disso uma extrema perspi cácia e sensibilidade justamente com relação a essas formas superes truturais cuja irredutível importância para a classificação dos modos de produção précapitalistas acabamos de salientar Assim suas obje cões contra a caracterização da sociedade agrária hindu após a con quista islâmica como feudal feita por Kovalevsky abarcam pratica mente toda a gama dos campos jurídico político social militar judi cial fiscal e ideológico Sem exagerar o seu alcance poderiam talvez ser sintetizadas do seguinte modo o feudalismo envolve caracteristi camente a servidão jurídica e a proteção militar do campesinato por uma classe social de nobres que gozam de autoridade e propriedade individual e exercem um monopólio exclusivo sobre a lei e os direitos privados de justiça no seio de uma estrutura jurídica de soberania fragmentada e de fisco subordinado e uma ideologia aristocrática de exaltação da vida rural Veremos em breve quão remoto fica este inven tário heurístico exaustivo das poucas e simples etiquetas tantas vezes utilizadas para rotular de feudal uma formação social Voltando ao nosso ponto de partida inicial não restam dúvidas de que a visão de feudalismo de Marx nesta definição condensada exclui o sultanato turco de seu âmbito um Estado que de fato foi em muitos aspec tos a inspiração e o modelo da índia mongol Tinha portanto bom fundamento o contraste tão intensamente sentido pelos contemporâneos entre as formas históricas européias e otomanas A ordem sóciopolítica turca era radicalmente distinta da quela que caracterizou o conjunto da Europa tanto nas regiões ociden tais como nas orientais do continente O feudalismo europeu não tinha de fato equivalentes em nenhuma das zonas geográficas que com ele confinavam na remota extremidade ocidental da massa territorial eu rasiana ele constituía um caso solitário O primitivo modo de produ ção feudal que triunfou durante o início da Idade Média nunca foi simplesmente composto de um conjunto elementar de índices econômi cos A servidão configurava naturalmente o fundamento primário de todo o sistema de extração de excedentes Mas a combinação da grande analogia com exemplos hindus Kovalevsky batizaas como feudais com o frágil funda mento de que sob certas condições poderia desenvolverse a partir delas algo semelhante iojagir hindu Problemy Vostokovedenie 1959 n l p 7 408 PERRY ANDERSON propriedade agrária controlada por uma classe exploradora com a pe quena produção de um campesinato submetido onde o sobretrabalho era extraído a este último mediante corvées ou tributos em espécie era em seus aspectos gerais um padrão muito difundido em todo o mundo préindustrial Quase todas as formações sociais póstribais que não se baseavam no escravismo ou no nomadismo revelavam neste sentido formas de senhorialismo A singularidade do feudalismo nunca se es gotou na simples existência de classes senhoriais e servis20 Foi a sua organização específica num sistema verticalmente articulado de sobe rania parcelar e de propriedade escalonada que distinguia o modo de produção feudal na Europa É este nexo concreto que define o tipo preciso de coerção extraeconômica exercido sobre o produtor direto A fusão de vassalagembenefícioimunidade produzindo o sistema de feudo propriamente dito criou um padrão absolutamente sui generis de suserania e dependência na expressão de Marx A peculiaridade de tal sistema reside no caráter dual da relação que se estabelece por um lado entre produtores diretos e o estrato de nãoprodutores que se apropriam de seu sobretrabalho e por outro no seio da própria classe exploradora dos nãoprodutores Com efeito em sua essência o feudo era uma concessão econômica de terra condicionada ao de sempenho de serviço militar e investida de direitos judiciais sobre o campesinato que a cultivava Conseqüentemente foi sempre uma amálgama de propriedade e soberania na qual a natureza parcial de uma era compensada pelo caráter privado da outra a posse condicio nal estava estruturalmente vinculada à jurisdição individual A diluição original da propriedade absoluta da terra foi portanto complementar pela fragmentação da autoridade pública numa hierarquia escalonada Ao nível da própria aldeia o resultado foi o surgimento de uma classe de nobres que gozava de direitos pessoais de exploração e jurisdição consagrados pela lei sobre camponeses dependentes Era inerente a esta configuração a residência rural da classe pos suidora em oposição à localização urbana das aristocracias da anti güidade clássica o exercício da proteção e da justiça senhoriais pres supunha a presença da nobreza feudal no campo simbolizada pelos castelos do período medieval e mais tarde idealizada na poesia da terra da época subseqüente O poder e a propriedade individuais 20 Para uma crítica particularmente lúcida e enérgica dos empregos abusivos do termo feudalismo nesta e em outras formas ver Claude Cahen Réflexions sur 1usage du mot féodalité The Journal of the Economic and Social History of the Orient III 19601 pp 720 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 409 marca característica da classe feudal na paisagem agrária podiam conseqüentemente fazerse acompanhar de um papel organizativo na própria produção cuja forma típica na Europa era o domínio senho rial A divisão da propriedade dominial em reserva do senhor e coirelas camponesas reproduzia na base como vimos a articulação econômica escalonada característica do sistema feudal como um todo No nível superior o predomínio do feudo estabelecia vínculos internos de cará ter único no seio da nobreza Com efeito a combinação de vassalagem benefício e imunidade num único conjunto criava uma mistura ambi valente de reciprocidade contratual e subordinação dependente que sempre distinguiu a verdadeira aristocracia feudal de qualquer ou tra forma de classe exploradora de guerreiros nos modos de produção alternativos O enfeudamento era um contrato sinalagmático21 o jura mento de homenagem e o ato da investidura vinculavam ambas as par tes ao respeito de obrigações específicas e ao desempenho de obrigações igualmente específicas A felonia constituía a ruptura deste contrato e podia ser cometida pelo vassalo ou pelo senhor desvinculando a parte ofendida dos termos contratuais Ao mesmo tempo este pacto sinalag mático era também o domínio hierárquico de um superior sobre o seu inferior o vassalo era feudatário de seu senhor e devia servilo com lealdade de corpo e alma Portanto o ethos compósito da nobreza feudal conjugava honra e lealdade numa tensão dinâmica es tranha seja à cidadania livre da antigüidade clássica que na Grécia e em Roma conhecia apenas o primeiro termo seja aos servidores de uma autoridade despótica como o sultanismo da Turquia que conhe ciam apenas o segundo A reciprocidade contratual e a desigualdade de posições fundiamse no sistema global do feudo Assim se gerou uma ideologia aristocrática que tornava compatíveis o orgulho da posição e a humildade da homenagem a estabilidade jurídica das obrigações e a fidelidade pessoal da vassalagem22 O dualismo ético de tal código feu 21 O termo é de Boutruche Seigneurie et Féodalité II pp 2047 22 Weber foi o primeiro a enfatizar a originalidade desta combinação ver a sua excelente análise Economy and Soctety III pp 10758 De modo geral os contrastes analíticos traçados por Weber entre feudalismo e patrimonialismo têm grande forca e acuidade Todavia o uso global que faz destes termos está marcado pela notória fra gilidade da noção dos tiposideais que caracteriza a sua obra posterior Assim tanto o feudalismo como o patrimonialismo são na prática tratados como traços destacáveis e fragmentários e não como estruturas unificadas em conseqüência podem ser distribuí dos ou misturados aleatoriamente por Weber a quem faltou uma verdadeira teoria his tórica após os seus trabalhos iniciais e pioneiros sobre a antigüidade Daí resulta a incapacidade de Weber em apresentar uma