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Resumo Abstract PalavrasChave Keywords AS TRADIÇÕES HISTÓRICAS INDÍGENAS DIANTE DA CONQUISTA E COLONIZAÇÃO DA AMÉRICA TRANSFORMAÇÕES E CONTINUIDADES ENTRE NAHUAS E INCAS Eduardo Natalino dos Santos Doutorando no Depto de História FFLCHUSP Apresentaremos neste artigo algumas das principais características de duas tradições históricas indígenas a nahua e a inca Em seguida analisare mos comparativamente suas ações reações transformações e continui dades diante de desafios históricos similares e contemporâneos as con quistas e as colonizações castelhanas do Altiplano Central Mexicano e dos Andes durante os séculos XVI e XVII Nahuas Incas Conquista e colonização castelhana Tradições históri cas indígenas Fontes históricas indígenas This article presents some of the main characteristics of two indigenous historical traditions the Nahua and the Inca The author offers a comparative analysis of indigenous actions reactions adaptations transformations and continuities as they faced similar contemporaneous challenges the Spanish conquest and colonization of Central Mexico and the Andes during the seventeenth and eighteenth centuries Nahua Inca Spanish conquest and colonization Indigenous historical traditions Indigenous historical sources Este trabalho teve como ponto de partida o curso Visão comparativa da conquista e colonização das sociedades indígenas estatais nahuas maias e incas ministrado durante o primeiro se mestre de 2002 no Depto de História FFLCHUSP pelo Prof Dr Federico Navarrete Linares Instituto de Investigaciones Históricas UNAM a quem agradeço pelas críticas e sugestões Bolsista Fapesp Texto 3A História da América I Prof Raphael Sebrian Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 158 Introdução A elaboração e o uso social de explicações sobre o passado foram práticas constantes nas mais diversas sociedades humanas Em geral tais elaborações tratam de explicar e articular as origens as transformações as permanências e as expectativas grupais dandolhes sentidos supostamente imanentes que funcionam entre outras coisas como elementos de coesão social E essa ima nência atribuída é socialmente entendida e aceita em parte pelo fato de que tais explicações são construídas sobre as amplas concepções que cada socie dade possui e compartilha de forma mais ou menos homogênea dependendo se do caso acerca do tempo do espaço da transformação da permanência da origem do destino do que seja acontecimento fato verdade e etc e que formam um todo mais ou menos coerente mas não monolítico que podemos chamar de visão de mundo1 A construção e a manutenção de explicações históricas com aceitação social é um processo de média ou longa duração e em geral sobretudo nas chamadas sociedades complexas tende a estar sob o controle de camadas sociais específicas que podem inclusive contar com indivíduos ou instituições especializados na pro dução na transmissão e na difusão de tais explicações como é o caso das sociedade indígenas que analisaremos Chamaremos de tradições históricas a essas organi zações grupos instituições ou indivíduos que se dedicam de forma sistemática mas não necessariamente exclusiva à construção manutenção e transformação de explicações socialmente aceitas acerca do passado E tudo isso a relação das tradições históricas com determinados grupos sociais e a ligação de suas construções com uma determinada visão de mundo nos leva à conclusão de que é imprescindível entender as explicações sobre o passado como produtos históricos específicos inseridos em um conjunto de problemas que se relaciona diretamente com a sociedade em questão2 1 O conceito visão de mundo pode ser definido como um Conjunto articulado de siste mas ideológicos relacionados entre sí en forma relativamente congruente con el que un individuo o un grupo social en un momento histórico pretende aprehender el universo López Austin 2002 2 No entanto é muito comum que as explicações produzidas pelas tradições não ociden tais sobretudo pelas tradições indígenas sejam analisadas e caracterizadas de forma conjunta e genérica como se fossem o resultado da ação de princípios ou leis univer Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 159 Essas são as idéias gerais que orientaram a elaboração deste artigo o qual tem como objetivo específico apresentar algumas das principais características das tradições históricas nahua e inca para depois analisar comparativamente suas diferentes ações reações transformações e continuidades diante de processos históricos similares contemporâneos e levados às regiões do Altiplano Central Mexicano e dos Andes Centrais por um agente histórico comum Estamos nos referindo às conquistas e colonizações castelhanas dos séculos XVI e XVII O entendimento dessas diferentes tradições e de suas distintas reações e transformações diante da empresa colonial castelhana é fundamental para podermos contextualizar e analisar adequadamente os escritos históricos3 pro duzidos nessas duas regiões durante o Período Colonial4 sejam os escritos de origem e estrutura mais próximas ao pensamento nahua ou inca ou sejam os escritos tipicamente ocidentais que de alguma maneira utilizaramse das informações provenientes das tradições históricas locais5 sais que regeriam o pensamento de suas sociedades produtoras chamado de pensamento mítico Partindo desse pressuposto tais análises procuram determinar as características formais e conceituais comuns a tais explicações independentemente das especificidades sociais e históricas em meio das quais foram produzidas Veremos por exemplo que as tradições históricas mesoamericanas utilizavam um preciso sistema de calendário como elemento organizador de suas narrativas Esse sistema funcionava como uma espécie de coluna vertebral das narrativas e permitia a marcação de uma inequívoca seqüência tem poral diacrônica fato que não excluía a presença da sincronia nos relatos Apesar disso pouca atenção tem sido dada a esse caráter diacrônico do pensamento mesoamericano predominando a ênfase no caráter cíclico ou sincrônico o qual condiz mais facilmente com o pressuposto de que fora do mundo ocidental predomina o pensamento mítico caracteris ticamente sincrônico e não preocupado em delimitar a fronteira presentepassado 3 Estou chamando de escritos históricos ao conjunto de textos que de modo central e explícito possuem como tema as histórias e os costumes dos povos americanos 4 Esse raciocínio também pode ser aplicado de modo mais geral para ajudar a explicar as distintas ações reações e transformações das sociedades indígenas americanas frente ao processo de conquista e colonização castelhanas Em outras palavras somente enten dendo as especificidades das diversas sociedades indígenas inclusive suas construções ideológicas sobre a chegada e a presença do europeu é que poderemos compreender os diferentes contatos convivências e conflitos que foram construídos entre os povos lo cais e os estrangeiros a partir do século XVI 5 Em outra ocasião tratamos da produção de crônicas e histórias pelos religiosos espa nhóis e do uso que fizeram das informações provenientes das tradições indígenas meso americanas Santos 1998 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 160 1 As tradições históricas nahua e inca É muito difícil fazer uma caracterização eqüitativa das tradições históricas inca e nahua durante o período Préhispânico ou Colonial O conhecimento acerca dessas tradições que possuem em comum o fato de pertencer a socie dades estamentais e dominadoras que foram alvos das primeiras guerras de conquistas castelhanas depende muitas vezes de fatores alheios à boa von tade do pesquisador dentre os quais podemos destacar a sobrevivência ou não de registros produzidos por tais tradições o entendimento de seus even tuais sistemas de registro a existência ou não de escritos alfabéticos coloniais produzidos por indígenas ou castelhanos que registrem depoimentos da ver tente oral traduzam parte dos registros tradicionais ou que pelo menos des crevam o funcionamento de tais tradições e por fim a continuidade ou não dessas tradições até tempos recentes A positividade ou negatividade de cada um desses fatores determina em parte a possibilidade de existência de um campo de estudo específico que se dedique aos registros tradicionais aos escritos alfabéticos coloniais ou aos grupos humanos que mantiveram tais tradições até tempos mais re centes A articulação dos conhecimentos oriundos desses diversos campos de estudo pode nos fornecer a possibilidade de entendermos pelo menos em parte o funcionamento de tais tradições e de seus registros em tempos préhispânicos ou coloniais Tal articulação tem sido mais afortunada no caso da tradição nahua do que no caso da inca pois existe um grande desequilíbrio qualitativo e quan titativo no conhecimento das fontes provenientes dessas tradições histó ricas bem como no conhecimento de informações coloniais acerca de seus funcionamentos O desequilíbrio qualitativo devese principalmente ao fato de reconhecer mos como tais e entendermos apenas os sistemas escriturários empregados tradicionalmente na Mesoamérica os quais serviram para a produção de um sem número de registros sobre papel pele pedra cerâmica e outros materiais Enquanto que no caso andino reconhecemos e entendemos tão somente as complexas dimensões numéricas dos quipus registro que serviase de con juntos de cordões de distintas cores e comprimentos articulados entre si de diversas formas e com nós em distintas posições Os quipus mais simples pos suíam um cordel horizontal principal ao qual se atavam cordéis verticais se cundários nos quais registravamse de acordo com a quantidade de nós e suas Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 161 posições relativas entre si e entre o cordel principal as unidades dezenas centenas e etc6 No entanto além desse simples esquema de dois tipos de cordéis muitos quipus apresentavam cordéis duplos triplos com cores diferentes e com di ferentes tipos de nós elementos esses que possivelmente também possuíam seus significados Desse modo paira sobre os quipus uma enorme dúvida eram ou não utilizados também para o registro de informações não numéricas Pesa a favor dos que defendem que os quipus eram utilizados apenas para registros numéricos7 o fato de não possuirmos nenhuma leitura tradução ou versão colonial reconhecida e aceita de seus supostos conteúdos nãonumé ricos apesar de que como veremos alguns cronistas do início do Período Colo nial relataram que seus informantes andinos utilizavamse de quipus para res ponder aos questionamentos acerca de suas origens e história Tais relatos coloniais são utilizados como argumento pelos que defendem que os quipus serviam também para o registro de informações nãonuméricas8 as quais ser viam de base para narrativas que dependiam de uma tradição oral articulada Desse modo creio que não devemos dar a polêmica por encerrada Voltaremos a essa polêmica ao tratarmos especificamente de caracterizar a tradição histórica inca De qualquer modo ao contrário do caso do México Central no caso andino não possuímos textos tradicionais sejam préhispânicos ou colo niais pois se os quipus sobreviventes possuem dimensões narrativas ainda não podemos entendêlas O desequilíbrio quantitativo caracterizase pelo fato de que o número de documentos baseados nos quipus ou na reconhecida oralidade das tradições históricas andinas produzidos durante o século XVI e princípios do século XVII é infinitamente menor do que a quantidade produzida no México Central Essa escassez de traduções para línguas européias ou de transliterações em línguas locais dos registros ou narrativas tradicionais ou ainda a impossibili dade de entender totalmente os quipus compromete as possibilidades de 6 Vale notar que nos Andes diferentemente da Mesoamérica onde era utilizado o siste ma numérico vigesimal predominou o sistema decimal 7 Dentre os quais podemos destacar Pease 1995 8 Dentre os quais podemos destacar Ascher Ascher 1995 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 162 entendimento do funcionamento e das principais características das tradições históricas incas e andinas em geral Bem diferente é o caso do México Central onde reconhecidamente havia um sistema de escrita pictoglífica9 com o qual se produziram numerosos documentos em tempos préhispânicos e coloniais dos quais alguns exemplares tradicionais e muitos adaptados às demandas coloniais chegaram até nós10 Além disso esses documentos pictoglíficos tiveram parte de seus conteúdos traduzidos ou explicados em textos alfabéticos em línguas indí genas e européias com os quais pese a todos os problemas envolvidos nesse processo podemos entender um pouco mais das principais características das tradições de pensamento histórico dessa região Em suma houve um maior reconhecimento por parte dos castelhanos das tradições históricas nahuas e conseqüentemente um número maior de trabalhos coloniais conjuntos de transcrições e traduções do que das tradições incas Talvez isso tenha ocorrido porque a estrutura narrativa em anais e a escrita pictoglífica utilizadas na Mesoamérica fossem relativamente mais parecidas às concepções históricas e ao sistema de escrita cristãos do que as concepções incas do passado e sua menor importância atribuída à cronologia além de suas relações com a paisagem por meio dos ceques e de seus distintos sistemas de registro como os quipus11 9 Prefiro o termo pictoglífico a pictográfico por acreditar que ele evoca de forma mais explícita a combinação entre elementos pictóricos e glíficos a qual era uma das princi pais características do sistema de escrita mixteconahua Em outra ocasião tivemos a oportunidade de analisar algumas das soluções figurativas empregadas nos códices nahuas e pudemos comprovar que os problemas relacionados à semântica eram prioritários em relação aos de reprodução realística da dimensão visual do mundo Santos 2003 10 Do Altiplano Central procedem dois manuscritos de formato estilo e características tradicionais mas cuja datação é controversa São eles os códices Borbónico e Aubin São considerados como préhispânicos os códices Bórgia Cospi FéjérváryMayer Laud e Vaticano B grupo Bórgia Becker nº 1 Bodley Colombino Nuttall e Viena grupo Nuttall Todos esses procedem da região de Cholula Tlaxcala e oeste de Oaxaca da qual procedem também o Códice Selden do grupo Nuttall mas cuja datação é contro versa Da região maia procedem três códices préhispânicos o de Dresde o de Paris e o de Madri formado pelos códices Cortesiano e Troano e por isso também chamado de Trocortesiano Glass 1975 11 Frank Salomon em uma análise da crônica de Titu Cusi Yupanqui propõe que as duas tradições de escrita e pensamento histórico a cristã e a inca eram tão diferentes e irredutíveis que as traduções eram virtualmente impossíveis Salomon 1982 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 163 Como uma espécie de compensação que não chega a equilibrar nosso co nhecimento das duas tradições no caso andino temos uma acentuada conti nuidade da oralidade Tal continuidade se deveu em parte ao estabelecimento e à manutenção de uma sociedade colonial extremamente cindida e que se manteve até tempos mui recentes de um lado os castelhanos e seus descen dentes ocupantes da costa e por outro os grupos indígenas refugiados ou habitantes tradicionais das montanhas Essa cisão apesar de seu caráter de violência e de exclusão possibilitou a continuidade e a transformação mais lenta de várias comunidades andinas e suas tradições históricas orais o que tornou possível a realização de estudos antropológicos durante o século XX12 A Nahuas e Mesoamérica Penso que entre as diversas características da tradição histórica nahua três merecem destaque por sua quase onipresença nos registros pictoglíficos e na oralidade transcrita durante o Período Colonial 1 a utilização de um preciso e complexo sistema calendário13 como elemento central na organização inte lectual das explicações acerca do passado 2 a localização da época atual após uma seqüência de eras ou idades cujos inícios e finais teriam sido mar cados por criações e destruições cósmicas parciais 3 a centralidade temática do altepetl e seus pipiltin14 nas narrativas acerca do passado mais recente Essas características não são exclusivas dos povos nahuas São encontradas em grupos mesoamericanos anteriores à migração desses povos à Mesoamérica como por exemplo os maias e os mixtecos Aliás a presença dessas carac terísticas aliadas a uma série de outras tem servido justamente para que se estabeleça a pertinência de um grupo à região cultural mesoamericana cuja fronteira norte durante o Período Clássico aproximadamente do início da Era Cristã ao século IX encontravase muito mais ao norte do que durante a época 12 Para completar o desequilíbrio podemos agregar a desigualdade de meu conhecimento como estudioso do México Central em relação às tradições históricas das duas regiões 13 Na língua portuguesa a palavra calendário e suas variações de gênero e número podem ser substantivos ou adjetivos Vocabulário ortográfico da língua portuguesa 1999 130 14 Termos em nahuatl que podem ser traduzidos respectivamente por cidade ou entida de política independente e nobreza local Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 164 de predomínio dos grupos toltecas e nahuas isto é dos séculos X ao XVI Além disso as regiões ao norte Aridamérica e Oasisamérica mantinham constantes relações com a Mesoamérica o que torna possível que algumas dessas características típicas das tradições históricas mesoamericanas fossem compartilhadas com os grupos setentrionais como os nahuas muito antes de suas migrações em direção ao sul De qualquer modo depois da decadência dos grandes e hegemônicos centros urbanos teotihuacanos zapotecas e maias cujo predomínio político e cultural caracterizou o Período Clássico essas características passaram a ser parte integrante das tradições históricas toltecas e nahuas Esses grupos obtive ram uma relativa hegemonia política e cultural na Mesoamérica no Período Pósclássico e simultaneamente adotaram mantiveram e transformaram anti gas características culturais mesoamericanas entre as quais se encontrava o sistema de calendário a concepção das idades anteriores do mundo e a centra lidade dos altepeme15 e seus dirigentes na cosmologia cosmografia e história Na região central do México os novos centros desses novos senhores meso americanos foram Tula Azcapotzalco e por fim MéxicoTenochtitlan Tratemos então das três características mencionadas acima e da importância que possuíam para as tradições históricas nahuas Podemos dizer que a base do sistema calendário mesoamericano era a conta dos dias realizada por meio da combinação de um conjunto de vinte signos chamados de tonalli com um conjunto de treze números que juntos serviam para nomear os dias O conjunto dos tonalli era composto por animais plantas artefatos humanos fenômenos naturais e conceitos abstratos como podemos observar na Tabela 1 que traz seus nomes em nahuatl e suas respec tivas traduções 15 Plural de altepetl Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 165 Tabela 1 Os vinte tonalli Esse ciclo de 260 dias chamavase tonalpohualli palavra proveniente do nahuatl e formada por tonalli que significa ardor calor do sol tempo de estio e que era empregada como sinônimo de dia e por tlapohualli que significa coisa contada ou numerada Desse modo poderíamos traduzir tonalpohualli como contar os dias16 Mas é interessante notar que tonalli também significa alma espírito razão parte porção o que é destinado a alguém ou destino e que tlapohualli também significa história dita ou relatada E assim tonalpohualli poderia ser traduzido também como relatar ou contar algo sobre as almas sobre o quinhão de cada um sobre o que é destinado a cada ser17 Veremos que essa estreita relação 16 Esse ciclo de 260 dias era dividido em 20 trezenas que eram registradas de maneira sincrônica em livros pictoglíficos com finalidades mânticas e chamados de tonalamatl Esses livros eram utilizados por sacerdotes especializados em prognósticos que envol viam todas as esferas da vida nascimentos mortes enfermidades guerras plantios colheitas e etc Não entraremos em detalhe sobre esse ciclo e seus livros corresponden tes pelo fato de que o foco deste artigo será o uso que as tradições históricas nahuas fa ziam de um outro ciclo calendário a conta dos anos 17 Todas as análises dos termos em nahuatl e suas traduções foram feitas a partir do vo cabulário do frei Alonso de Molina Molina 2001 e do dicionário de Rémi Siméon Rémi Siméon 1997 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 166 entre contar o tempo e narrar sobre os destinos permeava o pensamento histó rico nahua e era utilizada também na conta dos anos e seus registros dois quais trataremos a seguir A partir da conta dos dias os povos mesoamericanos nomeavam e conta vam os anos sazonais cuja duração havia sido precisamente definida em 365 dias18 O nome do primeiro dia do ano sazonal no tonalpohualli servia para nomeálo Imaginemos que hoje é o dia 1 acatl cana e que esse é o primeiro dia do ano sazonal esse ano se chamará 1 acatl Mas como o ano sazonal é maior do que o ciclo de 260 dias o próximo ano sazonal não começará nova mente no dia 1 acatl mas no 106o dia do ciclo seguinte do tonalpohualli Que dia será esse Os vinte signos do tonalpohualli cabem dezoito vezes no ano sazonal de 365 dias e sobram cinco dias isto faz que o signo que nomeia o ano chamado de portador ou carregador do ano salte de cinco em cinco signos dentre os vinte tonalli Como o conjunto dos signos é formado por vinte ao final de quatro anos se regressa ao primeiro signo Em outras palavras se o primeiro ano teve como signo acatl que é o décimo terceiro signo o segundo ano terá o décimo oitavo signo isto é tecpatl o terceiro ano terá o terceiro signo isto é calli o quarto ano terá o oitavo signo isto é tochtli e no quinto ano voltase ao signo acatl Portanto dentre os vinte signos do tonalli apenas quatro serviam para nomear os anos 18 Há uma polêmica acerca da utilização de mecanismos de ajuste entre o ciclo calendá rio de 365 dias e a duração do ano solar aproximadamente de 365 dias e um quarto Alguns estudiosos como Víctor Castillo Farreras Castillo Farreras 1971 acreditam que havia uma espécie de ano bissexto ou correções regulares mecanismo indispensável para que o início do ano calendário e suas subdivisões coincidissem de maneira regular com as estações Outros estudiosos como Michel Graulich Graulich 1990 acreditam que não existia tal mecanismo e que ao longo do tempo houve uma grande defasagem entre o início do ano calendário suas subdivisões e as estações Um outro grupo de estudiosos dentre os quais podemos citar Gordon Brotherston Brotherston 1997 propõe ainda que um sistema de calendário que teve uma continuidade de uso tão ampla e que possuía subdivisões do ano marcadas por celebrações e festividades claramente relacionadas com as estações seguramente possuía um mecanismo de correção Acreditam no entanto que tal mecanismo não era empregado de modo tão regular como o mecanismo do ano bissexto e que funcionava a partir da observação dos solstícios e da conferência da posi ção das Plêiades no meio da noite em que se comemorava o início do ano calendário quando então essa constelação deveria ocupar o zênite A defasagem da ocorrência do solstício e da posição das Plêiades em relação ao calendário poderia servir para de tem pos em tempos se fazer correções Para um balanço geral da questão Tena 1992 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 167 Mas e quanto aos números que acompanham os vinte signos do tonalli para nomear os dias Será que apenas quatro números acompanhavam os quatro signos do tonalli que nomeavam os anos Isso aconteceria se tivéssemos vinte números para acompanhar os vinte signos do tonalli pois desse modo teríamos uma seqüência de vinte combinações fixas entre os números e os sig nos na conta dos dias Mas vimos que eram treze os números que se combina vam com os vinte signos para nomear os dias e conseqüentemente para no mear os anos Como os treze números do tonalpohualli cabem vinte e oito vezes no ano sazonal de 365 dias e sobra um os números dos dias com os quais os anos iniciamse avançam de um em um Em outras palavras se o primeiro ano teve como dia inicial 1 acatl o segundo ano terá 2 tecpatl o terceiro ano terá 3 calli o quarto ano terá 4 tochtli o quinto ano terá 5 acatl e assim sucessiva mente até se operarem todas as possíveis combinações entre os quatro signos e os treze números que caem como dias iniciais dos anos sazonais o que resulta em uma série de 52 anos após os quais os nomes dos anos se repetem Esses anos sazonais eram chamados de xihuitl e seu ciclo de 52 anos era chamado de xiuhmolpilli19 Esse ciclo calendário de 52 anos sazonais era a base organizacional dos livros em forma de anais chamados xiuhamatl por meio dos quais diversos grupos mesoamericanos narraram a história do próprio grupo suas origens migrações guerras e dinastias reinantes Vale notar que os dois ciclos o de 260 e o de 365 dias integravamse perfeitamente formando um só sistema pois a repetição da combinação entre ambos davase justamente a cada 52 anos sazonais ou 73 ciclos de 260 dias pois nos dois casos temos um total de 18980 dias20 Quando o primeiro dia do xihuitl encontravase com o primeiro dia do tonalpohualli se celebrava a festa 19 Além disso cada ano sazonal era dividido em dezoito períodos de vinte dias chama dos de vintenas e marcados pela passagem completa dos vinte signos do tonalli mais cinco dias finais considerados baldios ou ocos chamados de nemontemi Em outras palavras o ano que se iniciou por exemplo com 1 acatl teria todas suas dezoito vinte nas iniciadas com acatl e depois cinco dias finais considerados aziagos 20 A integração entre os dois ciclos que formam o sistema de calendário mesoamericano é tão complexa e completa que em última instancia podemos considerar o xiuhmolpilli isto é o ciclo de 52 anos sazonais como uma das partes de um grande tonalpohualli de anos sazonais pois 52 é a quinta parte de 260 Em outras palavras cinco ciclos de 52 anos sazonais conformam um grande ciclo de 260 anos sazonais o qual por sua vez pode ser subdividido em 365 ciclos do tonalpohualli Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 168 do Enlace dos Anos ou Fogo Novo momento muito celebrado e importante para a visão de mundo nahua e sua concepção de história pois acreditavase que em um desses finais de ciclos o mundo voltaria a sofrer cataclismos que poderiam marcar o final de mais uma era ou idade É possível que alguns povos setentrionais que migraram para o México Central entre eles os nahuas já utilizassem essa conta calendária antes de suas migrações Embora não se possua nenhuma prova material direta de sua utili zação em tempos prémigracionais creio que podemos fazer essa inferência a partir do fato de que diversos livros cosmogônicos e de anais de distintos grupos nahuas e chichimecas possuem uma abrangência temporal uma con tinuidade narrativa e uma coerência de dados e datas que dificilmente poderia ser resultado apenas de elaborações posteriores à entrada desses grupos na região mesoamericana Pareceme muito mais provável que esses grupos setentrionais possuíssem desde tempos prémigracionais indivíduos ou instituições responsáveis pela elaboração de histórias grupais e de explicações acerca das origens do mundo e do homem E que tais indivíduos ou instituições se serviam de parte do siste ma calendário mesoamericano ou de alguma conta calendária similar que pôde ser transposta ao sistema mesoamericano Tal hipótese é reforçada pelo fato de que esses grupos compartilhavam uma série de outros traços culturais com os povos mesoamericanos como por exemplo as concepções cosmográficas com os quais mantinham também ativas relações comerciais21 É claro que depois das migrações e da posição de destaque que alguns desses povos setentrionais conseguiram entre os antigos povos mesoamerica nos como aconteceu por exemplo com os mexicas tais histórias e cosmo gonias foram reelaboradas de acordo com as novas demandas e as posições políticas ocupadas dentro das intricadas redes de poder e de alianças No caso dos mexicas são os relatos desse período pósmigracional e de hegemonia 21 No entanto existe uma polêmica sobre a origem dos grupos nahuas Na verdade não temos certeza se vieram de fora da Mesoamérica de dentro ou se regressaram a ela De acordo com suas próprias fontes os nahuas seriam chichimecas denominação geral dada aos coletorescaçadores que habitavam ao norte da Mesoamérica que migraram Mas esse discurso pode ser parte de uma estratégia política que reivindicava essa ori gem valorizada por sua valentia e bravura guerreiras para justificar os domínios po líticos e tributários sobre outros povos Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 169 política que chegaram até nós por meio de códices pictoglíficos textos alfabéticos ou obras híbridas do Período Colonial e que expressam a produção da tradição histórica mexica durante os séculos XV e XVI22 O Códice Vaticano A 1996 é um bom exemplo para entendermos de modo mais concreto as afirmações feitas acima acerca da tradição histórica nahua e do uso da conta dos anos como elemento organizador das narrativas acerca do passado Nesse códice temos uma grande seção que se constitui como um livro de anais em nahuatl xiuhamatl Esses anais narram a história da migração mexica desde a passagem por Chicomoztoc passam pelo esta belecimento e fundação de MéxicoTenochtitlan e chegam até a época da con quista e princípios da colonização castelhana Em outras palavras temos nesse códice uma seqüência narrativa de quase quatrocentos anos na qual podemos observar claramente que a conta dos anos sazonais marcada pela seqüência ininterrupta dos glifos de todos esses anos possui uma função muito específica fornecer uma espécie de lógica organizacional sobre a qual eram inseridos os registros pictoglíficos dos eventos Curiosamente mas talvez sintomaticamente esses anais terminam com umas quantas páginas quase em branco pp 94v96v nas quais temos apenas os glifos da conta dos anos Em verdade não sabemos se as páginas ficaram sem os registros pictoglíficos dos eventos que corresponderiam aos anos marcados ou se os glifos da conta dos anos foram pintados antes dos anos que estão sendo marcados como uma espécie de estrutura prévia à espera de uma seleção de uma combinação e de uma construção de eventos que seriam aí encaixados A confirmação da segunda hipótese reforçaria a posição estrutural que estou atribuindo à conta dos anos para a organização das narrativas históricas nahuas No caso dos Anales de Cuauhtitlan 1945 texto alfabético produzido em meados do século XVI e cujos autores provavelmente procediam de Cuauhtitlan cidade de origem nahua e vizinha de MéxicoTenochtitlan também podemos perceber o uso da conta dos anos como elemento organizador de uma narrativa temporalmente muito ampla O texto narra a história dos grupos chichimecas 22 Vale lembrar que se as explicações