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Direito ·
Filosofia do Direito
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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS UNISINOS UNIDADE ACADÊMICA DE PESQUISA E PÓSGRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM DIREITO NÍVEL MESTRADO GILBERTO MORBACH A TERCEIRA VIA DE JEREMY WALDRON São Leopoldo 2019 GILBERTO MORBACH A TERCEIRA VIA DE JEREMY WALDRON Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Público pelo Programa de PósGraduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS Orientador Prof Dr Lenio Luiz Streck São Leopoldo 2019 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Silvana Teresinha Dornelles Studzinski CRB 102524 M832t Morbach Gilberto A terceira via de Jeremy Waldron Gilberto Morbach 2019 211 f il 30 cm Dissertação mestrado Universidade do Vale do Rio dos Sinos Programa de PósGraduação em Direito 2019 Orientador Prof Dr Lenio Luiz Streck 1 Direito Filosofia 2 Jurisprudência 3 Positivismo jurídico 4 Waldron Jeremy 1953 I Título CDU 34012 Para Bruna Grün minha namorada companheira melhor amiga que me ensina a ver as coisas com atenção e amor AGRADECIMENTOS Todos aqueles a quem agradeço aqui contribuíram de alguma forma cada um à sua maneira dentro do que lhes cabia dentro de seus limites e suas possibilidades Estabelecer uma ordem de prioridade ou importância é então simplesmente impossível O que me parece mais adequado é recorrer ao velho critério da ordem alfabética não posso cometer nenhuma injustiça especialmente para com qualquer daqueles cujo nome está aqui Agradeço à Ana Cristina minha mãe rainha deste mundo que de tanto ouvir sobre Thomas Hobbes e Jeremy Bentham Ronald Dworkin e Jeremy Waldron é seguramente a psicanalista que mais conhece sobre Teoria do Direito no mundo Agradeço ao Prof Anderson Vichinkeski Teixeira pela leitura pelas contribuições pela indispensável presença em minhas bancas de qualificação e avaliação Agradeço à Prof Andrea Faggion que contribuiu muito muito muito muito para esta pesquisa exercendo os papeis de professora e amiga ainda como se não bastasse aceitou compor minha banca de avaliação Minha gratidão só é proporcional à admiração que sinto Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq pela concessão da bolsa de estudos que é a mais fundamental condição de possibilidade a essa pesquisa Agradeço ao Frederico e à Giovanna meus queridos amigos que não apenas me ajudaram muito na execução das tarefas do gabinete de pesquisas como também o fizeram sempre com alegria e bomhumor tornando as terçasfeiras muito mais leves e agradáveis Agradeço ao Prof Gerson Neves Pinto pela leitura por todas as conversas pelos cafés nas quartasfeiras pelas discussões sobre os bons e velhos Platão e Aristóteles Agradeço ao Gilberto meu pai cujo trabalho de uma vida possibilitou que eu pudesse dedicar minha vida à pesquisa Agradeço ao Gustavo meu irmão por estar sempre disposto a conversar sobre meus insights de pesquisa e a conversar sobre qualquer outra coisa quando tudo que eu precisava era falar sobre algo que não fosse minha pesquisa Agradeço ao Prof Igor Raatz meu amigo e orientador à época de graduação que foi quem me levou à Unisinos e comigo deu o primeiro passo sem o qual nada nada disso teria acontecido Agradeço ao Prof Lenio Luiz Streck que é meu orientador professor e gosto de pensar assim amigo Agradeço por ter permitido que eu visse aquilo que nem todos veem o grande professor é também um grande homem O grande intelecto é proporcional ao grande coração Agradeço demais à Secretaria do PPGD Vera Ronaldo Paloma Daiana por todo auxílio ao longo do mestrado auxílio que se deu através de um trabalho simplesmente irrepreensível feito com competência seriedade dedicação com gentileza e atenção Com bom humor e disposição Mãe Prof Anderson Prof Andrea CNPq Fred e Gio Prof Gersinho Pai Irmãozinho Prof Igor Maestro pessoal da Secretaria muito obrigado De coração I do not forget the position assumed by some that constitutional questions are to be decided by the Supreme Court nor do I deny that such decisions must be binding At the same time the candid citizen must confess that if the policy of the Government upon vital questions affecting the whole people is to be irrevocably fixed by decisions of the Supreme Court the people will have ceased to be their own rulers having to that extent practically resigned their Government into the hands of that eminent tribunal1 Abraham Lincoln Inaugural Address Mar 04 1861 Une théorie qui se soustrait aux réfutations échappe à lordre de la vérité 2 Raymond Aron Lopium des intellectuels 1955 1 Não esqueço a posição por alguns tomada de que algumas questões constitucionais devem ser decididas pela Suprema Corte tampouco nego que essas decisões devam ser vinculantes Ao mesmo tempo o cidadão franco imparcial terá de admitir que se as políticas do Governo que afetam toda a população forem fixadas irrevogavelmente por decisões da Corte Suprema o povo deixará de ser seu próprio regente tendo praticamente submetido seu governo às mãos do eminente tribunal 2 Uma teoria que se esquiva das refutações escapa da categoria da verdade RESUMO Esta dissertação tem como seu principal objetivo uma investigação da proposta teorética de Jeremy Waldron à Teoria do Direito uma investigação que revelando os principais pressupostos e as principais implicações da teoria de Waldron classifica o autor como uma terceira via possível entre as correntes que lhe servem de contexto e influência o positivismo jurídico de um lado e de outro a concepção de law as integrity de Ronald Dworkin Para tanto e a partir de uma pesquisa bibliográfica conduzida sob o método fenomenológico subjacente à tradição da Crítica Hermenêutica do Direito de Lenio Streck a pesquisa estruturada em três capítulos aborda os seguintes tópicos no capítulo primeiro i o contexto histórico de surgimento do positivismo jurídico no âmbito da teoria clássica do common law e ii o positivismo clássico avant la lettre de Thomas Hobbes e Jeremy Bentham e de John Austin no segundo capítulo a investigação voltase i ao positivismo do séc xx e ii à proposta de Ronald Dworkin de Direito como integridade abordando também iii o positivismo contemporâneo pósDworkin finalmente o terceiro capítulo aborda a teoria jurídica de Jeremy Waldron a partir de seus pressupostos conceituais seus elementos principais suas repercussões práticas ao Direito e dos caminhos possíveis por ela inaugurados Nesse sentido o que se conclui é que é sim possível apresentar e sustentar Waldron como uma terceira via em Teoria do Direito ao mesmo tempo o que também se conclui é que seja como for a proposta de Jeremy Waldron pretende justamente transcender uma preocupação com meros rótulos analíticos e contribuir de forma substantiva às discussões que gravitam em torno das possibilidades de uma teoria jurídica democrática e adequada ao império da lei Palavraschave Jurisprudence Jeremy Waldron Positivismo jurídico Law as integrity ABSTRACT The main objective of this research is to investigate Jeremy Waldrons theoretical contributions on jurisprudence from such an investigation based on Waldrons fundamental theoretical grounds and its main implications I argue that his jurisprudential work is a third way between those theories that have directly influenced him namely legal positivism and Dworkins law as integrity By way of a phenomenological methodology the methodological grounds that underlie the tradition of Lenio Strecks Crítica Hermenêutica do Direito Hermeneutical Critique of Law and based on a bibliographic research this work is structured by three chapters In the first chapter I seek to clarify the origins of classical legal positivism personified by Thomas Hobbes Jeremy Bentham and John Austin in a context of classical common law theory The second chapter turns to 20th legal positivism Ronald Dworkins law as integrity and briefly to postDworkin contemporary positivism Finally the third chapter is built directly upon Waldrons theory its conceptual grounds its main elements and practical implications and the prospects his jurisprudences insights inaugurate My conclusion is that while it is indeed possible to maintain that Jeremy Waldrons theory is a third way for jurisprudence the fact is that be that is it may Waldrons goal it seems to me is exactly to transcend mere analytical labelling contributing in a more substantive way for the possibilities of a democratic jurisprudence that respects what the ideal of the rule of law fundamentally demands Keywords Jurisprudence Jeremy Waldron Legal Positivism Law as integrity SUMÁRIO INTRODUÇÃO 13 1 AS ORIGENS DO POSITIVISMO JURÍDICO ANGLOSAXÃO 17 11 POSITIVISMO JURÍDICO ALGUMAS PALAVRAS SOBRE UMA PALAVRA 21 12 A TEORIA CLÁSSICA DO COMMON LAW 23 121 Sir Edward Coke e a artificial reasoning 25 122 John Selden e Sir Matthew Hale 28 13 O POSITIVISMO JURÍDICO COMO TAL THOMAS HOBBES 34 131 Hobbes e o common law autoridade não razão 36 132 Hobbes era mesmo um positivista 39 1321 Direito e lei natural em Thomas Hobbes 42 1322 Law of nature e civil law 44 133 Conclusão parcial 49 14 O DIREITO EM JEREMY BENTHAM 50 141 Bentham e o utilitarismo 52 142 Bentham e o positivismo 54 143 Dog law 61 144 Bentham e a evolução de seu pensamento jurídico 66 145 Conclusão parcial 71 15 O DIREITO EM JOHN AUSTIN 72 151 A analytical jurisprudence 74 1511 Contradições e convergências com Jeremy Bentham 77 1512 John Austin entre a Alemanha e a Inglaterra 79 152 Conclusão parcial e o legado da teoria jurídica de John Austin 82 2 POSITIVISMO E DIREITO COMO INTEGRIDADE 84 21 O DIREITO EM H L A HART 86 211 O que é o Direito 88 2111 As críticas de Hart à concepção imperativista 89 2112 Regras primárias e secundárias 95 2113 Regra de reconhecimento 100 2114 Direito e moral em H L A Hart 103 212 Conclusão parcial o positivismo e suas duas ou três grandes teses 108 22 O DIREITO EM RONALD DWORKIN 111 221 O general attack ao positivismo jurídico 112 2211 A controvérsia dos princípios 113 2212 Convenções e o aguilhão semântico 115 222 Law as integrity 119 2221 Interpretativismo conceito e concepções 120 2222 Convencionalismo e pragmatismo 124 2223 As respostas da integridade 126 2224 Interlúdio A evolução do pensamento de Dworkin 129 23 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O POSITIVISMO JURÍDICO DEPOIS DE RONALD DWORKIN 131 231 O postscript de The Concept of Law 132 232 O positivismo inclusivoincludente 136 233 O positivismo exclusivoexcludente 139 234 Conclusão parcial 143 3 JEREMY WALDRON E A DEMOCRATIC JURISPRUDENCE 146 31 WALDRON E O POSITIVISMO NORMATIVO 147 32 WALDRON E DWORKIN ACORDO A PARTIR DOS DESACORDOS 150 321 Law e rule of law o conceito e o império do Direito 152 3211 Against Casual Positivism 156 3212 Uma nova definição 158 322 A democratic jurisprudence 163 3221 A metodologia de uma teoria democrática 165 3222 O positivismo revisitado por que não a integridade 169 33 WALDRON E DWORKIN DESACORDOS A PARTIR DOS ACORDOS 174 331 Democracia e judicial review 175 3311 O argumento contra o judicial review 178 3312 O argumento da irrelevância da objetividade moral 183 3313 Positivismo constitucional 189 34 UMA CONCLUSÃO PARCIAL E OS ECOS DE UMA TEORIA DEMOCRÁTICA 191 341 Reconstruindo o trajeto 192 342 Os caminhos a partir da terceira via 193 343 Aquilo que fica 197 CONCLUSÃO 199 REFERÊCIAS BIBLIOGRÁFICAS 202 13 INTRODUÇÃO Estamos ocupados brigando sobre o que H L A Hart devia ter respondido a Ronald Dworkin já há muito tempo Penso que já é hora de os filósofos analíticos do Direito acordarem a outras questões1 Jeremy Waldron A terceira via de Jeremy Waldron Como o título da pesquisa sugere o que pretendo apresentar é aquilo que acredito ser uma terceira via na história da filosofia no Direito um terceiro caminho possível entre as matrizes teóricas que lhe servem de base de um lado o positivismo jurídico clássico e contemporâneo e de outro a concepção de law as integrity Direito como integridade de Ronald Dworkin Tratase assim de uma releitura da obra de Jeremy Waldron seus pressupostos teóricos e suas implicações práticas A proposta impõe alguns desafios porque Waldron é um autor que tem sido até hoje frequentemente apontado especial e mais diretamente na América Latina mas também no resto do mundo como um positivista Qualquer pesquisa rápida sobre sua obra vai acabar uma hora ou outra situando suas teses como se estas pertencessem à tradição histórica do positivismo jurídico Por uma questão de honestidade intelectual e acadêmica devo conceder que isso não é sem razão para além da solidez e importância de autores comentadores e tradutores que sustentam a atribuição do rótulo ao autor o próprio Waldron tem uma série de artigos em que discute e mais que isso defende e parece até assumir os pressupostos do positivismo jurídico a partir de uma perspectiva normativa O ponto então é que não pretendo sustentar que aquele que associa Waldron ao positivismo está errado mas que a evolução da obra do autor apresenta elementos suficientes para afirmar que sua posição transcende a mera abordagem positivista do ponto de vista analítico ou prescritivo acerca do Direito Mais do que isso procuro demonstrar igualmente que na medida em que é bem verdade que há uma série de 1 Tradução livre e contextualizada da seguinte passagem We have been too busy squabbling about what H L A Hart should have said to Ronald Dworkin I think it is high time analytic legal philosophers woke up to some of these issues Em WALDRON Jeremy Partly Laws Common to All Mankind Foreign Law in American Courts New Haven e Londres Yale University Press 2012 p 23 Tomei a liberdade de trocar some of these issues algumas dessas questões por outras uma vez que no original Waldron referese a algo específico no caso controvérsias no direito norteamericano acerca da natureza do direito internacional consuetudinário De qualquer maneira penso que a contextualização é adequada porque o ponto principal é o mesmo teoria e filosofia do Direito ainda que analítica está para além de discussões demasiadamente academicistas no sentido mais ordinário do termo 14 convergências entre Waldron e cada um dos outros dois espectros opostos positivismos e Dworkin sua aproximação com a concepção dworkiniana de law as integrity é tamanha que há boas razões para que sua obra seja tratada como algo que está para além do positivismo De todo modo dito isso retomo aquilo que diz Oakeshott não sugiro que seja a única hipótese que um indivíduo sensato pode aceitar sugiro tão somente que ela é digna de investigação2 O ponto é exatamente esse E para que isso seja possível e para estruturar a pesquisa de forma a ter coerência com a analogia que meu próprio título sugere a pesquisa está ordenada de forma tal que cada um de seus três capítulos dialogue respectivamente com uma das vias da história da Teoria do Direito Além disso cada um deles terá a pretensão de responder a algumas perguntas que lhe servem de leitmotiv No primeiro capítulo a primeira via procuro reconstruir o fenômeno do positivismo jurídico desde suas origens O que é o positivismo Mais o que é isso a que chamamos de positivismo Como e onde ele surgiu Com quem e por quê No segundo capítulo em uma transição que pretendo bastante clara com relação ao que encerra o primeiro busco explicitar uma mudança na trajetória positivista que rompeu com o que era característico ao positivismo clássico junto disso e a partir disso mostrarse á como se deu o general attack o ataque geral de Ronald Dworkin ao positivismo jurídico Com isso será possível demonstrar os reflexos desse ataque na tradição do fenômeno positivista enquanto tal ao mesmo tempo em que passo a explicar finalmente as diretrizes mais gerais da segunda via justamente a concepção dworkiniana de law as integrity Como se diferenciam os positivismos contemporâneos do positivismo clássico Por que Dworkin rejeitava o positivismo Quais eram seus argumentos Como o positivismo jurídico reagiu O que define o direito como integridade de Ronald Dworkin Até aqui com os dois primeiros capítulos a ideia é abordar evidentemente que de forma sintética as origens do positivismo jurídico a transição de sua vertente clássica às contemporâneas e os desafios de Ronald Dworkin e sua concepção aos pressupostos positivistas Os teóricos abordados logo serão o próprio Dworkin como também os mais fundamentais a todos esses assuntos especialmente Thomas Hobbes Jeremy Bentham John Austin3 e H L A Hart 2 Tradução livre I do not suggest that it is the only hypothesis a sensible man might entertain I suggest only that it is one worth while investigating OAKESHOTT Michael The Politics of Faith and the Politics of Scepticism Avon The Bath Press 1993 p 19 3 O jurista John Austin de The Province of Jurisprudence Determined Não confundir com o John L Austin da filosofia da linguagem ordinária autor de How to do Things with Words 15 O terceiro capítulo é todo dedicado à obra de Jeremy Waldron alguém cuja obra foi e tem sido construída com base justamente nas teorias desses autores abordados nos capítulos que a este antecedem Finalmente pretendo abordar a terceira via Como Jeremy Waldron encara o positivismo jurídico E a concepção de law as integrity Quais são os reflexos de ambas as correntes em sua obra O que Waldron propõe exatamente Quais são suas contradições e convergências com relação aos positivismos e Dworkin Suas teses são mesmo uma terceira via Por quê Basicamente em termos analíticos essa é a estrutura e a ideia da pesquisa Tendo esses capítulos e a pesquisa que lhes sustenta como alicerce a tese da dissertação é apresentar Jeremy Waldron como uma terceira via em Teoria do Direito Ainda assim penso que em sede de Introdução explicar também um outro lado da pesquisa é importante sua motivação e sua importância Diante de trabalhos teóricos não é raro que se pergunte algo como muito bem e qual é a relevância disso Talvez paradoxalmente enquanto acadêmico que pesquisa Teoria do Direito penso que não raro aqueles que fazem essa pergunta têm uma boa dose de razão Por trás da ideia de apresentar a obra de Jeremy Waldron como uma terceira via então estão duas rejeições e duas afirmações Primeiro as mais óbvias e diretas minha tese significa i rejeitar a vinculação de Waldron à tradição positivista e ii afirmar uma releitura de sua obra como uma terceira via possível Só que para além disso o projeto tem ainda outro detalhe por trás um detalhe que é ao mesmo tempo motivação e objetivo da pesquisa A citação que serve de epígrafe a esta Introdução ali está porque concordo com a afirmação Fazer filosofia no Direito está ou deveria estar para muito além de um fetiche acadêmico que gostemos ou não acaba por não ter qualquer relevância prática Se ao final da leitura alguém entender que é melhor dar a Waldron um rótulo de positivista tudo bem O objetivo principal autêntico é outro que considero bem mais importante Ao argumentar que a jurisprudence de Jeremy Waldron é uma terceira via quero também como sustento o próprio autor ir além dos rótulos Não acho que eles não sejam importantes se pensasse assim não teria escolhido logo uma nova rotulação ao dar o próprio título desta pesquisa Se palavras não tivessem relevância não haveria qualquer razão para escolheremos uma em vez de qualquer outra O ponto porém é que existe algo que transcende a rotulação pela rotulação que é algo com o qual perdemos muito tempo enquanto pesquisadores Assim minha tese aqui quer também i rejeitar claro que por motivos diferentes as alternativas que os positivismos e Dworkin ofereceram à prática jurídica e ii afirmar que temos muito a aprender com as considerações de Waldron sobre o papel do 16 Direito em uma comunidade política leve sua teoria o rótulo que for Não é sem razão que autores como John Rawls F A Hayek Robert Nozick e o próprio Ronald Dworkin consideravam que a filosofia política era um ramo diretamente relacionado à filosofia do Direito e à discussão da justiça e direitos fundamentais4 discutir o Direito é discutir direitos política justiça questões sobre as quais discordamos frequente e profundamente enquanto sociedade Discordamos e discordamos muito Como se verá na pesquisa isso é um dos pontos mais centrais e fundamentais na obra de Waldron É por isto que apresento sua obra como uma terceira via possível e adequada em uma democracia e sobretudo nos tempos interessantes em que vivemos é fundamental que o Direito saiba representar seu papel de maneira adequada na resolução dos desacordos Isso só será possível com uma Teoria do Direito democrática uma democratic jurisprudence Enfrentar essa questão é a autêntica raison dêtre desta pesquisa 4 O ponto é de John Gray GRAY John The Two Faces of Liberalism Nova York The New Press 2000 p 14 17 1 AS ORIGENS DO POSITIVISMO JURÍDICO ANGLOSAXÃO And when men that think themselves wiser than all others clamor and demand right Reason for judge yet seek no more but that things should be determined by no other mens reason but their own it is as intolerable in the society of men as it is in play after trump is turned to use for trump on every occasion that suite whereof they have most in their hand5 Thomas Hobbes O positivismo jurídico diz Lenio Streck é um fenômeno complexo6 Uma das razões por trás dessa complexidade fundamental é a existência de uma vasta série de concepções e teorias cada qual com suas respectivas peculiaridades e nuances cujos principais expoentes são intitulados ou se autodenominam positivistas Assim considerandose a complexidade do fenômeno antes que se inicie uma abordagem direta mais específica do tópico que dá nome a este capítulo ie o positivismo jurídico anglo saxão em suas origens tornase inevitável a seguinte reflexão quais são as características comuns que unem as obras de tantos teóricos oriundos de épocas e locais distintos sob a mesma escola de pensamento Dito de outro modo o que é ou o que define o positivismo jurídico O elevado número de definições distintas é muito provavelmente proporcional ao tamanho da controvérsia que levantam Norberto Bobbio autor vinculado ao positivismo continental tem uma forma muito própria de explicar o fenômeno e sua definição é bastante difundida no Brasil Bobbio ao 5 Em tradução livre e contextualizada e quando os homens que se julgam mais sábios do que todos os outros clamam e exigem que o critério de julgamento seja a razão reta right reason objetivam nada mais senão que as coisas sejam determinadas não pela razão de outros homens mas pela sua própria Isso é tão intolerável na sociedade dos homens como no jogo uma vez escolhido o trunfo em todas ocasiões subsequentes usar como trunfo aquela série de que se tem mais cartas na mão Cf HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 pp 111112 Mantive a epígrafe em seu idioma de origem de forma a respeitar o inglês da época 6 A frase de Lenio Streck está no magistral verbete Positivismo Jurídico em seu belíssimo Dicionário de Hermenêutica Vale conferir a obra e no ponto que importa a esta pesquisa mais especificamente o verbete acerca do positivismo Streck é pioneiro em uma interpretação acerca do fenômeno juspositivista assentada nos paradigmas da hermenêutica filosófica Cf STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 p 159 e seguintes Na mesma linha antes mesmo da publicação do Dicionário de Hermenêutica Streck foi pioneiro no Brasil em uma crítica hermenêutica ao positivimo vide Hermenêutica Jurídica em Crise e sobretudo Verdade e Consenso a meu ver a magnum opus de Steck Cf STRECK Lenio Luiz Hermenêutica Jurídica em Crise uma Exploração Hermenêutica da Construção do Direito 11 ed revista atualizada e ampliada com prefácio de Ernildo Stein Porto Alegre Livraria do Advogado 2013 pp 134138 STRECK Lenio Luiz Verdade e Consenso Constituição Hermenêutica e Teorias Discursivas 6 ed revista modificada e ampliada São Paulo Saraiva 2017 pp 3366 18 conceituar a doutrina juspositivista enumera os sete pontos ou problemas que considera como características fundamentais do positivismo jurídico7 Defineo assim como uma teoria que i considera o Direito como um fato e não como um valor e sendo assim ii considera como Direito aquilo que vige como tal em determinado lugar fazendose valer por meio da coação de forma a iii atribuir à legislação o caráter de fonte preeminente do Direito A partir daí a concepção positivista deve ser entendida como iv uma teoria imperativista isto é uma teoria segundo a qual o Direito reúne normas comandos imperativos que tomados como uma estrutura formam o ordenamento jurídico este que para o positivismo frisese segundo Bobbio seria v um ordenamento completo e coerente a ser portanto vi interpretado mecanicamente pelo juiz Por fim haveria ainda um ponto que mesmo não se podendo fazer sobre ele aquilo que o autor chama de generalizações fáceis faria parte de uma conceituação ampla do positivismo vii a teoria da obediência absoluta da lei enquanto tal8 que Bobbio resume no aforismo Gesetz ist Gesetz ie lei é lei9 7 Cf a Introdução da parte intitulada A Doutrina do Positivismo Jurídico em BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 pp 131134 8 Diz Bobbio que com referência a esta teoria contudo melhor do que de positivismo jurídico deverseia falar de positivismo ético visto que se trata de uma afirmação de ordem não científica mas moral ou ideológica e também as origens históricas dessa doutrina são diferentes daquelas das outras teorias juspositivistas enquanto de fato estas últimas concernem ao pensamento racionalista do século XVIII a primeira diz respeito ao pensamento filosófico alemão da primeira metade do século XI e em particular a Hegel BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 133 Ou seja Bobbio diz que esse último aspecto enumerado como característica fundamental do positivismo jurídico poderia ser colocado mais como uma assertiva ideológica ou moral vinculada a uma concepção positivista do Direito e menos como parte de uma empreitada científica entendida aqui como analítica e sendo assim chama a esse ponto de positivismo ético Esse rótulo não é difundido contemporaneamente o que se tem entendido por positivismo ético é aquilo mais comumente chamado de positivismo normativo vertente do positivismo jurídico mais atual sobre o qual os próximos capítulos deste trabalho especialmente o terceiro tratarão com mais vagar que distanciandose de uma pretensão meramente analítica visa a prescrever uma concepção positivista do Direito O termo ethical positivism foi cunhado por Tom Campbell notadamente um positivista normativo ele próprio justamente com a intenção de evitar confusões conceituais uma vez que a palavra normativo segundo Campbell poderia remeter a positivismo normativista esta a vertente kelseniana que muito resumidamente entende o Direito a partir de uma concepção de normas Cf WALDRON Jeremy Normative or Ethical Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 pp 410434 Esta nota que tem óbvias pretensões explicativas acaba tendo também uma interessante função exemplificativa do ponto abordado pelo presente subcapítulo Senão vejamos em um tópico que surgiu justamente com a pretensão de prestar esclarecimentos prévios sobre um tema que implica a possibilidade de malentendidos terminológicos aqui tão somente em uma explicação sobre um único termo já fica explícita outra possível confusão conceitual Dito de outro modo não apenas o termo positivismo é como veremos ao longo da pesquisa controverso por si só outros termos disputados acabam emergindo dentro da própria discussão terminológica que paradoxalmente visava a tornar as coisas mais claras Não surpreende pois que até hoje haja tanta divergência doutrinária 9 Para uma crítica que além de importantíssima diferencia com rigor os positivismos ideológico teórico e metodológicoconceitual Cf STRECK Lenio Luiz Verdade e Consenso Constituição Hermenêutica e Teorias Discursivas 6 ed revista modificada e ampliada São Paulo Saraiva 2017 pp 4547 19 A definição de Bobbio passa muito longe de resolver as controvérsias10 Ainda que alguns de seus pontos especialmente aqueles de i a iv estejam em alguma medida em consonância com as vertentes e entendimentos contemporâneos que se têm acerca do positivismo suas definições são duplamente restritivas primeiro porque ensejam uma compreensão limitada do Direito segundo porque se adotadas suas noções já não mais possibilitariam que muitos autores hoje apontados unanimemente como positivistas tivessem seus nomes vinculados àquilo que se entende por positivismo Que fique muito claro pois esta pesquisa não subscreve à noção de que o positivismo jurídico atende às sete características reunidas pelo autor italiano Para H L A Hart indisputavelmente um dos maiores nomes do positivismo jurídico senão o maior11 o positivismo designa a afirmação simples de que não é necessariamente verdade que as leis reproduzam certas exigências da moral ou a satisfaçam12 Disso seguese que tanto a existência quanto o conteúdo do Direito dependem de fatos sociais e não da satisfação de determinados valores substantivos13 daí pois duas grandes teses positivistas i a tese justamente das fontes sociais e ii a tese da separabilidade entre Direito e moral Uma questão é o que o Direito é is o que o Direito deve ser ought é outra questão John Gardner14 por sua vez em capítulo dedicado justamente a desmistificar algumas noções atribuídas com certa frequência ao positivismo jurídico segue uma definição muito similar à de Hart fazendo questão de expor muito claramente que a trata como a única característica distintiva do positivismo jurídico e seus adeptos Para Gardner será um positivista jurídico somente aquele que subscreve à proposição segundo a qual em um sistema jurídico a validade jurídica de uma norma depende de suas fontes não de seus méritos15 10 SILTALA Raimo Law Truth and Reason A Treatise on Legal Argumentation Dordrecht Springer Netherlands 2011 p 119 11 Que curiosamente dificilmente poderia ser chamado de positivista se as seis características ditas fundamentais de Bobbio fossem integralmente levadas em consideração 12 HART H L A O Conceito de Direito Pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz tradução de Antônio de Oliveira SetteCâmara São Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 240 13 GREEN Leslie Legal Positivism In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesspr2018entrieslegalpositivism Acesso em 14 mar 2018 14 Que assim como Hart ocupou a cátedra de Jurisprudence na Universidade de Oxford 15 In this chapter I intend to treat one and only one proposition as the distinctive proposition of legal positivism and to designate as legal positivists all and only those who advance or endorse this proposition The proposition is LP In any legal system whether a given norm is legally valid and hence whether it forms part of the law of that system depends on its sources not its merits Cf GARDNER John Legal Positivism 5½ Myths In GARDNER John Law as a Leap of Faith Oxford Oxford University Press 2012 p 20 20 Uma definição mais modesta porque exigente de muito menos requisitos como as de Hart e Gardner16 será consideravelmente mais segura que aquela de Bobbio Ainda assim por óbvio são definições abstratas tratam do positivismo em linhas gerais e por isso servem apenas de ponto de partida17 Gerald Postema autor contemporâneo que também é por sua vez vinculado ao positivismo por exemplo em interessantes reflexões sobre o tema menciona que não apenas as teses positivistas são contestadas como também o são as próprias alegações sobre quais são essas teses18 Assim o autor sugere que em vez de um apego exacerbado a contestadas formulações canônicas que prédefinam a doutrina positivista de forma taxativa é mais interessante que se trabalhe a partir de investigações que abordem como o positivismo foi articulado e desenvolvido ao longo dos séculos mais precisamente para que se possa compreender o fenômeno adequadamente é importante que o olhar esteja voltado às suas origens E as origens do positivismo com toda sua longa história e ampla influência remontam à Inglaterra mais precisamente i à filosofia de David Hume e ii às suas primeiras manifestações jurídica de facto19 desenvolvidas por Thomas Hobbes e Jeremy Bentham20 É sobre essas origens que trata o presente capítulo À época contudo ainda que já fosse 16 A definição de ambos Hart e Gardner é muito próxima da clássica definição de John Austin um dos mais influentes teóricos de toda a história do Direito anglosaxão que será tratado com mais vagar em subcapítulo subsequente e apontado como um dos pioneiros do positivismo jurídico enquanto tal ainda que à época o rótulo não existisse como será explanado a seguir Para Austin muito diretamente a existência do Direito é uma coisa seus méritos ou deméritos outra Existir é uma questão estar de acordo a um determinado padrão é outra Uma lei que de fato existe é uma lei ainda que eventualmente desgostemos dela ou venha de um texto que aprovamos ou desaprovamos Tradução livre para the existence of law is one thing its merit or demerit is another Whether it be or not is one enquiry whether it be or be not conformable to an assumed standard is a different enquiry A law which actually exists is a law though we happen to dislike it or though it vary from the text by which we regulate our approbation and disapprobation Em AUSTIN John The Province of Jurisprudence Determined Edited by Wilfrid E Rumble Cambridge Cambridge University Press 2001 1832 p 157 17 Já que como vimos há uma série de teorias muito particulares que levam esse mesmo rótulo Lembrando as acertadíssimas palavras de Streck o positivismo é mesmo um fenômeno complexo Se esta pesquisa não atender a seus objetivos que ao menos sirva para demonstrar a complexidade do fenômeno 18 POSTEMA Gerald J Legal Positivism Early Foundations University of North Carolina Legal Studies Research Paper Series n 1975470 dez 2011 Disponível em httpsssrncomabstract1975470 Acesso em 14 mar 2018 19 Sobre a primeira manifestação jurídica já estar em Thomas Hobbes ver BOYLE James Thomas Hobbes and the Invented Tradition of Positivism Reflections on Language Power and Essentialism University of Pennsylvania Law Review vol 135 pp 383426 Gerald Postema por sua vez chega inclusive a mencionar a identificação de uma Teoria do Direito já em Hume em suas reflexões sobre a justiça cf POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 pp 81134 Seja como for o mais importante é que são esses Hume Hobbes e Bentham os três nomes mais frequentes quando se fala nas raízes do positivismo jurídico 20 Cf GREEN Leslie Legal Positivism In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesspr2018entrieslegalpositivism Acesso em 14 mar 2018 DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 pp 174 175 CHIASSONI Pierluigi O Enfoque Analítico na Filosofia do Direito de Bentham a Kelsen São Paulo Contracorrente 2017 pp 2627 21 possível observar as raízes do positivismo como tal não se falava em positivismo isto é nenhum desses autores era chamado de ou autointitulado positivista Isso levanta novas questões sobre a expressão o que naturalmente exige mais algumas considerações prévias 11 POSITIVISMO JURÍDICO ALGUMAS PALAVRAS SOBRE UMA PALAVRA21 Para além da contestabilidade das teses positivistas e sobretudo sobre quais são as teses positivistas há ainda outras questões pertinentes se em suas vertentes clássicas os primeiros expoentes dessa matriz teórica assim o eram avant la lettre não eram chamados de positivistas22 qual é a origem na Teoria do Direito23 do termo positivismo Quando e por que então os autores vinculados ao fenômeno passaram a receber o rótulo Essas duas perguntas definitivamente não estão controvertidas ainda assim buscar respondelas auxilia a esclarecer e compreender a teoria positivista Como dito ainda que a teoria já existisse não se atribuía o nome de positivismo a qualquer concepção jurídica antes do início do século xx e é no mínimo muito difícil precisar o surgimento do termo na literatura jurídica Ainda assim de acordo com Frederick Schauer outro positivista contemporâneo é possível afirmar que essa rotulação tornouse 21 Aqui devese obrigatoriamente fazer menção a Frederick Schauer a quem pode ser atribuída a origem deste subcapítulo quase que em sua integralidade tanto das reflexões aqui levantadas quanto do próprio título Em Positivism Before Hart Schauer faz uma investigação sobre a expressão positivismo e no ponto intitula seu tópico de Some Words about a Word justamente em tradução livre Algumas Palavras sobre uma Palavra Cf SCHAUER Frederick Positivism Before Hart In FREEMAN Michael MINDUS Patricia eds The Legacy of John Austins Jurisprudence Rotterdam Springer Netherlands 2013 pp 271290 22 Em Law Legislation and Liberty Hayek chega a classificar Hobbes Bentham e até Austin este último que é penso chamado unanimemente de positivista como racionalistas construtivistas ao identificalos com uma corrente por ele chamada justamente de racionalismo construtivista rationalist constructivism uma vez que conforme se verá ao longo desta pesquisa esses autores identificavam o conteúdo das normas jurídicas como produto de um ato de vontade algo a que Hayek chama criticamente de falácia construtivista constructivist fallacy Ainda assim o mesmo Hayek na mesma obra acaba por identificar esse pensamento como algo tipicamente juspositivista identificando Hobbes como o primeiro expoente da escola Cf HAYEK F A Law Legislation and Liberty A New Statement of the Liberal Principles of Justice and Political Economy Cornwall Routledge 1998 pp 28 45 74 23 Sobre a locução Teoria do Direito fiquemos aqui com as lições de Chiassoni em tópico denominado de Advertência Preliminar que em certa medida não deixa de ter a mesma missão do presente tópico já que aqui antes de se abordar o positivismo diretamente também se procura fazer exatamente advertências preliminares A filosofia do direito positivo é na cultura jurídica ocidental o que fizeram ou fazem os estudiosos na maioria das vezes os acadêmicos os quais para designar seu trabalho ou seus produtos literários usaram ou usam tal denominação ou denominações consideradas sinônimas na língua portuguesa ou em outras línguas como jurisprudence legal philosophy legal theory Rechtstheorie teoria do direito teoría del diritto théorie du droit allgemeine Rechtstheorie allgemeine Rechtslehre general theory of law teoria geral do direito teoria generale del diritto teoría del derecho etc In CHIASSONI Pierluigi O Enfoque Analítico na Filosofia do Direito de Bentham a Kelsen São Paulo Contracorrente 2017 pp 2223 22 mais ampla difundida a partir justamente de um autor não positivista ou antipositivista24 notadamente Lon Fuller em The Law in Quest of Itself Ainda que Fuller i seja um autor jusnaturalista e ii talvez por vezes ao tratar sobre o positivismo tenha incorrido em aquilo que Schauer chama de imprecisões o próprio Schauer diz que Fuller acertou em alguma medida em suas considerações25 mais precisamente Fuller teria acertado ao caracterizar o positivismo como uma direção de pensamento jurídico que insiste em traçar uma afiada distinção entre o Direito como ele é e o Direito como ele deve ser26 Controvérsias à parte a expressão positivismo tem sido amplamente aceita tanto por aqueles que subscrevem quanto por aqueles que criticam as teses ou ao menos algumas das teses que no mais das vezes vêm a ser chamadas de positivistas e sendo assim a definição de Fuller aliada às de Hart e Gardner27 é um bom ponto de partida À ela somase ainda uma relação bastante difundida a associação direta entre o termo positivismo e a locução direito positivo28 Hayek menciona os termos gregos physei e thesei e seus equivalentes latinos naturalis e positivus para daí decorrer a expressão direito positivo e depois positivismo2930 24 SCHAUER Frederick Positivism Before Hart In FREEMAN Michael MINDUS Patricia eds The Legacy of John Austins Jurisprudence Rotterdam Springer Netherlands 2013 pp 271290 25 SCHAUER Frederick Positivism Before Hart In FREEMAN Michael MINDUS Patricia eds The Legacy of John Austins Jurisprudence Rotterdam Springer Netherlands 2013 pp 271290 26 Tradução livre para a direction of legal thought which insists on drawing a sharp distinction between the law that is and the law that ought to be Em FULLER Lon L The Law in Quest of Itself Boston Beacon Press 1940 p 08 Observese que a definição do jusnaturalista Fuller aproximase ao menos em alguns aspectos daquela de Hart e Gardner exposta no item anterior Isso indica que mesmo que inevitavelmente generalizantes e ainda que seja de nosso interesse investigar as origens do fenômeno é possível seguir essas abstrações em alguma medida e sempre com certa cautela como uma espécie de ponto de referência 27 Cf p 12 desta pesquisa 28 Cf BIX Brian H Diccionario de Teoría Jurídica Tradução para o espanhol de Enrique Rodríguez Trujano e Pedro A Villarreal Lizárraga Cidade do México UNAM 2009 p 197 BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 15 Chiassoni inclusive chega a falar em uma filosofia do direito positivo CHIASSONI Pierluigi O Enfoque Analítico na Filosofia do Direito de Bentham a Kelsen São Paulo Contracorrente 2017 p 26 Aqui cumpre fazer uma observação ao associar positivismo com direito positivo tanto Brian Bix quanto Norberto Bobbio fazem questão de expressamente afastar qualquer relação entre o positivismo jurídico e o positivismo científico de Auguste Comte um dos argumentos inclusive especialmente em Bix é a de que autores anteriores a Comte como justamente Hobbes e Bentham como vimos já eram chamados de positivistas Por outro lado autores como Suri Ratnapala professor da cátedra de Direito Público na Universidade de Queensland e no Brasil Lenio Streck sustentam que há uma relação filosófica inexorável entre o positivismo jurídico e o positivismo científico cf STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 p 159 RATNAPALA Suri Jurisprudence Nova York Cambridge University Press 2009 pp 2223 Evidentemente Streck e Ratnapala não negam que autores vinculados ao positivismo jurídico sejam anteriores a Comte a relação que o hermeneuta sustenta está no apego de ambas as escolas a tudo aquilo que é empírico e isso relações diretas ou não entre os dois positivismos à parte não é negado por nenhum dos lados na discussão É o que nos importa para a presente pesquisa 29 HAYEK F A Law Legislation and Liberty A New Statement of the Liberal Principles of Justice and Political Economy Cornwall Routledge 1998 pp 20 e seguintes 23 É por isto portanto que autores cujas obras situamse em uma época na qual sequer se falava em positivismo são tranquilamente associados à escola porque ressalvadas todas as controvérsias que envolvem a identificação das teses positivistas e mais o próprio surgimento do termo no estudo do Direito parece ser plenamente possível falar hoje em positivismo jurídico associandoo a teorias voltadas i ao direito positivo e ii a possibilidade de uma distinção entre uma análise do Direito como ele é e outra de como ele deve ser Isso significa que ainda que não levassem esse nome à época essas teses foram desenvolvidas justamente por autores clássicos De todo modo feitas essas considerações sigamos a recomendação de Gerald Postema Ultrapassando qualquer pretensão de se chegar a um conceito último de positivismo tentemos melhor compreendelo enquanto fenômeno primeiro a partir de suas origens para a partir daí identificalo em suas vertentes modernas e contemporâneas É muito mais adequado e sensato discorrer sobre as manifestações do pensamento juspositivista do que definilo de forma taxativa e abstrata como dizia Merquior citando a Nietzsche apenas seres ahistóricos permitem uma definição no verdadeiro sentido a palavra31 12 A TEORIA CLÁSSICA DO COMMON LAW As raízes do positivismo jurídico então porque inglesas acabam remetendo por óbvio ao common law mais precisamente aos desafios que uma visão positivista do Direito propôs ao common law no século XVII Esses desafios podem ser bem ilustrados pelas considerações de Thomas Hobbes em Leviathan publicado em 165132 e especialmente em Dialogue between a Philosopher a Student of the Common Laws of England33 escrito na década de 1660 e publicado em 1681 razão pela qual Hobbes é de 30 Outro entendimento que ainda que não faça menção expressa à locução direito positivo em si muito se aproxima da explanação de Bix e Bobbio nota 28 supra é a de Siltala cuja distinção entre os dois tipos de positivismo dáse no seguinte sentido enquanto o positivismo científico reivindicaria uma concepção positivista das ciências o positivismo jurídico basearseia em uma concepção voluntarista do Direito Cf SILTALA Raimo Law Truth and Reason A Treatise on Legal Argumentation Dordrecht Springer Netherlands 2011 p 113 Essa é a mesma lógica que perpassa a ideia hayekiana de um positivismo jurídico como um construtivismo racionalista cf nota 21 supra 31 MERQUIOR José Guilherme O Liberalismo Antigo e Moderno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991 p 15 32 HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 Passim 33 HOBBES Thomas Diálogos entre um Filósofo e um Jurista Prefácio de Renato Janine Ribeiro e tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino São Paulo Landy 2004 1681 Passim 24 acordo com a interpretação ortodoxa o primeiro positivista34 de todo modo Hobbes não foi o único é possível dizer que o positivismo anglosaxão nasce justamente a partir desses desafios que impôs ao direito comum inglês Antes que se explique quais foram esses desafios contudo é preciso tecer algumas noções sobre qual era esse cenário a ser desafiado sobre quais eram os paradigmas que lhe serviam de sustentação Iniciemos portanto pelo começo pelo começo histórico sobre o qual prometo ser breve Ainda que as origens e a tradição do common law remontem a tempos muito anteriores ao século XVII é por volta deste período que se passou a desenvolver uma teoria do common law É por isso que quando se fala em uma teoria clássica do common law estáse falando no corpo teórico que começava a tomar forma a partir das contribuições de um dos mais importantes juristas de toda a história anglosaxã Sir Edward Coke 1552163435 razão pela qual o direito inglês ao longo de parte do século XVII viveu aquilo que se convencionou chamar de Era Coke36 O desenvolvimento de um corpo teórico dedicado ao estudo do Direito no common law deve enorme parcela de seu surgimento a uma tentativa de resposta ao absolutismo A teoria clássica do common law nesse sentido visava a retomar as concepções medievais segundo as quais o Direito não era produzido pela mão humana ou seja não era construído por reis juízes ou membros do Parlamento Legisladores e juristas não criavam mas declaravam e expressavam um Direito preexistente que era a manifestação de uma realidade muito mais profunda37 Partindo desse pressuposto Sir Coke e os teóricos clássicos consideravam que o direito comum era a única fonte verdadeira de Direito na Inglaterra38 Esse direito comum por sua vez remetia ao costume comum ao povo e de tão antigo imemorial39 que por 34 A eventual controvérsia será discutida mais adiante 35 POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 p 04 36 Ver o segundo capítulo The Age of Sir Edward Coke de LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 37 POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 p 05 38 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 33 39 Coke por vezes chega a fazer menção aos costumes das tribos saxônicas Em POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 p 06 25 meio da tradição e da experiência representava em si uma espécie de coletânea histórica de máximas nãoescritas 40 O common law portanto não reunia simplesmente um padrão de regras que podia ser previamente definido Isso porque além dos costumes que não podiam ser simples e facilmente descritos justamente porque imemoriais as leis naturais formavam as bases a partir das quais o sistema era construído Não por menos Sir Coke enquanto common lawyer não hesitava em invocar aquilo que chamava de eternas leis do Criador41 Além disso mas também por isso o common law era visto pela teoria clássica também como a expressão natural do bem comum e da razão humana Nas palavras de A W B Simpson não haveria no sistema anglosaxão qualquer possibilidade de uma distinção muito clara entre dizer que determinada solução para um problema estava de acordo com o Direito e dizer que tal solução era a solução justa racional42 A lei era a razão Isso não significa dizer que o common law era aceito e validado pela razão seus princípios latentes expressavam a razão Tampouco significa que o common law resumirseia à razão porque os common lawyers ie juízes juristas advogados davam forma a essa razão comum a partir de um tipo de raciocínio específico típico e particular do Direito43 121 Sir Edward Coke e a artificial reasoning De acordo com a teoria clássica do common law esse raciocínio subjacente ao direito comum inglês era uma espécie de aperfeiçoamento artificial da razão Nenhum homem dizia Sir Coke deve ser mais sábio que o Direito que é a razão aperfeiçoada44 O common law a partir dessa visão45 dentro da qual além de Sir Coke uma série de importantes 40 POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 pp 0507 41 Em LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 pp 36 37 42 Cf SIMPSON A W B The Common Law and Legal Theory In SIMPSON A W B ed Oxford Essays in Jurisprudence second series Oxford Oxford University Press 1973 pp 7799 43 POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 pp 0507 44 Tradução livre para No man ought to be wiser than the law which is the perfection of reason Em LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 35 45 Como dito ao início deste item a visão de Sir Coke foi uma das concepções dominantes sobre o common law na teoria clássica surgida no século XVII havia ainda outra importante linha teórica nesse século associada a Selden e Sir Hale que serão tratados com mais vagar no item subsequente Os scholars contemporâneos 26 teóricos como Thomas Hedley e Sir John Davies46 trabalhavam sob paradigmas muito similares tinha sim seus alicerces na razão mas constituía em si um outro tipo de processo intelectual O common law portanto expressava essa razão natural que lhe servia de base a partir de um tipo artificial de raciocínio que por si mesmo aperfeiçoava essa razão fundante O termo artificial reasoning ie artificial uso da razão raciocínio artificial que veio a ser amplamente difundido e aceito como fundamento do direito inglês no século XVII deve suas origens à resposta de Sir Coke a uma série de tentativas do Rei James I de decidir pessoalmente alguns casos tirandoos da competência das Cortes Para o jurista a única forma através da qual seria possível honrar plenamente o princípio fundamental disposto em lex facit regem47 seria contrapor ao raciocínio dito natural do Rei que tentava decidir casos extrajudicialmente a artificial reasoning do common law a razão do rule of law que se daria exatamente através do exercício dessa espécie distinta de razão disciplinada nas Cortes48 Esse raciocínio artificial alicerce do common law segundo as concepções dominantes à época teria seis características típicas seis dimensões que além de caracteriza lo explicariam por que essa espécie distinta de razão do Direito seria um aperfeiçoamento da razão natural A artificial reasoning era i pragmática focada na resolução de problemas práticos e constituía ii uma missão pública que conferia considerações voltadas à justiça a esse aspecto pragmático era também iii contextual no sentido de que o juiz do common law somente adquiriria sua capacidade especial de raciocínio e julgamento a partir da experiência com anos de imersão na particularidade do direito comum e iv não sistematizada no sentido de que uma coerência local seguindo a lógica pragmática era mais importante que perspectivas teóricas sobre o corpo do sistema como um todo v discursiva isto é construída oralmente e por isso nas palavras de Sir Coke a argumentação discursiva era expressão da razão e por fim era uma razão vi comum compartilhada divergem sobre qual das duas teorias era e foi a mais significativa Para um aprofundamento no tema ver especialmente em 169176 POSTEMA Gerald J Classical Common Law Jurisprudence Part I Oxford University Commonwealth Law Journal vol 02 n 02 2002 pp 155180 46 Alguns autores chegam a se referir ao período em comento como a Era CokeDavies 47 O Direito ou a lei faz o Rei Atribuído a Bracton em De Legibus et Consuetudinibus Angliae Cf POSTEMA Gerald J Classical Common Law Jurisprudence Part II Oxford University Commonwealth Law Journal vol 03 n 01 2003 pp 0128 48 POSTEMA Gerald J Classical Common Law Jurisprudence Part II Oxford University Commonwealth Law Journal vol 03 n 01 2003 pp 0128 27 superando assim enquanto prática compartilhada a razão natural por sua vez passível de ser exercida a individualmente49 Esse aperfeiçoamento da razão dizia respeito concomitantemente ao processo e ao produto à atividade dos common lawyers e o conhecimento que nela era expressado e adquirido Coke atribuía ao Direito a razão e a tarefa do profissional consistia em revelar a sabedoria nele contida Assim o direito inglês passava a ser dotado de autoridade no mesmo lugar no qual adquiria uma forma racional na mente do juiz50 Nas palavras de Anderson Vichinkeski Teixeira Sir Coke enxergava na figura do juiz um intérprete do conhecimento empíricojurídico criado durante séculos e esse conhecimento era norteador da conduta do magistrado na busca da realização da justiça Isso porque em Sir Coke a lei escrita perfectibilização formal da sabedoria e da vontade do legislador poderia ser afastada nas hipóteses em que o juiz responsável por aplicala entendesse ser mais conveniente aplicar uma regra costumeira em determinado caso concreto51 Essa evidentemente era a caracterização feita pelos praticantes que subscreviam a essa ideia de uma artificial reasoning Há quem sustente hoje que essa cisão essa divisão entre dois tipos distintos de raciocínio era nada mais que uma tentativa de afastar o Direito dos cidadãos comuns uma espécie de acordo mútuo e silencioso entre juristas juízes e advogados para preservar um distanciamento entre os cidadãos e uma elite jurídica52 Para Postema contudo ao mesmo tempo em que seria ingênuo pensar que os juristas da época eram absolutamente alheios a intenções do tipo também não se pode por outro lado deixar que uma espécie de cinismo exacerbado considere como absoluta mistificação elitista aquilo que tem importante valor teórico para caracterizar a prática do common law do século XVII53 Isso quer dizer que seja genuína seja artifício retórico para conservar uma 49 Em POSTEMA Gerald J Classical Common Law Jurisprudence Part II Oxford University Commonwealth Law Journal vol 03 n 01 2003 pp 0128 50 CROMARTIE Alan Sir Matthew Hale 16091676 Law Religion and Natural Philosophy Cambridge Cambridge University Press 1995 pp 15 1819 51 TEIXEIRA Anderson Vichinkeski Estado de Nações Hobbes e as Relações Internacionais no Século XXI Porto Alegre Sergio Antonio Fabris 2007 p 24 Sobre o ponto ver o primeiro capítulo da obra que ainda que trabalhe sob outra perspectiva diferente da adotada por esta pesquisa enquanto aqui abordase o positivismo de Thomas Hobbes para se chegar em Jeremy Waldron a obra de Vichinkeski Teixeira parte de Hobbes para traçar paralelos com as relações internacionais contemporâneas é preciso mencionar é uma das raras em língua portuguesa a abordar a filosofia hobbesiana com tamanha profundidade 52 NENNER Howard By Colour of Law Legal Culture and Constitutional Politics in England 16601689 Chicago University of Chicago Press 1977 p 117 53 POSTEMA Gerald J Classical Common Law Jurisprudence Part II Oxford University Commonwealth Law Journal vol 03 n 01 2003 pp 0128 28 mistificação do sistema é necessário entender a artificial reasoning para que se possa ter uma perspectiva suficientemente ampla de um período histórico do direito inglês Em síntese pois era este o núcleo do common law na Era Coke um sistema jurídico fundado i em costumes cujas origens diziase eram impossíveis de se datar ii na lei natural e iii na razão que era aperfeiçoada pela artificial reasoning do Direito54 e esse portanto era o contexto em que Thomas Hobbes desenvolvia suas críticas Antes contudo abordarseá novamente de forma breve um ponto frequentemente ignorado na literatura jurídica sobretudo a brasileira a possibilidade levantada especialmente por Michael Lobban55 de que se atribua John Selden e Sir Matthew Hale autores típicos do common law um certo pioneirismo em um redirecionamento teórico do direito anglosaxão a uma direção mais positivista 122 John Selden e Sir Matthew Hale Como já observado o início da tradição do positivismo é mais que frequentemente associado a Thomas Hobbes De todo modo não é como se a concepção de Sir Coke sobre o common law fosse uma unanimidade absoluta ainda que Hobbes tenha sido de fato o grande responsável pelo primeiro ataque geral a uma visão segundo a qual o direito comum inglês seria um aperfeiçoamento artificial da razão baseado nos costumes e na lei natural razão pela qual se explica por que ao contratualista é justa e pontualmente atribuída essa condição de marco teórico já era possível observar no mesmo século XVII outras frentes que serviam de alicerce àquilo que se sinalizava como a condução da teoria do common law a em 54 LOBBAN Michael The common law mind in the age of Sir Edward Coke Amicus Curiae n 33 janfev 2001 pp 1821 Disponível em httpsasspacesasacuk37661134814841SMpdf Acesso em 16 mar 2018 55 Ver especialmente o item 31 pp 6164 intitulado The Positivism of Selden and Hale do terceiro capítulo de LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 Lobban reforça o ponto em outras passagens em outras obras If Sir Edward Coke was the champion of the notion that the common law was the perfection of reason his contemporaries took a view wich looks more positivist Em tradução livre se Sir Edward Coke era o campeão da noção de que o common law era a razão aperfeiçoada seus contemporâneos Selden e Hale tomavam uma visão que aparenta ser mais positivista Em LOBBAN Michael Custom Nature and Authority the roots of English legal positivism In LEMMINGS David ed The British and their Laws in the Eighteenth Century Woodbridge The Boydell Press 2005 p 29 Digase ainda que essa relação entre a Era SeldenHale e um giro positivista não aparece somente em Lobban Cf SYTSMA David S Matthew Hale as Theologian and Natural Law Theorist In HELMHOLZ R H HILL Mark eds Great Christian Jurists in English History Cambridge Cambridge University Press 2017 pp 163186 29 alguma medida ao menos uma direção mais positivista56 Isso é importante porque ainda que Hobbes e Bentham sejam os primeiros teóricos da escola que hoje entendemos como positivismo jurídico ou seja os primeiros positivistas per se essa reaproximação teórica do direito anglosaxão com o direito positivo deuse a partir de John Selden e seu discípulo Sir Matthew Hale57 e a relevância desses juristas para o direito inglês não pode ser subestimada uma vez que a Era Coke não foi o único fio condutor do common law presente no século XVII Também foi esse o século da Era SeldenHale58 Enquanto a concepção da Era Coke por fazer uma associação direta entre os costumes e a lei natural exigia que se respeitasse em alguma medida um certo caráter de imutabilidade do direito inglês59 já que em todo seu conservadorismo Sir Edward Coke via como extremamente perigosa qualquer modificação naquilo no qual se verificava uma continuidade imemoriável especialmente quando a manifestação desses costumes pelo Direito têm como pano de fundo a artificial reasoning tipicamente jurídica esta por sua vez imutável por essência60 havia quem entendesse que as leis eram perfeitamente sujeitas a mudanças John Selden jurista cuja importância é tamanha que John Milton o consagrado poeta inglês chamavao de o líder dos homens instruídos em sua terra61 foi o grande representante dessa corrente na divergência Contrariando a ideia cokeana de que o common law não reunia em si regras e costumes que podiam ser descritos já que a origem dos costumes porque fundados na justiça natural e comum aos homens e repetidos quase que integralmente através dos tempos fugiria ao alcance da memória Selden entendia que o Direito era um conjunto de regras positivas cujas fontes seja o próprio costume ou um Ato do Parlamento eram 56 Aqui lembremos e portanto tenhamos em mente que o termo positivismo remete a direito positivo Isso quer dizer que uma direção mais positivista significa uma direção que se aproxima mais do direito positivo e proporcionalmente pois afastase do apego ao direito natural predominante na Era Coke 57 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 61 58 Ver o terceiro capítulo The Age of Selden and Hale de LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 59 Em LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 pp 3435 60 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 pp 3435 61 Em HAIVRY Ofir John Selden and the Western Political Tradition Cambridge Cambridge University Press 2017 p 02 30 identificáveis62 A lei não era produto da razão mas da autoridade e ainda que antigos os costumes não eram nem imutáveis nem tinham origens de impossível identificação Em Sir Coke havia um apelo à razão em Selden um apelo ao contrato63 Dito de outro modo ainda que ambos convergissem ao ver no common law um longo desenvolvimento histórico havia uma clara divergência enquanto Coke via nisso uma característica de imemoriabilidade que levaria quase a uma imutabilidade natural já que sua base era a razão Selden via a partir da compreensão da história uma clara demonstração de mudanças ao longo do tempo64 já que as leis emanavam menos da razão e mais de uma autoridade que se perfectibilizava nos acordos entre os cidadãos65 Assim é importante que se diga que Michael Lobban não deixa de ter razão ao atribuir à Era SeldenHale o início de um acolhimento a teses mais positivistas no common law Ainda que as noções inauguradas por John Selden tivessem por trás a lei natural e sua respectiva observância como alicerce básico era possível identificar66 a partir delas no direito comum um conjunto de regras válidas mutáveis muito mais abertas às contingências que estavam menos vinculadas à razão e muito mais fortemente atreladas a acordos sociais um conjunto pois de regras positivas E essa tendência em tese mais positivista inaugurada por John Selden foi acompanhada e teve em grande medida seu seguimento e difusão em razão de um discípulo de seus discípulos Sir Matthew Hale Juiz e proponente de reformas no direito inglês ainda que não tenha atingido a mesma relevância de seu mestre em um sentido teórico e 62 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 pp 6263 63 Cf os títulos dos dois primeiros capítulos de CROMARTIE Alan Sir Matthew Hale 16091676 Law Religion and Natural Philosophy Cambridge Cambridge University Press 1995 respectivamente Coke The Appeal to Reason pp 1129 e Selden The Appeal to Contract pp 3041 64 Em seus trabalhos Selden rejeitava uma veneração cokeana da antiguidade do common law Todas as leis dizia ele eram igualmente antigas e igualmente fundadas na natureza Entretanto elas tomavam caminhos distintos e para Selden todos os costumes que vêm de uma fundação a natureza variam de commonwealth para commonwealth Mais do que isso as leis eram sujeitas a mudanças De suas origens as leis aumentavam alteravamse ou eram interpretadas de modo que salva somente a parte imutável da natureza elas eram como um barco que por constantes reformas já não mais tem seus primeiros materiais Tradução livre para in these works Selden rejected a Cokean veneration of the antiquity of the common law All laws he retorted were equally founded in nature However they had taken different paths and hence it is that those customs which have come all out of one foundation nature thus vary from and cross one another in several commonwealths Moreover laws were subject to change From their beginnings laws increased altered or were interpreted so that save for the meerly immutable part of nature they were like a ship that by often mending had no piece of the first materials remaning Em LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 61 65 CROMARTIE Alan Sir Matthew Hale 16091676 Law Religion and Natural Philosophy Cambridge Cambridge University Press 1995 p 32 66 E isso por si só já é importante Afinal lembremos em Sir Coke os costumes imemoriais apontavam à sua impossível identificação e descrição 31 filosófico Sir Hale foi o grande responsável por transmitir e difundir as concepções de John Selden sobre o common law E não só isso foi ele quem conseguiu enquanto teórico combinar os insights de Sir Coke sobre a natureza do Direito à perspectiva histórica de Selden67 O que é importante aqui é saber que para Sir Matthew Hale a partir de Selden as leis eram como em Coke oriundas de um corpo histórico mas passíveis de modificação a partir do raciocínio judicial que interpretaria e desenvolveria essas leis levando em consideração as circunstâncias do presente de forma a manter fidelidade ao espírito expressado por esse corpus juris histórico Todavia mesmo que em clara divergência com relação ao ideal cokeano de imutabilidade mantevese em SeldenHale a primazia de uma espécie de raciocínio distinto subjacente ao direito comum já que as reformas jurídicas deviam ser feitas exclusivamente a partir do trabalho dos common lawyers68 Agora considerando que em SeldenHale havia esse apelo à autoridade às regras positivas ao contrato se em SeldenHale a autoridade jurídica era muito mais uma questão de atos impositivos do Estado69 que reforçaria o Direito entendido enquanto contrato celebrado entre os cidadãos do que qualquer espécie de evolução natural da razão70 por que então não foi esse outro grande marco teórico a representar um primeiro ataque positivista ao common law Por que é Thomas Hobbes o único autor apontado como ruptura paradigmática como grande representante e pioneiro do positivismo jurídico É possível especular algumas razões71 De pronto é importante dizer que Sir Coke Selden e Sir Hale todos eles concordavam quanto à ideia de que o direito comum era a única fonte de Direito na Inglaterra Isso significa assim que é bastante provável que a condição de ruptura paradigmática seja atribuída a Thomas Hobbes e não a Selden porque dadas todas as 67 Cf CROMARTIE Alan Sir Matthew Hale 16091676 Law Religion and Natural Philosophy Cambridge Cambridge University Press 1995 p 30 No ponto é bom reforçar mesmo consideradas as divergências as visões de Coke e Selden não eram irreconciliáveis 68 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 pp 8889 69 Aqui a palavra é mantida entre aspas por questões temporais uma vez que ainda discutiamse e portanto desenvolviamse à época as noções de um Estado moderno enquanto tal 70 Ser um common lawyer para Sir Coke era compreender a razão por trás do Direito e naturalmente ao conceber o direito inglês como racional isto é ao entendelo como uma expressão da razão que se aperfeiçoava ao ser expressada pelo Direito qualquer concepção cokeana que apela à razão vai negar que em grande medida a origem das leis no common law estaria em contratos ou seja em acordos entre os cidadãos tão arbitrários quanto consentidos Cf CROMARTIE Alan Sir Matthew Hale 16091676 Law Religion and Natural Philosophy Cambridge Cambridge University Press 1995 p 30 71 Para além evidentemente do reconhecimento muito maior que a história tratou de conferir a Thomas Hobbes cuja obra teve e tem um alcance muito mais abrangente que a de John Selden fato este reconhecido inclusive por comentadores de Selden Cf HAIVRY Ofir John Selden and the Western Political Tradition Cambridge Cambridge University Press 2017 p 02 32 divergências as visões do último72 não eram completamente irreconciliáveis com as concepções de Sir Coke acerca do common law73 Afinal ainda que relacionasse muito fortemente a própria natureza do Direito às ideias de contrato de autoridade o que por si explica o ponto de Lobban sobre um aspecto positivista no autor todo seu corpo teórico era ainda assim não obstante em alguma medida muito fortemente dependente tanto do direito natural quanto do historicismo por trás da ideia de contrato entre os cidadãos74 Isso não significa que Selden recorresse à primazia da razão mas é um bom indicativo de sua rejeição ao absolutismo hobbesiano ao mesmo tempo portanto em que considerava insuficiente a atribuição da autoridade do Direito à razão Selden também rejeitava que ela fosse definida tão somente a partir da ideia de soberania Para ele o conhecimento do e a vinculaçãoobediência ao Direito tinham sim a ver com a ideia de autoridade mas também tinha a ver com os contratos os acordos entre os cidadãos e a história do costume a tudo isso sempre subjacente a ideia de que o mundo existe dentro de uma ordem de justiça metafísica75 A Era SeldenHale portanto ficava em alguma medida no meio do caminho Ao mesmo tempo em que não reproduz uma simplificação reducionista algo extremo como lex iniusta non est lex tampouco inaugura uma ruptura positivista por completo no sentido de que o conteúdo e a validade do Direito estariam apartados de qualquer valor substantivo em Selden uma lei seria inválida vale dizer sequer haveria que se falar em Direito quando ela violasse i aquilo que tivesse sido prévia e socialmente contratado entre os cidadãos a que se destina e ii a justiça fundamental expressada na máxima fides et servanda ie a fé deve ser seguida76 Nesse sentido fica bastante claro