definição estável ou precisa do absolutismo na Europa é por vezes o patrimonialismo que é dominante na Europa continental até 410 PERRY ANDERSON dal tinha as suas raízes na fusão e difusão do poder econômico e do poder político no seio do modo de produção como totalidade A pro priedade condicional instituía a subordinação do vassalo no quadro de uma hierarquia social de senhorio a soberania parcelar por outro lado investia o feudatário com a jurisdição autônoma sobre os seus inferiores Ambas eram celebradas por transações entre indivíduos par ticularizados dentro do domínio nobre O poder e a propriedade aristo cráticos eram essencialmente pessoais em todos os níveis da cadeia de proteção e dependência Por sua vez esta estrutura políticojurídica acarretou conseqüên cias importantes O parcelamento global da soberania possibilitou o crescimento de cidades autônomas nos espaços intersticiais entre dife rentes senhorios Uma Igreja separada e universal podia atravessar to dos os principados seculares concentrando na sua própria organização clerical independente as habilidades culturais e as sanções religiosas Além disso em cada reino particular da Europa medieval pôde se desenvolver um sistema de estados que via de regra representava numa assembléia tripartida a nobreza o clero e os habitantes dos bur gos enquanto ordens distintas no seio da organização política feudal O pressuposto básico de tal sistema de estados era mais uma vez a dispersão da soberania que conferia aos membros da classe domi nante aristocrática prerrogativas privadas de justiça e administração de sorte que se tornava necessário o seu consentimento coletivo para qualquer ação extrasuserania por parte do monarca situado no topo da hierarquia feudal fora da cadeia mediatizada de obrigações e direi tos pessoais Os parlamentos medievais eram portanto uma extensão lógica e necessária da prestação tradicional de auxilium et consilium do vassalo para o suserano A ambigüidade das suas funções instrumen tos da vontade do monarca ou meios da resistência dos barões a esta mesma vontade era inerente à unidade contraditória do próprio pacto feudal a um só tempo recíproco e desigual Do ponto de vista geográfico como vimos o complexo feudal completo nasceu no ocidente continental da Europa nas antigas ter ras carolíngias Daí se expandiu depois de modo lento e desigual pri meiro à Inglaterra Espanha e Escandinávia em seguida e menos per feitamente difundiuse à Europa oriental onde os seus elementos e a Revolução Francesa ao passo que outras vezes as monarquias absolutas são conside radas já burocráticoracionais Tais confusões eram inerentes ao crescente formalismo i de seus últimos trabalhos Neste aspecto Hintze que muito aprendeu com Weber foi lhe sempre superior LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 411 fases constitutivas sofreram numerosos deslocamentos e distorções lo cais sem que essa região jamais viesse a perder uma inequívoca afini dade geral com o ocidente da Europa como uma sua periferia relati vamente subdesenvolvida As divisas assim constituídas do feudalismo europeu fundamentalmente não se estabeleceram pela religião e tam pouco pela topografia embora ambas manifestamente as sobredeter minassem A cristandade nunca foi coincidente com este modo de pro dução não havia feudalismo na Etiópia ou no Líbano medievais O pastoreio nômade adaptado aos terrenos áridos da maior parte da Ásia central do Oriente Médio e do norte da África bordejou por longos períodos a Europa por todos os lados exceto pelo Atlântico por onde ela haveria de escapar para dominar o mundo Mas as fronteiras entre nomadismo e feudalismo não se desenharam de forma linear apenas pela topografia tanto a planície panoniana como a estepe da Ucrânia habitais clássicos do pastoreio predatório acabaram por se integrar à agricultura sedentária da Europa O feudalismo nascido no setor oci dental da Europa propagouse para o setor oriental por força da colo nização e do exemplo A conquista desempenhou um papel adicional mas subordinado a sua realização mais espetacular mostrou ser tam bém a mais efêmera no Levante Ao contrário do modo de produção escravista que o precedeu ou do modo de produção capitalista que se lhe seguiu o modo de produção feudal não levou diretamente ao ex pansionismo imperialista em larga escala23 Embora cada classe baro nial se tenha esforçado incessantemente para ampliar a sua área de poder mediante a agressão militar a construção de vastos impérios territoriais foi bloqueada pela fissão sistemática da autoridade que definia o feudalismo da Europa medieval Não houve por conseguinte uma unificação política superiormente ordenada das diferentes comu nidades étnicas do continente Uma religião comum e uma língua culta ligavam entre si Estados que de outro modo estariam cultural e consti tucionalmente separados A dispersão da soberania no feudalismo eu ropeu permitiu a subsistência de uma grande diversidade de popula ções e de línguas após as migrações germânicas e eslavas Nenhum Estado medieval era fundado na nacionalidade e as aristocracias ti nham com freqüência uma trajetória móvel passando por transplan tações de um território para outro mas as próprias divisões do mapa dinástico da Europa possibilitavam a consolidação da pluralidade ét nica e lingüística abaixo delas O modo de produção feudal ele próprio 23 Este ponto é tratado adequadamente por Porshnev Feodalizm i Narodnye Massy pp 5178 412 PERRY ANDERSON de caráter prénacional preparou objetivamente a possibilidade de um sistema de Estados multinacional na época de sua subseqüente transição para o capitalismo Um dos últimos traços do feudalismo europeu nascido do conflito e da síntese entre dois modos de produção anteriores era portanto a extrema diferenciação e ramificação internas de seu universo cultural e político Numa perspectiva de comparação tal não era a menos importante das peculiaridades do continente O feudalismo enquanto categoria histórica foi cunhado pelo iluminismo Desde que entrou em circulação apresentouse a questão da existência desse fenômeno fora da Europa onde obteve o seu nome Montesquieu como é sabido considerouo um fato totalmente singu lar um evento que aconteceu uma vez no mundo e provavelmente jamais virá a acontecer Igualmente notória é a opinião contrária de Voltaire O feudalismo não é um evento é urna forma muito antiga que subsiste em três quartos de nosso hemisfério sob diferentes admi nistrações25 Muito claramente o feudalismo foi na verdade uma forma institucional mais que um evento instantâneo mas a lati tude das diferenças de administração que lhe foi atribuída corno vimos muitas vezes tendeu a subtrairlhe por completo qualquer iden tidade determinada26 Em suma não restam dúvidas atualmente que Montesquieu com um senso histórico muito mais profundo andava mais perto da verdade A investigação moderna descobriu apenas uma região importante do mundo onde inequivocamente triunfou um modo de produção feudal comparável ao da Europa No outro extremo da massa territorial eurasiana além dos impérios orientais familiares ao iluminismo as ilhas do Japão haviam de revelar um panorama social que evocava vivamente aos viajantes e observadores europeus do final do século XIX o passado medieval depois que a chegada do comodoro Perry à baía de Yokohama em 1853 pôs fim ao seu longo isolamento do mundo exterior No espaço de pouco mais de uma década o próprio Marx comentava em O Capital publicado no ano anterior ao da Res tauração Meiji O Japão com a sua organização puramente feudal da propriedade fundiária e a sua desenvolvida petite culture dános um retrato muito mais fiel da Idade Média européia do que todos os nossos 24 DeTEsprit dês Lois II p 296 25 Oeuvres Completes Paris 1878 XXIX p 91 26 A inflação generalizada do termo feudalismo é preciso destacar não se confina aos marxistas a mesma tendência se evidencia numa coletânea de teor muito diferente R Coulborn