acerca do passado cumprem funções ideológicas como por exemplo a legitimação do poder político de um grupo necessitam de uma ampla aceitação Desse modo é mais eficaz que as novas explicações históricas não se produ zam a partir de uma ruptura total com as antigas mas sim a partir reelaborações con tinuidades ou rupturas aparentes Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 170 principalmente dos mexicas e dos cuauhtitlanenses desde princípios do século VII dC até princípios do século XVI e apresenta claros indícios de ter tido a antigos livros pictoglíficos de anais como base de sua confecção Um desses indícios é a própria maneira de utilização da conta dos anos sazonais que funciona no texto como uma espécie de fio condutor que estrutura uma narrativa cujos eventos se dividem e se distribuem de modo desigual ao longo das partes dessa conta isto é ao longo dos anos do xiuhmolpilli Vale notar que os nomes de todos os anos são citados de forma completa e ininter rupta por quase novecentos anos mesmo que durante uma grande série de anos não haja eventos narrados Esse tipo de emprego da conta dos anos é em tudo semelhante ao que possuía nos anais pictoglíficos como vimos no caso do Códice Vaticano A nos quais o xiuhmolpilli também aparecia de forma contínua e ininterrupta suportando e estruturando o registro pictoglífico dos eventos e das personagens que se distribuíam de forma desigual em seu decorrer Tanto no caso dos anais pictoglíficos do Códice Vaticano A como no caso do texto alfabético dos Anales de Cuauhtitlan creio que podemos perceber claramente que não há nenhum outro tipo de divisão interna ou de elemento estruturante da narrativa a não ser a ininterrupta presença da conta dos anos sazonais a qual no caso do Códice Vaticano A segue marcada mesmo quando já não há eventos registrados Desse modo creio que é lícito propor que a pre sença da conta dos anos sazonais era parte integrante da explicação histórica da tradição nahua e portanto parte também da própria percepção de passado Dito de outro modo para a tradição histórica nahua narrar o que aconteceu implicava em localizar temporalmente os eventos em uma conta anual que pos suía duas dimensões muito claras e distintas a sincrônica e a diacrônica A sincronia provinha do fato de que os anos sazonais como vimos ante riormente se repetiam a cada 52 anos e junto com eles suas qualidades Sendo assim registrar o que aconteceu nos anos passados era uma forma de se co nhecer essas tais qualidades que regiam os aconteceres e desse modo conhecer relativamente o que iria ocorrer nos anos presentes ou futuros É a famosa relação entre história e profecia que existe em todas as tradições histó ricas mesoamericanas e que encontrase presente sobretudo nos livros maias conhecidos como chilames23 Mas ao mesmo tempo seja nos textos pictoglí 23 Dentre os inúmeros chilames o mais conhecido é o Chilam Balam de Chumayel Libro de Chilam Balam de Chumayel 2001 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 171 ficos ou nos alfabéticos esses ciclos estão dispostos de maneira sucessiva e são acompanhados por eventos também sucessivos como por exemplo a ascensão e morte de um soberano fato que garante o inequívoco e preciso registro da diacronia O sistema calendário nahua e mesoamericano em geral também possuía uma estreita relação com a concepção cosmográfica Para os mesoamericanos o espaço dividiase verticalmente em um série de níveis celestes e inframun danos e horizontalmente em quatro rumos ou direções e um centro Todas as subdivisões dos ciclos calendários que compunham o sistema mesoamericano estavam relacionadas principalmente com as quatro direções do mundo hori zontal Desse modo as trezenas que compunham o tonalpohualli se relacio navam sucessivamente com os rumos do universo começando pelo oriente passando depois pelo norte pelo ocidente e chegando ao sul girando pelo horizonte no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio Esse mesmo mo vimento do tempo pelas direções do universo era atribuído ao ciclo dos anos sazonais no qual cada ano se relacionava com uma das direções Todas essas direções além dos próprios números e signos que marcavam os dias e anos eram portadoras de qualidades e características específicas e que assim carregavam o tempo com influências e qualidades distintas confor me sua direção de procedência Desse modo para a tradição histórica nahua o tempo não era uma entidade absoluta apenas quantificável e desprovida de qualidades inerentes mas algo que trazia sempre sua própria carga de destino seu tonalli a qual deveria ser entendida para que o homem pudesse no caso de um tempo propício obrar em consonância ou no caso de uma carga adversa tentar reverter ou anular seus efeitos Essa mesma forma de localização temporal também encontrase presente nos relevos em pedra e outros monumentos onde é marcada por meio do em prego dos mesmos glifos calendários que estão nos códices pictoglíficos24 O problema é que na maioria dos relevos e dos monumentos temos apenas uma data e não toda uma longa seqüência do xiuhmolpilli fato que por vezes gera incertezas na determinação dessa data dentro da seqüência de ciclos de anos 24 Como exemplo poderíamos citar a famosa Pedra do Sol ou a lápide de inauguração do Templo Maior ambas na Sala Mexica do Museu Nacional de Antropologia México DF que trazem respectivamente as datas 13 acatl e 8 acatl correspondentes a 1479 e 1487 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 172 sazonais ou seja muitas vezes não sabemos se tal data se refere a um ano x ou ao ano x menos 52 anos ou ainda ao ano xmais 52 anos e assim por diante No entanto não devemos nos esquecer que isso não deveria ser um problema para os contemporâneos dessas inscrições e monumentos que certamente possuíam uma série de outros referenciais externos a tais inscrições e monumentos os quais permitiam localizar tais datas de forma muito precisa entre os diversos e sucessivos ciclos do xiuhmolpilli fazendo assim que a di mensão diacrônica dessas datas estivesse assegurada Esse mesmo sistema de cômputo temporal também foi utilizado para a ela boração de explicações que versavam sobre um passado muito mais distante no qual tiveram origem os deuses o mundo e os homens Os nahuas assim como todos os grupos considerados mesoamericanos explicavam esse distante passado dividindoo em diversas idades ou sóis nos quais as atuações dos deuses eram centrais para o desabrochar e o declinar de cada um deles os quais em geral terminavam por grandes cataclismos Vale notar que esses iní cios e finais de idades não eram totais ou seja cada idade possuía elementos que se transformavam e continuavam existindo na outra gerando uma espécie de aperfeiçoamento do mundo dos homens e de seus alimentos vegetais aper feiçoamento esse que culminou na idade e humanidade atuais Essa humani dade seria dependendo da versão a quarta ou quinta e se caracterizaria pela utilização do milho como alimento por excelência O que nos interessa aqui é o fato de que os ciclos de 52 anos serviam tanto para contabilizar as explicações acerca do passado mais distante como do pas sado mais recente Creio que isso reforça a hipótese de que o sistema calendário com suas dimensões sincrônica e diacrônica desempenhava um papel central para a percepção de passado distante ou recente e para a construção de narrativas explicativas por parte da tradição histórica nahua Tal fato nos indica também que para os nahuas inexistia uma distinção qualitativa ou uma ruptura temporal entre a percepção desses dois tipos de passado Apesar dessa continuidade estruturalcalendária entre as narrativas acerca do passado mais distante e mais recente havia uma importante distinção entre as duas modalidades de relato No caso das narrativas acerca das idades do mundo predominava uma grande síntese ou seja cada idade era narrada como um todo no qual se destacavam as ações divinas de criação e destruição o nome da idade em questão o tipo de homem que existia o cataclismo que a encerrou e as mutações pelas quais passaram os homens e outros animais além é claro de sua duração contabilizada em anos sazonais25 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 173 De modo geral depois de narrar essas quatro ou cinco idades por vezes enfatizando e detalhando um pouco mais as explicações acerca do início da humanidade atual esses textos cosmogônicos e históricos seguem com os episó dios que tratam de Tula de Quetzalcoatl e dos toltecas quando então os relatos ganham mais detalhes e em geral adotam propriamente a forma de anais forma essa que continua na narrativa dos eventos mais recentes como as migrações e os estabelecimentos dos altepeme nahuas na região central do México Talvez isso indique a existência de uma concatenação narrativa típica da tradição histó rica nahua a qual encaixava a história mais recente dentro de uma seqüência cosmogônica marcada pela existência das diversas idades ou sóis anteriores Em outras palavras talvez essa localização da história grupal dentro de um marco temporal mais amplo fornecido justamente pelas chamadas narrativas cosmogô nicas fosse parte integrante dessa tradição histórica26 No entanto a existência dessa concatenação dos relatos cosmogônicos e históricos não é uma unanimidade entre os estudiosos27 Muitos afirmam que as histórias indígenas préhispânicas caracterizavamse pela centralidade do altepetl e que essas histórias mais gerais produzidas no Período Colonial seriam o resultado da influência das histórias universais cristãs as quais leva ram os indígenas a reunir em textos únicos as histórias locais e as narrativas cosmogônicas construindo assim uma estrutura mais próxima dos textos do Velho Testamento sobretudo do Pentateuco28 E essa centralidade do altepetl nas narrativas oriundas das tradições histó ricas nahuas é justamente a próxima característica a ser tratada 25 De acordo com o texto da Historia de los mexicanos por sus pinturas 1996 por exem plo as idades anteriores à atual duraram respectivamente 676 anos treze ciclos de 52 novamente 676 anos 364 anos sete ciclos de 52 e 312 anos 6 ciclos de 52 Tratamos desse tema em detalhes em uma outra ocasião Santos 2002 26 Essa estrutura narrativa pode ser observada nos seguintes textos alfabéticos e códices coloniais nahuas Anales de Cuauhtitlan 1945 Leyenda de los soles 1945 Historia de los mexicanos por sus pinturas 1996 e Códice Vaticano A 1996 Tal estrutura pode ser observada também no texto do Popol Vuhl 1996 que narra a história grupal dos quichés depois da cosmogonia e nas estelas maias que localizavam temporalmente os feitos recentes por meio da conta longa a partir de uma data inicial 13 ou 14 de agosto de 3113 aC a qual marcaria justamente o início da atual idade 27 Uma de suas principias defesas encontrase em Brotherston 1997 28 Entre esses estudiosos podemos destacar Navarrete Linares 2000 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 174 A maior parte dos escritos nahuas conhecidos sejam pictoglíficos tradi cionais pictoglíficos adaptados às demandas coloniais ou ainda alfabéticos são anais que possuem como temas centrais a história de unidades políticas independentes conhecidas como altepetl Tal centralidade também é confirmada pela concepção cosmográfica reinante na Mesoamérica na qual o espaço se dividia verticalmente em um série de níveis celestes e inframundanos e horizontalmente em quatro rumos ou direções e um centro ocupado justamente por cada altepetl que se concebia portanto como o umbigo do mundo Como vimos acima em algumas narrativas alfabéticas indígenas coloniais esses anais aparecem depois de uma seção que abordou a cosmogonia e suas várias criações e destruições sobrepostas apresentando as histórias locais ou seja a história de determinados grupos e seus altepeme como um capítulo inserido em histórias mais amplas as quais abarcariam desde as origens do mundo e do homem passariam pelas histórias tolteca e das migrações de cada grupo e chegariam até o passado imediatamente anterior à produção de tais narrativas No entanto muitos dos anais pictoglíficos nahuas como por exem plo a Tira de la peregrinación também chamada de Códice Boturini 1975 iniciamse simplesmente com a história migracional do grupo ou no máximo com a história tolteca não contando assim com a presença de uma seção dedi cada às histórias cosmogônicas Isso pesa a favor da hipótese de que as narrativas que possuem a tal conca tenação cosmogonia história tolteca e histórias locais sejam na verdade uma tentativa indígenacolonial de adaptar as explicações históricas e cosmogônicas nahuas tradicionais a uma estrutura mais próxima das histórias universais cristãs Talvez tais relatos existissem de forma mais ou menos independente e em princí pios dos tempos coloniais tenham sido conectados pelos informantes alunos indí genas e religiosos dos colégios missionários principalmente franciscanos para que tivessem formatos similares aos das histórias cristãs de então De qualquer modo a maioria dos textos pictoglíficos ou alfabéticos produzidos pelos grupos nahuas que se estabeleceram no Vale do México apre sentam uma história mais curta em termos temporais e caracterizada pela aten ção central dedicada aos processos de migração à história tolteca e ao esta belecimento definitivo dos altepeme e suas linhagens de governantes Tais linhagens quase que invariavelmente relacionavamse com os toltecas fato que era evocado como fonte de legitimidade para os papéis que cada nova entidade política da região desejava ocupar herdeiros dos toltecas no controle político e comercial depois da decadência de Tula por volta do século XII Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 175 A comparação entre tais textos mostranos a existência de enormes se melhanças estruturais e narrativas entre as histórias particulares de cada altepetl Uma dessas semelhanças reside na existência de fórmulas narrativas comuns ao se tratar de eventospadrão como por exemplo a partida da terra original o estabelecimento definitivo do altepetl suas alianças e conflitos Navarrete Linares 2000 Tais similitudes poderiam ser fruto de fortes contatos entre as tradições históricas dos diversos grupos nahuas ou resultado da deri vação de todas essas narrativas de um modelo histórico comum talvez de ori gem tolteca ou ainda teotihuacana Além disso tais similitudes possuíam im portantes funções políticas pois é sabido que os anais históricos dos altepeme nahuas desempenhavam a função de legitimar a ocupação de determinados territórios e o estabelecimento de fronteiras territoriais e políticas em pleitos intergrupais tarefa para a qual era conveniente utilizarse de uma linguagem e de uma estrutura reconhecida de forma universal Em outras palavras os anais deveriam ser uma voz particular que defendesse os interesse do altepetl mas uma voz particular que compartilhasse elementos reconhecíveis e aceitos pelas tradições históricas vizinhas Navarrete Linares 2000 Por outro lado dentro do altepetl os anais também funcionavam como uma espécie de atestado de legitimidade para a posição ocupada pelas elites dirigentes diante dos demais grupos sociais pois registrava como seus ante passados sangüíneos ou funcionais eram os responsáveis pela condução das migrações pela fundação do próprio altepetl e pelas conquistas dos territórios e alianças Devido a essas funções legitimadoras as instituições e pessoas res ponsáveis pela produção dos anais encontravamse no interior dos grupos governantes ou pelo menos relacionavamse de forma muito estreita com eles Prova disso é que seus temas mais comuns eram as linhagens de pipiltin as mudanças de governantes e os eventos que afetavam o altepetl como corporação como por exemplo as migrações as fundações as guerras os con flitos dinásticos e alguns fenômenos naturais29 29 É muito comum que os anais nahuas registrem os terremotos e os fenômenos celestes menos freqüentes como os eclipses as passagens de cometas ou a queda de meteoros fenômenos para os quais existiam glifos específicos Esses fenômenos poderiam ser inter pretados como prenúncios de importantes eventos Novamente temos a relação entre his tória e profecia o passado poderia contribuir para revelar o futuro ou explicar o presente Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 176 Essa estreita relação entre elites governantes e tradição histórica chegou inclusive a se institucionalizar entre os mexicas por meio do calmecac espécie de centro de formação freqüentado pelos jovens descendentes dos grupos governantes e sacerdotais30 Nessa instituição eram produzidas e transmitidas por meio de códices pictoglíficos e da oralidade31 as explicações cosmo gônicas e históricas as quais inseriamse em meio de uma série de outros sabe res como por exemplo a arte da guerra e do sacerdócio Como conseqüência dessa dupla função legitimadora desempenhada pelos anais das tradições históricas nahuas cada altepetl ou grupo político procurava criar versões históricas mais vantajosas para si O resultado é que temos assim uma verdadeira polifonia de versões no que diz respeito às etapas mais recentes da história principalmente quando os temas são o estabelecimento territorial as conquistas e expansões o estabelecimento das elites dirigentes e as alianças com altepeme vizinhos Navarrete Linares 2000 No entanto no que diz respeito às etapas anteriores que tratam da cos mogonia ou da história tolteca parece haver uma concordância maior entre as distintas vozes principalmente quando se trata de estabelecer os toltecas como antecessores das linhagens governantes ou de situar a criação da huma nidade atual em Teotihuacan Essas coincidências reforçam a hipótese lançada mais acima isto é que as diversas tradições históricas possuíam muitos con tatos ou baseavamse em tradições históricas anteriores talvez de origens toltecas ou teotihuacanas É esse tipo de tradição histórica nahua que entrará em contato e se con frontará com os castelhanos e com a tradição histórica cristã no século XVI Veremos os resultados desse encontroconfronto depois de caracterizarmos as tradições históricas incas 30 Inclusive o discurso dos sábios e anciãos poderia ser chamado de calmecatlahtolli sendo que tlahtolli significa discurso palavra história ou relato 31 A relação entre os escritos pictoglíficos e a oralidade não era de equivalência restrita e direta A recitação oral que ocorria em ocasiões especiais e determinadas interpretava e se expandia a partir dos escritos que por sua vez traziam elementos que estavam além das palavras faladas e que permaneciam inalterados ao longo do tempo Ambos eram partes de um sistema maior de comunicação Lockhart 1992 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 177 B Incas e Andes Como apontamos acima as tradições históricas incas de tempos préhispâ nicos e andinas em geral são bem menos conhecidas do que as mesoameri canas Tal deficiência devese principalmente à escassez de fontes documen tais produzidas por tais tradições em tempos préhispânicos ou coloniais o que talvez relacionese com o papel preponderante que era desempenhado pelas narrativas orais e por formas de registro muito distintas das que tradicionalmente reconhecemos como tais como por exemplo os ceques32 Somase a isso a nossa incapacidade de entender completamente os sentidos que eram veiculados por fontes como os quipus os pallares ou os tocapus33 Devido a tal deficiência recorreremos a dois campos de estudo que podem nos proporcionar de forma indireta algumas informações e características das tradições históricas incas Um desses campos é o que trata da visão de mundo andina cuja impor tância reside no fato de que nela certamente estão os marcos teóricos e con ceituais dentro dos quais as tradições incas operavam e construíam suas expli cações sobre o passado Tais estudos utilizamse além das fontes materiais e escritas coloniais dos trabalhos antropológicos realizados no século XX os quais demonstram a vigorosa continuidade das tradições orais andinas res ponsáveis pela manutenção de relatos muito semelhantes aos poucos que foram transcritos no Período Colonial O outro campo é composto pelos estudos his tóricos e literários que se dedicam às crônicas coloniais que trataram da história e dos costumes andinos as quais contaram em suas produções com a partici pação de membros da sociedade inca ou de indivíduos que transitavam entre os dois mundos como por exemplo Guamán Poma de Ayala 32 Os ceques eram linhas ou caminhos demarcados na paisagem por meio das guacas objetos ou lugares sagrados muitos dos quais relacionados com os antepassados Dessa forma os ceques eram um meio de se fixar ou relacionar a lembrança dos antepassados e dos acontecimentos a eles vinculados com a geografia local Veremos que ao longo dos ceques eram proferidos discursos e encenados episódios sobre o passado 33 Além dos famosos quipus cuja parte da polêmica foi exposta anteriormente existe também uma discussão acerca dos significados dos pallares conjunto de desenhos e signos muito freqüentes na cerâmica mochica e dos tocapus desenhos e motivos geo métricos utilizados nos tecidos das vestimentas principalmente dos grupos sociais hie rarquicamente superiores nas sociedades andinas Millones 1987 7374 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 178 Tomando por base esses estudos apresentaremos algumas concepções da visão de mundo andina e inca que seriam fundamentais para a construção de explicações acerca do passado como por exemplo as concepções de espaço tempo e acontecimento34 Depois analisaremos algumas textos coloniais que tratam do problema da utilização dos quipus Sabemos que no caso dos incas e povos andinos em geral predominava uma organização dual do espaço baseada na concepção de verticalidade e que tendia a dividir o mundo entre acima e abaixo Talvez a importância dessa divisão relacionese com a enorme valorização das distâncias verticais nos Andes responsáveis pelos enormes contrastes ecológicos entre a costa e a montanha entre as diversas altitudes de montanha e entre essas diversas altitudes e a planície da Amazônia Desse modo era fundamental para a população de qualquer região andina estabelecer relações baseadas no princípio da reciprocidade ou manay de escambo ou comércio com outras populações ou ainda possuir territórios e enviar colonizadores chamados de mitmag a regiões de outras altitudes e portanto com outros meios ecológicos Stern 1986 2532 A indispensabilidade das relações entre as populações de diversas altitudes talvez tenha se formalizado intelectualmente e se explicitado por meio da con cepção de uma separação fundamental entre o acima ou hanan conceito que se traduz por vida ordem e luz e o abaixo ou hurin traduzível por morte desordem e trevas Vale notar que não se tratava de uma divisão do mundo em categorias binárias agonísticas e essencialmente distintas mas sim de uma polaridade complementar dentro da qual o mundo e seus seres transitavam constantemente de um lado a outro Por exemplo a polaridade mortevida era vista como uma longa transição entre dois estágios do maciomole para o áspe roduro Assim o momento da morte em si não marcava uma divisão binária entre dois estados completa e essencialmente diferentes mas sim um passo a mais no longo processo que possuía em seus extremos polares o macio e o mole de um lado características fortemente presentes nos seres jovens e o 34 Vale frisar que os incas assim como os nahuas eram integrantes de uma região cultu ral geograficamente muito ampla e historicamente muito antiga à qual podemos cha mar de mundo andino ou simplesmente Andes Desse modo sua visão de mundo e suas explicações acerca do passado devem ser entendidas como parte de uma tradição de pen samento muito mais ampla da qual os incas eram partícipes ativos mas não seus únicos criadores ou portadores Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 179 duro e o áspero em outro características predominante nos seres velhos e de pois no cadáver no esqueleto e por fim nas pedras que eram vistas como os antepassados mortos em um estágio posterior Fraser 2002 Desse modo poderíamos dizer que no mundo andino os homens começavam a morrer antes da morte e continuavam a morrer depois dela Quando essa concepção era aplicada à geografia gerava uma divisão do espaço em pares de opostos que poderiam abranger de uma só vez toda a região andina e simultaneamente suas micro regiões Em outras palavras poderíamos pensar na costa e na montanha como respectivamente hurin e hanan no entanto cada uma dessas partes por exemplo a montanha possuía também suas subdivisões internas entre acima e abaixo Montoya Rojas 1998 Essa divisão do espaço e dos seres entre hanan e hurin35 somavase a uma outra divisão do mundo horizontal em quatro partes e um centro como também acontecia na Mesoamérica com o conceito de quincunce espécie de divisão do mundo horizontal como uma flor de quatro pétalas e um centro Essa con cepção foi aplicada pelos incas na organização política e tributária das regiões dominadas chamadas em sua totalidade de Tahuantinsuyu e que se dividiam em 1 Antisuyu correspondente ao norte região quente e úmida e caracteri zada pela floresta amazônica 2 Cuntisuyu correspondente ao sul região quente e seca e caracterizada pela costa do oceano Pacífico 3 Chinchasuyu correspondente ao oeste região úmida e fria 4 Collasuyu correspondente ao leste região seca e fria Cuzco era o centro dessa grande flor de quatro pétalas e um microcosmos que reproduzia a totalidade dos territórios dominados e do qual como veremos em detalhe saiam caminhos que registravam sentidos e significados da contagem do tempo e do passado na paisagem eram os ceques De forma muito relacionada a essa concepção espacial podemos dizer que para os povos andinos o tempo fluía de cima para baixo de hanan a hurin Essa concepção de tempo teve uma enorme implicação na concepção de 35 A importância e centralidade dessa divisão polar para o mundo inca aliada a outros indícios levou alguns estudiosos a proporem que a existência de dois incas soberanos simultâneos yanantin ou casal era na verdade a norma As lutas entre eles serviri am para definir quem seria hanan vencedor ou hurin perdedor O inca hanan atuaria fora de Cuzco nas conquistas nas cobranças de tributos mita e no sistema distributivo O inca hurin atuaria em Cuzco e estaria mais vinculado ao universo cerimonial Na maioria dos textos e crônicas coloniais teria havido uma transformação desse poder dual em genealogias de monarcas que se sucediam Pease 1995 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 180 passado e de história desenvolvida pelos andinos Segundo essa concepção os homens nascem solares e suaves e se tornam mais escuros e duros em um pro cesso contínuo para o qual a morte é ao invés do inverso da vida a transfor mação dos homens em pedras em terra e em montanhas os homens mortos passavam a povoar o mundo sob outras formas e desse modo continuavam sempre presentes Uma das formas de materialização dessa transformação eram as guacas seres que faziam com que o passado se tornasse parte do mundo atual e os mortos seguissem vivos abaixo da terra ou ainda como múmias ou malquis Essa presença material efetiva e latente do passado tornava possível seu retorno Isso acontecia porque o tempo era responsável pelo movimento do mundo trazendo as coisas de acima para baixo e as de baixo para acima cau sando a inversão dos espaços ocupados pelos seres e provocando assim um pachacuti momento em que o hurin se tornava hanan e viceeversa uma espé cie de cataclismo natural ou social que marcava o momento de transição para uma nova ordem de coisas O termo pachacuti parece ter tido sua origem a partir do nome de Pachacuti Inca Yupanqui soberano inca que viveu entre 1438 e 1471 e que se tornou muito conhecido e respeitado por ter tomado o poder de seu pai a quem acu sava de ser muito tolerante com os inimigos e por ter conseguido derrotar os changas principal obstáculo no processo de expansão inca A conquista dos changas teria ocorrido com a ajuda das pedras tidas como antepassados que ressuscitaram e se tornaram guerreiros Desse modo podemos ver como essa concepção era fundamental para a tradição histórica inca explicar suas próprias conquistas e particularmente o momento a partir do qual começaram a se posicionar como os mais importantes senhores dos Andes e possuidores de um grande aparato estatal ao qual certamente a tradição histórica estava incorporada Veremos mais adiante que esse mesmo conceito foi utilizado para explicar a conquista castelhana tida como um pachacuti a partir do qual o mundo se colocou de cabeça para baixo Para completar essa estreita relação entre tempo e espaço36 parece que os incas utilizavam marcas na paisagem para contar o tempo e explicar o pas 36 As concepções de tempo e de espaço de uma determinada sociedade relacionamse de modo muito estreito chegando a formar uma verdadeira unidade no processo de apreen são e de explicação da realidade Essa unidade tem sido denominada de cronotopo ca tegoria utilizada analiticamente nos estudos de produções narrativas e literárias o que a torna virtualmente aplicável também aos estudos históricos que utilizam textos e crôni Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 181 sado Os dias que compunham o ano solar chamado de guata eram contados com ceques que saíam de Cuzco e iam em direção às distintas posições do nascer do Sol entre um e outro solstício Como citamos anteriormente nos ceques a tradição histórica inca registrava o passado com guacas que poderiam ser altares tumbas ou simplesmente pedras a partir das quais os aconteci mentos eram narrados Tratase de uma forma de registro que se dava em uma geografia acrescida de intervenções humanas e que contava com o funciona mento conjunto de uma tradição oral Além disso ocorriam grandes encena ções nessa paisagem historicizada que segundo o cronista inca colonial Juan Santa Cruz Pachacuti desde os tempos de Pachacuti Inca Yupanqui tratavam dos feitos e conquistas dos soberanos incas37 Além disso é muito conhecido o fato de que os soberanos incas e também muitas outras pessoas de distintos níveis sociais eram mumificados e conti nuavam a ocupar seus palácios ou moradas A concepção que estava por trás dessa prática era a de que os mortos e também o passado continuavam pre sentes sob outra forma continuavam no mundo de hurin abaixo sob a forma de pedras ou de malquis múmias e potencialmente aptos para um retorno quando o mundo passasse por um pachacuti38 Essa concepção do passado como algo que continuava a existir aqui e agora parece ter minorado a necessidade de utilização de uma ampla contagem dos anos Há uma polêmica acerca da existência ou não de tal contagem no mundo andino mas parece que de todos os modos ela não teve um papel de destaque na organização da memória histórica entre os incas Vale ressaltar que não esta mos falando de uma limitação técnica ou conceitual mas sim do papel que a tradição histórica inca dava para a contagem do tempo É sabido que os povos andinos utilizavam várias formas de cômputo do tempo como por exemplo o cas como fontes O conceito de cronotopo