por que mesmo que SeldenHale falem em contrato em autoridade há praticamente unanimidade no sentido de ser Hobbes o primeiro positivista porque na concepção seldeniana a validade do Direito não está somente na autoridade mas também em um número mesmo que reduzidos de preceitos morais e sobretudo em seu respeito à intuição de que as leis eram em si consideradas como 72 Diferentemente do que acontecia com Hobbes como se verá no item subsequente 73 Como vimos combinar os insights de ambos foi justamente o que fez Sir Hale 74 Não por menos Giambattista Vico célebre iluminista italiano considerava Selden ao lado de Grócio e Pufendorf um dos três príncipes do direito natural Em HAIVRY Ofir John Selden and the Western Political Tradition Cambridge Cambridge University Press 2017 p 02 75 HAIVRY Ofir John Selden and the Western Political Tradition Cambridge Cambridge University Press 2017 pp 269270 76 HAIVRY Ofir John Selden and the Western Political Tradition Cambridge Cambridge University Press 2017 pp 270273 33 promessas históricas de uma tentativa de expressar um ideal de justiça77 A existência e a validade do Direito depende também de sua conformidade a essas premissas Tudo isso deixa claro que Selden e na sequência Sir Hale foram os responsáveis por cada um à sua maneira integrar as concepções de direito natural positivismo e historicismo78 Seus pressupostos assim reuniam i elementos de cunho mais jusnaturalista voltados a princípios morais estes atrelados à razão e à consciência ii elementos tradicionalmente ligados ao que hoje chamamos de positivismo através de uma noção de que as regras são postas e reforçadas pela autoridade soberana e finalmente iii elementos historicamente ligados ao historicismo com a devida licença para a proposital redundância manifestados na Inglaterra no pioneirismo de Sir Coke ao relacionar a validade moral e política do Direito a seu caráter histórico cujo olhar voltase aos costumes e tradições da comunidade a qual o direito em questão diga respeito79 Enfim o que se pode dizer de forma sintetizada é que para SeldenHale o common law tinha raízes positivas é bem verdade em um passado histórico Subjazia a esse passado histórico não apenas o contrato entre os cidadãos que poderia ser modificado mas também as noções de costume e lei natural Tudo isso era histórico e definia o alcance do poder soberano estabelecendo limites à validade de suas ações Em Hobbes a concepção era outra Sua visão não era histórica e muito menos fazia tantas digamos concessões ao jusnaturalismo como a de Selden as leis e sua validade eram derivadas do soberano que estivesse no poder 80 Resumidamente o que se pode dizer é que enquanto as concepções de Direito pósgrotianas de SeldenHale aceitavam premissas a priori o positivismo entende o 77 Aqui ao menos como uma espécie de acordo préinterpretativo lembremos a definição de John Gardner p 17 e notas 12 e 13 supra tomada por esta pesquisa como suficientemente explicativa e satisfatoriamente paradigmática segundo a qual o positivista jurídico é aquele que diz que em um sistema jurídico a validade jurídica de uma norma depende de suas fontes não de seus méritos Se tomarmos essa premissa como verdadeira o que é plenamente possível visto que mesmo considerando todas as controvérsias sobre quais são de fato as teses que se caracterizam como positivistas a concepção de Gardner é amplamente aceita Com o termo acordo préinterpretativo falo sobre pressupostos acerca de uma prática ou definição a ser interpretada que são suficientemente aceitos e compartilhados entre os intérpretes O termo original é de Ronald Dworkin e pode ser visto e logo melhor compreendido em DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge Belknap Press 1986 pp 6568 78 BERMAN Harold WITTE John The Integrative Christian Jurisprudence of John Selden In HELMHOLZ R H HILL Mark eds Great Christian Jurists in English History Cambridge Cambridge University Press 2017 pp 139161 79 De fato Berman é quem melhor explica essa integração Cf BERMAN Harold J The Origins of Historical Jurisprudence Coke Selden Hale The Yale Law Journal v 103 n 07 1994 pp 16511738 80 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 86 34 fenômeno jurídico como uma construção deliberada baseada em um conhecimento empírico dos efeitos que essa construção teria na concretização de propósitos humanos desejáveis81 Em uma palavra final talvez seja ainda interessante também diferenciar as concepções contratualistas de Hobbes daquelas dos juristas que também mencionavam a ideia de contrato se não todos a mais absoluta maioria dos pensadores prévios da ideia de consentimento visualizam este como um ato corporativo da comunidade que fora efetuado no passado A originalidade de um filósofo como Hobbes consiste em sublinhar esse mesmo consentimento agora pelo indivíduo82 13 O POSITIVISMO JURÍDICO COMO TAL THOMAS HOBBES Thomas Hobbes de Malmesbury 15881679 simplesmente ridicularizava a noção cokeana do Direito como artificial reasoning A fonte do Direito não é a razão não é a sabedoria em Hobbes é a autoridade pura e simplesmente83 Mais do que uma análise histórica do direito inglês interessanos claro compreender o pensamento políticojurídico de Hobbes como dito até aqui tratouse de uma contextualização De todo modo bastante brevemente é interessante colocar um dos possíveis motivos pelos quais a inauguração do positivismo como tal por Hobbes foi algo tão significativo na Teoria do Direito à época e por que sua contribuição no âmbito jurídico teve tamanho impacto junto aos juristas da teoria clássica A relevância de Hobbes na filosofia política hoje é tão aceita e difundida que se dispensam maiores explicações contudo penso ser interessante abordar uma razão específica que mostra a importância e mais a causa da importância de Hobbes ao Direito especialmente porque concordo com David Dyzenhaus e Thomas Poole no sentido de que é surpreendente tão grande discrepância entre de um lado o enorme engajamento e de 81 Tradução livre e contextualizada da seguinte passagem na qual Hayek discorre sobre os jusnaturalistas contemporâneos e posteriores a Grotius de Groot Grócio e suas convergências com o pensamento positivista This new rationalist law of nature of Grotius and his successors indeed shared with its positivist antagonists the conception that all law was made by reason or could at least be fully justified by it and differed from it only in the assumption that law could be logically derived from a priori premises while positivism regarded it as a deliberate construction based on empirical knowledge of the effects it would have on the achievement of desirable human purposes HAYEK F A Law Legislation and Liberty A New Statement of the Liberal Principles of Justice and Political Economy Cornwall Routledge 1998 p 21 82 Cf MERQUIOR José Guilherme O Liberalismo Antigo e Moderno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991 p 45 83 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 81 35 outro a pouca atenção da doutrina quanto a no primeiro caso a teoria política e no segundo a Teoria do Direito em Hobbes84 porque concordo com Martin Loughlin quando este diz que Hobbes era um jurista do mais alto nível que sua obra classificase mais como teoria política do Direito do que como filosofia política tão somente e que Leviathan é a maior obra prima políticojurídica political jurisprudence escrita na língua inglesa8586 Aliás é interessante mencionar que não se trata de hipérbole Michael Oakeshott grande filósofo do conservadorismo britânico e célebre comentador de Hobbes diz que talvez Leviathan seja a única obraprima de filosofia política escrita na língua inglesa87 No Brasil Eduardo Giannetti diz que o berço do tratamento moderno do problema da ordem social é sem dúvida a filosofia hobbesiana88 Uma obra de tal magnitude de autor de tamanha importância não poderia ser ignorada Assim na medida em que os juristas da teoria clássica do common law sentiamse obrigados a gostando ou não conceder a Hobbes o ponto de que o Direito emanava ao menos em alguma medida da autoridade o ataque geral hobbesiano ao common law deixava os com um problema como conciliar uma visão segundo a qual o Direito era concebido em termos de autoridade não de razão com a existência de um corpo de normas que se desenvolviam ao longo do tempo através da atividade judiciária ie judgemade law Até se tentou responder Sir Hale por exemplo ainda que aceitasse a concepção positivista ie ligada à ideia de direito positivo em contraposição a tão somente um direito natural em alguma medida em resposta a Hobbes a partir de suas concepções históricas explicava o desenvolvimento do Direito nas Cortes através de uma espécie de extensão das regras existentes estas sim que eram por sua vez derivadas do acordo social passado pelo uso por parte dos juízes da analogia somente quando o recurso fosse impossível devia o juiz recorrer à razão De todo modo a resposta era insatisfatória uma vez que além de pouco desenvolvida não era capaz de i lidar bem com a realidade de que os juízes desenvolviam 84 O ponto está na quarta capa e na Introduction de Hobbes and the Law editado pela Universidade de Cambridge Cf DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 85 Tradução livre para Leviathan stands as the greatest masterpiece of political jurisprudence written in the English language Em LOUGHLIN Martin The political jurisprudence of Thomas Hobbes In DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 p 05 86 Pessoalmente colocaria ainda ao lado de Leviathan An Introduction to the Principles of Morals and Legislation 1789 de Jeremy Bentham sobre a qual tratarei mais adiante 87 Leviathan is the greatest perhaps the sole masterpiece of political philosophy written in the English language OAKESHOTT Michael Hobbes on Civil Association Indianapolis Liberty Fund 1975 p 03 88 GIANNETTI Eduardo Vícios Privados Benefícios Públicos A Ética na Riqueza das Nações São Paulo Companhia das Letras 1993 p 71 36 sim o Direito e especialmente ii responder à questão da atividade do juiz diante de casos inéditos89 131 Hobbes e o common law autoridade não razão De forma muito direta é possível através de uma só afirmação responder a duas perguntas fundamentais i se Hobbes rejeitava o Direito como este era entendido pelos juristas da teoria clássica do common law qual era sua compreensão acerca do fenômeno jurídico E finalmente ii por que Hobbes é por muitos apontado como um dos senão o fundador do positivismo jurídico Em síntese ii Hobbes é o pai do positivismo jurídico90 da coisa senão do nome91 porque i definia o Direito em termos de comandos da autoridade soberana de forma tal que a validade do comando independe de seu conteúdo moral92 Essa concepção naturalmente é fruto das bases filosóficas de seu pensamento de suas noções de Estado e soberania e nos pontos que mais nos dizem respeito suas visões acerca do common law que são naturalmente uma consequência lógica decorrente da conjugação dos dois primeiros elementos Assim é importante que antes de abordarmos a jurisprudence93 de Hobbes per se tenhamos exposta ainda que muito sucintamente sua concepção acerca do Estado seu papel e seu autêntico significado Hobbes não entendia a commonwealth94 como uma entidade natural ou orgânica Ao contrário a instituição estatal era uma criação humana95 89 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 155 90 Nesse sentido Lenio Streck ao mesmo tempo em que aponta que em Thomas Hobbes 15581679 já se anunciava o positivismo ou ao menos é perceptível o seu gérmen faz uma interessante consideração acerca de uma espécie de positivismo já nos sofistas uma vez que para eles o nomos seria apenas uma expressão cultural e contingente isto é não estaria predeterminada no cosmos O nomos estaria sujeito ao homem e não o inverso STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 p 167 91 Ver ponto 11 desta pesquisa 92 LOBBAN Michael Thomas Hobbes and the common law In DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 p 39 Não por menos e o ponto que endosso é também trazido pelo próprio Lobban Austin que popularizou essa concepção a partir de sua jurisprudência analítica era um admirador de Hobbes Cf a título de exemplo a Lecture VI de Lectures on Jurisprudence AUSTIN John Lectures on Jurisprudence or the Philosophy of Positive Law 5 ed vol I Editado por Robert Campbell Londres John Murray 1885 pp 234 279 93 Sobre o termo jurisprudence entendido enquanto Teoria do Direito ver nota n 22 supra p 19 94 Commonwealth é um tradicional termo da filosofia política anglosaxã que se traduz na ideia de uma comunidade política construída visando ao bem comum Peço aqui licença para tomar emprestada a nota de Anderson Vichinkeski Teixeira acerca da locução Registrese a dificuldade de tradução literal para o português que a expressão commonwealth nos oferece pois ela possui vários significados como bemcomum Estado 37 Com a arte criamos o Leviatã chamado de commonwealth ou Estado do latim civitas que é nada senão um homem artificial embora maior e mais forte que o homem natural para cuja proteção e defesa o Leviatã é criado96 E o Direito na passagem que segue chamado por Hobbes de lei civil nesse contexto é posto97 pela autoridade soberana é produto daquilo que impõe o Leviatã Constituise pois para todo súdito pelas regras que o Estado a ele impõe oralmente ou por escrito ou por qualquer outro sinal suficiente da sua vontade empregando tais regras para diferenciar o que é certo do que é errado 98 Daí decorre que o que torna uma proposição boa ou má justa ou injusta certa ou errada não é a razão nem a sabedoria ou a consciência mas sua a fonte notadamente o soberano E se é o soberano quem determina seguese logicamente que a validade do Direito independe da valoração moral dos súditos acerca do comando que este lhes estabelece Eis pois o grande argumento para sustentar Hobbes como o primeiro positivista clássico em sua concepção de Direito satisfeitas estão as duas grandes teses positivistas de que falei no item que abre esta pesquisa a tese das fontes e a tese da separabilidade99 Nesse sentido quem melhor valida minha afirmação anterior de que na concepção hobbesiana a fonte do Direito é pura e simplesmente a autoridade é o próprio Thomas Hobbes ao dispor que o que faz uma lei não é a sabedoria e sim a autoridade100 daí o clássico adágio hobbesiano já notório auctoritas non veritas facit legem nação e comunidade Cf a nota n 7 em TEIXEIRA Anderson Vichinkeski Estado de Nações Hobbes e as Relações Internacionais no Século XXI Porto Alegre Sergio Antonio Fabris 2007 p 23 95 LOUGHLIN Martin The political jurisprudence of Thomas Hobbes In DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 p 08 96 Tradução livre para for by Art is created that great LEVIATHAN called a COMMONWEALTH or STATE in latine CIVITAS which is but an Artificiall Man Em HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 p 81 No ponto para melhor compreender o sentido de homem natural e homem artificial é interessante que se tenha em mente a ilustração original que serve de capa a Leviathan feita pelo próprio Hobbes ao lado do artista Abraham Bosse representando o Estado ou seja o próprio Leviatã a figura de um homem vestindo uma coroa e segurando em cada uma das mãos um cetro e uma espada o soberano detentor dos poderes secular e eclesiástico Quando olhamos de perto o corpo do soberano o homem artificial é composto por centenas de corpos de indivíduos menores ao homens naturais cujos olhares estão voltados à cabeça daquele que criaram para sua proteção 97 Posto Logo direito positivo no inglês essa relação pode ser vista mais diretamente posited positive law Daí positivismo jurídico legal positivism 98 Grifo meu Tradução livre para CIVIL LAW is to every subject those rules which the commonwealth hath commanded him by word writing or other sufficient sign of the will to make use of for the distinction of right and wrong Em HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 p 176 99 Cf GOLDSMITH M M Hobbes on law In SORELL Tom ed The Cambridge Companion to Hobbes Cambridge Cambridge University Press 2006 p 275 100 HOBBES Thomas Diálogos entre um Filósofo e um Jurista Prefácio de Renato Janine Ribeiro e tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino São Paulo Landy 2004 p 37 38 Para Hobbes um contexto no qual cada cidadão é o juiz de ações boas e ruins seria uma doença para a commonwealth dado que essa condição ie cada indivíduo julgando por si próprio a injusteza de uma ação é própria da condição do estado de natureza no qual ainda não há direito positivo ou governo civil Agora quando há governo quando há lei civil é ela que determina a medida em que as ações são boas ou ruins101 A consequência é lógica se é o direito positivo que determina o que é o Bom e por decorrência direta também o Mal não há sequer a possibilidade de se falar em uma lei injusta É essa concepção legalista de justiça que leva Norberto Bobbio a atribuir a Hobbes o surgimento das estruturas ideológicas102 do positivismo jurídico o comando do soberano é justo tão somente porque oriundo do único que detém o poder legítimo para comandar o que é proibido é injusto meramente porque proibido É uma ideia positivista porque o direito positivo é completamente e em si mesmo um critério autossuficiente para determinar o que é justo e injusto103104 É justamente por isso que Hobbes rejeitava com afinco a noção de artificial reason perpetrada no imaginário da teoria clássica do common law por Sir Coke Fora aquele que tem o poder legislativo ninguém pode fazer uma lei Razão artificial jurídica Nas criaturas terrenas não há razão outra que não a razão humana105 A ética hobbesiana é eminentemente subjetivista razão pela qual Hobbes seria incoerente se subscrevesse ao ideal de razão reta afinal para ele não existe um padrão ético de validade inquestionável e aceitação universal através do qual se possa determinar como devemos viver106 Essas noções todas estão bem sintetizadas no anteriormente mencionado Diálogos entre um Filósofo e um Jurista107 Escrita na metade final dos 1660 a obra tem um título autoexplicativo trata de um diálogo entre um filósofo crítico e um jurisconsulto defensor do 101 As citações foram extraídas e traduzidas livremente do seguinte trecho I observe the Diseases of a Common wealth that proceed from the poyson of seditious doctrines whereof one is That every private man is Judge of Good and Evill actions This is true in the condition of meer Nature where there are no Civill Lawes and also under Civill Government in such cases as are not determined by the Law But otherwise it is manifest that the measure of Good and Evill actions is the Civill Law Em HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 p 365 102 Ideological framework A edição aqui utilizada é norteamericana e foi traduzida do italiano por Daniela Gobetti 103 BOBBIO Norberto Thomas Hobbes and the Natural Law Tradition Tradução de Daniela Gobetti Chicago University of Chicago Press 1993 p 116 104 Mais adiante enfrentarei uma divergência doutrinária acerca disso originada por algumas considerações de Hobbes acerca da lei natural 105 HOBBES Thomas Diálogos entre um Filósofo e um Jurista Prefácio de Renato Janine Ribeiro e tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino São Paulo Landy 2004 p 37 106 GIANNETTI Eduardo Vícios Privados Benefícios Públicos A Ética na Riqueza das Nações São Paulo Companhia das Letras 1993 p 72 107 A Dialogue between a Philosopher and a Student of the Common Laws 39 common law Para alguns autores como é o caso de Norberto Bobbio o filósofo é o próprio Hobbes ao passo que o jurista seria uma representação de Sir Edward Coke108 O contraste entre Sir Coke Davies que de um lado representam o common law e Hobbes do outro personificando um desafio ao common law tornase assim muito visível Em Davies o common law ainda que fruto da autoridade era derivado da sabedoria dos tempos em Sir Coke era expressão natural da razão através da artificial reasoning exercida pelos juízes Em Hobbes Direito é a vontade do soberano a right reason109 ou razão reta é a razão do soberano a lei será o comando do soberano Lex não se confunde com jus110 132 Hobbes era mesmo um positivista Eis meu argumento anterior reduzido a poucas palavras é seguro colocar Thomas Hobbes como o precursor do positivismo jurídico uma vez que sua concepção acerca da lei civil satisfaz as grandes teses positivistas Agora por que lei civil Por que Hobbes dispõe seu conceito de Direito a partir daquilo que chama de civil law111 em vez de dizer apenas e simplesmente law Porque Hobbes como os autores de sua época pressupunha sempre a existência prévia de um outro tipo de lei uma natural law a lei natural As pergunta mais óbvias que se dão a partir dessa constatação não poderiam expressar algo diferente lei direito natural E o positivismo E toda a questão de auctoritas non veritas facit legem Ao que parece a associação Hobbespositivismo que prima facie parecia tão tranquila já não mais parece assim tão simples Por essa mesma razão Bobbio traz os mesmos questionamentos apenas formulados em outras palavras como pode um sistema que começa por aceitar a lei natural ser uma expressão típica de uma concepção formal de justiça Como pode o poder do Estado ser absoluto se a vontade do soberano deve medir a si mesma contra uma lei que é natural 112 108 BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 34 109 A ideia de right reason razão reta recta ratio é historicamente uma contenção básica da teoria do direito natural segundo a qual existiria justamente uma razão reta em consonância com a natureza O conceito pode ser traçado e atribuído originalmente a Cícero em De republica Cf MERQUIOR José Guilherme O Liberalismo Antigo e Moderno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991 p 39 110 Jus and Lex Right and Law they ought to be distinguished Em HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 p 86 111 Não confundir com o sistema jurídico de tradição romanogermânica que é o que via de regra temos em mente ao lermos civil law 112 The question thus arises how can a system which begins by accepting laws of nature be a typical expression of a formal conception of justice How can the power of the state be absolute if the will of the sovereign 40 Alguns ainda que visualizem a tradicional associação entre Hobbes e o positivismo como algo em alguma medida duvidoso considerada sua percepção acerca das relações entre o direito natural e as leis positivas entendem que os fundamentos intelectuais para a tradição moderna do positivismo tenham de fato raízes hobbesianas Um belo exemplo dessa corrente é Sean Coyle para o autor a relação entre a lei natural e as leis positivas da sociedade civil em Hobbes faz com que seja intrigante associálo de forma tão frequente quanto insistente ao positivismo jurídico113 Ainda assim o mesmo Coyle diz que uma vez que a epistemologia moral exposta em Leviathan dá a entender que é impossível qualquer consenso ético114 quaisquer que sejam crenças internas de um indivíduo e o que quer elas digam acerca das demandas de justiça do que é certo e de integridade pessoal o comportamento externo e o discurso desse indivíduo devem conformarse aos padrões da lei civil115 Para o autor isso é razão suficiente para i afastar Hobbes da tradição jusnaturalista e ii atribuir a seu pensamento as raízes juspositivistas116117 Por outro lado outros autores muito relevantes e academicamente respeitados digase rejeitam o rótulo a Hobbes Sabine por exemplo chega a afirmar expressamente que Hobbes devia ter antes de tudo abandonado qualquer vinculação a noções de direito natural e que por não têlo feito não seria exatamente correto classificalo como um juspositivista118 must measure itself against a natural law Em BOBBIO Norberto Thomas Hobbes and the Natural Law Tradition Tradução de Daniela Gobetti Chicago University of Chicago Press 1993 p 117 113 In the face of the foregoing account of Hobbess perception of the relationship between natural law and the positive laws of a civil society it may seem perplexing to persist in regarding such an account as positivist Cf COYLE Sean Thomas Hobbes and the Intellectual Origins of Legal Positivism Canadian Journal of Law and Jurisprudence vol 16 n 2 jul 2003 pp 243270 114 Aqui ainda que reconheça que determinadas tradições doutrinárias diferenciem os termos moral e ética como Dworkin por exemplo que em Justice for Hedgehogs define a ética como o estudo de como viver bem e a moral como o estudo de como devemos tratar as outras pessoas tratálosei como sinônimos intercambiáveis Quem melhor explica isso é Arthur Ferreira Neto em Metaética e a Fundamentação do Direito FERREIRA NETO Arthur Maria Metaética e a Fundamentação do Direito Porto Alegre Elegantia Juris 2015 pp 45 46 115 The epistemology of the Leviathan firmly precludes the possibility of moral consensus emerging through individual assessments of the demands of reason Whatever my internal beliefs may say about the demands of justice or right or personal integrity my external speech and behaviour must conform to the standards laid down in the civil law Cf COYLE Sean Thomas Hobbes and the Intellectual Origins of Legal Positivism Canadian Journal of Law and Jurisprudence vol 16 n 2 jul 2003 pp 243270 116 Coyle diz que mesmo considerando a aparente contradição há um senso mais profundo no qual o pensaento de Hobbes deve ser considerado a fundação da tradição posiivista moderna There is a deeper sense in which Hobbess thought should be regarded as the foundation of the modern positivist tradition Cf COYLE Sean Thomas Hobbes and the Intellectual Origins of Legal Positivism Canadian Journal of Law and Jurisprudence vol 16 n 2 jul 2003 pp 243270 117 Autores importantíssimos como o próprio Ronald Dworkin consideram o positivismo de Hobbes um truísmo Cf DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 p 175 118 SABINE George H A History of Political Theory 3 ed Londres George G Harrap and Co 1963 pp 460461 41 David Dyzenhaus por sua vez argumenta que para Hobbes a ordem legal é uma característica essencial para que seja mantida a ordem da sociedade civil e que por esse motivo as instituições de ordem jurídica a partir do pensamento hobbesiano devem ser estruturadas de forma tal que só é intrinsicamente legítima a autoridade que aja de acordo com o rule of law119120 A partir dessa leitura o autor chega a aproxima Hobbes de Lon Fuller121 autor já do século xx jusnaturalista que dispõe e claro que aqui exponho de forma muito sucinta que o Direito tem uma espécie de moralidade interna a partir da qual entre outros elementos é possível deduzir a invalidade de um sistema jurídico como tal não por menos colocao como Fuller como um antipositivista122 É o mesmo Dyzenhaus contudo na Introdução da coletânea por ele editada juntamente de Thomas Poole que já aqui referenciamos intitulada Hobbes and the Law que diz que classificar Hobbes como um precursor do positivismo clássico é característica da visão ortodoxa da doutrina mais tradicional123 De todo modo ainda que i eu esteja plenamente convencido quanto à interpretação segundo a qual Hobbes é sim o precursor do juspositivismo como tal e espero que os motivos que me levam a essa conclusão estejam suficientemente claros ao final deste tópico e ii essa seja a interpretação mais tradicionalmente aceita e difundida não seria justo que eu tratasse como unanimidade acadêmica aquilo que não o é afinal como novamente o próprio David Dyzenhaus muito bem diz não há interpretação incontroversa acerca do pensamento jurídico de Hobbes124 119 A locução rule of law é muito comumente no Brasil traduzida como Estado de Direito Não critico a tradução per se uma vez que me parece muito difícil neste caso uma tradução mais adequada seja como for penso que rule of law expressa algo um pouco diferente de Estado de Direito que penso pode acabar em alguma medida remetendo à clássica ideia alemã de Rechtstaat que na acertada lição de José Guilherme Merquior inclui alguns outros elementos adicionais como por exemplo a sacralização dos direitos públicos subjetivos na lei positiva Trato aqui de um conceito mais amplo propositalmente mais amplo no sentido de império da lei Cf MERQUIOR José Guilherme O Liberalismo Antigo e Moderno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991 p 133 120 Muitas são as concepções que substancializam um ideal tão amplo mas todas em maior ou menor grau gravitam em torno da noção de que indivíduos em posições de autoridade devem exercer seu poder nos limites de uma estrutura de normas públicas e não a partir de suas próprias preferências ideologias ou sensos de certo e errado Cf WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Research Paper Series Working Paper n 0850 nov 2008 p 06 121 Cuja definição acerca do conceito de positivismo jurídico foi tratada no item 11 desta pesquisa na p 14 122 DYZENHAUS David Hobbes and the Legitimacy of Law Law and Philosophy vol 20 n 05 set 2001 pp 461498 De forma muito similar Dyzenhaus rejeita a relação típica entre Hobbes e o positivismo jurídico em DYZENHAUS David Hobbes on the authority of law In DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 pp 186209 123 DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 p 02 124 Tradução livre para there is no uncontroversial interpretation of Hobbess juristic thought Cf uma vez mais a Introdução de DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 p 02 42 1321 Direito e lei natural em Thomas Hobbes No pensamento hobbesiano os conceitos de direito natural e lei natural são centrais e a distinção entre os termos deve ser ressaltada para Hobbes direito diferese de lei o primeiro trata de liberdades ao passo que o segundo trata de obrigaçãoões125 Há uma grande diferença entre lei e direito a lei é uma corrente o direito uma liberdade e eles diferemse como contrários126 Como dito anteriormente em Hobbes há uma cisão entre lex e jus em todos os sentidos É com isso em mente que Hobbes determinava que no estado de natureza os indivíduos teriam um direito natural fundamental o da autopreservação A fundação primeira do direito natural diz Thomas Hobbes é a de que todo homem com o máximo de suas forças visa a proteger sua vida e seus membros127 Isso é algo que simplesmente está no homem em sua constituição própria daí que o instinto da e pela autopreservação é algo que sequer pode ser evitado e daí que justamente porque algo que é um impulso natural não menos que aquele pelo qual uma pedra cai do alto o homem pode utilizarse de todos os meios e fazer todas as ações sem osas quais ele não pode preservar a si mesmo128 Aqui já começa a ficar muito claro como por que e em que medida a ideia de direito natural em Hobbes está diretamente relacionada a seu conceito de soberania Isso porque diante de um cenário no qual o homem tem a liberdade de fazer tudo dentro da esfera do necessário e do possível não é difícil de imaginar por que a imagem que Hobbes dispõe quando de sua já célebre descrição da vida no estado de natureza é como é Todo homem é inimigo de todo homem Em tal condição não há lugar para a indústria porque incertos seus frutos consequentemente não há 125 LOUGHLIN Martin The political jurisprudence of Thomas Hobbes In DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 p 13 126 Tradução livre para There is great difference therefore between Law and Right For Law is a fetter Right is freedome and they differ like contraries Em HOBBES Thomas De Cive The English Version entitled in the first edition Philosophicall Rudiments Concerning Government and Society Oxford Oxford University Press 1987 1643 p 170 127 Tradução livre para The first foundation of natural Right is this That every man as much as in him lies endeavour to protect his life and members Em HOBBES Thomas De Cive The English Version entitled in the first edition Philosophicall Rudiments Concerning Government and Society Oxford Oxford University Press 1987 1643 p 47 128 By a certain impulsion of nature no lesse then that whereby a Stone moves downward That since every man hath a Right to preserve himself he must also be allowed a Right to use all the means and do all the actions without which he cannot preserve himself Em HOBBES Thomas De Cive The English Version entitled in the first edition Philosophicall Rudiments Concerning Government and Society Oxford Oxford University Press 1987 1643 p 47 43 cultivo da terra Não há navegações nem uso das mercadorias importadas através do mar Não há construções confortáveis não há instrumentos que possam mover e remover as coisas que exigem grande força Não há conhecimento da face da Terra não há qualquer cômputo do tempo nem arte nem um alfabeto nem sociedade E o pior de tudo há um medo constante e o perigo de uma morte violenta e a vida do homem solitária pobre perversa bruta curta129 Esse cenário absolutamente assustador e os motivos que me levam a assim declara lo são autoevidentes é nada mais que uma óbvia consequência de um estado no qual todo e cada homem tem um direito de fazer aquilo que entender como necessário para a preservação de sua própria vida É por essa razão que diferentemente de vertentes liberais como as de autores como Locke e Kant o liberalismo hobbesiano não é exemplo de um projeto de um regime universal mas tão somente de uma busca por coexistência pacífica130 Além do direito natural que Hobbes entendia como uma liberdade o autor também faz menção às correntes da lei natural Essas por sua vez também estão diretamente relacionadas ao impulso humano natural instintivo de autopreservação Mas lembremos em Thomas Hobbes as leis naturais são uma série de preceitos de axiomas lógicos descobertos através do exercício da razão segundo os quais aos homens é vedado fazer tudo aquilo que i for destrutivo à vida e ii tira de outrem os meios de preservala131 Só que para que se possa compreender o verdadeiro sentido que essas leis naturais tinham para Hobbes não se pode perder de vista que elas eram vinculantes tão somente in foro interno Daí dizer que esses preceitos eram tão somente axiomas lógicos132 esses ditames da razão são chamados pelos homens de leis mas erroneamente porque são nada mais que conclusões ou teoremas que dizem respeito àquilo que leva à conservação e defesa de suas vidas133 Para Hobbes portanto a lei natural não é uma lei de facto esses teoremas são em verdade 129 Tradução livre para Every man is Enemy to every man In such condition there is no place for Industry because the fruit thereof is uncertain and consequently no Culture of the Earth no Navigation nor use of the commodities that may be imported by Sea no commodious Building no Instruments of moving and removing such things as require much force no Knowledge of the face of the Earth no account of Time no Arts no Letters no Society and which is worst of all continuall feare and danger of violent death And the life of man solitary poore nasty brutish and short Em HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 p 186 130 GRAY John The Two Faces of Liberalism Nova York The New Press 2000 p 02 131 A LAW OF NATURE Lex Naturalis is a Precept or generall Rule found out by Reason by which a man is forbidden to do that which is destructive of his life or taketh away the means of preserving the same Em HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 p 86 132 Cf STRAUSS Leo The Political Philosophy of Hobbes Its Basis and Its Genesis Tradução de Elsa M Sinclair Chicago University of Chicago Press 1952 p 17 133 These dictates of Reason men use to call by the name of Lawes but improperly for they are but Conclusions or Theoremes concerning what conduceth to the conservation and defence of themselves Em HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 pp 216217 44 disposições gerais deduzidas da razão que muito mais do que leis são contribuições à ciência moral134 Seriam muito mais conselhos do que comandos Em outras palavras de forma mais clara seria como dizer que esses axiomas porque racionais determinam algo como faça isso porque considerada a natureza humana é simplesmente bom135 lógico racional que seja assim Isso não é coercitivo é simplesmente lógico a partir da natureza humana deduzir a existência dessa lei natural mas não há uma sanção na hipótese de um eventual descumprimento Hobbes nega a existência dessa lei natural qua lei propriamente dita136 Nas palavras de Michael Oakeshott um preceito da razão em Hobbes é um preceito hipotético e não o equivalente a um dever137 Propriamente falando segundo o mesmo Oakeshott já em outro ensaio os axiomas que correspondem à lei natural em Hobbes são inúteis até que transformados de meros teoremas a máximas que regulam a conduta humana e transformados dessas máximas em leis de facto138 1322 Law of nature e civil law Tudo isso até aqui parece bastante tranquilo Aquilo a que Hobbes chama de lei natural são axiomas lógicoracionais que se deduzem a partir da natureza humana e dada a concepção hobbesiana acerca dessa natureza essas proposições tinham um caráter de conselho obedeça de forma tal que é apenas lógico que o respeito a este axioma seja também um respeito ao seu próprio instinto de autopreservação Esses conselhos só podem ser considerados regras uma vez que estabelecidos por aquele que detém a autoridade para tal 134 HARRISON Ross The equal extent of natural and civil law In DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 p 23 135 Bom Aqui exigese um importante esclarecimento Com Oakeshott temos que no vocabulário hobbesiano bom e mau não têm em si conotações morais prévias Bom é aquilo que é meramente desejável mau aquilo que é meramente objeto de aversão São portanto palavras redundantes que meramente repetem aquilo que já estava significado em palavras como prazeroso e doloroso No trecho original It is to be observed however that in Hobbess vocabulary the words good and evil had as a rule no moral connotation Good merely stood for what is desirable that is for whatever may be the object of human appetite evil signified whatever is the object of aversion They are therefore redundant words which merely repeat what is already signified in words such as pleasurable and painful Cf OAKESHOTT Michael Rationalism in Politics and other essays Londres Methuen 1962 p 261 136 STRAUSS Leo The Political Philosophy of Hobbes Its Basis and Its Genesis Tradução de Elsa M Sinclair Chicago University of Chicago Press 1952 pp 2426 137 A precept of reason is only a hypothetical precept and not the equivalent of a duty Cf OAKESHOTT Michael Rationalism in Politics and other essays Londres Methuen 1962 p 262 138 Trecho traduzido de forma livre e contextualizada properly speaking they are only theorems and they are fruitless until they are transformed from mere theorems into maxims of human conduct and from maxims into laws OAKESHOTT Michael Hobbes on Civil Association Indianapolis Liberty Fund 1975 p 39 45 A possível controvérsia contudo dáse a partir das seguintes passagens na obra de Hobbes i a lei natural e a lei civil contém uma a outra e são de igual extensão139 e especialmente ii o soberano seja um monarca ou uma assembleia teve o poder a si atribuído para garantir a segurança do povo tarefa à qual ele está vinculado pela lei da natureza140 Evidentemente ao menos prima facie isso parece contradizer toda a argumentação mais tradicional tanto no sentido de que Hobbes teria sido o precursor do juspositivismo tanto quanto na tradicionalíssima tese comumente atribuída ao autor do poder absoluto se o soberano está vinculado a uma lei natural i seu poder não é absoluto e mais especificamente no ponto que interessa aqui ii resta no mínimo fragilizada a afirmação que atribui a Thomas Hobbes e sua political jurisprudence uma subscrição àquilo que se convencionou a posteriori como típico das grandes teses positivistas Mas há uma explicação Retomando uma vez mais Martin Loughlin141 é possível a partir de um olhar mais cuidadoso e contextualizado da obra de Hobbes tratar esse aparente paradoxo como um misunderstanding um malentendido Diz o scholar que o argumento hobbesiano de que a autoridade do soberano é pautada em preceitos de uma lei natural não o levavam a reconhecer a validade de uma norma superior Seu objetivo era o de explicar que não poderia haver lei válida que não a lei civil e que a função básica da lei civil era satisfazer as condições de sua ciência civil142 de forma que suas premissas fundamentais fossem universalmente válidas E para que fosse possível estabelecer as bases de um regime político cuja sustentação fosse dotada de validade absoluta a única maneira efetiva era colocar esse regime no mesmo pedestal das leis naturais já que como vimos dentro da própria acepção hobbesiana essas leis naturais eram sempre racionalmente deduzíveis de outra lei natural 139 Grifos meus e tradução livre para the Law of Nature and the Civill Law contain each other and are of equall extent HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 p 314 140 O último grifo é meu e as traduções do trecho todo deramse livremente a partir da seguinte passagem THE OFFICE of the Soveraign be it a Monarch or an Assembly consisteth in the end for which he was trusted with the Soveraign Power namely the procuration of the safety of the people to which he is obliged by the Law of Nature HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 p 376 141 De um lado as constantes referências ao autor neste trabalho e de outro a infelizmente digase pouca frequência com que são citadas suas obras no Brasil talvez exijam uma explicação Martin Loughlin é um constitucionalista britânico professor de direito público na London School of Economics com sólidos estudos em temas como soberania rule of law e autores como Thomas Hobbes e Carl Schmitt 142 His primary objective was to explain that there could be no valid law except that of civil law and that the basic function of civil law was to meet the conditions of his civil science LOUGHLIN Martin The political jurisprudence of Thomas Hobbes In DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 p 18 46 evidente em si mesma O ponto é complexo mas pode ser sintetizado Com Bobbio temos que diante das pretensões eminentemente racionalistas da ciência de sua época a ambição de Hobbes era justamente a de afirmar o sistema político por ele descrito como tão válido quanto a geometria Para tanto a construção do raciocínio tinha obrigatoriamente de ser a seguinte i a ideia de que os indivíduos em nome da segurança conferem ao soberano o poder absoluto é absolutamente válida e ela só pode deter essa validade absoluta porque é a consequência lógica de outra lei justamente ii a lei primeira e suprema da natureza que prescreve de forma autoevidente a ideia geral de autopreservação143 Assim parece suficientemente conclusivo afirmar como o faz por exemplo Ross Harrison que compreendida adequadamente a relação entre lei natural e lei civil em Hobbes indica que o direito natural meramente mostra que deve haver uma lei civil sem contudo limitar seu conteúdo144 Uma vez mais o próprio Thomas Hobbes em De Cive parece resolver a questão Roubo assassinato adultério são proibidos pelas leis da natureza Mas aquilo que deve ser considerado roubo assassinato adultério isso não é determinado pela lei natural mas pela lei civil nem toda subtração de algo que outro possui é roubo essa é uma questão que pertence à lei civil De forma análoga nem todo ato de matar um homem é assassinato mas somente aquilo que a lei civil proíbe como tal nem todo encontro com outra mulher é adultério mas somente aquilo que a lei civil proíbe O que portanto é roubo assassinato adultério é determinado pela lei civil isto é os comandos daquele que detém a autoridade suprema145 É justamente com base nesse trecho que Bobbio resolveu de forma plenamente satisfatória aquilo que poderia ser uma aparente contradição146 Para ele o pensamento jurídico de Hobbes mostra que as leis naturais existem mas não vinculam Vinculante é o 143 O parágrafo apresenta conclusões baseadas nas premissas do seguinte trecho que teve passagens traduzidas livremente Hobbes espouses the rationalistic vocation of his times and has the ambition of establishing a political system which is absolutely valid as valid as geometry But he had only one way to give absolute validity to his system He had to place it on the pedestal of natural laws that is on a law which was either evident in itself like a mathematical axiom or rationally deductible from another law of nature evident in itself BOBBIO Norberto Thomas Hobbes and the Natural Law Tradition Tradução de Daniela Gobetti Chicago University of Chicago Press 1993 pp 143144 144 Cf HARRISON Ross The equal extent of natural and civil law In DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 pp 2238 145 Tradução livre para Theft Murther Adultery are forbid by the Lawes of nature but what is to be called Theft what Murther what Adultery is this is not to be determined by the naturall but by the civill Law for not every taking away of the thing which another possesseth but only another mans goods is theft but what is ours and what anothers is a question belonging to the civill Law In like manner not every killing of a man is Murther but only that which the civill Law forbids neither is all encounter with women Adultery but only that which the civill Law prohibits What therefore Theft what Murther what Adultery is must be known by the civill Lawes that is the commands of him who hath the supreme authority Em HOBBES Thomas De Cive The English Version entitled in the first edition Philosophicall Rudiments Concerning Government and Society Oxford Oxford University Press 1987 1643 pp 101102 146 Ver a p 34 desta pesquisa 47 direito positivo e o direito positivo é a vontade do soberano147 Repito em Hobbes as noções de certo e errado justo e injusto dependem da constituição de um poder político soberano148 A teoria hobbesiana da justiça diz Luc Foisneau ignora qualquer referência a um conteúdo moral específico149 É pois bem verdade que o direito natural e já que Hobbes fazia uma diferenciação também a lei natural faziam parte do que há de mais central na teoria hobbesiana contudo Hobbes assim o fez tão somente visando a expor os problemas por assim dizer ontológicos do estado de natureza de forma que fosse possível reconstruir seus preceitos tendo em vista justamente o propósito de legitimar a autoridade absoluta do poder soberano150 Enquanto muitos de seus contemporâneos utilizavamse de ideais de direito natural de modo a justificar revoluções e resistência ao poder do Estado Hobbes fazia justamente o contrário seu objetivo era a partir das leis e direito da natureza demonstrar que deles resta justamente a necessidade de obediência incondicional Também essa é uma conclusão lógica se adotadas as premissas hobbesianas afinal nas palavras de Leo Strauss a lei natural aparentemente vinculante também ao soberano somente assume sua total força vinculante a partir do comando do soberano151 Eis o positivismo hobbesiano todos devem considerar que as regras postas pelo soberano são a interpretação correta a verdadeira atribuição do sentido próprio da moralidade Isso porque não fosse assim a alternativa seria que cada um dos indivíduos como num estado de natureza seguisse seu próprio juízo sua própria interpretação cenário no qual sequer haveria regras Por essa razão somente o soberano tem o direito de interpretar o direito natural E aquele que de acordo com Hobbes interpreta o direito de forma dotada de 147 BOBBIO Norberto Thomas Hobbes and the Natural Law Tradition Tradução de Daniela Gobetti Chicago University of Chicago Press 1993 p 131 OAKESHOTT Michael Hobbes on Civil Association Indianapolis Liberty Fund 1975 p 45 148 GIANNETTI Eduardo Vícios Privados Benefícios Públicos A Ética na Riqueza das Nações São Paulo Companhia das Letras 1993 p 73 149 Ainda de acordo com Foisneau Hobbes havia compreendido perfeitamente bem que é difícil fundar uma teoria moral da justiça quando não mais se dispõe de uma teoria objetiva do bem O autor segue dizendo que é precisamente a ausência de uma tal teoria que torna indispensável o recurso ao Direito Para Foisneau Hobbes havia desde o início compreendido que o subjetivismo da concepção de bem implica o pluralismo de valores o qual requer por sua vez o primado da justiça sobre o bem algo que os filósofos morais não teriam bem entendido em Hobbes Grifos meus FOISNEAU Luc Pluralismo e concepção do bem em Thomas Hobbes Tradução de Wladimir Barreto Lisboa In STORCK Alfredo Carlos LISBOA Wladimir Barreto orgs Norma Moralidade e Interpretação Temas de Filosofia Política e do Direito Porto Alegre Linus 2009 pp 203220 150 LOUGHLIN Martin The political jurisprudence of Thomas Hobbes In DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 p 12 151 Tradução livre para the law of nature which is apparently binding on the sovereign takes on full binding force only by command of the sovereign STRAUSS Leo The Political Philosophy of Hobbes Its Basis and Its Genesis Tradução de Elsa M Sinclair Chicago University of Chicago Press 1952 p 69 48 autoridade é quem pode estabelecelo152 A partir de Thomas Hobbes nenhuma lei civil válida pode ser considerada injusta uma vez que a conduta justa só é identificável enquanto justa nos termos da lei e na associação civil não há lei propriamente dita que não seja a lei civil153 Essa é também a leitura de Yves Charles Zarka para quem as leis civis fornecem as regras do justo e do injusto pressupondo tão somente uma dimensão político jurídica desses termos154 Por fim cabe ainda mencionar aqui que é nesse mesmo sentido ainda que talvez a partir de outra perspectiva que Lenio Streck atribui a gênese do positivismo hobbesiano à sua subscrição ao nominalismo155156 concepção a partir da qual se considera que só há universalidade justamente nos nomes157 vale dizer evidentemente que de forma bastante sintetizada como é típico de qualquer abordagem filosófica em pesquisas que não tratam diretamente da tradição em análise o nominalismo de Hobbes é aquele segundo o só há objetos particulares e exceção feita aos nomes tudo é pois particular158 Streck traduz seu ponto e bem fundamenta ao trazer que a suposição nominalista de que um saber formulado em termos gerais tenha um equivalente como objeto concreto singular na realidade acaba por gerar a negação de todo valor cognitivo a juízos de valor e enunciados 152 Tradução live para for this reason only the sovereign has the right to interpret natural law And whoever according to Hobbes interprets the law authoritatively establishes it Em MARIS Cees JACOBS Frans eds Law Order and Freedom A Historical Introduction to Legal Philosophy Tradução de Jacques de Ville Amsterdam Springer 2012 p 122 153 OAKESHOTT Michael Hobbes on Civil Association Indianapolis Liberty Fund 1975 p 45 154 Grifos meus e tradução livre e contextualizada de civil laws furnish the rules of the just and of the unjust These suppose a juridicopolitical definition only from terms like the just and the unjust yours and mine ZARKA Charles Yves Hobbes and Modern Political Thought Tradução e introdução de James Griffith Edimburgo Edinburgh University Press 2016 pp 133134 155 Não é por acaso que a obra de ruptura que fundamenta o Estado Moderno tenha sido escrita por Thomas Hobbes um nominalista o que faz dele o primeiro positivista da modernidade STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 p 86 Streck chega a traçar uma interessante aproximação ente o positivismo e o nominalismo típico de Ockham Cf STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 p 130 156 Fica pois muito clara e bem fundamentada a inexorável relação sustentada por Streck entre o positivismo e a arbitrariedade que para o autor vai desde o nominalismo hobbesiano à tese da discricionariedade dos positivismos contemporâneos de que trataremos a seguir sobretudo é a partir desse ponto que Lenio Streck em sua abordagem típica e inevitavelmente hermenêutica associa o positivismo jurídico aos paradigmas por ele chamados de subjetivistas da metafísica moderna Cf STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 pp 129131 157 STEWART Duncan Thomas Hobbes In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Summer 2017 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivessum2017entrieshobbes Acesso em 25 out 2018 158 RODRIGUEZPEREYRA Gonzalo Nominalism in Metaphysics In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Winter 2016 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchiveswin2016entriesnominalismmetaphysics Acesso em 25 out 2018 49 normativos Para Streck é a partir disso que se nega a objetividade de conceitos como bom justo e correto na medida em que se referem a propriedades que não podem ser verificadas pela avaliação lógica ou empírica159 Hobbes assim acaba por igualar a liberdade com tudo o que a lei permite na mesma proporção em que não proíbe A liberdade pressuposta pelo liberalismo hobbesiano é nas palavras de Merquior liberdade por meio da lei e não exterior à legislação160 Com Hobbes nasce o positivismo a ideia de que não será qualquer concepção de justiça substantiva o critério a partir do qual se identifica o Direito161 133 Conclusão parcial Antes de avançarmos uma breve recapitulação revelase oportuna de forma que não se perca de vista o que já é possível concluir até aqui e sobretudo de que maneira tudo que foi até aqui abordado relacionase com o próximo tópico a ser discutido Em síntese portanto já temos algumas premissas que servem de alicerce ao que será discutido posteriormente i Positivismo jurídico com base em autores como Hart e Gardner pressupõe um pensamento que separa o Direito do que ele é daquilo que ele deve ser em outras palavras é uma concepção em seu sentido mais amplo segundo a qual não é verdade que o Direito para ser válido como tal deve necessariamente se conformar a determinado padrão moral o que naturalmente inclui valores substantivos considerações acerca do justo e do injusto noções divinas transcendentais enfim ii É possível afirmar que a origem dessa concepção é anglosaxã e remonta a Thomas Hobbes Inserido no common law cuja teoria clássica era dominada por duas grandes eras a Era Coke e seu apelo à razão e a Era SeldenHale e seu apelo a um historicismo contratual Hobbes desenvolveu uma teoria políticojurídica para por suas considerações acerca da natureza humana que fazia com que o estado de natureza fosse basicamente um estado de barbárie justificar a submissão dos cidadãos ao poder soberano Muito embora seja bem verdade que Hobbes até por uma questão temporal seja um autor vinculado à tradição do direito natural é possível concordar com os teóricos contemporâneos ortodoxos 159 STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 p 168 160 MERQUIOR José Guilherme O Liberalismo Antigo e Moderno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991 p 28 161 HAYEK F A Law Legislation and Liberty A New Statement of the Liberal Principles of Justice and Political Economy Cornwall Routledge 1998 p 48 50 dominantes que dizem ser Hobbes o primeiro grande positivista ao compreender o Direito como um comando do soberano a partir do qual se depreende qualquer noção de certo e errado justo e injusto o autor acaba por inaugurar as bases teóricas que possibilitam o desenvolvimento de uma corrente de pensamento jurídico cujas teses apontam à separabilidade entre Direito e moral Do mesmo modo da definição de liberdade como ausência de obstáculos externos é com Hobbes que nasce a tradicional concepção inglesa de liberdade negativa162 O positivismo então lembrando como coisa e não como nome nasce com o desafio de Hobbes à teoria clássica do common law Basicamente de forma bastante sintética são essas as conclusões naturalmente parciais que se depreendem da pesquisa até este ponto Depois de Hobbes também a continuação da tradição positivista deuse no common law mais precisamente e assim como também o foi com o próprio Hobbes a partir de desafios às tradições dominantes no common law De forma até mais explícita com Jeremy Bentham 14 O DIREITO EM JEREMY BENTHAM Logo após referenciar uma afirmação crítica de Sir Fitzjames Stephens163 para quem os escritos de Jeremy Bentham 17481832 eram como projéteis implodidos enterrados sob as ruínas a que eles próprios deram causa164 Gerald Postema ao menos no Direito provavelmente o maior de todos os comentadores de Bentham165 no prefácio de seu 162 A conclusão não é minha apenas subscrevo à de José Guilherme Merquior que coloca Hobbes como o nome paradigmático da teoria inglesa da liberdade uma das três possíveis escolas divisórias do conceito além da francesa e da alemã Enquanto a inglesa preconizava para o conceito de liberdade a concepção de independência a francesa rousseauniana adotava a concepção de autonomia Por sua vez a alemã vinculada a von Humboldt à moralidade kantiana e à política de Hegel entendia liberdade enquanto realização pessoal Cf MERQUIOR José Guilherme O Liberalismo Antigo e Moderno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991 pp 2732 163 Célebre jurista advogado e juiz britânico no séc xix 164 Tradução livre para a epígrafe do livro que será mencionado na sequência Originalmente em Digest of Law of Evidence de Sir Stephens a frase lê Benthams writings are like exploded shells buried under the ruins which they have made 165 Sydney Smith em comentário ao Book of Fallacies de Bentham disse que nem deuses homens ou vendedores de livros poderiam duvidar da necessidade de um intermediário entre Bentham e o público em razão de sua obra longa original complexa peculiar A colocação é aduzida por H L A Hart na introdução de seu Essays on Bentham Neither gods men nor booksellers can doubt the necessity of a middleman between Mr Bentham and the public Cf HART H L A Essays on Bentham Studies in Jurisprudence and Political Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 01 51 excelente166 Bentham and the Common Law Tradition afirma que o comentário depreciativo era em grande medida verdadeiro grande parte da obra benthamiana dedicada ao Direito estaria sim escondida debaixo de escombros mas para Postema nesses escombros encontramse as ruínas de muito da prática e da ideologia do common law que Bentham atacava de forma efetiva e implacável E justamente por isso projéteis gastos estão de fato enterrados nessas ruínas mas projéteis ainda não consumidos permanecem lá e com grande potencial explosivo167 Bentham pois não pode ter sua importância subestimada e estudar sua obra ainda hoje assume extrema relevância Ao trabalho pois Como visto anteriormente o desafio de Hobbes ao common law colocava nas mãos da teoria clássica britânica o problema de reconciliar as noções de Direito como produto mais da autoridade e menos da razão exercida e representada na judgemade law A única saída encontrada por Sir William Blackstone o maior jurista da teoria clássica do common law após a Era Coke foi a de conformarse às tendências seldenianas de explicar o direito positivo a partir de uma ideia de autoridade Contudo muito em razão da força que o direito natural ainda representava e exercia sobre a tradição anglosaxônica Sir Blackstone ao discutir a natureza do Direito como tal acabava por vezes a tomar posições contraditórias Ainda que falasse no direito positivo como fruto daquilo que produz o soberano em termos até mesmo quasihobbesianos insistia que Deus ditava uma lei natural universalmente vinculante e superior a qualquer outra forma de lei168 Muito diferente de Hobbes para quem como vimos o Direito seria meramente o produto do soberano sem que estivesse ligado a qualquer ontoteologia a qualquer tipo de valores transcendentes169 Foram essas concepções atreladas ao jusnaturalismo racionalista anglosaxão e em alguma medida contraditórias depois do problema criado por Hobbes que Bentham encontrou ao frequentar as palestras de Sir Blackstone em Oxford Diferentemente do próprio Blackstone porém e daqueles que o antecederam Bentham via essas contradições além de 166 E de certa forma pouco ortodoxo ao oferecer leituras bastante próprias da obra de Bentham 167 Trechos traduzidos de forma livre e contextualizada da seguinte passagem Fitzjames Stephens disparaging comment contains more than a grain of truth Benthams most important jurisprudential work has lain buried under a great rubble In this rubble we find the ruins of much of the practice and ideology of the Common Law system he so mercilessly and effectively attacked but also a mountain of inaccessible and largely unpublished manuscripts the remains of a very long and curiously undisciplined writing career Spent shells are buried here to be sure but live ones with great explosive potential remain Prefácio de POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 vii 168 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 99 169 STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 p 167 Ver ainda o interessante jogo de palavras streckiano diz Lenio que em Hobbes Direito seria aquilo que o soberano disepõe 52 latentes demais como algo intolerável diante daquilo que a teoria clássica via como expressão do direito natural e da right reason Bentham viu nada mais que mera retórica que ao mesmo tempo em que invocava a natureza e os costumes era além de tão somente apologética ao Parlamento num sentido de reconhecer sua autoridade por mera e pura obrigação incapaz de conciliar as duas coisas170 Para Bentham a teoria clássica do common law não apresentava qualquer descrição minimamente clara do Direito enquanto fenômeno ou de como o direito anglosaxão desenvolvia suas próprias regras e quanto mais Bentham clarificava a teoria clássica mais a via como inadequada e problemática Tudo isso por uma razão muito clara Jeremy Bentham não apenas discordava mas ridicularizava a própria ideia da existência de um direito natural a ser invocado na decisão judicial Bentham afinal não era um grande simpatizante de teorias baseadas na suposta existência de normas deontológicas deduzidas a priori era um consequencialista por essência ao repristinar aquilo que dizia ter aprendido de Beccaria e Priestley171172 foi o grande pioneiro do utilitarismo Inclusive de acordo com Postema foi Bentham quem pela primeira vez expôs e defendeu de forma detalhada em língua inglesa o utilitarismo e o positivismo jurídico arranjando um sofisticado casamento entre as duas doutrinas173 141 Bentham e o utilitarismo A frase de Postema é muito boa porque muito elucidativa acerca do legado benthamiano Bentham foi mesmo o responsável por unir de um lado o utilitarismo e de outro o positivismo jurídico foi assim o responsável pelo casamento entre uma teoria ética e uma teoria jurídica 170 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 155 171 HART H L A Bentham and Beccaria In HART H L A Essays on Bentham Studies in Jurisprudence and Political Theory Oxford Oxford University Press 2001 pp 4052 172 Fred Rosen na Introdução a uma das edições de An Introduction to the Principles of Morals and Legislation de Bentham diz que Bentham não foi o primeiro utilitarista uma vez que o clássico adágio a maior felicidade do maior número já estava em Beccaria além de haver formulações similares em Hutcheson Leibniz e no próprio Priestley cuja influência possível é como visto reconhecida pelo próprio Bentham ROSEN Fred Introduction In BENTHAM Jeremy An Introduction to the Principles of Morals and Legislation An Authoritative Edition by J H Burns and H L A Hart with a new Introduction by F Rosen and an Interpretive Essay by H L A Hart Oxford Clarendon Press 2005 p li 173 Tradução livre e contextualizada para he gave both utilitarianism and legal positivism their first detailed exposition and defence in English and negotiated a sophisticated marriage of the two doctrines Prefácio de POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 vii 53 Antes de seguir contudo assim como fiz com relação ao termo positivismo sinto me obrigado a esclarecer desde logo o que quero dizer com utilitarismo já que como o primeiro este termo assume agora uma posição fundamental para uma adequada compreensão do assunto Além disso é importante que se deixe sempre explícito o que se quer dizer quando da utilização de determinado conceito especialmente quando o conceito em questão é tão amplamente repetido sob pena de perpetuar possíveis caricaturas que se tornam muito comuns com relação a termos que de tão repetidos acabam por se tornar até abstratos Não é por acaso que Bentham dizia ter aprendido os princípios subjacentes à sua teoria ética com além de Priestley Beccaria174 é o autor italiano que em seu Dei delitti e delle pene Dos Delitos e das Penas menciona muito possivelmente pela primeira vez aquilo que se tornaria a máxima utilitarista em sua essência a maior felicidade dividida no maior número175 Com base nisso a melhor definição do utilitarismo é dada pelo grande John Stuart Mill para o discípulo direto de Bentham a doutrina que tem a utilidade justamente o princípio da maior felicidade do maior número como parâmetro é aquela que define que um ato será certo na mesma proporção em que gere felicidade e logo errado na mesma proporção em que gere infelicidade sendo felicidade para o autor definida como prazer e ausência de dor e daí infelicidade como dor e ausência de prazer176 Esses termos e seus correlatos que Stuart Mill emprega para dar uma definição sistemática do utilitarismo enquanto doutrina eram expressamente adotados também por Bentham para quem o prazer e a dor em sua própria linguagem metafórica eram os dois mestres soberanos que regulavam a conduta humana177 Nesse sentido evidenciase no autor uma possível influência filosófica de Thomas Hobbes não é difícil traçar um paralelo entre i uma concepção segundo a qual a natureza humana e por decorrência lógica também o comportamento humano é regulada pelas sensações de dor e prazer e ii a clássica ideia hobbesiana de uma natureza humana vinculada àquilo que Julia Driver na Stanford Encyclopedia of Philosophy chama de 174 As influências de Beccaria na obra de Bentham são tratadas por ninguém menos que H L A Hart no excepcional ensaio Bentham and Beccaria Cf HART H L A Essays on Bentham Studies in Jurisprudence and Political Theory Oxford Oxford University Press 2001 pp 4052 175 BECCARIA Cesare On Crimes and Punishments Tradução de David Young Indianápolis Hackett 1986 1764 p 03 176 MILL John Stuart Utilitarianism Kitchener Batoche Books 2001 1863 p 10 177 A natureza colocou a humanidade sob a governança de dois mestres soberanos a dor e o prazer Tradução livre para a passagem que abre An Introduction to the Principles of Morals and Legislation Nature has placed mankind under the governance of two sovereign masters pain and pleasure BENTHAM Jeremy An Introduction to the Principles of Morals and Legislation An Authoritative Edition by J H Burns and H L A Hart with a new Introduction by F Rosen and an Interpretive Essay by H L A Hart Oxford Clarendon Press 2005 p 11 54 egoísmo psicológico178179 Assim Bentham a partir de uma expressa subscrição ao argumento de Hume acerca de uma distinção entre as instâncias do is e do ought180 e dessa aproximação com o pensamento de Hobbes vinculase à tradição do empirismo anglosaxão acompanhando a epistemologia de Bacon e Locke o autor sustentava que não se deriva aquilo que se pode conhecer de nada a não ser daquilo que pode ser obtido através da experiência sensorial Isso por razões óbvias acaba por se refletir diretamente em sua filosofia moral e jurídica sob pena de contradições teoréticofilosóficas segundo Bentham a concepção de uma natureza humana governada pelas sensações de dor e de prazer não vem de uma disposição assumida a partir de elementos puramente racionais a priori viria em verdade do fato empiricamente verificável de que os seres humanos buscam a felicidade e evitam seu antônimo181 142 Bentham e o positivismo Retomando vimos até aqui que i o utilitarismo então é a doutrina ética segundo a qual uma ação é considerada correta na medida em que promova a maior felicidade do maior 178 DRIVER Julia The History of Utilitarianism In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Winter 2014 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchiveswin2014entriesutilitarianismhistory Acesso em 17 set 2018 179 Pessoalmente penso que o termo ainda que acerte na aproximação da concepção utilitarista a uma doutrina do interesse próprio no sentido psicológico é em alguma medida inadequado porque concordo com Dworkin quando este diz que o utilitarismo seja ele o de Bentham Mill ou até o de Sidgwick mencionado pelo próprio Dworkin acaba por exigir uma subordinação do interesse próprio uma perspectiva objetiva distinta que veja os interesses do agente como não mais importantes do que os interesses de qualquer outra pessoa Nada menos egoísta que isso Morality this tradition insisted means a subordination of self interest it requires taking up a distinct objective perspective that counts the agents own interests as in no way more important than anyone elses That is the morality of self abnegation a morality that spawned the moral philosophy of impersonal consequentialism of which the theories of Jeremy Bentham John Stuart Mill and Henry Sidgwick are famous examples Cf DWORKIN Ronald Justice for Hedgehogs Cambridge The Belknap Press 2011 p 18 Detalhe Dworkin é um ferrenho crítico do utilitarismo 180 Sobre a qual falarei com um pouco mais de vagar no item subsequente 181 De todo modo é importante mencionar que o princípio da utilidade como tal aquele segundo o qual a ação correta é aquela que visa à maior felicidade do maior número é concebida tanto por Bentham quanto por Mill como uma espécie de princípio primeiro que prova