Org Feudalism in History onde quase todos os ensaios desco brem o feudalismo onde quer que o procurem LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 413 livros de história7 Neste século a opinião acadêmica concorda quase unanimemente em considerar que o Japão foi local histórico de um autêntico feudalismo28 No que aqui nos interessa o ponto essencial deste feudalismo do Extremo Oriente reside na sua distinta combina ção de similaridades estruturais e divergências dinâmicas em relação à trajetória européia O feudalismo japonês que surgiu como um modo de produção desenvolvido a partir dos séculos XIVXV apôs um longo período de incubação anterior caracterizavase essencialmente pelo mesmo nexo fundamental do feudalismo europeu a fusão de vassalagem benefício e imunidade num sistema de feudo que constituía a estrutura político jurídica básica na qual o trabalho excedente era extraído do produtor direto Os vínculos entre serviço militar propriedade fundiária condi cional e jurisdição senhorial reproduziramse fielmente no Japão Es teve igualmente presente a hierarquia graduada entre senhor vassalo e subvassalo formando uma cadeia de suserania e dependência Uma aristocracia de cavaleiros constituía a classe dominante hereditária o campesínato encontravase juridicamente vinculado ao solo numa ré plica próxima da servidão da gleba Evidentemente o feudalismo japo nês possuía também características próprias locais que contrastavam com o feudalismo europeu As condições técnicas da rizicultura dita vam organizações diversas a nível da aldeia onde estava ausente o sis tema de afolhamento trienal Por sua vez o domínio senhorial japonês raramente continha uma reserva ou cultivo doméstico Ainda mais importante no quadro da relação feudal entre senhor e suserano acima do nível da aldeia a vassalagem tendia a predominar sobre o benefício o vínculo pessoal de homenagem era tradicionalmente mais forte que o vínculo material da investidura O pacto feudal era menos contratual e específico que na Europa os deveres do vassalo eram mais difusos e os direitos do seu suserano mais imperativos No quadro do peculiar equilíbrio entre honra e subordinação recipro cidade e desigualdade que marcava a ligação feudal a variante japo nesa pendia consistentemente para o segundo termo Embora a organi zação clânica estivesse ultrapassada como em todas as verdadeiras for 27 O Capital l p 718 28 Ver as famosas passagens de Bloch em Feudal Society pp 4467 Boutru che Seigneurie ei Féodaliié I pp 28191 O mais importante estudo comparado do feudalismo europeu e japonês é o de F Joüon dês Longrais LEst et LOuest Paris 1958 passim A documentação utilizada para os comentários que se seguem sobre o desenvolvimento japonês pode ser encontrada nas referências do apêndice sobre o f eu da lismojaponês pp 433 414 PERRY ANDERSON mações sociais feudais o expressivo código da relação senhorvassalo era proporcionado pela linguagem do parentesco e não por elementos do direito a autoridade do senhor sobre o seu subalterno era de caráter mais patriarcal e inquestionável que na Europa Não existia o conceito de felonia senhorial tampouco os tribunais de vassalos o sistema jurí dico era de modo geral muito limitado A conseqüência geral mais importante da configuração autoritária e assimétrica da hierarquia in trasenhorial no Japão foi a ausência de um sistema de estados tanto no nível regional como no nacional Esta era sem dúvida no plano político a mais importante linha divisória entre o feudalismo japonês e o europeu considerados enquanto estruturas autoisoladas Mas uma vez registradas essas significativas diferenças de ordem secundária a semelhança fundamental entre as duas configurações his tóricas é inequívoca Acima de tudo o feudalismo japonês definiase também por uma rigorosa fragmentação da soberania e pelo caráter escalonado da propriedade fundiária Na verdade a fragmentação da soberania atingiu no Japão Tokugawa uma forma mais organizada sistemática e estável do que jamais ocorreu em qualquer país europeu ao passo que a propriedade privada escalonada da terra era efetiva mente mais universal no Japão feudal que o fora na Europa já que não havia posses alodiais no campo O paralelismo básico entre as duas grandes experiências do feudalismo nos extremos opostos do conti nente eurasiano iria receber a sua confirmação mais impressionante no destino posterior de cada uma dessas áreas O feudalismo europeu como vimos revelouse a passagem para o capitalismo Foi a dinâmica econômica do modo de produção feudal na Europa que liberou os ele mentos para a acumulação primitiva do capital em escala continental e foi a ordem social da Idade Média que precedeu e preparou a ascensão da classe burguesa que a realizou O modo de produção capitalista na sua forma plena desencadeada pela revolução industrial foi o dom e a maldição da Europa para todo o globo Hoje na segunda metade do século XX apenas uma grande região situada fora da Europa ou de sua colonização ultramarina atingiu um estado avançado de capita lismo industrial o Japão Os pressupostos sócioeconômicos do capita lismo japonês como foi amplamente demonstrado pela moderna inves tigação histórica assentamse profundamente no feudalismo nipônico que tanto impressionara Marx e os europeus no final do século XIX Com efeito nenhuma outra área do mundo dispunha de elementos in ternos tão propícios para uma rápida industrialização Tal como na Europa ocidental a agricultura feudal permitira notáveis índices dcj produtividade talvez mais elevados do que na maior parte da Ásia dali LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 415 monções de hoje Também aí aparecera um penetrante senhorialismo orientado para o mercado numa área rural cujo índice geral de comer cialização era surpreendentemente alto quiçá metade ou mais do produto total Além disso e ainda mais revelador o Japão do final do feudalismo conheceu um nível de urbanização provavelmente inigua lado em qualquer outra região exceto a Europa contemporânea no princípio do século XVIII Edo a sua capital era maior que Londres ou Paris e talvez um em cada dez habitantes vivia em cidades com mais de 10 mil pessoas Por último mas não menos importante o su porte educacional do país sustentava a comparação com as nações mais desenvolvidas da Europa ocidental nas vésperas da abertura japone sa ao Ocidente cerca de 40 a 50 por cento da população masculina adul ta era alfabetizada O ritmo e o sucesso impressionantes com que o capi talismo industrial foi implantado no Japão pela Restauração Meiji tive ram os seus pressupostos históricos determinados no caráter peculiar mente avançado da sociedade que foi o legado do feudalismo Tokugawa No entanto ao mesmo tempo havia uma divergência decisiva entre o desenvolvimento europeu e o japonês Com efeito embora o Japão chegasse a alcançar um ritmo de industrialização mais acelerado do que o de qualquer país capitalista da Europa ou da América do Norte o impulso fundamental de sua tempestuosa transição ao modo de produção capitalista no final do século XIX e início do século XX ioiexógeno Foi o impacto do imperialismo ocidental sobre o feuda lismo japonês que subitamente galvanizou as forças internas numa transformação total da ordem tradicionalmente instituída A profun didade dessas transformações não estava de modo algum ao alcance do reino Tokugawa Quando a esquadra de Perry ancorou em Yokohama em 1853 o hiato histórico existente entre o Japão e as potências euro americanas era apesar de tudo imenso A agricultura japonesa era notavelmente comercializada ao nível da distribuição mas tal ocorria em muito menor escala no nível da própria produção Com efeito os tributos feudais coletados em sua maior parte em espécie contavam ainda para o grosso do sobreproduto mesmo sendo depois convertidos em dinheiro a produção agrícola voltada diretamente para o mercado continuava a ser subsidiária dentro do conjunto da