ou tempoespaço foi cunhado na Teoria da Relatividade para estabelecer o estreito vínculo entre essas duas dimensões presentes na realidade e na percepção humana do mundo Depois Mikhail Bakhtin aplicou o con ceito à literatura e demonstrou a necessidade da existência de uma concepção coerente de tempoespaço no interior das narrativas literárias fato que garante e torna possível sua inteligibilidade Navarrete Linares 2002 37 Tal informação aparece na obra em quíchua desse cronista intitulada Relación de antiguedades deste reyno del Perú e escrita em 1613 Millones 1987 140141 38 Em tempos coloniais os nobres incas aliados aos castelhanos continuaram a exibir os malquis de seus antepassados em encenações públicas Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 182 próprio ano solar os ciclos de nove meses lunares e as semanas de dez dias mas parece que elas não eram utilizadas para definir e localizar de modo cro nológicolinear os acontecimentos ou mesmo a duração da vida dos indivíduos a qual era computada por ciclos vitais baseados nas condições físicas e na capa cidade para o trabalho Esse assunto é tratado por Guamán Poma de Ayala que sintomaticamente não descreve as diversas idades da vida em ordem cronológica ou seja come çando pela infância e terminando com a velhice Guamán Poma inicia seu relato pela idade considerada mais importante a de maior potencialidade para o trabalho isto é pelo ciclo que vai aproximadamente dos 25 aos 50 anos e que era chamado de auca camayoc no caso masculino e auca camayoc uarmi no caso feminino Depois trata das idades posteriores a esse ciclo de forma progressiva e por fim das idades anteriores de forma regressiva Díez Canseco 1985 É quase inevitável pensar que havia uma relação conceitual na organização e na utilização mnemônica dos ceques que partiam de Cuzco e que continham suas tumbas altares pedras ou guacas com os quipus e seus diversos tipos de nós Isso levanos de volta ao problema da utilização dos quipus como registros mnemônicos que possuíam dimensões narrativas além das quantitativas Como dissemos de início não possuímos reconhecidas traduções ou transliterações coloniais de narrativas supostamente registradas pelos quipus ou veiculadas pela tradição oral quíchua No entanto alguns cronistas coloniais afirmam que os informantes indígenas se baseavam em quipus para lhes relatar acerca da história e de outros temas como por exemplo para se recordar dos pecados durante a confissão A esse respeito na obra Nueva Corónica y buen gobierno Guamán Poma afirma Que los dichos padres del santo sacramento de la confición mande exsaminar su anima y consencia una semana el dicho penetente aunque sea español y el yndio haga quipo de sus pecados39 Afirma também em diversas partes de seu relato que seus informantes tudo sabiam a partir dos quipus e que ele próprio tirou informações deles pues que en los cordeles supo tanto que me hiciera a fuerza en letra40 39 Apud Montoya Rojas 1998a 175 Nessa mesma página Rodrigo Montoya reproduz uma citação de Pérez Bocanegra de 1631 que reafirmaria essa função dos quipus Para este efecto les mandan vayan atando ñudos en sus hilos que llaman Caitu y son los pe cados que les enseñan los cuales parecen añadiendo y poniendo en sus nudos otros que jamás cometieron mandándoles y enseñándoles a que digan es pecado el que no lo es y al contrario 40 Apud Brotherston 1997 118 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 183 Além disso parece que os próprios castelhanos perceberam a existência de dimensões não numéricas de registro nos quipus e assim como no caso dos códices mesoamericanos promoveram grandes queimas para destruir aqui lo que ao juízo cristão continha informações acerca da idolatria Outro argumento a favor de que os quipus possuíam dimensões narrativas é o estudo do caso de um pleito judicial no qual um quipu teria sido apresentado e lido pelos senhores de Hatun Xauxa à Audiencia de Los Reyes em 1561 Esse caso confir maria no mínimo que os cordéis do quipu estavam organizados sistematicamente para representar sempre uma mesma seqüência de categorias de seres homens bata tas lhamas sandálias cerâmicas carvão pescado e etc distribuídas por sua vez em uma outra seqüência cronológica41 Por fim podemos agregar também o caso relatado por Guamán Poma de Ayala dos famosos mensageiros incas ou hatun chasqui que levavam mensagens com quipus os quais especificariam datas e locais e que são equiparados por esse cronista com as cartas42 Além desses testemunhos que relacionam o uso dos quipus com o registro de informações não numéricas sabemos também por relatos do início do Período Colonial que a formação de um experto em quipus chamado de quipucamayoc demorava quatro anos e acontecia em escolas yacha huasi no centro do mun do inca isto é em Cuzco Será que para entender apenas as dimensões numéri cas dos quipus seria necessário tanto tempo Será que estes depoimentos são suficientes para afirmamos que os quipus eram uma espécie de escrita Essa questão nos leva a outro intrincado problema o que é uma escrita43 41 A afirmação que consta nos autos do pleito judicial é a seguinte Los yndios desta tierra tienen cuenta y razon de las cosas que dan a sus señores por quipos que ellos llaman y todo lo que han dado de mucho tiempo atras lo tienen asimismo en sus quipos E saue este testigo que los dichos sus quipos son muy ciertos e verdaderos porque este testigo muchas y diversas veces ha cotejado algunas cuentas que ha tenido con yndios de las cosas que le han dado e le han debido e les ha dado e ha hallado que los quipos que tienen los dichos yndios eran muy ciertos Tal afirmação teria sido feita por Pedro de Alconchel e foi publicada por Waldemar Espinoza Soriano em Los huancas aliados de la conquista tres informaciones inéditas sobre la participación indígena en la con quista del Perú 1558 1560 y 1561 in Anales Científicos de la Universidad del Centro 1 Huancayo 1971 1972 Apud Murra 1985 433 42 As ilustrações que retratam os hatun chasqui encontramse nas páginas 350 e 811 da Nueva corónica y buen gobierno Guamán Poma 1980 43 Não se trata de uma questão meramente nominalista mas sim da utilização analítica do conceito de escrita para a abordagem e a interpretação dos quipus ou outros tipos de registro do pensamento e da fala Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 184 Alguns estudiosos dos quipus andinos Ascher Ascher 1997 e dos códices pictoglíficos mesoamericanos Brotherston 1997 mostram que consi derar como escrita apenas aos sistemas logográficos isto é que registram a fala é uma enorme e preconceituosa redução analítica do mundo ocidental para com outros sistemas de representação do pensamento e da fala Tal redu ção estaria baseada no pressuposto de que a escrita logográfica seja ela foné tica ou silábica é o estágio mais avançado de uma suposta evolução universal dos sistemas de representação do pensamento e da fala ao qual uns poucos povos eleitos teriam chegado Essa suposta evolução teria começado com as pinturas e os sistemas ideográficos no Oriente e Oriente Médio e chegado ao seu mais alto grau com o alfabeto fenício e grego caracterizado pela utilização de signos abstratos que possuem uma relação convencional de correspondên cia quase que exclusiva com a fala44 De acordo com essa visão poderíamos estudar e classificar evolutivamente os sistemas não alfabéticos por aproximações ou carências em relação ao sistema alfabético ocidental Será que agindo desse modo ou seja analisando os sistemas de registros por suas supostas carências e de forma desligada das demandas de suas sociedades produtoras não deixaremos de entender as especificidades de funcionamento as lógicas organizadoras as formas de leitura as relações especí ficas com a oralidade e os usos sociais desses outros sistemas Para os estudiosos que defendem a ampliação do uso analítico do conceito de escrita a oralidade não representaria um dos pólos de um binômio agonís tico no qual encontraríamos no outro extremo a escrita alfabética Em todos os sistemas haveria graus de foneticismo que variariam de um para o outro pois nenhum conjunto de sinais gráficos seria capaz de representar por com pleto a língua falada dependendo em última instância de uma oralidade para lela e complementar De acordo com esses autores o conceito de escrita deveria ser ampliado e entendido como uma forma sistemática de registro que possui sua própria inteireza estrutura interna formato ordem de funcionamento e de leitura e que é utilizada para representar com regularidade sons ou conceitos por meio de sinais gráficos ou outros artifícios e que pode se relacionar com a oralidade de formas diversas e em diversos graus 44 Entre os estudiosos que ainda seguem esse modelo evolucionista no estudo dos siste mas mesoamericanos de escrita podemos citar Manrique Castañeda 1989 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 185 Será que essa concepção mais ampla de escrita abrangeria o sistema dos quipus Caso abrangesse como entender ou ler as informações contidas nos diversos exemplares que chegaram até nós de tempos préhispânicos e colo niais se não possuímos traduções coloniais que explicitem o funcionamento do sistema e se a tradição dos quipucamayocs praticamente já não conta com nenhum representante em nossos dias45 Que importância possuía esse sistema para a tradição histórica inca Que relação possuía com a tradição oral São perguntas para as quais ainda não temos muitas respostas mas sobre as quais vários estudiosos se dedicam atualmente e certamente produzirão trabalhos que nos ajudarão a entender em um futuro muito breve alguns aspectos mais da tradição histórica inca em tempos préhispânicos e coloniais46 Um outro aspecto acerca das tradições históricas incas que merece ser mencionado é sua centralidade e quase exclusividade nas poucas fontes textuais que conhecemos do Período Colonial Vimos que no caso mesoamericano imperava uma certa polifonia de vozes que explicavam de modo central a história de cada altepetl A situação é bem diferente no caso andino pois as informações contidas nas fontes coloniais provêm preponderantemente da tradição histórica inca que era parte de uma memória oficial a serviço de um recente domínio expansionista sobre uma região com pelo menos 6000 anos de história47 Podemos aventar duas explicações para esse fenômeno e que não são necessariamente excludentes Em primeiro lugar podemos pensar que esse quase monopólio inca da his tória andina devase ao tipo de dominação praticada caracteristicamente cen 45 Existem mais de 600 quipus espalhados por coleções públicas e privadas de todo o mundo A maior delas cerca de 300 exemplares encontrase no Museum für Völkerkunde em Berlim Urton 2003 11 46 Vale ressaltar que não se trata de condicionar a existência das tradições históricas incas e andinas a uma forma de registro escrito mas de perceber que o entendimento das possí veis dimensões narrativas nos quipus abriria novas possibilidades de estudo e de conheci mento dessas tradições 47 Vale notar que a antiguidade dos primeiros centros cerimoniais e populacionais na re gião dos Andes é muito maior do que na Mesoamérica com datas que variam entre 4000 aC e 3500 aC na região do lago Titicaca Além disso foram descobertas múmias no norte do Chile que datam de 5000 aC e que possuem sofisticados tecidos e marcas de trepanação Veremos adiante que algumas informações acerca das civilizações andinas anteriores e con temporâneas aos incas encontramse na crônica de Guaman Poma de Ayala na qual a con cepção de que os incas foram os civilizadores dos Andes é muito presente Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 186 tralizadora e que submetia os povos conquistados ou aliados a uma estrutura política econômica e cultural que emanava de seus centros de poder Entre as práticas que faziam parte dessa estrutura estatal e centralizadora inca estavam o estabelecimento de centros de controle político que se sobrepunham às elites locais as quais eram por vezes deslocadas para Cuzco e incorporadas à elite inca o assentamento de etnias estrangeiras nas terras dominadas e o desloca mento de grupos dominados para outras regiões a construção de palácios e bases de guarnições militares e de armazéns para o controle e a distribuição de víve res48 Talvez a centralização política e a imposição de um aparato estatal tenha desarticulado ou submetido as tradições históricas locais cujos membros cer tamente pertenciam às elites locais incorporadas aliadas ou vencidas Em su ma as explicações históricas eram parte integrante do processo de legitimação ideológica do domínio inca e deveriam ser controladas ou emanar de seus centros Em segundo lugar podemos pensar que esse monopólio inca da história andina devase ao fato de que a grande maioria dos textos coloniais sobre a história local procede dos antigos centros de poder e que desse modo contaram em sua produção com informações oriundas da tradição inca ou com a participação de indígenas a ela vinculados Além disso havia um outro motivo para que as elites indígenas locais repetissem a versão inca da história andina pois como veremos em detalhe a seguir estabelecer uma relação de descendência com o passado inca poderia funcionar para a obtenção ou a garantia de privilégios já que o domínio castelhano se consolidou no mundo andino por meio de alianças com a elite inca ou com o que havia restado dela depois dos conflitos iniciais 2 Transformações e continuidades das tradições históricas nahua e inca durante o século XVI e início do século XVII Nesta parte trataremos de caracterizar e analisar comparativamente as transformações e as continuidades pelas quais passaram as tradições históricas nahua e inca diante da conquista e colonização castelhana Para isso utiliza remos sobretudo as fontes produzidas no início do Período Colonial que tra taram da história inca ou nahua como temas centrais e que contaram com a 48 Isso não significa que os modos locais de organização social e de produção eram radi calmente alterados Stern 1986 4953 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 187 participação de membros das tradições históricas nativas O objetivo central não será proporcionar uma análise minuciosa de cada uma das fontes mas sim estabelecer algumas características e reflexões gerais acerca de suas pro duções usos e consumos tarefa para a qual nos serviremos também dos estudos historiográficos A O impacto da conquista militar As conquistas militares dos mundos inca e nahua foram ao mesmo tempo processos muito semelhantes mas também muito distintos Tratemos dessas similitudes e distinções Ambos processos contaram com a participação de castelhanos que a partir de empresas particulares e com a autorização real buscavam estabelecer domínios subordinados à Coroa de Castela Em ambos casos os castelhanos contaram com a participação aliada de grupos indígenas contrários aos domí nios inca e mexica Foi utilizado nos dois casos sobretudo por parte dos con quistadores e seus aliados uma violência um tanto quanto inaudita ou pelo menos pouco usual nos Andes e na Mesoamérica pois as lutas e matanças se direcionaram não apenas contra os guerreiros mas também contra toda a popu lação Além disso as guerras passaram a durar todo o ano e não mais se res tringir a determinadas épocas Em ambos processos a principal justificativa da conquista foi a suposta idolatria dos povos nativos e a obrigação cristã de levarlhes o Evangelho o que resultou na obrigatoriedade da conversão pelo menos formal dos povos aliados ou conquistados e na destruição de tudo que ao juízo cristão estivesse relacionado com as antigas práticas religiosas a con quista políticomilitar era uma empresa inseparável da conversão religiosa tanto que nas duas regiões podemos observar a participação de clérigos desde os primeiros momentos de contato e confronto De acordo com os ideais da Reconquista que regiam a política e a religião ibéricas nesse momento a vitória militar castelhana e de seus aliados formal mente convertidos gerava como conseqüência um outro e inevitável passo isto é a aceitação das explicações cristãs acerca do passado do presente e do fu turo A vitória militar era também a vitória do deus cristão e da visão de mundo e de história católica Essa situação impôs um grande desafio aos membros das elites indígenas portadores das tradições históricas durante o Período Colonial além da sobrevivência física era necessário encaixar e adaptar as explicações históricas tradicionais à visão de mundo dos vencedores parte da qual foi Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 188 apropriada rapidamente pelos indígenas aliados ou derrotados que se converteram rápida e sinceramente ao cristianismo ou ao que entendiam por tal Em outras palavras não devemos nos esquecer que a posição hierarquica mente superior ocupada pela visão de mundo e de história cristãs não era fruto de um debate epistemológico no qual o cristianismo mostrouse como a melhor e mais apropriada forma de entender e explicar a história do mundo e do homem O que houve foi uma vitória militar que garantiu uma posição de comando ao pensamento cristão posição essa que determinava a direção e o sentido das adap tações e reelaborações eram as explicações cosmogônicas e históricas nativas que deveriam adequarse ao modelo cristão e não o contrário49 Porém isso não significa que os castelhanos ditaram e dirigiram todos os processos de transformação no mundo colonial e que a influência tenha se dado em uma só direção50 Sabemos que as formas de controle político e tributário a religiosidade e o cotidiano colonial foram determinados em grande parte 49 É claro que algumas explicações cristãs acerca da origem do mundo e da história hu mana foram colocadas em xeque com a certeza de que a América era um novo mundo não referido pelos textos bíblicos ou por Aristóteles Mas isso não significa que as expli cações construídas pelos povos americanos acerca do passado tenham sido levadas em conta pelo menos não explícita ou conscientemente pelos pensadores que trataram de reformular as tradicionais explicações cristãs Essa reformulação se deu sobretudo a partir do próprio pensamento aristotélicotomista e de umas poucas e genéricas in formações sobre a América Esse tipo de reformulação pode ser observado na obra do jesuíta José de Acosta Acosta 1985 Mas essas reformulações cujos alicerces esta vam em ruínas segundo Descartes em suas Meditações foram paulatinamente sendo substituídas por explicações construídas fora das universidades cristãs e fundadas em outros princípios Esse processo é conhecido como Revolução Científica do qual o Ilumi nismo pode ser visto como uma continuação Neles o pensamento dos povos america nos pode ter desempenhado alguma influência de forma indireta e implícita 50 O impacto do descobrimento da América e de seus povos sobre a cosmologia cristã é um tema bem estudado Mas talvez faltem estudos sobre o impacto e a participação das expli cações de mundo americanas nas reformulações das explicações cosmogônicas e históri cas européias reformulações essas que caracterizaram a história intelectual da Europa du rante toda a Época Moderna e que culminaram no Iluminismo Um caminho fecundo de pesquisa poderia ser o mapeamento do percurso das crônicas e textos que incorporaram ou reproduziram explicações e conhecimentos americanos e que chegaram até a Europa principalmente pelos jesuítas nos séculos XVII e XVIII ou aí foram publicados Esse seria o passo inicial para tentar entender até que ponto tais explicações poderiam ter sido conhecidas e lidas pelos pensadores europeus modernos e de como estariam presentes em suas obras Um caso mencionado freqüentemente é o de Montaigne quem seguramente conhecia algumas idéias cosmogônicas mesoamericanas comentadas em seus Ensaios Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 189 pelas tradições indígenas responsáveis portanto pela instauração de mundos coloniais distintos nas diversas regiões americanas que eram controladas pelo mesmo poderio castelhano Apesar desse papel central das populações indíge nas na construção do mundo colonial é importante ressaltar que o processo de transformação não foi simétrico entre os dois mundos que se encontravam e se enfrentavam nos Andes e na Mesoamérica A posição de domínio castelhano e o crescente contingente de europeus que chegava à América permitiu que os estrangeiros criassem e dirigissem uma sociedade viável que não corria o risco de ser engolida pelas sociedades locais cujos contingentes populacionais eram cada vez menores devido às enfermidades e maustratos Lockhart 1992 Desse modo a progressiva substituição dos aparatos estatais inca e mexica pelo castelhanocristão aliada ao processo de conversão religiosa gerou uma impossibilidade crescente de manutenção e de reprodução das tradições históri cas nativas de forma independente dos poderes castelhanos pois seus membros eram tradicionalmente parte dos antigos poderes estabelecidos que agora en contravamse majoritariamente submetidos ou aliados aos cristãos Em regiões mais distantes dos centros castelhanos de poder as tradições nativas mantiveram por muito tempo uma relativa autonomia e continuaram a produzir suas próprias explicações acerca do passado produções essas que inclusive incorporavam os novos e recentes acontecimentos que envolviam os castelhanos e se expressavam por meios tradicionais como os códices pictoglíficos e a tradição oral Apesar de todas essas similitudes entre os processos de conquista houve especificidades significativas e que geraram distintas formas de relação e de pactos entre os antigos poderes locais nahua e inca e os novos senhores caste lhanos As especificidades na construção dos contatos assim como as distintas e prévias visões de mundo nahua e inca contribuíram para a elaboração de explicações históricas nativas que incorporavam de maneira distinta o fenô meno da conquista e presença castelhanas No caso da conquista de MéxicoTenochtitlan as alianças prévias seladas por Cortés e Malinche51 entre 1519 e 1520 com os altepeme vizinhos e inimigos tiveram um papel fundamental na rápida derrota do centro do poderio mexica 51 Também conhecida como Malintzin cujo importante papel nessas negociações é re tratado em fontes nativas como o Lienzo de Tlaxcala Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 190 que ocorreu entre 1520 e 1521 Desde Cempoala os castelhanos estabeleceram alianças com mais de dez altepeme para a luta contra os mexicas dentre os quais destacamse Tlaxcala e Chalco Calculase que o exército que chegou a MéxicoTenochtitlan em novembro de 1519 contava com cerca de 500 caste lhanos e 10000 indígenas aliados Além disso parece que Moctezuma e parte dos mexicas queriam evitar a guerra e receberam os castelhanos e aliados de forma amistosa para tentar esta belecer um pacto político Mas talvez a impossibilidade de uma aliança política sem a conversão religiosa deu início aos conflitos que começaram justamente numa das mais importantes festas religiosas mexica a festa de Toxcatl que terminou com o famoso episódio da Matança do Templo Maior e com os cas telhanos sitiados Depois da desesperada fuga para Tlaxcala conhecida como Noche Triste sobreviveram apenas um quarto dos castelhanos que trataram de entre julho e novembro de 1520 pedir reforços às ilhas do Caribe e recompor e ampliar as alianças locais Em novembro desse mesmo ano castelhanos e aliados reiniciaram uma nova marcha dominando o Vale de Puebla e todo o sul da Cuenca Até março de 1521 contavam também com aliados ao redor de todo o lago Texcoco os quais já totalizavam mais de quarenta altepeme MéxicoTenochtitlan liderada agora por Cuauhtemoc resistiu até agosto de 1521 quando após a morte de cerca de 80 da população os últimos soldados mexicas foram vencidos e consumouse o domínio dos cerca de 1000 castelhanos e dos 20000 indígenas aliados Essas alianças dotaram a vitória dos castelhanos de uma certa legitimidade aos olhos da complexa e intricada rede política que regia as relações entre os altepeme mesoamericanos os quais mantiveram pelo menos durante as pri meiras décadas após a queda de Tenochtitlan uma certa continuidade de suas autonomias e poderes locais pois estavam ao lado dos vencedores Sendo assim as elites indígenas desses altepeme sentiamse como parte do regime colonial e não como vítimas dele fato que garantia uma certa colaboração polí tica Essas alianças criaram também redes políticas complexas que opunham por exemplo os castelhanos e indígenas aliados aos indígenas inimigos e garantiram a rápida expansão dos novos senhores de Tenochtitlan em direção a Oaxaca 1524 aos domínios tarascos 15241530 e a parte da Guatemala 1524 Veremos no próximo subitem as conseqüências dessa rápida con quista e das alianças castelhanas com as elites locais para o funcionamento e o papel das tradições históricas indígenas na nova ordem colonial Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 191 No caso da conquista dos incas temos um processo de lutas e conflitos muito mais longo que vai de 1532 com a prisão de Atahualpa por Pizarro até 1572 com a morte de Tupac Amaru Esse longo processo pode ser dividido em três fases Navarrete Linares 2002 A primeira fase de 1532 a 1536 iniciouse com o famoso episódio da prisão de Atahualpa por Pizarro em Cajamarca e pela morte de milhares de incas e de apenas um castelhano Essa fase teria terminado com a rebelião de Manco Capac soberano inca nomeado após a morte de Tupac Hualpa que havia sido nomeado pelos castelhanos após a execução de seu irmão Atahualpa e que morreu em conflitos com grupos fiéis a Huáscar assassinado enquanto Atahualpa estava preso pelos castelhanos Vale notar que os castelhanos fun daram Lima já nessa primeira fase da conquista em 1535 e a fundaram na costa fato que marcaria o início de uma marcada separação sóciogeográfica entre o mundo castelhano e o indígena que persistiu durante todo o Período Colonial e chegou até a atualidade A segunda fase de 1536 a 1555 caracterizouse pelo combate à rebelião de Manco Capac por Diego de Almagro pelo refúgio dos incas em Vilcabamba por uma série de períodos de guerra e paz e por uma guerra civil entre os cas telhanos seguidores de Pizarro e de Almagro Até esse momento os povos vi zinhos não haviam apoiado os incas contra os espanhóis pois viam o fim de sua dominação como uma chance de maior autonomia fato que se tornava real com a crise da rede de caminhos e do aparato estatal inca responsável pela cobrança dos tributos A terceira fase de 1555 a 1572 foi marcada pela consolidação do poder castelhano pela chegada do vicerei Mendoza e dos burocratas após a morte dos conquistadores e pelo início do pesado regime de trabalho ao qual os indí genas foram submetidos nas minas de prata e que causou inúmeras rebeliões Essa fase caracterizouse também pela continuidade da resistência inca desde Vilcabamba principalmente até 1567 quando Titu Cusi firmou a paz com os castelhanos Mas após sua morte em 1571 seu irmão Tupac Amaru rebelou se e foi vencido e executado publicamente em Cuzco em 1572 O longo processo de conquista castelhana e de resistência inca aliado ao pesado regime de trabalho e de tributos que transformava a tradicional mita em uma espécie de escravidão geraram um verdadeiro caos social e econô mico que atingiu todas as regiões antes dominadas pelos incas o que contribuiu para a generalização de um sentimento de rechaço ao poder político e à religião dos castelhanos Além disso o número de aliados indígenas que se sentia Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 192 vitorioso com a derrota dos incas era muito menor do que no caso dos mexicas Veremos que as explicações históricas nativas para a conquista castelhana construídas nessa fase final ainda acreditavam na possibilidade de expulsão total dos castelhanos e na restauração da ordem andina anterior anterior inclusive aos próprios incas 52 No entanto a progressiva instalação do aparato colonial castelhano após o fim das lutas contra os incas cooptava cada vez mais os membros das elites incas derrotadas e os curacas dos mais diversos povoados Conjuntamente o crescimento do número de castelhanos mostrava ao mundo andino que estavam ali para ficar Veremos que esses fatos transformaram as explicações andinas e incas da conquista produzidas nessa fase fins do século XVI e início do XVII pelas elites locais aliadas que passaram a tratar o fenômeno da con quista e da colonização castelhana como algo irreversível Não se tratava mais de expulsar os castelhanos mas sim de conseguir um sistema mais justo sob a ótica andina um sistema que respeitasse os princípios básicos da reciprocidade e da organização social local garantindo assim os privilégios e poderes subor dinados das elites locais pois reciprocidade mesmo em tempos préhispânicos não era sinônimo de relações igualitárias B Convivência resistência e reacomodações Depois de findados os processos de conquista militar caracterizados pela grande intensidade de guerras e matanças e pela imposição final do domínio dos conquistadores e seus aliados indígenas iniciouse nas regiões nahua e inca uma outra etapa histórica caracterizada principalmente pelo traslado e a implantação de instituições castelhanas e por uma certa estabilidade no contro le político e econômico Isso não significa que as revoltas e conflitos armados não continuaram a existir principalmente no caso dos Andes e das regiões 52 A idéia do retorno de um incarrí ou incarei que expulsaria os castelhanos e restau raria a antiga ordem no mundo andino foi criada posteriormente entre fins do século XVI e início do século XVII justamente após a execução pública de Tupac Amaru Essa idéia que se tornará central para as tradições históricas andinas caracterizase por uma visão idealizada dos tempos incaicos e sua construção foi fomentada principalmente por dois motivos a maioria das pessoas que havia vivido sob o domínio inca havia morrido e o crescente domínio econômico tributário político e religioso dos castelhanos mostrava cada vez mais sua face de violência e de exploração Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 193 mesoamericanas ao norte e ao sul do Altiplano Central sobre as quais os caste lhanos e seus aliados procuravam ampliar seus domínios53 E como vimos anteriormente esse processo de conquista e colonização polí tica militar e econômica era inseparável do processo de conquista espiritual Desse modo as instituições religiosas cristãs sobretudo igrejas monastérios e colégios também foram trasladadas e implantadas nas regiões conquistadas pas sando a ser os principais centros de difusão do pensamento histórico e cosmogô nico do Velho Mundo Durante o século XVI chegaram à região da Nova Espanha quase três mil religiosos e ao Peru cerca de mil e oitocentos Borges 1983 Foi com esses religiosos cristãos que parte das tradições históricas nahua e inca se defron taram Vejamos como isso se deu entre mexicas e incas A rápida expansão dos domínios políticos castelhanos e de seus aliados na região central da Mesoamérica e a relativa legitimidade desses novos domi nadores em dezenas de altepeme