tudo o mais de forma que não pode ser provado por si mesmo O que se pode fazer não é pois provalo diretamente mas argumentar logicamente de maneira tal a fazer considerações a partir das quais os homens sensatos aceitem o princípio Cf HART H L A Benthams Principle of Utility and Theory of Penal Law In BENTHAM Jeremy An Introduction to the Principles of Morals and Legislation An Authoritative Edition by J H Burns and H L A Hart with a new Introduction by F Rosen and an Interpretive Essay by H L A Hart Oxford Clarendon Press 2005 p lxxxviii Isso apesar de contestável não parece violar a Lei de Hume isought já que a interpretação mais correta acerca do princípio humeniano é para mim aquela segundo a qual você pode derivar um dever ser de um ser desde que haja uma argumentação lógica que sustente a derivação e não a leitura de que haveria uma espécie de barreira ontológica separando em absoluto os planos is e ought 55 número de pessoas e que ii Bentham um dos pais do utilitarismo estabeleceu uma ligação entre sua ética utilitária e o positivismo jurídico E iii o positivismo por sua vez como também já vimos é a tese uma vez mais remontando a Gardner segundo a qual em um sistema jurídico a validade jurídica de uma norma depende de suas fontes não de seus méritos182 Uma coisa é aquilo que o Direito efetivamente é o que ele deveria ser é outra Retomo esse ponto porque com isso em mente visualizar o positivismo jurídico na Teoria do Direito de Bentham que ainda não levava esse nome à época passa a ser algo verdadeiramente muito tranquilo Como dito quando do encerramento do item antecedente Bentham assumidamente influenciado por David Hume183 trabalha sob uma perspectiva dicotômica entre fato e valor com uma distinção entre aquilo que é e aquilo que deveria ser Uma coisa é o is ser outra é e ought dever ser184185 Não se pode derivar o que deve ser daquilo que é sem que para isso 182 GARDNER John Legal Positivism 5½ Myths In GARDNER John Law as a Leap of Faith Oxford Oxford University Press 2012 p 20 183 Diz Bentham Há mais ou menos oitenta anos por David Hume em seu Tratado sobre a Natureza Humana A Treatise of Human Nature a observação foi trazida à luz acreditase pela primeira vez quão aptos os homens têm sido em questões que dizem respeito a qualquer área no campo da ética ir de um ponto a outro sem sequer perceber da questão do que foi feito à questão do que deve ser feito e viceversa mais especialmente do primeiro em direção ao último Essa questão apresentouse ao autor destas páginas como sendo um ponto de importância fundamental Tradução livre da passagem some fourscore years ago by David Hume in his Treatise on Human Nature the observation was for the first time it is believed brought to lighthow apt men have been on questions belonging to any part of the field of Ethics to shift backwards and forwards and apparently without their perceiving it from the question what has been done to the question what ought to be done and vice versá more especially from the former of these points to the other That observation presented itself to the writer of these pages as one of cardinal importance BENTHAM Jeremy Chrestomathia In BOWRING Sir John ed The Works of Jeremy Bentham vol 8 Edimburgo William Tait 1843 p 128 Nota O Treatise de Hume é de 173840 Chrestomathia de Bentham de 1817 184 A celebre passagem do Treatise em que Hume dispõe sua celebre lei com relação à distinção isought é a seguinte Em todo sistema de moralidade que encontrei até hoje tenho sempre percebido que o autor procede durante algum tempo a partir do modo ordinário de raciocínio e estabelece o ser de um Deus ou tece observações acerca do comportamento humano quando de repente surpreendome ao encontrar que em vez das cópulas proposicionais usuais ser e não ser não encontro qualquer proposição que não esteja conectada a um dever ser ou não dever er Essa mudança é imperceptível mas é contudo de grave consequência Uma vez que um dever ser ou não dever ser expressa uma nova relação ou afirmação é necessário que ela seja observada e explicada e ao mesmo tempo uma razão deve ser dada porque parece inconcebível que essa nova relação seja derivada das outras que são completamente diferentes Tradução livre para in every system of morality which I have hitherto met with I have always remark d that the author proceeds for some time in the ordinary way of reasoning and establishes the being of a God or makes observations concerning human affairs when of a sudden I am surprizd to find that instead of the usual copulations of propositions is and is not I meet with no proposition that is not connected with an ought or an ought not This change is imperceptible but is however of the last consequence For as this ought or ought not expresses some new relation or affirmation tis necessary that it should be observd and explaind and at the same time that a reason should be given for what seems altogether inconceivable how this new relation can be a deduction from others which are entirely different from it Cf HUME David A Treatise of Human Nature Being an attempt to introduce the experimental method of reasoning into moral subjects Reprinted from the original edition in three volumes and edited with an analytical index by L A SelbyBigge MA Oxford Clarendon Press 1960 173840 III I I 27 p 469 185 Para considerações acerca da filosofia moral em David Hume ver COHON Rachel Humes Moral Philosophy In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Fall 2018 Edition 56 haja uma argumentação lógica186 Ronald Dworkin chama a isso de princípio de Hume um princípio de epistemologia moral Esse princípio afirma que nenhuma série de proposições como o mundo é enquanto fato científico ou metafísico pode fornecer argumentos convincentes sem algum juízo se valor escondido nos interstícios para qualquer conclusão sobre o que deveria ser o caso 187 Divergências interpretativas à parte o fato é que Bentham subscreve expressamente à distinção entre fato e valor e uma vez por ele adotada essa distinção como não poderia ser diferente é um aspecto fundamental para sua Teoria do Direito que viria a ser dividida em expository jurisprudence e censory jurisprudence a primeira a parte expositória de sua jurisprudence seria responsável por descrever o fenômeno jurídico como ele efetivamente era a segunda a parte censória na tradução de Chiassoni algo como crítica188 destinar seia a dizer como o Direito deveria ser189 Aqui é importante trazer o que o próprio Bentham Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesfall2018entrieshumemoral Acesso em 04 out 2018 186 De fato alguns autores sustentam que a passagem de Hume levaria a uma espécie de barreira ontológica absoluta entre os dois planos sendo impossível derivar um dever ser de um ser Não me parece ser o caso concordo com Alasdair MacIntyre quando este diz que Hume não chega a dizer que não se pode passar de um ser para um dever ser mas apenas que talvez pareça à primeira vista inconcebível que isso seja feito Fomos levados a acreditar tão firmemente na ironia humeniana que talvez seja necessário ocasionalmente que nos lembremos que Hume não necessariamente quer dizer mais ou outra coisa além daquilo que ele efetivamente diz Seria estranho se Hume pensasse que observações acerca do comportamento humano necessariamente não pudessem levar a julgamentos morais uma vez que tais observações são constantemente utilizadas pelo próprio Hume Tradução livre para Hume does not actually say that one cannot pass from an is to an ought but only that it seems altogether inconceivable how this can be done We have all been brought up to believe in Humes irony so thoroughly that it may occasionally be necessary to remind ourselves that Hume need not necessarily mean more or other than he says It would be odd if Hume thought that observations concerning human affairs necessarily could not lead on to moral judgments since such observations are constantly so used by Hume himself Cf MACINTYRE Alasdair Hume on is and ought In HUDSON W D ed The IsOught Question A Collection of Papers on the Central Problem in Moral Philosophy Basingstoke Macmillan 1969 pp 3550 O mesmo é sustentado por autores como Hilary Putnam que diz que Hume não declara essa impossibilidade absoluta em lugar algum Hume nowhere says exactly this PUTNAM Hilary The Collapse of the FactValue Dichotomy and other Essays Cambridge Harvard University Press 2002 p 149 Massimo Pigliucci por sua vez é taxativo Hume nunca disse exatamente que você não pode fazêlo derivar um dever ser de um ser somente que se fizesse era melhor que estivesse preparado para justificar a derivação sem tomala como automática como aparentemente faziam alguns dos colegas de seu tempo tradução livre para Hume didnt really say that you cannot do it just that if you do it you had better be prepared to justify that move not taking it as automatic as apparently some of his colleagues at the time used to do PIGLIUCCI Massimo Is Ethics a Science Philosophy Now Magazine Londres Anja Publications maijun 2006 p 25 187 Tradução livre para the principle of moral epistemology I called Humes principle This holds that no series of propositions about how the world is as a matter of scientific or metaphysical fact can provide a successful case on its own without some value judgment hidden in the interstices for any conclusion about what ought to be the case DWORKIN Ronald Justice for Hedgehogs Cambridge The Belknap Press 2011 p 44 188 CHIASSONI Pierluigi O Enfoque Analítico na Filosofia do Direito de Bentham a Kelsen São Paulo Contracorrente 2017 p 33 189 A atribuição do rótulo de positivista a Bentham aqui fica muito bem explicada Lembremos a própria definição do conceito de positivismo de Lon Fuller p 18 desta pesquisa uma direção de pensamento jurídico que insiste em traçar uma afiada distinção entre o Direito como ele é e o Direito como ele deve ser FULLER Lon L The Law in Quest of Itself Boston Beacon Press 1940 p 08 57 dizia não apenas acerca da divisão por ele feita expositorycensory como também sobre o próprio conceito de jurisprudence190 Conhecer seus próprios fundamentos e sua compreensão do que há por trás da análise teoréticofilosófica do Direito enquanto tal da forma mais direta possível auxilia a melhor entender os desdobramentos da teoria jurídica benthamiana Bentham diz que a jurisprudence Teoria do Direito é em si uma entidade fictícia e portanto não é possível encontrar um significado qualquer para a palavra a não ser colocandoa próxima de qualquer outra que designe uma entidade real Para compreender o significado de jurisprudence devemos antes conhecer por exemplo qual é o significado da expressão um livro de jurisprudence Um livro de jurisprudence pode ter como objeto somente um ou outro dos seguintes 1 Determinar o que é o Direito 2 Determinar o que ele deve ser No primeiro caso podese denominalo um livro de Teoria do Direito expositiva expository jurisprudence no segundo caso podese denominalo um livro de teoria do Direito crítica censorial jurisprudence ou em outras palavras um livro sobre a arte de legislar191 Para que se possa entender a opção de Bentham por essa linguagem muito própria que faz uso de algo físico in casu um livro não se pode perder de vista a relação entre a epistemologia materialista a ética utilitária e o positivismo jurídico benthamiano se é um princípio básico que só se pode conhecer genuinamente aquilo que é observável e verificável também as filosofias moral e jurídica devem ter esse caráter científico não por menos Bentham argumentava que a teoria jurídica deveria ser construída nas mesmas bases ligadas à sensação e à experiência da medicina192193 190 Mantenho o termo em inglês uma vez que a tradução de jurisprudence não é algo assim tão simples É comum que na tradição jurídica de nosso país entendase por jurisprudência um conjunto muitas vezes recorrente de decisões judiciais Em inglês contudo ainda que jurisprudence possa também remeter a decisões na hipótese case law o termo é mais geralmente empregado de forma a significar algo como Teoria do Direito no sentido de estudo teórico do Direito enquanto conceito filosofia ou ciência social 191 Tradução livre da seguinte passagem Jurisprudence is a fictitious entity nor can any meaning be found for the word but by placing it in Company with some word that shall be significative of a real entity To know what is meant by jurisprudence we must know for example what is meant by a book of jurisprudence A book of jurisprudence can have but one or the other of two objects 1 to ascertain what the law is 2 to ascertain what it ought to be In the former case it may be styled a book of expository jurisprudence in the latter a book of censorial jurisprudence or in other words a book on the art of legislation BENTHAM Jeremy An Introduction to the Principles of Morals and Legislation An Authoritative Edition by J H Burns and H L A Hart with a new Introduction by F Rosen and an Interpretive Essay by H L A Hart Oxford Clarendon Press 2005 pp 293294 192 CRIMMINS James E Jeremy Bentham In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Summer 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivessum2018entriesbentham Acesso em 17 set 2018 193 Até mesmo por esse motivo ao ser referenciado por Thomas Macaulay o grande liberal whig Bentham era descrito como o teórico responsável por ter transformado a Teoria do Direito após têla encontrado envolta em um vocabulário sem sentido em uma ciência autêntica O ponto é mencionado por Hart em seu ensaio que serve de abertura à edição da Clarendon de An Introduction to the Principles of Morals and Legislation Cf HART H L A Benthams Principle of Utility and Theory of Penal Law In BENTHAM Jeremy An Introduction to the Principles of Morals and Legislation An Authoritative Edition by J H Burns and H L 58 Em Bentham portanto dizer como o Direito deveria ser equivale à arte de legislar e esta por sua vez na interpretação de Chiassoni equivaleria a guiar uma comunidade política a perseguir o curso de ação mais idôneo que conduzisse à felicidade da comunidade inteira194 Dessa forma fica evidente que é ao discorrer sobre como o Direito deveria ser que Bentham vincula sua teoria jurídica ao utilitarismo teoria ética da qual foi como já dito em alguma medida pioneiro Se para Bentham a ação correta é aquela que promove a maior felicidade do maior número de pessoas a partir do princípio da utilidade também o Direito deve ser pautado por este princípio Nas palavras de Isaiah Berlin Bentham diz que cada homem é o melhor juiz de sua própria felicidade a tarefa da legislação é portanto em grande parte negativa remover a interferência de instituições obsoletas corruptas ou ineficientes195 Muito bem Quanto ao ought Bentham recorre ao utilitarismo Mas como ele chega lá Mais quais eram suas considerações acerca do is ou seja acerca dos fundamentos do Direito como ele efetivamente era Sua definição conceitual quanto aos fundamentos ontológicos do fenômeno jurídico afastase das noções da teoria clássica sejam elas as noções de artificial reasoning Era Coke ou de um contrato abstrato celebrado pela comunidade política Era SeldenHale Subscrevendo uma vez mais a David Hume Bentham definia uma sociedade política em termos de seu hábito de obediência196 aos comandos de um soberano197 Para ele pois as leis em uma sociedade que constituem o que é o Direito são justamente os comandos daquele que for o soberano na comunidade que estiver em questão198 A Hart with a new Introduction by F Rosen and an Interpretive Essay by H L A Hart Oxford Clarendon Press 2005 p lxxxiii 194 CHIASSONI Pierluigi O Enfoque Analítico na Filosofia do Direito de Bentham a Kelsen São Paulo Contracorrente 2017 p 33 Chiassoni chega a atribuir essa definição da arte de legislar ao próprio Bentham em passagem de An Introduction to the Principles of Morals and Legislation logo após aquela também por mim referenciada acima contudo a edição utilizada para esta pesquisa Clarendon Press 2005 não apresenta o trecho De todo modo as considerações de Bentham tomadas em conjunto apontam mesmo facilmente a uma evidente vinculação de sua censorial jurisprudence ao utilitarismo de forma que é bastante tranquilo concordar com a leitura que faz Chiassoni 195 BERLIN Isaiah Ideias Políticas na Era Romântica Ascensão e influência no pensamento moderno Organização de Henry Hardy São Paulo Companhia das Letras 2016 p 113 196 A palavra hábito também acaba por demonstrar em si mesma os fundamentos empiristas de Bentham Em vez de recorrer a um argumento hipotético ou de deduzir qualquer noção apriorística o conceito de sociedade política benthamiano depende inexoravelmente de algo empírico um hábito passível de ser observado e verificado 197 A locução hábito de obediência cominada com a ideia de um comando de um soberano faço questão de frisar é importante Recomendo que se tenha esses conceitos em conta quando abordarmos John Austin o próximo autor a ser estudado 198 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 156 59 Isso significa que Bentham vai até concordar com seus predecessores common lawyers quanto à ideia de que os fundamentos do Direito estão no costume ou em uma espécie de convenção vai discordar contudo dos conteúdos dessas possíveis convenções Em contraposição ao que poderiam alegar os teóricos clássicos Bentham insistiria que o critério de validade dessa convenção mesma ie o Direito não estava em qualquer padrão substantivo mas no fato próprio e simples de vir do soberano 199 Além disso configurar aquilo que Postema chama de uma concepção positivista forte200 de Direito Bentham em sua definição acerca do Direito como ele é dá os primeiros passos a partir dos quais se fortaleceu uma concepção jurídica imperativista exatamente uma concepção segundo a qual o Direito é o comando sustentado coercitivamente através de sanções daquele constituído como soberano indivíduo ou grupo que detém o poder de facto em determinada comunidade política que tem para com ele um hábito de obediência Essa teoria imperativista é positivista por essência uma vez que identifica a existência de sistemas jurídicos com padrões de comando e obediência estes por sua vez que podem ser verificados sem que se faça considerações morais acerca do direito que tem o soberano de comandar ou mesmo considerações meritórias acerca de seus comandos201 Essa compreensão de Direito baseada em seu poder coercitivo está no âmago do espírito reformista de Bentham é ao separar a identificação do Direito de suas possíveis valorações morais que ele abre espaço para suas próprias reivindicações morais e seus próprios fins políticos Longe de enxergar o positivista como um apologista dos arranjos legais existentes como faz a caricatura comum diz Frederick Schauer o positivista benthamiano requer uma noção completamente descritiva do Direito precisamente em razão do propósito de manter um distanciamento moral202 Jeremy Waldron resume em uma brevíssima passagem de forma magistral tanto a concepção do que seria o is quanto a concepção do que seria o ought de Bentham acerca do 199 Cf POSTEMA Gerald J Bentham and the Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 pp 260262 200 Strong positivist conception of law Cf POSTEMA Gerald J Bentham and the Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 p 262 201 Tradução livre e contextualizada do seguinte trecho This imperatival theory is positivist for it identifies the existence of legal systems with patterns of command and obedience that can be ascertained without considering whether the sovereign has a moral right to rule or whether his commands are meritorious Cf GREEN Leslie Legal Positivism In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesspr2018entrieslegalpositivism Acesso em 14 mar 2018 202 Far from seeing the legal positivist as an apologist for existing legal arrangements as a common caricature has it the Benthamite positivist requires an entirely descriptive notion of law precisely for the purpose of keeping ones moral distance from it Bentham was after all a radical reformer and his efforts to separate the identification of law from its moral evaluation was itself in the service of what were plainly moral and political ends SCHAUER Frederick The Force of Law Cambridge Harvard University Press 2015 p 13 60 Direito isto é o que Bentham i considerava que o Direito efetivamente era e ii aquilo que ele deveria ser concomitantemente acaba ainda por deixar muito clara a concepção positivista subjacente Waldron diz que para Jeremy Bentham o Direito não era natural tampouco era em si fruto de um contrato social per se203 mas era compreendido tão somente em termos de determinados comandos sustentados por sanções de um soberano identificado E já que era nada mais que fruto de produção humana204 como qualquer outra ação também o Direito devia uma vez identificado como tal ter seus méritos avaliados de acordo com sua tendência a promover a felicidade da maioria205 Em Bentham então temos que o Direito é são os comandos sanções do soberano e em momento posterior uma vez que isso esteja devidamente identificado cabe ao jurista dizer que esse Direito deve ser produzido e avaliado de acordo com a máxima de que a ação correta é aquela que promove a maior felicidade do maior número de pessoas Disso é apenas uma decorrência lógica a pretensão de Bentham de reformar o direito inglês se i o Direito é o comando do soberano e ii o common law é judgemade ie direito judiciário feito por juízes seguese que o common law não é Direito de facto Assim cabe agora explorar as críticas de Bentham ao suposto direito anglosaxão e suas insuficiênciasmistificações e as soluções por ele apontadas 203 Aqui se evidencia um ponto de divergência entre Hobbes e Bentham Ambos identificam o Direito a partir do comando daquele que representa o poder soberano mas divergem acerca da identificação do próprio soberano Hobbes fala no contrato social Bentham vê a ideia de contrato igualmente como fictícia e defende que o soberano seja identificado a partir dos hábitos de obediência uma vez mais algo empiricamente verificável dos súditoscidadãos 204 Como a arte de que falava Hobbes sobre a commonwealth e portanto também o Direito em Leviathan Cf pp 3233 deste trabalho 205 Este parágrafo é uma sintetização adaptada daquilo que consta ipsis litteris na seguinte passagem Bentham atacou as teorias estabelecidas do common law e da constituição histórica inglesa ridicularizando o que chamava de ficções do direito natural e contrato social e insistindo em uma compreensão de Direito em termos de comandos de um soberano identificável sustentado por sanções de um ou outro tipo Uma vez que o Direito vinha da vontade humana a legislação produção do Direito tinha de ser avaliada do mesmo modo que qualquer outra conduta humana a partir de sua tendênciaaptidão a produzir a felicidade daqueles afetados Tradução livre para Bentham attacked established theories of the common law and the English constitution ridiculing what he called the fictions of natural law and the social contract and insisting on understanding law in terms of the determinate commands of an identifiable sovereign backed up by the threat of sanctions of one kind or another Since law sprang from the human will lawmaking was to be evaluated in the same way as all other human conduct by its tendency to promote the happiness of those affected Cf WALDRON Jeremy Jeremy Benthams Anarchical Fallacies In WALDRON Jeremy ed Nonsense upon Stilts Bentham Burke and Marx on the Rights of Man Londres Methuen 1987 p 30 61 143 Dog law Com esses fundamentos em mente é possível finalmente compreender por que Bentham ridicularizava as noções jusnaturalistas atreladas à razão da teoria clássica do common law206 Enquanto Blackstone e os demais juristas de sua era continuavam a ver o direito comum inglês como sendo nada mais que uma expressão daquilo que já existia na tradição e no costume imemorial dos povos guiada pela lei da natureza e pela razão Bentham via esse apelo à racionalidade e a uma justiça natural como uma completa farsa De acordo com Gerald Postema para Bentham apelar ao direito natural à razão ou à irracionalidade de uma prática ou regra é apelar a uma quimera Esse apelo não poderia ser construído como um apelo a um padrão ou princípio público independente de julgamento uma vez que não existe tal padrão Ao contrário isso tudo era nada mais que a expressão de uma opinião particular ou mais frequentemente um sentimento particular disfarçado de apelo a um padrão público207 Como em Hobbes a obra de Bentham denota uma rejeição da teoria clássica do common law com base em um ceticismo em relação a seus princípios subjacentes Com todas suas eventuais diferenças os autores clássicos que iam de Sir Coke a Blackstone passando até mesmo por autores com concepções mais relativamente positivistas como Selden e Sir Hale viam na razão e na justiça natural um padrão comum universal algo estabelecido fixo que poderia portanto servir de critério e diretriz fundamental Com Bentham ao contrário temos que isso é uma falácia Isso porque para o autor a ideia de razão ao menos no sentido empregado à época seria radicalmente subjetiva quando um jurista dizia que determinada lei ou regulação jurídica contrariava a razão ele estava dizendo tão somente que o dispositivo em questão contrariava sua própria razão subjetiva Para Bentham contrário à razão é uma mistificação que em verdade quer dizer contrário ao que eu aprovo208 O 206 Não que fosse estritamente necessário têlos em mente de qualquer forma concordo com Merquior quando ao falar sobre Mill este diz que um liberal utilitarista precisamente porque utilitarista não argumenta porque sequer poderia argumentar a partir de qualquer posição atrelada a uma ideia de direito natural O mesmo obviamente vale para Bentham Cf MERQUIOR José Guilherme O Liberalismo Antigo e Moderno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991 p 99 207 Tradução livre para according to Bentham to appeal to natural law or to reason or to the reasonableness or unreasonableness of some practice or rule is to appeal to a chimera It cannot be construed as an appeal to some independent public standard or principle of judgment for there is no such standard rather it is only the expression of private opinion or more often simply private sentiment disguised as appeal to a public standard POSTEMA Gerald J Bentham and the Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 p 269 208 POSTEMA Gerald J Bentham and the Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 p 270 62 positivismo de Bentham nesse sentido é definido por Dworkin como uma Teoria do Direito baseada na eficiência209 eficiência que seria comprometida ameaçada quando testes morais são incluídos entre os testes para determinar o que é direito válido uma vez que esses testes esses juízos morais permitiriam que aqueles que discordam frequentemente com veemência acerca daquilo que a moralidade requer substituíssem os padrões públicos estabelecidos pelos seus próprios juízos subjetivos210 Nesse ponto a aproximação com o positivismo de Hobbes fica mais clara que nunca O subjetivismo por trás do apelo à razão indicado por Bentham faz lembrar a paradigmática passagem de Leviathan na qual Hobbes dispõe que quando os homens que se julgam mais sábios que os demais exigem que o critério de julgamento seja a razão reta right reason eles estão em realidade buscando nada mais que as coisas sejam determinadas pela sua própria razão no lugar da razão dos outros homens211 Com base nessa mesma premissa a Teoria do Direito de Bentham tinha como tarefa principal a desmistificação das ficções jurídicas que serviam de base à teoria clássica do common law Ainda com Postema temos que na tarefa de desmistificar o direito inglês Bentham tinha como intenção contrastar esse mito justamente o common law com as realidades da vida da maioria das pessoas sujeitas a esse sistema jurídico e demonstrar as flagrantes inconsistências entre teoria e performance O objetivo dessa desmistificação não era simplesmente abrir caminho a uma explicação mais realista acerca do funcionamento do direito comum inglês Bentham também pretendia expor em que medida esse mito era manipulado pelos interesses sinistros e corruptos tanto de uma elite jurídica quanto daqueles a quem essa elite servia212 Àquilo que Coke chamava de artificial reasoning portanto Bentham acusava de farsa A linguagem técnica do Direito seria nada mais que um vocabulário absurdo e desonesto para sob a justificativa de uma suposta perfectibilização de uma razão natural e universal mascarar a razão subjetiva do próprio common lawyer A analogia benthamiana é tão ilustrativa quanto curiosa dizia o utilitarista que o direito inglês era como o garoto mentiroso 209 Efficiency 210 Cf DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 p 174 211 Tradução livre e contextualizada para a seguinte passagem que em sua íntegra serve de epígrafe introdutória a este capítulo And when men that think themselves wiser than all others clamor and demand right Reason for judge yet seek no more but that things should be determined by no other mens reason but their own HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 p 111 212 Tradução livre e contextualizada para to set this myth against the realities of life of most people subject to this form of law and to show up the glaring inconsistencies between theory and performance The objective of this demythologizing was not simply to clear the way for a more realistic account of the workings of Common Law but also to expose the extent to which this myth had been manipulated by the corrupt and sinister interests of the legal élite and those in whose service they worked POSTEMA Gerald J Bentham and the Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 p 268 63 da Fábula os abusos de uma linguagem demasiadamente técnica fictícia ainda que não fossem perpétuos eram tão frequentes que diante das formas através das quais o common law manifestavase o cidadão comum jamais poderia sentir confiança e segurança plena Essa técnica para além de ontologicamente falsa falaciosa fazia com que o acesso à justiça213 fosse possível apenas através dessa mesma elite profissional que perpetuava o mito do common law214 Evidentemente portanto não se tratava só disso o problema estava para muito além do uso de uma linguagem mistificada Sob a ótica de Bentham o mais grave era o que essa mistificação causava Essas ficções perpetradas pela elite jurídica da teoria clássica eram por ele tratadas como mentiras com uma consequência estarrecedora munidos dessa linguagem técnica que serviam de instrumento a esconder aquilo que Bentham considerava como flagrantes injustiças os juízes do common law não apenas usurpavam o poder legislativo o que já seria grave por si só já que legislar não era tarefa de sua competência como também se aproveitavam dessa usurpação para ter em mãos um poder tão ilimitado quanto corrupto215 Naquilo que seria uma crítica às constituições estadunidense e francesa216 Bentham argumentava que as disposições constitucionais que remetiam a direitos naturais fundamentais eram construídas em uma linguagem demasiadamente vaga por essência Eis aí uma vez mais o positivismo de Bentham in a nutshell essa linguagem vaga e fictícia fazia com que a propria ideia de condicionar a validade da legislação à conformidade do direito positivo a algum padrão ou critério moral transferisse o poder legislativo ao Judiciário algo por ele considerado uma receita para a tirania217 Afinal como vimos o Direito em Bentham era o comando do soberano e o soberano era identificado a partir do hábito de obediência da comunidade para com ele Isso quer dizer i que o poder legislativo não cabe ao Judiciário e ii implica na necessidade de que as leis mesmas fossem transmitidas de maneira clara para 213 Justiça aqui entendida enquanto sistema jurídico e não uma justiça abstrata metafísica 214 POSTEMA Gerald J Bentham and the Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 pp 271272 215 POSTEMA Gerald J Bentham and the Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 pp 273 216 Bentham como se percebe era um ferrenho crítico da linguagem própria ao direito natural Paradoxalmente contudo há quem sustente que o pensamento político anglosaxão entre a Revolução Gloriosa e a publicação da constituição americana já foi encarado como um caminho direto de Locke a Bentham isto é do liberalismo dos direitos naturais à democracia utilitária O ponto em MERQUIOR José Guilherme O Liberalismo Antigo e Moderno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991 p 69 217 POSTEMA Gerald J The Soul of Justice In ZHAI Xiaobo QUINN Michael eds Benthams Theory of Law and Public Opinion Cambridge Cambridge University Press 2014 pp 4062 Disponível em httpsssrncomabstract2294730 Acesso em 26 set 2018 64 que pudessem ser reconhecidas como tais sob pena de a comunidade política não saber se estaria ou não diante de comandos autênticos218 As críticas de Bentham e essa linguagem não se baseavam apenas em seus ideias de clareza de linguagem219 mas como vimos na frase de Postema que abre o item presente na sua rejeição absoluta à própria existência desses direitos supostamente naturais Os pressupostos jusnaturalistas de Blackstone eram motivo de riso para Bentham que os chamava de tolices tão inexistentes quanto retóricas consideravaas uma desonesta mistificação metafísica um lixo sem sentido um abuso de linguagem um amálgama obsoleto de fórmulas mágicas uma mistificação deliberada220 nonsense upon stilts221222 É por essa razão que em Anarchical Fallacies cujo título traduzido livremente como Falácias Anárquicas é suficientemente sugestivo por si só Bentham chega ao ponto de artigo pro artigo desconstruir um código baseado em uma mentira Falar em direitos naturais diz Bentham é simplesmente uma bobagem223 Nas palavras do próprio John Stuart Mill o grande discípulo do utilitarismo benthamiano Bentham teria mostrado que termos como recta ratio direito natural eram todos dogmatismos disfarçados a partir dos quais se impunha os próprios sentimentos224 travestidos de razão225 218 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 156 219 Não que isso seja pouco como Hobbes Bentham estava convencido de que uma das principais fontes de conflitos políticos eram a vagueza e equivocidade verbais O ponto em WALDRON Jeremy Jeremy Benthams Anarchical Fallacies In WALDRON Jeremy ed Nonsense upon Stilts Bentham Burke and Marx on the Rights of Man Londres Methuen 1987 p 34 220 BERLIN Isaiah Ideias Políticas na Era Romântica Ascensão e influência no pensamento moderno Organização de Henry Hardy São Paulo Companhia das Letras 2016 pp 107 224 221 BENTHAM Jeremy Anarchical Fallacies being an Examination of the Declaration of Rights issued during the French Revolution In WALDRON Jeremy ed Nonsense upon Stilts Bentham Burke and Marx on the Rights of Man Londres Methuen 1987 p 53 222 Em tradução literal tolices em pernasdepau em alusão à suposta fragilidade dessas ideias Merquior traduz como tolices com base em nada Cf MERQUIOR José Guilherme O Liberalismo Antigo e Moderno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991 p 79 223 Natural rights is simple nonsense BENTHAM Jeremy Anarchical Fallacies being an Examination of the Declaration of Rights issued during the French Revolution In WALDRON Jeremy ed Nonsense upon Stilts Bentham Burke and Marx on the Rights of Man Londres Methuen 1987 p 53 224 A própria escolha da palavra demonstra o caráter empíricosensorial talvez até emotivista em alguma medida subjacente à compreensão de Bentham e Mill acerca da verdadeira natureza desses vocábulos 225 Trecho adaptado de uma passagem da autobiografia de J S Mill What thus impressed me was the chapter in which Bentham passed judgment on the common modes of reasoning in morals and legislation deduced from phrases like law of nature right reason the moral sense natural rectitude and the like and characterized them as dogmatism in disguise imposing its sentiments upon others under cover of sounding expressions which convey no reason for the sentiment but set up the sentiment as its own reason It had not struck me before that Benthams principle put an end to all this The feeling rushed upon me that all previous moralists were superseded and that here indeed was the commencement of a new era in thought Cf MILL John Stuart Autobiography and other Literary Essays Edited by John M Robson and Jack Stillinger Toronto University of Toronto Press 1981 p 66 65 Como se isso não bastasse o common law essa entidade fictícia ainda padeceria de outro grave defeito era um direito ex post facto isto é com força retroativa É por essa razão que Bentham com sua ironia peculiar referiase ao direito comum inglês não como common law mas como dog law Para Bentham assim como quando se quer modificar determinado comportamento de um cão esperase justamente que o cão faça aquilo para somente então punilo também o Direito sob o common law só funcionava retrospectivamente226 Quem bem resume é Streck ao dispor em seu Dicionário de Hermenêutica que Bentham dizia que o cidadão inglês aprendia as regras do direito inglês do mesmo modo que um cachorro aprendia a não fazer algo apanhando227 Bentham vai além a partir de suas considerações como dissemos deduzse que sequer haveria como se falar em algo como um direito comum O common law era ele mesmo como tal uma composição fictícia assim sequer era Direito O Direito legítimo autêntico era e devia ser uma qüestão de padrões públicos publicamente declarados autorizados acessíveis228 O common law portanto falhava enquanto Direito Bentham dizia Common law como se atribui a si mesmo na Inglaterra ou um direito judiciário judiciary law como se poderia dizer melhor em outros lugares essa composição fictícia que não tem qualquer pessoa conhecida como autor nenhum conjunto de palavras como conteúdo forma onde quer que seja a parte principal da construção jurídica como éter imaginário que na falta de matéria sensível preenche a medida do universo Pedaços e fragmentos de um direito autêntico presos nesse solo imaginário compõem as estruturas de qualquer código nacional O que se segue dissoque aquele que pelo propósito mencionado ou qualquer outro que seja deseja um exemplo de um corpo completo de leis a que se referir deve começar por fazer um229 Retomando relacionando o ponto com elementos trabalhados anteriormente e traduzindo a passagem de forma mais clara Bentham diz que o Direito é aquilo que se 226 DINWIDDY John R Bentham Selected Writings of John Dinwiddy Edited with an Introduction by William Twining Stanford Stanford University Press 2004 p 53 227 STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 p 169 228 Bentham insisted law is and must be a matter of public standards publicly declared authorized and accessible As traditionally understood common law failed as law POSTEMA Gerald J Jurisprudence University of Northern Colorado Legal Studies Research Paper Series Working Paper n 1785400 mar 2011 Disponível em httpsssrncomabstract1785400 Acesso em 10 dez 2018 229 Tradução livre e contextualizada da seguinte passagem Common law as it styles itself in England judiciary law as it might more aptly be styled every where that fictitious composition which has no known person for its author no known assemblage of words for its substance forms every where the main body of the legal fabric like that fancied ether which in default of sensible matter fills up the measure of the universe Shreds and scraps of real law stuck on upon that imaginary ground compose the furniture of every national code What followsthat he who for the purpose just mentioned or for any other wants an example of a complete body of law to refer to must begin with making one BENTHAM Jeremy An Introduction to the Principles of Morals and Legislation An Authoritative Edition by J H Burns and H L A Hart with a new Introduction by F Rosen and an Interpretive Essay by H L A Hart Oxford Clarendon Press 2005 p 08 66 identifica partir dos comandos do soberano estabelecido de forma clara à população que tem um hábito de obediência para com esse indivíduo ou grupo que detém a soberania diz também que o Direito deve ser construído através da arte de legislar de forma a promover a maior felicidade do maior número de pessoas Disso seguese que o common law i não era Direito e ii sequer poderia ser uma boa forma de Direito É com base nisso tudo então que na passagem supramencionada extraída do prefácio de An Introduction to the Principles of Morals and Legislation Bentham dispõe de forma bastante clara e direta a empreitada a que se propõe a de reformar o ilegítimo direito inglês a partir de uma proposta de codificação 144 Bentham e a evolução de seu pensamento jurídico Bentham era um liberal reformista Os dons de Bentham ao liberalismo diz Merquior incluem um entusiasmo pela administração inteligente e pela reforma judiciária Isso e mais importante do que isso segue o intelectual brasileiro uma visão mais ampla do das finalidades do Estado o qual para ele devia promover o bemestar e a igualdade além da liberdade e da segurança230 Assim se o common law não apenas perpetuava injustiças como também era uma farsa que sequer se qualificava como Direito legítimo nada mais natural a um liberal reformista que precisamente o desejo de reforma Bentham não era ingênuo quanto aos problemas que o direito estatutário também apresentava ele próprio como Sir Blackstone reconhecia que o conteúdo daquilo que produzia o Parlamento à época era passível de objeção231 Ainda assim uma vez que para Bentham o Direito é a expressão da vontade do soberano que lembrese também pode significar o Poder Legislativo reforçada por sanções a codificação232 do Direito além de qualificarse ao contrário do que acontecia com o common law genuína e efetivamente como 230 O grifo é meu Cf MERQUIOR José Guilherme O Liberalismo Antigo e Moderno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991 p 79 231 Mais especificamente Bentham era um grande crítico do uso indiscriminado da pena de morte nos estatutos de direito penal 232 O historiador John Dinwiddy cuja obra sobre Bentham é uma das mais importantes referências nesta parte da pesquisa chega a atribuir a Jeremy Bentham a própria cunhagem do termo codificação codification Dinwiddy diz que ainda que a prática de codificação estivesse muito em voga na Europa continental o termo é de Bentham suas origens estariam em cartas de 1806 Although Bentham invented the term codificationhe started using it in his letters in 1806 and in print about ten years laterthe practice of codemaking was much in vogue on the Continent during his lifetime and had of course a long previous history Cf DINWIDDY John R Bentham Selected Writings of John Dinwiddy Edited with an Introduction by William Twining Stanford Stanford University Press 2004 p 55 O mesmo ponto é mencionado por Bobbio que além de codification atribui a Bentham a cunhagem do termo international Cf BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 93 67 Direito legítimo permitiria ao mesmo tempo uma aproximação muito maior com aquilo que o Direito efetivamente deveria ser justamente um sistema de governança organizado e estruturado a partir do princípio da utilidade233 É claro que uma proposta tão ruptural não é de fácil surgimento não seria de uma hora para outra que nem mesmo um gênio como Bentham seria capaz de estruturar e articular um projeto de tamanha magnitude especialmente considerando os altíssimos graus de exigência que Bentham tinha para consigo mesmo como todo gênio arrisco dizer Antes pois de levar a cabo seu projeto de codificação na pretensão de reformar completamente o direito inglês Bentham ainda na primeira década de sua vida adulta 1770 colocavase como um revisor crítico do common law voltandose ao processo decisório dos juízes do direito comum inglês Talvez isso surpreenda tanto àqueles que conhecem somente sua versão radical que colocálo como um mero revisionista pareça até mesmo implausível com a própria teoria benthamiana e quem assume isso é o próprio Gerald Postema scholar que descobriu essa vertente reformista no digamos primeiro Bentham234 A primeira fase do pensamento jurídico benthamiano era bastante mais modesta já que o common law era judgemade que os juízes subsequentes então pautassemse sempre a partir daquilo que já existia como corpo jurídico e nunca recorressem à própria razão ao próprio conceito de justiça Para evitar arbitrariedades Bentham propugnava por uma adesão estrita e rígida aquilo que havia sido previamente estabelecido como precedente com o perdão da redundância somente seria possível qualquer expectativa minimamente razoável da decisão judicial em um cenário no qual os juízes respeitassem uma doutrina rígida do stare decisis de aderência absolutamente obrigatória ao precedente judicial Bentham não defendia um respeito ao costume imemorial à sabedoria dos juízes como poderiam fazer Sir Blackstone e seus antecessores da teoria clássica sua ideia era tão somente que os juízes obedecessem a uma regra estabelecida e na hipótese de novos casos decidissem em analogia àquilo já decidido previamente de forma a respeitar um mínimo de previsibilidade decisória 233 Cf DINWIDDY John R Bentham Selected Writings of John Dinwiddy Edited with an Introduction by William Twining Stanford Stanford University Press 2004 pp 5354 234 O ódio de Bentham diante do common law inglês claro é lendário e já havia se desenvolvido na sua demolição dos Commentaries de Blackstone É provável então que sugerir que Bentham tenha em algum momento de sua trajetória considerado a possibilidade de uma revisão do common law em contraste com uma radical desconstrução pareça implausível a muitos leitores Tradução livre para Benthams hatred of English Common Law of course is legendary and had already fully matured in his demolition of Blackstones Commentaries The suggestion then that Bentham at any point in his career considered a revisionist account of Common Law as opposed to a radical deconstruction of it is likely to strike many readers as implausible Cf POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 p 192 68 Não se tratava de respeito à suposta sabedoria dos mortos dizia Bentham mas ao bemestar dos vivos235 De espírito inquieto Bentham logo deixou de darse por satisfeito com essa aparente solução Depois de em uma fase inicial na já mencionada primeira década de sua vida adulta defender a doutrina rígida do stare decisis Bentham percebeu que essa rigidez acarretava em mais um daqueles que eram os paradoxos inerentes ao common law um sistema que era ao mesmo tempo excessivamente rígido e arbitrariamente flexível e indeterminado cujo processo decisório envolvia tanto repetições acríticas quanto manipulação judicial de ficções e fórmulas abstratas como direito natural e similares levadas a cabo por caprichos de juízes e interesses sinistros236237 Assim Bentham antigo defensor do stare decisis percebeu que o precedente sobretudo a rigidez da força vinculante do precedente acarretava em nada mais que a perpetuação de erros e injustiças238 ainda que a decisão original não fosse em si e por si equivocada sua estabilização absoluta enquanto regra subsequente acabava por fazer perdurar então como regras de facto estabelecidas padrões e práticas e regulações pensados em outra época para outra época Não só isso acarretava em imbecilidade mental uma vez que os juízes dispensados do discernimento e da reflexão recorriam convenientemente à 235 POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 pp 194196 236 Tradução livre para Common Law is excessively rigid and arbitrarily flexible and indeterminate Common Law adjudication involves both mindless imitation and judicial manipulation of fictions and abstract formulas of natural law and the like governed only by judicial whim and sinister interest POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 pp 279280 237 Isso não era uma contradição por parte de Bentham ao contrário o próprio Bentham apontava essas contradições como característica inerente ao common law 238 Ao tratar disso Postema rememora belíssimas passagens da literatura que criticam a doutrina do precedente na Inglaterra e a absoluta genialidade dos autores obrigame a reproduzilas aqui A primeira em Gullivers Travels de Jonathan Swift É uma máxima entre advogados que o que quer que tenha sido decidido antes pode ser legalmente decidido novamente por isso tomam um cuidado especial para que se reúna todas as decisões feitas anteriormente contra a justiça comum e a razão humana Essas decisões sob o nome de precedentes são proferidas por autoridades de forma a justificar as opiniões mais iníquas as quais os juízes nunca deixam de ter em conta Tradução livre para it is a maxim among lawyers that whatever hath been done before may legally be done again and therefore they take special care to record all the decisions formerly made against common justice and the general reason of mankind There under the name of precedents they produce as authorities to justify the most iniquitous opinions and the Judges never fail of directing accordingly Cf SWIFT Jonathan Gullivers Travels Londres Penguin Classics 2003 1726 p 296 A outra passagem trazida por Postema é de William Shakespeare em Merchant of Venice IV i Não há poder em Veneza que possa alterar um decreto estabelecido Este será registrado como um precedente e muitos erros seguindo o mesmo exemplo entrarão Estado adentro Tradução livre para there is no power in Venice Can alter a decree established Twill be recorded for a precedent And many an error by the same example Will rush into the state Cf SHAKESPEARE William The Merchant of Venice Fully annotated with an Introduction by Burton Raffel with an essay by Harold Bloom New Haven Yale University Press 2006 1596 99 IV I p 122 69 imitação cega239 É claro que um espírito radicalmente reformador não se contentaria com pretensões de mera revisão De um revisionismo crítico o projeto benthamiano em idos da década de 1810 depois de um longo período de gestação240 passou a tratar de uma proposta de completa reforma e reestruturação justa e finalmente a partir da mencionada codificação do direito inglês241 A evolução é claro foi gradual Antes de iniciar seu projeto completo de um código completo Bentham chegou a esboçar uma espécie de mero Digesto242243 do direito inglês expondo sistematicamente os princípios fundamentais do ordenamento jurídico244 Entendia ele que a partir desse Digesto o common law seria ao menos um pouco mais previsível um pouco menos obscuro Bentham o radical logo abandonou a ideia de uma simples compilação à la Justiniano Não é difícil de imaginar a razão não apenas as críticas de Bentham ao common law eram fortes demais contundentes demais basta lembrar que para ele o sistema sequer era Direito os juízes que o construíam era uma elite que sem legitimidade para tal legislava de modo a perpetuar sua tirania fictícia Assim não bastava dar uma clareza um pouco maior àquilo tudo era preciso construir tudo de novo O código de Bentham por ele batizado de Pannomion245 assim viria a reformar o direito inglês ex novo e diferentemente por exemplo i da declaração francesa de direitos e ii do próprio common law acarretaria em um código compreensivo claro longe das ficções jusnaturalistas a ser promulgado por legisladores ou seja essencialmente a partir da vontade daqueles constituídos enquanto poder soberano esta sim a autêntica definição 239 POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 p 279 240 BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 95 241 Autores como Philip Schofield e David Lieberman contudo argumentam no sentido de que Bentham já tinha um projeto de codificação ainda nos anos 1780 Cf SCHOFIELD Philip Jeremy Bentham Legislator of the World Current Legal Problems Oxford v 51 n 1 jan 1988 pp 115147 LIEBERMAN David The Province of Legislation Determined Legal Theory in EighteenthCentury Britain Cambridge Cambridge University Press 1989 pp 257 276 242 Lieberman expõe detalhadamente essa fase do pensamento de Bentham com maestria em capítulo intitulado justamente The Digest O Digesto LIEBERMAN David The Province of Legislation Determined Legal Theory in EighteenthCentury Britain Cambridge Cambridge University Press 1989 pp 241257 243 Do latim digerere pôr em ordem Em referência à compilação de Justiniano I imperador bizantino que reunia fragmentos das obras dos jurisconsultos à época ordenando portanto um Direito já existente 244 BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 95 245 Primeiro Bentham deu a seu projeto de codificação o nome de Pandikaion Mais tarde Pannomion BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 95 BENTHAM Jeremy An Introduction to the Principles of Morals and Legislation An Authoritative Edition by J H Burns and H L A Hart with a new Introduction by F Rosen and an Interpretive Essay by H L A Hart Oxford Clarendon Press 2005 p 305 70 de Direito e sobretudo positivando o direito vigente a partir do princípio da utilidade246 Essa codificação porque completa seria o passo final em direção à autêntica ciência da jurisprudence247 Além disso a reforma do direito inglês a partir de um código claro compreensivo e cognoscível era para Bentham a mais adequada maneira de limitar a autoridade política uma vez que as regras estariam previamente estabelecidas e escritas afastando assim também o caráter de dog law do direito anglosaxão248 Segurança contra o desmando era seu mantra e foco singular publicidade sua ferramenta mais poderosa na persecução dessa segurança249 Nada mais adequado que a codificação do Direito Quem bem resume a evolução do pensamento jurídico de Bentham a quem José del Valle político guatemalteco chamava de legislador do mundo250 mesmo como é Norberto Bobbio fazendoo de forma bastante sistematizada Diz o autor italiano que para compreender a Teoria do Direito de Bentham é necessário que se tenha em mente aquilo que o utilitarista considerava como os cinco defeitos fundamentais do common law i a incerteza dito de outro modo a insegurança jurídica subjacente a um sistema não escrito ii a retroatividade que dava luz à analogia de Bentham do direito inglês com aquilo a que chamava de dog law leis ex post facto de eficácia retroativa iii a ideia de que o common law não se fundava no princípio da utilidade ie a máxima da maior felicidade para o maior número de pessoas iv a ausência de uma divisão mais clara de competências de forma que os juízes do common law decidiam casos sobre os quais eles não necessariamente detinham um conhecimento específico prévio e finalmente v o caráter eminentemente antidemocrático do direito comum inglês que não permitia qualquer tipo de controle popular sobre a produção do direito251 judiciário nas Cortes252 246 DINWIDDY John R Bentham Selected Writings of John Dinwiddy Edited with an Introduction by William Twining Stanford Stanford University Press 2004 p 56 247 HART H L A Benthams Principle of Utility and Theory of Penal Law In BENTHAM Jeremy An Introduction to the Principles of Morals and Legislation An Authoritative Edition by J H Burns and H L A Hart with a new Introduction by F Rosen and an Interpretive Essay by H L A Hart Oxford Clarendon Press 2005 pp xxxviixl 248 CRIMMINS James E Jeremy Bentham In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Summer 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivessum2018entriesbentham Acesso em 18 out 2018 249 Security against misrule was his mantra and his singular aim publicity was his most powerful tool for achieving such security Cf POSTEMA Gerald J The Soul of Justice In ZHAI Xiaobo QUINN Michael eds Benthams Theory of Law and Public Opinion Cambridge Cambridge University Press 2014 pp 40 62 Disponível em httpsssrncomabstract2294730 Acesso em 26 set 2018 250 O ponto é mencionado por Philip Schofield em SCHOFIELD Philip Jeremy Bentham Legislator of the World Current Legal Problems Oxford v 51 n 1 jan 1988 pp 115147 251 Entre aspas porque como vimos aquilo sequer seria Direito genuíno para Bentham 252 BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 pp 9799 71 Daí de tudo isso para além das já mencionadas críticas de Bentham às ficções de direito natural e da própria linguagem artificial das elites judiciárias seguiase para Bentham a necessidade de reforma do direito inglês a partir de seu projeto de codificação projeto este que segundo Bobbio também pode ser sistematizado em quatro princípios fundamentais i a utilidade ou seja regras escritas a partir da máxima da maior felicidade do maior número ii a completitude para evitar o preenchimento de lacunas por parte da ilegítima judgemade law253 iii a cognoscibilidade respeitando os ideais de clareza e acessibilidade permitindo aos cidadãos o conhecimento do que efetivamente era o Direito e iv justificabilidade já que somente quando seus motivos são conhecidos uma lei se torna compreensível254 145 Conclusão parcial Se o positivismo de Hobbes ainda que sustentado pela doutrina majoritária não é exatamente um consenso o positivismo em Jeremy Bentham é muito claro Se aceitamos a definição fulleriana segundo a qual o positivismo é a teoria que traça uma clara distinção entre o Direito como ele efetivamente é e como deveria ser a matriz positivista em um autor que adota como pressuposto mais básico de sua Teoria do Direito a dicotomia fatovalor separando as instâncias do is e do ought é mais que evidente Isso fica claro quando Bentham ele próprio divide sua teoria em expository e censory jurisprudence a primeira responsável por dizer o que o Direito é um comando do soberano sustentado por uma sanção a segunda responsável por dizer como o Direito deve ser claro acessível em consonância com o princípio mais básico do utilitarismo a máxima de que a ação correta é aquela através da qual se atinge a maior felicidade do maior número de pessoas Mesmo assim se nem isso fosse suficiente para classificalo como mais um positivista avant la lettre Bentham ainda é um autor que como Hobbes ridiculariza as noções racional jusnaturalistas da teoria clássica do common law se aquele opunhase a Coke Bentham 253 Há neste ponto uma pequena divergência doutrinária Gerald Postema defende a ideia de que o Pannomion consistiria em princípios utilitaristas que deveriam guiar a atividade judiciária sem necessariamente predeterminála A leitura tradicional porém defende que Bentham visava sim um código detalhado que eliminaria integrações que fossem judgemade e argumenta num sentido de que fosse a atividade criativa judiciária algo com o qual ele concordasse ele já estaria satisfeito com seu projeto prévio de Digesto do common law sem abandonálo para construir um novo sistema de codificação legislativa Cf FERRARO Francesco Adjucation and Expectations Bentham on the Role of the Judges Cambridgeshire Utilitas vol 25 n 2 jun 2013 pp 140160 254 BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 100 72 tinha um rival à altura em Blackstone Diferentemente de Hobbes contudo e nesse sentido mais radical Bentham afasta peremptoriamente qualquer menção a direitos naturais aos quais tão ironicamente atribuía o rótulo de tolices nonsense upon stilts É com base em tudo isso que Jeremy Bentham atribuiu a si mesmo a missão de desmistificar a farsa do common law a que chamava de dog law que sequer era Direito legítimo uma vez que era construído por juízes que não tinham competência para tal a partir de uma proposta de codificação do Direito Seu código positivaria aquilo que o Direito realmente era fruto da vontade do soberano que nada mais seria que aquele que tivesse a genuína atribuição legislativa a partir da máxima utilitária atingiria no Direito finalmente utilidade notoriedade completitude razoabilidade manifesta em contraste com o common law corrupto desconhecido incompleto arbitrário255 15 O DIREITO EM JOHN AUSTIN Se Mill é o grande discípulo de Bentham no que diz respeito ao utilitarismo John Austin 17901859 talvez seja seu maior discípulo no Direito Só que ainda que i também seja utilitarista ii simpático à codificação do Direito256 e iii tenha afirmado expressamente que seu objetivo de vida era disseminar as doutrinas de Jeremy Bentham Austin não apenas se difere de seu mestre em um importante aspecto como sobretudo tornouse o mais influente jurista inglês do século xix257 Como Bentham e como a mais absoluta maioria da tradição filosófica anglo saxônica desde então Austin acompanha a já mencionada dicotomia humeniana que traça uma distinção entre as instâncias do is e do ought isto é a ideia de que não se pode derivar uma premissa de cunho prescritivo de outra descritiva sem que se argumente logicamente para tal258 Isso é algo muito claro na distinção benthamiana entre as abordagens expositória e censorial de sua jurisprudence Só que diferentemente de Bentham cuja empreitada jurídico filosófica propugnava uma reforma do direito inglês através da codificação completa ou 255 SCHOFIELD Philip Jeremy Bentham Legislator of the World Current Legal Problems Oxford v 51 n 1 jan 1988 pp 115147 256 Ao menos no que diz respeito a uma fase mais tardia do seu pensamento como se verá mais adiante 257 Tradução livre para although John Austin declared that his aim in life was only to disseminate the doctrines of Jeremy Bentham it was the younger man who became the most influential English jurist of the nineteenth century LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 173 258 Ver p 53 e nota 182 supra desta pesquisa 73 seja com uma ênfase muito clara no aspecto normativo da teoria Austin estava muito mais interessado na primeira abordagem ou seja no aspecto expositório da teoria jurídica estava pois muito mais interessado em construir uma Teoria do Direito que identificasse o fenômeno jurídico como ele efetivamente era e a partir daí descrevêlo259 É por isso que a Austin creditase a fundação daquilo a que se convencionou chamar posteriormente de analytical jurisprudence que nada mais é que justamente a abordagem analíticodescritiva do fenômeno jurídico260 É precisamente em razão disso que Austin é considerado como dito no parágrafo anterior o mais influente jurista inglês do xix Bentham é verdade é um filósofo na acepção clássica e mais abrangente da palavra muito mais completo e reconhecido mas foi Austin com sua teoria jurídica analítica que inaugurou de vez a tônica dominante que perpassa toda a tradição juspositivista que veio e ainda vem depois dele261 Outra divergência de Austin com relação a Bentham é política embora tenha compartilhado o radicalismo do mestre enquanto jovem mais tarde Austin converteuse ao conservadorismo político opondose expressamente em 1859 mais precisamente a reformas parlamentares e ao sufrágio popular262 Austin sobretudo de acordo com Wiflrid E Rumble responsável pela Introdução da célebre edição da Cambridge University Press de The Province of Jurisprudence Determined magnum opus de Austin não era um discípulo servil de Bentham ao contrário divergências políticas entre ambos desenvolveramse e multiplicaramse no curso do tempo Mesmo assim Bentham teve provavelmente um impacto na filosofia moral e jurídica de Austin maior que o de qualquer outro autor263 Isso não é mera curiosidade Para alguns autores como Thomas Bustamante e Michael Lobban por exemplo é justamente o conservadorismo político de Austin que o levou a esse seu desinteresse pelo eventual caráter pretensamente prescritivo de uma teoria 259 Em Austin se encontra o germe do positivismo descritivo STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 p 169 260 BIX Brian John Austin In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesspr2018entriesaustinjohn Acesso em 18 out 2018 261 Para Roger Cotterrell isso também se deve ao fato de que os escritos jurídicos de Bentham só foram publicados de forma sistemática postumamente quando o trabalho de Austin já havia sido publicado e difundido Cf COTTERRELL Roger The Politics of Jurisprudence A Critical Introduction to Legal Philosophy 2 ed Londres LexisNexis 2003 p 50 262 AUSTIN John A Plea for the Constitution In SCARROW Susan E Perspectives on Political Parties Classic Readings Nova York Palgrave Macmillan 2002 pp 135139 263 Tradução livre para Austin was no slavish follower of Bentham and criticized many of his ideas Then too political differences between the two men developed and multiplied in the course of time Nevertheless Bentham probably had a heavier impact upon Austins ethical and legal philosophy than any other person Cf AUSTIN John The Province of Jurisprudence Determined Edited by Wilfrid E Rumble Cambridge Cambridge University Press 2001 1832 p ix 74 jurídica264 enquanto Bentham como vimos era um verdadeiro revolucionário Austin preocupouse em tão somente desenvolver uma análise de conceitos jurídicos de forma a fazer sentido do Direito que ele visualizava apontando o caminho para reformas enquanto Bentham voltava sua teoria muito mais ao aspecto censório Austin dedicou pouco tempo à ciência da legislação confinando a teoria jurídica a uma análise e descrição do direito positivo265 que ele dizia analisar sem valorar seus aspectos positivos ou negativos266 151 A analytical jurisprudence John Austin é o autor da mais clássica máxima positivista que expressa a doutrina em sua mais básica essência A existência do Direito é uma coisa seus méritos ou deméritos outra Existir é uma questão estar de acordo a um determinado padrão é outra Uma lei que de fato existe é uma lei ainda que eventualmente desgostemos dela ou venha de um texto que aprovamos ou desaprovamos 267 O ponto o propósito e a própria tese de Austin parecem ser bastante diretos até mesmo simples e de fato são Bix no verbete específico sobre Austin que escreveu à Stanford Encyclopedia of Philosophy chega a dizer que a análise austiniana sobre o Direito pode ser encarada legitimamente de duas maneiras ela pode ser tomada tanto como 264 BUSTAMANTE Thomas da Rosa A Breve História do Positivismo Descritivo O que Resta do Positivismo Jurídico Depois de H L A Hart Novos Estudos Jurídicos Itajaí vol 20 n 1 janabr 2015 pp 309327 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 173 265 De forma que parece fazer muito sentido a interpretação de entre outros Bustamante e Lobban sobre ser o conservadorismo de Austin um dos motivos por trás de seu rompimento para com a empreitada reformista revolucionária da censorial jurisprudence de seu mestre Bentham Afinal se Bentham via a si mesmo como uma espécie de legislador universal não há nada mais anticonservador que essa disposição especialmente quando o conservadorismo britânico parece ser precisamente uma ideologia se é que pode ser assim chamado da imperfeição humana Cf PEREIRA COUTINHO João As Ideias Conservadoras Explicadas a Revolucionários e Reacionários 2 ed São Paulo Três Estrelas 2014 pp 6263 266 Tradução livre e contextualizada a partir da seguinte passagem Unlike his mentor moreover Austin sought to reform rather than revolutionise the English legal system He developed an analysis of legal concepts to help make sense of the law he found and to point the way to reform For Austin jurisprudence was concerned with positive laws considered without regard to their goodness or badness LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 pp 173174 267 Tradução livre para the existence of law is one thing its merit or demerit is another Whether it be or not is one enquiry whether it be or be not conformable to an assumed standard is a different enquiry A law which actually exists is a law though we happen to dislike it or though it vary from the text by which we regulate our approbation and disapprobation Em AUSTIN John The Province of Jurisprudence Determined Edited by Wilfrid E Rumble Cambridge Cambridge University Press 2001 1832 p 157 75 paradigmática quanto como uma caricatura da filosofia analítica a partir do fato de suas discussões serem repletas de distinções cruas mas rasas em argumento grifo meu268 Distinções É esse rigorosamente o objetivo da teoria jurídica de Austin clarificar o conceito autêntico de direito positivo ie leis humanas diferenciandoo de comandos morais divinos ou de qualquer outra natureza isso porque para Austin o objeto da teoria jurídica é o direito positivo o Direito simples e rigorosamente assim chamado ou o direito posto por superiores políticos a subalternos políticos Sendo assim chegar em uma definição conceitual clara é a tarefa do teórico do Direito já que o direito positivo para Austin Direito simples e rigorosamente assim chamado é com frequência confundido com objetos aos quais se relaciona por similaridade objetos esses que também são significados própria e impropriamente com a expressão ampla e vaga Direito A proposta de Austin é exatamente esta delimitar de forma clara a esfera da teoria jurídica269 É com esse objetivo em mente que seguindo a Bentham e até mesmo a Hume270 Austin foi adepto do que hoje se chama de command theory of law aquilo a que se convencionou chamar nas traduções para o português de concepção imperativista do Direito271 traduzindo e em termos mais claros é possível dizer que ao definir o direito positivo como o direito posto por superiores políticos a subalternos políticos Austin subscreve à ideia de que o Direito ie o próprio direito positivo que é nada mais que o Direito simples e rigorosamente assim chamado a natureza do Direito está no comando do soberano Mais precisamente um comando geral e abstrato a expressão de um desejo que coloca qualquer indivíduo para quem esse desejo é expresso passível de um mal 268 Tradução livre para Austins analysis can be seen as either a paradigm of or a caricature of analytical philosophy in that his discussions are dryly full of