economia rural As cidades japonesas eram enormes aglomerados urbanos como institui ções financeiras e comerciais muito avançadas Não obstante as manu faturas eram ainda de caráter rudimentar dominadas pelos ofícios irtesanais organizados em corporações de tipo tradicional as fábricas propriamente ditas eram praticamente desconhecidas o trabalho assa lariado não estava organizado em escala significativa a tecnologia era 416 PERRY ANDERSON simples e arcaica O ensino no Japão era um fenômeno de massas que teria talvez alfabetizado toda a população masculina Culturalmente porém o país era ainda em grande parte atrasado se comparado com os seus antagonistas ocidentais não havia desenvolvimento da ciência o avanço do direito era limitado quase não havia filosofia e muito menos teoria econômica e política sem falar na virtual ausência de uma história crítica Em outras palavras nada de remotamente com parável ao Renascimento tocara as costas japonesas Era portanto ló gico que a estrutura do Estado tivesse uma forma fragmentada e rígida O Japão conheceu uma longa e rica experiência de feudalismo mas nunca produziu um absolutismo O shogunato Tokugawa que gover nara as ilhas durante os últimos dois séculos e meio antes da intro missão do Ocidente industrializado assegurou uma paz prolongada e manteve uma rigorosa ordem o seu regime era porém a negação do Estado absolutista O shogunato não detinha qualquer monopólio da coerção no Japão os senhores regionais conservavam os seus próprios exércitos cujo total era superior ao das tropas da casa Tokugawa Não impunha uma legislação uniforme o alcance de seus decretos não ia além de um quinto ou um quarto do território Não possuía uma buro cracia com competência em toda a sua área de suserania todo feudo importante tinha a sua própria administração autônoma e separada Não coletava impostos nacionais três quartos do território ficavam fora de seu âmbito fiscal Não dirigia uma diplomacia o isolamento oficial proibia o estabelecimento de relações regulares com o mundo exterior Exército fisco burocracia direito diplomacia todos esses comple xos institucionaischave do absolutismo europeu estavam ausentes ou não eram eficazes no Japão Neste aspecto a distância política entre o Japão e a Europa as duas pátrias do feudalismo evidencia e simbo liza a profunda divergência em seu desenvolvimento histórico Tornase necessária e instrutiva uma comparação não da natureza mas da posição do feudalismo na trajetória de cada uma destas regiões Na Europa como vimos o modo de produção feudal foi o resul tado de uma fusão de elementos liberados a partir do choque e disso lução de dois modos de produção anteriores o modo de produção es cravista da antigüidade clássica e os modos de produção comunalpri mitivos das populações tribais de sua periferia A lenta síntese romano germânica durante a Idade das Trevas acabou por gerar a nova civili zação do feudalismo europeu A história específica de cada uma das formações sociais da Europa medieval e do início da Idade Moderna foi caracterizada pela incidência diferenciada desta síntese original que deu vida ao feudalismo Um exame da experiência inteiramente diversa LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 417 do feudalismo japonês sublinha uma importante verdade geral que devemos a Marx a gênese de um modo de produção sempre deve ser distinguida de sua estrutura Com efeito a mesma articulação estru tural pode vir à luz a partir de inúmeras vias diferentes Os elemen tos constitutivos que a compõem podem ser liberados de modos e em seqüências diversas a partir de modos de produção anteriores antes de se entrelaçarem para formar um sistema coerente e capaz de se repro duzir Assim o feudalismo japonês não teve atrás de si um passado escravista ou tribal Foi o produto da lenta desintegração de um sistema imperial de tipo chinês baseado no monopólio estatal da terra O Estado Taiho criado nos séculos VII e VIII sob a influência chinesa era um tipo de império totalmente diverso do de Roma A escravidão tinha aí uma importância mínima não havia liberdades municipais a propriedade privada da terra estava abolida O deslocamento gradual da organização política centralizada que se constituiu com os códigos Taiho foi um processo espontâneo e endógeno que se estendeu dos sé culos IX ao XVI Não houve invasões estrangeiras comparáveis às mi grações bárbaras da Europa a única ameaça externa grave o ataque marítimo dos mongóis no século XIII foi decididamente repelida Assim os mecanismos da transição ao feudalismo no Japão foram com pletamente diferentes dos que conhecemos na Europa Não houve o co lapso cataclísmico nem a dissolução de dois modos de produção em conflito ao lado de uma profunda regressão econômica política e cul tural que no entanto abriram caminho ao subseqüente avanço dinâ mico do novo modo de produção nascido dessa dissolução Foi antes o declínio extremamente prolongado de um Estado imperial centrali zado no seio do qual os nobres guerreiros locais tinham impercepti velmente usurpado as terras provinciais e privatizado o poder militar até que finalmente no termo de um desenvolvimento contínuo de sete séculos sobreveio a fragmentação feudal quase completa do país Esse processo involutivo de feudalização a partir de dentro foi enfim com pletado pela recomposição dos senhorios territoriais independentes numa pirâmide organizada da suserania feudal O shogunato Toku gawa representou o produto final desta história secular 29 Evidentemente as análises de Marx sobre a acumulação primitiva em O Ca pital parte VIII pp 71374 fornecem o exemplo clássico desta distinção Ver também muitas afirmações dos Gntndrisse por exemplo Assim embora o dinheiro se torne capital graças a pressupostos determinados e externos ao capital tào logo o capital passe a existir como tal ele cria os seus próprios pressupostos através do seu própria processo de produção Grundrisse Londres 1973 p 364 418 PERRY ANDERSON Em outras palavras toda a genealogia do feudalismo no Japão apresenta um contraste inequívoco com a descendência do feudalismo na Europa Hintze cuja obra contém análises que continuam a figurar entre as mais profundas reflexões sobre a natureza e incidência do feu dalismo estava contudo equivocado ao acreditar numa estreita analo gia entre a experiência japonesa e a européia Para ele em toda a parte o feudalismo resultou do que denominava a deflexão Ablenkung de uma sociedade tribal avançada através do arcabouço de um império anterior que desviou a sua trajetória de formação do Estado para uma configuração singular Rejeitando todo o evolucionismo linear insistia na necessidade de um entrelaçamento Verflechtung conjuntural de efeitos imperiais e tribais para dar vazão a um verdadeiro feudalismo O surgimento do feudalismo europeu ocidental após o Império Ro mano podia portanto ser comparado com o aparecimento do feuda lismo japonês após o Império Taiho em ambos os casos tratouse de uma combinação externa GermâniaRoma e JapãoChina de ele mentos que determinou a formação desta ordem O feudalismo não é criação de um desenvolvimento nacional imanente mas uma constela cão histórica mundial 30 O defeito desta comparação é o pressuposto de que os Estados imperiais chinês e romano seriam semelhantes não apenas na sua abstrata designação comum de império A Roma anto nina e a China Tang ou o seu equivalente o Japão Taiho foram de fato civilizações absolutamente diferentes baseadas em modos de pro dução distintos É a diversidade das vias para o feudalismo não a sua identidade a lição básica a extrair do aparecimento separado da mes ma forma histórica nos dois extremos da Eurásia No quadro desta radical diversidade de origens a similaridade estrutural entre os feuda lismos europeu e japonês é ainda mais surpreendente a mais eloqüente demonstração de que um modo de produção uma vez constituído re produz rigorosamente a sua própria identidade como sistema