possibilitaram a difusão massiva do cristia nismo e de alguns conceitos de sua visão de mundo Ao mesmo tempo era fundamental para as elites nahuas intermediadoras das relações entre os novos senhores castelhanos e a população indígena incorporar os símbolos políticos e religiosos castelhanos que demonstravam suas posições sociais como por exemplo as roupas e os escudos de armas Também era necessário adequar sua história e cosmogonia à história e cosmogonia do deus cristão vitorioso deus este que aliás não era muito afeito à competição com outros deuses ou a outras versões da criação do mundo e da história dos homens O resultado dessas reelaborações foram obras muito diversas que com binaram de maneiras distintas as histórias e explicações cosmogônicas tradi cionais com as idéias de origem cristã No entanto todas elas possuem em comum o fato de se destinar a dois universos de públicos distintos os religiosos e mandatários castelhanos e as elites e populações nahuas A maioria dos autores dessas obras estavam interessados em assegurar para si e para seu grupo as posições e privilégios sociais dentro da nova ordem colonial e para isso 53 Na verdade é muito difícil estabelecer um limite cronológico entre conquista e colo nização que valha para toda e Mesoamérica e Andes Cada região e povo viveu esses momentos em épocas distintas Sabemos que em alguns casos a invasão territorial e a conquista militar foram processos que só se consumaram nos séculos XIX e XX Sendo assim a divisão que estamos estabelecendo entre conquista militar e colonização serve apenas para os dois casos estudados isto é nahuas do Altiplano Central e incas Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 194 necessitavam dialogar com o mundo castelhano por um lado e com o indígena por outro pois somente sendo entendidos e legitimados pelos dois é que pode riam manter sua privilegiada posição de elite intermediária Algumas das mais importantes obras que se encaixariam nessa tipologia foram escritas por Fernando Alvarado Tezozomoc Domingo Francisco de San Antón Muñón Chimalpahin Cuauhtlehuanitzin Cristóbal del Castillo Fernando Alva Ixtlilxochitl e Diego Muñoz Camargo alguns dos quais filhos de castelhanos e indígenas54 Vale lembrar também que os castelhanos desde as alianças préconquista de Tenochtitlan necessitavam dessas elites para atender as demandas de seus domínios e futuramente de seu império Era preciso lidar com as unidades políticas mesoamericanas suas afinidades e tendências à fragmentação e à autonomia impulsionadas pelas centenas de microetnicidades e por um modelo geral de organização celular no qual cada parte da rede de alianças políticas era relativamente completa e portanto potencialmente independente Esse modelo político havia vigorado por milhares de anos e continuava exis tindo apesar da conquista Uma demonstração da sua grande força foi o fato de que quase que a totalidade dos altepeme se tornaram municípios na década de 1530 garantindo assim sua sobrevivência como entidadebase da nova orga nização colonial Isso garantiu a continuidade da existência de parte da elite nahua que em troca de privilégios e poderes subordinados ocupou o governo dessas unidades até o fim do Período Colonial Lockhart 1992 É claro que isso contribuiu para a continuidade transformada das tradições históricas nahuas que como vimos tinham no altepetl seu centro temático A rápida expansão do cristianismo pela Mesoamérica durante o século XVI contou também com a realização de uma série de trabalhos missionários de pes quisa os quais pretendiam aprender as línguas e conhecer os hábitos a religiosidade e o pensamento nativos Com esses saberes os evangelizadores estariam dotados de instrumentos de pregação e preparados para combater as indesejáveis misturas entre as antigas idolatrias e a nova religião e assim conseguir uma conversão mais eficiente e inspirada nos ideais do cristianismo primitivo e do milenarismo de Joaquín de Fiore Os trabalhos realizados ainda no século XVI pelo franciscano Bernardino 54 Suas obras estão referenciadas respectivamente como Alvarado Tezozomoc 1998 Chimalpahin Cuauhtlehuanitzin 1965 e 2001 Castillo 2001 Alva Ixtlilxochitl 1985 e Muñoz Camargo 1998 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 195 de Sahagún Sahagún 2002 e pelo dominicano Diego Durán Durán 1984 são os exemplos mais acabados e sofisticados dessas pretensões missionárias de estabele cimento de um cristianismo livre das antigas idolatrias Mas esses trabalhos missionários de pesquisa foram realizados em conjunto por freis por alunos indígenas dos colégios missionários descen dentes das elites locais e por antigos sábios indígenas E desse modo deram a oportunidade para que uma série de relatos orais como os huehuetlahtolli ou antiga palavra fossem transcritos em nahuatl e depois traduzidos55 Além disso inúmeros códices pictoglíficos também foram produzidos glosados ou parcialmente explicados nesses trabalhos conjuntos dando origem a uma série de textos alfabéticos que traduziam os conteúdos tradicionalmente veicu lados por meio do sistema pictoglífico56 Esse fato possibilitou o estudo e o entendimento de parte dos códices exclusivamente pictoglíficos Em todos esses códices e textos alfabéticos podemos perceber a forte conti nuidade de elementos utilizados anteriormente pelas tradições históricas nahuas como por exemplo os relatos cosmogônicos que tratam das eras ou idades anteriores a utilização da conta dos anos sazonais xiuhmolpilli para mensurar as distâncias temporais e estruturar as narrativas e a centralidade dos altepeme nas narrativas que tratavam do passado mais recente Além disso podemos perceber também o esforço de adequar os conteúdos dos relatos tradi cionais aos novos preceitos cristãos e à cosmogonia do Velho Mundo Isso se dava por exemplo omitindo e minorando nos relatos os episódios de sacrifícios humanos e de antropofagia ou ainda atribuindoos aos povos inimigos57 55 Os dois principais conjuntos dessas transcrições são os Romances de los señores de la Nueva España e os Cantares mexicanos ambos publicados sob o título de Poesía náhuatl 2000 Há também uma seção do Códice Florentino de autoria de Bernardino de Sahagún Sahagún 2002 e de sua equipe de informantes e alunos indígenas dedicada aos poe mas e cantos tradicionais nahuas 56 Entre os textos alfabéticos nahuas que apresentam indícios internos de terem sido produ zidos a partir de leituras de códices pictoglíficos podemos destacar os Anales de Cuauhtitlan 1945 a Historia de los mexicanos por sus pinturas 1996 e a Leyenda de los soles 1945 57 Nos Anales de Cuauhtitlan por exemplo os mexicas são acusados de sacrificar deze nas de milhares de cativos na inauguração do Templo Maior Anales de Cuauhtitlan 1945 5758 No entanto alguns cronistas mexicas como Alvarado Tezozomoc não omitem os sacrifícios nem os atribuem a outros povos mas os reivindicam por sua conotação de valentia guerreira e de devoção religiosa valores locais que seriam compartilhados com os espanhóis ainda que mal encaminhados pois o demônio teria agido livremente nas terras distantes do Evangelho Navarrete Linares 2000 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 196 Uma outra forma de adequar os antigos relatos sobre as idades do mundo e a história tolteca às novas demandas era narrálos novamente à luz dos textos bíblicos Desse modo encontramos casos em que Huemac soberano de Tula e sucessor ou contemporâneo de Quetzalcoatl foi identificado com o apóstolo São Tomás numa clara tentativa de vincular os relatos das duas tradições his tóricas o que era importante para ambas Por um lado as elites indígenas alia das pretendiam provar que seu mundo e sua história também eram parte da grande história universal cristã adotada tacitamente no momento de sua con versão Por outro o problema da origem do homem americano e de seu esque cimento pelo deus cristão era algo que incomodava aos pensadores cristãos que também buscavam vincular a América e o que imaginavam ser sua história aos relatos bíblicos58 Dentro desse lento e contínuo processo de colonização o uso da picto grafia um dos principais meios de expressão da tradição histórica nahua per durou até fins do século XVII e passou por dois momentos bem distintos Lockhart 1992 O primeiro que durou até meados do século XVI marcou se por uma continuidade geral dos princípios que regiam o sistema que foi usado inclusive para expressar as novas realidades trazidas pelos castelhanos como os cavalos e os nomes próprios Até esse momento poucos centros ha viam iniciado os trabalhos de ensino religioso a jovens ajudantes nahuas basi camente no México e em Tlaxcala que aprenderiam a manejar o alfabeto latino para transcrever seu idioma O segundo momento que durou de meados do século XVI até o desaparecimento do sistema no final do século XVII marcouse por um decréscimo constante e progressivo no uso da pictografia como veículo primário pela proliferação das instalações religiosas e burocrá ticas castelhanas pelo conseqüente crescimento da produção de textos alfabé ticos de diversos tipos e por fim pela adoção de padrões pictóricos europeus Além dessas formas de ajuste das explicações tradicionais ao pensamento cristão e apesar da progressiva adoção do sistema alfabético houve uma grande 58 Essa identificação entre São Tomás e Huemac encontrase em duas importantes crôni cas coloniais na obra do dominicano Diego Durán Durán 1984 e no texto do Códice Ramírez 1987 ou Relación del origen de los indios que habitan esta Nueva España pro vavelmente um resumo da obra de Durán feito por Juan de Tovar que fora encarregado pelo vicerei Martín Enriquez de Almanza para escrever uma história do México préhis pânico Camelo Rubén Romero 1995 Ou talvez ambos tenham baseadose em uma obra anterior perdida e de autoria desconhecida chamada pelos estudiosos de Crónica X Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 197 continuidade estrutural e temática da produção local de histórias e cosmogo nias até o fim do Período Colonial sobretudo nas regiões mesoamericanas mais distantes dos centros de poder castelhano Por vezes tais continuidades aden traram os séculos XIX e XX e em última instância chegaram até os dias atuais Talvez de modo geral possamos dizer que o grau de presença do pensamento cristão nessas histórias e cosmogonias reelaboradas é diretamente proporcional a dois fatores ao grau de contato convivência e penetração das instituições de origem ibérica nessas comunidades e também à qualidade dos contatos isto é se de maior receptibilidade ou maior rechaço aos elementos de origem estrangeira por parte das comunidades nativas Citamos no item anterior que a longa conquista dos incas pelos castelhanos gerou pelo menos dois tipos distintos de explicações históricas nativas Por um lado estavam aquelas que ainda acreditavam na possibilidade de se livrar totalmente da presença castelhana e por outro aquelas que já tratavam o fenô meno da invasão como algo irreversível e que procuravam relocalizar da melhor forma possível o mundo e a história andina diante da nova situação Ambas utilizaramse de conceitos tradicionalmente utilizados pelas explica ções históricas incas e que faziam parte da visão de mundo andina em geral como por exemplo o conceito de pachacuti Vejamos em detalhe esses dois tipos de explicação histórica colonial utilizadas pelos incas e povos andinos Ainda durante a fase final da conquista militar em 1564 houve um grande movimento panandino na região de Huamanga de rechaço ao mundo caste lhano chamado de Taki Onqoy ou enfermidade da dança Segundo os depoi mentos de seus participantes registrados pelo frei Cristóbal de Albornoz e por seu tradutor Guamán Poma de Ayala as guacas estavam zangadas pelo colaboracionismo indígena e pela suspensão dos sacrifícios Por isso passaram a possuir os indígenas fazendoos cair ou dançar ininterruptamente purifi candoos por meio da renúncia ao cristianismo e a tudo o que viesse dos castelhanos Desse modo os indígenas acreditavam estar prontos para o pró ximo pachacuti quando então as guacas encabeçadas por Titicaca e Pachacamac matariam a todos os castelhanos e curacas aliados e assim devol veriam as coisas aos seus devidos lugares Navarrete Linares 2002 Podemos perceber nesses depoimentos de forma muito clara a presença de pelo menos duas idéias típicas das explicações históricas e da visão de mundo andinas o mundo dividese entre hanan e hurin e um pachacuti inverte a posição ocupada por cada uma das partes como aconteceu durante a conquista castelhana Além disso de acordo com a avaliação feita pelos participantes do Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 198 movimento ainda seria possível expulsar totalmente os estrangeiros e restaurar a antiga ordem das coisas Inclusive a ordem restaurada poderia ser uma ordem melhorada já que o recente domínio inca da região havia sido rompido pelos castelhanos que por sua vez seriam expulsos A crônica de Titu Cusi Yupanqui 1985 também foi escrita durante essa fase final da conquista nos anos 1560 e de um ponto de vista inca compartilha muitas explicações históricas diante do fenômeno da conquista com o movimento Taki Onqoy Titu Cusi irmão de Tupac Amaru filho de Manco Capac e neto de Huayna Capac relata centralmente a grande rebelião de Manco Capac em 1536 e também apresenta um alto grau de rechaço aos castelhanos classi ficandoos como seres que não pertenciam a hanan mas sim a hurin pois seriam filhos de Supay o Senhor do Mundo de Abaixo Nessa classificação podemos perceber outras duas idéias comuns às do Taki Onqoy a divisão do mundo entre hanan e hurin e a conquista castelhana como um pachacuti que inverteu o mundo antes dominado pelos incas seres procedentes do mudo superior e do Sol A percepção da população nativa em constante decréscimo numérico sobre a dimensão do fenômeno colonizador alterouse com o crescimento da presença castelhana no último terço do século XVI Essa alteração conseqüen temente acarretou a construção de explicações históricas distintas as quais já não falavam mais em se livrar totalmente dos novos senhores e estrangeiros mas sim como citamos anteriormente em restabelecer as relações de poder e de subordinação de acordo com princípios políticos tradicionais59 No entanto por outro lado essa elite era formada por pessoas que haviam crescido e ainda viviam imersos em um universo cultural não muito diferente daquele que existia em tempos incas Desse modo suas explicações históricas e cosmogônicas eram em realidade construídas com conceitos tradicionais utilizados cotidianamente para dar conta da realidade natural e social e que faziam parte da própria constituição de seus pensamentos Reformular as expli cações tradicionais da antiga visão de mundo para dar conta da nova realidade e incorporar as idéias cristãs era muito mais do que um ato deliberada e cons cientemente interesseiro a única forma de obter um certo reconhecimento por 59 É claro que isso as obrigava a uma atitude de abertura e receptividade ainda maior para a instalação das instituições políticas econômicas e religiosas européias pois a aliança com os vitoriosos implicava em uma aliança com seus deuses prática que já pos suía precedentes na antiga pauta da política andina Stern 1986 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 199 parte dos novos senhores de seus pares e da população indígena em geral a quem pretendiam representar e comandar desempenhando o papel de intermediários Alguns relatos com essas características foram produzidos por membros das elites incas entre o final do século XVI e o início do século XVII e certa mente podem ser considerados como reformulações de explicações tradicio nais incas que atendiam às novas demandas dos tempos coloniais Os escritos mais conhecidos e que se encaixam nesse grupo são os de Felipe Guamán Poma de Ayala de 1615 os de Juan Santa Cruz Pachacuti Yanqui Salcamayqua de 1613 e os de Garcilaso de la Vega de 160960 Há ainda um texto em quíchua do século XVI intitulado Manuscrito de Huarochirí ou Runa yndio niscap Machoncuna que também se encaixaria nesse grupo61 Todos esses escritores incas coloniais e suas tentativas de reelaboração das narrativas históricas e cosmogônicas refletem as demandas de uma época em que já não podiam mais resistir militarmente e buscavam outros meios de oposi ção e adaptação como a escrita e os meios legais Zapata 1989 Entre todos esses escritos seguramente os que trazem uma maior quantidade de informa ções específicas do mundo andino são os de Guamán Poma de Ayala e o manus crito Runa yndio de Huarochirí O relato de Guamán Poma pode ser considerado como uma transcrição parcial da tradição histórica inca única a ser registrada em tempos coloniais62 a partir de narrativas orais de informações dos quipus e do depoimento de anciãos Sua obra procurava estabelecer um projeto alternativo à colonização que efetivamente 60 Referenciados respectivamente como Guamán Poma de Ayala 1980 Santa Cruz Pachacuti 1968 e Garcilaso de la Vega 1968 No caso da obra de Guamán Poma além des sa edição em livro há uma edição facsimilar e eletrônica na Internet httpwwwkbdk elibmsspoma e que conta com comentários de Rolena Adorno e de John Charles 61 Esse manuscrito descreve a geografia do Tahuantinsuyu enfocando principalmente suas guacas e elementos da paisagem tidos como santuários Suas principais edições são ARGUEDAS José María comp Dioses y hombres de Huarochirí narración quechua Lima Museo Nacional de Historia e Instituto de Estudios Peruanos 1966 TAYLOR Gerard Ritos y tradiciones de Huarochirí manuscrito quechua versión paleográfica Lima Instituto de Estudios Peruanos e Instituto Francés de Estudios Andinos 1987 SALOMON Frank URIOSTE George The Huarochiri manuscript a testament of ancient and colonial Andean religion Austin University of Texas Press 1991 62 Parece que o manuscrito Runa yndio de Huarochirí oferece apenas insinuações acerca da existência de outras tradições históricas nos Andes em tempos incaicos Brotherston 1997 250 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 200 vinha sendo implantada Seu principal argumento nesse sentido é que a coloniza ção do modo como funcionava até então não beneficiava nem ao rei castelhano nem aos andinos mas apenas a uns poucos e desonestos conquistadores e buro cratas castelhanos e por isso deveria ser radicalmente modificada Guamán Poma como sincero membro da igreja católica e testemunho ocular da forte e crescente presença das instituições castelhanas já não ques tionava o domínio e a presença cristã nos Andes Mas por outro lado como descendente direto das elites incas não deixava de acreditar que a conquista havia sido um pachacuti pois os castelhanos que deveriam mandar apenas em Castela mandavam agora também nos Andes A solução proposta em seus textos para a correção dessa injustiça era a supressão do grupo dos con quistadores e a aliança direta entre os incas a coroa de Castela e o Papa63 Essa proposta reflete por um lado a preocupação da classe dominante indígena em recuperar seus privilégios cada vez menores diante do cresci mento das instituições e do número de burocratas castelhanos e marca uma reação às sobreexplorações que passaram a caracterizar as relações econô micas e tributárias após 1580 Além disso as epidemias matavam centenas de milhares e geravam em muitas partes um verdadeiro caos social e econômico explicado pela visão de mundo andina como resultado das relações sociais desequilibradas e que haviam sido implantadas pelos estrangeiros E por outro lado a utilização de conceitos tradicionais como pachacuti hanan hurin e manay para explicar a conquista e a colonização e construir uma proposta de futuro procurava validálos mostrando sua eficácia em continuar dando con ta das transformações e continuidades da história Palavras finais Enunciamos de início que a elaboração a manutenção e a transmissão sistemáticas de explicações acerca do passado não eram nem o são atualmente uma exclusividade do mundo ocidental Afirmamos também que nas chamadas sociedades complexas esses processos tendiam a estar sob o controle de orga 63 Em seu famoso mapamúndi Guamán Poma projeta a divisão quadripartida do Tahuantinsuyu e apresenta os Andes acima de Castela A maioria de seus desenhos traz contrastes e orientações espaciais que são prioritariamente significativos são como um arranjo sintático de elementos em uma sentença gramatical Adorno 1991 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 201 nizações ou grupos específicos que poderiam inclusive contar com indivíduos ou instituições especializadas aos quais denominamos de tradições históricas Creio que ao tratarmos na primeira parte de algumas características das explicações históricas inca e nahua pudemos por um lado comprovar a exis tência de tais tradições em tempos préhispânicos e por outro vislumbrar algu mas características de seu funcionamento principalmente no que diz respeito às preocupações temáticas à organização estrutural das narrativas aos me canismos de registro e transmissão e às concepções de tempo e espaço Na segunda parte ao analisarmos comparativamente as transformações e as continuidades das duas tradições históricas diante das conquistas e colonizações castelhanas creio que pudemos entender os modos específicos com os quais cada uma reagiu transformouse e adaptouse às novas demandas do mundo colonial Os resultados dessas transformações e adaptações materializaramse muitas vezes em códices e textos alfabéticos chamados aqui de escritos históricos e que devem portanto ser situados e analisados dentro dos distintos complexos e específicos contextos coloniais em que foram produzidos A existência dessa grande produção de escritos históricos coloniais nativos apontou para a continuidade transformada de instituições e de saberes de origem indígena principalmente no primeiro século póscontato Isso se comprovou pela utilização de estruturas narrativas como o calendário no caso nahua e de conceitos explicativos tradicionais como o pachacuti no caso inca nas obras de tempos coloniais Além disso houve também uma continuidade da função ideológicolegitimadora que as explicações acerca do passado desempenhavam para as elites indígenas em tempos préhispânicos pois muitos desses escritos coloniais tinham como principal preocupação a adequação das antigas explica ções históricas e cosmogônicas ao pensamento históricoreligioso dos novos se nhores redefinindo e garantindo assim uma nova identidade e uma nova posição política para as tais elites na nova ordem colonial Vimos também que o modo pelo qual se logrou a conquista dos incas e dos nahuas pelos castelhanos foi um fator determinante na constituição das redes de alianças que imperaram no mundo andino e mesoamericano colonial e que isso influenciou diretamente o posicionamento de maior adesão ou rechaço aos novos senhores o que por sua vez teve implicações diretas nas formas de reelaboração histórica levadas a cabo pelas tradições históricas locais Podemos dizer que a rápida conquista dos mexicas pelos castelhanos e in dígenas aliados contribuiu para uma maior legitimidade relativa e para a aceita ção da nova ordem pelos grupos locais Isso por sua vez contribuiu para uma Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 202 maior rapidez e facilidade de traslado de instituições castelhanas sobretudo de instituições religiosas o que resultou em um grau muito maior de influência e de presença cristãs nas novas explicações históricas nativas Tais produções em geral destinavamse a leitores dos dois universos culturais pois necessitavam simulta neamente do reconhecimento local e da aprovação dos novos e estrangeiros se nhores para lograr uma relocalização do passado e do presente indígena a partir das novidades adotadas ou impostas pela tradição de pensamento cristã Já a dificultosa e prolongada conquista dos incas pelos castelhanos e seus poucos aliados teve como resultado uma menor legitimidade relativa do poder dos novos senho res aos olhos dos princípios políticos locais o que ocasionou uma maior dificuldade no traslado e na implantação das instituições castelhanas tornandoas mais tardias e menos difundidas geograficamente em relação à região central do México Entre uma série de outros fatores essas diferenças no processo de conquista e colonização dos Andes contribuíram para importantes particularidades na pro dução das explicações históricas locais em relação às produções do Altiplano Central Tratamos mais detalhadamente de duas dessas particularidades 1 a presença central e difundida da concepção de que a conquista castelhana havia sido um pachacuti uma inversão total da antiga ordem de coisas e que seria possível em um futuro breve revertêla totalmente 2 a nãoaceitação do poder político e econômico dos conquistadores e burocratas como algo legítimo fato que levou um dos mais importantes cronistas coloniais incas a elaborar um pro jeto de vinculação direta das elites locais ao rei de Castela e ao Papa64 Creio que todas essas reflexões nos apontam para a importância de anali sarmos a problemática da qualidade dos contatos entre indígenas e europeus e da postura adotada por cada grupo nos processos de conquista e de coloni 64 É claro que isso também levou a um número muito maior de rebeliões e revoltas nos Andes do que no México Central onde elas praticamente não ocorreram durante todo o Período Colonial Situação distinta viveu a região maia na qual assim como nos Andes houve um longo e dificultoso processo de conquista e colonização que resultou em uma sociedade colonial extremamente cindida e na qual os castelhanos careciam de legitimi dade aos olhos da política indígena No caso dos maias também houve inúmeras rebe liões durante todo o Período Colonial 65 Isso não significa que o grau de contato seja uma variável menos importante Vale lembrar que as regiões mais distantes dos centros de poder castelhano apresentaram uma continuidade de funcionamento das tradições históricas nativas muito maior chegando em alguns casos até o século XX enquanto que nos centros de poder castelhano a maioria das tradições locais desapareceu antes do fim do Período Colonial Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 203 zação castelhana e não apenas o grau de contato mensurado em distância tempo e presença de instituições castelhanas65 Talvez o enorme e multicolo rido leque de casos que essas análises irão nos revelar tornará necessária a reavaliação da validade e do alcance explicativo de conceitos que durante décadas foram aplicados para dar conta de todos os contatos entre europeus e indígenas como por exemplo os conceitos de mestiçagem e de aculturação Bibliografia Fontes ACOSTA José de Historia natural y moral de las Indias 2a edição México Fondo de Cultura Económica 1985 ALVA IXTLILXOCHITL Fernando de Obras históricas México Universidad Nacional Autónoma de México 1985 ALVARADO TEZOZOMOC Fernando Crónica Mexicayotl 3a edição México Universidad Nacional Autónoma de México 1998 Anales de Cuauhtitlan in Códice Chimalpopoca Anales de Cuauhtitlan y Leyenda de los soles México Universidad Nacional y Autónoma de México 1945 pp 03118 CASTILLO Cristóbal Historia de la venida de los mexicanos y de otros pueblos Historia de la conquista México Conaculta 2001 CHIMALPAHIN CUAUHTLEHUANITZIN Domingo Francisco de San Antón Muñón Diario México Conaculta 2001 CHIMALPAHIN CUAUHTLEHUANITZIN Domingo Francisco de San Antón Muñón Relaciones originales de Chalco Amaquemecan México Fondo de Cultura Económica 1965 Códice Boturini o Tira de la peregrinación México Secretaría de Educación Pública 1975 Códice Ramirez manuscrito del siglo XVI intitulado Relación del origen de los indios que habitan esta Nueva España según sus historias in Crónica Mexicana y Códice Ramirez 4ª edição México Editorial Porrúa 1987 pp 17149 Códice Vaticano A Religión costumbres e historia de los antiguos mexicanos Áustria Akademische Druckund Verlagsanstalt México Fondo de Cultura Económica 1996 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 204 DURÁN Diego Historia de las indias de Nueva España e islas de la tierra firme 2a edição México Editorial Porrúa 1984 GARCILASO DE LA VEGA Inca Comentarios reales el origen de los incas Barcelona Editorial Bruguera 1968 GUAMÁN POMA DE AYALA Felipe El primer nueva corónica y buen gobierno México Siglo XXI 1980 Historia de los mexicanos por sus pinturas in Teogonía e historia de los mexicanos tres opúsculos del siglo XVI 5a edição México Editorial Porrúa 1996 pp 2390 Leyenda de los soles in Códice Chimalpopoca Anales de Cuauhtitlan y Leyenda de los soles México Universidad Nacional Autónoma 1945 pp 119142 Libro de Chilam Balam de Chumayel 2a edição México Conaculta 2001 MUÑOZ CAMARGO Diego Historia de Tlaxcala México Gobierno del Estado de Tlaxcala Ciesas Universidad de Tlaxcala 1998 Poesía náhuatl Romances de los señores de la Nueva España e Cantares Mexicanos 2a edição México Universidad Nacional Autónoma de México 2000 Popol Vuh Las antiguas historias del Quiché 26ª edição México Fondo de Cultura Económica 1996 SAHAGÚN Bernardino de Historia general de las cosas de Nueva España Versión íntegra del manuscrito castellano conocido como Códice Florentino 3a edição México Conaculta 2002 SANTA CRUZ PACHACUTI Juan Relación de antiguedades deste reyno del Perú Madrid Ediciones Atlas 1968 TITU CUSSI YUPANGUI Ynstrución del Ynga don Diego de Castro Titu Cusi Yupangui para el muy ilustre señor Lima Ediciones El Virrey 1985 Obras historiográficas ADORNO Rolena Guaman Poma writing and resistance in Colonial Peru 2a edição Austin University of 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LÓPEZ AUSTIN Alfredo LEÓN PORTILLA Miguel editores Estudios de cultura náhuatl Vol 9 México Universidad Nacional Autónoma de México 1971 pp 75104 DÍEZ CANSECO María Rostworowski Mediciones y cómputos en el antiguo Perú in LECHTMAN Heather SOLDI Ana María org La tecnología en el mundo andino Tomo I subsistencia y mensuración 2a edição México Universidad Nacional Autónoma de México 1985 pp 379405 FRASER Valerie Texto e significado na América nativa Material de curso ministrado no MAEFFLCHUSP durante o primeiro semestre de 2003 GLASS John B ROBERTSON Donald A census of native Middle American pictorial manuscripts in WAUCHOPE Robert editor geral CLINE Howard F editor dos volumes Handbook of Middle American Indians vol 14 Austin e Londres University of Texas Press 1975 pp 81251 GRAULICH Michel Mitos y rituales del México antiguo Madrid Colegio Universitario Ediciones Istmo 1990 LOCKHART James The nahuas after the conquest A social and cultural history of the indias of Central Mexico sixteenth through eighteenth centuries Stanford Stanford University Press 1992 LÓPEZ AUSTIN Alfredo La construcción de una visión de mundo Material de curso ministrado no Instituto de Investigaciones Antropológicas da UNAM México no primeiro semestre do ano letivo 20022003 MANRIQUE CASTAÑEDA Leonardo Ubicación de los documentos pictográficos de tradición náhuatl en una tipología de sistemas de registro y de escritura in MARTÍNEZ MARÍN Carlos Primer coloquio de Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 206 documentos pictográficos de tradición náhuatl México Universidad Nacional Autónoma de México 1989 pp 159170 MILLONES Luis Historia y poder en los Andes Centrales desde los orígenes al siglo XVII Madrid Alianza Editorial 1987 MOLINA Alonso de Vocabulario en lengua castellana y mexicana y mexicana y castellana 4a edição México Editorial Porrúa 2001 MONTOYA ROJAS Rodrigo Historia memoria y olvido en los Andes quechuas in PORTELLA Eduardo diretor Revista Tempo Brasileiro História Memória e Esquecimento Rio de Janeiro Edições Tempo Brasileiro nº 135 pp 157180 outubrodezembro de 1998a MONTOYA ROJAS Rodrigo Cultura e violência no Peru como se transforma a cultura Material de curso ministrado no Depto de História da FFLCH USP durante o segundo semestre de 1998 MURRA John V Las etnocategorías de un khipu estatal in LECHTMAN Heather SOLDI Ana María org La tecnología en el mundo andino Tomo I subsistencia y mensuración 2a edição México Universidad Nacional Autónoma de México 1985 pp434442 NAVARRETE LINARES Federico Mito historia y legitimidad política las migraciones de los pueblos del Valle de México tese de doutoramento México Universidad Nacional Autónoma de México 2000 NAVARRETE LINARES Federico Visão comparativa da conquista e colonização das sociedades indígenas estatais nahuas maias e incas Material de curso ministrado no Depto de História da FFLCHUSP durante o primeiro semestre de 2002 PEASE G Y Franklin Las crónicas y los Andes Lima Pontificia Universidad Católica del Perú México Fondo de Cultura Económica 1995 RÉMI SIMÉON Diccionario de la lengua náhuatl o mexicana redactado según los documentos impresos y manuscritos más auténticos y precedido de una introducción 14a edição México Madrid Siglo Veintiuno Editores 1997 SALOMON Frank Chronicles of the Impossible Notes on three Peruvian Indigenous Historians in ADORNO Rolena org From Oral to Written Expression Native Andean Chronicles of the Early Colonial Period Syracuse Syracuse University 1982 pp 939 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 207 SANTOS Eduardo Natalino dos A construção de uma nova memória mesoamericana reflexões sobre a produção históricoliterária de religiosos espanhóis na região do Vale do México no século XVI in PORTELLA Eduardo diretor Revista Tempo Brasileiro História Memória e Esquecimento Rio de Janeiro Edições Tempo Brasileiro nº 135 pp 181 196 outubrodezembro de 1998 SANTOS Eduardo Natalino dos Códices mexicas soluções figurativas a serviço da escrita pictoglífica in ARARA Art and Architecture of the Americas Essex Department of Art and Theory University of Essex nº 5 http www2essexacukarthistoryararaissuefivepaper3html desde 24 de junho de 2003 SANTOS Eduardo Natalino dos Deuses do México indígena Estudo comparativo entre narrativas espanholas e nativas São Paulo Editora Palas Athena 2002 STERN Steve J Los pueblos indígenas del Perú y el desafío de la conquista española Huamanga hasta 1640 Madrid Alianza Editorial 1986 TENA Rafael El calendário mexica y la cronografía México Instituto Nacional de Antropología e Historia 1992 URTON Gary Quipu contar anudando en el imperio inka Santiago Museo Chileno de Arte Precolombino Universidad de Harvard 2003 Vocabulário ortográfico da língua portuguesa Academia Brasileira de Letras 3a edição Rio de Janeiro A Academia 1999 ZAPATA Roger A Guamán Poma indigenismo y estética de la dependencia en la cultura peruana Minneapolis Institute for the Study of Ideologies and Literature 1989