distinctions but are thin in argument BIX Brian John Austin In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesspr2018entriesaustinjohn Acesso em 18 out 2018 269 Tradução livre e contextualizada da seguinte passagem que abre The Province of Jurisprudence Determined título que pode ser livremente traduzido exatamente como a esfera a área o campo no sentido de limites da teoría do Direitoteoria jurídica determinadao THE matter of jurisprudence is positive law law simply and strictly so called or law set by political superiors to political inferiors But positive law or law simply and strictly so called is often confounded with objects to which it is related by resemblance with objects which are also signified properly and improperly by the large and vague expression law To obviate the difficulties springing from that confusion I begin my projected Course with determining the province of jurisprudence or with distinguishing the matter of jurisprudence from those various related objects AUSTIN John The Province of Jurisprudence Determined Edited by Wilfrid E Rumble Cambridge Cambridge University Press 2001 1832 p 18 270 Ver p 54 desta pesquisa 271 BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 108 76 qualquer por ato daquele que exprime o desejo se este não for realizado justamente uma sanção272 E na medida em que novamente em grande parte como em Bentham273 o soberano austiniano é definido como um indivíduo ou grupo de indivíduos que i recebem a obediência habitual da população e ii não obedecem habitualmente a qualquer outro indivíduo ou instituição terrena é pontualmente essa definição que permite Austin a diferenciar o Direito o comando jurídico de objetos impropriamente chamados de leis como os comandos jurídicos ou os ditames da moralidade positiva274 A formulação comando do soberano sanção só se observa no direito positivo que é exato objeto da teoria jurídica Uma vez mais quem bem sintetiza o ponto acerca da diferenciação austiniana acerca do Direito propriamente assim chamado daqueles objetos impropriamente chamados de leis é Bobbio As leis divinas e o direito positivo constituem comandos soberanos o direito positivo e as leis propriamente ditas da moralidade positiva são comandos humanos as leis positivas o direito positivo e as leis propriamente ditas da moralidade positiva isto é todas as leis exceto aquelas impropriamente ditas da moralidade positiva são comandos O objeto da jurisprudência isto é da ciência do direito é o direito tal como ele é e não o direito como deveria ser concepção positivista do direito a norma jurídica tem a estrutura de um comando concepção imperativista do direito o direito é posto pelo soberano da comunidade política independente isto é em termos modernos pelo órgão legislativo do Estado275 Ao inaugurar a analytical jurisprudence portanto Austin inaugurou de vez uma proposta analítica na Teoria do Direito 276 que a partir de uma concepção imperativista que definiu o Direito como um comando sanção do soberano aquele para com quem uma comunidade política tem um hábito de obediência tinha como proposta descrever esse fenômeno jurídico tal como ele era distinguindoo de outros comandos eg ditames divinos 272 BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 105 273 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 177 274 AUSTIN John The Province of Jurisprudence Determined Edited by Wilfrid E Rumble Cambridge Cambridge University Press 2001 1832 pp 2024 275 BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 108 276 Andrew Halpin atribui a Austin o título de o progenitor de uma tradição analítica na Teoria do Direito the progenitor of an analytical tradition in jurisprudence Cf HALPIN Andrew Austins Methodology His Bequest to Jurisprudence In FREEMAN Michael MINDUS Patricia eds The Legacy of John Austins Jurisprudence Dordrecht Springer Netherlands 2013 pp 1540 77 e de moralidade social e sobretudo traçando uma afiada distinção entre Direito e moralidade277 1511 Contradições e convergências com Jeremy Bentham Até aqui temos i que Austin foi um discípulo de Bentham e ii que diferentemente de seu mestre um democrata radical era um conservador político possivelmente razão pela qual iii Austin diferentemente de seu mentor preocupavase tão somente em identificar e descrever o Direito diferenciandoo de outros tipos de comandos ao contrário de Bentham Austin não tinha como prioridade em sua teoria jurídica qualquer caráter normativo Quanto a isso contudo isto é quanto à identificação do objeto de uma teoria ou ciência jurídica iv Austin concordava com Bentham quanto à sua definição do que o Direito efetivamente era o comando do soberano que desobedecido acarretava em uma sanção Até aqui prima facie sem maiores problemas a grande questão entretanto surge quando se reflete um pouco mais a fundo sobre a relação que todas essas premissas acabam tendo uma com relação à outra Vejase divergências políticas à parte e mais interferência ou não de visões políticas na proposta de teoria jurídica fato é que Austin e Bentham concordam com relação à definição do que é o Direito É aí que surge a grande questão para além de qualquer motivação pretensamente democrática a proposta de reforma radical do direito inglês propugnada por Bentham deviase exatamente pela sua definição do que era o Direito Lembremos que ao conceber o Direito a partir da command theory concepção imperativista Bentham entendia que o common law sequer estava apto a se classificar como Direito legítimo aquilo que Bentham observava era um direito judiciário judgemade law propor uma reforma então é nada mais que uma decorrência lógica Então se i Austin concorda com o mestre e como ele subscreve à command theory e ii essa teoria mesma obrigava Bentham a rejeitar o common law enquanto Direito a pergunta é óbvia como pode Austin contentarse com a descrição com uma teoria meramente expositória em termos benthamianos se o objeto a ser descrito sequer é Direito legítimo A resposta de Austin ao final da primeira de suas célebres lectures é bastante curiosa se satisfatória ou se apologética se genuína ou evasiva para tão somente justificar o status quo difícil responder com um mínimo grau de objetividade qualquer palpite seria 277 Cf o prefácio de FREEMAN Michael MINDUS Patricia eds The Legacy of John Austins Jurisprudence Rotterdam Springer Netherlands 2013 78 somente um palpite de forma que não me preocupa especular nesse sentido Dito isso o que Austin argumentava para legitimar sua proposta descritiva conciliandoa com a subscrição à tese imperativista de Bentham acerca da natureza do Direito era que tanto o direito judiciário quanto o reconhecimento jurídico dos costumes eram comandos tácitos do soberano o direito judiciário era portanto direito legítimo por aquiescência desse soberano a quem cabe a competência legislativa Austin define Schauer até mais do que Bentham esteve entre os primeiros a reconhecer os poderes legislativos do juiz no common law278 A diferença entre ambos reside no fato de que para Bentham isso era ilegítimo Para Austin por outro lado quando costumes tornamse regras jurídicas a partir da decisão judicial as regras jurídicas que emergem dos costumes são comandos tácitos da legislatura soberana O Estado que tem a faculdade de abolir essas regras permite que seus membros efetivemnas e isso portanto significa seu contentamento por sua aquiescência voluntária que essas regras sirvam como Direito aos jurisdicionados 279 Austin portanto rejeitava o próprio termo judgemade law que ele atribui a Bentham e considera desrespeitoso Dizia que apesar de sua grande admiração pelo Sr Bentham o direito judiciário era não apenas altamente benéfico como até mesmo absolutamente necessário Não só isso nos países em que se podia observar leis feitas pelos juízes verificavase que esse direito produzido nas cortes era muito melhor que aquelas partes do direito local que consistiam em estatutos promulgados pela legislatura Austin ia mais além e dizia ainda que se Bentham fosse criticar a suposta judgemade law que a criticasse pela maneira tímida e estreita através da qual esses juízes legislavam280 278 Austin even more than Bentham was among the first to recognize the lawcreating powers of the common law judge SCHAUER Frederick The Force of Law Cambridge Harvard University Press 2015 p 19 279 Tradução livre para when customs are turned into legal rules by decisions of subject judges the legal rules which emerge from the customs are tacit commands of the sovereign legislature The state which is able to abolish permits its ministers to enforce them and it therefore signifies its pleasure by that its voluntary acquiescence that they shall serve as a law to the governed Em AUSTIN John The Province of Jurisprudence Determined Edited by Wilfrid E Rumble Cambridge Cambridge University Press 2001 1832 p 37 280 Eu de forma alguma desaprovo aquilo a que o Sr Bentham escolheu chamar pelo desrespeitoso e portanto penso que imprudente nome de judgemade law Porque considero imprudente chamar de qualquer nome que indique qualquer desrespeito àquilo que me parece como algo altamente benéfico e até mesmo absolutamente necessário Eu não sou capaz de entender como qualquer pessoa que pensou sobre o assunto pode supor que a sociedade poderia ter sobrevivido se juízes não tivessem legislado ou que haja qualquer perigo que seja em conferilos o poder que eles de fato têm exercido de preencher a lacuna deixada pela negligência ou incapacidade do legislador constituído Aquela parte do Direito de cada país que foi feita pelos juízes costuma ser muito melhor que aquelas que consistem em estatutos promulgados pela legislatura Apesar de minha grande admiração pelo Sr Bentham não posso deixar de pensar que em vez de culpar os juízes por terem legislado ele devia ao contrário culpalos pela maneira tímida estreita e gradual através da qual eles têm legislado Tradução livre para a seguinte passagem I by no means disapprove of what Mr Bentham has chosen to call by the disrespectful and therefore as I conceive injudicious name of judgemade law For I consider it injudicious to call by any name indicative of disrespect what appears to me highly beneficial and even absolutely necessary I cannot understand how any person who has considered the subject can suppose that society could possibly 79 Por fim ainda é necessário que se diga que em uma de suas lectures mais tardias Austin reconheceu ainda que classificasse maior parte das críticas ao que ele chamava de judicial law e não judgemade law281 como vimos como objeções sem fundamento282 que era possível sim que o direito produzido nas Cortes acarretasse em alguns problemas aos quais o autor levantou algumas objeções Embora assumidamente conservador e simpático ao direito judicial o Austin tardio i reconhecia benthamianamente a possibilidade de se construir o Direito com mais clareza a partir da codificação porque ainda que o direito estatutário possa também ser eivado de ambiguidades como o discurso jurídico das Cortes ele era mais facilmente acessível e cognoscível facilitando que o problema fosse contornado Austin também ii entendia que em razão da rotina própria típica das Cortes haveria o risco de que o Direito enquanto produzido no Tribunal assim o fosse de forma apressada283 sem a prudente deliberação284 típica do Parlamento Também à la Bentham Austin iii colocava que a judicial law era sempre invariavelmente ex post facto285 e iv entendia que a codificação significava um Direito mais coerente e estável286 1512 John Austin entre a Alemanha e a Inglaterra Seja como for e por mais que se tenha mostrado simpático a uma proposta de codificação mais ao final de suas exposições em Londres o fato é que Austin jamais teve a pretensão política reformista de seu mestre Só que a explicação um pouco mais completa disso para além do conservadorismo austiniano contrastado com o espírito revolucionário de Bentham passa por uma compreensão de outro aspecto de sua teoria jurídica que será have gone on if judges had not legislated or that there is any danger whatever in allowing them that power which they have in fact exercised to make up for the negligence or the incapacity of the avowed legislator That part of the law of every country which was made by judges has been far better made than that part which consists of statutes enacted by the legislature Notwithstanding my great admiration for Mr Bentham I cannot but think that instead of blaming judges for having legislated he should blame them for the timid narrow and piecemeal manner in which they have legislated Em AUSTIN John The Province of Jurisprudence Determined Edited by Wilfrid E Rumble Cambridge Cambridge University Press 2001 1832 p 163 281 Lei judicial em vez de lei feita por juízes tradução livre de forma a denotar que considerava os juízes como uma espécie de delegados subordinados e tacitamente autorizados do soberano 282 Groundless objections 283 In haste 284 The mature deliberation which legislation requires Isto é a deliberação prudente que o processo de legislação exige Tradução livre 285 Lembrese da metáfora benthamiana do common law como dog law Cf item 143 pp 5661 desta pesquisa 286 Todo o ponto em AUSTIN John Lectures on Jurisprudence or the Philosophy of Positive Law 5 ed vols I e II Editado por Robert Campbell Londres John Murray 1873 pp 669675 80 exposto de forma bastante breve a influência da escola alemã287 Ignorado esse aspecto corre se o risco de fazer injustiça a Austin como se suas considerações sobre a atuação dos juízes fosse mera retórica conservadora sem qualquer sustentação filosóficojurídica Se as influências inglesas formaram a teoria de Austin acerca do que o Direito era diz Michael Lobban as influências alemãs ensinaramno como o Direito funcionava288 É nesse sentido que se pode explicar as concessões austinianas ao direito judiciário ao passo que sua concepção de Direito era tipicamente britânica hobbesbenthamiana Austin também entendia como os alemães que esse Direito porque sempre incompleto implicava necessariamente no reconhecimento de princípios Rechtsgrundsätze tácitos de caráter eminentemente jurídico subjacentes à ordem jurídica Rechtsordnung de cada local Eram esses princípios que permitiam que as decisões proferidas em casos novos fosse de fato jurídica rechtlich e não baseada meramente em juízos de equidade ou em pura discricionariedade289 Quem pretende revisitar a jurisprudence neste caso rechtstheorie alemã não pode evitar senão voltar a atenção à Escola Histórica290 personificada ao menos quando tratamos da influência sobre Austin especialmente por Savigny ainda que brevemente tão somente para os fins a que se propõe um subcapítulo dedicado a John Austin291 Para 287 Para um excelente apanhado geral ver os verbetes Jurisprudência dos conceitos e Jurisprudência dos interesses do Dicionário de Streck Cf STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 pp 104114 288 Tradução livre da seguinte passagem If the English influences shaped Austins theory of what law was the German ones taught him how it worked LOBBAN Michael Austin and the Germans In FREEMAN Michael MINDUS Patricia eds The Legacy of John Austins Jurisprudence Rotterdam Springer Netherlands 2013 pp 255270 289 LOBBAN Michael Austin and the Germans In FREEMAN Michael MINDUS Patricia eds The Legacy of John Austins Jurisprudence Rotterdam Springer Netherlands 2013 pp 255270 290 Quem bem explica a Escola Histórica da forma sintetizada mas sobretudo responsável que nos é necessária aqui é Isaiah Berlin Os juristas históricos alemães declararam que a lei não era nem uma aproximação de algo chamado lei natural apenas discernível por um tipo a priori especial de visão pois isso era claramente uma ficção nem baseada nos comandos arbitrários de governantes individuais pois uma vez que os direitos naturais e divinos eram dados por findos isso já não possuía autoridade mas que ela derivava das relações históricas em evolução que os homens tinham de fato uns com os outrosdas maneiras reais como os homens se comportavam e achavam correto comportarse dentro de comunidades e como conjuntos comunais visàvis uns com os outrose que essa rede elaborada de relações não era nem algo passível de ser decomposto em arranjos utilitários conscientes nem um comportamento dedutível do que podia ser descoberto sobre o hábito anatômico físico e fisiológico de indivíduos mas só podia ser compreendida da mesma forma que o membro de uma família entendia o padrão de vida familiar de que ele próprio era parte aceitando as regras dessa vida não por ela poder ser deduzida de princípios abstratos nem por ter sido ordenada por um superior específico mas porque aceitar essas regras era em alguma medida levar esse tipo de vida e isso fazia parte dos hábitos perspectiva e moralidade naturais daqueles que constituíam a família Grifos meus BERLIN Isaiah Ideias Políticas na Era Romântica Ascensão e influência no pensamento moderno Organização de Henry Hardy São Paulo Companhia das Letras 2016 pp 296297 291 De modo que a obra de Savigny exigiria por si só toda uma pesquisa completa abordarseá aqui tão somente os aspectos tomados por Austin para sua compreensão acerca da atividade dos juízes nas Cortes 81 Savigny a tarefa dos juízes era dúplice No primeiro aspecto uma dimensão material criativa uma vez que o Direito não se desenvolvia de forma espontânea a partir do costume caberia ao juiz desenvolvêlo articulando o Volksgeist292293 e o Direito No segundo aspecto uma dimensão formal de atribuição de unidade e cientificidade ao material surgido da atividade prática Evidentemente pois a atividade do jurista ie daquele envolvido na práxis e não o teórico digase não era meramente descritiva de algo já existente294 Austin assume o tributo que deve à escola alemã o reconhecimento de que a prática jurídica era também criativa e não apenas cognitiva Nessa linha Bobbio atribui a Austin uma tentativa de mediação entre a escola histórica alemã e o utilitarismo inglês num esforço notável mas também insciente de fazer de Bentham um historicista e de Savigny um utilitarista A crítica de Bobbio reside no fato de que de acordo com sua interpretação as convergências pensamento entre Austin e os alemães eram bastante limitadas e superficiais redutíveis meramente a uma rejeição das concepções jusnaturalistas295 Seja como for e interpretações críticas à parte o fato é que Austin menciona Herr von Savigny expressamente em uma de suas lectures ao referirse exatamente a natureza dúplice da atividade judiciária moderna296297 As raízes germânicas que se fazem presentes na obra de Austin não param por aí A tardia defesa de Austin em favor da codificação não se aproximava do Pannomion de Bentham mas sim a uma proposta muito mais relacionada a uma compreensão germânica da atividade judiciária de modo que as ideias de Austin acerca da codificação eram conforme alerta Michael Lobban muito mais próximas à proposta de Thibaut jurista alemão298 para seu 292 As noções de um Volksgeist um espírito do povo remontam a Herder O Volksgeist é o espírito interior próprio de um povo que moldava sua perspectiva e condicionava a forma concreta que a expressão dessa perspectiva adotava A influência do romantismo de Herder sobre os juristas históricos é fundamental BERLIN Isaiah Ideias Políticas na Era Romântica Ascensão e influência no pensamento moderno Organização de Henry Hardy São Paulo Companhia das Letras 2016 pp 286287 297 293 Ao direito natural a escola histórica contrapõe o direito consuetudinário considerado como a forma genuína do direito enquanto expressão imediata da realidade históricosocial e do Volksgeist BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 53 294 VON SAVIGNY Friedrich Carl System of the Modern Roman Law vol I Traduzido por William Holloway Chennai J Higginbotham 1867 pp 3739 295 BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 pp 101 103 296 AUSTIN John Lectures on Jurisprudence or the Philosophy of Positive Law 5 ed vols I e II Editado por Robert Campbell Londres John Murray 1873 pp 667668 297 Não compreendamos a passagem a partir de interpretações anacrônicas 298 Que em favor da codificação do Direito travou debates com o contrário von Savigny Thibaut propugnava uma sistematização do direito positivo um sistema do direito das Pandectas System das Pandektenrechts de modo que a Alemanha fosse estruturada a partir de um código geral válido que impedisse arbitrariedades dos Estados independentes Savigny de acordo com Bobbio entendia que a Alemanha passava por um momento de decadência jurídica razão pela qual a codificação nas circunstâncias da época somente agravaria os problemas 82 país299 Exatamente pelo fato de Austin germanicamente entender pela impossibilidade de completitude do Direito um código austiniano seria um digesto sistematizado das rationes decidendi a partir das quais o direito judiciário era constituído visando tão somente a preencher as lacunas geradas pela ausência de positivação300 152 Conclusão parcial e o legado da teoria jurídica de John Austin301 Até aqui portanto temos que seguindo a Hobbes e Bentham Austin subscreve à teoria imperativista do Direito concebendo o fenômeno jurídico como um comando do soberano cominado com uma sanção em caso de descumprimento desse comando próprio Diferentemente de seus predecessores porém Austin preocupouse muito mais com a dimensão descritiva do Direito deixando de lado as preocupações políticonormativas do positivismo jurídico de até então Sua proposta muito claramente era a de delimitar aquilo a que chamava de province of jurisprudence esfera da Teoria do Direito diferenciando o Direito de outras normas de ordem social moral divina Finalmente convém ainda que se teçam algumas reflexões acerca do legado de John Austin na Teoria do Direito Além das razões óbvias falar sobre um legado observável até hoje tem uma importância autoevidente isso devese ao fato de que é parte do legado austiniano que permite em outra instância que se construa um elemento de conexão entre este capítulo com o início do próximo dentro do qual trato dos positivismos contemporâneos Se Hobbes e Bentham já desafiavam o common law e sobretudo com isso desafiavam a teoria clássica em sua concepção segundo a qual os juízes racionalmente acessavam e declaravam um direito preexistente a ser descoberto na sabedoria do costume que por vezes tinha a si atribuído até mesmo um caráter imemorial como vimos ter sido o caso durante a Era Coke foi somente a partir de Austin que se tornou mais difundida uma existentes Cf BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 pp 5762 299 LOBBAN Michael Austin and the Germans In FREEMAN Michael MINDUS Patricia eds The Legacy of John Austins Jurisprudence Rotterdam Springer Netherlands 2013 pp 255270 300 Austin argued that a code which digested and put in order the rationes decidendi of which judicial law was made up would be an advance on leaving it all embedded in cases His view was that one should codify on the basis of induction from legal science LOBBAN Michael Austin and the Germans In FREEMAN Michael MINDUS Patricia eds The Legacy of John Austins Jurisprudence Rotterdam Springer Netherlands 2013 pp 255270 301 Devo o título deste subcapítulo ao título da obra editada por Michael Freeman e Patricia Mindus The Legacy of John Austin Jurisprudence FREEMAN Michael MINDUS Patricia eds The Legacy of John Austins Jurisprudence Rotterdam Springer Netherlands 2013 83 noção de que o Direito seria em verdade fundado muito mais em regras criadas e impostas de cima para baixo A influência tanto hobbesiana quanto benthamiana é cristalina ainda assim é a Austin é que se credita a primazia dessa perspectiva imperativista em face da clássica teoria declaratória de matriz racionaljusnaturalista talvez até por razões temporais302 já que à época de publicação de suas lectures as características típicas de um Estado moderno com governo centralizado estavam muito mais estabelecidas fazendo com que essa nova forma de se enxergar a natureza do Direito harmonizassese muito mais com as circunstâncias de tempo e lugar303 Essa conexão está no legado deixado por John Austin já que de uma maneira ou outra foi ele quem inaugurou definitivamente a tradição dominante na escola juspositivista algo que nos permite inclusive dizer que foi Austin quem inaugurou a tradição dominante em toda a Teoria do Direito anglosaxônica Ainda que de forma atualizada a postura analítica é ainda aquela que pauta majoritariamente o debate na academia jurídica ainda que a analytical jurisprudence tenha sido desafiada por alguns em anos recentes304 segue sendo a abordagem dominante na discussão acerca da natureza do Direito e se a analytical jurisprudence tem em Austin seu expoente seu legado é indubitável305 302 Ver nota 250 supra p 69 303 COTTERRELL Roger The Politics of Jurisprudence A Critical Introduction to Legal Philosophy 2 ed Londres LexisNexis 2003 pp 2177 304 Tratarei com mais vagar das críticas de Ronald Dworkin no capítulo subsequente No Brasil arrisco dizer que é precisamente esse o principal ponto de divergência de Lenio Streck com o positivismo a pretensão de uma descrição arquimediana incompatível por óbvio com uma abordagem hermenêutica do Direito à la Streck 305 Though analytical jurisprudence has been challenged by some in recent years it remains the dominant approach to discussing the nature of law Cf BIX Brian H John Austin In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesspr2018entriesaustinjohn Acesso em 26 out 2018 84 2 POSITIVISMO E DIREITO COMO INTEGRIDADE Em sua grande e elegante obra Ronnie Ronald Dworkin nos deu uma teoria viva que creditou à prática do Direito a razão e a reflexão e não apenas uma aplicação mecânica de regras Uma teoria que nos ensinou a levar a sério a argumentação que para a perplexidade dos positivistas pragmáticos e céticos em geral leva os advogados e juízes a buscar profundamente nos livros de Direito com tenacidade de novo e de novo as respostas jurídicas para casos difíceis em vez de admitir derrota ao primeiro sinal de que não há texto ou precedente específico sobre o ponto em questão306 Jeremy Waldron John Austin no século xix foi o grande marco teórico a partir do qual se desenvolveu aquela que seria a característica dominante do positivismo jurídico tal como o compreendemos nas versões de seus mais influentes representantes teóricos Suas teses é verdade podem ter sido superadas se é que se pode empregar o termo superação sem olhares anacrônicos sem desconsiderar que somente uma teoria ahistórica não está sujeita aos implacáveis avanços dos tempos mas houve continuidade com relação ao seu método de abordagem Bentham como vimos em referência expressa a Hume307 adotou em sua teoria jurídica a distinção entre as instâncias do is e do ought Essa distinção entre questões descritivas e normativas agora tão profundamente arraigada a ponto de não precisar de elaboração308 foi igualmente seguida por Austin A diferença é que enquanto Bentham entendia ser papel da jurisprudence discutir também aquilo que deve ou deveria Austin preocupouse muito mais em atribuir à Teoria do Direito o papel de descrever aquilo que era factual acerca daquilo a que chamamos Direito Como o mundo externo está para a física 306 Tradução livre de passagem de Jeremy Waldron em memorial a Ronald Dworkin quando de seu falecimento In this great and graceful body of work Ronnie gave us a living jurisprudence one which credited the practice of law with reason and thoughtfulness not just the mechanical application of rules It was a jurisprudence that taught us to take seriously forms of argument thatto the bewilderment of positivists pragmatists and all sorts of skepticshave lawyers and judges delving doggedly again and again into the books of the law to search for legal answers to hard cases rather than just admitting defeat at the first sign that there is not going to be any text or precedent directly on point WALDRON Jeremy Ronald Dworkin An Appreciation New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 1339 jul 2013 307 Ver pp 5254 desta pesquisa além especialmente da nota 182 supra 308 BERLIN Isaiah Ideias Políticas na Era Romântica Ascensão e influência no pensamento moderno Organização de Henry Hardy São Paulo Companhia das Letras 2016 p 82 85 também o fenômeno jurídico estaria para a jurisprudence devese identificar as leis sob as quais o fenômeno opera e disso descrevêlo analiticamente Se for possível fazêlo sem que isso pareça um certo reducionismo podese dizer que esse era basicamente o propósito daquele que sem maiores contestações pode ser chamado de maior nome representativo do positivismo jurídico anglosaxão H L A Hart 1907 1992 Sua proposta teórica para um conceito de Direito309 está presente direta ou indiretamente em toda discussão acadêmica na esfera da jurisprudence a partir dali Seja com a proposta de refutálo de endossálo em maior ou menor grau com mais ou menos variações ou tão somente de discutilo o conceito de Direito de Hart é um marco referencial para um sem número de importantíssimos livros ensaios artigos a partir dali Da analytical jurisprudence de Austin passando pelo ensaio analíticojurídico pela sociologia descritiva310 de Hart o foco do positivismo jurídico tem sido o de de uma forma ou outra aprofundar a compreensão do Direito da coerção e da moralidade como fenômenos sociais distintos embora relacionados311 descrevendo o Direito enquanto fenômeno autônomo tal como é Vejase contudo que entre a herança imaterial deixada por Hart mencionei obras lato sensu que se propunham a rejeitar sua proposta Seus discípulos são maioria é verdade mesmo assim há um nome talvez tão paradigmático quanto o de Hart que se sobressai entre os poucos que se manifestaram em oposição a Hart Ronald Dworkin 19312013 exaluno de Hart assim o fez com veemência desafiando a obra de seu outrora professor em termos metodológicos e substantivos Muito já foi escrito e discutido sobre o agora célebre debate HartDworkin de modo que nenhuma pesquisa inserida no contexto anglosaxão poderia deixar de abordálo em especial um estudo que investiga ao final a obra de Jeremy Waldron a meu ver um herdeiro direto não apenas de Hart não apenas de Dworkin312 mas do próprio debate Há naturalmente um caminho a ser percorrido Comecemos pois por Hart em uma modesta tentativa de fazer justiça à importância de sua obra 309 Sua magnum opus é justamente The Concept of Law publicado originalmente em 1961 310 Não obstante sua preocupação com a análise este livro justamente The Concept of Law pode ser classificado como um ensaio em sociologia descritiva Notwithstanding its concern with analysis the book may also be regarded as an essay in descriptive sociology HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p v 311 Tradução livre para a passagem que abre The Concept of Law em que Hart expõe o propósito subjacente ao livro MY aim in this book has been to further the understanding of law coercion and morality as different but related social phenomena HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p v 312 E ao final pretendo deixar muito claro por que isso não é um paradoxo ainda que o pareça prima facie 86 21 O DIREITO EM H L A HART A questão temporal ainda que não seja o foco principal do tema exposto não deve ter passado despercebido aos olhos do leitor mais atento aos detalhes Austin homem do xix escreveu na década de 1830 Hart por sua vez teve sua obra magna publicada em 1961 Não é pouco provável que a pergunta mais óbvia emerja da análise que liga um elemento ao outro não seria esse um salto grande demais do ponto de vista temporal Estamos falando afinal de mais de um século de diferença entre uma obra e outra Se o leitor atento percebeu esse detalhe cronológico o leitor iniciado em discussões sobre Teoria do Direito bem sabe que muito pouco para que não se diga nada ou quase nada até hoje foi escrito sobre o estado das discussões teoréticoacadêmicas do mundo jurídico anglosaxão entre Austin e Hart Qualquer um que pesquise manuais de jurisprudence visando a compreender o desenvolvimento do assunto na Inglaterra diz Neil Duxbury vai concluir razoavelmente que nada de maior significado aconteceu do meio do século xix ao meio do século xx O autor segue dizendo que entre 1832 quando Austin deixou o posto de professor de Teoria do Direito na University College London e 1952 quando Hart foi indicado à cátedra de jurisprudence em Oxford o único desenvolvimento digno de nota deuse a partir da obra de Sir Henry Mane E ainda assim mesmo isso recebe nada mais do que uma dedicação limitadíssima até nos mais detalhados livros didáticos sobre teoria jurídica313 Postema faz coro à afirmação de Duxbury dizendo que a teoria jurídica europeia era um vilarejo sonolento satisfeito complacente dominado pela teoria jurídica austiniana314 Não é por menos portanto não é por acidente315 que após uma brevíssima introdução o primeiro passo de Hart em sua proposta de um conceito para aquilo a que chamamos Direito é oporse à definição dada anteriormente por John Austin Mas 313 Trecho livremente traduzidos a partir da seguinte passagem ANYONE who looks to textbooks on jurisprudence to understand the development of this subject in England might fairly conclude that nothing of great significance happened from the middle of the nineteenth century to the middle of the twentieth Between 1832 when John Austin resigned as the professor of jurisprudence at University College London UCL and 1952 when HLA Hart was appointed to the jurisprudence chair at Oxford the only English development of note seems to have been the work of Sir Henry Mainethough even this receives but scant treatment in the most detailed of English jurisprudence textbooks DUXBURY Neil English Jurisprudence between Austin and Hart Virginia Law Review vol 91 n 01 mar 2005 pp 0291 314 A sleepy contented complacent village dominated by Austinian jurisprudence POSTEMA Gerald J PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 11 Legal Philosophy in the Twentieth Century The Common Law World Nova York Springer 2011 p 03 315 This was no accident POSTEMA Gerald J PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 11 Legal Philosophy in the Twentieth Century The Common Law World Nova York Springer 2011 p 03 87 lembrese Hart não rejeitava a metodologia analítica de Austin ele próprio como vimos define seu livro como um ensaio analíticojurídico ao fazêlo em seu prefácio utiliza justamente o termo tipicamente austiniano analytical jurisprudence Este é o ponto Hart não rejeita a proposta descritiva de Austin mas a descrição por ele apresentada Como seu antecessor pretende ocuparse da clarificação das estruturas gerais do pensamento jurídico e não da crítica sobre o Direito ou política judiciária316 Isso passa por questões que dizem respeito às virtudes que Kramer chama de teoréticoexplanatórias em uma teoria analítica317 e Hart fruto de seu meio pretende fazêlo a partir de questões muito caras à filosofia analítica de Oxford318 a partir de questões que se podem classificar como relativas aos significados das palavras É nesse sentido que se pode brincar que a obra de Hart nasce de sua leitura dos dois John Austin John Austin o jurista de que tanto falamos aqui e John Austin o filósofo da linguagem ordinária John Langshaw J L Austin É com aportes no i John Austin filósofo da linguagem que Hart parte para rebater a definição analítica de Direito do ii John Austin filósofo do Direito São as deficiências do modelo simples de sistema jurídico que são produto da concepção imperativista do ii John Austin filósofo do Direito que Hart pretende superar a partir de uma análise linguística por ele exposta através da máxima de i J L Austin para quem uma consciência afiada das palavras possibilitam que se afie nossa percepção acerca dos fenômenos319 Hart compreende 316 The lawyer will regard the book as an essay in analytical jurisprudence for it is concerned with the clarification of the general framework of legal thought rather than with the criticism of law or legal policy HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p v 317 Theoreticalexplanatory virtues Cf KRAMER Matthew H H L A Hart Medford Polity 2018 p 13 318 A filosofia da linguagem ordinária era proeminente em Oxford local onde sob a influência de Ludwig Wittgenstein personificouse sobretudo em autores como J L Austin citado diretamente por Hart P F Strawson a quem Austin agradece expressamente no prefácio de The Concept of Law e Gilbert Ryle Além de ser impossível i abordala com o rigor que merece neste espaço também é impossível ii classificar esses autores de maneira uniforme taxativa Ainda que cada um desses pensadores de um modo ou outro tivesse o uso da linguagem ordinária como objeto de análise está longe de ser claro em que exatamente além disso o rótulo filósofo da linguagem ordinária acarreta sendo igualmente pouco claro que os vários pensadores assim chamados merecem ser reunidos sob a mesma classificação Seja como for para meus propósitos aqui basta que se entenda que aquilo a que se convencionou chamar de filosofia da linguagem ordinária com ou sem imprecisões era bastante popular em Oxford à época em que Hart lá ocupava a cátedra de jurisprudence Sua herança para com J L Austin será exposta aqui a partir dos insights do próprio Hart Para além do trecho livremente traduzido e citado nesta nota mais informações sobre J L Austin no belíssimo artigo de Guy Longworth para a Stanford Although each of these thinkers was sometimes concerned in one or another way with our use of ordinary language it is far from clear what in addition to that the label is supposed to entail And it is equally unclear that the various thinkers solabelled deserve to be grouped together Cf LONGWORTH Guy John Langshaw Austin In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2017 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesspr2017entriesaustinjl Acesso em 07 dez 2018 319 Trecho construído a partir de tradução livre e contextualizada da seguinte passagem In this field of study it is particularly true that we may use as Professor J L Austin said a sharpened awareness of words to sharpen our perception of the phenomena I am heavily and obviously indebted to other writers indeed much of the book is concerned with the deficiencies of a simple model of a legal system constructed along the lines of Austins 88 pois que somente uma atenção à linguagem jurídica permite uma melhor compreensão acerca do fenômeno social a que se refere essa linguagem evidentemente o Direito É por essa razão em obediência a essas premissas próprias que Hart estabelece desde o início aquela que seria uma distinção fundamental em sua análise a distinção entre os pontos de vista externo e interno que são ambos possíveis quando se trata de quaisquer que sejam as regras sociais observadas320 Não se pode compreender uma prática social que consista em seguir regras como é o caso do Direito sem que se compreenda como é essa prática a partir de seu ponto de vista interno ie o ponto de vista de alguém que aceita essa prática como guia de conduta Mais sobre isso será dito na medida em que se avance sobre as premissas e conclusões fundamentais de Hart o fundamental de início é que se tenha em mente qual é o propósito por trás de sua obra o desenvolvimento de uma teoria descritiva do Direito a partir de uma atenção dedicada à linguagem jurídica e a partir disso à atitude interna com relação à prática que aquilo a que chamamos Direito implica 211 O que é o Direito O que é o Direito Poucas questões relativas à sociedade humana têm sido levantadas com tanta persistência e respondidas por pensadores sérios de formas tão diversas estranhas e até paradoxais321 É dentro desse cenário que Hart coloca três questões fundamentais frequentes e persistentes três perguntas que traduzem em partes menores a pergunta maior ie O que é o Direito i O que diferencia o Direito de mera coerção ie ordens sustentadas por ameaças ii Quais são as relações semelhanças diferenças entre obrigações morais e jurídicas E finalmente iii o que são as regras sociais e em que medida o Direito é por elas constituído322 Em linhas gerais é isso que Hart enfrenta em seu Conceito Para iniciar suas reflexões exatamente a partir dessas perguntas o autor explora a ideia daquilo a que chama de imperative theory HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp vvi 320 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p v 321 Tradução livre da passagem que abre o primeiro capítulo de The Concept of Law FEW questions concerning human society have been asked with such persistence and answered by serious thinkers in so many diverse strange and even paradoxical ways HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 01 322 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 13 89 definição323 Há definições simples que nos são muito úteis ao expressarem determinados objetos a partir de ideias menos complexas que nos permitem substituilas exatamente por essas definições simples O exemplo de Hart é um triângulo cuja definição simples é algo como uma figura retilínea de três lados essa definição é o que permite que substituamos figura retilínea de três lados324 por justamente triângulo O ponto entretanto é que por mais úteis que sejam as definições simples não são sempre aplicáveis não o são com relação ao Direito e não o são em razão daquilo que as três perguntas destacadas por Hart todas elas subjacentes à grande pergunta O que é o Direito iluminam a de que nada suficientemente conciso a ponto de ser classificado como uma definição poderia servir de resposta satisfatória325 Ainda assim Hart considera ser possível estabelecer caracterizar e descrever elementos centrais que constituem uma parte comum326 àquilo que responde às três perguntas centrais na busca por um conceito de Direito E para melhor desenvolver esses elementos Hart considera necessário antes considerar detalhadamente as deficiências327 da teoria analíticojurídica até então dominante a de Austin segundo a qual na leitura do próprio Hart a chave para se compreender o Direito poderia ser encontrada na simples noção de uma ordem sustentada por ameaças a que o próprio Austin denominava um comando328 2111 As críticas de Hart à concepção imperativista Hart rejeita portanto qualquer possibilidade de uma definição simples para o conceito de Direito por decorrência lógica então deve também rejeitar qualquer teoria que entenda como uma tentativa do tipo Assim antes de apresentar sua proposta conceitual per se Hart propõese a confrontar a noção imperativista de Direito de matriz eminentemente 323 Definition 324 A threesided rectilinear figure 325 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 1317 326 It is possible to isolate and characterize a central set of elements which form a common part of the answer to all three questions HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 16 327 Deficiencies 328 Grifo meu e tradução livre da seguinte passagem What these elements are and why they deserve the important place assigned to them in this book will best emerge if we first consider in detail the deficiencies of the theory which has dominated so much English jurisprudence since Austin expounded it This is the claim that the key to the understanding of law is to be found in the simple notion of an order backed by threats which Austin himself termed a command HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 16 90 austiniana e dominante até então de uma definição conceitual para o Direito como este segundo a qual este seria constituído e identificável a partir de uma ordem de um soberano sustentada por uma ameaça em Austin como vimos temos comando e sanção Para enfrentala propõese primeiro a reconstruir os passos que poderiam levar à sua adoção Hart e sua preocupação com a questão linguística fica clara desde muito cedo começa por distinguir entre alguns tipos de imperativos e inicia suas reflexões ilustrando a partir do exemplo de um homem armado Um assaltante que diz ao funcionário de um banco Entregueme o dinheiro ou eu atiro329 está ordenando e não meramente pedindo ou menos ainda suplicando Ele ameaça se tiver sucesso podese dizer que coagiu o funcionário Sobre esse cenário Hart diferencia o verbo to order ordenar de give an order dar uma ordem sustentando que o segundo caso sugere uma espécie de direito uma espécie de autoridade ou competência para emitir ordens algo que não está presente no caso do assaltante330 Esse exemplo diz Hart não é o que se tem em mente quando se fala em comandos essa sim uma noção à qual subjaz o elemento de autoridade de que carece a ordem comum do assaltante Assim embora a teoria de Austin tenha elementos suficientes a ponto de satisfatoriamente diferenciar o Direito das meras ordens de um assaltante331 Hart entende que a compreensão austiniana acerca da palavra comando não transcende de forma clara a definição simples de ordem ameaça uma vez que aquele a quem compete emitir comandos detém autoridade sobre os comandados nem sempre é o caso de que quando um comando é emitido haja uma ameaça latente de dano no sentido de punição na hipótese de desobediência332 Seja como for o Direito pode começar a ser distinguido ainda que em sua definição simples da situação do homem armado a partir de três características i sua generalidade no sentido de que as condutas prescritas são gerais e aplicamse a uma classe geral de indivíduos dos quais se espera a observância dessas condutas333 ii seu caráter persistente no sentido de que diferentemente das ordens dadas pelo assaltante as leis são 329 Hand over the money or I will shoot 330 HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 19 331 Austin estava ciente das diferenças entre os comandos de um soberano e os ditames de um homem armado Austin was aware of the dissimilarities between a sovereigns commands and a gunmans dictates Cf KRAMER Matthew H H L A Hart Medford Polity 2018 p 35 332 Em tradução livre de it need not be the case where a command is given that there should be a latent threat of harm in the event of disobedience HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 20 333 HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 2122 91 promulgadas com a pretensão de que sua observância seja contínua334 ao longo do tempo335 e finalmente iii seguindo a Austin o hábito de obediência por parte daqueles que obedecem àquele a quem compete a criação legislativa que é internamente supremo e externamente independente336 em outras palavras austinianas o soberano que é obedecido em seu território e não obedece a nenhum outro soberano embora Hart diga que por mais essencial que essa característica seja para diferenciar o Direito do exemplo do assaltante é uma noção como muitos outros aspectos do Direito essencialmente vaga ou imprecisa337 Então diz Hart seguindo a Austin se tomarmos isso como verdadeiro e chamarmos à pessoa ou grupo supremo e independente de soberano as leis de qualquer país serão as ordens gerais sustentadas por ameaças proferidas pelo soberano ou seus subordinados338 Isso contudo traz alguns problemas nas palavras de Hart uma série de objeções339 por ele sintetizadas uma vez mais a partir de três principais pontos Primeiro esse modelo clássico baseado em ordens sustentadas por ameaças está muito relacionado a uma ideia de que as leis impõem inexoravelmente deveres como se todas as leis fossem da mesma espécie das que encontramos mais facilmente nas esferas específicas da responsabilidade civil340 e do direito penal O modelo de definição simples não parece ser capaz de abarcar em suas dimensões a existência de regras que conferem poderes341 e atribuições isto é leis que regulam uma série de aspectos de nossas vidas e nossa prática jurídica que não impõem sanções em hipóteses de desobediência ao cumprimento de um dever legalmente exigido342 É o caso por exemplo de regras que definem competências legislativas e jurídicas ou mesmo diretrizes que regulam atividades da vida privada eg contratos testamentos etc 334 É claro que há a possibilidade de digamos revogação legislativa O ponto de Hart é que a ordem do assaltante perde sua raison dêtre uma vez que obedecida e portanto satisfeita no ato algo que não se observa num sistema legal 335 HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 23 336 Internally supreme and externally independent 337 We shall call this here following Austin a general habit of obedience and note with him that like many other aspects of law it is an essentially vague or imprecise notion Yet in this fact of general obedience lies a crucial distinction between laws and the original simple case of the gunmans order HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 2324 25 338 If following Austin we call such a supreme and independent person or body of persons the sovereign the laws of any country will be the general orders backed by threats which are issued either by the sovereign or subordinates in obedience to the sovereign HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 25 339 A crowd of objections 340 Tort 341 Powerconferring rules 342 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 2742 92 Segundo o modelo simples ao conceber o Direito como alguém ou um grupo dando uma ordem a alguém ou um grupo ignora um importante aspecto característico ao Direito a de que as leis são igualmente aplicáveis àqueles que legislam Não se pode portanto conceituar o Direito adequadamente a partir de uma noção que implique a imposição de diretrizes de forma vertical de cima para baixo343 Essa imagem segundo Hart embora seja atrativa em sua simplicidade só poderia ser reconciliado com a realidade a partir de uma distinção artificial entre duas pessoas diferentes de um ponto de vista metafórico o legislador como uma pessoa em sua esfera oficial e em sua esfera privada uma pessoa diferente Agindo dentro de sua primeira esfera o legislador cria uma lei que impõe obrigações a outras pessoas incluindo a sua própria na esfera privada344 Em termos mais simples Hart quer dizer que o modelo clássico levarnosia a conceber o legislador como uma espécie de soberano hobbesiano ao não dar conta da noção de que a aplicação das leis e suas previsões recaem igualmente sobre aqueles que legislam Terceiro por fim Hart argumenta no sentido de que o modelo de ordensameaças dá a entender a possibilidade de que se verifique exatamente quando e onde uma lei em sentido lato foi criada se o conteúdo do Direito são nada mais que ordens é natural que se possa identificar o tempo e o lugar de sua promulgação345 Não é o caso do Direito como ele de fato funciona uma vez que especialmente no common law346 é plenamente possível identificar algo no exemplo de Hart exatamente os costumes como Direito sem que contudo seja igualmente possível localizar sua origem exata Em um sistema jurídico cuja teoria clássica fala em costumes imemoriais parece mesmo bastante difícil conciliar a ideia de um conceito definido a partir da noção de ordens com a realidade jurídica de facto É verdade alguém poderia argumentar que o costume só se torna parte do Direito efetivamente uma vez que reconhecido e sobretudo aplicado por um órgão oficial Hart rapidamente enfrenta essa objeção Seu primeiro ponto diz que i não é necessariamente o caso de que costumes só adquiram status realmente jurídico quando invocados pela primeira vez em um caso concreto se é verdade que as cortes reconhecem como vinculante o princípio segundo o 343 Toptobottom 344 Grifos meus e tradução livre da seguinte passagem This vertical or toptobottom image of lawmaking so attractive in its simplicity is something which can only be reconciled with the realities by the device of distinguishing between the legislator in his official capacity as one person and in his private capacity as another Acting in the first capacity he then makes law which imposes obligations on other persons including himself in his private capacity HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 42 345 Parece estranho falar em promulgação quando se está a falar de ordens Talvez isso acabe por em maior ou menor grau conferir ainda mais razão a Hart 346 O ponto pareceme ser de todo modo amplamente válido uma vez que até mesmo os livros didáticos sobre o sistema romanogermânico mencionam os costumes como fonte de Direito 93 qual é Direito aquilo que é promulgado por uma legislatura competente por que não poderia ser verdade que as cortes reconhecessem igualmente um princípio geral a partir do qual determinados costumes de um determinado tipo também sejam Direito Além disso como um segundo ponto Hart ainda diz que ii mesmo que se conceda o ponto de que um costume só se torna jurídico ao ser aplicado parece muito difícil interpretar esse reconhecimento por parte da corte como um à la Austin comando tácito do soberano347 É com base principalmente nesses argumentos que Hart entende que o modelo de ordens sustentadas por ameaças obscurece mais do que revela sobre o Direito O esforço necessário para reduzir o fenômeno jurídico em toda sua variedade a essa forma única e simples acabaria por impor forçosamente uma uniformidade espúria348 Assim é por razões como essas que Hart encerra sua crítica fatal à definição simples trazendo aquele que seria conceito importantíssimo à sua teoria jurídica Austin lembremos349 definia ao menos nesse aspecto seguindo a seu mestre Bentham o soberano como uma pessoa ou grupo de pessoas cuja soberania sustentavase a partir dos hábitos de obediência dos membros da comunidade em questão O problema disso aponta Hart é que essa definição é incapaz de levar em conta qualquer possibilidade de mudança de soberania de modo que um eventual novo soberano estaria obrigado a esperar pela constituição e perfectibilização de uma obediência habitual agora a ele e não mais a seu antecessor Hart ilustra isso a partir do exemplo da transição entre o governo de um monarca por ele chamado de Rex ao de outro Rex II até que se caracterizasse um novo hábito uma definição simples de Direito enquanto ordens obrigarnosia a aceitar um interregno no qual nenhuma nova lei poderia ser promulgada350 Um simples hábito de obediência é muito diferente do que significa seguir uma regra Hábitos é verdade parecemse com regras sociais em alguns aspectos mas diferemse destas em três importantes questões i para a constituição de um hábito basta que haja convergência de comportamento entre os membros de grupo mas essa identidade de comportamento não é suficiente para constituir a existência de uma regra que exige esse tipo de comportamento Além disso ii onde há regras não há somente eventuais críticas na hipótese de desvio do comportamento exigido esse desvio por 347 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 4449 348 Tradução livre de the model of orders backed by threats obscures more of law than it reveals the effort to reduce to this single simple form the variety of laws ends by imposing upon them a spurious uniformity HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 49 349 Cf p 72 desta pesquisa 350 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 5154 94 si constitui já uma boa razão para que essa crítica seja feita porque no caso das regras essa crítica é considerada justificada legítima Ainda e mais importante Hart retoma o ponto e introduz acerca das regras iii a ideia do aspecto interno das regras Quando um hábito é geral em um grupo social essa generalidade é meramente um fato acerca do comportamento observável de maior parte do grupo Para que haja tal hábito nenhum membro do grupo precisa pensar sobre o comportamento geral ou mesmo saber que o comportamento em questão é geral menos ainda é necessário qualquer esforço para ensinar este hábito ou mesmo que sua manutenção seja planejada É suficiente que cada membro do grupo por sua vez comportese do modo que os outros também se comportam 351 Por outro lado para que uma regra social exista é necessário ao menos que alguns observem o comportamento em qüestão como um padrão geral que deve ser seguido pelo grupo como um todo Uma regra social tem um aspecto interno que se soma ao aspecto externo que compartilha com um hábito social que consiste no comportamento uniforme e regular que qualquer observador seria capaz de notar352 Hart ilustra seu ponto a partir do exemplo das regras de um jogo de xadrez cujo aspecto interno poderia ser traduzido na seguinte ideia um observador externo poderia descrever os jogadores movendo suas peças como indivíduos que compartilham hábitos similares Evidentemente não se trata disso Esse observador externo precisamente porque externo não leva em conta a atitude dos jogadores em relação aos movimentos que escolhem às suas peças não é capaz de perceber a crítica atitude reflexiva que os jogadores têm com relação a esse modelo de comportamento subjacente ao jogo por eles entendido como um padrão um standard a ser seguido por todos que eventualmente joguem o jogo As regras são vinculantes353 É essa aparente inflexão que autoriza Hart a resolver o problema do interregno levantado pelo próprio modelo de hábitos de obediência Para Hart o soberano em 351 Tradução livre da seguinte passagem When a habit is general in a social group this generality is merely a fact about the observable behaviour of most of the group In order that there should be such a habit no members of the group need in any way think of the general behaviour or even know that the behaviour in question is general still less need they strive to teach or intend to maintain it It is enough that each for his part behaves in the way that others also in fact do HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 56 352 Tradução livre e contextualizada da seguinte passagem By contrast if a social rule is to exist some at least must look upon the behaviour in question as a general standard to be followed by the group as a whole A social rule has an internal aspect in addition to the external aspect which it shares with a social habit and which consists in the regular uniform behaviour which an observer could record HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 56 353 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 5657 95 qualquer sistema jurídico sofisticado é constituído precisamente pela ideia das regras As pessoas responsáveis pelas tarefas legislativas ocupam cargos offices e não são soberanas elas próprias354 As regras são constitutivas do soberano e não meramente coisas que temos de mencionar em uma descrição dos hábitos de obediência ao soberano355 Em síntese Hart sustenta que as regras sociais compreendem um padrão aceito pelos membros que constituem o grupo social ao qual essas regras dizem respeito e que essa noção de regra explica o Direito de forma muito mais adequada que uma definição simples que gravita em torno das noções de soberania ordem e ameaça As regras transcendem essas ideias e para Hart podem explicar as lacunas deixadas pelas insuficiências da definição clássica eg a ideia de que as regras são igualmente aplicáveis em relação àqueles que as produzem e a dificuldadeimpossibilidade de localização da origem de uma regra do ponto de vista temporal ou geográfico É com essa proposta de regras portanto que Hart rejeita a concepção clássica imperativista e passa aos elementos centrais enfim de seu conceito de Direito 2112 Regras primárias e secundárias A razão pela qual Hart desconstrói a proposta austiniana não é meramente acadêmica a definição clássica era incapaz de levar adequadamente em conta a normatividade do Direito e das instituições de um sistema jurídico moderno356 É por isso que a referência a Austin é necessária para a ilustração do cenário a partir do qual Hart desenvolve o seu próprio conceito de Direito Como visto uma de suas críticas à definição simples era a de que tal definição era incapaz de levar em conta algumas características fundamentais de um sistema jurídico características que devem necessariamente transcender as meras noções de ordem e sanção precisamente para que esse sistema possa ser enfim e efetivamente jurídico Assim Hart começa sua proposta por enumerar três problemas fundamentais inerentes a um fenômeno legal estruturado sob o modelo de uma clássica definição simples Hart imagina uma comunidade um grupo de indivíduos vivendo sob um sistema de regras centrado somente na questão de comandos em sua clássica definição Esse seria para 354 Esse ponto tem relação com o ponto anterior que faz uma distinção analítica metafórica entre a pessoa privada e a pessoa oficial do legislador 355 Tradução livre The rules are constitutive of the sovereign not merely things which we should have to mention in a description of the habits of obedience to the sovereign HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 76 356 Cf KRAMER Matthew H H L A Hart Medford Polity 2018 p 36 96 Hart um sistema baseado em padrões autônomos apartados e independentes um do outro sem qualquer critério capaz de unificalos ou tornalos um sistema genuíno Sendo assim qualquer dúvida que surgisse acerca do conteúdo dessas regras ou mesmo acerca de seu alcance estaria desprovida de qualquer procedimento ou instância capaz de solucionála Não haveria qualquer possibilidade de esclarecimento através de referência a um texto dotado de autoridade ou a um oficial cujas declarações fossem dotadas de autoridade precisamente porque tanto i esse procedimento per se quanto ii o próprio reconhecimento de um critério a funcionar como instância regulatória no caso de dúvidas exigiriam a existência de regras de um tipo diferente daquele que define as regras de obrigação ou dever que são ex hypothesi tudo que esse grupo em questão tem357 Assim o primeiro problema identificado por Hart em um sistema jurídico hipoteticamente austiniano seria a possibilidade de incerteza358 com relação às regras estabelecidas sua identificação conteúdo escopo e alcance Esse não é o único defeito359 latente em um cenário no qual as únicas regras são aquelas que sustentadas por sanções impõem deveres Hart alude ainda ao caráter eminentemente estático desse protossistema uma vez que a adaptação das regras às circunstâncias da realidade seja através da eliminação de regras antigas ou da introdução de regras novas também pressupõe a existência de regras de um tipo diferente das regras primárias de obrigação unicamente pelas quais essa sociedade hipotética vive360 Finalmente o terceiro defeito fundamental de um protossistema jurídico de ordens e ameaças seria a ineficiência da difusa pressão social por meio da qual se mantém as regras Hart considera que eventuais violações de uma regra admitida enquanto tal serão sempre objeto de disputa num sentido de que será sempre discutível se tal violação efetivamente ocorreu ou não partindo desse pressuposto seu argumento da ineficiência quer dizer que essas disputas seriam contínuas e intermináveis caso não houvesse uma agência especializada dotada da autoridade de confirmar final e autoritativamente a ocorrência ou 357 Tradução livre de such a procedure and the acknowledgement of either authoritative text or persons involve the existence of rules of a type different from the rules of obligation or duty which ex hypothesi are all that the group has HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 92 358 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 9192 359 Defect 360 Original Adapting the rules to changing circumstances either by eliminating old rules or introducing new ones presupposes the existence of rules of a different type from the primary rules of obligation by which alone the society lives HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 93 97 não da suposta violação Essa agência esse órgão naturalmente pressupõe a existência de outras regras sociais que não se caracterizam pelo binômio ordemameaça361 São esses portanto os três defeitos inerentes e intrínsecos de uma estrutura social baseada na definição simples de Direito a i incerteza o ii caráter estático e a iii ineficiência e é naquilo que apresenta como a solução desses problemas que Hart inaugura um dos elementos mais centrais de seu conceito de Direito Uma vez que cada solução para cada um dos defeitos traz em si elementos tipicamente jurídicos cada uma delas pode significar um passo do mundo préjurídico ao mundo jurídico362 sendo assim é a soma dessas três soluções que faz desse protossistema um sistema jurídico de facto Em sentido amplo é possível dizer com Hart que aquilo que torna verdadeiramente legal um sistema baseado regras primárias de obrigação é sua complementação com as regras secundárias que são regras de outro tipo Em Hart finalmente podemos definir o Direito como uma união de regras primárias de obrigação com essas regras secundárias363 em Hart os sistemas jurídicos não consistem apenas em regras mas são também igualmente fundados nelas364 Shapiro em uma frase que diz ter ouvido de Jeremy Waldron diz que enquanto para Bentham e Austin o soberano faz as regras para Hart as regras fazem o soberano365 A solução para o primeiro problema o problema da incerteza é de tal importância que o tema será tratado com mais vagar no item subsequente seja como for e até em obediência à linha de raciocínio desenvolvida por Hart em The Concept of Law já a adianto aqui A solução para a incerteza de um sistema baseado somente em regras primárias está na introdução daquilo a que Hart chama de regra de reconhecimento rule of recognition a regra que define o critério que especifica as características que uma vez 361 Parágrafo construído a partir de uma tradução livre e contextualizada da seguinte passagem The third defect of this simple form of social life is the inefficiency of the diffuse social pressure by which the rules are maintained Disputes as to whether an admitted rule has or has not been violated will always occur and will in any but the smallest societies continue interminably if there is no agency specially empowered to ascertain finally and authoritatively the fact of violation HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pós escrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 94 362 Prelegal legal 363 A union of primary rules of obligation with such secondary rules HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 94 364 Nas palavras de Scott Shapiro esse é um dos elementos centrais na compreensão de The Concept of Law One of the principal lessons of The Concept of Law is that legal systems are not only comprised of rules but founded on them as well Cf SHAPIRO Scott J What Is the Rule of Recognition And Does It Exist In ADLER Matthew HIMMA Kenneth Einar eds The Rule of Recognition and the US Constitution Oxford Oxford University Press 2009 pp 235268 365 Tradução livre para in sharp contrast to Bentham and Austin who had insisted that the sovereign makes all of the rules Hart argued instead that the rules make the sovereign Shapiro diz ter ouvido a frase de Waldron I once heard Jeremy Waldron describe Harts inversion of Austin in this way SHAPIRO Scott J What Is the Rule of Recognition And Does It Exist In ADLER Matthew HIMMA Kenneth Einar eds The Rule of Recognition and the US Constitution Oxford Oxford University Press 2009 pp 235268 98 presentes em determinada regra indicam de forma conclusiva que essa regra em questão é uma regra jurídica366 Em termos mais simples podese dizer que essa regra de reconhecimento para Shapiro uma regra sobre regras 367 para Postema uma regra de identificação368 é a que determina que define autoritativa e finalmente quais são as regras vinculantes que fazem parte do sistema jurídico de modo que qualquer questão relativa à existência de uma regra possa ser resolvidas sem a necessidade de engajamento em deliberação negociação ou persuasão369 É assim que a regra de reconhecimento surge pois como uma solução à incerteza inerente a um protossistema jurídico enquanto regra secundária é uma espécie de metaregra uma regra a partir da qual as demais regras do sistema jurídico são derivadas e definidas como regras jurídicas É a regra de reconhecimento que introduz ainda que de forma embrionária finalmente a ideia de um sistema jurídico isso porque a partir de sua harmonia sob a regra de reconhecimento as regras não mais constituem uma série desconexa são unificadas Hart complementa seu ponto dizendo que isso é assim porque é na simples operação a partir da qual se identifica uma determinada regra como possuidora da característica fundamental de ser um elemento em uma lista autoritativa de regras que temos o germe da ideia de validade jurídica370 A regra de reconhecimento então soluciona o problema da incerteza O problema do caráter estático de um protossistema por sua vez é solucionado na emergência de outro tipo de regras secundárias as chamadas rules of change que poderiam ser traduzidas por regras de mudança ou regras de modificação Como o nome já indica são essas as regras que permitem que um indivíduo ou grupo de pessoas introduza novas regras primárias que 366 This the rule of recognition will specify some feature or features possession of which by a suggested rule is taken as a conclusive affirmative indication that it is a rule of the group to be supported by the social pressure it exerts HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 94 367 Cf SHAPIRO Scott J What Is the Rule of Recognition And Does It Exist In ADLER Matthew HIMMA Kenneth Einar eds The Rule of Recognition and the US Constitution Oxford Oxford University Press 2009 pp 235268 368 A rule of identification POSTEMA Gerald J PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 11 Legal Philosophy in the Twentieth Century The Common Law World Nova York Springer 2011 369 Legal systems address the problem of uncertainty by providing a rule which