inte grado livre dos pressupostos díspares que inicialmente lhe deram origem O modo de produção feudal tem a sua própria ordem e neces sidade que se impôs com a mesma estrita lógica em dois contextos ex tremamente contrastantes uma vez cumpridos os processos de transi 30 Hintze Wesen und Verbreitung dês Feudalismus Gesammelte Abhand lungen I p 90 Hintze acreditava que teria havido um feudalismo russo depois do Império Bizantino e um feudalismo islâmico depois do Império Sassânida que consti tuiriam dois outros exemplos do mesmo processo Na verdade o desenvolvimento russo inseriase no feudalismo europeu em seu conjunto e nunca houve um verdadeiro feuda lismo islâmico Mas a análise de Hintze é apesar disso plena de interesse LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 419 cão Não apenas ocorreu a reprodução no Japão das estruturas de go verno do feudalismo inicialmente desenvolvidas na Europa como o que é talvez ainda mais significativo tais estruturas tiveram visivelmente os mesmos efeitos históricos O desenvolvimento do senhorialismo a ex pansão do capital mercantil a difusão do ensino no Japão foram de tal ordem como vimos que este país se revelou a única região importante do mundo de origem nãoeuropéia capaz de acompanhar a Europa a América do Norte e a Australásia na marcha para o capitalismo in dustrial Não obstante salientado o paralelismo fundamental entre os feu dalismos europeu e japonês enquanto modos de produção internamente articulados resta o simples e enorme fato de seus resultados divergen tes A Europa a partir da Renascença realizou a transição para o capitalismo segundo o seu próprio impulso num processo de constante evolução global A revolução industrial em última análise desenca deada pela acumulação primitiva do capital em escala internacional durante a primeira fase da época moderna constituiu uma combustão espontânea e gigantesca das forças de produção sem similares em sua força e universal em seu alcance Nada de comparável ocorreu no Ja pão e a despeito de todos os avanços da época Tokugawa não havia indícios de que algo semelhante estivesse para acontecer Foi o impacto do imperialismo euroamericano que destruiu a antiga ordem política do Japão e foi a importação da tecnologia ocidental que tornou possível uma industrialização indígena a partir da matériaprima de sua he rança sócioeconômica O feudalismo permitiu ao Japão caso único entre as sociedades asiáticas africanas ou ameríndias ingressar nas fileiras do capitalismo avançado quando o imperialismo se tornou um sistema conquistador a nível mundial não gerou um capitalismo nativo por seu próprio impulso no isolamento do Pacífico Não havia portanto uma força inerente ao próprio modo dê produção feudal que inevita velmente o compelisse a evoluir para o modo de produção capitalista As evidências concretas da história comparada não sugerem um tal evolucionismo Qual foi então a especificidade da história européia que tão pro fundamente a separou da história japonesa a despeito do ciclo comum de feudalismo que tanto as aproximou A resposta encontrase certa mente na duradoura herança da antigüidade clássica O Império Ro mano a sua forma histórica final não era apenas por si natural mente incapaz de uma transição para o capitalismo O próprio avanço do mundo clássico o condenou a uma regressão catastrófica de propor ções tais que não encontra realmente um outro exemplo nos anais da 420 PERRY ANDERSON civilização O mundo social muito mais primitivo do feudalismo em seus inícios foi o resultado de seu colapso preparado internamente e completado do exterior Então a Europa medieval libertou depois de uma longa gestação os elementos de uma lenta transição ulterior para o modo capitalista de produção no início da época moderna Mas o que tornou possível a passagem singular ao capitalismo na Europa foi a concatenação de antigüidade e feudalismo Em outras palavras para apreender o segredo do surgimento do modo de produção capitalista na Europa é necessário descartar tão radicalmente quanto possível qual quer concepção que o vê como a simples subsunção evolutiva de um modo de produção inferior por outro superior sendo um gerado auto mática e completamente no seio do outro por uma sucessão orgânica interna que com isso o extingue Marx insistiu corretamente na dis tinção entre a gênese e a estrutura dos modos de produção Mas por outro lado caiu no equívoco de acrescentar que a reprodução da última absorvia ou abolia os traços da primeira Assim escreveu que os pres supostos anteriores de um modo de produção precisamente en quanto pressupostos históricos pertencem ao passado portanto à his tória da sua formação mas de modo algum à sua história contempo rânea isto é ao sistema real do modo de produção enquanto o prelúdio histórico do seu porvir eles se encontram por trás dele tal como os processos através dos quais a terra efetuou a transição de sua forma fluida de mar de fogo e vapor para a sua forma atual situamse além de sua existência enquanto terra31 Efetivamente o próprio capitalismo triunfante o primeiro modo de produção a alcançar um âmbito verdadeiramente global de modo algum meramente resumia e integrava todos os anteriores modos de produção que encontrou e dominou em seu caminho E ainda me nos na Europa o feudalismo que o antecedeu Não é uma tal teleo logia que governa as trilhas tortuosas e ramificadas da história Com efeito como vimos as formações sociais concretas incorporam via de regra numerosos modos de produção coexistentes e antagônicos de épocas variáveis Na realidade o advento do modo de produção capita lista na Europa só pode ser entendido se se rompe com toda a noção puramente linear de tempo histórico Em vez de apresentar a forma de uma cronologia cumulativa na qual uma fase sucede e supera a ante rior para produzir a sucessora que por sua vez a ultrapassará a mar cha para o capitalismo revela a persistência do legado de um modo de 31 Grundrisse pp 3634 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 421 produção no quadro de uma época dominada por outro e uma reati vação de sua influência na passagem a um terceiro A Vantagem da Europa sobre o Japão reside nos seus antecedentes clássicos que mes mo depois da Idade das Trevas não desapareceram atrás dela mas sobreviveram em certos aspectos básicos à sua frente Neste sen tido a gênese histórica concreta do feudalismo na Europa longe de se desvanecer como fogo e vapor na solidez terrena da sua estrutura reali zada teve efeitos tangíveis sobre a sua dissolução final A temporali dade histórica real que rege os três grandes modos de produção histó ricos que dominaram a Europa até este século é portanto radicalmente distinta do continuum de umacronologia evolutiva Contrariamente a todas as teses historicistas o tempo foi como que invertido a certos níveis entre os dois primeiros para que a guinada decisiva para o úl timo se efetuasse Contrariamente a todas as teses estruturalistas não foi um mecanismo autônomo que operou o deslocamento do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista como sistemas contíguos e fechados Foi necessária a concatenação dos modos de pro dução antigo e feudal para que se produzisse na Europa o modo de produção capitalista uma relação que não se resumia a uma seqüên cia diacrônica mas era também em determinado estágio uma articu lação sincrônica O passado clássico despertou de novo dentro do pre sente feudal para assistir à chegada do futuro capitalista ambos a um tempo incrivelmente distantes e estranhamente próximos dele Com efeito o nascimento do capital também presenciou como é sabido o renascimento da antigüidade A Renascença a despeito de toda a crí tica e revisão permanece como o momento crucial de toda a história européia duplo momento de uma expansão no espaço e de uma recu peração no tempo igualmente sem precedentes Ê neste ponto com a redescoberta do mundo antigo e a descoberta do Novo Mundo que o sistema