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Resumo Abstract PalavrasChave Keywords AS TRADIÇÕES HISTÓRICAS INDÍGENAS DIANTE DA CONQUISTA E COLONIZAÇÃO DA AMÉRICA TRANSFORMAÇÕES E CONTINUIDADES ENTRE NAHUAS E INCAS Eduardo Natalino dos Santos Doutorando no Depto de História FFLCHUSP Apresentaremos neste artigo algumas das principais características de duas tradições históricas indígenas a nahua e a inca Em seguida analisare mos comparativamente suas ações reações transformações e continui dades diante de desafios históricos similares e contemporâneos as con quistas e as colonizações castelhanas do Altiplano Central Mexicano e dos Andes durante os séculos XVI e XVII Nahuas Incas Conquista e colonização castelhana Tradições históri cas indígenas Fontes históricas indígenas This article presents some of the main characteristics of two indigenous historical traditions the Nahua and the Inca The author offers a comparative analysis of indigenous actions reactions adaptations transformations and continuities as they faced similar contemporaneous challenges the Spanish conquest and colonization of Central Mexico and the Andes during the seventeenth and eighteenth centuries Nahua Inca Spanish conquest and colonization Indigenous historical traditions Indigenous historical sources Este trabalho teve como ponto de partida o curso Visão comparativa da conquista e colonização das sociedades indígenas estatais nahuas maias e incas ministrado durante o primeiro se mestre de 2002 no Depto de História FFLCHUSP pelo Prof Dr Federico Navarrete Linares Instituto de Investigaciones Históricas UNAM a quem agradeço pelas críticas e sugestões Bolsista Fapesp Texto 3A História da América I Prof Raphael Sebrian Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 158 Introdução A elaboração e o uso social de explicações sobre o passado foram práticas constantes nas mais diversas sociedades humanas Em geral tais elaborações tratam de explicar e articular as origens as transformações as permanências e as expectativas grupais dandolhes sentidos supostamente imanentes que funcionam entre outras coisas como elementos de coesão social E essa ima nência atribuída é socialmente entendida e aceita em parte pelo fato de que tais explicações são construídas sobre as amplas concepções que cada socie dade possui e compartilha de forma mais ou menos homogênea dependendo se do caso acerca do tempo do espaço da transformação da permanência da origem do destino do que seja acontecimento fato verdade e etc e que formam um todo mais ou menos coerente mas não monolítico que podemos chamar de visão de mundo1 A construção e a manutenção de explicações históricas com aceitação social é um processo de média ou longa duração e em geral sobretudo nas chamadas sociedades complexas tende a estar sob o controle de camadas sociais específicas que podem inclusive contar com indivíduos ou instituições especializados na pro dução na transmissão e na difusão de tais explicações como é o caso das sociedade indígenas que analisaremos Chamaremos de tradições históricas a essas organi zações grupos instituições ou indivíduos que se dedicam de forma sistemática mas não necessariamente exclusiva à construção manutenção e transformação de explicações socialmente aceitas acerca do passado E tudo isso a relação das tradições históricas com determinados grupos sociais e a ligação de suas construções com uma determinada visão de mundo nos leva à conclusão de que é imprescindível entender as explicações sobre o passado como produtos históricos específicos inseridos em um conjunto de problemas que se relaciona diretamente com a sociedade em questão2 1 O conceito visão de mundo pode ser definido como um Conjunto articulado de siste mas ideológicos relacionados entre sí en forma relativamente congruente con el que un individuo o un grupo social en un momento histórico pretende aprehender el universo López Austin 2002 2 No entanto é muito comum que as explicações produzidas pelas tradições não ociden tais sobretudo pelas tradições indígenas sejam analisadas e caracterizadas de forma conjunta e genérica como se fossem o resultado da ação de princípios ou leis univer Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 159 Essas são as idéias gerais que orientaram a elaboração deste artigo o qual tem como objetivo específico apresentar algumas das principais características das tradições históricas nahua e inca para depois analisar comparativamente suas diferentes ações reações transformações e continuidades diante de processos históricos similares contemporâneos e levados às regiões do Altiplano Central Mexicano e dos Andes Centrais por um agente histórico comum Estamos nos referindo às conquistas e colonizações castelhanas dos séculos XVI e XVII O entendimento dessas diferentes tradições e de suas distintas reações e transformações diante da empresa colonial castelhana é fundamental para podermos contextualizar e analisar adequadamente os escritos históricos3 pro duzidos nessas duas regiões durante o Período Colonial4 sejam os escritos de origem e estrutura mais próximas ao pensamento nahua ou inca ou sejam os escritos tipicamente ocidentais que de alguma maneira utilizaramse das informações provenientes das tradições históricas locais5 sais que regeriam o pensamento de suas sociedades produtoras chamado de pensamento mítico Partindo desse pressuposto tais análises procuram determinar as características formais e conceituais comuns a tais explicações independentemente das especificidades sociais e históricas em meio das quais foram produzidas Veremos por exemplo que as tradições históricas mesoamericanas utilizavam um preciso sistema de calendário como elemento organizador de suas narrativas Esse sistema funcionava como uma espécie de coluna vertebral das narrativas e permitia a marcação de uma inequívoca seqüência tem poral diacrônica fato que não excluía a presença da sincronia nos relatos Apesar disso pouca atenção tem sido dada a esse caráter diacrônico do pensamento mesoamericano predominando a ênfase no caráter cíclico ou sincrônico o qual condiz mais facilmente com o pressuposto de que fora do mundo ocidental predomina o pensamento mítico caracteris ticamente sincrônico e não preocupado em delimitar a fronteira presentepassado 3 Estou chamando de escritos históricos ao conjunto de textos que de modo central e explícito possuem como tema as histórias e os costumes dos povos americanos 4 Esse raciocínio também pode ser aplicado de modo mais geral para ajudar a explicar as distintas ações reações e transformações das sociedades indígenas americanas frente ao processo de conquista e colonização castelhanas Em outras palavras somente enten dendo as especificidades das diversas sociedades indígenas inclusive suas construções ideológicas sobre a chegada e a presença do europeu é que poderemos compreender os diferentes contatos convivências e conflitos que foram construídos entre os povos lo cais e os estrangeiros a partir do século XVI 5 Em outra ocasião tratamos da produção de crônicas e histórias pelos religiosos espa nhóis e do uso que fizeram das informações provenientes das tradições indígenas meso americanas Santos 1998 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 160 1 As tradições históricas nahua e inca É muito difícil fazer uma caracterização eqüitativa das tradições históricas inca e nahua durante o período Préhispânico ou Colonial O conhecimento acerca dessas tradições que possuem em comum o fato de pertencer a socie dades estamentais e dominadoras que foram alvos das primeiras guerras de conquistas castelhanas depende muitas vezes de fatores alheios à boa von tade do pesquisador dentre os quais podemos destacar a sobrevivência ou não de registros produzidos por tais tradições o entendimento de seus even tuais sistemas de registro a existência ou não de escritos alfabéticos coloniais produzidos por indígenas ou castelhanos que registrem depoimentos da ver tente oral traduzam parte dos registros tradicionais ou que pelo menos des crevam o funcionamento de tais tradições e por fim a continuidade ou não dessas tradições até tempos recentes A positividade ou negatividade de cada um desses fatores determina em parte a possibilidade de existência de um campo de estudo específico que se dedique aos registros tradicionais aos escritos alfabéticos coloniais ou aos grupos humanos que mantiveram tais tradições até tempos mais re centes A articulação dos conhecimentos oriundos desses diversos campos de estudo pode nos fornecer a possibilidade de entendermos pelo menos em parte o funcionamento de tais tradições e de seus registros em tempos préhispânicos ou coloniais Tal articulação tem sido mais afortunada no caso da tradição nahua do que no caso da inca pois existe um grande desequilíbrio qualitativo e quan titativo no conhecimento das fontes provenientes dessas tradições histó ricas bem como no conhecimento de informações coloniais acerca de seus funcionamentos O desequilíbrio qualitativo devese principalmente ao fato de reconhecer mos como tais e entendermos apenas os sistemas escriturários empregados tradicionalmente na Mesoamérica os quais serviram para a produção de um sem número de registros sobre papel pele pedra cerâmica e outros materiais Enquanto que no caso andino reconhecemos e entendemos tão somente as complexas dimensões numéricas dos quipus registro que serviase de con juntos de cordões de distintas cores e comprimentos articulados entre si de diversas formas e com nós em distintas posições Os quipus mais simples pos suíam um cordel horizontal principal ao qual se atavam cordéis verticais se cundários nos quais registravamse de acordo com a quantidade de nós e suas Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 161 posições relativas entre si e entre o cordel principal as unidades dezenas centenas e etc6 No entanto além desse simples esquema de dois tipos de cordéis muitos quipus apresentavam cordéis duplos triplos com cores diferentes e com di ferentes tipos de nós elementos esses que possivelmente também possuíam seus significados Desse modo paira sobre os quipus uma enorme dúvida eram ou não utilizados também para o registro de informações não numéricas Pesa a favor dos que defendem que os quipus eram utilizados apenas para registros numéricos7 o fato de não possuirmos nenhuma leitura tradução ou versão colonial reconhecida e aceita de seus supostos conteúdos nãonumé ricos apesar de que como veremos alguns cronistas do início do Período Colo nial relataram que seus informantes andinos utilizavamse de quipus para res ponder aos questionamentos acerca de suas origens e história Tais relatos coloniais são utilizados como argumento pelos que defendem que os quipus serviam também para o registro de informações nãonuméricas8 as quais ser viam de base para narrativas que dependiam de uma tradição oral articulada Desse modo creio que não devemos dar a polêmica por encerrada Voltaremos a essa polêmica ao tratarmos especificamente de caracterizar a tradição histórica inca De qualquer modo ao contrário do caso do México Central no caso andino não possuímos textos tradicionais sejam préhispânicos ou colo niais pois se os quipus sobreviventes possuem dimensões narrativas ainda não podemos entendêlas O desequilíbrio quantitativo caracterizase pelo fato de que o número de documentos baseados nos quipus ou na reconhecida oralidade das tradições históricas andinas produzidos durante o século XVI e princípios do século XVII é infinitamente menor do que a quantidade produzida no México Central Essa escassez de traduções para línguas européias ou de transliterações em línguas locais dos registros ou narrativas tradicionais ou ainda a impossibili dade de entender totalmente os quipus compromete as possibilidades de 6 Vale notar que nos Andes diferentemente da Mesoamérica onde era utilizado o siste ma numérico vigesimal predominou o sistema decimal 7 Dentre os quais podemos destacar Pease 1995 8 Dentre os quais podemos destacar Ascher Ascher 1995 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 162 entendimento do funcionamento e das principais características das tradições históricas incas e andinas em geral Bem diferente é o caso do México Central onde reconhecidamente havia um sistema de escrita pictoglífica9 com o qual se produziram numerosos documentos em tempos préhispânicos e coloniais dos quais alguns exemplares tradicionais e muitos adaptados às demandas coloniais chegaram até nós10 Além disso esses documentos pictoglíficos tiveram parte de seus conteúdos traduzidos ou explicados em textos alfabéticos em línguas indí genas e européias com os quais pese a todos os problemas envolvidos nesse processo podemos entender um pouco mais das principais características das tradições de pensamento histórico dessa região Em suma houve um maior reconhecimento por parte dos castelhanos das tradições históricas nahuas e conseqüentemente um número maior de trabalhos coloniais conjuntos de transcrições e traduções do que das tradições incas Talvez isso tenha ocorrido porque a estrutura narrativa em anais e a escrita pictoglífica utilizadas na Mesoamérica fossem relativamente mais parecidas às concepções históricas e ao sistema de escrita cristãos do que as concepções incas do passado e sua menor importância atribuída à cronologia além de suas relações com a paisagem por meio dos ceques e de seus distintos sistemas de registro como os quipus11 9 Prefiro o termo pictoglífico a pictográfico por acreditar que ele evoca de forma mais explícita a combinação entre elementos pictóricos e glíficos a qual era uma das princi pais características do sistema de escrita mixteconahua Em outra ocasião tivemos a oportunidade de analisar algumas das soluções figurativas empregadas nos códices nahuas e pudemos comprovar que os problemas relacionados à semântica eram prioritários em relação aos de reprodução realística da dimensão visual do mundo Santos 2003 10 Do Altiplano Central procedem dois manuscritos de formato estilo e características tradicionais mas cuja datação é controversa São eles os códices Borbónico e Aubin São considerados como préhispânicos os códices Bórgia Cospi FéjérváryMayer Laud e Vaticano B grupo Bórgia Becker nº 1 Bodley Colombino Nuttall e Viena grupo Nuttall Todos esses procedem da região de Cholula Tlaxcala e oeste de Oaxaca da qual procedem também o Códice Selden do grupo Nuttall mas cuja datação é contro versa Da região maia procedem três códices préhispânicos o de Dresde o de Paris e o de Madri formado pelos códices Cortesiano e Troano e por isso também chamado de Trocortesiano Glass 1975 11 Frank Salomon em uma análise da crônica de Titu Cusi Yupanqui propõe que as duas tradições de escrita e pensamento histórico a cristã e a inca eram tão diferentes e irredutíveis que as traduções eram virtualmente impossíveis Salomon 1982 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 163 Como uma espécie de compensação que não chega a equilibrar nosso co nhecimento das duas tradições no caso andino temos uma acentuada conti nuidade da oralidade Tal continuidade se deveu em parte ao estabelecimento e à manutenção de uma sociedade colonial extremamente cindida e que se manteve até tempos mui recentes de um lado os castelhanos e seus descen dentes ocupantes da costa e por outro os grupos indígenas refugiados ou habitantes tradicionais das montanhas Essa cisão apesar de seu caráter de violência e de exclusão possibilitou a continuidade e a transformação mais lenta de várias comunidades andinas e suas tradições históricas orais o que tornou possível a realização de estudos antropológicos durante o século XX12 A Nahuas e Mesoamérica Penso que entre as diversas características da tradição histórica nahua três merecem destaque por sua quase onipresença nos registros pictoglíficos e na oralidade transcrita durante o Período Colonial 1 a utilização de um preciso e complexo sistema calendário13 como elemento central na organização inte lectual das explicações acerca do passado 2 a localização da época atual após uma seqüência de eras ou idades cujos inícios e finais teriam sido mar cados por criações e destruições cósmicas parciais 3 a centralidade temática do altepetl e seus pipiltin14 nas narrativas acerca do passado mais recente Essas características não são exclusivas dos povos nahuas São encontradas em grupos mesoamericanos anteriores à migração desses povos à Mesoamérica como por exemplo os maias e os mixtecos Aliás a presença dessas carac terísticas aliadas a uma série de outras tem servido justamente para que se estabeleça a pertinência de um grupo à região cultural mesoamericana cuja fronteira norte durante o Período Clássico aproximadamente do início da Era Cristã ao século IX encontravase muito mais ao norte do que durante a época 12 Para completar o desequilíbrio podemos agregar a desigualdade de meu conhecimento como estudioso do México Central em relação às tradições históricas das duas regiões 13 Na língua portuguesa a palavra calendário e suas variações de gênero e número podem ser substantivos ou adjetivos Vocabulário ortográfico da língua portuguesa 1999 130 14 Termos em nahuatl que podem ser traduzidos respectivamente por cidade ou entida de política independente e nobreza local Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 164 de predomínio dos grupos toltecas e nahuas isto é dos séculos X ao XVI Além disso as regiões ao norte Aridamérica e Oasisamérica mantinham constantes relações com a Mesoamérica o que torna possível que algumas dessas características típicas das tradições históricas mesoamericanas fossem compartilhadas com os grupos setentrionais como os nahuas muito antes de suas migrações em direção ao sul De qualquer modo depois da decadência dos grandes e hegemônicos centros urbanos teotihuacanos zapotecas e maias cujo predomínio político e cultural caracterizou o Período Clássico essas características passaram a ser parte integrante das tradições históricas toltecas e nahuas Esses grupos obtive ram uma relativa hegemonia política e cultural na Mesoamérica no Período Pósclássico e simultaneamente adotaram mantiveram e transformaram anti gas características culturais mesoamericanas entre as quais se encontrava o sistema de calendário a concepção das idades anteriores do mundo e a centra lidade dos altepeme15 e seus dirigentes na cosmologia cosmografia e história Na região central do México os novos centros desses novos senhores meso americanos foram Tula Azcapotzalco e por fim MéxicoTenochtitlan Tratemos então das três características mencionadas acima e da importância que possuíam para as tradições históricas nahuas Podemos dizer que a base do sistema calendário mesoamericano era a conta dos dias realizada por meio da combinação de um conjunto de vinte signos chamados de tonalli com um conjunto de treze números que juntos serviam para nomear os dias O conjunto dos tonalli era composto por animais plantas artefatos humanos fenômenos naturais e conceitos abstratos como podemos observar na Tabela 1 que traz seus nomes em nahuatl e suas respec tivas traduções 15 Plural de altepetl Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 165 Tabela 1 Os vinte tonalli Esse ciclo de 260 dias chamavase tonalpohualli palavra proveniente do nahuatl e formada por tonalli que significa ardor calor do sol tempo de estio e que era empregada como sinônimo de dia e por tlapohualli que significa coisa contada ou numerada Desse modo poderíamos traduzir tonalpohualli como contar os dias16 Mas é interessante notar que tonalli também significa alma espírito razão parte porção o que é destinado a alguém ou destino e que tlapohualli também significa história dita ou relatada E assim tonalpohualli poderia ser traduzido também como relatar ou contar algo sobre as almas sobre o quinhão de cada um sobre o que é destinado a cada ser17 Veremos que essa estreita relação 16 Esse ciclo de 260 dias era dividido em 20 trezenas que eram registradas de maneira sincrônica em livros pictoglíficos com finalidades mânticas e chamados de tonalamatl Esses livros eram utilizados por sacerdotes especializados em prognósticos que envol viam todas as esferas da vida nascimentos mortes enfermidades guerras plantios colheitas e etc Não entraremos em detalhe sobre esse ciclo e seus livros corresponden tes pelo fato de que o foco deste artigo será o uso que as tradições históricas nahuas fa ziam de um outro ciclo calendário a conta dos anos 17 Todas as análises dos termos em nahuatl e suas traduções foram feitas a partir do vo cabulário do frei Alonso de Molina Molina 2001 e do dicionário de Rémi Siméon Rémi Siméon 1997 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 166 entre contar o tempo e narrar sobre os destinos permeava o pensamento histó rico nahua e era utilizada também na conta dos anos e seus registros dois quais trataremos a seguir A partir da conta dos dias os povos mesoamericanos nomeavam e conta vam os anos sazonais cuja duração havia sido precisamente definida em 365 dias18 O nome do primeiro dia do ano sazonal no tonalpohualli servia para nomeálo Imaginemos que hoje é o dia 1 acatl cana e que esse é o primeiro dia do ano sazonal esse ano se chamará 1 acatl Mas como o ano sazonal é maior do que o ciclo de 260 dias o próximo ano sazonal não começará nova mente no dia 1 acatl mas no 106o dia do ciclo seguinte do tonalpohualli Que dia será esse Os vinte signos do tonalpohualli cabem dezoito vezes no ano sazonal de 365 dias e sobram cinco dias isto faz que o signo que nomeia o ano chamado de portador ou carregador do ano salte de cinco em cinco signos dentre os vinte tonalli Como o conjunto dos signos é formado por vinte ao final de quatro anos se regressa ao primeiro signo Em outras palavras se o primeiro ano teve como signo acatl que é o décimo terceiro signo o segundo ano terá o décimo oitavo signo isto é tecpatl o terceiro ano terá o terceiro signo isto é calli o quarto ano terá o oitavo signo isto é tochtli e no quinto ano voltase ao signo acatl Portanto dentre os vinte signos do tonalli apenas quatro serviam para nomear os anos 18 Há uma polêmica acerca da utilização de mecanismos de ajuste entre o ciclo calendá rio de 365 dias e a duração do ano solar aproximadamente de 365 dias e um quarto Alguns estudiosos como Víctor Castillo Farreras Castillo Farreras 1971 acreditam que havia uma espécie de ano bissexto ou correções regulares mecanismo indispensável para que o início do ano calendário e suas subdivisões coincidissem de maneira regular com as estações Outros estudiosos como Michel Graulich Graulich 1990 acreditam que não existia tal mecanismo e que ao longo do tempo houve uma grande defasagem entre o início do ano calendário suas subdivisões e as estações Um outro grupo de estudiosos dentre os quais podemos citar Gordon Brotherston Brotherston 1997 propõe ainda que um sistema de calendário que teve uma continuidade de uso tão ampla e que possuía subdivisões do ano marcadas por celebrações e festividades claramente relacionadas com as estações seguramente possuía um mecanismo de correção Acreditam no entanto que tal mecanismo não era empregado de modo tão regular como o mecanismo do ano bissexto e que funcionava a partir da observação dos solstícios e da conferência da posi ção das Plêiades no meio da noite em que se comemorava o início do ano calendário quando então essa constelação deveria ocupar o zênite A defasagem da ocorrência do solstício e da posição das Plêiades em relação ao calendário poderia servir para de tem pos em tempos se fazer correções Para um balanço geral da questão Tena 1992 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 167 Mas e quanto aos números que acompanham os vinte signos do tonalli para nomear os dias Será que apenas quatro números acompanhavam os quatro signos do tonalli que nomeavam os anos Isso aconteceria se tivéssemos vinte números para acompanhar os vinte signos do tonalli pois desse modo teríamos uma seqüência de vinte combinações fixas entre os números e os sig nos na conta dos dias Mas vimos que eram treze os números que se combina vam com os vinte signos para nomear os dias e conseqüentemente para no mear os anos Como os treze números do tonalpohualli cabem vinte e oito vezes no ano sazonal de 365 dias e sobra um os números dos dias com os quais os anos iniciamse avançam de um em um Em outras palavras se o primeiro ano teve como dia inicial 1 acatl o segundo ano terá 2 tecpatl o terceiro ano terá 3 calli o quarto ano terá 4 tochtli o quinto ano terá 5 acatl e assim sucessiva mente até se operarem todas as possíveis combinações entre os quatro signos e os treze números que caem como dias iniciais dos anos sazonais o que resulta em uma série de 52 anos após os quais os nomes dos anos se repetem Esses anos sazonais eram chamados de xihuitl e seu ciclo de 52 anos era chamado de xiuhmolpilli19 Esse ciclo calendário de 52 anos sazonais era a base organizacional dos livros em forma de anais chamados xiuhamatl por meio dos quais diversos grupos mesoamericanos narraram a história do próprio grupo suas origens migrações guerras e dinastias reinantes Vale notar que os dois ciclos o de 260 e o de 365 dias integravamse perfeitamente formando um só sistema pois a repetição da combinação entre ambos davase justamente a cada 52 anos sazonais ou 73 ciclos de 260 dias pois nos dois casos temos um total de 18980 dias20 Quando o primeiro dia do xihuitl encontravase com o primeiro dia do tonalpohualli se celebrava a festa 19 Além disso cada ano sazonal era dividido em dezoito períodos de vinte dias chama dos de vintenas e marcados pela passagem completa dos vinte signos do tonalli mais cinco dias finais considerados baldios ou ocos chamados de nemontemi Em outras palavras o ano que se iniciou por exemplo com 1 acatl teria todas suas dezoito vinte nas iniciadas com acatl e depois cinco dias finais considerados aziagos 20 A integração entre os dois ciclos que formam o sistema de calendário mesoamericano é tão complexa e completa que em última instancia podemos considerar o xiuhmolpilli isto é o ciclo de 52 anos sazonais como uma das partes de um grande tonalpohualli de anos sazonais pois 52 é a quinta parte de 260 Em outras palavras cinco ciclos de 52 anos sazonais conformam um grande ciclo de 260 anos sazonais o qual por sua vez pode ser subdividido em 365 ciclos do tonalpohualli Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 168 do Enlace dos Anos ou Fogo Novo momento muito celebrado e importante para a visão de mundo nahua e sua concepção de história pois acreditavase que em um desses finais de ciclos o mundo voltaria a sofrer cataclismos que poderiam marcar o final de mais uma era ou idade É possível que alguns povos setentrionais que migraram para o México Central entre eles os nahuas já utilizassem essa conta calendária antes de suas migrações Embora não se possua nenhuma prova material direta de sua utili zação em tempos prémigracionais creio que podemos fazer essa inferência a partir do fato de que diversos livros cosmogônicos e de anais de distintos grupos nahuas e chichimecas possuem uma abrangência temporal uma con tinuidade narrativa e uma coerência de dados e datas que dificilmente poderia ser resultado apenas de elaborações posteriores à entrada desses grupos na região mesoamericana Pareceme muito mais provável que esses grupos setentrionais possuíssem desde tempos prémigracionais indivíduos ou instituições responsáveis pela elaboração de histórias grupais e de explicações acerca das origens do mundo e do homem E que tais indivíduos ou instituições se serviam de parte do siste ma calendário mesoamericano ou de alguma conta calendária similar que pôde ser transposta ao