determines which rules are binding By referring to this rule about rules what Hart termed the rule of recognition normative questions can be resolved without engaging in deliberation negotiation or persuasion SHAPIRO Scott J What Is the Rule of Recognition And Does It Exist In ADLER Matthew HIMMA Kenneth Einar eds The Rule of Recognition and the US Constitution Oxford Oxford University Press 2009 pp 235268 370 Grifos meus Tradução livre e contextualizada da seguinte passagem By providing an authoritative mark it introduces although in embryonic form the idea of a legal system for the rules are now not just a discrete unconnected set but are in a simple way unified Further in the simple operation of identifying a given rule as possessing the required feature of being an item on an authoritative list of rules we have the germ of the idea of legal validity HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 95 99 conduzam a vida da comunidade ou de uma classe dela e elimine regras antigas371 Há nesse sentido uma conexão próxima entre essas regras e a regra de reconhecimento onde aquelas existirem esta deverá necessariamente incorporar uma referência à legislação como uma característica identificativa das regras372 A regra de reconhecimento portanto deve necessariamente definir autoritativamente a existência de um sistema legislativo do contrário as regras de mudança não fariam parte do sistema jurídico uma vez que é a regra de reconhecimento que no limite determina quais são essas regras que pertencem ao sistema Solucionados os problemas da incerteza e do caráter estático inerentes a um sistema formado somente por regras primárias restaria ainda o problema da ineficiência da pressão social que reforça as regras uma vez que havendo apenas regras primárias não há qualquer critério por meio do qual seja possível verificar e estabelecer de forma definitiva se houve ou não uma possível violação As regras secundárias que solucionam esse problema são as rules of adjudication as regras de julgamento ou regras de decisão judicial Hart caracteriza essas regras como aquelas que conferem a determinados indivíduos o poder de estabelecer determinações autoritativas ie decidir acerca da questão de se em uma ocasião particular uma regra primária foi violada373 Hart segue dizendo que além de identificar os indivíduos responsáveis por julgardecidir essas regras também definem o procedimento a ser seguido são as rules of adjudication portanto que além de centralizar as sanções oficiais de um sistema legal374 definem um grupo de importantes conceitos jurídicos nesse caso os conceitos de juiz ou corte de jurisdição e julgamento375 Em síntese portanto é possível dizer que são três os problemas essenciais inerentes a um protossistema jurídico composto apenas por regras primárias p1 a incerteza p2 o caráter estático e p3 a ineficiência de sua pressão social Igualmente são três as soluções que somadas na medida em que resolvem os problemas de um protossistema inauguram 371 É então a regra que nos termos originais de Hart empowers an individual or body of persons to introduce new primary rules for the conduct of the life of the group or of some class within it and to eliminate old rules HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 95 372 Plainly there will be a very close connection between the rules of change and the rules of recognition for where the former exists the latter will necessarily incorporate a reference to legislation as an identifying feature of the rules HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 96 373 Tradução livre e com acréscimos igualmente livres da seguinte passagem secondary rules empowering individuals to make authoritative determinations of the question whether on a particular occasion a primary rule has been broken HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 96 374 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 98 375 These rules define a group of important legal concepts in this case the concepts of judge or court jurisdiction and judgment HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 97 100 também a ideia de um sistema jurídico autêntico composto também por regras secundárias que são exatamente a solução aos problemas de um sistema que delas carece s1 a regra de reconhecimento s2 as regras de modificação e s3 as regras de julgamentodecisão judicial É tanto por sua complexidade quanto por sua importância que Hart dedica mais algumas páginas especificamente à regra de reconhecimento E é por essas razões todas incluindo a opção do autor que opto por também discutila aqui com um cuidado um pouco maior 2113 Regra de reconhecimento A regra de reconhecimento regra secundária que soluciona a incerteza subjacente a um protossistema jurídico é como visto uma metaregra a partir da qual as demais regras do sistema jurídico são derivadas é como bem define Shapiro a regra sobre regras de um dado sistema jurídico A regra de reconhecimento é de tal importância que merece um tópico especificamente dedicado a ela não apenas importantes elementos da teoria hartiana emergem de sua adequada compreensão compreender o positivismo contemporâneo e suas teses passa por entender a regra de reconhecimento Hart diz que onde quer que uma regra tal de reconhecimento seja aceita tanto os cidadãos quanto os officials376 do sistema jurídico dispõem de critérios autoritativos a partir dos quais se pode identificar as regras primárias de obrigação377 Esses critérios podem adquirir substância através de diversas formas referências a um determinado texto autoritativo a promulgações legislativas à práticas de costumes a declarações gerais de pessoas especificadas ou a decisões pretéritas em casos particulares378 Isso revela por si o caráter complexo da regra de reconhecimento em sistemas jurídicos modernos complexidade que se torna ainda maior quando percebemos que na maioria das vezes isto é na maioria dos sistemas jurídicos que se verificam na prática para além de uma especulação 376 O termo original officials é de difícil tradução Nas edições brasileiras geralmente temos funcionários mas officials pareceme ter um significado mais includente do que sua tradução comum para o português tende a expressar uma vez que inclui todos aqueles que são efetivamente participantes da prática jurídica Isso inclui funcionários em sentido estrito juízes advogados etc 377 Wherever such a rule of recognition is accepted both private persons and officials are provided with authoritative criteria for identifying primary rules of obligation HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 100 378 Reference to an authoritative text to legislative enactment to customary practice to general declarations of specified persons or to past judicial decisions in particular cases HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 100 101 meramente analíticaconceitual a regra de reconhecimento não é uma regra disposta como é o caso de por exemplo uma regra escrita sua existência é demonstrada na forma através da qual regras particulares são identificadas379 Aqui se torna importante a distinção de Hart entre os pontos de vista externo e interno aquele que utiliza a regra de reconhecimento ao assim fazêlo manifesta sua própria aceitação dessa regra como guia Há assim uma atitude geral e compartilhada de deferimento à regra de reconhecimento380 Na medida em que i a regra de reconhecimento é uma regra cuja função é estabelecer os critérios pelos quais se pode identificar se outra regra é ou não parte de um sistema jurídico e ii é comum que nesse tipo de sistema haja uma série desses critérios é possível dizer que i a regra de reconhecimento é a regra última381 ultimate rule de um sistema e ii há sempre um critério supremo supreme criterion Um critério de identificação de validade ou fonte jurídica que como não poderia ser diferente está na regra de reconhecimento é supremo se as regras identificáveis a partir de uma referência a esse critério são reconhecidas como regras do sistema ainda que entrem em conflito com outras regras identificáveis a partir de referência a outro critério hipótese na qual são essas últimas que deixam de ser reconhecidas enquanto tais382 Uma explicação em termos mais simples ao lado de um exemplo pode clarificar o conceito O critério supremo é um dos critérios presentes na regra de reconhecimento que é superior aos demais na hipótese de um conflito no Reino Unido o critério supremo é o ato de promulgação no Parlamento em caso de conflito entre a lei promulgada e digamos um costume local ou geral do common law prevalece o ato do Parlamento Nas palavras de Hart Onde uma legislatura não se sujeita a limitações constitucionais de modo que suas promulgações podem tirar o caráter de lei de qualquer outra regra que emane de outra fonte é parte da regra de reconhecimento desse sistema que a promulgação legislativa é o critério supremo de validade 383 379 Tradução livre e contextualizada da seguinte passagem For the most part the rule of recognition is not stated but its existence is shown in the way in which particular rules are identified HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 101 380 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 102 381 No sentido de definitiva suprema termo que optei por não utilizar para evitar possíveis confusões 382 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 106 383 Tradução livre da seguinte passagem For where there is a legislature subject to no constitutional limitations and competent by its enactment to deprive all other rules of law emanating from other sources of their status as law it is part of the rule of recognition in such a system that enactment by that legislature is the supreme criterion of validity HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 106 102 Por sua vez a regra de reconhecimento é a ultimate rule do sistema porque simplesmente não se pode ir além dela O ponto porém é que a distinção é feita para que não se confunda o critério supremo com a regra de reconhecimento No exemplo anterior isso seria como dizer que na Inglaterra a regra de reconhecimento qua regra de reconhecimento é lei é aquilo que o Parlamento promulga Não é o caso esse é o critério supremo mas está na regra de reconhecimento regra esta que lembremos não é declarada expressamente mas se mostra na prática A regra de reconhecimento portanto não é uma regra transcendental ou uma regra pressuposta mas uma regra social que existe porque praticada384 Na definição de Ronald Dworkin alguém que como veremos mais tarde rejeita peremptoriamente as teses de Hart Hart entendia que em qualquer sistema jurídico em qualquer comunidade na qual há proposições jurídicas a maior parte dos officials dessa comunidade aceita como uma espécie de convenção uma regra mestra de reconhecimento que identifica quais fatos tornam essas proposições verdadeiras385 Essa regra pode variar de sistema para sistema uma convenção pode identificar atos legislativos e precedentes como a fonte de proposições jurídicas verdadeiras tanto quanto outra em outro sistema pode identificar os costumes por exemplo A forma que toma a convenção em qualquer comunidade particular é uma questão de fato social tudo passa por aquilo que a maior parte dos officials da comunidade acaba por concordar como sendo o teste último386 A definição de Dworkin é verdadeira a regra de reconhecimento sendo um padrão público comum é uma regra convencional e assim o é exatamente porque fundada em uma prática convergente entre juízes e outros officials do sistema jurídico387 Joseph Raz elenca seis considerações sobre a regra de reconhecimento tal como desenvolvida por Hart Além de uma excelente síntese os seis pontos de Raz permitem que se faça uma transição muito oportuna entre a regra de reconhecimento do ponto de vista conceitual e suas implicações teóricas que aqui me são importantes Os pontos são i A regra de reconhecimento é uma regra que exige que aqueles que compõem o sistema jurídico 384 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 107110 GREEN Leslie Legal Positivism In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesspr2018entrieslegal positivism Acesso em 21 dez 2018 385 Hart thought that in every community in which claims of law are made the great bulk of the officials of the community all accept as a kind of convention some master rule of recognition that identifies which historical or other facts or event make claims of law true DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 p 163 386 What form the convention takes in any particular community is a matter of social fact everything turns on what the bulk of the officials in that community happen to have agreed on as the master test DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 p 164 387 Cf MACCORMICK Neil H L A Hart 2 ed Stanford Stanford University Press 2008 p 132 103 enquanto membros388 apliquem as regras identificáveis a partir do critério de validade por ela exposto ii Todo sistema jurídico tem ao menos uma regra de reconhecimento iii Nenhum sistema jurídico tem mais de uma regra de reconhecimento iv Toda regra de reconhecimento é aceita e praticada pelos officials do sistema jurídico de que faz parte v Os officials ainda que a observem e devem observála aplicando as regras que dela são derivadas não precisam necessariamente aprovala como uma regra intrinsecamente boa ou moralmente justificável vi Um sistema jurídico é constituído por sua regra de reconhecimento e todas as demais regras identificáveis a partir dela389 2114 Direito e moral em H L A Hart A regra de reconhecimento em Hart é o elemento central para a formulação em seus termos de uma daquelas que se entendem como as grandes teses do positivismo moderno a tese das fontes sociais Não é difícil compreender por que se i as regras jurídicas e a própria regra suprema são regras sociais e ii é essa regra suprema que determina os critérios a partir do quais as demais regras são derivadas disso seguese que a validade de determinada proposição jurídica ou melhor para que qualquer proposição seja efetivamente jurídica está atrelada a uma fonte social a regra de reconhecimento uma regra social que existe essencialmente porque praticada pelos officials do sistema a que pertence O próprio Hart torna isso muito claro ao dispor quais são as condições mínimas suficientes e necessárias para que um sistema seja qualificado como um sistema jurídico de um lado as regras de comportamento que são válidas de acordo com o critério último do sistema devem ser geralmente obedecidas de outro as regras de reconhecimento especificando os critérios de validade jurídica nesse sistema bem como suas regras de modificação e julgamento devem ser todas elas efetivamente aceitas pelos officials como padrões públicos de comportamento oficial390 A primeira condição ie a obediência generalizada por parte dos destinatários das regras primárias válidas é a única que os 388 Officials Ver n 365 supra 389 O ponto em RAZ Joseph Practical Reason and Norms Oxford Oxford University Press 2002 p 146 390 There are therefore two minimum conditions necessary and sufficient for the existence of a legal system On the one hand those rules of behaviour which are valid according to the systems ultimate criteria of validity must be generally obeyed and on the other hand its rules of recognition specifying the criteria of legal validity and its rules of change and adjudication must be effectively accepted as common public standards of official behaviour by its officials HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 116 104 cidadãos em sua esfera privada precisam satisfazer sua obediência pode darse pelo motivo que for mas qualquer sociedade que funcione é composta por cidadãos que de maneira geral aceitam essas regras como padrões comuns de comportamento e reconhecem uma obrigação de obedecêlos ou mesmo identificam essa obrigação a outra mais geral de obediência à constituição391 A segunda condição por sua vez deve ser satisfeita pelos officials São eles que devem considerar essas regras como padrões públicos de comportamento oficial e considerar criticamente como lapsos qualquer desvio eventual de sua parte ou da parte alheia392 Havendo cooperação aquiescência generalizada por parte dos cidadãos a aceitação de uma regra pelos officials que a aplicam é suficiente para a existência do sistema a aceitação convencional dos cidadãos ordinários é dispensável é inclusive raro que cidadãos comuns destinatários das regras jurídicas tenham conhecimento acerca do funcionamento da regra de reconhecimento393 Essa exposição acerca das condições suficientes e necessárias para a existência de um sistema jurídico moderno sintetizam os pressupostos todos da teoria de Hart abordados até aqui as críticas às definições simples uma rejeição a um modelo de sistema jurídico baseado em ordens e ameaças bem como os conceitos de regras primárias e secundárias assim explicam a tese das fontes sociais ao demonstrar que a validade das regras passam por uma regra suprema que em si é uma regra social Essa concepção de Direito acaba por pressupor outras teses expressamente assumidas por Hart sendo uma delas traduzida exatamente em um dos elementos identificados por Raz em seu comentário sobre a regra de reconhecimento a ideia de que a aprovação moral por parte dos officials não é um pressuposto necessário para a existência de um sistema jurídico e a validade de suas regras Dito de outro modo ao estabelecer a tese das fontes tal como fez Hart também acabou por estabelecer outra tese positivista a tese da separabilidade Hart inicia suas reflexões sobre as relações entre Direito e moral colocando ênfase no plural por considerar impossível o estabelecimento de uma a relação entre Direito e moral 391 The first condition is the only one which private citizens need satisfy they may obey each for his part only and from any motive whatever though in a healthy society they will in fact often accept these rules as common standards of behaviour and acknowledge an obligation to obey them or even trace this obligation to a more general obligation to respect the constitution HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 116117 392 The second condition must also be satisfied by the officials of the system They must regard these as common standards of official behaviour and appraise critically their own and each others deviations as lapses Of course it is also true that besides these there will be many primary rules which apply to officials in their merely personal capacity which they need only obey HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 117 393 Cf POSTEMA Gerald J PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 11 Legal Philosophy in the Twentieth Century The Common Law World Nova York Springer 2011 p 320 105 dizendo que parece ser inegável o fato de que historicamente o desenvolvimento do Direito em todas suas épocas e lugares sofreu profundas influências daquilo que constitui a moral em sentido amplo foi influenciado tanto pela moralidade convencional expressada através dos ideais de grupos sociais particulares quanto pelas formas iluminadas de crítica moral de indivíduos cujo horizonte moral transcendeu a moralidade vigente comum394 Agora é precisamente por encarar essa premissa como um truísmo que Hart faz questão de dizer que é preciso cuidado para que não se derive dela uma proposição distinta Notadamente a de que um sistema jurídico deve exibir uma conformidade específica com a moralidade ou a justiça ou deve estabelecerse a partir de uma ampla e difusa convicção de que há uma obrigação moral de obedecê lo Embora isso possa ser em alguma medida verdadeiro disso não se segue que os critérios de validade jurídica de leis particulares utilizados em um sistema jurídico devem incluir tácita senão explicitamente uma referência à moralidade ou à justiça395 É a partir disso que Hart finalmente pela primeira vez expõe o que entende por positivismo jurídico396 a simples alegação de que não é de forma alguma uma verdade necessária que as leis reproduzam ou satisfaçam certas demandas da moralidade ainda que assim o tenham feito com frequência397 Hart está em suma dizendo o seguinte é verdade que i é possível verificar empiricamente que os sistemas jurídicos ao longo dos tempos foram em maior ou menor grau influenciados por proposições critérios ideais morais e que ii com é possível dizer que as leis em geral e com certa frequência satisfazem critérios morais isso não quer dizer que satisfazer esses critérios morais seja um pressuposto necessário para a validade de um sistema jurídico Ao menos nesse sentido Hart segue com Austin a existência da lei como lei é uma coisa sua eventual satisfação de critérios impostos pela moralidade é outra 394 Tradução livre e contextualizada It cannot seriously be disputed that the development of law at all times and places has in fact been profoundly influenced both by the conventional morality and ideals of particular social groups and also by forms of enlightened moral criticism urged by individuals whose moral horizon has transcended the morality currently accepted HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 185 395 Namely that a legal system must exhibit some specific conformity with morality or justice or must rest on a widely diffused conviction that there is a moral obligation to obey it Again though this proposition may in some sense be true it does not follow from it that the criteria of legal validity of particular laws used in a legal system must include tacitly if not explicitly a reference to morality or justice HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 185 396 Exposição esta que utilizei ainda na abertura do primeiro capítulo desta pesquisa naquelas que seriam minhas definições conceituais básicas Ainda com relação à locução positivismo jurídico e seu surgimento na literatura ver item 11 desta pesquisa 397 The simple contention that it is in no sense a necessary truth that laws reproduce or satisfy certain demands of morality though in fact they have often done so HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 185 186 106 A relação entre as duas teses tornase ainda mais clara quando observamos que a definição de Hart para o positivismo e sobretudo as implicações dessa definição tornam explícito aquilo ao qual Hart já apontava quando ainda tratava sobre a regra de reconhecimento em The Concept of Law Hart diz que é plenamente possível imaginar um caso extremo no qual apenas os officials aceitam e usam os critérios de validade jurídica de um sistema Essa sociedade seria para Hart uma sociedade de ovelhas deploravelmente e que as ovelhas poderiam muito bem acabar no matadouro Ainda assim e por mais deplorável que isso seja não há razão para se pensar que isso não pode existir ou para negar a esse sistema o título de sistema jurídico398 Discutindo essa passagem Jeremy Waldron define que a partir dela é possível concluir que aos olhos do positivista acrescentar a satisfação de condições morais como um pressuposto necessário à definição conceitual de Direito é um equívoco399 Naturalmente há uma série de razões pelas quais isso poderia ser um equívoco Waldron entende que as justificativas de Hart são pragmáticas400 uma vez que para ele condicionar a validade de um sistema jurídico à sua conformidade com exigências da moralidade seria um erro em razão de suas consequências práticas No mesmo sentido em seu excelente perfil sobre Hart Neil MacCormick define que Hart opta pela tese de que o valor moral não deve ser tratado como uma condição necessária de validade jurídica por razões tanto teóricas quanto morais401 Vejamos quais são essas razões e em que medida elas têm efeitos práticos De acordo com Hart uma definição estrita de Direito que exclua sistemas considerados injustos tirandolhes o caráter de sistemas jurídicos obrigarnosia a excluir certas regras ainda que elas exibam todas as outras características complexas do Direito Isso acarretaria na relegação do estudo dessas regras a outra disciplina algo que por sua vez geraria nada além de confusão Assim a primeira consequência prática negativa decorrente dessa confusão conceitual seria aquela que recai sobre o estudo teorético 398 In an extreme case only officials might accept and use the systems criteria of legal validity The society in which this was so might be deplorably sheeplike and the sheep might end in the slaughterhouse But there is little reason for thinking that it could not exist or for denying it the title of a legal system HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 117 399 Cf WALDRON Jeremy All We Like Sheep Canadian Journal of Law and Jurisprudence Vol XII n 01 jan 1999 pp 169186 400 O termo pragmatic é do próprio Waldron Cf WALDRON Jeremy All We Like Sheep Canadian Journal of Law and Jurisprudence Vol XII n 01 jan 1999 pp 169186 401 On both theoretical and moral grounds Hart opts for the thesis that moral value ought not to be treated as a necessary condition of legal validity MACCORMICK Neil H L A Hart 2 ed Stanford Stanford University Press 2008 p 196 107 científico do Direito como um fenômeno social402 um conceito estrito de Direito que exclua de seu âmbito os sistemas injustos acabaria por criar um problema de taxonomia sociológica403 Outro problema é da ordem de juízos práticos Homens maus diz Hart criarão leis más leis que outros irão reforçar Assim diante da clara possibilidade de abuso de poder oficial é necessário que se preserve o senso de que a certificação de algo como legalmente válido não é conclusivo acerca da questão da obediência independentemente de quão grande seja a aura de majestade ou autoridade que detém o sistema jurídico suas demandas devem finalmente submeterse ao escrutínio moral Essa percepção da existência de algo extrínseco ao sistema jurídico a noção de que há algo fora do Direito a que os cidadãos podem tomar como referência quanto à questão da obediência é algo que tem muito mais chances de manterse vivo entre aqueles que estão acostumados à ideia de que as leis podem ser injustas muito mais do que entre aqueles que pensam que nada que é iníquo pode adquirir o status de Direito404 É curioso e talvez até aparentemente paradoxal ao menos prima facie a principal razão que sustenta a insistência de Hart em uma separação conceitual entre Direito e moral é uma razão moral Hart era um positivista porque era também um crítico moral Seu objetivo não era o de conferir um mandado para obediência aos mestres do Estado era ao contrário o de reforçar a possibilidade de os cidadãos disporem da possibilidade de implacável crítica moral aos usos e abusos do poder estatal405 O paradoxo claro é apenas aparente o positivista diz que o erro está em considerar a moralidade como um critério de validade jurídica e nada além disso a tese da separabilidade é conceitual 402 Trecho adaptado com traduções livres da seguinte passagem Nothing is to be gained in the theoretical or scientific study of law as a social phenomenon by adopting the narrower concept it would lead us to exclude certain rules even though they exhibit all the other complex characteristics of law Nothing surely but confusion could follow from a proposal to leave the study of such rules to another discipline HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 209 403 Sociological taxonomy 404 Tradução livre Wicked men will enact wicked rules which others will enforce What surely is most needed in order to make men clearsighted in confronting the official abuse of power is that they should preserve the sense that the certification of something as legally valid is not conclusive of the question of obedience and that however great the aura of majesty or authority which the official system may have its demands must in the end be submitted to a moral scrutiny This sense that there is something outside the official system by reference to which in the last resort the individual must solve his problems of obedience is surely more likely to be kept alive among those who are accustomed to think that rules of law may be iniquitous than among those who think that nothing iniquitous can anywhere have the status of law HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 210 405 Paradoxical as some may find it this reason offered by Hart for insisting on the conceptual separateness of law and morality was a moral reason Hart was a positivist because he was also a critical moralist His aim was not to issue a warrant for obedience to the masters of the state It was to reinforce the citizens warrant for unrelenting moral criticism of the uses and abuses of state power MACCORMICK Neil H L A Hart 2 ed Stanford Stanford University Press 2008 p 197 108 Nenhum positivista jamais disse que o Direito é nãomoral406 Basta lembrar que o próprio Hart considera um truísmo a influência direta da moralidade positiva sobre a maior parte dos sistemas jurídicos ao longo da história A tese da separabilidade em Hart portanto baseiase na ideia de que confundir invalidade e imoralidade é um erro um erro que nos impede de ver a complexidade e a variedade dessas questões distintas Um conceito de Direito que nega validade jurídica à regras iníquas pode cegarnos a tão importantes questões407 212 Conclusão parcial o positivismo e suas duas ou três grandes teses Até aqui temos os principais elementos da teoria analítica de Hart Seu legado enquanto teórico verdade é enorme inestimável seus influentes escritos abordam desde questões como a descriminalização do aborto da homossexualidade e da prostituição na Inglaterra passando por assuntos como a pena de morte as justificações para a punição como reforço da moralidade convencional seu debate sobre direito penal transmitido pela rede britânica BBC com Patrick Devlin juiz conservador chegou a ser à época considerado o debate da década408 Não fosse isso ainda que sua obra estivesse restrita à esfera que aqui nos interessa sua teoria analítica sua herança ao pensamento jurídico já seria gigantesca é praticamente unânime no mundo anglosaxão que com os insights da filosofia linguística Hart basicamente reinventou a filosofia do Direito tendo um impacto comparável ao de Wittgenstein na filosofia409 Tudo isso é verdade Hart praticamente reinventou a filosofia do Direito no mundo anglosaxão Como vimos foi ele o primeiro teórico realmente paradigmático depois de Austin precisamente por modernizar os principais pressupostos de seu antecessor Enquanto 406 Whereas no legal positivist has ever contended that law is nonmoral virtually every legal positivist contends that the efforts by naturallaw theorists to portray law as inherently benign or legitimate are unfounded KRAMER Matthew H H L A Hart Medford Polity 2018 p 156 407 A concept of law which allows the invalidity of law to be distinguished from its immorality enables us to see the complexity and variety of these separate issues whereas a narrow concept of law which denies legal validity to iniquitous rules may blind us to them HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 211 408 Harts writings on abortion on the legalization of homosexuality and prostitution and on capital punishment had a huge impact on informed opinion In particular his debate with the conservative judge Patrick Devlin about p2 the propriety of using law to enforce conventional morality parts of which were broadcast by the BBC was probably the debate of the decade LACEY Nicola A Life of H L A Hart The Nightmare and the Noble Dream Oxford Oxford University Press 2006 pp 0102 409 Hart was credited with having more or less reinvented the philosophy of law In this field his impact could be compared with that of say Wittgenstein in general philosophy LACEY Nicola A Life of H L A Hart The Nightmare and the Noble Dream Oxford Oxford University Press 2006 p 01 109 Austin entendia acompanhando a Bentham e em maior ou menor grau Hobbes o Direito enquanto os comandos e as ameaças de sanções por parte de um soberano habitualmente obedecido Hart considerava essa compreensão incapaz de dar conta de um sistema jurídico moderno Assim embora não pretendesse rejeitar o método de Austin sua proposta é igualmente descritiva Hart i rejeitou a definição clássica austiniana baseada somente naquilo a que chamou de regras primárias e ii somou a essas regras primárias as regras secundárias regras essas aptas a conferir poderes e competências modificar e revogar as regras primárias e em última instância delimitarem os critérios próprios a partir dos quais as regras jurídicas são definidas como tais Essas regras secundárias são as regras de modificação as regras de julgamento e finalmente a regra de reconhecimento uma regra social empírica cuja existência é a própria prática pela qual aqueles que compõem um sistema jurídico identificam e aplicam as regras que formam esse sistema Todas essas definições que Hart expõe a partir de uma proposta de sociologia descritiva são conduzidas através da análise linguística e clarificação de conceitos algo que perpassa todo o projeto hartiano de oferecer um moderno conceito de Direito Desse modelo de sistema jurídico baseado exatamente na união de regras primárias e secundárias emergem exatamente aquelas que viriam a ser até hoje reconhecidas como as grandes teses do positivismo jurídico moderno Todas essas teses são aspectos que o modelo positivista de Direito implica A primeira dessas teses é i a tese das fontes sociais também chamada por vezes de tese do pedigree Se os critérios de validade das regras que compõem um sistema jurídico estão na regra de reconhecimento e essa regra é uma regra social baseada em uma convenção entre os indivíduos que compõem a prática seguese logicamente que as regras de um sistema jurídico originamse de uma fonte eminentemente social A segunda tese é ii a tese da separabilidade entre Direito e moral e ela também decorre logicamente das condições mínimas determinadas por Hart para a existência de um sistema genuinamente jurídico Se as regras têm sua validade determinada a partir dos critérios elencados pela regra de reconhecimento e essa regra é definida a partir da prática dos officials do sistema que identificam e aplicam as regras isso significa que a satisfação de critérios morais não é um pressuposto necessário para a validade das regras jurídicas É verdade Hart reconhece que a maioria dos sistemas jurídicos ao longo dos tempos foi influenciado pela moralidade entendia em sentido amplo também é verdade que com frequência as regras jurídicas ao menos em sua maior parte satisfazem reivindicações da moralidade convencional Disso não se segue que a satisfação de critérios morais seja 110 necessariamente um pressuposto para a validade das regras jurídicas A tese da separabilidade portanto não é amoralista em nenhum sentido diz apenas que é possível separar o Direito enquanto conceito e enquanto um sistema de regras válidas de sua eventual satisfação de critérios morais O Direito e sua validade são uma coisa e a satisfação dos critérios da moralidade é outra Temos pois duas grandes teses positivistas a tese das fontes e a tese da separabilidade Ambas pretendemse teses conceituais verdadeiras com relação a todo sistema jurídico possível Juntas levam à conclusão lógica de que em todo sistema jurídico possível as proposições jurídicas são válidas em razão de terem sido proferidas de acordo com os critérios estabelecidos por uma convenção social e sendo assim não é verdade que o conteúdo legal de todo sistema jurídico deva necessariamente atender critérios morais Essas são as teses mais claras e mais aceitas entre os próprios positivistas de modo que a meu ver a satisfação de somente ambas essas teses já é o suficiente para que uma tese ou um autor sejam classificados como tais Há contudo autores que apontam a uma terceira tese eminentemente positivista a tese da discricionariedade Nesse sentido é bastante pertinente trazer uma importante citação na íntegra de Kenneth Himma um dos mais importantes teóricos contemporâneos a escrever sobre o positivismo Himma na passagem explica brilhantemente i as duas grandes teses ii a possível terceira e iii por que existe uma controvérsia com relação a essa última O corpo teórico central do positivismo consiste pensase em três teses acerca da natureza do Direito A tese da separabilidade nega a existência necessária de restrições morais sobre o conteúdo do Direito A tese do pedigree dispõe que as condições suficientes e necessárias à validade jurídica têm a ver com como ou por quem as leis ésão promulgadas A tese da discricionariedade estabelece que os juízes ao decidirem casos difíceis produzem direito novo Enquanto é geralmente presumido que essas teses formam um corpo teórico coerente como um todo esse pressuposto é falso Tomada como uma tese sobre todos os sistemas jurídicos possíveis a tese da discricionariedade é incompatível com a tese do pedigree Tomada como uma tese verdadeira para alguns mas não todos sistemas jurídicos a tese acaba por trazer um argumento de um tipo fundamentalmente diferente daquele que subjaz às teses do pedigree e da separabilidade e portanto não deve ser considerada como parte da teoria positivista do Direito 410 410 Grifos meus Tradução livre da seguinte passagem The theoretical core of positivism is thought to consist of three theses about the nature of law The separability thesis denies the existence of necessary moral constraints on the content of law The pedigree thesis articulates necessary and sufficient conditions for legal validity having to do with how or by whom law is promulgated The discretion thesis asserts that judges decide hard cases by making new law While it is often assumed that these theses form a coherent theoretical whole such an assumption is false Construed as a claim about all possible legal systems the discretion thesis is inconsistent with the pedigree thesis Construed as a claim that is true in some but not all possible legal systems the discretion thesis makes a fundamentally different kind of claim than those made by the pedigree and separability 111 Por que então é tão comum que a tese da discricionariedade seja considerada ao lado das outras duas uma das grandes teses do positivismo Novamente o melhor a se fazer é buscar a origem do argumento Quem desenvolveu e atrelou a tese da discricionariedade ao positivismo foi aquele que provavelmente é seu maior adversário histórico Ronald Dworkin 22 O DIREITO EM RONALD DWORKIN Ronald Dworkin 19312013 é sem dúvida um dos mais influentes jusfilósofos da história do pensamento jurídico ocidental Como bem define Stephen Guest Dworkin tem sido por muitas décadas enormemente citado em livros e periódicos jurídicos políticos filosóficos e econômicos importantes autores que concordam e discordam com ele estão certamente unidos em torno da noção de que suas ideias são de enorme significado411 Ex aluno de Hart e seu sucessor na cátedra de Jurisprudence em Oxford Dworkin ganhou notoriedade exatamente ao atacar o positivismo jurídico sobretudo na versão apresentada através das teses do próprio H L A Hart seu antecessor e antigo professor em The Concept of Law412 Dworkin é claro não foi somente um crítico do positivismo jurídico foi também um grande crítico do pragmatismo sobretudo na versão de Richard Posner da proposta originalista de interpretação constitucional tendo seu antagonista no então juiz da Suprema Corte Antonin Scalia do pluralismo de valores personificado por Isaiah Berlin Naturalmente também não foi somente um crítico um teórico negativo enquanto desenvolvia suas tão amplas críticas Dworkin acabou também por articular ao longo dos anos uma concepção original muito própria acerca do Direito da prática jurídica da teoria política e da justiça e em sentido mais amplo da filosofia moral em um projeto que se apresenta como unitário e coerente Seja como for comecemos pelo início com The Model of Rules O Modelo de Regras cuja publicação na University of Chicago Law Review construiu sua reputação413 theses and hence should not be thought of as part of positivisms theory of law HIMMA Kenneth Einar Judicial Discretion and the Concept of Law Oxford Journal of Legal Studies Oxford v 19 1999 pp 7182 411 He has now for many decades been enormously cited in legal political philosophical and economics books and journals and serious writers who disagree or agree with him are certainly united in thinking his ideas are of great significance GUEST Stephen Ronald Dworkin 3 ed Stanford Stanford University Press 2013 p 11 412 Cf GUEST Stephen Ronald Dworkin 3 ed Stanford Stanford University Press 2013 pp 1112 413 It was the publication of The Model of Rules in the University of Chicago Law Review that made his reputation GUEST Stephen Ronald Dworkin 3 ed Stanford Stanford University Press 2013 p 12 112 221 O general attack ao positivismo jurídico Foi portanto em The Model of Rules publicado originalmente em 1967 e posteriormente relançado como The Model of Rules I um dos ensaios que constituem o primeiro livro de Dworkin Taking Rights Seriously 1977 que Dworkin articulou suas primeiras críticas ao positivismo de Hart e em meio a isso passou a desenvolver sua própria teoria jurídica Neste ensaio Dworkin diz pretender examinar a solidez da teoria tornada popular por John Austin agora aceita de uma forma ou outra pela maioria dos profissionais e acadêmicos jurídicos chamada com alguma liberdade histórica414 positivismo jurídico sobretudo na poderosa forma articulada com clareza e elegância por H L A Hart415 Embora assuma que nem todo filósofo que se intitule ou seja chamado de positivista deva necessariamente subscrever as teses da forma por ele apresentada Dworkin define as teses centrais do positivismo jurídico da seguinte maneira i O Direito de uma comunidade pode ser identificado a partir de critérios específicos através de testes que não têm a ver com o conteúdo das regras mas com seu pedigree416 ii As regras que exsurgem desse teste de validade são exaustivas quanto ao Direito no consequente sentido de que se o caso de alguém não é claramente coberto por uma regra tal então esse caso não pode ser decidido por meio da aplicação do Direito deve ser então decidido por algum official como um juiz exercendo sua discricionariedade o que significaria na leitura de Dworkin ir além do Direito em busca de outro tipo de padrão a guialo na construção de uma nova regra ou na suplementação de uma regra antiga 417 Essa portanto a tese da discricionariedade atribuída ao positivismo articulada por Dworkin recepcionada por alguns rejeitada por outros 414 O que nos remete ao que foi discutido nos itens 1 e 11 desta pesquisa 415 The theory first made popular by the nineteenth century philosopher John Austin and now accepted in one form or another by most working and academic lawyers who hold views on jurisprudence I shall call this theory with some historical looseness legal positivism I want to examine the soundness of legal positivism particularly in the powerful form that Professor H L A Hart has given to it I choose to focus on his position not only because of its clarity and elegance but because here as almost everywhere else in legal philosophy constructive thought must start with a consideration of his views DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 p 16 416 Daí por que às vezes a tese das fontes sociais é chamada de tese do pedigree 417 Tradução livre e contextualizada da seguinte passagem The set of these valid legal rules is exhaustive of the law so that if someones case is not clearly covered by such a rule because there is none that seems appropriate or those that seem appropriate are vague or for some other reason then that case cannot be decided by applying the law It must be decided by some official like a judge exercising his discretion which means reaching beyond the law for some other sort of standard to guide him in manufacturing a fresh legal rule or supplementing an old one DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 p 17 113 iii Finalmente na leitura de Dworkin o positivismo implica na ideia de que na ausência de uma regra jurídica válida não há obrigação jurídica disso seguirseia que quando um juiz decidisse alguma questão específica com base em seu poder discricionário ele não estaria reforçando um direito com relação a ela Esse para Dworkin é o esqueleto do positivismo jurídico418 a teoria contra a qual deseja lançar um ataque geral fazendo da versão de Hart um alvo toda vez que um alvo particular for necessário419 2211 A controvérsia dos princípios A partir do esqueleto delineado por Dworkin o positivismo seria um modelo de e para um sistema de regras de modo que sua noção fundamental de um teste único e último para fins de determinação do que constitui Direito válido ie a tese das fontes ou do pedigree acabaria por deixar de fora padrões jurídicos de outro tipo que não funcionam como regras No ataque geral de Dworkin os mais importantes desses padrões são os princípios Dworkin começa sua explanação acerca dos princípios com o célebre caso Riggs v Palmer talvez tão célebre muito em razão do próprio Dworkin Sucintamente tratase de um caso no qual em 1889 uma corte de Nova York teve de decidir se um herdeiro que assassinou o próprio avô tinha o direito de herdar o que lhe era garantido por testamento À época os estatutos regulatórios sobre a matéria levavam à conclusão de que o assassino tinha esse direito ainda assim a Corte entendeu por negálo baseada no princípio segundo o qual a ninguém pode ser permitido beneficiarse da própria torpeza420 Esse tipo de padrão segundo Dworkin por se tratar de um princípio opera de forma muito distinta de regras estas articuladas através de proposições como em seus exemplos a velocidade máxima permitida em horários de pico é de 60 mph ou um testamento é inválido a não ser que assinado por três testemunhas421 418 Cf DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 p 17 419 I want to make a general attack on positivism and I shall use H L A Harts version as a target when a particular target is needed DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 p 22 420 Cf DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 p 23 421 The standard set out in these quotations are not the sort we think of as legal rules They seem very different from propositions like The maximum legal speed on the turnpike is sixty miles an hour or A will is invalid unless signed by three witnesses They are different because they are legal principles rather than legal rules DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 p 23 114 A diferença entre princípios e regras jurídicas portanto é uma distinção lógica ainda que ambos os padrões apontem a decisões particulares sobre obrigações jurídicas em circunstâncias particulares diferemse fundamentalmente em caráter e na direção a que apontam422 As regras para Dworkin funcionam à maneira tudo ou nada423 aplicamse ou não são válidas ou não Os princípios por outro lado têm uma dimensão de peso424 eles dispõem uma razão que conduz a argumentação e o raciocínio judicial em uma direção mas não exigem uma decisão particular é possível que haja princípios que apontem a direções conflitantes mas a prevalência de um não significa que o outro não faça parte do sistema jurídico dado que em razão da dimensão de peso ele pode ser decisivo em outro caso subsequente As regras por outro lado dada sua própria natureza quando são conflitantes necessariamente uma delas não pode ser válida425 Uma vez explicada a diferença entre regras e princípios426 é possível passar ao que realmente importa É do argumento dos princípios que Dworkin deriva e sustenta a discricionariedade como uma das grandes teses do positivismo jurídico Isso porque na medida em que i os positivistas afirmam que os sistemas jurídicos têm cada um à sua maneira um teste criteriológico capaz de determinar o que configura direito válido tese do pedigree eles devem também afirmar segundo Dworkin ii que os princípios não são direito válido Se os princípios não são direito válido e o Direito é constituído apenas pelas regras que assim o são de acordo com seu pedigree e se a impossibilidade de as regras cobrirem todos os casos possíveis é uma questão lógica assim como as decisões judiciais para além do conteúdo fixado por essas regras são uma realidade em qualquer sistema seguese disso que toda atividade judicial que está para além da esfera das regras jurídicas dáse com base no poder discricionário do juiz discricionário porque livre de qualquer padrão jurídico que o vincule em uma ou outra direção427 O ponto ii exige uma explicação um pouco mais detalhada Pela sua própria natureza é impossível que os princípios estejam todos elencados de antemão em uma regra de reconhecimento Não há como diz Dworkin conceber qualquer fórmula que sirva de teste 422 Grifos meus tradução livre The difference between legal principles and legal rules is a logical distinction Both sets of standards point to particular decisions about legal obligation in particular circumstances but they differ in the character of the direction they give DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 p 24 423 Allornothing fashion 424 Dimension of weight 425 Cf DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 pp 2428 426 Cf nessa questão o verbete Diferença entre regras e princípios no Dicionário de Hermenêutica de Streck STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 427 DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 pp 2839 115 com relação a quanto e que tipo de suporte institucional é necessário para que um princípio seja jurídico haverá menos ainda qualquer tipo de teste capaz de fixar seus pesos em uma ordem de magnitude particular428 Mais do que isso qualquer tentativa de adaptação da regra de reconhecimento que tentasse incluir os princípios nos critérios nelas dispostos estaria fadada a fracassar se os princípios e nesse sentido quaisquer padrões outros que não as regras fossem aceitos como jurídicos e portanto como padrões institucionalmente vinculantes à atividade judicial as próprias regras como tais passariam a dever parte de sua força à autoridade subjacente aos princípios enquanto padrões jurídicos assim a regra de reconhecimento já não mais seria o teste final apto a servir de critério último e único determinando o que é direito válido429 Em síntese para Dworkin qualquer teoria baseada em uma regra de reconhecimento vai ou considerar os princípios como extrajurídicos ou derrotar a si própria Sendo assim padrões extrajurídicos os princípios não vinculam estritamente os juízes do ponto de vista institucional de modo que não havendo padrão a ser seguido no caso concreto há discricionariedade na decisão É por isso que Dworkin sustenta a tese da discricionariedade como necessária ao positivismo como tal e é também por isso que Dworkin considera o positivismo insuficiente porque nos remete a uma tese da discricionariedade que leva a lugar nenhum e nada diz430 Se o positivismo pretende descrever a prática jurídica não o faz adequadamente porque não é capaz de descrever uma prática que apresenta padrões jurídicos que transcendem a mera noção de regras 2212 Convenções e o aguilhão semântico Em um livro anterior Taking Rights Seriously diz Dworkin já em 2006 argumentei que o positivismo analítico distorce a verdadeira prática de advogados e juízes em sistemas jurídicos contemporâneos e portanto oferece uma compreensão inadequada dessas práticas Notadamente Dworkin tem em mente o argumento dos princípios e a consequente tese da discricionariedade Em Laws Empire 1986 segue o autor ofereci 428 Tradução livre e adaptada Yet we could not devise any formula for testing how much and what kind of institutional support is necessary to make a principle a legal principle still less to fix its weight at a particular order of magnitude DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 p 40 429 Cf DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 p 43 430 The positivist remits us to a doctrine of discretion that leads nowhere and tells nothing DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 p 45 116 uma explicação de por que os positivistas analíticos cometem esse erro431 O presente tópico trata dessa nova explicação antes porém dada sua complexidade expôla em linhas bastante gerais é cabível O positivismo analítico segundo a nova tese dworkiniana parte do pressuposto de que todos os conceitos incluindo pois o conceito de Direito são conceitos criteriais conceitos que são compartilháveis somente quando as pessoas que os compartilham concordam em uma definição precisa ou grosseira da qual se derivem os critérios para a aplicação correta do termo ou frase associada432 As pessoas no exemplo de Dworkin compartilham o conceito de um triângulo equilátero somente quando sabem que o triângulo em questão tem lados de igual comprimento Assim uma análise positivista do conceito de Direito que o toma por um conceito criterial passaria pela elucidação de quais são os testes que aqueles que compõem a prática jurídica compartilham à exceção dos casos marginais limítrofes para identificar quais proposições jurídicas são verdadeiras ie quais proposições são realmente jurídicas em última análise o que é e o que não é direito válido433 Esse é o argumento do semantic sting o argumento do aguilhão semântico Em Laws Empire para que possa inaugurar o semantic sting argument Dworkin primeiro diferencia três tipos de questões que surgem em Direito e com relação a essas questões próprias três tipos de desacordos possíveis i desacordos empíricos ou factuais eg O que aconteceu O trabalhador que operava o torno mecânico realmente deixou que uma chave inglesa caísse sobre um dos pés de um colega ii desacordos teóricos eg Qual é a lei aplicável O Direito permite que um trabalhador que sofre lesão em trabalho cobre os danos de seu empregador e iii desacordos morais eg Se o Direito não garante a compensação isso é injusto E se é os juízes devem ignorar a lei e garantir a compensação de qualquer forma434 O primeiro tipo de desacordo empírico é simples É bastante fácil identificar primeiro sobre o que se discute e segundo que tipo de evidência se disponível seria capaz de solucionar a eventual disputa O terceiro tipo o desacordo moral é para Dworkin 431 Grifos meus In an early book Taking Rights Seriously I argued that analytic positivism distorts the actual practice of lawyers and judges in contemporary legal systems and therefore provides an inadequate understanding of those practices In Laws Empire I offered an explanation of why analytic positivists make that mistake DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 p 225 432 People share some concepts only when they agree on a definitionrough or precisethat sets out the criteria for the correct application of the associated term or phrase DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 p 09 433 Cf DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 p 225 434 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 03 117 bastante diferente mas também familiar435 É afinal bastante frequente que as pessoas divirjam sobre o que é certo e errado436 Mas e o segundo tipo de desacordo isto é o desacordo que Dworkin vem a classificar como desacordo teórico sobre o Direito O autor explica a partir das discussões sobre a classificação de uma proposição jurídica como verdadeira ou falsa em outras palavras o desacordo teórico é o desacordo acerca dos fundamentos do Direito No exemplo de Dworkin juízes podem concordar do ponto de vista empírico sobre que tipo de estatutos e precedentes têm relevância na hipótese de um caso em que um empregado cobra danos em virtude de acidente de trabalho de seu empregador ainda assim podem discordar sobre o que a lei de compensação de danos significa na medida em que eles discordam com relação ao ponto que questiona do ponto de vista teórico se os precedentes e estatutos exaurem esgotam os fundamentos pertinentes do Direito Juízes ainda que concordem entre si com relação a quais estatutos sobre a matéria em questão foram promulgados e com relação a quais precedentes têm relação com o ponto podem ainda discordar sobre o que o Direito realmente é sobre o significado e o alcance de seus fundamentos enquanto fundamentos jurídicos437 Nesse sentido Dworkin como lhe é habitual ilustra o ponto a partir de uma série de exemplos concretos do direito norteamericano Em meio a alguns outros casos no livro Dworkin novamente lança mão do caso Riggs v Palmer que foi seu pano de fundo para o argumento dos princípios Agora contudo o argumento é um pouco diferente Dworkin não quer somente mostrar que em Direito há padrões jurídicos que estão para além das regras Isso já havia sido desenvolvido em The Model of Rules Agora Dworkin diz o seguinte quando se discutiu no caso do neto que assassinou o avô visando à herança se o assassino tinha ou não o direito pleiteado não se estava a discutir se os juízes deviam seguir a lei ou deixar o Direito de lado em nome da justiça baseado nos fundamentos utilizados pelos próprios juízes em seus votos Dworkin diz que o desacordo em questão era uma disputa sobre o que o Direito era sobre o que o estatuto real que os legisladores promulgaram realmente dizia438 435 Very different but also familiar 436 DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 03 437 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 pp 0405 438 The dispute about Elmer o neto assassino was not about whether judges should follow the law or adjust it in the interests of justice At least it was not if we take the opinions I described at face value and we have no justification for taking them in any other way It was a dispute about what the law was about what the real statute the legislators enacted really said DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 20 118 Para Dworkin a explicação que o positivismo e qualquer outra teoria do tipo a que Dworkin chama de teorias semânticas439 oferece para esse tipo de desacordo é absolutamente insuficiente precisamente porque está estão baseadas em uma noção a partir da qual o Direito é tratado como um conceito criterial Se o Direito é um conceito criterial então i todos seguimos um certo tipo de critérios linguísticos na apreciação de proposições jurídicas enquanto tais e ii o filósofo do Direito deve produzir teorias que identifiquem esses critérios e sobretudo uma vez que o próprio significado da palavra Direito faz com que o Direito dependa de certos critérios de aplicação iii aquele que rejeitasse ou desafiasse esses critérios próprios estaria falando sem fazer sentido nonsense Dito de outro modo segundo as teorias semânticas wittgensteinianamente nós seguimos regras compartilhadas no uso das palavras que usamos e são essas regras a partir das quais se pode derivar os critérios que dão à palavra seu significado Daí que os conceitos são criteriais E se o conceito de Direito também o é seguese que o desacordo teórico não se dá sobre os fundamentos do Direito tal como ele é mas talvez sobre o que ele deveria ser falar pois em desacordos teóricos é ilusório Nas palavras de Dworkin as teorias semânticas supõem que advogados e juízes utilizamse basicamente dos mesmos critérios ainda que estes estejam escondidos irreconhecidos para determinar se proposições jurídicas são verdadeiras ou falsas440 Um positivista Dworkin concede poderia argumentar no sentido de que há um uso ordinário padrão da palavra Direito e por outro lado há também casos limítrofes Nesse sentido advogados e juízes todos seguiriam basicamente a mesma regra criterial com relação a Direito mas uma vez que as regras acerca dos usos das palavras não são sempre exatas é possível que haja casos limítrofes que operam em uma zona de penumbra441442 Assim sendo explicarseia os desacordos em casos difíceis hard cases cada um utiliza uma versão levemente diferente da mesma regra e as diferenças tornamse manifestas nesses casos especiais443 Aquele que negasse a uma residência suburbana a classificação de casa simplesmente não compreende as regras idiomáticas ainda assim nem todos seguem 439 Semantic theories of law 440 Semantic theories suppose that lawyers and judges use mainly the same criteria though these are hidden and unrecognized in deciding when propositions of law are true or false DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 33 441 Penumbral cases 442 Hart no sétimo capítulo de The Concept of Law já trazia essa questão da indeterminação da textura aberta open texture e da zona de penumbra Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 124154 443 Each uses a slightly different version of the main rule and the differences become manifest in these special cases DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 39 119 exatamente a mesma regra alguns diriam legitimamente que o Palácio de Buckingham é uma casa outros de forma igualmente legítima diriam que não444 Diante desse possível contraargumento Dworkin questiona se assim for os juízes que discordavam entre si em Riggs v Palmer e pois em qualquer outro caso em discussão estariam envolvidos em um desacordo meramente verbal E mais ainda a hipótese segundo a qual esse desacordo é meramente verbal é incapaz de explicar a prática jurídica e a atuação dos juízes e advogados ao longo dos tempos Afinal pessoas razoáveis não discutem entre si se o Palácio de Buckingham é ou não uma casa tratase tão somente de como uma pessoa escolhe usar uma palavra445 Se Direito for realmente um conceito como casa então por que os membros de uma prática jurídica haveriam de discutir por tanto tempo sobre a veracidade ou falsidade de proposições jurídicas Como eles haveriam de pensar ter argumentos sensatos capazes de sustentar uma decisão que no limite é essencialmente arbitrária porque relacionada meramente ao uso de uma palavra de um jeito em vez de outro Essa defesa semântica do Direito enquanto conceito criterial com casos limítrofes é para Dworkin um insulto por caracterizar juízes e advogados como tolos446 Esse é portanto o argumento do aguilhão semântico Aquele que pensa que só podemos discutir uns com os outros se e somente se todos aceitarmos e seguirmos os mesmos critérios conceituais ainda que não possamos especificar quais são esses critérios é vítima do semantic sting Dworkin é claro reconhece os argumentos das teorias semânticas como argumentos filosóficos assim assume que ao rejeitálos deve confrontálos também com argumentos filosóficos447 Filosoficamente portanto Dworkin vai revisitar a Teoria do Direito oferecendo sua própria concepção tendo como base a ideia de que em vez de criterial o Direito é um conceito interpretativo 222 Law as integrity A obra de Dworkin é uma obra que por mais que seja sempre coerente e unitária é uma obra densa longa complexa Esgotála e especialmente em uma pesquisa que não tem 444 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 pp 3940 445 Sensible people do not quarrel over whether Buckingham Palace is really a house This is not a genuine issue but only a matter of how one chooses to use a word DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 pp 4041 446 Simpletons 447 We have no choice but to confront that argument It is a philosophical argument so the next stage of our project must be philosophical as well DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 44 120 em Dworkin seu elemento central seria uma tarefa impossível Ainda assim para que se possa apresentar Waldron como uma terceira via entre o positivismo e a concepção de Dworkin é necessário também compreendela ainda que em suas linhas mais gerais Um bom ponto de partida talvez seja o contraste entre a abordagem do positivismo sobre o Direito como um conceito criterial abordagem que como vimos Dworkin rejeita peremptoriamente e a abordagem dworkiniana que aborda o Direito como um conceito interpretativo Uma vez que grande parte dos desacordos que permeiam a prática jurídica são não empíricos mas teóricos a abordagem criterial é vítima do aguilhão semântico já que uma de suas decorrências lógicas é a de que em seus desacordos aqueles que compõem a prática jurídica estão ou fingindo ou discordando sobre um caso limítrofe Somente o tratamento do Direito como um conceito interpretativo pode oferecer uma imagem adequada dos desacordos que compõem a prática tal como se apresenta na realidade 2221 Interpretativismo conceito e concepções Isso posto o que significa afinal a abordagem interpretativa Para além daquilo que nega o que afirma o interpretativismo de Dworkin Quem responde é o próprio Em sua concepção o raciocínio jurídico legal reasoning é um exercício de interpretação construtiva de modo que o Direito de uma comunidade consiste na melhor justificativa que sustenta as práticas jurídicas como um todo consiste pois na história narrativa que faz dessas práticas o melhor que elas podem ser448 A interpretação construtiva de uma prática na leitura de Dworkin é precisamente uma questão de atribuição de modo a tornala o melhor exemplo possível da forma ou gênero ao qual se presume que ela pertence O propósito da interpretação é visto sob essa perspectiva tornar aquilo que se interpreta o melhor que pode ser assim uma abordagem de interpretação construtiva sobre a prática jurídica será uma proposta interpretativa que visa a oferecer uma leitura dessa prática vista sob sua melhor luz449 Com relação ao processo interpretativo per se Dworkin delimita e divide o processo em três estágios Primeiro i um estágio préinterpretativo no qual se determinam as 448 Grifos meus tradução livre Legal reasoning is an exercise in constructive interpretation Our law consists in the best justification of our legal practices as a whole it consists in the narrative story that makes of these practices the best they can be DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p vii 449 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 pp 52 61 139 121 regras e padrões dentro dos quais se pode identificar o conteúdo da prática interpretada São classificações cotidianas os graus mínimos que permitem que algo seja inteligivelmente interpretado Dworkin exemplifica o estágio préinterpretativo através da interpretação literária na qual esse estágio consistiria na identificação de MobyDick e sua distinção dos textos que correspondem a outras obras450 Depois surge ii o estágio interpretativo estágio que ilumina de forma bastante clara a concepção de interpretação construtiva em Dworkin Para o autor o estágio interpretativo é o estágio no qual o intérprete adota uma justificativa geral para com os principais elementos que constituem a prática identificada no estágio préinterpretativo451 o que consiste basicamente em um argumento sobre a validade da prática em questão Essa interpretação não precisa contemplar todo aspecto todos os elementos da prática interpretada é verdade deve contudo ainda assim ir de encontro a elementos suficientes elementos que pertencem ao estágio préinterpretativo452 de modo a fazer com que o intérprete esteja genuinamente interpretando a prática e não inventando uma nova453 Finalmente então vem o terceiro estágio o iii estágio pósinterpretativo ou estágio reformador454 Nessa fase o intérprete ajusta sua percepção do que a prática realmente exige de modo a melhor servir à justificação por ele aceita no estágio interpretativo455 Dworkin aqui dá novamente o exemplo da cortesia em uma sociedade prática que permeia a obra de Dworkin como um paradigma suficientemente exemplificativo de uma prática interpretativa no estágio pósinterpretativo um intérprete da cortesia poderia vir a pensar que um reforço consistente daquilo que melhor justifica a prática exigiria que as pessoas saudassem com seus chapéus os soldados que retornam de uma guerra ou ainda que a melhor justificativa da prática exige em verdade uma nova exceção a um padrão previamente estabelecido de modo que soldados que retornam da guerra estariam isentos de demonstrações de cortesia ainda o intérprete poderia chegar à noção de que a prática vista sob sua melhor luz levaria à conclusão de que toda uma regra que estipulasse a deferência a toda uma classe ou grupo de indivíduos é em si uma regra equivocada456 450 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 pp 6566 451 The interpreter settles on some general justification for the main elements of the practice identified at the preinterpretive stage DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 66 452 Conservo o termo entre aspas porque Segundo o próprio Dworkin mesmo o estágio préinterpretativo é também interpretativo no sentido de envolver algum tipo de interpretação 453 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 66 454 Reforming stage 455 Grifo meu The interpreter adjusts his sense of what the practice really requires so as better to serve the justification he accepts at the interpretive stage DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 66 456 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 66 122 Aqui uma pausa o leitor mais atento perceberá que ao longo da pesquisa utilizei os conceitos de conceito e concepção A distinção é do próprio Dworkin é por ele explicada a partir dos pressupostos de sua ideia de interpretação construtiva e exemplificada também a partir da ideia de cortesia De forma geral é seguro dizer que a absoluta maioria das pessoas concorda com relação às proposições mais gerais e abstratas sobre a cortesia ainda assim essas mesmas pessoas discordam com relação às especificidades e às subinterpretações dessas proposições abstratas Todos concordam que a cortesia é uma questão de respeito mas haverá desacordos com relação à interpretação correta do que respeito significa As pessoas concordam com relação ao tronco da árvore mas discordam com