estatal europeu adquire a sua plena singularidade Um poder universal e ubíquo seria o resultado dessa singularidade e o seu final A concatenação dos modos de produção antigo e feudal que dis tingue o desenvolvimento europeu é visível em numerosos traços origi nais da época medieval e do inicio da época moderna que a separam da experiência japonesa e obviamente da islâmica e da chinesa De início toda a posição e evolução das cidades era completamente dife rente Como vimos o feudalismo como modo de produção foi o pri meiro na história a tornar possível uma oposição dinâmica entre cidade c campo o parcelamento da soberania inerente à sua estrutura permi tia que se desenvolvessem enclaves urbanos autônomos como centros de PERRY ANDERSON produção no quadro de uma economia predominantemente rural e não como centros parasitários ou privilegiados de consumo e adminis tração o padrão que Marx acreditava ser puramente asiático Assim a ordem feudal fomentou um tipo de vitalidade urbana diferente de qualquer outra civilização cujos produtos comuns podem ser observa dos tanto no Japão como na Europa Não obstante houve simultanea mente uma diferença crucial entre as cidades medievais da Europa e do Japão As primeiras possuíam um grau regular de densidade e autono mia desconhecido das últimas o seu peso relativo no seio da ordem feudal era muito maior A maior onda de urbanização no Japão foi relativamente tardia desenvolvendose a partir do século XVI domi nada por algumas raras e vastas concentrações urbanas Além disso nenhuma cidade japonesa adquiriu autonomia municipal duradoura o seu apogeu coincidiu com o máximo controle dos barões ou dos se nhores shogun sobre elas Na Europa por outro lado a estrutura geral do feudalismo permitiu também o crescimento de cidades produtoras baseadas nas manufaturas artesanais mas as formações sociais especí ficas que emergiram da forma de transição local peculiar para o feuda lismo garantiam desde o início um maior potencial urbano e muni cipal Com efeito como vimos o movimento real da história nunca é a mera mudança de um modo de produção puro para outro compõese sempre de uma série complexa de formações sociais na qual se imbri cam diversos modos de produção sob a dominância de um deles Foi evidentemente por esta razão que os efeitos determinados dos modos de produção antigo e comunalprimitivo anteriores ao modo de produ ção feudal puderam sobreviver dentro das formações sociais da Europa medieval muito tempo depois do desaparecimento dos mundos ro mano e germânico Assim o feudalismo europeu gozou desde o início de um legado municipal que preenchia o espaço deixado pelo novo modo de produção ao desenvolvimento urbano de um modo muito mais positivo e dinâmico do que em qualquer outro lugar Já menciona mos o testemunho mais revelador da importância direta da antigüidade no surgimento das formas urbanas características da Idade Média na Europa o primado da Itália em seu desenvolvimento e a adoção das insígnias romanas em seus primeiros regimes municipais desde os consulados do século XI Toda a concepção social e jurídica de uma cidadania urbana enquanto tal era de memória e derivação clássicas sem paralelo fora da Europa Naturalmente dentro do modo de produ ção feudal constituído toda a base sócioeconômica das cidadesrepú blicas que gradualmente se desenvolveram na Itália e no Norte era radi calmente distinta da que existia no modo de produção escravista do LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 423 qual herdaram tantas tradições superestruturais32 o trabalho artesanal livre tornouas para sempre distintas das suas predecessoras a um tempo mais rudes e capazes de maior criatividade Como Anteu na comparação de Weber a cultura citadina do mundo clássico que mer gulhou nas sombrias profundezas do mundo rural na Idade das Trevas ressurgiu mais forte e mais livre nas comunidades urbanas do princípio da época moderna33 No Japão nada se passou de semelhante a este processo bem como a fortiori nos grandes impérios asiáticos que nunca conheceram o feudalismo árabe turco hindu ou chinês As cidades da Europa comunas repúblicas e tiranias foram o pro duto singular do desenvolvimento combinado que marcou o continente Ao mesmo tempo a área rural do feudalismo europeu sofreu também uma evolução sem paralelo Já salientamos a extrema raridade do sistema do feudo como tipo de propriedade rural Nunca foi conhe cido nos grandes Estados islâmicos ou sob as sucessivas dinastias chi nesas que tinham as suas formas próprias de regime agrário O feuda lismo japonês contudo apresenta a mesma conexão de vassalagem benefício e imunidade que definia a ordem medieval na Europa Mas por outro lado nunca revelou a crucial transformação da propriedade rural que singularizou os inícios da Europa moderna Na sua forma pura o modo de produção feudal caracterizavase pela propriedade privada condicional da terra conferida a uma classe nobiliária de título hereditário A natureza privada ou condicional desta forma de proprie dade a distinguia como notou Marx de toda uma série de sistemas agrários alternativos fora da Europa e do Japão em que o monopólio oficial do Estado sobre a terra na origem ou ao longo do tempo pres supunha classes possuidoras bem menos estritamente aristocráticas do que a dos cavaleiros ou samurais Mas uma vez mais o desenvol vimento europeu processouse à frente do japonês com a transição da propriedade privada da terra de caráter condicional para a absoluta na época da Renascença Também aqui foi essencialmente a herança clássica do direito romano que facilitou e codificou este avanço deci 32 O ressurgimento do escravismo em grande escala no Novo Mundo seria evi dentemente um dos acontecimentos mais ilustrativos do inicio da época moderna condição indispensável da acumulação primitiva necessária à vitória do capitalismo in dustrial na Europa O seu papel que escapa ao âmbito do presente trabalha será ana lisado num estudo subseqüente 33 Ver a passagem definitiva de Weber em todo o seu esplendor em Die Só zialenGründe dês Untergangs der antiken Kultur Gesammelte Aufsatze zur Soxtaíund Wirtschaftsgeschichte pp 3101 para uma tradução brasileira ver Weber Âtica 3982 2 ed Org Gabriel Cohn pp 3757 424 PERRY ANDERSON sivo A propriedade quiritária a expressão jurídica mais elevada da economia mercantil da antigüidade permaneceu à espera de ser redes coberta e posta a funcionar logo que a difusão das relações mercantis no seio da Europa feudal atingiu níveis que requeriam de novo a sua precisão e clareza34 Numa tentativa de definir a especificidade da via européia para o capitalismo por contraste com o desenvolvimento do restante do mundo Marx escreveu a Zasulich Neste movimento oci dental a questão é a transformação de uma forma de propriedade pri vada em outra forma de propriedade privada Com isso queria di zer a expropriação das pequenas posses camponesas pela agricultura capitalista que ele pensava equivocadamente ser possível evitar na Rússia através da transição direta da propriedade camponesa comunal para o socialismo Tal fórmula contém todavia uma verdade pro funda quando aplicada num sentido algo diferente a transformação de uma forma de propriedade privada condicional em uma outra forma de propriedade privada absoluta no seio da nobreza fun diária constituiu a preparação indispensável para o advento do capita lismo e representou o momento em que a Europa deixou para trás to dos os outros sistemas agrários Na longa época de transição durante a qual a terra continuou a ser no aspecto quantitativo a principal fonte de riqueza em todo o continente a consolidação da propriedade pri vada irrestrita e hereditária era um passo fundamental para a liberação dos fatores de produção necessários à acumulação do capital propria mente dita O próprio vinculismo demonstrado pela aristocracia eu ropéia no início da época moderna já era uma evidência das pressões objetivas para um