sistema mesoamericano Tal hipótese é reforçada pelo fato de que esses grupos compartilhavam uma série de outros traços culturais com os povos mesoamericanos como por exemplo as concepções cosmográficas com os quais mantinham também ativas relações comerciais21 É claro que depois das migrações e da posição de destaque que alguns desses povos setentrionais conseguiram entre os antigos povos mesoamerica nos como aconteceu por exemplo com os mexicas tais histórias e cosmo gonias foram reelaboradas de acordo com as novas demandas e as posições políticas ocupadas dentro das intricadas redes de poder e de alianças No caso dos mexicas são os relatos desse período pósmigracional e de hegemonia 21 No entanto existe uma polêmica sobre a origem dos grupos nahuas Na verdade não temos certeza se vieram de fora da Mesoamérica de dentro ou se regressaram a ela De acordo com suas próprias fontes os nahuas seriam chichimecas denominação geral dada aos coletorescaçadores que habitavam ao norte da Mesoamérica que migraram Mas esse discurso pode ser parte de uma estratégia política que reivindicava essa ori gem valorizada por sua valentia e bravura guerreiras para justificar os domínios po líticos e tributários sobre outros povos Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 169 política que chegaram até nós por meio de códices pictoglíficos textos alfabéticos ou obras híbridas do Período Colonial e que expressam a produção da tradição histórica mexica durante os séculos XV e XVI22 O Códice Vaticano A 1996 é um bom exemplo para entendermos de modo mais concreto as afirmações feitas acima acerca da tradição histórica nahua e do uso da conta dos anos como elemento organizador das narrativas acerca do passado Nesse códice temos uma grande seção que se constitui como um livro de anais em nahuatl xiuhamatl Esses anais narram a história da migração mexica desde a passagem por Chicomoztoc passam pelo esta belecimento e fundação de MéxicoTenochtitlan e chegam até a época da con quista e princípios da colonização castelhana Em outras palavras temos nesse códice uma seqüência narrativa de quase quatrocentos anos na qual podemos observar claramente que a conta dos anos sazonais marcada pela seqüência ininterrupta dos glifos de todos esses anos possui uma função muito específica fornecer uma espécie de lógica organizacional sobre a qual eram inseridos os registros pictoglíficos dos eventos Curiosamente mas talvez sintomaticamente esses anais terminam com umas quantas páginas quase em branco pp 94v96v nas quais temos apenas os glifos da conta dos anos Em verdade não sabemos se as páginas ficaram sem os registros pictoglíficos dos eventos que corresponderiam aos anos marcados ou se os glifos da conta dos anos foram pintados antes dos anos que estão sendo marcados como uma espécie de estrutura prévia à espera de uma seleção de uma combinação e de uma construção de eventos que seriam aí encaixados A confirmação da segunda hipótese reforçaria a posição estrutural que estou atribuindo à conta dos anos para a organização das narrativas históricas nahuas No caso dos Anales de Cuauhtitlan 1945 texto alfabético produzido em meados do século XVI e cujos autores provavelmente procediam de Cuauhtitlan cidade de origem nahua e vizinha de MéxicoTenochtitlan também podemos perceber o uso da conta dos anos como elemento organizador de uma narrativa temporalmente muito ampla O texto narra a história dos grupos chichimecas 22 Vale lembrar que se as explicações acerca do passado cumprem funções ideológicas como por exemplo a legitimação do poder político de um grupo necessitam de uma ampla aceitação Desse modo é mais eficaz que as novas explicações históricas não se produ zam a partir de uma ruptura total com as antigas mas sim a partir reelaborações con tinuidades ou rupturas aparentes Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 170 principalmente dos mexicas e dos cuauhtitlanenses desde princípios do século VII dC até princípios do século XVI e apresenta claros indícios de ter tido a antigos livros pictoglíficos de anais como base de sua confecção Um desses indícios é a própria maneira de utilização da conta dos anos sazonais que funciona no texto como uma espécie de fio condutor que estrutura uma narrativa cujos eventos se dividem e se distribuem de modo desigual ao longo das partes dessa conta isto é ao longo dos anos do xiuhmolpilli Vale notar que os nomes de todos os anos são citados de forma completa e ininter rupta por quase novecentos anos mesmo que durante uma grande série de anos não haja eventos narrados Esse tipo de emprego da conta dos anos é em tudo semelhante ao que possuía nos anais pictoglíficos como vimos no caso do Códice Vaticano A nos quais o xiuhmolpilli também aparecia de forma contínua e ininterrupta suportando e estruturando o registro pictoglífico dos eventos e das personagens que se distribuíam de forma desigual em seu decorrer Tanto no caso dos anais pictoglíficos do Códice Vaticano A como no caso do texto alfabético dos Anales de Cuauhtitlan creio que podemos perceber claramente que não há nenhum outro tipo de divisão interna ou de elemento estruturante da narrativa a não ser a ininterrupta presença da conta dos anos sazonais a qual no caso do Códice Vaticano A segue marcada mesmo quando já não há eventos registrados Desse modo creio que é lícito propor que a pre sença da conta dos anos sazonais era parte integrante da explicação histórica da tradição nahua e portanto parte também da própria percepção de passado Dito de outro modo para a tradição histórica nahua narrar o que aconteceu implicava em localizar temporalmente os eventos em uma conta anual que pos suía duas dimensões muito claras e distintas a sincrônica e a diacrônica A sincronia provinha do fato de que os anos sazonais como vimos ante riormente se repetiam a cada 52 anos e junto com eles suas qualidades Sendo assim registrar o que aconteceu nos anos passados era uma forma de se co nhecer essas tais qualidades que regiam os aconteceres e desse modo conhecer relativamente o que iria ocorrer nos anos presentes ou futuros É a famosa relação entre história e profecia que existe em todas as tradições histó ricas mesoamericanas e que encontrase presente sobretudo nos livros maias conhecidos como chilames23 Mas ao mesmo tempo seja nos textos pictoglí 23 Dentre os inúmeros chilames o mais conhecido é o Chilam Balam de Chumayel Libro de Chilam Balam de Chumayel 2001 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 171 ficos ou nos alfabéticos esses ciclos estão dispostos de maneira sucessiva e são acompanhados por eventos também sucessivos como por exemplo a ascensão e morte de um soberano fato que garante o inequívoco e preciso registro da diacronia O sistema calendário nahua e mesoamericano em geral também possuía uma estreita relação com a concepção cosmográfica Para os mesoamericanos o espaço dividiase verticalmente em um série de níveis celestes e inframun danos e horizontalmente em quatro rumos ou direções e um centro Todas as subdivisões dos ciclos calendários que compunham o sistema mesoamericano estavam relacionadas principalmente com as quatro direções do mundo hori zontal Desse modo as trezenas que compunham o tonalpohualli se relacio navam sucessivamente com os rumos do universo começando pelo oriente passando depois pelo norte pelo ocidente e chegando ao sul girando pelo horizonte no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio Esse mesmo mo vimento do tempo pelas direções do universo era atribuído ao ciclo dos anos sazonais no qual cada ano se relacionava com uma das direções Todas essas direções além dos próprios números e signos que marcavam os dias e anos eram portadoras de qualidades e características específicas e que assim carregavam o tempo com influências e qualidades distintas confor me sua direção de procedência Desse modo para a tradição histórica nahua o tempo não era uma entidade absoluta apenas quantificável e desprovida de qualidades inerentes mas algo que trazia sempre sua própria carga de destino seu tonalli a qual deveria ser entendida para que o homem pudesse no caso de um tempo propício obrar em consonância ou no caso de uma carga adversa tentar reverter ou anular seus efeitos Essa mesma forma de localização temporal também encontrase presente nos relevos em pedra e outros monumentos onde é marcada por meio do em prego dos mesmos glifos calendários que estão nos códices pictoglíficos24 O problema é que na maioria dos relevos e dos monumentos temos apenas uma data e não toda uma longa seqüência do xiuhmolpilli fato que por vezes gera incertezas na determinação dessa data dentro da seqüência de ciclos de anos 24 Como exemplo poderíamos citar a famosa Pedra do Sol ou a lápide de inauguração do Templo Maior ambas na Sala Mexica do Museu Nacional de Antropologia México DF que trazem respectivamente as datas 13 acatl e 8 acatl correspondentes a 1479 e 1487 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 172 sazonais ou seja muitas vezes não sabemos se tal data se refere a um ano x ou ao ano x menos 52 anos ou ainda ao ano xmais 52 anos e assim por diante No entanto não devemos nos esquecer que isso não deveria ser um problema para os contemporâneos dessas inscrições e monumentos que certamente possuíam uma série de outros referenciais externos a tais inscrições e monumentos os quais permitiam localizar tais datas de forma muito precisa entre os diversos e sucessivos ciclos do xiuhmolpilli fazendo assim que a di mensão diacrônica dessas datas estivesse assegurada Esse mesmo sistema de cômputo temporal também foi utilizado para a ela boração de explicações que versavam sobre um passado muito mais distante no qual tiveram origem os deuses o mundo e os homens Os nahuas assim como todos os grupos considerados mesoamericanos explicavam esse distante passado dividindoo em diversas idades ou sóis nos quais as atuações dos deuses eram centrais para o desabrochar e o declinar de cada um deles os quais em geral terminavam por grandes cataclismos Vale notar que esses iní cios e finais de idades não eram totais ou seja cada idade possuía elementos que se transformavam e continuavam existindo na outra gerando uma espécie de aperfeiçoamento do mundo dos homens e de seus alimentos vegetais aper feiçoamento esse que culminou na idade e humanidade atuais Essa humani dade seria dependendo da versão a quarta ou quinta e se caracterizaria pela utilização do milho como alimento por excelência O que nos interessa aqui é o fato de que os ciclos de 52 anos serviam tanto para contabilizar as explicações acerca do passado mais distante como do pas sado mais recente Creio que isso reforça a hipótese de que o sistema calendário com suas dimensões sincrônica e diacrônica desempenhava um papel central para a percepção de passado distante ou recente e para a construção de narrativas explicativas por parte da tradição histórica nahua Tal fato nos indica também que para os nahuas inexistia uma distinção qualitativa ou uma ruptura temporal entre a percepção desses dois tipos de passado Apesar dessa continuidade estruturalcalendária entre as narrativas acerca do passado mais distante e mais recente havia uma importante distinção entre as duas modalidades de relato No caso das narrativas acerca das idades do mundo predominava uma grande síntese ou seja cada idade era narrada como um todo no qual se destacavam as ações divinas de criação e destruição o nome da idade em questão o tipo de homem que existia o cataclismo que a encerrou e as mutações pelas quais passaram os homens e outros animais além é claro de sua duração contabilizada em anos sazonais25 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 173 De modo geral depois de narrar essas quatro ou cinco idades por vezes enfatizando e detalhando um pouco mais as explicações acerca do início da humanidade atual esses textos cosmogônicos e históricos seguem com os episó dios que tratam de Tula de Quetzalcoatl e dos toltecas quando então os relatos ganham mais detalhes e em geral adotam propriamente a forma de anais forma essa que continua na narrativa dos eventos mais recentes como as migrações e os estabelecimentos dos altepeme nahuas na região central do México Talvez isso indique a existência de uma concatenação narrativa típica da tradição histó rica nahua a qual encaixava a história mais recente dentro de uma seqüência cosmogônica marcada pela existência das diversas idades ou sóis anteriores Em outras palavras talvez essa localização da história grupal dentro de um marco temporal mais amplo fornecido justamente pelas chamadas narrativas cosmogô nicas fosse parte integrante dessa tradição histórica26 No entanto a existência dessa concatenação dos relatos cosmogônicos e históricos não é uma unanimidade entre os estudiosos27 Muitos afirmam que as histórias indígenas préhispânicas caracterizavamse pela centralidade do altepetl e que essas histórias mais gerais produzidas no Período Colonial seriam o resultado da influência das histórias universais cristãs as quais leva ram os indígenas a reunir em textos únicos as histórias locais e as narrativas cosmogônicas construindo assim uma estrutura mais próxima dos textos do Velho Testamento sobretudo do Pentateuco28 E essa centralidade do altepetl nas narrativas oriundas das tradições histó ricas nahuas é justamente a próxima característica a ser tratada 25 De acordo com o texto da Historia de los mexicanos por sus pinturas 1996 por exem plo as idades anteriores à atual duraram respectivamente 676 anos treze ciclos de 52 novamente 676 anos 364 anos sete ciclos de 52 e 312 anos 6 ciclos de 52 Tratamos desse tema em detalhes em uma outra ocasião Santos 2002 26 Essa estrutura narrativa pode ser observada nos seguintes textos alfabéticos e códices coloniais nahuas Anales de Cuauhtitlan 1945 Leyenda de los soles 1945 Historia de los mexicanos por sus pinturas 1996 e Códice Vaticano A 1996 Tal estrutura pode ser observada também no texto do Popol Vuhl 1996 que narra a história grupal dos quichés depois da cosmogonia e nas estelas maias que localizavam temporalmente os feitos recentes por meio da conta longa a partir de uma data inicial 13 ou 14 de agosto de 3113 aC a qual marcaria justamente o início da atual idade 27 Uma de suas principias defesas encontrase em Brotherston 1997 28 Entre esses estudiosos podemos destacar Navarrete Linares 2000 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 174 A maior parte dos escritos nahuas conhecidos sejam pictoglíficos tradi cionais pictoglíficos adaptados às demandas coloniais ou ainda alfabéticos são anais que possuem como temas centrais a história de unidades políticas independentes conhecidas como altepetl Tal centralidade também é confirmada pela concepção cosmográfica reinante na Mesoamérica na qual o espaço se dividia verticalmente em um série de níveis celestes e inframundanos e horizontalmente em quatro rumos ou direções e um centro ocupado justamente por cada altepetl que se concebia portanto como o umbigo do mundo Como vimos acima em algumas narrativas alfabéticas indígenas coloniais esses anais aparecem depois de uma seção que abordou a cosmogonia e suas várias criações e destruições sobrepostas apresentando as histórias locais ou seja a história de determinados grupos e seus altepeme como um capítulo inserido em histórias mais amplas as quais abarcariam desde as origens do mundo e do homem passariam pelas histórias tolteca e das migrações de cada grupo e chegariam até o passado imediatamente anterior à produção de tais narrativas No entanto muitos dos anais pictoglíficos nahuas como por exem plo a Tira de la peregrinación também chamada de Códice Boturini 1975 iniciamse simplesmente com a história migracional do grupo ou no máximo com a história tolteca não contando assim com a presença de uma seção dedi cada às histórias cosmogônicas Isso pesa a favor da hipótese de que as narrativas que possuem a tal conca tenação cosmogonia história tolteca e histórias locais sejam na verdade uma tentativa indígenacolonial de adaptar as explicações históricas e cosmogônicas nahuas tradicionais a uma estrutura mais próxima das histórias universais cristãs Talvez tais relatos existissem de forma mais ou menos independente e em princí pios dos tempos coloniais tenham sido conectados pelos informantes alunos indí genas e religiosos dos colégios missionários principalmente franciscanos para que tivessem formatos similares aos das histórias cristãs de então De qualquer modo a maioria dos textos pictoglíficos ou alfabéticos produzidos pelos grupos nahuas que se estabeleceram no Vale do México apre sentam uma história mais curta em termos temporais e caracterizada pela aten ção central dedicada aos processos de migração à história tolteca e ao esta belecimento definitivo dos altepeme e suas linhagens de governantes Tais linhagens quase que invariavelmente relacionavamse com os toltecas fato que era evocado como fonte de legitimidade para os papéis que cada nova entidade política da região desejava ocupar herdeiros dos toltecas no controle político e comercial depois da decadência de Tula por volta do século XII Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 175 A comparação entre tais textos mostranos a existência de enormes se melhanças estruturais e narrativas entre as histórias particulares de cada altepetl Uma dessas semelhanças reside na existência de fórmulas narrativas comuns ao se tratar de eventospadrão como por exemplo a partida da terra original o estabelecimento definitivo do altepetl suas alianças e conflitos Navarrete Linares 2000 Tais similitudes poderiam ser fruto de fortes contatos entre as tradições históricas dos diversos grupos nahuas ou resultado da deri vação de todas essas narrativas de um modelo histórico comum talvez de ori gem tolteca ou ainda teotihuacana Além disso tais similitudes possuíam im portantes funções políticas pois é sabido que os anais históricos dos altepeme nahuas desempenhavam a função de legitimar a ocupação de determinados territórios e o estabelecimento de fronteiras territoriais e políticas em pleitos intergrupais tarefa para a qual era conveniente utilizarse de uma linguagem e de uma estrutura reconhecida de forma universal Em outras palavras os anais deveriam ser uma voz particular que defendesse os interesse do altepetl mas uma voz particular que compartilhasse elementos reconhecíveis e aceitos pelas tradições históricas vizinhas Navarrete Linares 2000 Por outro lado dentro do altepetl os anais também funcionavam como uma espécie de atestado de legitimidade para a posição ocupada pelas elites dirigentes diante dos demais grupos sociais pois registrava como seus ante passados sangüíneos ou funcionais eram os responsáveis pela condução das migrações pela fundação do próprio altepetl e pelas conquistas dos territórios e alianças Devido a essas funções legitimadoras as instituições e pessoas res ponsáveis pela produção dos anais encontravamse no interior dos grupos governantes ou pelo menos relacionavamse de forma muito estreita com eles Prova disso é que seus temas mais comuns eram as linhagens de pipiltin as mudanças de governantes e os eventos que afetavam o altepetl como corporação como por exemplo as migrações as fundações as guerras os con flitos dinásticos e alguns fenômenos naturais29 29 É muito comum que os anais nahuas registrem os terremotos e os fenômenos celestes menos freqüentes como os eclipses as passagens de cometas ou a queda de meteoros fenômenos para os quais existiam glifos específicos Esses fenômenos poderiam ser inter pretados como prenúncios de importantes eventos Novamente temos a relação entre his tória e profecia o passado poderia contribuir para revelar o futuro ou explicar o presente Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 176 Essa estreita relação entre elites governantes e tradição histórica chegou inclusive a se institucionalizar entre os mexicas por meio do calmecac espécie de centro de formação freqüentado pelos jovens descendentes dos grupos governantes e sacerdotais30 Nessa instituição eram produzidas e transmitidas por meio de códices pictoglíficos e da oralidade31 as explicações cosmo gônicas e históricas as quais inseriamse em meio de uma série de outros sabe res como por exemplo a arte da guerra e do sacerdócio Como conseqüência dessa dupla função legitimadora desempenhada pelos anais das tradições históricas nahuas cada altepetl ou grupo político procurava criar versões históricas mais vantajosas para si O resultado é que temos assim uma verdadeira polifonia de versões no que diz respeito às etapas mais recentes da história principalmente quando os temas são o estabelecimento territorial as conquistas e expansões o estabelecimento das elites dirigentes e as alianças com altepeme vizinhos Navarrete Linares 2000 No entanto no que diz respeito às etapas anteriores que tratam da cos mogonia ou da história tolteca parece haver uma concordância maior entre as distintas vozes principalmente quando se trata de estabelecer os toltecas como antecessores das linhagens governantes ou de situar a criação da huma nidade atual em Teotihuacan Essas coincidências reforçam a hipótese lançada mais acima isto é que as diversas tradições históricas possuíam muitos con tatos ou baseavamse em tradições históricas anteriores talvez de origens toltecas ou teotihuacanas É esse tipo de tradição histórica nahua que entrará em contato e se con frontará com os castelhanos e com a tradição histórica cristã no século XVI Veremos os resultados desse encontroconfronto depois de caracterizarmos as tradições históricas incas 30 Inclusive o discurso dos sábios e anciãos poderia ser chamado de calmecatlahtolli sendo que tlahtolli significa discurso palavra história ou relato 31 A relação entre os escritos pictoglíficos e a oralidade não era de equivalência restrita e direta A recitação oral que ocorria em ocasiões especiais e determinadas interpretava e se expandia a partir dos escritos que por sua vez traziam elementos que estavam além das palavras faladas e que permaneciam inalterados ao longo do tempo Ambos eram partes de um sistema maior de comunicação Lockhart 1992 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 177 B Incas e Andes Como apontamos acima as tradições históricas incas de tempos préhispâ nicos e andinas em geral são bem menos conhecidas do que as mesoameri canas Tal deficiência devese principalmente à escassez de fontes documen tais produzidas por tais tradições em tempos préhispânicos ou coloniais o que talvez relacionese com o papel preponderante que era desempenhado pelas narrativas orais e por formas de registro muito distintas das que tradicionalmente reconhecemos como tais como por exemplo os ceques32 Somase a isso a nossa incapacidade de entender completamente os sentidos que eram veiculados por fontes como os quipus os pallares ou os tocapus33 Devido a tal deficiência recorreremos a dois campos de estudo que podem nos proporcionar de forma indireta algumas informações e características das tradições históricas incas Um desses campos é o que trata da visão de mundo andina cuja impor tância reside no fato de que nela certamente estão os marcos teóricos e con ceituais dentro dos quais as tradições incas operavam e construíam suas expli cações sobre o passado Tais estudos utilizamse além das fontes materiais e escritas coloniais dos trabalhos antropológicos realizados no século XX os quais demonstram a vigorosa continuidade das tradições orais andinas res ponsáveis pela manutenção de relatos muito semelhantes aos poucos que foram transcritos no Período Colonial O outro campo é composto pelos estudos his tóricos e literários que se dedicam às crônicas coloniais que trataram da história e dos costumes andinos as quais contaram em suas produções com a partici pação de membros da sociedade inca ou de indivíduos que transitavam entre os dois mundos como por exemplo Guamán Poma de Ayala 32 Os ceques eram linhas ou caminhos demarcados na paisagem por meio das guacas objetos ou lugares sagrados muitos dos quais relacionados com os antepassados Dessa forma os ceques eram um meio de se fixar ou relacionar a lembrança dos antepassados e dos acontecimentos a eles vinculados com a geografia local Veremos que ao longo dos ceques eram proferidos discursos e encenados episódios sobre o passado 33 Além dos famosos quipus cuja parte da polêmica foi exposta anteriormente existe também uma discussão acerca dos significados dos pallares conjunto de desenhos e signos muito freqüentes na cerâmica mochica e dos tocapus desenhos e motivos geo métricos utilizados nos tecidos das vestimentas principalmente dos grupos sociais hie rarquicamente superiores nas sociedades andinas Millones 1987 7374 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 178 Tomando por base esses estudos apresentaremos algumas concepções da visão de mundo andina e inca que seriam fundamentais para a construção de explicações acerca do passado como por exemplo as concepções de espaço tempo e acontecimento34 Depois analisaremos algumas textos coloniais que tratam do problema da utilização dos quipus Sabemos que no caso dos incas e povos andinos em geral predominava uma organização dual do espaço baseada na concepção de verticalidade e que tendia a dividir o mundo entre acima e abaixo Talvez a importância dessa divisão relacionese com a enorme valorização das distâncias verticais nos Andes responsáveis pelos enormes contrastes ecológicos entre a costa e a montanha entre as diversas altitudes de montanha e entre essas diversas altitudes e a planície da Amazônia Desse modo era fundamental para a população de qualquer região andina estabelecer relações baseadas no princípio da reciprocidade ou manay de escambo ou comércio com outras populações ou ainda possuir territórios e enviar colonizadores chamados de mitmag a regiões de outras altitudes e portanto com outros meios ecológicos Stern 1986 2532 A indispensabilidade das relações entre as populações de diversas altitudes talvez tenha se formalizado intelectualmente e se explicitado por meio da con cepção de uma separação fundamental entre o acima ou hanan conceito que se traduz por vida ordem e luz e o abaixo ou hurin traduzível por morte desordem e trevas Vale notar que não se tratava de uma divisão do mundo em categorias binárias agonísticas e essencialmente distintas mas sim de uma polaridade complementar dentro da qual o mundo e seus seres transitavam constantemente de um lado a outro Por exemplo a polaridade mortevida era vista como uma longa transição entre dois estágios do maciomole para o áspe roduro Assim o momento da morte em si não marcava uma divisão binária entre dois estados completa e essencialmente diferentes mas sim um passo a mais no longo processo que possuía em seus extremos polares o macio e o mole de um lado características fortemente presentes nos seres jovens e o 34 Vale frisar que os incas assim como os nahuas eram integrantes de uma região cultu ral geograficamente muito ampla e historicamente muito antiga à qual podemos cha mar de mundo andino ou simplesmente Andes Desse modo sua visão de mundo e suas explicações acerca do passado devem ser entendidas como parte de uma tradição de pen samento muito mais ampla da qual os incas eram partícipes ativos mas não seus únicos criadores ou portadores Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 179 duro e o áspero em outro características predominante nos seres velhos e de pois no cadáver no esqueleto e por fim nas pedras que eram vistas como os antepassados mortos em um estágio posterior Fraser 2002 Desse modo poderíamos dizer que no mundo andino os homens começavam a morrer antes da morte e continuavam a morrer depois dela Quando essa concepção era aplicada à geografia gerava uma divisão do espaço em pares de opostos que poderiam abranger de uma só vez toda a região andina e simultaneamente suas micro regiões Em outras palavras poderíamos pensar na costa e na montanha como respectivamente hurin e hanan no entanto cada uma dessas partes por exemplo a montanha possuía também suas subdivisões internas entre acima e abaixo Montoya Rojas 1998 Essa divisão do espaço e dos seres entre hanan e hurin35 somavase a uma outra divisão do mundo horizontal em quatro partes e um centro como também acontecia na Mesoamérica com o conceito de quincunce espécie de divisão do mundo horizontal como uma flor de quatro pétalas e um centro Essa con cepção foi aplicada pelos incas na organização política e tributária das regiões dominadas chamadas em sua totalidade de Tahuantinsuyu e que se dividiam em 1 Antisuyu correspondente ao norte região quente e úmida e caracteri zada pela floresta amazônica 2 Cuntisuyu correspondente ao sul região quente e seca e caracterizada pela costa do oceano Pacífico 3 Chinchasuyu correspondente ao oeste região úmida e fria 4 Collasuyu correspondente ao leste região seca e fria Cuzco era o centro dessa grande flor de quatro pétalas e um microcosmos que reproduzia a totalidade dos territórios dominados e do qual como veremos em detalhe saiam caminhos que registravam sentidos e significados da contagem do tempo e do passado na paisagem eram os ceques De forma muito relacionada a essa concepção espacial podemos dizer que para os povos andinos o tempo fluía de cima para baixo de hanan a hurin Essa concepção de tempo teve uma enorme implicação na concepção de 35 A importância e centralidade dessa divisão polar para o mundo inca aliada a outros indícios levou alguns estudiosos a proporem que a existência de dois incas soberanos simultâneos yanantin ou casal era na verdade a norma As lutas entre eles serviri am para definir quem seria hanan vencedor ou hurin perdedor O inca hanan atuaria fora de Cuzco nas conquistas nas cobranças de tributos mita e no sistema distributivo O inca hurin atuaria em Cuzco e estaria mais vinculado ao universo cerimonial Na maioria dos textos e crônicas coloniais teria havido uma transformação desse poder dual em genealogias de monarcas que se sucediam Pease 1995 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 180 passado e de história desenvolvida pelos andinos Segundo essa concepção os homens nascem solares e suaves e se tornam mais escuros e duros em um pro cesso contínuo para o qual a morte é ao invés do inverso da vida a transfor mação dos homens em pedras em terra e em montanhas os homens mortos passavam a povoar o mundo sob outras formas e desse modo continuavam sempre presentes Uma das formas de materialização dessa transformação eram as guacas seres que faziam com que o passado se tornasse parte do mundo atual e os mortos seguissem vivos abaixo da terra ou ainda como múmias ou malquis Essa presença material efetiva e latente do passado tornava possível seu retorno Isso acontecia porque o tempo era responsável pelo movimento do mundo trazendo as coisas de acima para baixo e as de baixo para acima cau sando a inversão dos espaços ocupados pelos seres e provocando assim um pachacuti momento em que o hurin se tornava hanan e viceeversa uma espé cie de cataclismo natural ou social que marcava o momento de transição para uma nova ordem de coisas O termo pachacuti parece ter tido sua