relação aos galhos No exemplo respeito é o que forma o conceito de cortesia e as diferentes posições adotadas sobre como a ideia de respeito pode deve ser materializada corretamente formam as concepções sobre esse conceito A diferença entre conceito e concepção portanto é um contraste entre os níveis de abstração nos quais a interpretação de uma prática pode ser estudada457 Essa aparente digressão abstrata é exatamente o que torna Dworkin capaz de oferecer sua contraposição à explicação que o positivismo oferece para os desacordos teóricos no Direito O Direito como a cortesia é um conceito não criterial mas interpretativo Na medida em que os juízes reconhecem e assumem uma responsabilidade de dar continuidade à prática da qual fazem parte eles desenvolvem teorias sobre a melhor interpretação de suas responsabilidades sob essa prática Os desacordos teóricos são portanto eles próprios desacordos interpretativos458 Sendo o Direito uma prática interpretativa também sua interpretação terá os três estágios No estágio préinterpretativo contudo não se trata de identificar o que compõe a prática jurídica através de definições compartilhadas sobre definições acerca do que conta como um sistema jurídico sob pena de a explicação ser uma explicação criterial semântica e eo ipso vítima do aguilhão semântico Não é difícil identifica coletivamente as práticas que contam como práticas jurídicas em nossa cultura cortes legislaturas agências administrativas sabese tranquilamente que isso forma um sistema jurídico Contudo a questão sobre quais características específicas esses elementos têm características em virtude das quais elas formam um sistema jurídico é parte do problema interpretativo É 457 The contrast between concept and conception is here a contrast between levels of abstraction at which the interpretation of the practice can be studied DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 71 458 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 87 123 parte do processo controverso e incerto de atribuir sentido ao que encontramos e não um dado da estrutura préinterpretativa459 Nesse sentido o filósofo do Direito deve começar a partir de uma identificação pré interpretativa minimamente incontroversa sobre o caráter da prática jurídica Como o respeito é um conceito da cortesia as concepções sobre a prática partem desse conceito também assim será com relação ao Direito visto que práticas da mesma natureza Assim Dworkin propõe que dado que os governos têm propósitos atingíveis também por meio do monopólio do uso da força é legítimo dizer que o sentido mais fundamental e abstrato da prática jurídica é justificar a coerção do Estado que exsurge de decisões políticas do passado A prática jurídica de uma comunidade é nesse sentido um esquema de direitos e responsabilidades que vai de encontro a esse padrão e é jurídica porque relacionada a essas decisões políticas do passado Essa é para Dworkin uma caracterização préinterpretativa segura porque compatível com um bastante amplo rol de reivindicações e argumentos que contradizem um ao outro com relação a quais direitos e responsabilidades de fato derivam dessas decisões políticas do passado e por tal razão permitem a coerção do Estado É possível explicar a proposta dworkiniana através de um esquema conceitual Conceito de Direito Direitos e responsabilidades que se seguem de decisões políticas do passado e por essa razão autorizam ou mesmo exigem o uso da coerção por parte do Estado Paradigma que exsurge como acordo préinterpretativo O conceito é o tronco da árvore Concepções de Direito Respostas conectadas a três perguntas que surgem a partir do conceito i A suposta relação entre Direito e coerção é justificada Há algum sentido na exigência de que a força pública seja exercida somente de modo a conformarse com direitos e responsabilidades que se derivam de decisões políticas do passado ii Se há qual é esse sentido iii Qual é a leitura adequada dessa derivação de direitos e responsabilidades de decisões políticas do passado ie que noção de consistência com decisões pretéritas melhor explica essa derivação As concepções são os galhos da árvore460 459 It is part of the controversial and uncertain process of assigning meaning to what we find not a given of the preinterpretive structure DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 87 460 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 pp 9294 124 2222 Convencionalismo e pragmatismo Uma vez que o conceito de Direito não é criterial e as concepções de Direito são as respostas a essas perguntas que exsurgem do acordo préinterpretativo acordo sobre o que se pode concordar de forma minimamente incontroversa e inteligível acerca da prática jurídica é natural que haja concepções rivais concepções que sendo o Direito um conceito interpretativo oferecem cada uma à sua maneira suas diferentes interpretações acerca da prática jurídica Dworkin explica três concepções dominantes na Teoria do Direito A primeira concepção por ele explicada é o convencionalismo Vejamos então as respostas convencionalistas às três perguntas decorrentes do conceito de Direito i A suposta relação entre Direito e coerção é justificada Sim dirá o convencionalista que aceita a ideia de Direito e de direitos ii Qual é o sentido o ponto que sustenta os limites que o Direito impõe ao uso da força pelo Estado Para o convencionalismo o motivo pelo qual se exige que a força estatal seja usada somente de modo consistente com as decisões políticas precedentes está na previsibilidade e justiça procedimental que essa limitação fornece461 Finalmente iii que noção de consistência com decisões pretéritas melhor explica essa limitação jurídica quanto à coerção por parte do Estado O convencionalismo oferece uma explicação bastante restrita acerca da forma de consistência que podemos exigir só se pode dizer que um direito ou responsabilidade deriva das decisões políticas do passado se essa derivação for ou puder ser tornada explícita através de métodos ou técnicas convencionalmente aceitas pela profissão jurídica como um todo Para o convencionalismo portanto a moralidade política não exige qualquer respeito pelo passado para além disso de modo que quando se esgota a força da convenção os juízes devem encontrar fundamentos prospectivos para fundamentar suas decisões462 Em síntese portanto segundo o convencionalismo a coerção do Estado é exercível de forma legítima através do respeito aos direitos e responsabilidades que se originam a partir de decisões políticas do passado e esse respeito é observado através das convenções daqueles que compõe a comunidade jurídica assim quando se esgota a convenção esgotamse também os fundamentos jurídicos de modo que na hipótese os juízes decidem com base em 461 The predictability and procedural fairness this constraint supplies 462 Grifos meus e trecho traduzido da seguinte passagem Conventionalism proposes in answer to the third question a sharply restricted account of the form of consistency we should require with past decisions a right or responsibility flows from past decisions only if it is explicit within them or can be made explicit through methods or techniques conventionally accepted by the legal profession as a whole Political morality according to conventionalism requires no further respect for the past so when the force of convention is spent judges must find some wholly forwardlooking ground of decision DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 95 125 seu poder discricionário463 É possível dizer com segurança que o convencionalismo é a forma por meio da qual Dworkin apresenta o positivismo como uma teoria interpretativa sobre o Direito É nas palavras do próprio Dworkin uma versão do positivismo jurídico como uma intepretação da prática contemporânea464 é pois o positivismo adaptado a um conceito interpretativo em suas respostas no estágio pósinterpretativo Naturalmente então para Dworkin o convencionalismo não é uma boa concepção por razões muito similares àquelas por ele adotadas quando de suas críticas ao positivismo enquanto teoria semântica sua incapacidade de explicar a ideia de que na prática jurídica há direitos e responsabilidades jurídicosas que transcendem as convenções de modo que as pessoas têm direito a uma extensão coerente e de princípio das decisões políticas do passado ainda que juízes discordem profundamente com relação ao que isso significa465 o juiz convencionalista não tem qualquer razão para reconhecer essa consistência de princípio na ausência ou no esgotamento de uma convenção Dworkin é claro vai oferecer sua própria concepção buscando fornecer respostas que melhor expliquem a prática jurídica sob sua melhor luz Antes porém vai apresentar uma segunda frequente e insuficiente concepção o pragmatismo uma concepção cética Por quê Porque diante da pergunta A suposta relação entre Direito e coerção é justificada o pragmatista dirá Não E dirá não porque o pragmatismo cético questiona e até mesmo nega que uma comunidade pode garantir qualquer benefício genuíno ao exigir que o processo decisório dos juízes esteja limitado por qualquer exigência de consistência para com decisões políticas tomadas no passado466 A interpretação pragmatista da prática jurídica assim dirá que os juízes tomam e devem tomar467 suas decisões de modo eu elas pareçam ser o melhor para o futuro da comunidade sem que haja qualquer compromisso com o passado como se este fosse valioso em si mesmo O pragmatismo portanto não leva direitos a sério468 porque os considera tão somente como instrumentos que visam a um melhor futuro qualquer que seja este e não os vê com qualquer força ou fundamento que independam dessa 463 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 pp 114150 464 Grifos meus tradução livre A version of legal positivism as itself an interpretation of contemporary practice DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 p 226 465 Grifos meus e tradução livre People are entitled to a coherent and principled extension of past political decisions even when judges profoundly disagree about what this means DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 134 466 It pragmatism denies that a community secures any genuine benefit by requiring that judges adjudicative decisions be checked by any supposed right of litigants to consistency with other political decisions made in the past DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 95 467 Ou seja é uma interpretação ontológica e normativa da prática 468 It pragmatism does not take legal rights seriously DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 160 Contraste com a primeiro obra de Dworkin já aqui referenciada Taking Rights Seriously Levando os Direitos a Sério 126 visão prospectiva469 naturalmente algo que para Dworkin não faz sentido e não dá conta de explicar a verdadeira natureza da prática jurídica ao apresentar uma interpretação de Direito sem direitos470 2223 As respostas da integridade Que seja dito explicitamente o que agora já ficou óbvio Dworkin rejeita peremptoriamente tanto o convencionalismo ie a concepção interpretativa que se deriva do positivismo quanto o pragmatismo Mas então qual é afinal a sua concepção A interpretação que Dworkin oferece acerca da prática jurídica é aquela por ele chamada de law as integrity o Direito como integridade Como o convencionalismo e diferente do pragmatismo o direito como integridade aceita de bom grado a ideia de Direito e direitos471 Ao responder portanto se i A suposta relação entre Direito e coerção é justificada aquele que adota o Direito como integridade como o convencionalista responderá afirmativamente A diferença está na resposta às duas outras perguntas que exsurgem do acordo pré interpretativo ii Qual é o sentido o ponto que sustenta os limites que o Direito impõe ao uso da força pelo Estado Para o Direito como integridade os limites jurídicos não oferecem apenas previsibilidade eou justiça procedimental ou qualquer outra questão meramente instrumental o Direito é o que garante um tipo de igualdade entre cidadãos que torna sua comunidade mais genuína e melhora a justificação moral que sustenta o exercício de seu poder político472 Isso posto então para a concepção de law as integrity iii Que noção de consistência com decisões pretéritas melhor explica essa limitação jurídica quanto à coerção por parte do Estado Direitos e responsabilidades derivam de decisões políticas precedentes e são qua direitos e responsabilidades jurídicos não apenas quando estiverem explícitos nessas 469 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 160 470 Law without rights Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 pp 160164 471 Like conventionalism law as integrity accepts law and legal rights wholeheartedly DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 95 472 A kind of equality among citizens that makes their community more genuine and improves its moral justification for exercising the political power it does DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 96 127 decisões mas também quando deriváveis dos princípios de moralidade política e pessoal que as decisões explícitas pressupõem como suas justificativas473474 Nesse sentido o Direito como integridade nega que proposições jurídicas sejam as descrições factuais de olhar retrospectivos do convencionalismo ou os programas instrumentais prospectivos do pragmatismo jurídico Law as integrity insiste que reivindicações jurídicas são juízos interpretativos e sendo assim combinam elementos retro e prospectivos interpretam a prática jurídica atual como uma narrativa política que se desdobra O Direito como integridade então classifica como inútil a velha questão que pergunta se os juízes descobrem ou inventam Direito e sugere que só compreendemos o raciocínio jurídico ao enxergamos em que medida eles fazem ambas as coisas e nenhuma delas475 Assim à luz das perguntas interpretativas o Direito como integridade vai conceber que as proposições jurídicas são verdadeiras enquanto proposições jurídicas na medida em que se seguirem de princípios de justiça equidade e devido processo a partir dos quais se pode estabelecer a melhor interpretação construtiva476 da prática jurídica da comunidade477 Os direitos e responsabilidades jurídicas derivados das decisões políticas do passado devem sob essa ótica expressar uma concepção coerente de justiça e equidade No mesmo sentido uma vez que oferece uma concepção ao mesmo tempo retro e prospectiva uma concepção na qual por isso o velho dualismo entre criar direito novo e descobrir direito preexistente 473 Grifos meus tradução livre Rights and responsibilities flow from past decisions and so count as legal not just when they are explicit in these decisions but also when they follow from the principles of personal and political morality the explicit decisions presuppose by way of justification DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 96 474 Nesse sentido tornase bastante clara a interpretação de Dworkin também assumida por outros autores no âmbito do direito anglosaxão acerca da doutrina do precedente e sua força vinculante a ideia de que o respeito ao elemento genuinamente vinculante na ratio no stare decisis como tal está na aplicação dos princípios subjacentes à decisão do tribunal que a tiver proferido De acordo com essa interpretação o precedente em relação ao contexto factual do caso que lhe serviu de origem não apenas exibe como serve de suporte a princípios jurídicos que em razão de seu papel no ordenamento podem e devem ter relevância na decisão de casos futuros Os tribunais subsequentes olham para os precedentes no sentido lato de decisões pretéritas e quando da identificação do que constitui a ratio verificam se eles representam princípios suficiente e adequadamente justificatórios quanto à decisão a ser tomada no caso que estiver em questão Cf PERRY Stephen R Judicial obligation Precedent and the Common Law Oxford Journal of Legal Studies Oxford v 07 n 02 jul 1987 pp 215257 Disponível em httpsdoiorg101093ojls72215 Acesso em 21 fev 2019 475 Traduzido livremente da seguinte passagem Law as integrity denies that statements of law are either the backwardlooking factual reports of conventionalism or the forwardlooking instrumental programs of legal pragmatism It insists that legal claims are interpretive judgments and therefore combine backward and forwardlooking elements they interpret contemporary legal practice seen as an unfolding political narrative So law as integrity rejects as unhelpful the ancient question whether judges find or invent law we understand legal reasoning it suggests only by seeing the sense in which they do both and neither DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 225 476 Cf o ponto inicial do item 2221 desta pesquisa 477 The best constructive interpretation of the communitys legal practice DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 225 128 perde sua raison dêtre Dworkin explica a prática judiciária entendida a partir do processo decisório dos juízes em uma analogia com o processo de escrita de um romance em cadeia478 um empreendimento coletivo entre autores que se propõem à escrita conjunta de uma única obra Um processo tal pressupõe naturalmente a obrigação daquele que escreve de manter coerência com os elementos que já fazem parte da obra Assim como os autores envolvidos no romance em cadeia e trazendo a analogia para a esfera jurídica os juízes são igualmente autores e críticos decidindo os casos que a eles são apresentados juízes contribuem para com a tradição que interpretam adicionando a ela novos elementos os juízes subsequentes portanto vão encontrar uma tradição que se renova ao mesmo tempo em que guarda coerência de princípio com o passado Eis em brevíssima síntese law as integrity como uma concepção interpretativa do conceito interpretativo que é o Direito uma concepção que entende o Direito como uma estrutura de princípios coerentes de justiça equidade e devido processo que entende que os juízes devem reforçar e guardar coerência com esses princípios subjacentes à tradição jurídica diante de novos casos que se apresentem de modo que precisamente por uma questão de equidade as novas situações sejam julgadas de acordo com os mesmos padrões O juiz responsável que adota o Direito como integridade como sua concepção interpretativa juiz que na metáfora exemplificativa de Dworkin leva o nome de Hércules479 deve portanto testar sua interpretação acerca de qualquer parte da grande rede de estruturas e decisões políticas de sua comunidade perguntando se ela é capaz de fazer parte de uma teoria coerente que justifique essa rede como um todo480 Aquele que aceita o ideal interpretativo da integridade481 deve então decidir casos difíceis de modo a tentar encontrar a melhor interpretação construtiva da estrutura política e da prática jurídica da comunidade a partir de e em meio a um todo coerente de princípios de moralidade política482 deve fazer dessa estrutura e dessa prática o melhor que elas podem ser483 Dworkin ao batizar seu juiz metafórico é o primeiro a reconhecer que a tarefa é hercúlea Disso não se segue que um juiz de verdade não possa não deva imitar Hércules da 478 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 228232 DWORKIN Ronald A Matter of Principle Cambridge Harvard University Press 1985 pp 146166 479 Razões óbvias Para o hercúleo processo interpretativo de Hércules cf especialmente DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 pp 239266 480 Law as integrity requires a judge to test his interpretation of any part of the great network of political structures and decisions of his community by asking whether it could form part of a coherent theory justifying the network as a whole DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 245 481 O termo friso é do próprio Dworkin The Interpretive ideal of integrity 482 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 255 483 The best they can be 129 limitada forma que está a seu alcance484 em busca da resposta correta no singular Isto é Dworkin ainda em face da discricionariedade sustenta a right answer thesis a tese de que os casos judiciais têm uma resposta correta no sentido de objetiva Do equilíbrio entre as exigências da integridade do necessário ajuste institucional e da interpretação construtiva emerge a resposta correta a que os cidadãos têm direito em juízo485 2224 Interlúdio A evolução do pensamento de Dworkin Antes que se passe às breves considerações sobre a reação do positivismo jurídico à proposta interpretativa de Dworkin e todos os desafios que ela representa à doutrina positivista é interessante que se faça alguns brevíssimos apontamentos com relação à evolução do pensamento de Dworkin ao longo dos anos e o desenvolvimento de sua obra como um todo coerente Nada mais dworkiniano que isso afinal E os apontamentos são brevíssimos porque ter a pretensão de realizar algo mais profundo nesse sentido exigiria toda uma pesquisa dedicada unicamente a esse propósito Dworkin não apenas desafiou o positivismo jurídico desenvolveu uma concepção interpretativa muito própria e original acerca do fenômeno e da prática jurídica Mas não só isso desenvolveu também considerações muito mais amplas considerações sobre ética e moral sobre interpretação sobre liberdade sobre moralidade pessoal e política Falar ao menos que de forma breve sobre o desenvolvimento dessa teoria ao longo dos anos é necessário necessário afinal porque Dworkin é um ouriço e seu pensamento deve ser abordado como um todo Em The Hedgehog and the Fox Isaiah Berlin consagrou um fragmento da obra de Arquíloco poeta grego que diz que a raposa sabe muitas coisas mas o ouriço sabe uma grande coisa Na interpretação de Berlin o aforismo pode ser levado a representar uma das mais profundas diferenças que dividem os seres humanos de um lado aqueles que veem nas coisas a partir de seu modo de enxergar o mundo uma variedade infinita as pluralistas raposas de outro aqueles que relacionam e ligam tudo a um sistema central unitário mais ou menos coerente e articulado os holísticos ouriços486 Sendo talvez o pluralista par 484 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 245 485 Cf nesse sentido DWORKIN Ronald No Right Answer New York University Law Review vol 53 n 01 abr 1978 BIX Brian Law Language and Legal Determinacy Oxford Clarendon Press 2003 pp 77 132 486 BERLIN Isaiah The Hedgehog and the Fox An Essay on Tolstoys View of History Editado por Henry Henry prefaciado por Michael Ignatieff Princeton Princeton University Press 2013 pp 0102 130 excellence487 Berlin vai naturalmente tender a tomar o lado das raposas Dworkin por outro lado no último livro que escreveu em vida quer fazer justiça para ouriços quer assim fazer sustentando que há uma unidade no valor488 Isso significa que há em todas as áreas do valor uma dependência mútua nossas concepções sobre liberdade e igualdade valor e princípio ética e moralidade devem estar unidas em um todo coerente Princípios aparentemente díspares são interpretados não como as muitas coisas que conhecem as raposas mas são enxergados sob uma grande coisa uma concepção fundamental Naturalmente exatamente por ser ampla essa visão será igualmente aplicável com relação ao que aqui nos interessa o Direito A partir da tese da unidade do valor o Direito em Dworkin passa a ser não um sistema à parte mas um ramo da moralidade política moralidade política que é um ramo de uma moralidade pessoal mais geral que por sua vez é um ramo de uma teoria ainda mais ampla sobre o que significa viver bem489 Para Waldron essa versão jurídica do argumento da unidade já havia sido inicialmente articulada em Justice in Robes490 Havendo então uma unidade no valor e portanto uma unidade sistemática entre as esferas jurídica e político moral não há que se falar em um suposto conflito entre Direito e justiça porque igualmente sendo o Direito um ramo da moralidade política não há que se falar em sistema rival de regras que conflita com as exigências da moralidade Dworkin assim abandona a existência de dois sistemas não mais dividindo o conteúdo do Direito em regras e princípios Como bem sintetiza Jeremy Waldron ainda que Dworkin tenha argumentado em toda sua obra que fatos morais fazem parte das condições para que proposições jurídicas sejam verdadeiras ele agora foi ainda mais adiante passando a sustentar que o Direito é como tal um ramo da moralidade política uma visão mais ousada e radical491 487 Cf CHERNISS Joshua HARDY Henry Isaiah Berlin In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivessum2018entriesberlin Acesso em 25 fev 2019 MASON Elinor Value Pluralism In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesspr2018entriesvaluepluralism Acesso em 25 fev 2019 488 This book defends a large and old philosophical thesis the unity of value DWORKIN Ronald Justice for Hedgehogs Cambridge The Belknap Press 2011 p 01 489 DWORKIN Ronald Justice for Hedgehogs Cambridge The Belknap Press 2011 pp 05 400415 490 E é verdade Em 2006 Dworkin falava em tratar o Direito não como separado mas como um departamento da moralidade Grifo meu Not as separate from but as a department of morality DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 pp 3435 491 Although Professor Dworkin argued in all his earlier work that moral facts about rights and justice were among the truth conditions of legal propositions now in Justice for Hedgehogs he argued that law is itself a branch of morality This is a bolder and more radical claim WALDRON Jeremy Jurisprudence for Hedgehogs New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 1345 jul 2013 Disponível em httpsssrncomabstract2290309 131 Como consequência temse que juízos jurídicos não são juízos que envolvem elementos morais são juízos morais Argumentos jurídicos não são também argumentos que têm a ver com a moralidade são argumentos morais Quando um juiz interpreta a Constituição não está apenas a considerar elementos morais a atividade interpretativa desse hipotético juiz é de saída uma questão moral tout court Isso a meu ver em nada invalida as considerações de Dworkin sobre law as integrity não há que se falar em um segundo Dworkin Afinal muito embora tenha articulado sua concepção de Direito em diversas maneiras ao longo dos anos e muito embora tenha escrito sobre uma ampla variedade de assuntos Dworkin não era uma raposa ao desenvolver sua teoria ele um ouriço estava afinal construindo os alicerces de uma visão holística que em seu todo levam a uma teoria da justiça teoria baseada em duas noções fundamentais interpretação e integridade492 23 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O POSITIVISMO JURÍDICO DEPOIS DE RONALD DWORKIN Temos afinal até aqui apresentadas em linhas gerais as duas primeiras vias de que trata esta pesquisa o positivismo em sua versão mais tradicional como articulado por H L A Hart e a partir dos desafios ao positivismo a concepção dworkiniana de law as integrity Isso já autorizaria que se passasse finalmente à grande tese sustentada nestas páginas a de que a teoria de Jeremy Waldron é uma terceira via que exsurge da combinação de elementos dessas duas propostas Antes porém é importante trazer algumas palavras sobre a reação do positivismo ao desafio lançado por Dworkin tanto pela riqueza argumentativa quanto pela demonstração de que mesmo em suas versões mais desenvolvidas e sofisticadas as teorias positivistas com todas as nuances e diferenças que guardam entre si seguem o caminho metodológicoconceitual hartiano para não dizer austiniano 492 Cf POSTEMA Gerald J PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 11 Legal Philosophy in the Twentieth Century The Common Law World Nova York Springer 2011 p 425 132 231 O postscript de The Concept of Law Durante muitos anos Hart teve em mente o projeto de adicionar um capítulo a The Concept of Law Hart queria responder às muitas discussões surgidas do livro defendendo sua posição daqueles que a mal interpretaram refutando críticas infundadas e com igual importância a seus olhos concedendo o ponto a críticas justificadas493 Lamentavelmente Hart veio a falecer antes que pudesse completar sua empreitada em vida especulase que muito em razão do próprio perfeccionismo494 coube então a Penelope A Bulloch e Joseph Raz a edição de uma nova versão de The Concept of Law com o pósescrito de Hart que embora provavelmente viesse a ser polido e aperfeiçoado495 pelo próprio autor i apresenta suas respostas a muitas das críticas de Dworkin e sendo assim ii materializa finalmente aquele que veio a ser um dos mais célebres episódios de toda a história da jurisprudence o debate HartDworkin São as respostas que provavelmente viriam a ser apresentadas por Hart que procuro sintetizar aqui A resposta de Hart começa por rebater as objeções à sua proposta descritiva e parte primeiro de uma reexplicação da teoria hartiana em sua proposta descritiva e seus conceitos e elementos centrais eg regra de reconhecimento validade etc e segundo de uma explicação bastante sintética dos contraargumentos de Dworkin ie princípios Direito como conceito interpretativo Para Hart não é óbvio por que deveria ou mesmo poderia haver qualquer conflito significativo entre empreitadas tão diferentes entre si496 quanto a sua e a de Dworkin Hart diz não estar preocupado com uma teoria jurídica valorativa como são as três concepções apresentadas por Dworkin face ao Direito como conceito interpretativo convencionalismo pragmatismo law as integrity e que uma proposta analíticodescritiva do fenômeno jurídico não se torna impossível ou inútil simplesmente com base nas objeções de Dworkin Para Hart não há nada no projeto de uma teoria descritiva que impeça um observador externo de descrever os meios pelos quais os 493 For many years Hart had it in mind to add a chapter to The Concept of Law He wanted to respond to the many discussions of the book defending his position against those who misconstrued it refuting unfounded criticism andof equal importance in his eyesconceding the force of justified criticism HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p vii 494 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p vii 495 Polished and improved 496 Grifo meu tradução livre It is not obvious why there should be or indeed could be any significant conflict between enterprises so different as my own and Dworkins conceptions of legal theory HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 241 133 participantes veem o Direito a partir de um ponto de vista interno O teórico diz Hart deve compreender até mesmo porque pretende descrever a aceitação dessa prática por parte de seus participantes internos mas disso não se segue que como parece indicar Dworkin uma representação adequada dessa perspectiva interna não possa ser fornecida por uma teoria descritiva497 Com relação ao argumento do aguilhão semântico ie o positivismo e o Direito como um conceito criterial Hart diz que não há nada em sua teoria que indique que sua proposta é uma teoria semântica diz que a tese de que sistemas jurídicos modernos têm uma regra de reconhecimento fixando os critérios de identificação das leis aplicáveis não está baseada na equivocada ideia de que faz parte do significado da palavra Direito que deva haver tal regra em todos os sistemas menos ainda na ainda mais equivocada ideia de que se os critérios para identificação dos fundamentos do Direito não forem incontroversamente fixados Direito significaria coisa diferentes para pessoas diferentes498 Isso seria para Hart confundir o significado de um conceito com os critérios para sua aplicação Do mesmo modo rejeitar a possibilidade de uma abordagem descritiva a partir da ideia de que membros da prática discutem acerca das condições para que uma proposição jurídica seja verdadeira ie desacordos teóricos é segundo Hart confundir o significado de Direito com o significado de proposições jurídicas Proposições tais não são proposições sobre o que Direito qua conceito é mas sobre qual é o direito no sentido das normas específicas de determinado sistema jurídico499 Respondidas essas críticas Hart passa a uma das mais controversas e relevantes passagens do pósescrito passagem que será relevante para os próximos itens desta 497 Trecho traduzido e adaptado livremente a partir da seguinte passagem His Dworkins central objection seems to be that legal theory must take account of an internal perspective on the law which is the viewpoint of an insider or participant in a legal system and no adequate account of this internal perspective can be provided by a descriptive theory whose viewpoint is not that of a participant but that of an external observer But there is in fact nothing in the project of a descriptive jurisprudence as exemplified in my book to preclude a nonparticipant external observer from describing the ways in which participants view the law from such an internal point of view It is true that for this purpose the descriptive legal theorist must understand what it is to adopt the internal point of view and in that limited sense he must be able to put himself in the place of an insider but this is not to accept the law or share or endorse the insiders internal point of view or in any other way to surrender his descriptive stance HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 242 498 My doctrine that developed municipal legal systems contain a rule of recognition specifying the criteria for the identification of the laws which courts have to apply may be mistaken but I nowhere base this doctrine on the mistaken idea that it is part of the meaning of the word law that there should be such a rule of recognition in all legal systems or on the even more mistaken idea that if the criteria for the identification of the grounds of law were not uncontroversially fixed law would mean different things to different people HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 246 499 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 246247 134 pesquisa Ao responder à objeção dworkiniana de que a ideia de regra de reconhecimento implica em um teste de pedigree que se relacionaria tão somente a uma questão acerca de como as leis são adotadas independentemente de seu conteúdo Hart diz que em alguns sistemas jurídicos como é o caso dos Estados Unidos o critério último de validade jurídica pode incorporar explicitamente para além do pedigree princípios de justiça ou valores morais substantivos500 Eis afinal a tese a que o próprio Hart chama de soft positivism501 a tese segundo a qual a regra de reconhecimento pode incorporar como critérios de validade jurídica a conformidade com princípios morais eou valores substantivos502 Com relação ao argumento dos princípios503 Hart diz que muito embora tenha de fato dito muito pouco em sua obra sobre a existência de princípios jurídicos acomodálos à sua teoria ao contrário do que alega Dworkin não representaria qualquer consequência mais grave ao seu desenvolvimento tal como se deu504 especialmente porque Hart discorda da forma através da qual Dworkin ilustrou a diferença entre regras e princípios frisese ainda na década de 1960 Para Hart Dworkin merece todos os créditos por ter iluminado a importância e o papel dos princípios no argumento jurídico mas sua distinção a partir da tese de que regras operam na base do tudo ou nada505 é uma distinção equivocada Hart diz que seu uso da palavra regra não implica nem pretendeu implicar que um sistema jurídico tem somente padrões normativos do tipo identificado por Dworkin506 como sendo uma regra e inclui também aquilo que Hart classificou talvez segundo o próprio de modo infeliz como padrões jurídicos variados507 Além disso diz Hart i não apenas não há nada nos 500 Grifos meus In some systems of law as in the United States the ultimate criteria of legal validity might explicitly incorporate besides pedigree principles of justice or substantive moral values HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 247 501 Posteriormente em suas versões contemporâneas que se derivam exatamente dessa visão de Hart o positivismo soft em sentido amplo veio a ser identificado como positivismo inclusivoincludente Essa doutrina será trabalhada com um pouco mais de vagar no item subsequente 502 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 250254 503 Posição desenvolvida ainda em The Model of Rules que lembremos foi abandonada a partir de Justice in Robes 504 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 259 505 Cf o item 2211 desta pesquisa 506 É a leitura de Scott Shapiro Para o scholar de Yale Dworkin atribuiu a Hart argumentos por ele nunca utilizados Contrary to Dworkins interpretation Hart never embraced the model of rules either explicitly or implicitly SHAPIRO Scott J The HartDworkin Debate A Short Guide for the Perplexed University of Michigan Law School Public Law and Legal Theory Working Paper Series Working Paper n 77 mar 2007 Disponível em httpsssrncomabstract968657 Acesso em 28 fev 2019 507 Much credit is due to Dworkin for having shown and illustrated their importance and their role in legal reasoning and certainly it was a serious mistake on my part not to have stressed their nonconclusive force But 135 princípios que determine que eles não possam ser identificados pelos critérios que Dworkin chama de pedigree ii tampouco a regra de reconhecimento é capaz de fornecer somente esse tipo de critério508 Seja como for foi a partir dos princípios que Dworkin atacou a suposta tese da discricionariedade positivista Se o Direito é constituído por regras uma vez que não haja regra não há Direito não havendo Direito o juiz decide com base em seu poder discricionário Hart contudo não apenas rejeita a objeção de que seu sistema seja um modelo de regras como ilustra Dworkin a discricionariedade judicial por ele apresentada não é predicada nesse modelo Ela está baseada em verdade em uma concepção de Direito baseada em padrões normativos que em razão do caráter eminente e invariavelmente indeterminado que é próprio da linguagem como tal em sua textura aberta509 são incapazes de antecipar todas as questões possíveis todas as hipóteses de incidência e aplicação Nesse sentido a discricionariedade judicial é em Hart inevitável mas não por uma questão de o Direito ter ou não princípios em meio a seus padrões normativos Scott Shapiro sintetiza muito bem a controvérsia da discricionariedade na qual ambos tomam suas posições em razão de suas muito distintas teorias acerca da natureza do Direito para Hart os juízes exercem poder discricionário porque ele considera que o Direito é formado por padrões socialmente designados que não podem antecipar todas suas hipóteses de aplicação para Dworkin os juízes não têm esse poder precisamente porque ele nega a centralidade da orientação social para fins de determinação de existência ou conteúdo de normas jurídicas510 I certainly did not intend in my use of the word rule to claim that legal systems comprise only allornothing or nearconclusive rules I not only drew attention see pp 1303 of this book to what I termed perhaps infelicitously variable legal standards which specify factors to be taken into account and weighed against others but I attempted see pp 1334 to explain why some areas of conduct were suitable for regulation not by such variable standards as due care but rather by near conclusive rules prohibiting or requiring the same specific actions in all but rare cases HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 263 508 A double error first the belief that legal principles cannot be identified by their pedigree and secondly the belief that a rule of recognition can only provide pedigree criteria HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 264 509 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 124135 510 To be sure Hart and Dworkin did disagree about whether judges have strong discretion in hard cases Yet this dispute is a derivative one both sides take their positions on judicial discretion because of their very different theories about the nature of law As we have just seen Hart held that judges must sometimes exercise strong discretion because he takes the law to consist in those standards socially designated as authoritative Dworkin on the other hand believes that judges do not have strong discretion precisely because he denies the centrality of social guidance to determining the existence or content of legal rules SHAPIRO Scott J The HartDworkin Debate A Short Guide for the Perplexed University of Michigan Law School Public Law 136 Em síntese esses são os principais pontos do debate HartDworkin um debate que coloca frente a frente dois modelos diferentes de Direito O Direito deve ser compreendido como composto por padrões socialmente designados como vinculantes Ou é constituído por padrões assim designados também moralmente Os fatores determinantes para Direito contar como Direito são fatos sociais ou envolvem também elementos morais511 Não é sem razão portanto que o debate HartDworkin é tão relevante para a jurisprudence e a teoria jurídica Os particulares mudaram mas a questão básica e sua importância fundamental permanecem a mesma de quarenta anos atrás o Direito é baseado somente em fatos sociais ou fatos morais também determinam sua existência e conteúdo512 Como bem diz Shapiro somente o futuro dirá quem pode reivindicar vitória nesse debate Por agora o que importa é que as críticas de Dworkin dividiram o campo positivista em dois o que um lado aceitou como persuasivo em seus argumentos o outro rejeitou e vice versa513 Entre as heranças do debate HartDworkin está a casa dividida do positivismo514 entre inclusivoincludente e exclusivoexcludente515 232 O positivismo inclusivoincludente O positivismo como vimos até aqui trabalha a partir da noção de que não é necessariamente verdade que o Direito válido será justo que a existência do Direito é and Legal Theory Working Paper Series Working Paper n 77 mar 2007 Disponível em httpsssrncomabstract968657 Acesso em 28 fev 2019 511 Should law be understood to consist in those standards socially designated as authoritative Or is it constituted by those standards morally designated as authoritative Are the ultimate determinants of law social facts alone or moral facts as well SHAPIRO Scott J The HartDworkin Debate A Short Guide for the Perplexed University of Michigan Law School Public Law and Legal Theory Working Paper Series Working Paper n 77 mar 2007 Disponível em httpsssrncomabstract968657 Acesso em 28 fev 2019 512 Tradução livre The particulars have changed but the basic issue and its fundamental importance remains the same today as it did forty years ago Is the law ultimately grounded in social facts alone or do moral facts also determine the existence and content of the law SHAPIRO Scott J The HartDworkin Debate A Short Guide for the Perplexed University of Michigan Law School Public Law and Legal Theory Working Paper Series Working Paper n 77 mar 2007 Disponível em httpsssrncomabstract968657 Acesso em 28 fev 2019 513 It Dworkins argument divided the positivist camp in two What one wing found persuasive in the argument the other rejected out of hand and vice versa POSTEMA Gerald J PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 11 Legal Philosophy in the Twentieth Century The Common Law World Nova York Springer 2011 p 407 514 Positivisms Divided House POSTEMA Gerald J PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 11 Legal Philosophy in the Twentieth Century The Common Law World Nova York Springer 2011 p 407 515 Os termos inclusivo e exclusivo são mais frequentes na doutrina mas alguns autores como é o caso do Prof Thomas Bustamante optam pela variação includenteexcludente 137 diferente de seus eventuais méritos ou deméritos O positivismo então retomando tudo que já foi trabalhado aqui direta e indiretamente é uma tese segundo a qual as relações entre as esferas do Direito e da moral não são necessárias são no máximo relações contingentes Ou seja nenhum positivista nega que há conexões contingentes entre Direito e moral há muitas leis qua dispositivos legais que funcionam como a reafirmação de princípios morais tais como aquelas que proíbem agressão e roubo O ponto é que da mesma forma há igualmente um sem número de exemplos de leis que embora igualmente válidas são indefensáveis de um ponto de vista moral como as leis do apartheid na África do Sul No mesmo sentido o positivismo não terá nenhum problema em admitir que por vezes juízes decidem casos difíceis apelando a princípios de moralidade mas dirá que uma vez que juízes são falíveis essas decisões também podem vir a ser moralmente indefensáveis516 Até aqui o ponto é comum o caminho é compartilhado Há contudo uma controvérsia específica com relação à possibilidade de uma conexão particular entre as esferas do Direito e da moral que divide os positivistas divideos entre i aqueles que aceitam essa relação como possível e até característica de sistemas jurídicos modernos e ii aqueles que a rejeitam por enxergala como sendo inconsistente com a natureza própria do Direito enquanto Direito Essa conexão particular entre as esferas jurídica e da moralidade que divide o campo positivista em dois traduzse na ideia segundo a qual valores e princípios morais substantivos podem contar entre os critérios possíveis a partir dos quais um sistema jurídico pode determinar a existência e o conteúdo daquilo que conta como Direito válido No exemplo de Waluchow expoente do campo positivista que aceita essa conexão é como se a regra de reconhecimento de um sistema contivesse testes ou critérios morais explícitos para asserção de validade à legislação promulgada pelos órgãos competentes Somente o pedigree pode não bastar Aqueles que defendem essa tese ie a tese segundo a qual a regra de reconhecimento pode incorporar critérios morais de validade pertencem ao positivismo inclusivo ou soft positivism campo personificado por autores como David Lyons Jules Coleman 517 o próprio Hart do pósescrito518 e o próprio Wil Waluchow Uma vez explicada a tese a razão do nome tornase autoevidente Impossível trabalhar minuciosamente as visões de todo e cada um desses autores O que deve ficar claro é que segundo o positivismo inclusivo Dworkin tem razão ao alertar à 516 Cf WALUCHOW W J Inclusive Legal Positivism Oxford Oxford University Press 2003 p 81 517 Cf WALUCHOW W J Inclusive Legal Positivism Oxford Oxford University Press 2003 pp 8182 518 Que inaugura não somente o termo soft positivism como principalmente inaugura a própria vertente tal como veio a se desenvolver depois Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 247 138 possibilidade de que a existência e o conteúdo do Direito tenham sim relação com sua justificação moral está contudo errado quanto à sua explicação sobre essa possibilidade O positivismo inclusivo sustenta que a validade jurídica pode depender de critérios morais substantivos não em razão de um processo interpretativo que se engaja na busca de um Direito visto sob sua melhor luz Dworkin mas simplesmente porque é uma possibilidade que sistemas jurídicos modernos reconheçam esses princípios como determinantes acerca da validade jurídica Em termos mais claros o positivismo inclusivo dirá que são as próprias fontes sociais que tornam esses critérios morais relevantes como critérios519 Em suma diz Lenio Streck ao caracterizar o positivismo inclusivo se o Direito é identificado por convenções nada impediria que estas circunstancialmente incorporem ou façam uso de princípios de moral política como critério de validade do Direito Ainda assim não se pode perder de vista que possibilidade que não quer dizer necessidade520 Na mesma linha o célebre jusnaturalista John Finnis apresenta uma boa definição Positivistas inclusivos não gostariam de separar a questão Qual é o direito aplicável a esse caso da questão Qual é de acordo com nosso direito minha responsabilidade como juiz deste caso Se o Direito de um Estado tomado como um todo explícita ou implicitamente autoriza ou exige que os juízes em certos tipos de caso perguntem a si próprios o que a moralidade requer nesse tipo de circunstâncias então os padrãoões morais que respondem à questão ou ao menos as conclusões morais aplicáveis em tais circunstâncias têm além de autoridade moral autoridade jurídica Os padrões morais contam nessa medida e por essa razão como parte do Direito São como alguns dizem incluídos ou incorporados ao Direito da comunidade521 Da acertadíssima lição de Finnis contudo não se pode perder de vista o que disse antes e pela importância que tem o ponto repito que essa incorporação ie a validade jurídica dependente de considerações morais para o positivismo inclusivo é uma questão contingencial critérios morais só afetam a validade jurídica nas eventuais hipóteses em que 519 Cf GREEN Leslie Legal Positivism In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesspr2018entrieslegalpositivism 520 Grifos meus STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 p 169 521 Tradução livre Inclusive legal positivists are unwilling to sever the question What is the law governing this case from the question What according to our law is my duty as judge in this case If a states law taken as a whole explicitly or implicitly authorizes or requires the judges in certain kinds of case to ask themselves what morality requires in circumstances of this kind then the moral standards answering that questionor at least the moral conclusions applicable in such circumstanceshave legal as well as moral authority The moral standards are to that extent and for that reason to be counted as part of our law They are as some say included within or incorporated into the communitys law FINNIS John Natural Law The Classical Tradition In COLEMAN Jules L HIMMA Kenneth E SHAPIRO Scott J The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law Oxford Oxford University Press 2004 p 11 139 a eventual regra de reconhecimento assim determine em determinado sistema jurídico Em outras palavras a relevância da moralidade é determinada em qualquer sistema jurídico pelo conteúdo contingente das regras de reconhecimento daquela sociedade522 O positivista inclusivo portanto discorda de Dworkin ao subscrever a tese do pedigree mas ao menos em alguma medida em maior ou menor grau concorda parcialmente com algumas das objeções dworkinianas com relação à tese das fontes523524 O positivismo inclusivo então em síntese permite que critérios morais figurem entre os testes de validade jurídica desde que a comunidade jurídica em questão tenha adotado esses critérios convencionalmente afinal seja como for o positivista inclusivo ainda é um positivista e entende que critérios jurídicos sempre serão uma questão de convenções525 É possível discordar com relação ao caráter da convenção que confere autoridade aos critérios de validade mas todo positivista vai concordar que esses critérios tem autoridade em virtude de uma convenção social526 233 O positivismo exclusivoexcludente Todo positivista portanto inclusivosoft ou exclusivohard vai concordar que em última instância fatos jurídicos são determinados por fatos sociais O inclusivista porém dirá que esses fatos jurídicos podem envolver critérios morais em sua identificação se as regras de reconhecimento assim permitirem o positivista exclusivo por sua vez dirá que fatos jurídicos são determinados por fatos sociais ponto Uma regra de reconhecimento nunca vai dispor de testes de legalidade que condicionam a validade do Direito à sua conformação a determinados eventuais critérios morais527 Parêntesis não nos esqueçamos do alerta de Waluchow Positivista algum exclusivista ou inclusivista negará que determinadas normas 522 Tradução livre da seguinte passagem In other words the relevance of morality is determined in any legal system by the contingent content of that societys rules of recognition MARMOR Andrei Exclusive Legal Positivism In COLEMAN Jules L HIMMA Kenneth E SHAPIRO Scott J The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law Oxford Oxford University Press 2004 p 105 523 Cf MARMOR Andrei Exclusive Legal Positivism In COLEMAN Jules L HIMMA Kenneth E SHAPIRO Scott J The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law Oxford Oxford University Press 2004 p 115 524 Para Dworkin o positivismo ao se tornar inclusivo já não é mais positivismo Para um debate DworkinColemanRaz cf Thirty Years On em Justice in Robes DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 pp 187222 525 Cf COLEMAN Jules L The Practice of Principle In Defence of a Pragmatist Approach to Legal Theory Oxford Oxford University Press 2003 pp 99100 526 HIMMA Kenneth E Inclusive Legal Positivism Cf MARMOR Andrei Exclusive Legal Positivism In COLEMAN Jules L HIMMA Kenneth E SHAPIRO Scott J The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law Oxford Oxford University Press 2004 p 130 527 Cf SHAPIRO Scott J Legality Cambridge The Belknap Press 2011 p 270 140 jurídicas façam referência a padrões morais ou necessariamente discordará que por muitas vezes juízes empregam argumentos morais em meio à argumentação jurídica O ponto é que ao passo que o positivista inclusivo aceita que a regra de reconhecimento incorpore critérios morais de validade o exclusivo dirá que muito embora haja leis em sentido lato cujo conteúdo envolve conceitos morais essas leis são leis válidas em razão de seu pedigree são leis porque por exemplo foram promulgadas por uma legislatura decididas por meio de precedente judicial ou inauguradas por decisões administrativas Os positivistas exclusivos portanto não negam a existência óbvia de referências a conceitos morais no Direito negam em outras palavras que fatos morais possam ser responsáveis por sua existência ou conteúdo528 Padrões morais portanto ainda que presentes nos textos legislativos ou na argumentação jurídica não fazem parte dos critérios de validade jurídica e enquanto padrões sequer são jurídicos se carentes de conformidade com as fontes sociais da comunidade529 Como dito anteriormente Postema tem razão ao traçar a divisão no campo positivista de volta ao debate HartDworkin Não apenas i a primeira formulação do positivismo soft foi desenvolvida pelo próprio Hart no pósescrito ii cada uma das vertentes positivistas responde de uma forma ou outra cada uma à sua maneira aos desafios lançados pelo general attack de Dworkin ao positivismo Nesse sentido então Scott Shapiro ele próprio um representante do positivismo exclusivo ao lado de nomes como por exemplo Joseph Raz e Andrei Marmor explica os diferentes positivismos e suas reações a Dworkin de forma magistral À objeção dworkiniana de que o positivismo leva a um convencionalismo isto é uma concepção segundo a qual o Direito termina quando se esgota a convenção de modo que o juiz acaba por decidir hard cases com discricionariedade o positivista inclusivo responde dizendo que a objeção é inadequada De acordo com a tese inclusivista em linhas gerais casos difíceis podem ter respostas corretas desde que a regra de reconhecimento exija a aplicação de normais morais quando as normas primárias de pedigree esgotamse530 528 Exclusive positivists claim that these rules are law because they have social pedigrees for example they have been passed by a legislature decided by judicial precedent or enacted by administrative rulings They deny in other words that moral facts can be responsible for their existence or content SHAPIRO Scott J Legality Cambridge The Belknap Press 2011 pp 271272 529 FINNIS John Natural Law The Classical Tradition In COLEMAN Jules L HIMMA Kenneth E SHAPIRO Scott J The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law Oxford Oxford University Press 2004 p 12 530 Grifos meus tradução livre Hard cases might have right answers on this view provided that the secondary rule of recognition requires the application of moral norms when the pedigreed primary norms run out SHAPIRO Scott J Legality Cambridge The Belknap Press 2011 p 273 141 Fatos morais então determinam o Direito porque os fatos sociais em última instância determinam que esses fatos morais desempenhem esse papel531 Agora se o inclusivismo responde à objeção dworkiniana dizendo que ela não se aplica o positivista exclusivo dirá que sim o Direito válido é determinado por fatos sociais e apenas fatos sociais sendo assim uma vez que esses fatos precisamente porque sociais apenas não podem responder de antemão a todos os casos possíveis o Direito qua sistema terá sim muitas lacunas e inconsistências532 Disso não se segue contudo dirá o positivista exclusivo que isso por si só obrigue que se dê razão a Dworkin em sua proposta interpretativista Afinal mesmo quando se exige que juízes recorram à esfera da moralidade quando da resolução de hard cases o positivista exclusivista dirá simplesmente que os juízes estão respondendo à obrigação que têm de aplicar padrões extrajurídicos quando as normas jurídicas esgotamse533 Por fim o mesmo Shapiro apresenta três conclusões interessantes a meu ver uma delas convida algumas objeções ao passo que concordo integralmente com as outras duas Primeiro Shapiro diz que ambos os campos positivistas respondem aos desafios de Dworkin penso que a questão exige ainda maior discussão à qual voltarei quando da discussão das considerações de Jeremy Waldron acerca do argumento do aguilhão semântico trazendo inclusive os pontos do próprio Shapiro534 Segundo Shapiro embora acabe por tomar ele próprio o lado do positivismo exclusivo diz que é possível discutir qual das duas respostas positivistas é superior Tem razão o positivismo inclusivo ao permitir que o Direito dependa também de fatos morais desde que estes figurem entre os fatos sociais Ou ao contrário a razão estaria com os positivistas exclusivos que negam que o Direito possa ser determinado por fatos morais sob qualquer circunstância535 De fato há sólidos argumentos possíveis sustentando cada um dos dois lados basta ver a força intelectual de teóricos que subscrevem a cada uma dessas teorias Terceiro Shapiro diz que muitas vezes o senso comum reforça uma ideia de que filósofos jurídicos preocupamse meramente com uma questão de rotulação a teoria jurídica 531 Moral facts determine the law because social facts ultimately determine that they play such a role SHAPIRO Scott J Legality Cambridge The Belknap Press 2011 p 273 532 Many gaps and inconsistencies 533 Grifos meus tradução livre For even when judges are required to look to morality to resolve hard cases exclusive legal positivists simply say that judges are responding to their obligation to apply extralegal standards when the legal norms run out SHAPIRO Scott J Legality Cambridge The Belknap Press 2011 p 273 534 Both the inclusive and exclusive legal positivist therefore can respond to Dworkins challenge SHAPIRO Scott J Legality Cambridge The Belknap Press 2011 p 273 535 Is the inclusive legal positivist right in allowing the law to depend on moral facts as long as it ultimately rests on social facts Or is the exclusive positivist correct in denying that the law may be determined by moral facts under any circumstances SHAPIRO Scott J Legality Cambridge The Belknap Press 2011 p 273 142 resumese à atribuição ou não do nome Direito enquanto rótulo a algum objeto Embora argumente que problemas desse tipo não são o interesse primário da filosofia do Direito Shapiro confessa que o debate inclusivismoexclusivismo é essencialmente536 uma disputa desse tipo O ponto de desacordo afinal está em saber se uma norma que os juízes têm a obrigação de aplicar e não está no pedigree é ainda assim uma norma jurídica Tanto o positivista exclusivista quanto o positivista inclusivista em outras palavras concorda que os juízes devem aplicar normas morais quando se esgotam os padrões do pedigree Eles apenas discordam quanto a como descrever o que esses juízes estão fazendo para o positivista inclusivista os juízes estão aplicando normas jurídicas para o positivista exclusivista eles estão criando normas jurídicas Nesse sentido o resultado imediato desse debate não afeta o que os juízes devem fazer diz respeito apenas a como descrever o que eles estão efetivamente fazendo537 A conclusão de Shapiro é bastante conclusiva com o perdão da redundância e além disso muito importante para os propósitos desta análise Retomo um ponto específico da passagem para explicar Shapiro diz que o resultado imediato desse debate entre positivismo inclusivo e positivismo exclusivo não afeta o que os juízes devem fazer diz respeito apenas a como descrever o que eles isto é os juízes estão efetivamente fazendo Shapiro é verdade diz acertadamente que ainda que surja como uma disputa semântica as eventuais considerações em favor de um lado ou outro acabam sendo as mesmas razões em favor de uma ou outra abordagem normativa acerca da prática jurídica538 Seja como for o que fica é o positivista modernocontemporâneo qualquer que seja a posição por ele tomada no debate interno tem como preocupação fundamental a proposta de descrever o Direito Seja exclusivo ou inclusivo hard ou soft o positivismo jurídico dá continuidade à metodologia de Hart que por sua vez ainda que tenha rejeitado as definições fundamentais deu continuidade à proposta metodológica de John Austin O positivismo portanto ainda que apresente uma série de vertentes e versões próprias ainda que enseje debates teoréticos interessantes e até divertidos539 como diz Shapiro é uma proposta eminente e fundamentalmente analítica Para Dworkin e isso é inegável quem quer que tenha razão 536 Essentially 537 Grifos meus tradução livre The point of contention after all is whether it is proper to call a nonpedigreed norm that judges are legally bound to apply a legal norm Both the exclusive and inclusive legal positivist in other words agree that judges are bound to apply moral norms when the pedigree standards have run out They just disagree about how to describe what they are doing for the inclusive legal positivist judges are applying legal norms for the exclusive legal positivist they are creating legal norms In this regard the immediate outcome of this debate does not affect what judges should do it only concerns how to describe what they are doing SHAPIRO Scott J Legality Cambridge The Belknap Press 2011 p 274 538 Cf SHAPIRO Scott J Legality Cambridge The Belknap Press 2011 p 274 539 Fun 143 no debate a metodologia analítica enquanto proposta de em maior ou menor grau uma sociologia descritiva hartiana é uma proposta insuficiente Também o é para Jeremy Waldron e é a isso que finalmente passo agora Antes porém mais uma breve conclusão parcial para que os principais pontos fundamentais estejam mínima e devidamente controvertidos 234 Conclusão parcial Ao longo do primeiro capítulo vimos o desenvolvimento do positivismo jurídico antes mesmo que levasse o nome de positivismo no contexto anglosaxão Com Thomas Hobbes e Jeremy Bentham ainda que com diferenças muito claras o positivismo jurídico surge como uma teoria normativa política em favor de postulados filosóficopolíticos que levam a conclusões deles derivados no âmbito do Direito Tanto Hobbes quanto Bentham desenvolveram avant la lettre concepções positivistas acerca do fenômeno jurídico que exatamente porque baseadas em pressupostos eminentemente normativos levavam a propostas igualmente normativas É com Bentham porém que começa a aparecer de forma mais clara do que em Hobbes aquilo que marca o positivismo em todas as suas vertentes desde as mais clássicas às mais contemporâneas a distinção entre o Direito como ele é e como ele deveria ser O positivismo então ontem e hoje passa por uma distinção muito clara entre fato e valor entre as esferas do is e do ought Nesse sentido e exatamente com a dicotomia fatovalor como alicerce Austin discípulo de Bentham ainda no séc xix inaugura afinal aquela que viria ser a abordagem dominante em praticamente toda doutrina positivista a busca por uma teoria analítica do Direito Muito embora também tivesse uma definição analítica do ponto de vista ontológico acerca do Direito Bentham desenvolveu todo um corpo teórico normativo com relação ao Direito na Inglaterra Austin por outro lado tomou como verdadeira a definição benthamiana acerca do que o Direito efetivamente era e com isso em mente preocupouse em diferenciar os comandos jurídicos de outros tipos de comandos A pretensão normativa foi senão completamente quase totalmente deixada de lado Austin com sua analytical jurisprudence foi o teórico que serviu de paradigma ao Direito anglosaxão durante muitos anos Finalmente no século xx veio H L A Hart e seu The Concept of Law que pretendia justamente elaborar um conceito de Direito reformulando as definições oitocentistas de Austin Hart assim inaugura uma série de 144 subconceitos que figuram até hoje nas discussões jurídicas no contexto anglosaxão conceitos como regras primárias regras secundárias regra de reconhecimento A ideia de regra além de importante é elucidativa porque não é por acaso denota a influência admitida e expressa sobre Hart da filosofia da linguagem oxfordiana Homem de seu meio então Hart vai seguir também exatamente essa proposta analítica de modo que enquanto rejeita as definições de Austin segue a proposta teórica de uma analytical jurisprudence a que Hart chama de sociologia descritiva Hart então entende que o Direito não necessariamente satisfaz critérios morais e os critérios de validade jurídica estão em uma regra social a que Hart chama de regra de reconhecimento uma regra sobre regras uma metaregra a partir da qual as demais regras do sistema jurídico são derivadas Isso inaugura a grande tese positivista segundo a qual os critérios de validade do Direito emanam de fontes sociais Ronald Dworkin exaluno de Hart discorda completamente da análise positivista seja no plano metodológico seja naquilo que Dworkin entende como suas consequências práticas Para Dworkin em suas primeiras críticas uma concepção positivista leva logicamente a uma concepção fechada na qual o Direito é um sistema de e composto apenas por regras um sistema que é incapaz de levar em conta a existência de princípios jurídicos padrões normativos igualmente jurídicos que operam de forma bastante distinta dessas regras que os positivistas identificam no sistema por eles descrito Dworkin não parou por aí ao longo de sua carreira acadêmica refinou o argumento e desenvolveu novas objeções Já na década de 1980 passados vinte anos de seu primeiro ataque ao positivismo de Hart Dworkin passou a tratar o positivismo como uma teoria semântica uma teoria incapaz de dar conta do Direito adequadamente já que o Direito ao contrário do que dá a entender o positivismo não é um conceito criterial mas um conceito interpretativo Assim Dworkin entende que o positivismo sendo o Direito um fenômeno interpretativo leva a uma abordagem convencionalista da prática jurídica que condiciona sua existência enquanto prática jurídica a convenções sociais e sendo essa uma explicação insuficiente analítica e normativamente Dworkin desenvolve sua própria concepção Para Dworkin a melhor interpretação da prática jurídica é o Direito como integridade que propõe a melhor interpretação construtiva do Direito Em síntese a proposta de dworkiniana de law as integrity é que o Direito deve ser aquilo que ele já é interpretado sob sua melhor luz540 540 Essa fantástica definição é do Prof Dr André Coelho da Universidade Federal do Rio de Janeiro e é por ele utilizada em suas palestras Registro a fonte e o agradecimento 145 Dworkin é um filósofo cuja teoria ampla abrangente desenvolveuse ao longo de muitos anos Mais tarde já ao final de sua carreira Dworkin abandonou a ideia de regras e princípios de uma conexão entre Direito e moral e passou a trabalhar com a ideia à luz de sua proposta holística de uma unidade do valor de o Direito como um ramo da moralidade política Seja como for com relação ao debate no âmbito da jurisprudence o desafio de Dworkin ao positivismo jurídico permanecia a explicação analítica do Direito baseada nas fontes sociais não explicava a prática e a argumentação jurídica e seu inevitável engajamento com premissas explicações razões justificações de caráter moral E o desafio dworkiniano certo ou errado foi suficientemente paradigmático exigiu uma resposta póstuma é verdade de Hart que dispôs que i ambos tinham propostas diferentes e nãoexcludentes com relação ao Direito e principalmente ii que a ideia de regra de reconhecimento não exclui necessariamente que os critérios de validade envolvam também critérios morais O debate HartDworkin assim dividiu o campo positivista em dois entre os positivistas inclusivistas que concordam em maior ou menor grau com a tese de Hart no pósescrito e os positivistas exclusivistas que entendem que a validade do Direito está assentada somente em fatos sociais Com todas suas nuances todas suas diferenças o fato é que o positivismo desde Austin é uma proposta analítica acerca do Direito pretende oferecer um conceito explicativo acerca do que é is o Direito Dworkin rejeita a proposta positivista em todos os seus níveis Eis que surge em meio a esse debate aquilo que procuro apresentar como uma terceira via a proposta teórica de Jeremy Waldron 146 3 JEREMY WALDRON E A DEMOCRATIC JURISPRUDENCE Eu estou interessado em algumas características específicas do Direito em uma democracia A abordagem puramente descritiva está equivocada Uma Teoria do Direito democrática será inevitavelmente uma teoria que pressupõe determinados valores e em minha visão em nada perde nesse sentido541 Jeremy Waldron Jeremy Waldron tem figurado já há muito tempo entre os mais astutos filósofos do Direito542 Ronald Dworkin Jeremy Waldron é indubitavelmente um dos mais influentes pensadores na teoria jurídica contemporânea Com escritos substanciais cujas áreas