mercado livre da terra que haveria de gerar uma agricultura capitalista Na verdade a ordem jurídica nascida da recu peração do direito romano criou as condições jurídicas gerais para uma bemsucedida passagem ao modo de produção capitalista tanto na ci dade como no campo A garantia da propriedade e a estabilidade dos contratos a proteção e previsibilidade das transações econômicas entre indivíduos asseguradas por um direito civil escrito nunca se reprodu ziram em outras regiões O direito islâmico era quando muito vago e 34 Engels podia escrever O direito romano é de tal modo a expressão clássica das condições de existência e dos conflitos de uma sociedade dominada pela pura pro priedade privada que toda a legislação subseqüente não conseguiu aprimorálo de forma essencial A propriedade burguesa da Idade Média era pelo contrário muito moderada pelas limitações feudais e em larga medida constituíase de privilégios o direita romano estava por conseguinte neste aspecto muito à frente weit voraus das relações burguesas da época Werke vol 21 p 397 35 MarxEngels Selected Correspondence p 340 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 425 ambíguo em matéria de propriedade imobiliária era inextricavelmente religioso e por isso confuso e polêmico na sua interpretação O direito chinês era puramente punitivo e repressivo praticamente não tratava das relações civis e não provia um quadro jurídico estável para a ativi dade econômica O direito japonês era rudimentar e fragmentário mal esboçando os tímidos rudimentos de um direito comercial exeqüível por entre o labirinto da diversidade dos decretos senhoriais6 Em contraste com todos estes o direito romano oferecia um quadro de referência coerente e sistemático à compra venda arrendamento locação em préstimo e sucessão dos bens remodelado para as novas condições da Europa e generalizado por um corpo de juristas profissionais que a própria antigüidade desconhecia a sua influência constituiu um dos pressupostos institucionais fundamentais para a aceleração das rela ções de produção capitalistas em escala continental O renascimento do direito romano por outro lado trouxe con sigo ou na sua esteira a reapropriação de praticamente toda a herança cultural do mundo clássico O pensamento filosófico histórico político e científico da antigüidade para não falar de sua literatura e arqui tetura adquiriu subitamente uma nova força e presença no princípio da época moderna Os elementos críticos e racionais da cultura clás sica se comparados aos das outras civilizações antigas possibilitaram uma eficácia maior e mais aguda ao retorno àquela Não somente esses elementos eram intrinsecamente mais avançados que os seus equiva lentes no passado dos outros continentes como estavam separados do presente pelo grande abismo da fronteira religiosa entre duas épocas De tal modo o pensamento clássico jamais podia ser preservado como uma tradição venerável e inócua mesmo na assimilação seletiva que dele fez a Idade Média ele sempre manteve um conteúdo antagônico e corrosivo enquanto universo nãocristão E assim que as novas condi ções sociais permitiram que as mentes européias olhassem subitamente para trás por sobre o abismo que as separava da antigüidade sem sentir vertigens o potencial radical de suas grandes obras pôde ser plenamente sentido Daí adveio como vimos uma revolução intelec tual artística que só pôde ocorrer graças à emanação histórica especí fica do mundo clássico sobre os mundos medievais A astronomia de Copérnico a filosofia de Montaigne a política de Maquiavel a histo riografia de Clarendon a jurisprudência de Grotius todas eram de vedoras de diferentes maneiras das mensagens da antigüidade O prô 36 Estes contrastes são analisados adiante pp 453 4979543 426 PERRY ANDERSON prio nascimento da física moderna em parte assumiu a forma de uma rejeição de uni legado clássico o aristotelismo sob o signo de um outro o neoplatonismo que inspirou a sua concepção dinamizada da natureza37 A cultura cada vez mais analítica e secular que se desen volveu gradualmente ainda com muitos entraves e recuos teológicos foi talvez o fenômeno histórico que mais infalivelmente distinguiu a Europa das outras grandes áreas da civilização na época préindustrial O sereno tradicionalismo da sociedade feudal japonesa virtualmente inocente na era Tokugawa de assomos ideológicos antagônicos for nece um contraste especialmente notável É evidente que a estagnação intelectual do Japão ao lado de sua efervescência econômica deviase em grande medida ao deliberado isolamento do país Mas também neste aspecto o feudalismo europeu levou vantagem sobre o seu homó logo japonês desde o exato princípio de suas respectivas origens Enquanto no Japão o modo de produção feudal resultou da lenta involução de uma ordem imperial cujas estruturas foram empres tadas ao estrangeiro e se estabilizou em condições de completo afasta mento do mundo externo na Europa o modo de produção feudal emergiu do choque frontal entre duas ordens anteriores em conflito sobre uma grande massa territorial cujos efeitos secundários vieram a repercutirse numa extensão geográfica ainda mais ampla O feuda lismo insular do Japão evoluiu para dentro afastandose da matriz ex tremooriental do primitivo Estado Taiho O feudalismo continental da Europa evoluiu para fora à medida que a diversidade étnica inerente à síntese que lhe dera origem crescia efetivamente com a difusão do modo de produção para além de sua pátria carolíngia e acabou por produzir um mosaico dinástico e protonacional de grande complexi dade Na Idade Média essa mesma diversidade assegurou a autonomia da Igreja que nunca esteve sujeita a uma única soberania imperial como acontecera na antigüidade e encorajou o surgimento dos Esta dos tradicionalmente convocados para alinhar uma nobreza local a uma monarquia ou principado perante o ataque de outro nos conflitos militares da época38 Por sua vez tanto a independência eclesiástica 37 Para o papel do neoplatonismo no desenvolvimento da ciência moderna ver Francês Yates Giordano Bruno and tke Hermetic Tradítion Londres 1964 pp 44755 Mais diretamente como é óbvio a herança da geometria euclidiana e da astronomia ptolomaica foi o pressuposto indispensável para o surgimento da física galileana 38 As determinantes interestatais da representação dos estados foram salienta das por Hintze Weltgeschichtliche Bedingungen der Reprãsentatiwerfassung Ge sammelte Abhandlungen Ipp 16870 LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUT1STA 427 como o sistema da representação em estados são características da so ciedade medieval européia que nunca se reproduziram na variante ja ponesa de feudalismo Neste sentido eles eram funções do caráter in ternacional do feudalismo europeu que não foi de modo algum a me nos importante das razões que fizeram com que seu destino fosse tão diferente do futuro do Japão A multiplicidade aleatória de unidades políticas no final da Idade Média européia deu lugar no início da época moderna a um sistema estatal organizado e interligado o nasci mento da diplomacia formalizou a novidade de um conjunto de vários parceiros na guerra nas alianças no comércio no matrimônio ou na propaganda no seio de uma arena política única cujas fronteiras e normas tornaramse cada vez mais nítidas e bem definidas A fecun didade da interseção cultural que resultou da formação deste sistema altamente integrado embora extremamente diversificado foi uma das marcas registradas da Europa préindustrial as realizações intelectuais do princípio da época moderna são muíto provavelmente inseparáveis dela Em nenhuma outra parte do mundo esteve presente um conjunto político semelhante a institucionalização do intercâmbio diplomático foi uma invenção da Renascença e continuou a ser ainda por muito tempo uma peculiaridade européia A Renascença portanto foi a um só tempo o momento em que a seqüência de antigüidade e feudalismo produziu