origem a partir do nome de Pachacuti Inca Yupanqui soberano inca que viveu entre 1438 e 1471 e que se tornou muito conhecido e respeitado por ter tomado o poder de seu pai a quem acu sava de ser muito tolerante com os inimigos e por ter conseguido derrotar os changas principal obstáculo no processo de expansão inca A conquista dos changas teria ocorrido com a ajuda das pedras tidas como antepassados que ressuscitaram e se tornaram guerreiros Desse modo podemos ver como essa concepção era fundamental para a tradição histórica inca explicar suas próprias conquistas e particularmente o momento a partir do qual começaram a se posicionar como os mais importantes senhores dos Andes e possuidores de um grande aparato estatal ao qual certamente a tradição histórica estava incorporada Veremos mais adiante que esse mesmo conceito foi utilizado para explicar a conquista castelhana tida como um pachacuti a partir do qual o mundo se colocou de cabeça para baixo Para completar essa estreita relação entre tempo e espaço36 parece que os incas utilizavam marcas na paisagem para contar o tempo e explicar o pas 36 As concepções de tempo e de espaço de uma determinada sociedade relacionamse de modo muito estreito chegando a formar uma verdadeira unidade no processo de apreen são e de explicação da realidade Essa unidade tem sido denominada de cronotopo ca tegoria utilizada analiticamente nos estudos de produções narrativas e literárias o que a torna virtualmente aplicável também aos estudos históricos que utilizam textos e crôni Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 181 sado Os dias que compunham o ano solar chamado de guata eram contados com ceques que saíam de Cuzco e iam em direção às distintas posições do nascer do Sol entre um e outro solstício Como citamos anteriormente nos ceques a tradição histórica inca registrava o passado com guacas que poderiam ser altares tumbas ou simplesmente pedras a partir das quais os aconteci mentos eram narrados Tratase de uma forma de registro que se dava em uma geografia acrescida de intervenções humanas e que contava com o funciona mento conjunto de uma tradição oral Além disso ocorriam grandes encena ções nessa paisagem historicizada que segundo o cronista inca colonial Juan Santa Cruz Pachacuti desde os tempos de Pachacuti Inca Yupanqui tratavam dos feitos e conquistas dos soberanos incas37 Além disso é muito conhecido o fato de que os soberanos incas e também muitas outras pessoas de distintos níveis sociais eram mumificados e conti nuavam a ocupar seus palácios ou moradas A concepção que estava por trás dessa prática era a de que os mortos e também o passado continuavam pre sentes sob outra forma continuavam no mundo de hurin abaixo sob a forma de pedras ou de malquis múmias e potencialmente aptos para um retorno quando o mundo passasse por um pachacuti38 Essa concepção do passado como algo que continuava a existir aqui e agora parece ter minorado a necessidade de utilização de uma ampla contagem dos anos Há uma polêmica acerca da existência ou não de tal contagem no mundo andino mas parece que de todos os modos ela não teve um papel de destaque na organização da memória histórica entre os incas Vale ressaltar que não esta mos falando de uma limitação técnica ou conceitual mas sim do papel que a tradição histórica inca dava para a contagem do tempo É sabido que os povos andinos utilizavam várias formas de cômputo do tempo como por exemplo o cas como fontes O conceito de cronotopo ou tempoespaço foi cunhado na Teoria da Relatividade para estabelecer o estreito vínculo entre essas duas dimensões presentes na realidade e na percepção humana do mundo Depois Mikhail Bakhtin aplicou o con ceito à literatura e demonstrou a necessidade da existência de uma concepção coerente de tempoespaço no interior das narrativas literárias fato que garante e torna possível sua inteligibilidade Navarrete Linares 2002 37 Tal informação aparece na obra em quíchua desse cronista intitulada Relación de antiguedades deste reyno del Perú e escrita em 1613 Millones 1987 140141 38 Em tempos coloniais os nobres incas aliados aos castelhanos continuaram a exibir os malquis de seus antepassados em encenações públicas Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 182 próprio ano solar os ciclos de nove meses lunares e as semanas de dez dias mas parece que elas não eram utilizadas para definir e localizar de modo cro nológicolinear os acontecimentos ou mesmo a duração da vida dos indivíduos a qual era computada por ciclos vitais baseados nas condições físicas e na capa cidade para o trabalho Esse assunto é tratado por Guamán Poma de Ayala que sintomaticamente não descreve as diversas idades da vida em ordem cronológica ou seja come çando pela infância e terminando com a velhice Guamán Poma inicia seu relato pela idade considerada mais importante a de maior potencialidade para o trabalho isto é pelo ciclo que vai aproximadamente dos 25 aos 50 anos e que era chamado de auca camayoc no caso masculino e auca camayoc uarmi no caso feminino Depois trata das idades posteriores a esse ciclo de forma progressiva e por fim das idades anteriores de forma regressiva Díez Canseco 1985 É quase inevitável pensar que havia uma relação conceitual na organização e na utilização mnemônica dos ceques que partiam de Cuzco e que continham suas tumbas altares pedras ou guacas com os quipus e seus diversos tipos de nós Isso levanos de volta ao problema da utilização dos quipus como registros mnemônicos que possuíam dimensões narrativas além das quantitativas Como dissemos de início não possuímos reconhecidas traduções ou transliterações coloniais de narrativas supostamente registradas pelos quipus ou veiculadas pela tradição oral quíchua No entanto alguns cronistas coloniais afirmam que os informantes indígenas se baseavam em quipus para lhes relatar acerca da história e de outros temas como por exemplo para se recordar dos pecados durante a confissão A esse respeito na obra Nueva Corónica y buen gobierno Guamán Poma afirma Que los dichos padres del santo sacramento de la confición mande exsaminar su anima y consencia una semana el dicho penetente aunque sea español y el yndio haga quipo de sus pecados39 Afirma também em diversas partes de seu relato que seus informantes tudo sabiam a partir dos quipus e que ele próprio tirou informações deles pues que en los cordeles supo tanto que me hiciera a fuerza en letra40 39 Apud Montoya Rojas 1998a 175 Nessa mesma página Rodrigo Montoya reproduz uma citação de Pérez Bocanegra de 1631 que reafirmaria essa função dos quipus Para este efecto les mandan vayan atando ñudos en sus hilos que llaman Caitu y son los pe cados que les enseñan los cuales parecen añadiendo y poniendo en sus nudos otros que jamás cometieron mandándoles y enseñándoles a que digan es pecado el que no lo es y al contrario 40 Apud Brotherston 1997 118 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 183 Além disso parece que os próprios castelhanos perceberam a existência de dimensões não numéricas de registro nos quipus e assim como no caso dos códices mesoamericanos promoveram grandes queimas para destruir aqui lo que ao juízo cristão continha informações acerca da idolatria Outro argumento a favor de que os quipus possuíam dimensões narrativas é o estudo do caso de um pleito judicial no qual um quipu teria sido apresentado e lido pelos senhores de Hatun Xauxa à Audiencia de Los Reyes em 1561 Esse caso confir maria no mínimo que os cordéis do quipu estavam organizados sistematicamente para representar sempre uma mesma seqüência de categorias de seres homens bata tas lhamas sandálias cerâmicas carvão pescado e etc distribuídas por sua vez em uma outra seqüência cronológica41 Por fim podemos agregar também o caso relatado por Guamán Poma de Ayala dos famosos mensageiros incas ou hatun chasqui que levavam mensagens com quipus os quais especificariam datas e locais e que são equiparados por esse cronista com as cartas42 Além desses testemunhos que relacionam o uso dos quipus com o registro de informações não numéricas sabemos também por relatos do início do Período Colonial que a formação de um experto em quipus chamado de quipucamayoc demorava quatro anos e acontecia em escolas yacha huasi no centro do mun do inca isto é em Cuzco Será que para entender apenas as dimensões numéri cas dos quipus seria necessário tanto tempo Será que estes depoimentos são suficientes para afirmamos que os quipus eram uma espécie de escrita Essa questão nos leva a outro intrincado problema o que é uma escrita43 41 A afirmação que consta nos autos do pleito judicial é a seguinte Los yndios desta tierra tienen cuenta y razon de las cosas que dan a sus señores por quipos que ellos llaman y todo lo que han dado de mucho tiempo atras lo tienen asimismo en sus quipos E saue este testigo que los dichos sus quipos son muy ciertos e verdaderos porque este testigo muchas y diversas veces ha cotejado algunas cuentas que ha tenido con yndios de las cosas que le han dado e le han debido e les ha dado e ha hallado que los quipos que tienen los dichos yndios eran muy ciertos Tal afirmação teria sido feita por Pedro de Alconchel e foi publicada por Waldemar Espinoza Soriano em Los huancas aliados de la conquista tres informaciones inéditas sobre la participación indígena en la con quista del Perú 1558 1560 y 1561 in Anales Científicos de la Universidad del Centro 1 Huancayo 1971 1972 Apud Murra 1985 433 42 As ilustrações que retratam os hatun chasqui encontramse nas páginas 350 e 811 da Nueva corónica y buen gobierno Guamán Poma 1980 43 Não se trata de uma questão meramente nominalista mas sim da utilização analítica do conceito de escrita para a abordagem e a interpretação dos quipus ou outros tipos de registro do pensamento e da fala Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 184 Alguns estudiosos dos quipus andinos Ascher Ascher 1997 e dos códices pictoglíficos mesoamericanos Brotherston 1997 mostram que consi derar como escrita apenas aos sistemas logográficos isto é que registram a fala é uma enorme e preconceituosa redução analítica do mundo ocidental para com outros sistemas de representação do pensamento e da fala Tal redu ção estaria baseada no pressuposto de que a escrita logográfica seja ela foné tica ou silábica é o estágio mais avançado de uma suposta evolução universal dos sistemas de representação do pensamento e da fala ao qual uns poucos povos eleitos teriam chegado Essa suposta evolução teria começado com as pinturas e os sistemas ideográficos no Oriente e Oriente Médio e chegado ao seu mais alto grau com o alfabeto fenício e grego caracterizado pela utilização de signos abstratos que possuem uma relação convencional de correspondên cia quase que exclusiva com a fala44 De acordo com essa visão poderíamos estudar e classificar evolutivamente os sistemas não alfabéticos por aproximações ou carências em relação ao sistema alfabético ocidental Será que agindo desse modo ou seja analisando os sistemas de registros por suas supostas carências e de forma desligada das demandas de suas sociedades produtoras não deixaremos de entender as especificidades de funcionamento as lógicas organizadoras as formas de leitura as relações especí ficas com a oralidade e os usos sociais desses outros sistemas Para os estudiosos que defendem a ampliação do uso analítico do conceito de escrita a oralidade não representaria um dos pólos de um binômio agonís tico no qual encontraríamos no outro extremo a escrita alfabética Em todos os sistemas haveria graus de foneticismo que variariam de um para o outro pois nenhum conjunto de sinais gráficos seria capaz de representar por com pleto a língua falada dependendo em última instância de uma oralidade para lela e complementar De acordo com esses autores o conceito de escrita deveria ser ampliado e entendido como uma forma sistemática de registro que possui sua própria inteireza estrutura interna formato ordem de funcionamento e de leitura e que é utilizada para representar com regularidade sons ou conceitos por meio de sinais gráficos ou outros artifícios e que pode se relacionar com a oralidade de formas diversas e em diversos graus 44 Entre os estudiosos que ainda seguem esse modelo evolucionista no estudo dos siste mas mesoamericanos de escrita podemos citar Manrique Castañeda 1989 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 185 Será que essa concepção mais ampla de escrita abrangeria o sistema dos quipus Caso abrangesse como entender ou ler as informações contidas nos diversos exemplares que chegaram até nós de tempos préhispânicos e colo niais se não possuímos traduções coloniais que explicitem o funcionamento do sistema e se a tradição dos quipucamayocs praticamente já não conta com nenhum representante em nossos dias45 Que importância possuía esse sistema para a tradição histórica inca Que relação possuía com a tradição oral São perguntas para as quais ainda não temos muitas respostas mas sobre as quais vários estudiosos se dedicam atualmente e certamente produzirão trabalhos que nos ajudarão a entender em um futuro muito breve alguns aspectos mais da tradição histórica inca em tempos préhispânicos e coloniais46 Um outro aspecto acerca das tradições históricas incas que merece ser mencionado é sua centralidade e quase exclusividade nas poucas fontes textuais que conhecemos do Período Colonial Vimos que no caso mesoamericano imperava uma certa polifonia de vozes que explicavam de modo central a história de cada altepetl A situação é bem diferente no caso andino pois as informações contidas nas fontes coloniais provêm preponderantemente da tradição histórica inca que era parte de uma memória oficial a serviço de um recente domínio expansionista sobre uma região com pelo menos 6000 anos de história47 Podemos aventar duas explicações para esse fenômeno e que não são necessariamente excludentes Em primeiro lugar podemos pensar que esse quase monopólio inca da his tória andina devase ao tipo de dominação praticada caracteristicamente cen 45 Existem mais de 600 quipus espalhados por coleções públicas e privadas de todo o mundo A maior delas cerca de 300 exemplares encontrase no Museum für Völkerkunde em Berlim Urton 2003 11 46 Vale ressaltar que não se trata de condicionar a existência das tradições históricas incas e andinas a uma forma de registro escrito mas de perceber que o entendimento das possí veis dimensões narrativas nos quipus abriria novas possibilidades de estudo e de conheci mento dessas tradições 47 Vale notar que a antiguidade dos primeiros centros cerimoniais e populacionais na re gião dos Andes é muito maior do que na Mesoamérica com datas que variam entre 4000 aC e 3500 aC na região do lago Titicaca Além disso foram descobertas múmias no norte do Chile que datam de 5000 aC e que possuem sofisticados tecidos e marcas de trepanação Veremos adiante que algumas informações acerca das civilizações andinas anteriores e con temporâneas aos incas encontramse na crônica de Guaman Poma de Ayala na qual a con cepção de que os incas foram os civilizadores dos Andes é muito presente Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 186 tralizadora e que submetia os povos conquistados ou aliados a uma estrutura política econômica e cultural que emanava de seus centros de poder Entre as práticas que faziam parte dessa estrutura estatal e centralizadora inca estavam o estabelecimento de centros de controle político que se sobrepunham às elites locais as quais eram por vezes deslocadas para Cuzco e incorporadas à elite inca o assentamento de etnias estrangeiras nas terras dominadas e o desloca mento de grupos dominados para outras regiões a construção de palácios e bases de guarnições militares e de armazéns para o controle e a distribuição de víve res48 Talvez a centralização política e a imposição de um aparato estatal tenha desarticulado ou submetido as tradições históricas locais cujos membros cer tamente pertenciam às elites locais incorporadas aliadas ou vencidas Em su ma as explicações históricas eram parte integrante do processo de legitimação ideológica do domínio inca e deveriam ser controladas ou emanar de seus centros Em segundo lugar podemos pensar que esse monopólio inca da história andina devase ao fato de que a grande maioria dos textos coloniais sobre a história local procede dos antigos centros de poder e que desse modo contaram em sua produção com informações oriundas da tradição inca ou com a participação de indígenas a ela vinculados Além disso havia um outro motivo para que as elites indígenas locais repetissem a versão inca da história andina pois como veremos em detalhe a seguir estabelecer uma relação de descendência com o passado inca poderia funcionar para a obtenção ou a garantia de privilégios já que o domínio castelhano se consolidou no mundo andino por meio de alianças com a elite inca ou com o que havia restado dela depois dos conflitos iniciais 2 Transformações e continuidades das tradições históricas nahua e inca durante o século XVI e início do século XVII Nesta parte trataremos de caracterizar e analisar comparativamente as transformações e as continuidades pelas quais passaram as tradições históricas nahua e inca diante da conquista e colonização castelhana Para isso utiliza remos sobretudo as fontes produzidas no início do Período Colonial que tra taram da história inca ou nahua como temas centrais e que contaram com a 48 Isso não significa que os modos locais de organização social e de produção eram radi calmente alterados Stern 1986 4953 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 187 participação de membros das tradições históricas nativas O objetivo central não será proporcionar uma análise minuciosa de cada uma das fontes mas sim estabelecer algumas características e reflexões gerais acerca de suas pro duções usos e consumos tarefa para a qual nos serviremos também dos estudos historiográficos A O impacto da conquista militar As conquistas militares dos mundos inca e nahua foram ao mesmo tempo processos muito semelhantes mas também muito distintos Tratemos dessas similitudes e distinções Ambos processos contaram com a participação de castelhanos que a partir de empresas particulares e com a autorização real buscavam estabelecer domínios subordinados à Coroa de Castela Em ambos casos os castelhanos contaram com a participação aliada de grupos indígenas contrários aos domí nios inca e mexica Foi utilizado nos dois casos sobretudo por parte dos con quistadores e seus aliados uma violência um tanto quanto inaudita ou pelo menos pouco usual nos Andes e na Mesoamérica pois as lutas e matanças se direcionaram não apenas contra os guerreiros mas também contra toda a popu lação Além disso as guerras passaram a durar todo o ano e não mais se res tringir a determinadas épocas Em ambos processos a principal justificativa da conquista foi a suposta idolatria dos povos nativos e a obrigação cristã de levarlhes o Evangelho o que resultou na obrigatoriedade da conversão pelo menos formal dos povos aliados ou conquistados e na destruição de tudo que ao juízo cristão estivesse relacionado com as antigas práticas religiosas a con quista políticomilitar era uma empresa inseparável da conversão religiosa tanto que nas duas regiões podemos observar a participação de clérigos desde os primeiros momentos de contato e confronto De acordo com os ideais da Reconquista que regiam a política e a religião ibéricas nesse momento a vitória militar castelhana e de seus aliados formal mente convertidos gerava como conseqüência um outro e inevitável passo isto é a aceitação das explicações cristãs acerca do passado do presente e do fu turo A vitória militar era também a vitória do deus cristão e da visão de mundo e de história católica Essa situação impôs um grande desafio aos membros das elites indígenas portadores das tradições históricas durante o Período Colonial além da sobrevivência física era necessário encaixar e adaptar as explicações históricas tradicionais à visão de mundo dos vencedores parte da qual foi Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 188 apropriada rapidamente pelos indígenas aliados ou derrotados que se converteram rápida e sinceramente ao cristianismo ou ao que entendiam por tal Em outras palavras não devemos nos esquecer que a posição hierarquica mente superior ocupada pela visão de mundo e de história cristãs não era fruto de um debate epistemológico no qual o cristianismo mostrouse como a melhor e mais apropriada forma de entender e explicar a história do mundo e do homem O que houve foi uma vitória militar que garantiu uma posição de comando ao pensamento cristão posição essa que determinava a direção e o sentido das adap tações e reelaborações eram as explicações cosmogônicas e históricas nativas que deveriam adequarse ao modelo cristão e não o contrário49 Porém isso não significa que os castelhanos ditaram e dirigiram todos os processos de transformação no mundo colonial e que a influência tenha se dado em uma só direção50 Sabemos que as formas de controle político e tributário a religiosidade e o cotidiano colonial foram determinados em grande parte 49 É claro que algumas explicações cristãs acerca da origem do mundo e da história hu mana foram colocadas em xeque com a certeza de que a América era um novo mundo não referido pelos textos bíblicos ou por Aristóteles Mas isso não significa que as expli cações construídas pelos povos americanos acerca do passado tenham sido levadas em conta pelo menos não explícita ou conscientemente pelos pensadores que trataram de reformular as tradicionais explicações cristãs Essa reformulação se deu sobretudo a partir do próprio pensamento aristotélicotomista e de umas poucas e genéricas in formações sobre a América Esse tipo de reformulação pode ser observado na obra do jesuíta José de Acosta Acosta 1985 Mas essas reformulações cujos alicerces esta vam em ruínas segundo Descartes em suas Meditações foram paulatinamente sendo substituídas por explicações construídas fora das universidades cristãs e fundadas em outros princípios Esse processo é conhecido como Revolução Científica do qual o Ilumi nismo pode ser visto como uma continuação Neles o pensamento dos povos america nos pode ter desempenhado alguma influência de forma indireta e implícita 50 O impacto do descobrimento da América e de seus povos sobre a cosmologia cristã é um tema bem estudado Mas talvez faltem estudos sobre o impacto e a participação das expli cações de mundo americanas nas reformulações das explicações cosmogônicas e históri cas européias reformulações essas que caracterizaram a história intelectual da Europa du rante toda a Época Moderna e que culminaram no Iluminismo Um caminho fecundo de pesquisa poderia ser o mapeamento do percurso das crônicas e textos que incorporaram ou reproduziram explicações e conhecimentos americanos e que chegaram até a Europa principalmente pelos jesuítas nos séculos XVII e XVIII ou aí foram publicados Esse seria o passo inicial para tentar entender até que ponto tais explicações poderiam ter sido conhecidas e lidas pelos pensadores europeus modernos e de como estariam presentes em suas obras Um caso mencionado freqüentemente é o de Montaigne quem seguramente conhecia algumas idéias cosmogônicas mesoamericanas comentadas em seus Ensaios Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 189 pelas tradições indígenas responsáveis portanto pela instauração de mundos coloniais distintos nas diversas regiões americanas que eram controladas pelo mesmo poderio castelhano Apesar desse papel central das populações indíge nas na construção do mundo colonial é importante ressaltar que o processo de transformação não foi simétrico entre os dois mundos que se encontravam e se enfrentavam nos Andes e na Mesoamérica A posição de domínio castelhano e o crescente contingente de europeus que chegava à América permitiu que os estrangeiros criassem e dirigissem uma sociedade viável que não corria o risco de ser engolida pelas sociedades locais cujos contingentes populacionais eram cada vez menores devido às enfermidades e maustratos Lockhart 1992 Desse modo a progressiva substituição dos aparatos estatais inca e mexica pelo castelhanocristão aliada ao processo de conversão religiosa gerou uma impossibilidade crescente de manutenção e de reprodução das tradições históri cas nativas de forma independente dos poderes castelhanos pois seus membros eram tradicionalmente parte dos antigos poderes estabelecidos que agora en contravamse majoritariamente submetidos ou aliados aos cristãos Em regiões mais distantes dos centros castelhanos de poder as tradições nativas mantiveram por muito tempo uma relativa autonomia e continuaram a produzir suas próprias explicações acerca do passado produções essas que inclusive incorporavam os novos e recentes acontecimentos que envolviam os castelhanos e se expressavam por meios tradicionais como os códices pictoglíficos e a tradição oral Apesar de todas essas similitudes entre os processos de conquista houve especificidades significativas e que geraram distintas formas de relação e de pactos entre os antigos poderes locais nahua e inca e os novos senhores caste lhanos As especificidades na construção dos contatos assim como as distintas e prévias visões de mundo nahua e inca contribuíram para a elaboração de explicações históricas nativas que incorporavam de maneira distinta o fenô meno da conquista e presença castelhanas No caso da conquista de MéxicoTenochtitlan as alianças prévias seladas por Cortés e Malinche51 entre 1519 e 1520 com os altepeme vizinhos e inimigos tiveram um papel fundamental na rápida derrota do centro do poderio mexica 51 Também conhecida como Malintzin cujo importante papel nessas negociações é re tratado em fontes nativas como o Lienzo de Tlaxcala Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 190 que ocorreu entre 1520 e 1521 Desde Cempoala os castelhanos estabeleceram alianças com mais de dez altepeme para a luta contra os mexicas dentre os quais destacamse Tlaxcala e Chalco Calculase que o exército que chegou a MéxicoTenochtitlan em novembro de 1519 contava com cerca de 500 caste lhanos e 10000 indígenas aliados Além disso parece que Moctezuma e parte dos mexicas queriam evitar a guerra e receberam os castelhanos e aliados de forma amistosa para tentar esta belecer um pacto político Mas talvez a impossibilidade de uma aliança política sem a conversão religiosa deu início aos conflitos que começaram justamente numa das mais importantes festas religiosas mexica a festa de Toxcatl que terminou com o famoso episódio da Matança do Templo Maior e com os cas telhanos sitiados Depois da desesperada fuga para Tlaxcala conhecida como Noche Triste sobreviveram apenas um quarto dos castelhanos que trataram de entre julho e novembro de 1520 pedir reforços às ilhas do Caribe e recompor e ampliar as alianças locais Em novembro desse mesmo ano castelhanos e aliados reiniciaram uma nova marcha dominando o Vale de Puebla e todo o sul da Cuenca Até março de 1521 contavam também com aliados ao redor de todo o lago Texcoco os quais já totalizavam mais de quarenta altepeme MéxicoTenochtitlan liderada agora por Cuauhtemoc resistiu até agosto de 1521 quando após a morte de cerca de 80 da população os últimos soldados mexicas foram vencidos e consumouse o domínio dos cerca de 1000 castelhanos e dos 20000 indígenas aliados Essas alianças dotaram a vitória dos castelhanos de uma certa legitimidade aos olhos da complexa e intricada rede política que regia as relações entre os altepeme mesoamericanos os quais mantiveram pelo menos durante as pri meiras décadas após a queda de Tenochtitlan uma certa continuidade de suas autonomias e poderes locais pois estavam ao lado dos vencedores Sendo assim as elites indígenas desses altepeme sentiamse como parte do regime colonial e não como vítimas dele fato que garantia uma certa colaboração polí tica Essas alianças criaram também redes políticas complexas que opunham por exemplo os castelhanos e indígenas aliados aos indígenas inimigos e garantiram a rápida expansão dos novos senhores de Tenochtitlan em direção a Oaxaca 1524 aos domínios tarascos 15241530 e a parte da Guatemala 1524 Veremos no próximo subitem as conseqüências dessa rápida con quista e das alianças castelhanas com as elites locais para o funcionamento e o papel das tradições históricas indígenas na nova ordem colonial Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 191 No caso da conquista dos incas temos um processo de lutas e conflitos muito mais longo que vai de 1532 com a prisão de Atahualpa por Pizarro até 1572 com a morte de Tupac Amaru Esse longo processo pode ser dividido em três fases Navarrete Linares 2002 A primeira fase de 1532 a 1536 iniciouse com o famoso episódio da prisão de Atahualpa por Pizarro em Cajamarca e pela morte de milhares de incas e de apenas um castelhano Essa fase teria terminado com a rebelião de Manco Capac soberano inca nomeado após a morte de Tupac Hualpa que havia sido nomeado pelos castelhanos após a execução de seu irmão Atahualpa e que morreu em conflitos com grupos fiéis a Huáscar assassinado enquanto Atahualpa estava preso pelos castelhanos Vale notar que os castelhanos fun daram Lima já nessa primeira fase da conquista em 1535 e a fundaram na costa fato que marcaria o início de uma marcada separação sóciogeográfica entre o mundo castelhano e o indígena que persistiu durante todo o Período Colonial e chegou até a atualidade A segunda fase de 1536 a 1555 caracterizouse pelo combate à rebelião de Manco Capac por Diego de Almagro pelo refúgio dos incas em Vilcabamba por uma série de períodos de guerra e paz e por uma guerra civil entre os cas telhanos seguidores de Pizarro e de Almagro Até esse momento os povos vi zinhos não haviam apoiado os incas contra os espanhóis pois viam o fim de sua dominação como uma chance de maior autonomia fato que se tornava real com a crise da rede de caminhos e do aparato estatal inca responsável pela cobrança dos tributos A terceira fase de 1555 a 1572 foi marcada pela consolidação do poder castelhano pela chegada do vicerei Mendoza e dos burocratas após a morte dos conquistadores e pelo início do pesado regime de trabalho ao qual os indí genas foram submetidos nas minas de prata e que causou inúmeras rebeliões Essa fase caracterizouse também pela continuidade da resistência inca desde Vilcabamba principalmente até 1567 quando Titu Cusi firmou a paz com os castelhanos Mas após sua morte em 1571 seu irmão Tupac Amaru rebelou se e foi vencido e executado publicamente em Cuzco em 1572 O longo processo de conquista castelhana e de resistência inca aliado ao pesado regime de trabalho e de tributos que transformava a tradicional mita em uma espécie de escravidão geraram um verdadeiro caos social e econô mico que atingiu todas as regiões antes dominadas pelos incas o que contribuiu para a generalização de um sentimento de rechaço ao poder político e à religião dos castelhanos Além disso o número de aliados indígenas que se sentia Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 192 vitorioso com a derrota dos incas era muito menor do que no caso dos mexicas