abordadas vão desde a Teoria do Direito per se passando pelo constitucionalismo o direito internacional e o rule of law a questões mais amplas em moralidade e filosofia política como o liberalismo e o conceito de dignidade humana sua obra tem a meu juízo elementos suficientes a ponto de i permitir que sua proposta teorética acerca do Direito seja organizada de modo sistemático e sobretudo ii classificalo como uma autêntica terceira via entre positivismos e law as integrity Não estará completamente enganado aquele que ao menos à primeira vista tender a associar Waldron e sua obra ao positivismo jurídico a associação não é por acaso A influência hobbesiana sobre a obra de Waldron não é apenas inegável é expressa Não só isso foi ele quem articulou e definiu talvez da forma mais clara já publicada aquilo que pode ser chamado de positivismo normativo vertente sobre a qual falo no item subsequente exatamente a partir do texto de Waldron demonstrando e afirmando uma forte afinidade com a posição expressada através da locução543 Como o próprio nome já indica tratase de uma 541 I am interested in some distinctive features of law in a democracy The purely descriptive approach is mistaken A democratic jurisprudence is bound to be a valueladen jurisprudence and in my view none the worse for that WALDRON Jeremy Can There Be a Democratic Jurisprudence Emory Law Journal vol 58 n 3 2009 pp 675712 542 Jeremy Waldron has long been among the most astute legal philosophers WALDRON Jeremy Did Dworkin Ever Answer the Crits In HERSHOVITZ Scott ed Exploring Laws Empire The Jurisprudence of Ronald Dworkin Oxford Oxford University Press 2012 p 298 543 Cf WALDRON Jeremy Normative or Ethical Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 pp 410434 147 variação de cunho normativo do positivismo jurídico que em vez de tentar descrever o fenômeno jurídico a partir das teses tipicamente positivistas pretende prescrever em maior ou menor grau que o Direito seja estruturado a partir de uma ideia baseada na tese das fontes e na tese da separabilidade conceitual entre Direito e moral Não é sem razão portanto que autores importantes sobretudo no contexto latinoamericano classifiquem Waldron como um positivista Roberto Gargarella e José Luis Martí por exemplo em sua introdução a Derecho y desacuerdos tradução para o espanhol de Law and Disagreement magnum opus de Waldron afirmam expressamente que a teoria de Waldron encaixase em um rótulo positivista ainda que normativo544 No Brasil em outro exemplo Georges Abboud inclui Waldron no rol de positivistas inclusivistas545 Como dito não é sem razão de fato Waldron escreveu sobre aquilo a que ele próprio chamou de positivismo normativo e quase que até diretamente assumiu a própria filiação teorética à corrente O que pretendo sustentar ao longo deste capítulo e antecipo desde já baseado em escritos posteriores do próprio Jeremy Waldron é que o desenvolvimento teórico da obra waldroniana ao longo dos anos é suficiente para classificalo como um autor que foi além do positivismo seja ele conceitual ou normativo De todo modo comecemos a análise pelo positivismo normativo ou ético conforme apresentado pelo próprio autor 31 WALDRON E O POSITIVISMO NORMATIVO Logo ao início de seu texto publicado em coletânea que editada por Jules Coleman reúne ensaios que de uma forma ou outra gravitam em torno do pósescrito de Hart a The Concept of Law Waldron faz menção ao fato já articulado ao longo desta pesquisa própria de que o positivismo é frequentemente tomado por uma tese puramente conceitual isto é o positivismo sustenta que conceitualmente não há uma relação necessária entre Direito e moralidade entre os fundamentos do juízo jurídico e do juízo moral tese da separabilidade O que Waldron diz a partir disso é que é possível articular o positivismo como uma tese normativa acerca do Direito de forma a sustentar que a separabilidade entre Direito e moral e para o ponto de Waldron ainda mais precisamente a separabilidade 544 Cf GARGARELLA Roberto MARTÍ José Luis Estudio Preliminar La Filosofía del Derecho de Jeremy Waldron Convivir entre Desacuerdos In WALDRON Jeremy Derecho y Desacuerdos Tradução de José Luis Martí e Águeda Quiroga com estudo preliminar de Roberto Gargarella e José Luis Martí Madrid Marcial Pons 2005 pp xlixliii 545 Cf ABBOUD Georges Processo Constitucional Brasileiro 2 ed São Paulo Revista dos Tribunais 2018 pp 107108 148 entre juízos jurídicoslegais e juízos morais é algo bom positivo talvez até indispensável de um ponto de vista moral social ou político e certamente algo a ser valorizado e encorajado546 Essa é portanto a tese a que Waldron chama de positivismo normativo Waldron é verdade já em seu título abre a possibilidade de que a tese seja chamada não de positivismo normativo mas de positivismo ético é o nome que prefere e adota por exemplo Tom Campbell autor expressamente filiado à corrente normativa ética do positivismo jurídico Para Campbell o termo ético seria superior de modo a evitar possíveis confusões com aquilo que parte da doutrina chama de positivismo normativista ie uma versão que conceitualmente isto é sem um cunho que se pretende normativo identifica e relaciona o Direito a uma ideia de normas eg Hans Kelsen principalmente e o próprio Hart Waldron diz preferir ainda assim o termo normativo porque entende que ético remete a padrões normativos pessoais individuais em oposição a padrões normativos que dizem respeito à avaliação de instituições que é precisamente a ideia por trás de sua posição positivistanormativa547 Assim como Waldron preocupouse em fazer portanto faço igualmente questão de deixar claro Positivismo normativista O Direito é um conjunto de normas Positivismo normativoético O Direito é um conjunto de normas Positivismo normativoético Juízos jurídicos devem ser diferenciados de juízos morais Nesse sentido portanto o positivismo normativo é caracterizado como uma proposta que prescreve algum tipo de uma tese da separabilidade Como o próprio Waldron levanta no ensaio e como procurei mostrar ao longo dos capítulos antecedentes é em alguma medida a proposta positivista original clássica de Hobbes e Bentham548 não uma análise puramente conceitual das esferas jurídica e moral mas uma preocupação normativa com as condições necessárias para coordenação resolução de conflitos e para a estabilidade geral das 546 Perhaps even indispensable from a moral social or political point of view and certainly something to be valued and encouraged WALDRON Jeremy Normative or Ethical Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 p 410 547 Posição que como já disse sustentarei ter sido senão abandonada transcendida por Waldron ao longo de sua obra 548 Esse é também o ponto de Gerald Postema talvez ele próprio em alguma medida um positivista normativo no sentido de que fala Waldron Cf POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 pp 328336 149 expectativas de convívio entre as pessoas549 Suas concepções positivistas então tinham como pressupostos e eram formadas por interesses normativopolíticos Poderseia argumentar é verdade e é o que faz Jules Coleman por exemplo550 que uma versão que se pretende normativa do positivismo jurídico depende necessariamente do positivismo enquanto tese conceitual551 Nesse sentido Waldron desenvolve seu ponto exatamente a partir dos positivismos conceitualis dizendo que há um espaço lógico entre afirmar i que o Direito não necessariamente implica moralidade e ii que o Direito necessariamente não implica moralidade Como já vimos é a tese do positivismo inclusivo que determinados sistemas jurídicos podem incluir critérios morais em sua regra de reconhecimento e com base no próprio Coleman Waldron diz que a versão do positivismo que não proíbe essa possibilidade em termos conceituais pode ser igualmente chamada de positivismo negativo552 Nesse espaço lógico entraria o positivismo normativo se o positivismo negativo deixa em aberto a possibilidade de inclusão de critérios morais entre os critérios jurídicos as pretensões normativas do positivismo ético condenam essa possibilidade inclusiva que o positivismo negativo autoriza Nos termos de Waldron portanto é possível dizer que o positivismo normativo dá razão ao conceito do positivismo inclusivo concordando que não é impossível ou conceitualmente incoerente pressupor a existência de sistemas jurídicos que incluem critérios morais na regra de reconhecimento mas prescreve algum tipo de versão mais próxima do positivismo exclusivo no sentido de dar um caráter normativo a uma tese forte da separabilidade de cunho obviamente mais exclusivista553554 549 In their respective versions of the separation thesis Hobbes and Bentham showed no particular interest in the analysis of pure conceptual differences between law and morality Instead they were interested in the conditions necessary for coordination for conflict resolution and for the general stability of expectations in peoples dealings with one another Those were the normative interests that informed and shaped their positivist account of the nature and function of law WALDRON Jeremy Normative or Ethical Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 p 411 550 COLEMAN Jules L Markets Morals and the Law Cambridge Cambridge University Press 1988 p 11 551 O próprio Waldron reconhece o ponto em alguma medida ao dizer que uma concepção positivista de Direito é comum a ambos tipos de positivismo descritivo e normativo Repito meu ponto não pretende afirmar uma rejeição completa da parte de Waldron ao positivismo enquanto concepção conceitual mas uma transcendência gradual em relação a uma posição meramente positivista Cf WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 166 552 COLEMAN Jules L Markets Morals and the Law Cambridge Cambridge University Press 1988 p 07 WALDRON Jeremy Normative or Ethical Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 p 414 553 Trecho baseado na seguinte passagem Another way of putting this is that what I am calling normative positivism assumes what Coleman calls negative positivism but prescribes something like exclusive positivism WALDRON Jeremy Normative or Ethical Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 p 414 150 Também seria possível contraargumentar e Waldron toma Coleman novamente como exemplo da possível posição555 que a adoção de um positivismo normativo ie conferir um caráter normativo a uma concepção positivista de Direito seria atentatório à posição metodológica tradicionalmente positivista seria afinal misturar a moralidade no sentido de dever ser com o conceito de Direito que para o positivista está na esfera daquilo que é Nesse sentido a incorporação de uma abordagem normativa à teoria jurídica ameaçaria é o que diz a posição representada por Coleman a possibilidade inaugurada pelo positivismo analítico de falar conceitualmente sobre o Direito ie a possibilidade de dizer o que é o Direito é sem emitir juízos morais sobre o conceito556 Waldron então questiona será que é negativo o fato de talvez com isso não mais podermos distinguir assim tão facilmente o positivismo normativo de posições que poderiam ser desenvolvidas por teorias modernas do direito natural O próprio Waldron responde e taxativamente Não Para o autor a dicotomia positivismojusnaturalismo é tão ultrapassada que a hipótese de seu desaparecimento é não uma perda mas no máximo uma interessante consequência557 da adoção de um positivismo normativo Se a dicotomia entre positivismo e direito natural for janela afora que seja558 32 WALDRON E DWORKIN ACORDO A PARTIR DOS DESACORDOS Waldron portanto identificase com uma abordagem normativa do positivismo jurídico Em sua própria definição articulada indiretamente em Law and Disagreement e diretamente em seu ensaio presente no Harts Postscript essa abordagem i assume uma concepção conceitualmente inclusivista dando razão a quem diz que certos sistemas jurídicos podem incluir critérios morais entre seus critérios de juridicidade mas ao mesmo tempo ii prescreve uma concepção normativamente exclusivista dizendo que há boas razões políticas sociais morais em favor de uma separação entre juízos morais e juízos jurídicoslegais É à 554 Talvez seja essa a razão pela qual Georges Abboud classifica Waldron como um inclusivista interpretação da qual embora a respeite discordo Discordo por razões que ficarão melhor expostas no item 32 quando abordo a relação de Waldron para com o argumento dworkiniano do aguilhão semântico 555 COLEMAN Jules L Markets Morals and the Law Cambridge Cambridge University Press 1988 p 11 556 The distinctively positivist position that it must be possible to say what the law is without making moral judgments WALDRON Jeremy Normative or Ethical Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 p 416 557 Interesting consequence 558 If the dichotomy between positivism and natural law goes out the window so be it WALDRON Jeremy Normative or Ethical Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 p 416 151 la Bentham e Hobbes a posição segundo a qual seria bom para o Direito ser como o positivista descritivo pensa que ele é Nesse sentido portanto o positivismo normativo é ele próprio uma posição moral porque identifica a contaminação de uma decisão judicial por juízos morais como uma desvantagem moral sustenta que perdemos algo de valor quando isso ocorre559 Aqui isto é onde desenvolve o conceito de positivismo normativo em Law and Disagreement embora demonstre grande afinidade com a posição Waldron não se define expressamente como um positivista normativo diz somente560 que o positivismo normativo é de longe a mais interessante forma de positivismo jurídico561 Mas não é só isso em meio a esse ponto Waldron traz ainda um outro aspecto de sua posição que começa a iluminar outros importantes pontos de sua teoria pontos de convergência não mais com o positivismo mas com Ronald Dworkin Waldron diz que considera difícil que uma definição positivista acerca do conceito de Direito possa ser sustentada sem que se recorra eventualmente a uma tese normativa562 Waldron é coerente com as próprias alegações para ele o positivismo exclusivo acaba sendo com muita frequência e ainda que não pretenda uma tese normativa Tanto assim o é que a leitura de Waldron da obra de Joseph Raz o mais proeminente exclusivista é a de que o israelense é em verdade um positivista normativo563 Nesse sentido Waldron parece subscrever a ideia dworkiniana que trata o Direito como um conceito interpretativo na medida em que o positivismo acaba sendo também ele uma abordagem interpretativa acerca do Direito prescrevendo uma abordagem teoréticonormativa da prática jurídica E o que sustento é exatamente isso não se trata de uma aparente concessão ao argumento de Dworkin mas apenas mais um reflexo da profunda influência dworkiniana sobre a obra de Waldron influência que me permite começar a esboçar os argumentos com base nos quais sustento a possibilidade de dizer que Waldron transcende o positivismo jurídico apresentando uma proposta mais original e complexa com relação ao Direito 559 It normative positivism is the thesis that it would be a good thing for the law to be as the descriptive positivist thinks it is Normative positivism is itself a moral claim indeed it is a moral claim about the making of moral claims in the particular area of social life we call law It identifies the contamination of legal decision by moral judgement as a moral disadvantage it says that we lose something of value thereby WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 167 560 Aspas não de citação mas aspas minhas conferindo certa ironia ao uso da palavra somente 561 It is by far the most interesting form of legal positivism WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 167 562 Indeed it is hard to imagine how a positivist definition of the concept of law could be sustained without eventually having to resort to some such Normative thesis WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 167 563 WALDRON Jeremy Normative or Ethical Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 pp 412 414 152 321 Law e rule of law o conceito e o império do Direito A meu juízo a posição teórica de Waldron acerca do Direito foi por ele melhor articulada e claramente exposta em The Concept and the Rule of Law564 paper de 2008 Waldron em meio ao texto diz expressamente que sua posição é fortemente influenciada por Dworkin e sua insistência de que um conceito de Direito deve ser capaz de i levar em conta nossos desacordos com relação aos fundamentos jurídicos sobre determinada questão e não só isso ii de tratar esses desacordos não como uma exceção uma patologia teórica mas como um aspecto constitutivo da prática jurídica565 Ou seja Waldron seguindo a Dworkin adota o argumento dos desacordos teóricos566 argumento que o influencia profundamente567568 Penso que uma vez que subscreve expressamente o argumento do aguilhão semântico Waldron já de pronto não mais pode ser classificado com um positivista puro par excellence Seja como for muito mais importante do que o rótulo é explanar sua teoria tal como se apresenta Waldron diz que é sua leitura da visão de Dworkin visão com a qual ele concorda que os desacordos teóricos em Direito têm natureza dúplice o desacordo é tanto i com relação aos fundamentos do Direito em casos particulares quanto ii com relação ao que o rule of law a legalidade exige Desacordos teóricos portanto existem são parte constitutiva de nossa prática e além de envolverem o Direito qua conceito envolvem também o ideal de rule of law entendido enquanto as exigências da legalidade Isso é importante porque sendo 564 WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 04 mar 2019 565 Here the account that I want to give draws heavily on the recent work of Ronald Dworkin Professor Dworkin has insisted that our concept of law must be able to make sense of the disagreements we often have about how to determine what the law on a particular topic is Moreover it must be able to explain this disagreement not just as a jurisprudential puzzlement or pathology but as a distinctive aspect of legal practice WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 54 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 04 mar 2019 566 Cf o item 2212 desta pesquisa 567 Palavras do próprio Waldron em Artigo de 2012 e saliento a data para demonstrar a diferença temporal entre esse ponto e a posição desenvolvida ainda em 1999 em Law and Disagreement I am strongly influenced by Dworkins work on theoretical disagreement in law Cf n 35 em WALDRON Jeremy Stare Decisis and the Rule of Law A Layered Approach Michigan Law Review v 111 n 01 out 2012 pp 0131 568 Cf WALDRON Jeremy Who Needs Rules of Recognition New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0921 abr 2009 Disponível em httpswwwssrncomabstract1358477 Acesso em 06 mar 2019 153 assim Waldron dirá que desacordos sobre o rule of law estão diretamente conectados com o próprio conceito de Direito como tal569 Isso significa que Waldron trabalha com a ideia de um conceito de Direito a partir de três premissas fundamentais premissas eminentemente dworkinianas i A compreensão acerca do ideal de rule of law legalidade e a compreensão acerca do conceito de Direito devem ser muito mais proximamente conectadas do que são na Teoria do Direito moderna ii Nossa compreensão acerca do rule of law deve enfatizar não apenas a presença de regras estabelecidas e determinadas e o valor de previsibilidade que elas garantam deve enfatizar também a importância fundamental dos aspectos procedimentais e argumentativos que constituem a prática jurídica iii Essas duas proposições anteriores estão intimamente conectadas570 isto é o aspecto procedimental da legalidade ajuda a materializar nosso pensamento conceitual acerca do Direito Além disso compreender os sistemas jurídicos também a partir da argumentação nas cortes e não somente na ideia de existência e reconhecimento de regras é o que garante as bases de uma compreensão muito mais rica dos valores que o ideal de rule of law pressupõe571 Breve interlúdio quando equiparo rule of law e legalidade assim o faço porque o próprio Waldron equipara as ideias de todo modo é importante expor aqui também a partir de Waldron o que quero dizer ainda que de forma ampla Com rule of law falo do ideal de moralidade política segundo o qual indivíduos em posições de autoridade devem exercer seu poder nos limites de uma estrutura de normas públicas e não a partir de suas próprias preferências ideologias ou sensos de certo e errado Tratase portanto exatamente de um ideal de legalidade no sentido de fidelidade ao Direito Agradame nesse sentido a tração império da lei572 569 Grifos meus tradução livre Disagreements about the Rule of Law are bound up with the very concept of law itself WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 59 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 04 mar 2019 570 Our understanding of the Rule of Law and our understanding of the concept of law ought to be much more closely connected than they are in modern jurisprudence our understanding of the Rule of Law should emphasize not just the value of settled determinate rules and the predictability that they make possible but also the importance of the procedural and argumentative aspects of legal practice These two propositions are connected WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 04 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 04 mar 2019 571 The procedural aspect of the Rule of Law helps bring our conceptual thinking about law to life and an understanding of legal systems that emphasizes argument in the courtroom as much as the existence and recognition of rules provides the basis for a much richer understand of the values that the Rule of Law comprises in modern political argument 572 People in positions of authority should exercise their power within a constraining framework of public norms rather than on the basis of their own preferences their own ideology or their own individual sense of right and wrong WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of 154 Qual é então a relação entre o ideal de rule of law e o trabalho especializado dos teóricos analíticos em sua elaboração de um conceito de Direito Mais qual é relação entre o rule of law e o estabelecimento de uma precisa delineação acerca de juízos morais e juízos jurídicos e a relação entre validade jurídica e verdade moral Uma abordagem gramática parece pressupor que entender o conceito de Direito vem antes de uma compreensão sobre o rule of law afinal rule of law é uma locução que tem a palavra law como um de seus componentes Gramaticalmente falando portanto é óbvio que law vem antes de rule of law a gramática indica que é preciso entender o que é o Direito para que se possa entender o que é o império da lei Certo Não para Waldron que discorda do ponto ao qual a gramática parece indicar Para ele a lógica indicada pela perspectiva gramatical é enganosa misleading e que nós não podemos realmente compreender o conceito de Direito sem também compreender os valores que integram o rule of law573 Isso não significa uma inversão não se trata de compreender o que é o império da lei a legalidade e depois buscar entender o que é o Direito o que Waldron quer indicar é que ambos os termos ambas as ideias devem ser compreendidas concomitantemente tratadas de modo que não lhes coloque como componentes separados um do outro Autores como Raz por exemplo dirão que compreender o que é o Direito deve vir antes porque a ideia de rule of law é exatamente uma virtude negativa que corrige os problemas que emergem do Direito Em outras palavras Raz quer dizer que precisamos compreender os perigos que o Direito pode engendrar e que esses perigos podem ser corrigidos pelo ideal de rule of law pode corrigir nesse sentido entender o conceito de Direito deve necessariamente vir antes574 Waldron novamente discorda na medida em que o rule of law em sua concepção é um ideal concebido para corrigir os perigos de abuso do exercício do poder político em geral em sentido amplo e não do Direito em particular O império da lei exige um modo particular de exercício do poder político notadamente Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 05 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 04 mar 2019 573 I think the surface grammar here is misleading and that we cannot really grasp the concept of law itself without also understanding the values comprised in the Rule of Law WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 pp 0910 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 04 mar 2019 574 Raz levanta o ponto ao rebater a ideia de Lon Fuller de que os princípios de legalidade fazem parte do Direito essencialmente e o que o rule of law é digamos condição de possibilidade do ponto de vista ontológico para que o Direito seja enfim Direito Para Raz a ideia conceitual de Direito é algo que sempre vem antes de modo que não é verdade que todo sistema jurídico pressupõe ao menos algum grau de moralidade por supostamente relacionarse em tese necessariamente com uma ideia de legalidade Cf RAZ Joseph The Authority of Law Essays on Law and Morality Oxford Oxford University Press 1979 pp 223224 155 governança através do Direito575 O Direito portanto enquanto Direito é o próprio remédio e não o problema ou potencial problema que um ideal separado à parte in casu o império da lei pretende corrigir O argumento positivista em favor de um conceito claro analítico e prévio de Direito diz Waldron poderia ainda ser sustentado a partir de algo similar à proposta benthamiana de uma divisão entre aspectos teoréticos e censórios de uma teoria576 Bentham lembremos baseado nos pressupostos filosóficos de David Hume defendia a necessidade de uma linha muito clara entre os aspectos descritivos e normativos de uma teoria sob pena de incorrerse em uma explicação no sentido descritivo moralista e porque moralista inadequada à realidade Nesta questão então seria benéfico sustentaria o positivista distinguir entre um conceito descritivo de Direito e um ideal valorativo de império da lei A resposta de Waldron é extremamente interessante e para os fins a que me proponho aqui bastante elucidativa com relação às suas diferenças para com o positivismo tradicional Waldron questiona se de fato devemos ou até podemos considerar o conceito de Direito como sendo parte de uma questão puramente descritiva diz ainda que a partir da visão por ele sustentada descrever o exercício de um poder como uma instância de criação ou aplicação de leis já é dignificalo com um certo caráter já é pois fazer um certo tipo de julgamento ou avaliação Nesse sentido até mesmo na teoria positivista o Direito não é uma categoria fundamentalmente descritiva na medida em que a camada de investigação descritiva é que fornece os dados para nossas avaliações Assim na concepção positivista uma categoria como Direito é simplesmente um modo de estabelecer esses dados preliminares antes de avalialos para Waldron contudo já é um modo de começar o processo valorativo577 575 Grifos meus Indeed the Rule of Law aims to correct abuses of power by insisting on a particular mode of the exercise of political power namely governance through law WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 11 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 04 mar 2019 576 Cf item 142 desta pesquisa 577 Grifos meus Trecho adaptado e traduzido livremente da seguinte passagem It begs the question to say that the concept of law must be regarded as part of that descriptive or empirical apparatus On the view that I shall argue for to describe an exercise of power as an instance of lawmaking or lawapplication is already to dignify it with a certain character it is already to make a certain assessment or evaluation of what has happened Even in positivist jurisprudence law is not a fundamental descriptive category So on all accounts there is a layer of description beneath the level at which we use the term law a layer of descriptive inquiry that everyone agrees needs to be conducted clearheadedly before we can begin the process of evaluation That descriptive inquiry gives us the data for our evaluations On the positivist account a category like law is simply a way of sorting that preliminary data before we begin to evaluate it on the account that I favor it is way of beginning the process of evaluation WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series 156 Waldron então considera que i o conceito de Direito está diretamente ligado ao ideal de rule of law de modo que ii não há que se falar em descrever um conceito de forma neutra e só então depois avaliar esse conceito próprio descrito O processo na concepção de Waldron é muito mais emaranhado do que uma figura positivistadescritiva faz parecer Essa é portanto uma das razões que me fazem crer que as coisas não são assim tão simples quanto simplesmente classificar Jeremy Waldron como um positivista normativo ponto De fato como já vimos o próprio autor diz considerar essa vertente a mais interessante versão de positivismo mas não é como se Waldron simples e tão somente adotasse pressupostos positivistas em uma teoria normativa do Direito As razões por ele adotadas para desenvolver uma proposta teórica normativa passam também por uma rejeição muito clara a importantes aspectos do positivismo aspectos que a meu juízo são tão fortes tão presentes na tradição positivista dominante que rejeitálos significa rejeitar o positivismo tout court Não por menos Waldron ele próprio expõe os motivos pelos quais rejeita aquilo a que chama de positivismo casual578 3211 Against Casual Positivism Waldron diz que há uma analogia possível e interessante entre os modos como usamos os termos Direito aqui entendido enquanto sistema jurídico e democracia Expliquemos a partir do exemplo do próprio autor como faz o próprio autor durante o período da Guerra Fria não se podia levar a sério qualquer regime que atribuía a si mesmo o título de democrático eg DDR República Democrática Alemã sem de fato sêlo Dizer ser uma democracia é diferente de ser uma democracia que pressupõe a possibilidade de dissidências políticas de eleições livres de sufrágio universal etc Onde entra a analogia com o Direito Precisamente na ideia de que para Waldron nem todo sistema baseado na ideia de comandoecontrole que atribui a si mesmo o nome de sistema jurídico é efetivamente um sistema jurídico digno do nome Para Waldron teóricos modernos particularmente positivistas modernos são demasiadamente casuais com relação a como um sistema de governança deve ser para se qualificar como Direito579 O ponto está Working Paper n 0850 set 2008 p 12 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 04 mar 2019 578 Casual positivism 579 I worry that modern students of jurisprudenceparticularly modern legal positivistsare quite casual about what a system of governance has to be like in order to earn the appellation law WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory 157 diretamente relacionado à acertadíssima leitura de Waldron acerca da proposta teorético metodológica do positivismo moderno Basicamente qualquer sistema estruturado e centralizado utilizando prescrições e proibições articuladas e identificáveis conta como Direito desde que uma determinada elite participante desse sistema seja capaz de distinguir as prescrições e proibições que vêm do centro desse mesmo sistema de outras normas que possam circular na sociedade Esse é o positivismo de Hart e seus seguidores modernos Nesse sentido não se difere muito do positivismo de Austin580 Eu chamo a isso isto é a proposta conceitual do positivismo lato sensu baseada em uma regra de reconhecimento em um sistema articulado e centralizado a partir dela de positivismo casual Para esse positivismo casual que é nada mais afinal que o positivismo os regimes de Kim JongIl na Coreia do Norte e de Saddam Hussein no Iraque pré2003 são sistemas jurídicos E Waldron que se opõe à essa casualidade propõe que a filosofia do Direito deve ser menos casual e menos complacente do que isso581 É bastante natural e até provável que aqui se relacione o nome de Waldron a uma proposta jusnaturalista Não por acaso um dos autores trazidos por ele é justamente Lon Fuller autor vinculado à tradição do direito natural Contudo diferentemente de autores vinculados à tradição da lei natural a abordagem de Fuller não passa pela imposição de limites morais substantivos ao conteúdo do direito para Fuller o fenômeno jurídico está sujeito a uma moralidade procedimental uma moralidade que lhe é própria Uma moralidade que é portanto interna ao Direito como tal O Direito em Lon Fuller é um conceito funcional o Direito tem como função a busca da ordem social atingível por meio de regras gerais que regulam o comportamento dos jurisdicionados Como decorrência lógica temos que o sistema jurídico que não é capaz de atingir o fim próprio que lhe constitui enquanto atividade é também incapaz de ser qualificado como um sistema jurídico legítimo E nesse sentido o Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 14 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 04 mar 2019 580 Grifos meus tradução livre Basically any wellorganized system of centralized order using articulate and identifiable prescriptions and prohibitions counts as law provided that elite participants in the system can distinguish prescriptions and prohibitions coming from the centre from other norms that may be circulating in the society This is the positivism of HLA Hart and his modern followers In this regard it really is not much different from the positivism of earlier generations of jurists stretching back through John Austin WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 14 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 581 I call this casual positivism On this account the regimes of Kim Il Jung in North Korea and Saddam Hussein in pre2003 Iraq were legal systems I want to propose that a philosophy of law should be less casual and less accommodating than this WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 14 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 158 Direito só é capaz de cumprir sua função se observados alguns princípios que lhe são condição de possibilidade Princípios justamente de legalidade daí a importância de um autor como Fuller para Waldron que sustenta uma relação necessária entre as noções de Direito e império da lei582 Para Waldron é verdade a teoria de Lon Fuller superestima a ideia de que os princípios procedimentais de legalidade têm uma conexão necessária com um ideal de justiça substantiva Seja como for Fuller está certo com relação à necessidade de superação do positivismo casual com relação à necessidade de que se mantenha fidelidade com uma noção de Direito mais rica mais complexa mais exigente583 E se não fosse só por isso o próprio Waldron já disse se abandonar a complacência do positivismo casual significa abandonar a dicotomia rígida entre positivismojusnaturalismo que seja 3212 Uma nova definição Sendo assim ao i vincular Direito e rule of law ii rejeitando o positivismo casual e ii reconhecendo os méritos de teóricos que como Lon Fuller buscam uma concepção de Direito que se relacione com o ideal de legalidade e ao fazêlo transcendem o positivismo casual Waldron propõe agora em sugestões próprias alguns requisitos elementares para que um sistema conte como jurídico Talvez alguns desses requisitos pareçam irritantemente óbvios Waldron reconhece mas sugere a irritação seja direcionada às teorias positivistas que ignoram essas obviedades584 582 É com base nessa ideia que Lon Fuller articula uma série de princípios que juntos e porque morais constituem a moralidade que torna o Direito possível the morality that makes law possible Com Fuller portanto podemos falar em oito princípios que constituem a moralidade interna do direito princípios formais de legalidade que em si representam as condições mínimas próprias de existência de um sistema jurídico qua sistema jurídico De acordo com a estrutura principiológica temos que as leis para que sejam legítimas devem ser i gerais ii públicas iii prospectivas iv inteligíveis v consistentes umas com as outras ie não contraditórias vi praticáveis vii estáveis e finalmente deve haver viii congruência entre a lei tal como anunciada e sua posterior administração por parte do Estado É por serem condições mínimas para um exercício adequado de sua própria função que a inobservância de qualquer uma delas não resulta apenas em um sistema jurídico ruim mas em algo que sequer pode ser chamado legitimamente de sistema jurídico Cf FULLER Lon L The Morality of Law Edição revisada New Haven Yale University Press 1964 pp 33 39 98 102 106 583 WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 18 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 584 You may be irritated by how obvious my suggestions are I hope you will redirect some of that irritation towards the philosophical theories of law particularly positivist theories that have largely ignored or downplayed these elements in contemporary jurisprudence WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 pp 1920 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 159 Primeiro nenhum sistema pode ser jurídico se não tiver i Cortes ie instituições que aplicam as normas e diretivas estabelecidas em nome da comunidade política e sobretudo que o fazem por meio de procedimentos formais que permitem a participação argumentativa de todos envolvidos na eventual disputa que se apresenta Se é verdade que isso parece óbvio também é verdade que há muito pouco escrito sobre as cortes nas propostas conceituais da teoria positivista moderna Mais do que isso os pressupostos desse requisito em Waldron indicam a necessidade de que a aplicação das normas por parte das cortes deve respeitar a participação argumentativa do indivíduo a elas sujeito585 Segundo um sistema jurídico deve basearse em ii Normas gerais e públicas isto é aquelas normas aplicadas pelas Cortes indicadas como primeiro requisito são normas estabelecidas em nome de toda a sociedade por meio de procedimentos rigidamente estruturados586 É por isso que seu caráter de generalidade não é meramente contingencial um sistema baseado em algo como decretos ad hoc não é não pode ser um sistema jurídico Em si a palavra lei já é a priori associada com a ideia de generalidade em oposição a proposições particulares eg leis da natureza lei moral na ética kantiana etc daí seguese que também a Teoria do Direito deve adotar os princípios de impessoalidade e igualdade que a palavra ela própria pressupõe Naturalmente as normas devem então também ser públicas diretivas secretas não podem servir como pontos de referência de conduta O positivismo é verdade reconhece a necessidade de identificação das normas como tais isso está na própria ideia de regra de reconhecimento Contudo e retomando Hart a regra de reconhecimento positivista é compatível com um reconhecimento exclusivo parte de uma elite uma elite participante do sistema supostamente jurídico responsável pela aplicação das regras Para o positivismo é plenamente possível que os jurisdicionados em geral sob um sistema desconheçam a estrutura jurídica e seus critérios de validade587 Para Waldron contudo é um erro conceber um sistema como jurídico sem que nele haja um meio publicamente acessível de identificação das normas gerais que regulam a conduta dos cidadãos Não se trata de mera questão pragmática a publicidade e a generalidade do Direito 585 Cf WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 pp 20 25 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 586 Grifos meus A second feature is suggested by the way I characterized courts I said that courts were institutions which apply norms established in the name of the whole society through the medium of tightly structured proceedings WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 25 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 587 Cf The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 114 160 passam pela ideia que Waldron deve a Henry Hart e Albert Sacks de autoaplicação o Direito trabalha constantemente com a ideia de tornar cada vez mais possível a autoaplicação voluntária de suas normas588 e isso é também uma questão de respeito aos jurisdicionados e sua capacidade de agir589 O terceiro elemento waldroniano é a iii Positividade no sentido de que um sistema jurídico na medida em que trabalha com a ideia de direito positivo ie direito produzido através da atividade humana deve ter além das cortes legislaturas processos legislativos Isso tem a ver com a ideia de i tornar explícito que o Direito é criado modificado e não meramente descoberto e ii desenvolver esse direito positivo a partir de um processo legislativo legítimo e não através de uma atividade judiciária ad hoc 590 O quarto elemento sugerido por Waldron é uma iv Orientação ao bem comum Parte da ideia de um sistema jurídico legítimo pressupõe que suas normas não são meros comandos emitidos por lideranças políticas mas padrões em nome e de preocupação de toda a comunidade política Vejase não se trata de uma posição jusnaturalista radical ou de repristinar o célebre adágio augustiniano segundo o qual lex iniusta non est lex Waldron não está dizendo que um sistema que não promove o bem comum não é um sistema jurídico Está em verdade dizendo que um sistema que não pretende promover o bem comum que não se orienta na direção do bem comum não é um sistema jurídico legítimo591 Não é uma ideia substantiva mas um ideal de aspiração ainda assim muito significativo592 O Direito não será necessariamente justo mas deve ao menos tentar do contrário não se trata de um sistema jurídico digno da qualificação O quinto elemento de uma assumida dificuldade em sua definição é a v Sistematicidade Tratase de algo similar àquilo que Waldron chama de caráter cumulativo do Direito Basicamente a ideia é a de que um sistema jurídico legítimo não é apenas uma 588 Nesse sentido cf WALDRON Jeremy Selfapplication New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 1646 set 2016 Disponível em httpsssrncomabstract2848578 Acesso em 05 mar 2019 589 Cf WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 pp 2429 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 590 Cf WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 pp 2932 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 591 Nesse sentido ver também WALDRON Jeremy Does Law Promise Justice Georgia State University Law Review vol 17 n 03 03 2001 pp 759788 592 Instead of saying that nothing is law unless it promotes the public good we might want to say that nothing is law unless it purports to promote the public good ie unless it presents itself as oriented in that direction This is an aspirational or orientational idea not a substantive one It is nevertheless very significant WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 pp 3334 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 161 sucessão de normas autônomas independentes no Direito não há um ano zero593 Se adotarmos uma concepção crua de positivismo estaremos fadados a compreender o Direito como um amontoado de comandos ainda que seja impossível depreender qualquer sentido inteligível do conjunto594 Ao Direito segundo Waldron não basta uma ideia fraca de coerência meramente institucional o Direito é um sistema não somente em seu sentido institucional mas num sentido que tem a ver com lógica coerência e talvez até com aquilo a que Ronald Dworkin chama de integridade595 Na proposta de Waldron portanto um sistema jurídico legítimo é caracterizado também por um processo legislativo que respeite o ambiente jurídico no qual opera sendo não apenas uma adição de novas leis a um amontoado de comandos apartados um do outro mas uma modificação do corpus juris 596 É isso afinal que permite que a lei seja plenamente suscetível ao escrutínio público a sistematicidade do Direito garante sua apresentação como um sistema unificado de governança que é coerente em si mesmo São esses cinco elementos combinados um ao outro i cortes ii generalidade e publicidade iii positividade iv orientação ao bem comum e v sistematicidade que para Waldron caracterizam as exigências os requisitos mínimos que um sistema deve observar para que seja um sistema legitimamente jurídico Tratase de uma questão de dignidade de respeito à dignidade da argumentação e da racionalidade dos indivíduos cujo comportamento é regulado pelas normas do corpus juris tratase portanto de uma concepção na qual o Direito e o rule of law informam definem e protegem um ao outro respeitando a liberdade e a dignidade de cada cidadão como um centro ativo de inteligência597 Esse é o problema que Waldron identifica no positivismo casual e seu débito para com Dworkin se 593 Year Zero 594 On the crudest positivist understanding that is what the law of the society amounts to that heap of commands whether or not anyone can make sense of them all together WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 35 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 595 Grifos meus Law is a system not only in an institutional sense but in a sense that has to do with logic coherence and perhaps even what Ronald Dworkin has called integrity WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 36 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 596 Legislation is not just the addition of a rule to the heap of laws it is a modification of the corpus juris WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 36 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 597 Cf WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 pp 38 66 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 162 não fosse expresso ficaria muito claro de qualquer forma Tomo liberdade para uma citação mais longa em razão de sua clareza e importância para meus pontos Nenhuma teoria analítica do que é o Direito e o que diferencia um sistema jurídico de outras formas de governança pode ignorar o caráter argumentativo de nossa prática jurídica e o papel distinto que ele representa na consideração por parte de um sistema jurídico de seus cidadãos como centros ativos de inteligência A falácia do positivismo moderno é sua ênfase exclusiva no aspecto de comandoecontrole do Direito sem que se faça qualquer referência à cultura argumentativa que ele forma incentiva e institucionaliza O reconhecimento institucionalizado de uma série característica de normas pode ser um elemento importante Mas no mínimo tão importante quanto aquilo que nós fazemos no Direito com as normas que identificamos Nós não apenas obedecemos a elas ou aplicamos as sanções por elas prescritas nós argumentamos adversariamente sobre elas nós usamos nossas noções acerca do que está em jogo quando de sua aplicação para possibilitar um processo contínuo de troca de argumentos e nós engajamonos em elaborados exercícios interpretativos sobre o que significa aplicalas fielmente como um sistema aos casos que nos são apresentados598 Essa passagem é a meu ver paradigmática na obra de Waldron Suas críticas ao positivismo casual os elementos eminentemente dworkinianos latentes em sua proposta a gravitação em torno de uma cultura argumentativa que define a prática jurídica599 Sistematicidade participação democrática aplicação fiel das normas aos casos a partir da ideia de um corpus juris coerente Subscrição ao argumento dos desacordos teóricos recepção de uma abordagem valorativanormativa rejeição a uma ideia convencionalista a partir da qual o Direito do ponto de vista conceitual é uma questão de reconhecimento de normas do sistema É com tudo isso em mente que Waldron rechaça um positivismo casual e orienta seus esforços à construção de uma proposta teórica diferente E tudo isso para mim é mais muito mais do que meramente uma questão de um positivismo normativo ie aceitar um 598 Grifos meus tradução livre No analytic theory of what law is and what distinguishes legal systems from other systems of governance can afford to ignore this aspect the argumentative character of our legal practice and the distinctive role it plays in a legal systems respect for ordinary citizens as active centres of intelligence The fallacy of modern positivism it seems to me is its exclusive emphasis on the commandand control aspect of law without any reference to the culture of argument that it frames sponsors and institutionalizes The institutionalized recognition of a distinctive set of norms may be an important feature But at least as important is what we do in law with the norms that we identify We dont just obey them or apply the sanctions that they ordain we argue over them adversarially we use our sense of what is at stake in their application to license a continual process of argument back and forth and we engage in elaborate interpretive exercises about what it means to apply them faithfully as a system to the cases that come before us WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 61 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 599 Esses pontos de convergência também ficam muito claros em WALDRON Jeremy Did Dworkin Ever Answer the Crits In HERSHOVITZ Scott ed Exploring Laws Empire The Jurisprudence of Ronald Dworkin Oxford Oxford University Press 2012 pp 158159 163 positivismo inclusivo e prescrever um positivismo exclusivo Waldron propõe uma teoria especializada e democrática sua própria democratic jurisprudence 322 A democratic jurisprudence A palavra football traduzida como futebol pode ter significados distintos a depender do contexto Vejase há muitos livros sobre o assunto football que tratam sobre aquilo a que chamamos de futebol americano do tipo disputado nas faculdades dos Estados Unidos e a nível profissional na NFL600 Igualmente há muitos livros sobre football que tratam sobre o nosso futebol association football soccer nos EUA do tipo praticado por clubes como o Manchester United e o Dínamo de Kiev Da mesma forma há uma série de livros sobre football que tratam sobre o rugby neozelandês Agora há ao mesmo tempo pouquíssimos livros escritos para tratar do football como tal da ideia de football como algo compartilhado pelo futebol americano pelo futebol soccer pelo rugby É fato que se pode desenvolver uma empreitada do tipo não há nada de contraditório ou incoerente na ideia de um livro sobre football em geral sobre aquilo que todos seus códigos específicos compartilham mas o interesse nesse tipo de empreendimento seria impressionantemente limitado601 se comparado aos estudos acerca da teoria e prática do rugby do soccer do futebol americano É nisso afinal que as pessoas com muita razão têm interesse602 Será que não se pode dizer algo similar acerca da Teoria Geral do Direito general jurisprudence o estudo do Direito como tal Afinal há um sem número de livros artigos de material escrito sobre direito romano common law direito canônico direito islâmico lex mercatoria civil law o direito do laissezfaire o Rechtstaat direito administrativo direito internacional e por aí vai603 Em contraste com o exemplo do futebol contudo há igualmente uma série de livros e artigos que abordam o Direito como tal na busca de uma definição acerca do que todos esses sistemas têm e guardam de relação entre si No caso do exemplo autores que tentassem escrever sobre o conceito de football como tal estariam 600 National Football League 601 Staggeringly limited 602 Cf WALDRON Jeremy Can There Be a Democratic Jurisprudence Emory Law Journal vol 58 n 03 2009 pp 675712 603 Might something similar be said about general jurisprudence the study of law as such There are lots of books and articles written on Roman law common law canon law Islamic law the lex mercatoria civil law the body of law associated with classic laissez faire the Rechtsstaat the law of the modern administrative state international law and so on WALDRON Jeremy Can There Be a Democratic Jurisprudence Emory Law Journal vol 58 n 03 2009 pp 675712 164 obrigados à produção de proposições vagas e abstratas como todo football envolve regras que orientam o empreendimento de tentar mover uma bola de um lado do campo a outro contra um time adversário que tenta movêla na outra direção É exatamente o que acontece com os autores que se propõem a elaborar uma Teoria Geral do Direito que acabam por desenvolver proposições vagas e abstratas como todo Direito envolve a governança de regras primárias por regras secundárias604 Waldron reconhece a importância do rigor analítico e do estudo teoréticoconceitual acerca da natureza e dos fundamentos do Direito mas entende também que o mesmo nível de talento analítico605 empregado por autores na busca de respostas a perguntas como O que é o Direito Qual é o conceito de sistema jurídico pode ser orientado a questões jurídicas mais substantivas Nesse sentido então o autor sugere uma orientação a uma teoria jurídica mais especializada uma special jurisprudence Poderseia argumentar que uma teoria mais especializada exige antes uma Teoria Geral do Direito falar sobre uma questão jurídica específica eou substantiva afinal exige exigiria e envolveria antes um conceito geral de Direito Como falar afinal do direito inglês por exemplo sem que se saiba antes o que é o Direito ponto Contudo assim como fez quando da discussão acerca do que vem antes entre law ou rule of law Waldron diz que de novo não é necessariamente o caso que a ordem das coisas seja aquela que a lógica gramatical parece indicar Esse é um importante pressuposto a servir de fundamento da proposta que Waldron desenvolve em sua teoria em vez de uma Teoria Geral do Direito uma general jurisprudence uma teoria especializada uma teoria jurídica democrática uma democratic jurisprudence Na sua proposta de uma teoria democrática Waldron não está interessado em uma abordagem jurídica acerca de tópicos como eleições financiamento de campanhas etc está interessado em uma teoria que indique como o Direito apresentase e deve apresentarse em regimes democráticos Estou interessado diz Waldron em alguns elementos característicos do Direito em uma democracia não se trata de uma análise do tipo gêneroespécie mas sim de demonstrar como alguns dos elementos e teoremas enfatizadas pela abordagem eminentemente analítica do Direito materializamse em uma teoria democrática de modo que assim dentro desse contexto o verdadeiro sentido desses 604 Tradução livre e contextualizada Just as our imagined writers about the general theory of football would have to produce vague and abstract propositions like All football involves rules governing the enterprise of trying to move a ball from one end of a field to the other against the opposition of a team trying to move it in the other direction so writers in general jurisprudence produce vague and abstract propositions like All law involves the governance of primary rules by secondary rules WALDRON Jeremy Can There Be a Democratic Jurisprudence Emory Law Journal vol 58 n 03 2009 pp 675712 605 Analytical talent 165 elementos teóricos outrora demasiadamente abstratos pode ser demonstrado606 digamos em termos dworkinianos sob sua melhor luz 3221 A metodologia de uma teoria democrática Um rápido ponto intermediário Ao desenvolver seu argumento em favor de uma democratic jurisprudence Waldron demonstra de novo e de forma muito clara seu distanciamento com relação ao positivismo metodológico tradicionalmente analítico Afinal a Teoria do Direito deve ser analítica ou normativa Deve preocuparse com o valor de certas práticas e instituições ou deve tão somente buscar identificalas e descrevêlas de forma neutra e desengajada Até aqui ficou espero ter ficado claro que as diferenças entre as duas abordagens são muito bem definidas Arquetipicamente podemos tomar o debate HartDworkin como dois polos opostos nessa questão E Waldron Em The Concept and the Rule of Law e até mesmo nos escritos sobre um positivismo normativo vimos que ele acaba por se afastar da proposta descritiva Na exposição de sua democratic jurisprudence Waldron expõe novamente o lado por ele tomado A abordagem puramente descritiva diz Waldron está equivocada Sua proposta afinal explora as conexões e convergências entre o valor da democracia e o conceito de Direito a democratic jurisprudence de Waldron portanto vai ser necessariamente uma teoria valorativa normativa E na visão dele em nada perde nesse sentido607 O que deve ainda ficar claro porém não é apenas que Waldron i opta por uma abordagem normativa ele também ii rejeita a proposta descritiva Dizer i não necessariamente quer dizer ii e ii é um importante elemento que reforça a rejeição de Waldron ao positivismo tradicional Como vimos em Can There Be a Democratic Jurisprudence Waldron diz que a abordagem puramente descritiva está equivocada608 606 I am interested in some distinctive features of law in a democracy But instead of a straight genusspecies analysis I will show how some of the elements and theorems that are emphasized in the general analytic study of law come to life in democratic jurisprudence I will argue that we can see the point of them in that context whereas they seem rather mysterious abstractions in the context of the most general jurisprudential inquiry WALDRON Jeremy Can There Be a Democratic Jurisprudence Emory Law Journal vol 58 n 03 2009 pp 675712 607 I have said elsewhere that I think the purely descriptive approach is mistaken The kind of democratic jurisprudence that I have in mind explores the connections and the consilience between the value of democracy and the concept of law So a democratic jurisprudence is bound to be a valueladen jurisprudence and in my view none the worse for that WALDRON Jeremy Can There Be a Democratic Jurisprudence Emory Law Journal vol 58 n 03 2009 pp 675712 608 Referência à passagem anterior mas agora com grifo meu 166 Essa posição é reafirmada em um debate com Andrei Marmor609 teórico do positivismo exclusivo que atribui à jurisprudence um caráter basicamente descritivo e moralmente neutro610 Em uma resposta a Marmor que defende a ideia de que a Teoria do Direito deve sim ter um papel puramente descritivo e moralmente neutro Waldron retoma sua analogia entre os termos Direito e democracia sugerindo uma vez mais que assim como sugeria Fuller é possível conceber o Direito como um conceito essencialmente funcional como consequência também o Direito seria já de pronto um conceito essencialmente valorativo611 Exatamente como é o caso de democracia Waldron sugere também o Direito pode ter um conceito do tipo denso thick na terminologia de Bernard Williams ou na referência de Waldron Jonathan Dancy612 ao envolver significados valorativos e descritivos 609 Cf WALDRON Jeremy Arguing about the Normativity of Jurisprudence Comments on Andrei Marmors Philosophy of Law Jerusalem Review of Legal Studies vol 10 n 01 2014 pp 8192 610 Grifos meus Jurisprudence is still basically descriptive and morally neutral MARMOR Andrei Philosophy of Law Princeton Princeton University Press 2014 p 135 611 Aqui nesse sentido cabe fazer referência às implicações que conceitos funcionais têm sobre a dicotomia fatovalor tão essencial ao positivismo jurídico Para tanto retomo ponto de Alasdair MacIntyre filósofo escocês À tese de que nenhuma conclusão do tipo dever ser pode ser derivada a partir de premissas do tipo ser No ought conclusions from is premises thesis MacIntyre levanta um contraargumento exatamente a partir dessa noção de conceitos funcionais MacIntyre diz que por exemplo das premissas factuais f1 Este relógio é muito pesado para se carregar de maneira confortável e f2 Este relógio é muito impreciso e irregular ao marcar as horas derivase logicamente a conclusão valorativa v1 Este relógio é um mau relógio Da mesma forma das premissas factuais f3 Ele é capaz de colher mais por acre lavrado do que qualquer outro fazendeiro do distrito f4 Ele tem o mais efetivo programa de renovação do solo que conhecemos e f5 O leite de suas vacas ganha todos os prêmios da categoria seguese de forma igualmente válida a conclusão valorativa v2 Ele é um bom fazendeiro Esses argumentos que derivam conclusões do tipo ought de premissas do tipo is são válidos precisamente por tratarem de conceitos funcionais fazendeiro e relógio são ambos conceitos definidos em termos de seus propósitos de suas funções Se i MacIntyre tiver razão e ii o Direito for mesmo um conceito funcional como sugere Fuller e como parece sugerir Waldron a abordagem essencialmente e pretensamente descritiva de Marmor e demais positivistas metodológicos está desafiada From such factual premises as This watch is grossly inaccurate and irregular in timekeeping and This watch is too heavy to carry about comfortably the evaluative conclusion validly follows that This is a bad watch From such factual premises as He gets a better yield for this crop per acre than any farmer in the district He has the most effective programme of soil renewal yet known and His dairy herd wins all the first prizes at the agricultural shows the evaluative conclusion validly follows that He is a good farmer Both of these arguments are valid because of the special character of the concepts of a watch and of a farmer Such concepts are functional concepts that is to say we define both watch and farmer in terms of the purpose or function which a watch or a farmer are characteristically expected to serve It follows that the concept of a watch cannot be defined independently of the concept of a good watch nor the concept of a farmer independently of that of a good farmer and that the criterion of somethings being a watch and the criterion of somethings being a good watchand so also for farmer and for all other functional conceptsare not independent of each other MACINTYRE Alasdair After Virtue A Study in Moral Theory 3 ed Notre Dame University of Notre Dame Press 2007 pp 5758 612 Basicamente conceitos thick densos são conceitos que combinam elementos valorativos e elementos não valorativos ie descritivos A explicação é mais fácil através de um exemplo mais fácil Coragem é um conceito que combina ao mesmo tempo uma descrição de firmeza em face de uma situação perigosa com a recomendação da mesma conduta descrita na forma de uma virtude moral Cf WILLIAMS Bernard Ethics and the Limits of Philosophy Cambridge Harvard University Press 1985 pp 140141 DANCY Jonathan In Defense of Thick Concepts FRENCH Peter A UEHLING Theodore A WETTSTEIN Howard K eds Midwest Studies in Philosophy vol xx Moral Concepts Notre Dame University of Notre Dame Press 1996 167 interrelacionados Essa ideia do Direito como um conceito thick e sobretudo funcional permeia a obra de Waldron Em outras passagens o autor atribui o caráter funcional ao conceito de Direito através daquilo que chama de hospital thesis só se pode compreender adequadamente o termo hospital se considerado para que serve um hospital descrever um estabelecimento como um hospital implica em reconhecer a promessa de cuidado Não é o mesmo com o Direito que talvez prometa no mínimo uma orientação ao bem comum613 Lembremos que Waldron sugere ser precisamente esse o caso Para além disso a desconfiança de Waldron com relação a uma jurisprudence puramente descritiva fica ainda mais clara na discussão que permeia grande parte do debate WaldronMarmor a tese de Waldron e Stephen Perry de que já em Hart o positivismo acabava por trazer consigo inevitavelmente elementos de cunho normativo evidenciando assim o caráter thick do conceito de Direito Em Hart o conceito de regras secundárias614 inclui uma dimensão essencialmente valorativa na medida em que nos próprios termos hartianos a evolução de um sistema préjurídico para um sistema jurídico traria consigo i certos riscos eg abuso de autoridade e ao mesmo tempo ii benefícios eg eficiência segurança jurídica para uma sociedade Para Waldron615 e para Stephen Perry616 a ideia de evolução de defeitos617 de riscos e benefícios morais provam falsa a reivindicação de Hart de um engajamento em uma teoria puramente descritiva618 Andrei Marmor rebate a tese de Waldron e Perry alegando que Hart estaria tão somente dizendo que a sociedade jurídica em comparação com a sociedade préjurídica tem um Direito melhor e não que ela é uma sociedade melhor do ponto de vista moral segundo Marmor Hart diz que o Direito somente o Direito enquanto Direito é mais eficiente após a evolução por meio da emergência de regras secundárias e que isso não prejudica a abordagem p 263 VÄYRYNEN Pekka Thick Ethical Concepts In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Fall 2017 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesfall2017entriesthickethicalconcepts Acesso em 06 mar 2019 613 Cf WALDRON Jeremy Legal and political philosophy In COLEMAN Jules L HIMMA Kenneth E SHAPIRO Scott J The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law Oxford Oxford University Press 2004 p 371 614 Cf item 2112 desta pesquisa 615 Cf WALDRON Jeremy All We like Sheep Canadian Journal of Law and Jurisprudence vol xii n 01 jan 1999 pp 169186 WALDRON Jeremy Normative or Ethical Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 p 429 616 Cf PERRY Stephen Harts Methodological Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 pp 311354 617 Defects 618 Grifo meu As Stephen Perry has rightly pointed out the thesis of advantages and disadvantages of legal over prelegal gives the lie to Harts claim to be engaged in a purely descriptive jurisprudence WALDRON Jeremy Normative or Ethical Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 p 429 168 descritiva neutra de Hart619 De pronto em si o argumento de Marmor ainda que correto com relação à proposta de Hart não me convenceria dizer que o Direito é melhor ainda que melhor qua Direito já me parece prejudicar a proposta puramente descritiva Waldron por sua vez apresenta bons argumentos contra o ponto de Marmor diz recorrendo a passagens do próprio Hart que uma sociedade préregras secundárias talvez sequer tenha Direito do contrário talvez não fosse chamada por Hart de préjurídica prelegal o que faz com que a transição não seja de um Direito pior para um Direito melhor mas de uma situação social pior para uma situação social melhor melhorada pelo Direito Hart então realmente está dizendo que as regras secundárias melhoram a sociedade da qual elas passam a fazer parte620 Seja como for o que importa mesmo é o seguinte Waldron não quer negar ou desconsiderar a importância de uma abordagem teórica desengajada Quer sim insistir que ao contrário do que diz Marmor um desengajamento radical seja a missão definitiva da jurisprudence621 e que afinal se o positivismo tem razão ao dizer que o Direito com todas suas vantagens pode ser injusto ele tem uma tarefa uma tarefa moral de explicar essa possibilidade622 Como dito além de abrir espaço ao reconhecimento do Direito como um conceito funcional Waldron define sua própria democratic jurisprudence como uma teoria essencialmente normativa valorativa e sua visão lembremos é a de que ela em nada perde nesse sentido623 Essa é a visão de Waldron a minha é a de que não só ela não perde como tem muito a ganhar 619 Cf MARMOR Andrei Philosophy of Law Princeton Princeton University Press 2014 p 119 620 Indeed Hart is inclined to wonder whether the presecondaryrules society he hypothesizes has law at all with the addition of secondary rules we do not move from worse law to better law we move from a worse social situation to a social situation ameliorated by law in the true sense So Marmor has misled us about what Hart is claiming Hart really is saying that the secondary rules characteristic of law on his conception improve society And so he really is doing what Marmor says he would be doing if the WaldronPerry reading were correct WALDRON Jeremy Arguing about the Normativity of Jurisprudence Comments on Andrei Marmors Philosophy of Law Jerusalem Review of Legal Studies vol 10 n 01 2014 pp 8192 621 I do not want to deny that there is room for a theoretical approach to law that is more detached than that But I do want to insist in the light of Harts comments that it is probably a mistake to regard such radical detachment as definitive of the mission of the philosophy of law WALDRON Jeremy Arguing about the Normativity of Jurisprudence Comments on Andrei Marmors Philosophy of Law Jerusalem Review of Legal Studies vol 10 n 01 2014 pp 8192 622 Cf WALDRON Jeremy All We like Sheep Canadian Journal of Law and Jurisprudence vol xii n 01 jan 1999 pp 169186 623 I have said elsewhere that I think the purely descriptive approach is mistaken The kind of democratic jurisprudence that I have in mind explores the connections and the consilience between the value of democracy and the concept of law So a democratic jurisprudence is bound to be a valueladen jurisprudence and in my view none the worse for that WALDRON Jeremy Can There Be a Democratic Jurisprudence Emory Law Journal vol 58 n 03 2009 pp 675712 169 3222 O positivismo revisitado por que não a integridade Waldron e Dworkin compartilham então um acordo a partir dos desacordos Waldron concorda com Dworkin com relação ao argumento dos desacordos teóricos o positivismo metodológico semântico casual tradicional falha entre outras coisas também por ser incapaz de levar em conta o caráter essencialmente argumentativo interpretativo da prática jurídica O Direito afinal não é apenas uma questão de reconhecimento e aplicação de normas é também uma questão de argumento de discussão de debate acerca do modo por meio do qual a aplicação dessas normas deve ser feita Igualmente tanto para Dworkin quanto para Waldron o positivismo é demasiadamente complacente com relação aos requisitos mínimos para que um sistema possa qualificarse enquanto sistema jurídico Como vimos