os seus frutos mais espantosos e originais e o ponto crucial em que a Europa distanciouse de todos os outros continentes em dinamismo e expansão O novo e singular tipo de Estado que surgiu nessa época foi o absolutismo As monarquias absolutas do início do período moderno foram um fenô meno estritamente europeu Na verdade representam a forma política exata do avanço de toda a região Com efeito como vimos foi preci samente neste ponto que a evolução japonesa se deteve o feudalismo do Extremo Oriente nunca passou para o absolutismo Em outras pa lavras o aparecimento do absolutismo a partir do feudalismo europeu foi o cômputo de seu avanço político Uma criação da Renascença o absolutismo pôde desenvolverse graças à longa história anterior que se estendia para antes do feudalismo e foi exorcizada para assistir à au rora da época moderna Como estrutura política dominante na Europa até o final do iluminismo a sua ascendência coincidiu com a explora ção do globo pelas potências européias e com os primórdios da supre macia destas Em sua natureza e estrutura as monarquias absolutas da Europa eram ainda Estados feudais o instrumento de governo da mesma classe aristocrática que dominara a Idade Média Mas na Eu ropa ocidental que as viu nascer as formações sociais que elas gover 428 PERRY ANDERSON naram eram uma combinação complexa dos modos de produção capi talista e feudal com uma burguesia gradualmente ascendente e uma crescente acumulação primitiva de capital à escala internacional Foi a conjugação destes dois modos de produção antagônicos em sociedades específicas que deu origem às formas de transição do absolutismo Os Estados monárquicos da nova época puseram fim ao parcelamento da soberania inscrita no modo de produção feudal na sua forma pura sem que nunca tenham chegado a alcançar uma organização política plena mente unitária Esta mudança foi em última instância determinada pelo crescimento da produção e intercâmbio de mercadorias associa dos à difusão do capitalismo mercantil e manufatureiro que tendia a diluir as relações feudais existentes no campo Ao mesmo tempo po rém o desaparecimento da servidão não significou a abolição da coer ção privada extraeconômica para a extração do sobretrabalho ao pro dutor imediato A nobreza fundiária continuou a deter a maior parte dos meios fundamentais de produção na economia e a ocupar a grande maioria das posições no seio do aparelho de poder político A coerção feudal foi deslocada para cima para uma monarquia centralizada e a aristocracia teve que trocar a sua representação em estados pelos car gos burocráticos dentro das renovadas estruturas de Estado As agu das tensões deste processo suscitaram muitas revoltas senhoriais a au toridade real foi com freqüência exercida implacavelmente contra membros da classe nobiliária O próprio termo absolutismo na verdade uma designação tecnicamente errônea dá testemunho da importância do novo complexo monárquico dentro da ordem aristo crática Não obstante há apesar de tudo uma característica básica que distingue as monarquias absolutas da Europa da miríade de outros tipos de governo despótico arbitrário ou tirânico encarnado ou con trolado pessoalmente pelo soberano que existiram nas diversas regiões do mundo O aumento do poder político do Estado monárquico foi acompanhado não por um decréscimo da garantia econômica da pro priedade nobiliária mas por um aumento correspondente dos direitos gerais de propriedade privada A era em que a autoridade pública ab solutista foi imposta constituiu também a era em que a propriedade privada absoluta progressivamente se consolidou É esta imensa di ferença social que distingue as monarquias Bourbon Habsburgo Tu dor ou Vasa de qualquer sultanato império ou shogunato fora da Eu ropa Os contemporâneos confrontados em solo europeu com o Estado otomano sempre tiveram uma aguda consciência desta profunda fis sura O absolutismo não significou o fim do domínio aristocrático ao LINHAGENS DO ESTADO ABSOLUTISTA 424 contrário protegeu e estabilizou a dominação social da classe nobre hereditária na Europa Os reis que presidiam às novas monarquias nunca puderam transgredir os limites invisíveis de seu poder os das condições materiais de reprodução da classe a que eles próprios perten ciam Em geral esses soberanos estavam conscientes de pertencerem à aristocracia que os circundava o orgulho individual de sua posição fundavase num sentimento coletivo de solidariedade Assim enquanto o capital ia lentamente se acumulando ao abrigo das cintilantes supe restruturas do absolutismo exercendo sobre elas um impulso gravita cional cada vez maior os proprietários fundiários da nobreza no início da Europa moderna conservavam o seu predomínio histórico no seio e através das monarquias que ora os dirigiam Economicamente prote gida socialmente privilegiada e culturalmente amadurecida a aristo cracia ainda mandava o Estado absolutista ajustou a sua supremacia à rápida germinação do capital no seio das formações sociais compósitas da Europa ocidental Em seguida como vimos o absolutismo apareceu também na Europa oriental essa metade muito mais atrasada do continente que nunca experimentara a síntese romanogermânica que dera origem ao feudalismo medieval As características e a temporalidade contrastan tes das duas variantes do absolutismo na Europa ocidental e oriental que constituíram o tema central deste estudo servem cada qual a seu modo para sublinhar o caráter e o contexto finais comuns a ambos Com efeito na Europa oriental o poder social da nobreza não foi limi tado por uma ascendente burguesia urbana como a que esteve pre sente na Europa ocidental a dominação senhorial não conheceu entra ves Desta maneira o absolutismo oriental mostra a sua composição e função de classe de forma bem mais patente e inequívoca que o seu homólogo ocidental Edificada sobre a servidão a natureza feudal de sua estrutura política era rude e manifesta o campesinato reduzido à servidão era uma lembrança permanente das formas de opressão e ex ploração que o seu aparelho de coerção perpetuava Mas ao mesmo tempo a gênese do absolutismo na Europa oriental foi fundamental mente distinta da do absolutismo na Europa ocidental pois precisa mente não foi a expansão da produção e do intercâmbio de mercado rias que o trouxe à luz o capitalismo ainda estava distante do além Elba Foram as duas forças entrecruzadas de um processo incompleto de feudalização que se iniciara cronologicamente mais tarde sem o benefício da herança da antigüidade e em condições topográficas e demográficas mais difíceis e das intensificadas pressões de um Oci dente mais avançado que levaram à préformação paradoxal do absolu 430 PERRY ANDERSON tismo no Leste Com o estabelecimento dos regimes absolutistas na Europa oriental completavase por sua vez o sistema internacional de Estados que definia e demarcava o continente no seu conjunto O nas cimento de uma ordem política multilateral funcionando como um campo único de competição e conflito entre Estados rivais foi por tanto a um só tempo a causa e o efeito da generalização do absolu tismo na Europa A construção deste sistema internacional a partir da Vestfália não tornou evidentemente homogêneas as duas partes do continente Ao contrário representando desde o início linhagens histó ricas distintas os Estados absolutistas da Europa ocidental e oriental seguiram diferentes trajetórias até as respectivas conclusões A ampla gama de destinos que daí resultou é bem conhecida No Ocidente as monarquias espanhola inglesa e francesa foram derrotadas ou derru badas por revoluções burguesas a partir de baixo os principados ita lianos e alemães foram eliminados por revoluções burguesas de cúpula tardiamente No Leste por outro lado o império russo foi finalmente destruído por uma revolução proletária As conseqüências da divisão do continente simbolizadas por estas sucessivas e opostas sublevações ainda hoje nos acompanham Apêndices