Veremos que as explicações históricas nativas para a conquista castelhana construídas nessa fase final ainda acreditavam na possibilidade de expulsão total dos castelhanos e na restauração da ordem andina anterior anterior inclusive aos próprios incas 52 No entanto a progressiva instalação do aparato colonial castelhano após o fim das lutas contra os incas cooptava cada vez mais os membros das elites incas derrotadas e os curacas dos mais diversos povoados Conjuntamente o crescimento do número de castelhanos mostrava ao mundo andino que estavam ali para ficar Veremos que esses fatos transformaram as explicações andinas e incas da conquista produzidas nessa fase fins do século XVI e início do XVII pelas elites locais aliadas que passaram a tratar o fenômeno da con quista e da colonização castelhana como algo irreversível Não se tratava mais de expulsar os castelhanos mas sim de conseguir um sistema mais justo sob a ótica andina um sistema que respeitasse os princípios básicos da reciprocidade e da organização social local garantindo assim os privilégios e poderes subor dinados das elites locais pois reciprocidade mesmo em tempos préhispânicos não era sinônimo de relações igualitárias B Convivência resistência e reacomodações Depois de findados os processos de conquista militar caracterizados pela grande intensidade de guerras e matanças e pela imposição final do domínio dos conquistadores e seus aliados indígenas iniciouse nas regiões nahua e inca uma outra etapa histórica caracterizada principalmente pelo traslado e a implantação de instituições castelhanas e por uma certa estabilidade no contro le político e econômico Isso não significa que as revoltas e conflitos armados não continuaram a existir principalmente no caso dos Andes e das regiões 52 A idéia do retorno de um incarrí ou incarei que expulsaria os castelhanos e restau raria a antiga ordem no mundo andino foi criada posteriormente entre fins do século XVI e início do século XVII justamente após a execução pública de Tupac Amaru Essa idéia que se tornará central para as tradições históricas andinas caracterizase por uma visão idealizada dos tempos incaicos e sua construção foi fomentada principalmente por dois motivos a maioria das pessoas que havia vivido sob o domínio inca havia morrido e o crescente domínio econômico tributário político e religioso dos castelhanos mostrava cada vez mais sua face de violência e de exploração Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 193 mesoamericanas ao norte e ao sul do Altiplano Central sobre as quais os caste lhanos e seus aliados procuravam ampliar seus domínios53 E como vimos anteriormente esse processo de conquista e colonização polí tica militar e econômica era inseparável do processo de conquista espiritual Desse modo as instituições religiosas cristãs sobretudo igrejas monastérios e colégios também foram trasladadas e implantadas nas regiões conquistadas pas sando a ser os principais centros de difusão do pensamento histórico e cosmogô nico do Velho Mundo Durante o século XVI chegaram à região da Nova Espanha quase três mil religiosos e ao Peru cerca de mil e oitocentos Borges 1983 Foi com esses religiosos cristãos que parte das tradições históricas nahua e inca se defron taram Vejamos como isso se deu entre mexicas e incas A rápida expansão dos domínios políticos castelhanos e de seus aliados na região central da Mesoamérica e a relativa legitimidade desses novos domi nadores em dezenas de altepeme possibilitaram a difusão massiva do cristia nismo e de alguns conceitos de sua visão de mundo Ao mesmo tempo era fundamental para as elites nahuas intermediadoras das relações entre os novos senhores castelhanos e a população indígena incorporar os símbolos políticos e religiosos castelhanos que demonstravam suas posições sociais como por exemplo as roupas e os escudos de armas Também era necessário adequar sua história e cosmogonia à história e cosmogonia do deus cristão vitorioso deus este que aliás não era muito afeito à competição com outros deuses ou a outras versões da criação do mundo e da história dos homens O resultado dessas reelaborações foram obras muito diversas que com binaram de maneiras distintas as histórias e explicações cosmogônicas tradi cionais com as idéias de origem cristã No entanto todas elas possuem em comum o fato de se destinar a dois universos de públicos distintos os religiosos e mandatários castelhanos e as elites e populações nahuas A maioria dos autores dessas obras estavam interessados em assegurar para si e para seu grupo as posições e privilégios sociais dentro da nova ordem colonial e para isso 53 Na verdade é muito difícil estabelecer um limite cronológico entre conquista e colo nização que valha para toda e Mesoamérica e Andes Cada região e povo viveu esses momentos em épocas distintas Sabemos que em alguns casos a invasão territorial e a conquista militar foram processos que só se consumaram nos séculos XIX e XX Sendo assim a divisão que estamos estabelecendo entre conquista militar e colonização serve apenas para os dois casos estudados isto é nahuas do Altiplano Central e incas Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 194 necessitavam dialogar com o mundo castelhano por um lado e com o indígena por outro pois somente sendo entendidos e legitimados pelos dois é que pode riam manter sua privilegiada posição de elite intermediária Algumas das mais importantes obras que se encaixariam nessa tipologia foram escritas por Fernando Alvarado Tezozomoc Domingo Francisco de San Antón Muñón Chimalpahin Cuauhtlehuanitzin Cristóbal del Castillo Fernando Alva Ixtlilxochitl e Diego Muñoz Camargo alguns dos quais filhos de castelhanos e indígenas54 Vale lembrar também que os castelhanos desde as alianças préconquista de Tenochtitlan necessitavam dessas elites para atender as demandas de seus domínios e futuramente de seu império Era preciso lidar com as unidades políticas mesoamericanas suas afinidades e tendências à fragmentação e à autonomia impulsionadas pelas centenas de microetnicidades e por um modelo geral de organização celular no qual cada parte da rede de alianças políticas era relativamente completa e portanto potencialmente independente Esse modelo político havia vigorado por milhares de anos e continuava exis tindo apesar da conquista Uma demonstração da sua grande força foi o fato de que quase que a totalidade dos altepeme se tornaram municípios na década de 1530 garantindo assim sua sobrevivência como entidadebase da nova orga nização colonial Isso garantiu a continuidade da existência de parte da elite nahua que em troca de privilégios e poderes subordinados ocupou o governo dessas unidades até o fim do Período Colonial Lockhart 1992 É claro que isso contribuiu para a continuidade transformada das tradições históricas nahuas que como vimos tinham no altepetl seu centro temático A rápida expansão do cristianismo pela Mesoamérica durante o século XVI contou também com a realização de uma série de trabalhos missionários de pes quisa os quais pretendiam aprender as línguas e conhecer os hábitos a religiosidade e o pensamento nativos Com esses saberes os evangelizadores estariam dotados de instrumentos de pregação e preparados para combater as indesejáveis misturas entre as antigas idolatrias e a nova religião e assim conseguir uma conversão mais eficiente e inspirada nos ideais do cristianismo primitivo e do milenarismo de Joaquín de Fiore Os trabalhos realizados ainda no século XVI pelo franciscano Bernardino 54 Suas obras estão referenciadas respectivamente como Alvarado Tezozomoc 1998 Chimalpahin Cuauhtlehuanitzin 1965 e 2001 Castillo 2001 Alva Ixtlilxochitl 1985 e Muñoz Camargo 1998 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 195 de Sahagún Sahagún 2002 e pelo dominicano Diego Durán Durán 1984 são os exemplos mais acabados e sofisticados dessas pretensões missionárias de estabele cimento de um cristianismo livre das antigas idolatrias Mas esses trabalhos missionários de pesquisa foram realizados em conjunto por freis por alunos indígenas dos colégios missionários descen dentes das elites locais e por antigos sábios indígenas E desse modo deram a oportunidade para que uma série de relatos orais como os huehuetlahtolli ou antiga palavra fossem transcritos em nahuatl e depois traduzidos55 Além disso inúmeros códices pictoglíficos também foram produzidos glosados ou parcialmente explicados nesses trabalhos conjuntos dando origem a uma série de textos alfabéticos que traduziam os conteúdos tradicionalmente veicu lados por meio do sistema pictoglífico56 Esse fato possibilitou o estudo e o entendimento de parte dos códices exclusivamente pictoglíficos Em todos esses códices e textos alfabéticos podemos perceber a forte conti nuidade de elementos utilizados anteriormente pelas tradições históricas nahuas como por exemplo os relatos cosmogônicos que tratam das eras ou idades anteriores a utilização da conta dos anos sazonais xiuhmolpilli para mensurar as distâncias temporais e estruturar as narrativas e a centralidade dos altepeme nas narrativas que tratavam do passado mais recente Além disso podemos perceber também o esforço de adequar os conteúdos dos relatos tradi cionais aos novos preceitos cristãos e à cosmogonia do Velho Mundo Isso se dava por exemplo omitindo e minorando nos relatos os episódios de sacrifícios humanos e de antropofagia ou ainda atribuindoos aos povos inimigos57 55 Os dois principais conjuntos dessas transcrições são os Romances de los señores de la Nueva España e os Cantares mexicanos ambos publicados sob o título de Poesía náhuatl 2000 Há também uma seção do Códice Florentino de autoria de Bernardino de Sahagún Sahagún 2002 e de sua equipe de informantes e alunos indígenas dedicada aos poe mas e cantos tradicionais nahuas 56 Entre os textos alfabéticos nahuas que apresentam indícios internos de terem sido produ zidos a partir de leituras de códices pictoglíficos podemos destacar os Anales de Cuauhtitlan 1945 a Historia de los mexicanos por sus pinturas 1996 e a Leyenda de los soles 1945 57 Nos Anales de Cuauhtitlan por exemplo os mexicas são acusados de sacrificar deze nas de milhares de cativos na inauguração do Templo Maior Anales de Cuauhtitlan 1945 5758 No entanto alguns cronistas mexicas como Alvarado Tezozomoc não omitem os sacrifícios nem os atribuem a outros povos mas os reivindicam por sua conotação de valentia guerreira e de devoção religiosa valores locais que seriam compartilhados com os espanhóis ainda que mal encaminhados pois o demônio teria agido livremente nas terras distantes do Evangelho Navarrete Linares 2000 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 196 Uma outra forma de adequar os antigos relatos sobre as idades do mundo e a história tolteca às novas demandas era narrálos novamente à luz dos textos bíblicos Desse modo encontramos casos em que Huemac soberano de Tula e sucessor ou contemporâneo de Quetzalcoatl foi identificado com o apóstolo São Tomás numa clara tentativa de vincular os relatos das duas tradições his tóricas o que era importante para ambas Por um lado as elites indígenas alia das pretendiam provar que seu mundo e sua história também eram parte da grande história universal cristã adotada tacitamente no momento de sua con versão Por outro o problema da origem do homem americano e de seu esque cimento pelo deus cristão era algo que incomodava aos pensadores cristãos que também buscavam vincular a América e o que imaginavam ser sua história aos relatos bíblicos58 Dentro desse lento e contínuo processo de colonização o uso da picto grafia um dos principais meios de expressão da tradição histórica nahua per durou até fins do século XVII e passou por dois momentos bem distintos Lockhart 1992 O primeiro que durou até meados do século XVI marcou se por uma continuidade geral dos princípios que regiam o sistema que foi usado inclusive para expressar as novas realidades trazidas pelos castelhanos como os cavalos e os nomes próprios Até esse momento poucos centros ha viam iniciado os trabalhos de ensino religioso a jovens ajudantes nahuas basi camente no México e em Tlaxcala que aprenderiam a manejar o alfabeto latino para transcrever seu idioma O segundo momento que durou de meados do século XVI até o desaparecimento do sistema no final do século XVII marcouse por um decréscimo constante e progressivo no uso da pictografia como veículo primário pela proliferação das instalações religiosas e burocrá ticas castelhanas pelo conseqüente crescimento da produção de textos alfabé ticos de diversos tipos e por fim pela adoção de padrões pictóricos europeus Além dessas formas de ajuste das explicações tradicionais ao pensamento cristão e apesar da progressiva adoção do sistema alfabético houve uma grande 58 Essa identificação entre São Tomás e Huemac encontrase em duas importantes crôni cas coloniais na obra do dominicano Diego Durán Durán 1984 e no texto do Códice Ramírez 1987 ou Relación del origen de los indios que habitan esta Nueva España pro vavelmente um resumo da obra de Durán feito por Juan de Tovar que fora encarregado pelo vicerei Martín Enriquez de Almanza para escrever uma história do México préhis pânico Camelo Rubén Romero 1995 Ou talvez ambos tenham baseadose em uma obra anterior perdida e de autoria desconhecida chamada pelos estudiosos de Crónica X Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 197 continuidade estrutural e temática da produção local de histórias e cosmogo nias até o fim do Período Colonial sobretudo nas regiões mesoamericanas mais distantes dos centros de poder castelhano Por vezes tais continuidades aden traram os séculos XIX e XX e em última instância chegaram até os dias atuais Talvez de modo geral possamos dizer que o grau de presença do pensamento cristão nessas histórias e cosmogonias reelaboradas é diretamente proporcional a dois fatores ao grau de contato convivência e penetração das instituições de origem ibérica nessas comunidades e também à qualidade dos contatos isto é se de maior receptibilidade ou maior rechaço aos elementos de origem estrangeira por parte das comunidades nativas Citamos no item anterior que a longa conquista dos incas pelos castelhanos gerou pelo menos dois tipos distintos de explicações históricas nativas Por um lado estavam aquelas que ainda acreditavam na possibilidade de se livrar totalmente da presença castelhana e por outro aquelas que já tratavam o fenô meno da invasão como algo irreversível e que procuravam relocalizar da melhor forma possível o mundo e a história andina diante da nova situação Ambas utilizaramse de conceitos tradicionalmente utilizados pelas explica ções históricas incas e que faziam parte da visão de mundo andina em geral como por exemplo o conceito de pachacuti Vejamos em detalhe esses dois tipos de explicação histórica colonial utilizadas pelos incas e povos andinos Ainda durante a fase final da conquista militar em 1564 houve um grande movimento panandino na região de Huamanga de rechaço ao mundo caste lhano chamado de Taki Onqoy ou enfermidade da dança Segundo os depoi mentos de seus participantes registrados pelo frei Cristóbal de Albornoz e por seu tradutor Guamán Poma de Ayala as guacas estavam zangadas pelo colaboracionismo indígena e pela suspensão dos sacrifícios Por isso passaram a possuir os indígenas fazendoos cair ou dançar ininterruptamente purifi candoos por meio da renúncia ao cristianismo e a tudo o que viesse dos castelhanos Desse modo os indígenas acreditavam estar prontos para o pró ximo pachacuti quando então as guacas encabeçadas por Titicaca e Pachacamac matariam a todos os castelhanos e curacas aliados e assim devol veriam as coisas aos seus devidos lugares Navarrete Linares 2002 Podemos perceber nesses depoimentos de forma muito clara a presença de pelo menos duas idéias típicas das explicações históricas e da visão de mundo andinas o mundo dividese entre hanan e hurin e um pachacuti inverte a posição ocupada por cada uma das partes como aconteceu durante a conquista castelhana Além disso de acordo com a avaliação feita pelos participantes do Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 198 movimento ainda seria possível expulsar totalmente os estrangeiros e restaurar a antiga ordem das coisas Inclusive a ordem restaurada poderia ser uma ordem melhorada já que o recente domínio inca da região havia sido rompido pelos castelhanos que por sua vez seriam expulsos A crônica de Titu Cusi Yupanqui 1985 também foi escrita durante essa fase final da conquista nos anos 1560 e de um ponto de vista inca compartilha muitas explicações históricas diante do fenômeno da conquista com o movimento Taki Onqoy Titu Cusi irmão de Tupac Amaru filho de Manco Capac e neto de Huayna Capac relata centralmente a grande rebelião de Manco Capac em 1536 e também apresenta um alto grau de rechaço aos castelhanos classi ficandoos como seres que não pertenciam a hanan mas sim a hurin pois seriam filhos de Supay o Senhor do Mundo de Abaixo Nessa classificação podemos perceber outras duas idéias comuns às do Taki Onqoy a divisão do mundo entre hanan e hurin e a conquista castelhana como um pachacuti que inverteu o mundo antes dominado pelos incas seres procedentes do mudo superior e do Sol A percepção da população nativa em constante decréscimo numérico sobre a dimensão do fenômeno colonizador alterouse com o crescimento da presença castelhana no último terço do século XVI Essa alteração conseqüen temente acarretou a construção de explicações históricas distintas as quais já não falavam mais em se livrar totalmente dos novos senhores e estrangeiros mas sim como citamos anteriormente em restabelecer as relações de poder e de subordinação de acordo com princípios políticos tradicionais59 No entanto por outro lado essa elite era formada por pessoas que haviam crescido e ainda viviam imersos em um universo cultural não muito diferente daquele que existia em tempos incas Desse modo suas explicações históricas e cosmogônicas eram em realidade construídas com conceitos tradicionais utilizados cotidianamente para dar conta da realidade natural e social e que faziam parte da própria constituição de seus pensamentos Reformular as expli cações tradicionais da antiga visão de mundo para dar conta da nova realidade e incorporar as idéias cristãs era muito mais do que um ato deliberada e cons cientemente interesseiro a única forma de obter um certo reconhecimento por 59 É claro que isso as obrigava a uma atitude de abertura e receptividade ainda maior para a instalação das instituições políticas econômicas e religiosas européias pois a aliança com os vitoriosos implicava em uma aliança com seus deuses prática que já pos suía precedentes na antiga pauta da política andina Stern 1986 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 199 parte dos novos senhores de seus pares e da população indígena em geral a quem pretendiam representar e comandar desempenhando o papel de intermediários Alguns relatos com essas características foram produzidos por membros das elites incas entre o final do século XVI e o início do século XVII e certa mente podem ser considerados como reformulações de explicações tradicio nais incas que atendiam às novas demandas dos tempos coloniais Os escritos mais conhecidos e que se encaixam nesse grupo são os de Felipe Guamán Poma de Ayala de 1615 os de Juan Santa Cruz Pachacuti Yanqui Salcamayqua de 1613 e os de Garcilaso de la Vega de 160960 Há ainda um texto em quíchua do século XVI intitulado Manuscrito de Huarochirí ou Runa yndio niscap Machoncuna que também se encaixaria nesse grupo61 Todos esses escritores incas coloniais e suas tentativas de reelaboração das narrativas históricas e cosmogônicas refletem as demandas de uma época em que já não podiam mais resistir militarmente e buscavam outros meios de oposi ção e adaptação como a escrita e os meios legais Zapata 1989 Entre todos esses escritos seguramente os que trazem uma maior quantidade de informa ções específicas do mundo andino são os de Guamán Poma de Ayala e o manus crito Runa yndio de Huarochirí O relato de Guamán Poma pode ser considerado como uma transcrição parcial da tradição histórica inca única a ser registrada em tempos coloniais62 a partir de narrativas orais de informações dos quipus e do depoimento de anciãos Sua obra procurava estabelecer um projeto alternativo à colonização que efetivamente 60 Referenciados respectivamente como Guamán Poma de Ayala 1980 Santa Cruz Pachacuti 1968 e Garcilaso de la Vega 1968 No caso da obra de Guamán Poma além des sa edição em livro há uma edição facsimilar e eletrônica na Internet httpwwwkbdk elibmsspoma e que conta com comentários de Rolena Adorno e de John Charles 61 Esse manuscrito descreve a geografia do Tahuantinsuyu enfocando principalmente suas guacas e elementos da paisagem tidos como santuários Suas principais edições são ARGUEDAS José María comp Dioses y hombres de Huarochirí narración quechua Lima Museo Nacional de Historia e Instituto de Estudios Peruanos 1966 TAYLOR Gerard Ritos y tradiciones de Huarochirí manuscrito quechua versión paleográfica Lima Instituto de Estudios Peruanos e Instituto Francés de Estudios Andinos 1987 SALOMON Frank URIOSTE George The Huarochiri manuscript a testament of ancient and colonial Andean religion Austin University of Texas Press 1991 62 Parece que o manuscrito Runa yndio de Huarochirí oferece apenas insinuações acerca da existência de outras tradições históricas nos Andes em tempos incaicos Brotherston 1997 250 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 200 vinha sendo implantada Seu principal argumento nesse sentido é que a coloniza ção do modo como funcionava até então não beneficiava nem ao rei castelhano nem aos andinos mas apenas a uns poucos e desonestos conquistadores e buro cratas castelhanos e por isso deveria ser radicalmente modificada Guamán Poma como sincero membro da igreja católica e testemunho ocular da forte e crescente presença das instituições castelhanas já não ques tionava o domínio e a presença cristã nos Andes Mas por outro lado como descendente direto das elites incas não deixava de acreditar que a conquista havia sido um pachacuti pois os castelhanos que deveriam mandar apenas em Castela mandavam agora também nos Andes A solução proposta em seus textos para a correção dessa injustiça era a supressão do grupo dos con quistadores e a aliança direta entre os incas a coroa de Castela e o Papa63 Essa proposta reflete por um lado a preocupação da classe dominante indígena em recuperar seus privilégios cada vez menores diante do cresci mento das instituições e do número de burocratas castelhanos e marca uma reação às sobreexplorações que passaram a caracterizar as relações econô micas e tributárias após 1580 Além disso as epidemias matavam centenas de milhares e geravam em muitas partes um verdadeiro caos social e econômico explicado pela visão de mundo andina como resultado das relações sociais desequilibradas e que haviam sido implantadas pelos estrangeiros E por outro lado a utilização de conceitos tradicionais como pachacuti hanan hurin e manay para explicar a conquista e a colonização e construir uma proposta de futuro procurava validálos mostrando sua eficácia em continuar dando con ta das transformações e continuidades da história Palavras finais Enunciamos de início que a elaboração a manutenção e a transmissão sistemáticas de explicações acerca do passado não eram nem o são atualmente uma exclusividade do mundo ocidental Afirmamos também que nas chamadas sociedades complexas esses processos tendiam a estar sob o controle de orga 63 Em seu famoso mapamúndi Guamán Poma projeta a divisão quadripartida do Tahuantinsuyu e apresenta os Andes acima de Castela A maioria de seus desenhos traz contrastes e orientações espaciais que são prioritariamente significativos são como um arranjo sintático de elementos em uma sentença gramatical Adorno 1991 Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 201 nizações ou grupos específicos que poderiam inclusive contar com indivíduos ou instituições especializadas aos quais denominamos de tradições históricas Creio que ao tratarmos na primeira parte de algumas características das explicações históricas inca e nahua pudemos por um lado comprovar a exis tência de tais tradições em tempos préhispânicos e por outro vislumbrar algu mas características de seu funcionamento principalmente no que diz respeito às preocupações temáticas à organização estrutural das narrativas aos me canismos de registro e transmissão e às concepções de tempo e espaço Na segunda parte ao analisarmos comparativamente as transformações e as continuidades das duas tradições históricas diante das conquistas e colonizações castelhanas creio que pudemos entender os modos específicos com os quais cada uma reagiu transformouse e adaptouse às novas demandas do mundo colonial Os resultados dessas transformações e adaptações materializaramse muitas vezes em códices e textos alfabéticos chamados aqui de escritos históricos e que devem portanto ser situados e analisados dentro dos distintos complexos e específicos contextos coloniais em que foram produzidos A existência dessa grande produção de escritos históricos coloniais nativos apontou para a continuidade transformada de instituições e de saberes de origem indígena principalmente no primeiro século póscontato Isso se comprovou pela utilização de estruturas narrativas como o calendário no caso nahua e de conceitos explicativos tradicionais como o pachacuti no caso inca nas obras de tempos coloniais Além disso houve também uma continuidade da função ideológicolegitimadora que as explicações acerca do passado desempenhavam para as elites indígenas em tempos préhispânicos pois muitos desses escritos coloniais tinham como principal preocupação a adequação das antigas explica ções históricas e cosmogônicas ao pensamento históricoreligioso dos novos se nhores redefinindo e garantindo assim uma nova identidade e uma nova posição política para as tais elites na nova ordem colonial Vimos também que o modo pelo qual se logrou a conquista dos incas e dos nahuas pelos castelhanos foi um fator determinante na constituição das redes de alianças que imperaram no mundo andino e mesoamericano colonial e que isso influenciou diretamente o posicionamento de maior adesão ou rechaço aos novos senhores o que por sua vez teve implicações diretas nas formas de reelaboração histórica levadas a cabo pelas tradições históricas locais Podemos dizer que a rápida conquista dos mexicas pelos castelhanos e in dígenas aliados contribuiu para uma maior legitimidade relativa e para a aceita ção da nova ordem pelos grupos locais Isso por sua vez contribuiu para uma Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 202 maior rapidez e facilidade de traslado de instituições castelhanas sobretudo de instituições religiosas o que resultou em um grau muito maior de influência e de presença cristãs nas novas explicações históricas nativas Tais produções em geral destinavamse a leitores dos dois universos culturais pois necessitavam simulta neamente do reconhecimento local e da aprovação dos novos e estrangeiros se nhores para lograr uma relocalização do passado e do presente indígena a partir das novidades adotadas ou impostas pela tradição de pensamento cristã Já a dificultosa e prolongada conquista dos incas pelos castelhanos e seus poucos aliados teve como resultado uma menor legitimidade relativa do poder dos novos senho res aos olhos dos princípios políticos locais o que ocasionou uma maior dificuldade no traslado e na implantação das instituições castelhanas tornandoas mais tardias e menos difundidas geograficamente em relação à região central do México Entre uma série de outros fatores essas diferenças no processo de conquista e colonização dos Andes contribuíram para importantes particularidades na pro dução das explicações históricas locais em relação às produções do Altiplano Central Tratamos mais detalhadamente de duas dessas particularidades 1 a presença central e difundida da concepção de que a conquista castelhana havia sido um pachacuti uma inversão total da antiga ordem de coisas e que seria possível em um futuro breve revertêla totalmente 2 a nãoaceitação do poder político e econômico dos conquistadores e burocratas como algo legítimo fato que levou um dos mais importantes cronistas coloniais incas a elaborar um pro jeto de vinculação direta das elites locais ao rei de Castela e ao Papa64 Creio que todas essas reflexões nos apontam para a importância de anali sarmos a problemática da qualidade dos contatos entre indígenas e europeus e da postura adotada por cada grupo nos processos de conquista e de coloni 64 É claro que isso também levou a um número muito maior de rebeliões e revoltas nos Andes do que no México Central onde elas praticamente não ocorreram durante todo o Período Colonial Situação distinta viveu a região maia na qual assim como nos Andes houve um longo e dificultoso processo de conquista e colonização que resultou em uma sociedade colonial extremamente cindida e na qual os castelhanos careciam de legitimi dade aos olhos da política indígena No caso dos maias também houve inúmeras rebe liões durante todo o Período Colonial 65 Isso não significa que o grau de contato seja uma variável menos importante Vale lembrar que as regiões mais distantes dos centros de poder castelhano apresentaram uma continuidade de funcionamento das tradições históricas nativas muito maior chegando em alguns casos até o século XX enquanto que nos centros de poder castelhano a maioria das tradições locais desapareceu antes do fim do Período Colonial Eduardo Natalino dos Santos Revista de História 150 1º 2004 157207 203 zação castelhana e não apenas o grau de contato mensurado em distância tempo e presença de instituições castelhanas65 Talvez o enorme e multicolo rido leque de casos que essas análises irão nos revelar tornará necessária a reavaliação da validade e do alcance explicativo de conceitos que durante décadas foram aplicados para dar conta de todos os contatos entre europeus e indígenas como por exemplo os conceitos de mestiçagem e de aculturação Bibliografia Fontes ACOSTA José de Historia natural y moral de las Indias 2a edição México Fondo de Cultura Económica 1985 ALVA IXTLILXOCHITL Fernando de Obras históricas México Universidad Nacional Autónoma de México 1985 ALVARADO TEZOZOMOC Fernando Crónica Mexicayotl 3a edição México Universidad Nacional Autónoma de México 1998 Anales de Cuauhtitlan in Códice Chimalpopoca Anales de Cuauhtitlan y Leyenda de los soles México Universidad Nacional y Autónoma de México 1945 pp 03118 CASTILLO Cristóbal Historia de la venida de los mexicanos y de otros pueblos Historia de la conquista México Conaculta 2001 CHIMALPAHIN CUAUHTLEHUANITZIN Domingo Francisco de San Antón Muñón Diario México Conaculta 2001 CHIMALPAHIN CUAUHTLEHUANITZIN Domingo Francisco de San Antón Muñón Relaciones originales de Chalco Amaquemecan México Fondo de Cultura Económica 1965 Códice Boturini o Tira de la peregrinación México Secretaría de Educación Pública 1975 Códice 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