contudo Waldron não é um interpretativista no sentido dworkiniano all the way down Se o fosse ainda que sua teoria seja mesmo apta de qualificação como uma terceira via possível como me parece ser o caso Waldron dificilmente teria expressado tamanha identificação com uma vertente normativa de positivismo E essa identificação que o leva a ser rotulado como positivista como vimos nos exemplos de autores como Gargarella Martí e no Brasil Georges Abboud levanta dúvidas legítimas afinal ainda que o positivismo de Waldron seja fosse normativo suas críticas ao positivismo que chama de casual não são por demais contundentes Não há elementos dworkinianos suficientes em sua obra que o colocam em uma posição difícil para defender o positivismo qualquer que seja sua pretensão metodológica É nesse ponto que surge uma certa divergência entre Waldron e Dworkin diferença teórica que i relacionada às suas concepções de democracia têm as implicações práticas que veremos no próximo capítulo e ii ajudame sobremaneira a explicitar a partir da diferença própria o caminho exato tomado por Waldron em face do debate Dworkinpositivismo Em Dworkin as falências as insuficiências do positivismo tradicional levamno a rejeitálo em todo seu corpo teórico e todas suas premissas em Waldron essas mesmas insuficiências são o que exigem uma releitura do que pode haver de valioso nas premissas positivistas A melhor definição afinal é a seguinte Waldron não é um positivista Waldron faz uma releitura do positivismo e adota algumas de suas premissas já reinterpretadas como 170 seu ponto de partida para a construção da democratic jurisprudence Waldron Eu tenho mais fé que Dworkin na teoria positivista e uso seu corpo teórico como meu ponto de partida na exploração das possibilidades de uma democratic jurisprudence O autor segue dizendo não estar sugerindo que só há teoria democrática com positivismo ou que o positivismo leva necessariamente a uma teoria democrática o que ele diz sim é que a democratic jurisprudence já constituída permite ela própria uma interessante interpretação de alguns elementos do positivismo contemporâneo que parecem um pouco estranhos quando tomados isoladamente624 Quais são esses elementos Waldron acertadamente define o positivismo a teoria positivista a partir de seus três elementos característicos i Uma preocupação com as fontes das normas jurídicas ii Uma ênfase no reconhecimento das normas enquanto normas jurídicas eg regra de reconhecimento em Hart e claro iii A tese da separabilidade entre Direito e Moral ie uma norma é pode ser jurídica independentemente de seu conteúdo moral Muito bem O próprio Waldron segue dizendo que a democratic jurisprudence por ele articulada toma um caminho diferente das formas tradicionais de positivismo com base em dois novos elementos iv O caráter fundamentalmente público do Direito ao qual o positivimo ao entender as normas jurídicas como normas reconhecidas por uma elite participante do sistema dá atenção insuficiente e no mesmo sentido v A generalidade das normas jurídicas também deixada de lado pelas teorias positivistas Aqui lembremos que em Waldron em sua associação entre os conceitos de Direito e império da lei o caráter público e geral das normas passa a ser um requisito de um sistema jurídico legítimo Daí por que o positivismo é um possível ponto de partida para a proposta waldroniana de uma teoria democrática o autor sugere que quando se coloca os elementos iv e v publicidade e generalidade ao lado de uma releitura democrática dos elementos i e ii tese das fontes e reconhecimento das normas emerge uma democratic jurisprudence uma teoria que trata o elemento positivista iii tese da separabilidade não como uma ideia conceitual austiniana mas a partir da ideia de que em uma democracia é preciso saber separar a proposição de que p1 Uma norma foi adotada da forma certa do ponto de vista procedimental de uma proposição p2 A norma certa foi adotada Tratase afinal 624 Grifos meus I have more faith in positivist jurisprudence than Dworkin does and in what follows I shall use that body of theory as a starting point in my exploration of the prospects for a democratic jurisprudence I do not mean to suggest that there can be no democratic jurisprudence except a positivist one Nor do I mean to suggest that democracy is positivisms destiny The most I will claim is that democratic jurisprudence provides an interesting interpretation of some features of contemporary legal positivism that look a little odd standing on their own WALDRON Jeremy Can There Be a Democratic Jurisprudence Emory Law Journal vol 58 n 03 2009 pp 675712 171 exatamente de uma releitura dos pressupostos positivistas com uma ênfase muito maior nos elementos que Waldron considera necessários a um sistema jurídico digno do nome625 E na medida em que o próprio autor define o positivismo normativo como aceitação das teses inclusivistas prescrição das teses exclusivistas pareceme muito claro que a proposta de Waldron está para muito além disso Não me parece sem razão pois que Waldron use sempre o termo democratic jurisprudence e não mais positivismo normativoético Ao mesmo tempo porém em que Waldron concorda com Dworkin com relação ao caráter essencialmente argumentativo da prática jurídica e portanto compartilhe das críticas interpretativistas ao positivismo acredito que sua maior insistência nas possibilidades democráticas de uma releitura de certos pressupostos positivistas tem a ver com algumas de suas ressalvas à concepção dworkiniana Waldron é mais otimista que Dworkin com relação ao positivismo como um ponto de partida frisese mas bastante mais pessimista com relação ao ideal de integridade Segundo Waldron o processo decisório de um juiz dworkiniano Hércules é demasiadamente difícil cada juiz deve idealmente considerar a gama completa de analogias possíveis locais e remotas entre o caso à sua frente e outros casos que podem ter sido decididos pelas cortes sendo assim as exigências da integridade acabam por estabelecer uma série de questões cuja resolução tornase praticamente impossível Não sendo portanto por menos que Dworkin tenha batizado seu juiz hipotético com o nome de um semideus E na medida em que essas questões tornamse inevitavelmente mais e mais complexas é muito possível que dois juízes igualmente responsáveis e de boafé cheguem a resultados diferentes Quando as questões são mais complexas e os ônus de julgamento maiores desacordos são quase inevitáveis626 Waldron ilustra seu ponto no seguinte sentido imagine dois juízes chameos de Hércules e Heraclea Hércules627 é um juiz liberal Heraclea uma juíza 625 Cf WALDRON Jeremy Can There Be a Democratic Jurisprudence Emory Law Journal vol 58 n 03 2009 pp 675712 626 That is why the decisionproblem faced by a Dworkinian judge is so difficult each judge ought ideally to consider the full range of possible analogies local and remote between the case in front of him or her and other cases that have been decided by the courts The requirements of integrity define an almost impossibly difficult array of questions for each judge to consider in Dworkinian jurisprudence This is why the judges are named for demigods It is to be expected that different judges reasoning their way to their utmost ability through these questionsreasoning competently and in a scrupulously objective spirit will come up with different answers Where the questions are more complex and the burdens of judgment greater disagreement is almost inevitable WALDRON Jeremy Lucky in Your Judge Theoretical Inquiries in Law Tel Aviv vol 09 n 01 2008 pp 185216 627 Sobre o juiz Hércules e Waldron uma curiosidade Waldron em breve nota diz que por vezes reflete e questionase se não teria sido mais interessante que Dworkin tivesse optado por um advogado ideal em vez de um juiz ideal de modo a considerar também a presença de argumentos adversariais contrários a serem refutados o que não ocorre no caso de um juiz que escreve sua opinion de seu gabinete Cf a nota n 62 em 172 conservadora Ainda que ambos adotem a integridade como sua concepção e sigam os passos por ela prescritos e obedeçam in their hearts of hearts todas suas exigências ou seja ainda que o raciocínio subjacente a seus processos decisórios não seja arbitrário ainda assim casos similares podem ter respostas diferentes628 Notese que isso não é nenhuma injustiça de Waldron para com a proposta de Dworkin os juízes dworkinianos consideram sim seus princípios próprios de moralidade e justiça é verdade apenas aqueles que acreditem de boa fé fazerem parte de uma interpretação geral coerente da cultura jurídica e política da comunidade em questão629 Ainda assim princípios próprios Da mesma maneira o próprio Dworkin diz expressamente que as razões que sustentam as exigências da integridade persistem mesmo quando juízes discordam sobre a melhor interpretação da ordem política admitindo portanto ao menos a possibilidade do cenário ilustrado por Waldron630 Alguém poderia dizer que voltamos ao início a saída então seria a prescrição de um tipo de positivismo exclusivo eliminando todo tipo de raciocínio moral que permeia o raciocínio judicial e recorrendo a leis mais facilmente aplicáveis não631 Não exatamente O mérito de Waldron um dos méritos de Waldron está em perceber que as coisas não são tão simples632 A interpretação e o caráter argumentativo a moralidade própria esses elementos são inescapáveis à prática jurídica Afinal o que nós temos no raciocínio WALDRON Jeremy Did Dworkin Ever Answer the Crits In HERSHOVITZ Scott ed Exploring Laws Empire The Jurisprudence of Ronald Dworkin Oxford Oxford University Press 2012 p 171 628 Ver a seguinte passagem Suppose Hercules is a liberal ie suppose he is convinced that certain liberal positions are the objectively right answers to exactly the questions that his role requires him to address He will be aware that some defendants will think themselves lucky to have his Dworkinian reasoning deciding their case rather than the Dworkinian reasoning of another wellknown judge called Heraclea who articulates and argues in the same objective spirit for different more conservative postulates of justice and different more conservative interpretations of the relation between one precedent and another And Hercules may be aware that parties may sometimes complain that they have been unfairly treated because they did not get the benefit of his liberal reasoning as other people did in cases similar to theirs Em WALDRON Jeremy Lucky in Your Judge Theoretical Inquiries in Law Tel Aviv vol 09 n 01 2008 pp 185216 629 Cf DWORKIN Ronald A Matter of Principle Cambridge Harvard University Press 1985 p 02 630 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Londres Belknap Press 1986 pp 239 264 412 We want our officials to treat us as tied together in an association of principle and we want this for reasons that do not depend on any identity of conviction among these officials either about fit or about the more substantive principles an interpretation engages Our reasons endure when judges disagree at least in detail about the best interpretation of the communitys political order because each judge still confirms and reinforces the principled character of our association by striving in spite of the disagreement to reach his own opinion I have not devised an algorithm for the courtroom No electronic magician could design from my arguments a computer program that would supply a verdict everyone would accept once the facts of the case and the text of all past statutes and judicial decisions were put at the computers disposal 631 It is tempting to see the musings of this Article as prelude to an argument for something like Exclusive Legal Positivism The argument would go as follows So long as there are prominent elements of moral reasoning in law the outcomes of lawsuits are bound to depend on the happenstance of a given cases being argued before one judge rather than another So let us eliminate that element altogether and replace the sort of jurisprudence that calls for moral reasoning with a body of easily applicable law that does not WALDRON Jeremy Lucky in Your Judge Theoretical Inquiries in Law Tel Aviv vol 09 n 01 2008 pp 185216 632 I am not sure this would improve the situation any more than integrity does WALDRON Jeremy Lucky in Your Judge Theoretical Inquiries in Law Tel Aviv vol 09 n 01 2008 pp 185216 173 judicial é uma mistura uma mistura que em sua riqueza e textura diferese consideravelmente tanto de um raciocínio puramente moral quanto da versão de raciocínio letradalei que certos positivistas ingênuos podem imaginar633 Mais um importante ponto de transcendência de Waldron para com o positivismo mesmo que em uma vertente normativa Seja como for e ainda que rejeite o positivismo Waldron dá mais valor que Dworkin aos ideais democráticos que o próprio Dworkin reconhece e identifica634 no positivismo em suas origens ideais que na concepção de Waldron talvez sejam mais garantidos melhor observados se certos princípios democráticos que podem ser extraídos dos ideais positivistas clássicos ou da releitura de teses positivistas modernas sejam reforçados Não se trata de rejeitar a integridade mas de revitalizar a preocupação positivista com questões como previsibilidade autoridade e sobretudo coordenação social e resolução de disputas e desacordos Coordenação social e resolução de desacordos é o que serve de ponte ao próximo tópico de discussão afinal se tanto Waldron quanto Dworkin desenvolvem cada um à sua maneira teorias jurídicas normativas e democráticas é natural que seus pressupostos teóricos tenham repercussões e consequências práticas e se ambos dão ênfases diferentes em níveis diferentes a princípios diferentes também esse desacordo terá consequências práticas Retomando a frase que serve de epígrafe à Introdução desta pesquisa para Waldron já passa da hora de a filosofia jurídica acordar para questões substantivas chega de discutir o que Hart disse ou devia ter dito a Dworkin635 Waldron parece sofrer do mesmo problema ao menos era um problema para John Gardner que sofria Dworkin a ideia de que a filosofia no Direito deve ser interessante636 E se ambos concordam que a jurisprudence pode ser algo interessante passemos àquilo que interessantemente materializa o seu desacordo o judicial review ie o controle difuso de constitucionalidade do tipo praticado nos Estados Unidos637 633 Tradução livre grifos meus What we have with legal reasoning is a mélange of reasoning which in its richness and its texture differs considerably from pure moral reasoning as well as from the pure version of blackletter legal reasoning that certain naïve positivists might imagine WALDRON Jeremy Judges as Moral Reasoners International Journal of Constitutional Law vol 07 n 01 jan 2009 pp 0224 634 Dworkin atribui uma tônica democrática ao positivismo clássico sobretudo em sua versão benthamiana Cf DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 p 211 635 WALDRON Jeremy Partly Laws Common to All Mankind Foreign Law in American Courts New Haven e Londres Yale University Press 2012 p 23 636 Em Justice in Robes Dworkin conta um episódio em que em um encontro com John Gardner em Oxford disse pensar que a filosofia jurídica deve ser interessante Gardner incrédulo teria respondido algo como Vê Esse é seu problema Cf DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 p 186 637 Mantenho a expressão original em vez de traduzila para evitar possíveis confusões com o controle judicial de constitucionalidade brasileiro Nesse sentido é preciso que fique claro que falo do controle difuso de constitucionalidade nos EUA que nasce da Supremacy Clause VI 2 da Constituição NorteAmericana que exige de cada juiz a observância da supremacia do texto constitucional em razão das características próprias da Constituição do país muito diferente da nossa analítica por excelência 174 Do acordo com relação aos desacordos em Direito passemos ao desacordo entre Waldron e Dworkin que se dá a partir do acordo de ambos sobre a necessidade de uma teoria normativa interessante democrática 33 WALDRON E DWORKIN DESACORDOS A PARTIR DOS ACORDOS Antes vimos que Waldron embora concorde com Dworkin com relação às insuficiências do positivismo tradicional propõe uma releitura democrática de teses tipicamente identificadas como teses positivistas vimos que Waldron diz ter mais fé que Dworkin no positivismo de forma que utiliza seu corpo teórico como um ponto de partida na construção de uma nova teoria democrática 638 Agora retomando essa mesma passagem é importante destacar uma das razões que Waldron identifica em Dworkin como uma das justificativas para seu maior ceticismo com relação aos pressupostos positivistas Ronald Dworkin observa que o positivismo jurídico costumava ser associado a valores democráticos na obra de Jeremy Bentham por exemplo ou na teoría jurídica progressista nos Estados Unidos na primeiro parte do séc xxi Aqui Waldron referese à passagem já por mim mencionada de Justice in Robes em que Dworkin fala sobre os valores subjacentes ao positivismo benthamiano Dworkin pensa que essa conexão foi perdida em parte porque ele associa a democracia a uma teoría jurídica de direitos reforçados pelo Judiciário e os positivistas na sua visão nunca foram muito contundentes nesse sentido e em parte porque ele pensa que os filósofos analíticos em seu posto de guardiões do último suspiro do positivismo voltaramse contra qualquer tipo de conexão política639 Waldron concorda com Dworkin em apontar que os filósofos analíticos erram ao abandonar as conexões entre jurisprudence e teoria política só que e este é o ponto discorda fundamentalmente que a democracia esteja necessariamente associada a uma concepção de direitos reforçados pelo Poder Judiciário O acordo e o desacordo para Dworkin e Waldron i a teoria jurídica pode e deve ser liberaldemocrática mas ambos ii discordam sobre a 638 I have more faith in positivist jurisprudence than Dworkin does and in what follows I shall use that body of theory as a starting point in my exploration of the prospects for a democratic jurisprudence WALDRON Jeremy Can There Be a Democratic Jurisprudence Emory Law Journal vol 58 n 03 2009 pp 675712 639 Grifos meus Ronald Dworkin has observed that legal positivism used to be associated with democratic valuesin the work of Jeremy Bentham for example or in American Progressive jurisprudence in the first part of the twentieth century24 Dworkin thinks that this connection has been lostpartly because he associates democracy with a jurisprudence of rights enforced by the judiciary and positivists in his view have never been strong on that and partly because he thinks that analytic legal philosophers have turned against any sort of political connection in their capacity as guardians of positivisms death rattle WALDRON Jeremy Can There Be a Democratic Jurisprudence Emory Law Journal vol 58 n 03 2009 pp 675712 175 melhor interpretação da ideia de democracia que afinal é um termo contestável640 par excellence e a atuação do Poder Judiciário dentro de suas perspectivas distintas 331 Democracia e judicial review As críticas de Waldron ao judicial review constituem fundamentalmente a parcela mais conhecida e discutida de sua teoria especialmente em nosso contexto acadêmico sendo nosso o contexto latinoamericano Trazêla aqui portanto é importante por uma série de aspectos i a própria relevância do assunto já torna importante a discussão e ii demonstra que a proposta de democratic jurisprudence de Waldron tem repercussões práticas significativas Além disso tratase iii da materialização do desacordo políticofilosófico entre Waldron e Dworkin de modo que explicar a posição do primeiro tornase mais fácil se abordada em contraste com os argumentos do segundo Muito bem Qual é o contexto do debate Dworkin e Waldron concordam com relação à questão dos desacordos teóricos em Direito Mas uma vez resolvida a questão conceitual e resolvida em favor de um Direito entendido como prática interpretativoargumentativa como devem ser resolvidas as questões morais e institucionais Dito de outro modo como deve o Direito responder aos desacordos morais profundos em sociedades modernas Afinal se há poucos consensos em sociedade paradoxalmente um deles é precisamente o fato de que discordamos entre nós mesmos Discordamos todos concordam com isso Somos muitos e são muitos nossos desacordos Não discordamos apenas sobre a existência de Deus e o sentido da vida diz Jeremy Waldron discordamos também sobre o que conta como termos 640 Democracia é exatamente o termo que Waldron toma como exemplo para explicar a definição de contestabilidade Um predicado P é contestável se 1 não for implausível dizer tanto algo é P se também for A quanto algo é P se também for B como explicações alternativas do significado de P se 2 também houver um elemento e de força valorativa ou normativa atrelada ao significado de P e se 3 como consequência de 1 e 2 houver um histórico do uso de P de forma a significar padrões ou princípios rivais tais como A é e e B é e Exemplo O termo democracia é contestável porque 1 enquanto é plausível explicar seu significado em termos de representação não é implausível explicálo em termos de participação direta 2 o termo tem um sentido valorativo favorável e deve ser promovido etc e 3 há como consequência de 1 e 2 um histórico de usos do termo para reivindicar princípios políticos rivais tais como Todo sistema político deve ter uma estrutura representativa e Devemos encorajar a participação popular direta no governo Grifos meus tradução livre A predicate P is contestable if 1 it is not implausible to regard both something is P if it is A and something is P if it is B as alternative explications of the meaning of P and 2 there is also an element e of evaluative or other normative force in the meaning of P and 3 there is as a consequence of 1 and 2 a history of using P to embody rival standards or principles such as A is e and B is e Example The term democracy is contestable because 1 while it is plausible to explicate its meaning in terms of representation it is also not implausible to explicate its meaning in terms of direct participation in government 2 the term has a favorable evaluative meaning e ought to be promoted etc and 3 there is as a consequence of 1 and 2 a history of using the term democracy to embody rival political principles such as Every political system should have a representative structure and We ought to encourage direct popular participation in government WALDRON Jeremy Vagueness in Law and Language Some Philosophical Issues California Law Review vol 82 n 03 1994 pp 509540 176 justos de cooperação entre pessoas que discordam sobre a existência de Deus e o sentido da vida Discordamos portanto também sobre o que devemos uns aos outros como uma questão de tolerância respeito cooperação e auxílio mútuo641 Discordamos portanto sobre justiça e sobre moralidade política Isso significa dizer que nossos desacordos não se dão somente com relação a questões que dizem respeito a nós próprios e ninguém mais Nossas divergências relacionamse também com aquilo que corresponde à melhor maneira de resolver essas divergências próprias especialmente em sociedades formadas por cidadãos que sustentam diferentes perspectivas e concepções de justiça de moralidade do bom do justo do certo E se o Direito é essencialmente argumentativo nossos desacordos sobre digamos nosso sistema tributário não se encerram em uma lei que o organize porque também haverá desacordos quando discutirmos o sentido autêntico por trás da norma a melhor interpretação do significado subjacente à diretriz legislativa É precisamente por isso que não basta definir o Direito com uma das instâncias responsáveis por regular nossos desacordos é necessário também que se diga como Se é verdade então que Dworkin e Waldron concordam tanto i com relação ao papel que o Direito preenche nesse sentido um papel de resolução democrática quanto ii com relação à sua natureza interpretativa argumentativa também é verdade que ambos discordam com relação a algumas das perguntas que surgem exatamente a partir desse acordo inicial Cada um deles portanto responde de forma diferente à pergunta que poderíamos elaborar da seguinte forma se i o Direito é uma das instâncias que regulam nosso comportamento e deve exercer sua função de maneira democrática e ii enquanto sociedade discutimos sobre a melhor interpretação desse exercício democrático qual deve ser então o papel i de um lado dos legisladores do Parlamento e ii de outro dos juízes e das Cortes nisso a que chamamos Direito e conferimos a competência de resolver nossos desacordos Em outras palavras e simplificando do ponto de vista institucional e democrático quem deve ter a última palavra na resolução de nossos desacordos morais em sociedade A resposta de cada um dos autores ao mesmo tempo indica e também já pressupõe suas concepções de democracia Já tivemos uma pista quando mencionada a passagem em que Waldron a ele atribui uma visão em favor de direitos reforçados pelo Judiciário que para Dworkin não há que se 641 There are many of us and we disagree about justice That is we not only disagree about the existence of God and the meaning of life we disagree also about what count as fair terms of cooperation among people who disagree about the existence of God and the meaning of life We disagree about what we owe each other in the way of tolerance forbearance respect cooperation and mutualaid Com essas palavras Waldron abre sua magnum opus WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 01 177 falar em ofensa à democracia quando questões de direitos são resolvidas pelas Cortes Em Dworkin a democracia liberal é algo que transcende as noções que envolvem apenas um ideal meramente majoritário Direitos individuais políticos funcionam como trumps como trunfos em face de argumentos que porque baseados em préargumentos anteriores de cunho majoritário podem muitas vezes carregar um viés utilitárioinstrumental intrínseco642 A regra da maioria não tem qualquer valor por si só e em si mesma643 É essencialmente com base nessas premissas de fundo e em razão delas que Dworkin sustenta que em muitas questões sensíveis tais como questões que envolvam relações raciais644 por exemplo legisladores estão sujeitos a pressões às quais juízes não estão razão pela qual teríamos boas razões para supormos que juízes estão mais propensos a chegar em conclusões sensatas sobre direitos645 Afinal dirá Dworkin o processo majoritário mesmo quando esclarecedor encoraja compromissos que podem subordinar importantes questões de princípio646 É verdade Dworkin reconhece que quando controvérsias políticas são decididas por legislaturas é provável que a decisão seja orientada por aquilo que a maioria deseja o que seria obviamente desejável quando uma questão voltase ao que está no interesse da comunidade como um todo Em certos casos é verdade os números devem contar Mas nem sempre quando se estiver a discutir questões de princípio fundamental como é o caso de decidir se os negros têm ou não um direito constitucional de proteção contra a discriminação é importante que o público participe da decisão não porque a comunidade deve chegar à decisão favorecida pela maioria mas porque o respeito próprio exige que as pessoas participem como parceiros em uma empreitada comum do argumento moral sobre as regras sob as quais vivem Há uma diferença portanto entre o poder de um único cidadão sobre uma decisão coletiva um poder praticamente ilusório em um país populoso e seu papel enquanto agente moral que é por vezes melhor protegido se os mecanismos de decisão não são em última instância majoritários647 642 Cf DWORKIN Ronald A Matter of Principle Cambridge Harvard University Press 1985 pp 59 68 82 DWORKIN Ronald Freedoms Law The Moral Reading of the American Constitution Oxford Oxford University Press 2005 pp 0137 643 Cf DWORKIN Ronald Justice for Hedgehogs Cambridge Belknap Press 2011 p 348 644 O exemplo é do autor 645 Grifos nossos e tradução livre para legislators are subject to pressures that judges are not and this must count as a reason for supposing that at least in such cases judges are more likely to reach sound conclusions about rights DWORKIN Ronald A Matter of Principle Cambridge Harvard University Press 1985 p 25 646 Grifos meus Even when the debate is illuminating the majoritarian process encourages compromises that may subordinate important issues of principle DWORKIN Ronald Freedoms Law The Moral Reading of the American Constitution Oxford Oxford University Press 2005 p 30 647 Trecho adaptado e traduzido livremente da seguinte passagem It is true of course that when political controversies are decided by legislatures or other elected officials the decision is likely to be governed by what most people want That is desirable when an issue turns on the question of what is in the best interests of the 178 Nesse sentido o argumento de Dworkin é teorético institucional648 e sobretudo um argumento de moralidade política Na medida em que é a própria democracia que exige a proteção de direitos individuais649 o judicial review é uma prática autenticamente democrática que responde às insuficiências do majoritarianismo aparecendo como um elemento característico da democracia norteamericana um elemento invejado e copiado que força o debate político a incluir argumentos sobre princípios não apenas quando um caso chega à Suprema Corte mas também muito antes e muito depois650 É portanto uma prática democrática e democrática porque retira algumas discussões do campo de batalha da política do poder e leva essas mesmas questões ao fórum de princípio prometendo que os conflitos mais profundos e fundamentais entre indivíduo e sociedade serão tratados como questões de justiça651 Em síntese em Dworkin o judicial review é a prática institucional que possibilita que em uma democracia os direitos sejam trunfos sobre a maioria garantidos não por políticas do jogo político mas por príncipio no fórum de princípio E Waldron Retomar a epígrafe de seu Law and Disagreement que serve igualmente de epígrafe ao primeiro capítulo desta pesquisa em que trato do positivismo clássico já garante uma indicação bastante elucidativa acerca de seu posicionamento nessa questão 3311 O argumento contra o judicial review É em Leviathan que Thomas Hobbes diz que community as a whole and the gains to some group are balanced against losses to others In such matters numbers should count But they need not count at least not for that reason in matters of fundamental principle when the community must decide for example whether blacks have a constitutional right to be protected from discrimination In such cases it is important that the public participate in the decision not because the community should reach the decision most people favor but because selfrespect requires that people participate as partners in a joint venture in the moral argument over the rules under which they live There is a distinction between a single citizens power over a collective decision which in a large nation is all but illusory and that citizens role as a moral agent participating in his own governance which is sometimes better protected if the mechanisms of decision are not ultimately majoritarian DWORKIN Ronald Freedoms Law The Moral Reading of the American Constitution Oxford Oxford University Press 2005 p 344 648 Cf DWORKIN Ronald A Matter of Principle Cambridge Harvard University Press 1985 p 28 649 Cf DWORKIN Ronald Justice for Hedgehogs Cambridge Belknap Press 2011 p 05 650 Judicial review is a distinctive feature of our political life envied and increasingly copied elsewhere It is a pervasive feature because it forces political debate to include argument over principle not only when a case comes to the Court but also long before and long after DWORKIN Ronald A Matter of Principle Cambridge Harvard University Press 1985 p 70 651 We have an institution that calls some issues from the battleground of power politics to the forum of principle It holds out the promise that the deepest most fundamental conflicts between individual and society will once someplace finally become questions of justice DWORKIN Ronald A Matter of Principle Cambridge Harvard University Press 1985 p 71 179 quando os homens que se julgam mais sábios do que todos os outros clamam e exigem que o critério de julgamento seja a razão reta right reason objetivam nada mais senão que as coisas sejam determinadas não pela razão de outros homens mas pela sua própria Isso é tão intolerável na sociedade dos homens como no jogo uma vez escolhido o trunfo em todas ocasiões subsequentes usar como trunfo aquela série de que se tem mais cartas na mão652 A razão pela qual Waldron opta por essa passagem como destaque indicativo inicial de sua obra iluminase a partir de suas considerações sobre o judicial review em face do argumento dworkiniano de que direitos são trunfos contramajoritários Como vimos é inegável que as pessoas discordam sobre justiça e sobre direitos e na medida em que esses desacordos sejam razoáveis sensatos e de boafé essa circunstância política leva Waldron a sustentar que a última palavra em decisões sobre direitos não deve caber a juízes Afinal se há desacordos sobre direitos em sociedade então direitos como tais não podem ser trunfos sobre procedimentos majoritários é a esse tipo de procedimento que apelamos para determinar o posicionamento que deve ser mantido como o posicionamento social sobre direitos apesar dos desacordos profundos Nós precisamos de direitos jurídicos determinados Waldron reconhece e é precisamente por isso que precisamos de procedimentos políticos para selecionar quais serão esses direitos procedimentos decisórios que não pressuponham como é o caso da ideia de direitos como trunfos que já decidimos entre nós mesmos que tipo de direitos temos e em que consiste fundamentalmente a ideia abstrata de justiça Então se em Dworkin direitos são trunfos a serem reforçados de forma contramajoritária pelo Judiciário Waldron hobbesianamente dirá que não podemos jogar trunfos se discordamos com relação aos naipes das cartas653 Direitos não podem servir de 652 And when men that think themselves wiser than all others clamor and demand right Reason for judge yet seek no more but that things should be determined by no other mens reason but their own it is as intolerable in the society of men as it is in play after trump is turned to use for trump on every occasion that suite whereof they have most in their hand HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 pp 111112 653 As citações do trecho traduzidas livremente extraídas da seguinte passagem People disagree about justice and rights The intractability of this disagreement and the understanding that it is reasonable goodfaith disagreement is the background to the general argument I have made against empowering judges to make final decisions about rights I have argued that if there is disagreement about rights in society then rights as such cannot be trumps over procedures like majoritydecision which might have to be appealed to in order to determine the social position on rights that is to be maintained in spite of such disagreement We cannot play trumps if we disagree about the suits We need determinate legal rights and we need political procedures for sorting out what these shall be We must set up a decisionprocedure to settle this matter and we must argue for it in a way that does not presupposeas the trumps idea presupposesthat we have settled already among ourselves what rights we have and what justice consists in WALDRON Jeremy Moral Truth and Judicial Review The American Journal of Jurisprudence vol 43 n 01 jan 1998 pp 7597 180 trunfos sobre procedimentos majoritários se as pessoas discordam com relação a quais são e como se materializam esses direitos básicos654 Dworkin é muito claro ao clamar pela transferência da discussão sobre direitos da política o suposto centro de poder para as Cortes o suposto fórum de princípio Para Waldron esse tipo de argumento i reforça uma ideia de que a atividade legislativa é uma atividade essencialmente baseada em interesses espúrios em negociatas trocas de favores uma atividade baseada em tudo menos em processos decisórios de princípio e ii assim o faz exatamente para silenciar as possíveis dificuldades democráticas que emergem do ideal contramajoritário subjacente ao judicial review Esse tipo de argumento para Waldron compara uma imagem cínica do processo legislativo com uma imagem idealizada das Cortes é um argumento que não coloca as legislaturas digamos sob sua melhor luz como uma possível fonte respeitável de Direito na qual representantes decidem os rumos comuns em nome das diferenças de opinião e princípios na comunidade em que representam655 Dito isso é importante ressaltar o argumento de Waldron não passa apenas ou necessariamente por um certo ceticismo com relação ao Judiciário ou por uma visão mais favorável do processo políticolegislativo A grande questão que o faz rejeitar o judicial review é exatamente a existência de desacordos sobre justiça em sociedade Waldron reconhece que o processo democrático é imperfeito e que historicamente a prática do judicial review garantiu decisões que reforçavam o compromisso social com direitos individuais Por outro lado essa é praticamente a única coisa boa que tem a dizer sobre o review judicial da legislação um modo de decisão final resolutória que é inapropriado a uma sociedade livre e democrática656 Seja como for Waldron sustenta a possibilidade de um argumento contra o judicial review que independe de suas manifestações históricas e de eventuais efeitos particulares de decisões específicas positivos ou negativos657 Seu ponto central é são os seguintes i esse tipo de processo ao contrário do que alegam seus defensores não garante ou atrai a atenção dos cidadãos ao que realmente importa nas questões sobre as quais eles discordam uma vez que o judicial review envolve muitas 654 Ver também WALDRON Jeremy A RightBased Critique of Constitutional Rights Oxford Journal of Legal Studies vol 13 n 01 spring 1993 pp 1851 655 Cf WALDRON Jeremy The Dignity of Legislation Cambridge Cambridge University Press 1999 p 02 656 That is almost the last good thing I shall say about judicial review which is inappropriate as a mode of final decisionmaking in a free and democratic society WALDRON Jeremy The Core of the Case against Judicial Review The Yale Law Journal vol 115 n 06 abr 2006 p 1348 657 What I want to do is identify a core argument against judicial review that is independent of both its historical manifestations and questions about its particular effectsthe decisions good and bad that it has yielded the heartbreaks and affirmations it has handed down WALDRON Jeremy The Core of the Case against Judicial Review The Yale Law Journal vol 115 n 06 abr 2006 p 1351 181 questões laterais acerca de interpretação judicial respeito a ou afastamento de precedentes estabelecidos etc e ii é politicamente ilegítimo de modo que retirando o peso do voto dos cidadãos ordinários e dos princípios de representação e equanimidade política privilegia o voto igualmente majoritário de um pequeno número de juízes nãoeleitos658 Nesse sentido Waldron esclarece que sua crítica é diretamente voltada ao controle judicial de legislação e não de decisões administrativas esclarece também que seus argumentos direcionamse contra aquilo a que chama de strong judicial review um controle forte por meio do qual as Cortes têm a autoridade de absterse de aplicar ou de fixar a nãoaplicação de um estatuto ou diretriz legislativa por vezes até de revogar diretamente a legislação Waldron não tem problemas com um eventual controle fraco weak judicial review por meio do qual as Cortes revisam determinados estatutos que parecem não se conformar à ideia de direitos individuais e emitem uma espécie de declaração de incompatibilidade com uma convenção internacional ratificada por exemplo sem contudo a prerrogativa de revogar a lei ou fixar sua nãoaplicação é o que acontece por exemplo no Reino Unido em que esse tipo de declaração autoriza ministros a iniciar um processo legislativo visando a remediar eventual incompatibilidade sem permitir que juízes abstenhamse de aplicar aquilo que foi aprovado pelo Parlamento659 Essa não é a única premissa na qual o argumento de Waldron está baseado Todas suas críticas ao judicial review serão válidas somente em uma sociedade com i instituições democráticas aceitavelmente sólidas incluindo uma legislatura representativa e eleita por meio de um processo de sufrágio adulto universal ii uma série de instituições judiciárias igualmente sólidas formadas de forma nãorepresentativa e aptas a solucionar conflitos e garantir o império da lei iii o comprometimento da maioria dos membros da sociedade com a ideia de direitos individuais e direitos de minorias e iv desacordos persistentes substantivos e de boafé com relação ao significado e às implicações desses direitos com os quais os membros dessa sociedade estão comprometidos O ponto de Waldron é que uma sociedade nessas condições será mais democrática se a resolução desses desacordos couber às instituições legislativas e que o argumento em favor da resolução final por meio das Cortes 658 Cf WALDRON Jeremy The Core of the Case against Judicial Review The Yale Law Journal vol 115 n 06 abr 2006 p 1353 Esse ponto acerca do princípio majoritário entre os juízes tão frequentemente ignorado pelos defensores do judicial review é reforçado em vários escritos de Waldron Cf por exemplo WALDRON Jeremy Moral Truth and Judicial Review The American Journal of Jurisprudence vol 43 n 01 jan 1998 pp 7597 WALDRON Jeremy Five to Four Why Do Bare Majorities Rule on Courts The Yale Law Journal vol 123 n 06 abr 2014 pp 16921730 659 WALDRON Jeremy The Core of the Case against Judicial Review The Yale Law Journal vol 115 n 06 abr 2006 pp 13531355 182 em uma sociedade que satisfaça esses requisitos será muito pouco convincente660 As críticas de Waldron portanto aplicamse somente em sociedades cuja democracia é constituída e sólida tornando seus argumentos em favor de procedimentos majoritários legítimos mesmo em face da premissa dworkiniana de que procedimentos democráticos só o são quando os cidadãos respeitam os direitos alheios Em síntese repetindo os problemas de Waldron com o judicial review são i esse tipo de processo não garante ou atrai a atenção dos cidadãos ao que realmente importa nas questões sobre as quais eles discordam e ii é politicamente ilegítimo Com relação a i vimos que Dworkin prefere a discussão no fórum de princípio longe do campo de batalha da política Waldron questiona não é melhor não seria mais correto que o local apropriado para uma discussão moral sobre direitos fosse onde a discussão não envolve doutrinas jurídicas precedentes e possíveis afastamento de precedentes textos interpretação e teorias da interpretação etc Tudo isso faz parte inevitavelmente do raciocínio judicial e sendo assim se importantes decisões sobre questões divisivas devem ser tomadas Waldron diz ser apropriado que elas sejam feitas em um ambiente institucional que é mais aberto mais explicita e intencionalmente aberto aos pontos de vista comentários e contribuições da sociedade do que são as Cortes661 Discutir questões como o aborto pode ser muito melhor se os princípios subjacentes sejam abordados diretamente sem que seja necessário aterse a um exercício de caligrafia constitutional662 sem que se precise discutir sobre a interpretação de um documento do século xviii a discussão sobre a pena de morte pode ser muito mais acertada se abordar direta e extensivamente questões sobre política criminal sobre princípios morais e substantivos sem que se precise discutir a leitura e a interpretação correta de uma cláusula constitucional que proíbe penas cruéis663 O raciocínio legislativo afinal é uma forma de raciocínio que deve ser estruturado em nome de toda a sociedade acerca de 660 We are to imagine a society with 1 democratic institutions in reasonably good working order including a representative legislature elected on the basis of universal adult suffrage 2 a set of judicial institutions again in reasonably good order set up on a nonrepresentative basis to hear individual lawsuits settle disputes and uphold the rule of law 3 a commitment on the part of most members of the society and most of its officials to the idea of individual and minority rights and 4 persisting substantial and good faith disagreement about rights ie about what the commitment to rights actually amounts to and what its implications are among the members of the society who are committed to the idea of rights WALDRON Jeremy The Core of the Case against Judicial Review The Yale Law Journal vol 115 n 06 abr 2006 p 1360 661 If important watershed decisions have to be made it seems to me appropriate that they should be made in an institutional setting that is more openand more explicitly and deliberately opento societal inputs than courts are WALDRON Jeremy Refining the Question about Judges Moral Capacity International Journal of Constitutional Law vol 07 n 01 jan 2009 pp 6982 662 Constitutional calligraphy 663 Cf WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 290 183 importantes questões morais exatamente por isso é importante que se proceda sem os limites impostos por textos doutrinas precedentes664 E com relação à ii ilegitimidade políticodemocrática do judicial review Dworkin na sua concepção de direitos como trunfos alega que na medida em que a legislação pode contrariar princípios democráticos fundamentais a decisão final com relação à sua validade deve caber à instituição que tiver mais probabilidade de chegar à resposta correta a melhor instituição será portanto aquela mais apta a oferecer os resultados democráticos certos665 Será Para Waldron haverá sempre um problema democrático intrínseco quando uma visão sore os princípios democráticos é imposta por uma instituição nãodemocrática mesmo quando essa visão for a visão moralmente correta e mesmo quando o resultado analisado isoladamente pareça democrático Não se pode resolver questões de democracia de forma antidemocrática mesmo que a resposta seja certa o procedimento é uma questão afinal de democracia666 O ponto de Dworkin contudo não deixa de ser relevante e se for a resposta correta Afinal uma objeção comum que se pode levantar aos argumentos de Waldron contra o judicial review seria algo como Ora você é um cético você não acredita na objetividade na possibilidade de uma resposta certa verdadeira sobre direitos individuais é óbvio que vai preferir mera contagem de cabeças como um procedimento decisório667 Em face dessa possível objeção Waldron dirá que a objetividade moral é irrelevante 3312 O argumento da irrelevância da objetividade moral Nós discordamos acerca de questões de princípio diz Waldron mas é claro que isso não significa que não haja respostas corretas668 Mas a possibilidade de que haja respostas corretas uma resposta correta não tem não deve ter consequências na política669 A objetividade moral é portanto irrelevante para o argumento de Waldron em favor dos procedimentos majoritários procedimentos que respeitam os desacordos e os 664 Cf Judges as Moral Reasoners International Journal of Constitutional Law vol 07 n 01 jan 2009 pp 0224 665 Cf DWORKIN Ronald Freedoms Law The Moral Reading of the American Constitution Oxford Oxford University Press 2005 p 34 666 Cf WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 pp 291294 302 667 Cf WALDRON Jeremy Moral Truth and Judicial Review The American Journal of Jurisprudence vol 43 n 01 jan 1998 pp 7597 668 We disagree on matters of principle but of course that does not mean there are no right answers WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 164 669 Cf WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 164 184 indivíduos que discordam Não se trata de negar a ideia de verdade não se trata de um relativismo moral do tipo você pensa que o aborto é correto eu penso que é incorreto concordemos em discordar respeitar os desacordos é tratar com respeito as crenças de cada um acerca da justiça em circunstâncias nas quais nenhuma delas é autocertificável670 Quem bem define o ponto de Waldron nesse sentido é Andrea Faggion que diz que na leitura do autor pode até existir mesmo uma única resposta objetivamente correta para cada uma das divergências que possam surgir entre nós o que não existe é uma metodologia compartilhada por nós que nos permita provar a todos qual seria essa resposta671 Expliquemos a partir do início da argumentação do autor Vejamos o realismo moral é como os filósofos chamam a tese segundo a qual é possível falar em coisas como uma verdade moral objetiva e juízos morais objetivamente falsos Dito de outro modo realistas morais são aqueles que sustentam que proposições morais dizem respeito a fatos e que essas proposições podem ser verdadeiras exatamente na medida em que reportem bem os fatos a que se referem sustentam portanto que algumas proposições morais são verdadeiras672 Logicamente o antirrealismo é a antítese filosófica dessa alegação673674 A questão que Waldron coloca a partir disso especialmente considerando que prima facie o realismo moral se verdadeiro parece ter consequências para nosso modo de pensar sobre os desacordos é a seguinte quais são as implicações dessas teses metaéticas às nossas posições sobre as relações entre juízos morais e juízos jurídicos Ou dito de outro modo e trazendo a discussão à questão substantiva que preocupa Waldron a eventual existência de uma resposta correta não legitimaria a prática do judicial review Embora o autor reconheça que a resposta afirmativa pareça ser a mais óbvia a sua é negativa Waldron portanto ataca a ideia comum de que realistas morais sentemse ou sentirseiam muito mais 670 O Segundo grifo é meu Respect has to do with how we treat each others beliefs about justice in circumstances where none of them is selfcertifying WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 111 671 FAGGION Andrea Democracia Liberal vs NeoFeudalismo Libertário O Estado de S Paulo São Paulo 11 dez 2018 Estado da Arte Disponível em httpsculturaestadaocombrblogsestadodaartedemocracia liberalvsneofeudalismolibertario Acesso em 12 mar 2019 672 Cf SAYREMCCORD Geoff Moral Realism In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Fall 2017 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesfall2017entriesmoralrealism Acesso em 13 mar 2019 673 Tradução livre Moral realism is what philosophers call the thesis that there are such things as objective moral truth and objective moral falsity and antirealism is the term for the philosophical denial of that thesis WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 164 674 Para mais detalhes e para a divisão específica dos nãorealistas entre nãocognitivistas e adeptos da error theory cf SAYREMCCORD Geoff Moral Realism In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Fall 2017 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesfall2017entriesmoralrealism Acesso em 13 mar 2019 185 confortáveis que antirrealistas com relação a juízes decidindo questões morais675 Para ele decisões morais em Direito tendem a ser tão arbitrárias para um realista moral quanto tendem a ser para qualquer um que se oponha à ideia de objetividade moral676 Lembremos o alerta do próprio autor Waldron não está a derivar da existência de desacordos em sociedade a ideia de que não há respostas corretas verdadeiras Ele concorda com realistas como Michael Moore677 por exemplo que dispõem que há um espaço lógico entre a existência de desacordos e a suposta nãoexistência de fatos morais objetivos mas discorda ao mesmo tempo que essa seja a única questão que os desacordos morais impõem aos realistas eles ainda representam uma dificuldade persistente ao realismo ainda que não impliquem sua falsidade na medida em que o realista fracassa em estabelecer conexões entre a ideia de objetividade e a existência de procedimentos que resolvam esses desacordos678 A título de exemplo por mais problemática que seja uma abordagem científicopositivista de uma realidade já complexa por si só há nas ciências naturais uma concepção minimamente ampla e aceita de método resolutório no caso de eventuais desacordos empíricocientíficos é dizer um número muito significativo de membros que compõem a prática em questão resolvem seus desacordos a partir dessa concepção de método e quando não são capazes de fazêlo ainda assim é possível referirse aos termos do próprio método para explicar por quê Entre filósofos morais não há nada sequer remotamente comparável Em vez disso cada visão segue sua própria teoria acerca do que conta como justificação679 Ainda no exemplo de Waldron utilitaristas têm uma visão frisese não apenas uma visão moral específica mas uma visão igualmente específica acerca de um método de verificação kantianos têm outra cristãos têm outra e por aí vai aristotélico tomistas nietzscheanos marxistas etc etc e etc todos reconhecem que seus desacordos são importantes o caso é que diferentemente de seus correspondentes na comunidade 675 Cf WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 169 676 Moral decisionmaking in law is likely to be as arbitrary for a moral realist as it is for any opponent of moral objectivity WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 170 677 Cf MOORE Michael S Moral Reality Wisconsin Law Review n 06 novdez 1982 pp 10611156 678 Grifos meus tradução livre e adaptação da seguinte passagem Moral disagreement remains a continuing difficulty for realism even if it does not entail its falsity so long as the realist fails to establish connections between the idea of objective truth and the existence of procedures for resolving disagreement WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 177 679 Among moralists there is nothing remotely comparable Instead each view comes along trailing its own theory of what counts as justification WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 178 186 científica eles não compartilham virtualmente nada em termos de uma epistemologia ou de um método por meio do qual esses desacordos podem ser em princípio aproximados680 Como exatamente devemos verificar a veracidade ou falsidade de um juízo moral O que esse processo de verificação envolve Quais procedimentos Que metodologia Nunca nos é dito681 Ainda assim há desacordos e aqueles que acreditam em respostas corretas não são capazes portanto de concordar com relação a como podemos chegar nessa resposta O que impõe a questão na medida em que o Direito é uma das instâncias que lidam diretamente com esses problemas como deve comportarse o juiz em face desses desacordos Mais especificamente a existência de uma resposta correta ie o realismo moral faz alguma diferença com relação aos problemas inerentes à arbitrariedade dos argumentos morais em Direito problemas como a imprevisibilidade a irracionalidade e a ilegitimidade democrática Autores realistas como o já mencionado Michael Moore sustentam que antirrealistas se honestos devem sempre qualificar seus próprios juízos morais com proposições do tipo Eu acho que Eu penso que mas é claro isso é apenas a minha opinião e que por isso para evitar a óbvia arbitrariedade que subjaz a esse tipo de afirmações os juízes devem acreditar na objetividade Um juiz cético sustenta Moore é o juiz que impõe sua opinião aos desafortunados litigantes682 O ponto porém dirá Waldron é que à luz de tudo que foi dito acerca da inexistência não de objetividade mas de uma epistemologia que a demonstre ainda que o ceticismo seja rejeitado ainda que haja fatos morais que tornam verdadeiros os juízos verdadeiros e falsos os juízos falsos ainda assim o melhor que um juiz pode fazer é impor sua opinião sobre os fatos tais aos desafortunados litigantes que vêm a juízo683 Afinal mesmo que também os litigantes em questão sejam como o juiz realistas morais eles questionarão por que a visão do juiz acerca dos fatos morais deve prevalecer sobre a sua A verdade do realismo moral se ele é verdadeiro não valida as crenças morais 680 They all acknowledge that the disagreements between them are important Yet unlike their counterparts in the scientific community they share virtually nothing in the way of an epistemology or a method with which these disagreements might in principle be approached WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 178 681 How exactly are we to assess the truth or falsity of a moral judgment What does the assessment involve What procedures What methodology We are never told WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 179 682 Hapless litigants Cf MOORE Michael S Moral Reality Wisconsin Law Review n 06 novdez 1982 pp 10611156 683 Even if scepticism is rejected even if there are moral facts which make true judgements true and false judgements false still the best a judge can do is impose his opinion about such facts on the hapless litigants who come before him WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 181 187 de qualquer indivíduo específico ou juiz específico 684 ela no máximo altera a compreensão acerca do caráter dos desacordos sem contudo aproximarnos de saber quem está certo e quem está errado com relação a determinada questão mesmo que objetiva Ou seja na medida em que há desacordos e não há uma metodologia compartilhada por meio da qual se possa resolvêlos o juiz encarregado de juízos morais quando do processo decisório também deverá qualificar seus próprios juízos morais com proposições do tipo Eu acho que Eu penso que mas é claro isso é apenas a minha opinião mesmo que o realismo moral seja verdadeiro Seja ele um realista ou não se ele entender que não é a única pessoa em sociedade que detém uma opinião sobre a questão moral à sua frente e que seja essa questão factual objetiva ele terá a consciência de que haverá ao menos um nível de arbitrariedade na prevalência de sua posição seja ela uma mera opinião ou uma crença genuína sobre as outras685 Voltemos então i aos três principais problemas identificados por Waldron como subjacentes à ideia de arbitrariedade nos juízos morais em decisões judiciais imprevisibilidade irracionalidade ilegitimidade democrática e ii a irrelevância da objetividade moral com relação a esses problemas próprios Primeiro com relação à i imprevisibilidade a existência de respostas morais verdadeiras objetivas faria qualquer diferença com relação à previsibilidade de decisões judiciais que envolvem elementos morais Dito de outro modo em que poderia contribuir a objetividade moral com relação à possibilidade de uma maior previsibilidade decisória Sem uma epistemologia moral minimamente aceita de forma ampla a resposta é para Waldron em nada686 Segundo com relação à ii irracionalidade se a pergunta com relação à arbitrariedade judicial for colocada em termos de O juízo moral em questão é simplesmente posto ou é derivado de considerações mais gerais o realista ainda que diga ter razões para agir no caso para decidir derivadas de fatos objetivos extrínsecos na medida em que não tem uma epistemologia não será capaz de demonstrar essas razões e sendo assim estará na mesma posição justificatória do antirrealista 687 E terceiro com relação à iii ilegitimidade democrática se o realismo moral for verdadeiro as crenças dos juízes podem entrar em choque com as crenças dos legisladores se o realismo é falso as atitudes e preferências dos juízes podem divergir das atitudes e 684 The truth of moral realism if it is true does not validate any particular persons or any particular judges moral beliefs WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 181 685 Cf WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 182 686 Without an epistemology the answer I think is nothing WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 182 687 Cf WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 183 188 preferências dos legisladores Novamente então assim como fez em The Dignity of Legislation Waldron alerta para a necessidade de uma comparação justa o melhor das Cortes deve ser comparado com o melhor das legislaturas o que as legislaturas têm de pior deve ser comparado com o que as Cortes têm de pior No ponto portanto defensores do judicial review não podem restringir sua posição metaética favorita àquele órgão que lhe parece o mais indicado para ter a última palavra em questões constitucionais como se as crenças dos juízes entrassem em choque com as atitudes e preferências dos legisladores como se o fórum de princípio fosse um paraíso realista e a arena da política fosse um inferno emotivista You cant have it both ways Ademais em face dos defensores do judicial review que à la Dworkin sustentam que juízes têm uma maior capacidade de decidir sobre questões morais Waldron insiste uma vez mais que os realistas morais não são capazes de produzir uma epistemologia correspondente a seus comprometimentos ontológicos de modo que a inadequação epistêmica do realismo moral tem consequências em questões práticas os realistas estão desprovidos de quase tudo que poderiam dizer ou argumentar em favor da objetividade688 Assim resumindo se o realismo é falso a eventual divergência entre Judiciário e Legislativo é uma colisão de meras preferências divergentes se o realismo é verdadeiro a eventual divergência é uma colisão entre crenças divergentes sobre questões de fato Mas o fato de essas crenças serem sobre questões factuais não tira da hipótese o mesmo elemento de arbitrariedade latente na hipótese antirrealista exatamente pela inexistência de uma metodologia verificatória compartilhada A arbitrariedade estará lá em qualquer versão metaética689 O que deve ser repetido reforçado então é basicamente o seguinte ao se opor i em termos teoréticos mais amplos à moralização judicial e ii em termos práticos mais específicos ao judicial review à última palavra do Judiciário sobre interpretação constitucional sobre questões divisivas Waldron não está sustentando a ideia de que os desacordos em sociedade significam a inexistência de objetividade ou de respostas corretas O ponto de Waldron é sua distinção entre aquilo que é uma questão de ontologia e aquilo que é uma questão de epistemologia a existência de respostas corretas de fatos morais é uma coisa uma metodologia compartilhada capaz de demonstrar essas respostas corretas essas fatos morais é oura A mera existência de uma resposta correta não significa que o juiz vá 688 Moral realists can produce no epistemology to match their ontological commitments Thus the epistemic inadequacy of moral realism is farreaching in practical matters it deprives realists of almost everything that they might want to say or argue for in the name of objectivity WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 185 689 Arbitrariness is there on either metaethical account WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 186 189 necessariamente buscala muito menos significa que vai alcançala Afinal diferentes juízes chegarão em resultados diferentes mesmo quando eles próprios estiverem buscando a resposta correta690 e mesmo nesse cenário não há nada na ontologia de respostas corretas que dê a eles qualquer razão para pensar que a sua visão é mais correta que qualquer outra691 Assim ao final não é apenas necessariamente um subjetivismo que preocupa Waldron com relação à moralização judicial são exatamente pela ausência de uma epistemologia adequada e minimamente compartilhada a existência própria dos desacordos morais tout court Havendo uma resposta correta ou não sendo a moralidade uma questão de fato ou não havendo ou não objetividade moral ainda assim haverá desacordos É por isso que a objetividade moral é irrelevante para o argumento contra o judicial review692 Na medida em que a existência de uma resposta objetivamente correta é uma questão ontológica nada no que diz respeito a decisões sociais políticas ou jurídicas pode ser resolvido quando se insiste que uma questão seja conduzida pela resposta correta a determinada questão693 3313 Positivismo constitucional Aqui um parêntesis antes de prosseguir parêntesis relevante porque além de reforçar meu argumento principal permite uma transição para o próximo ponto a ser abordado É precisamente em seu ensaiocapítulo mais importante sobre o tema da irrelevância da objetividade moral exatamente o The Irrelevance of Moral Objectivity que Waldron alinhase de forma mais clara e direta a uma vertente normativa de positivismo dizendo por exemplo que não é necessariamente verdade que um positivista normativo seja um antirrealista moral e aproximandose muito claramente da tradição de autores como Hobbes e Bentham é por isso que há sim elementos a partir dos quais alguns autores classificam e podem vir a classificar Waldron como um positivista normativo Meu pontos são que i se como vimos para o próprio Waldron o positivismo normativo é uma espécie 690 E essa visão de Waldron fica bastante clara quando lembramos os elementos da concepção dworkiniana de law as integrity por ele rejeitados e exemplificados a partir do exemplo de Hércules e Heraclea 691 Different judges will reach different results even when they all take themselves to be pursuing the right answer and nothing about the ontology of right answers gives any of them a reason for thinking his own view is any more correct than any other WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 187 692 Cf WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 187 693 The existence of an objectively right answer to a given question is so far just a matter of ontology nothing in the way of social or political or legal decision is settled when we insist that some issue be governed by the right answer to some question WALDRON Jeremy Legal and Political Philosophy In COLEMAN Jules L HIMMA Kenneth E SHAPIRO Scott J The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law Oxford Oxford University Press 2004 p 377 190 de aceitação das premissas do positivismo inclusivo uma prescrição das teses do positivismo exclusivo sua obra vai para muito além disso e ii ainda que tenha sido um dia um positivista normativo Waldron abandonou essa posição à medida que desenvolveu e avançou as próprias teses Reforço meu argumento a partir do próprio Waldron e também de Dyzenhaus Em um simpósio organizado pelo International Journal of Constitutional Law em 2009 Waldron discutiu seus argumentos sobre a questão da moralidade no raciocínio judicial com David Dyzenhaus Olivier Beaud e Wojciech Sadurski694 Em seu artigo Dyzenhaus diz que ao argumentar em favor da soberania do Parlamento em questões de interpretação constitucional no sentido de que não cabe às Cortes controlar atos legislativos com base na sua interpretação do verdadeiro significado de cláusulas e diretrizes constitucionais Waldron dá um passo além de sua versão neobenthamiana de positivismo político já que um positivista político não discutiria questões de interpretação constitucional exatamente como Bentham um positivista político oporseia a bills of rights e suas subjacentes noções de direitos individuais695 Para Dyzenhaus então a posição de Waldron seria aquilo a que chama de positivismo constitucional696 uma posição que não apenas não objeta a ideia de direitos mas até mesmo admite que há boas razões para que ordenamentos adotem cartas de direitos697 Waldron em resposta diz o que segue e tomo a liberdade de citar a passagem na íntegra dada sua importância para meu argumento central David Dyzenhaus conclui a partir de meu ensaio que estou afastandome de minha versão neobenthamiana de positivismo político no sentido de uma oposição à mera existência de uma bill of rights sobre a qual juízes podem vir a ter autoridade interpretativa Eu não estou certo de que eu tenha sido um dia um positivista político no sentido estrito especificado por Dyzenhaus se é que o fui ele está certo e eu agora abandonei essa posição Suponho que eu seja um positivista constitucional no sentido atribuído por Dyzenhaus ao termo porque agora eu acredito que é sim importante que sistemas jurídicos específicos representem por si próprios os princípios de 694 Cf DORSEN Norman ROSENFELD Michel Roundtable An exchange with Jeremy Waldron International Journal of Constitutional Law vol 07 n 01 jan 2009 p 01 695 In my view Waldrons argument takes him a further step away from his neoBenthamite version of political positivism Political positivism does not engage with questions about who is to interpret such principles fundamental principles of legal order since the very idea of such principles written or unwritten is anathema to it DYZENHAUS David Are legislatures good at morality Or better at it than the courts International Journal of Constitutional Law vol 07 n 01 jan 2009 pp 4652 696 Constitutional positivism 697 A position that not only does not object to the idea of rights but even allows that there are good reasons for legal orders to adopt bills of rights DYZENHAUS David Are legislatures good at morality Or better at it than the courts International Journal of Constitutional Law vol 07 n 01 jan 2009 pp 4652 191 direitos individuais direitos humanos com os quais se comprometem698 Ou seja Waldron diz sequer estar certo de um dia ter sido um positivista político no sentido benthamiano e que sim aceita as premissas elencadas por Dyzenhaus como aquelas que definiriam um positivista constitucional Penso contudo que isso só reforça a ideia de Waldron como uma terceira via não apenas a expressão é de Dyzenhaus o próprio Waldron i diz ou nunca ter subscrito ou não mais subscrever um positivismo normativo à la Bentham e ii afirma que aquilo que caracteriza um positivismo constitucional é assim definido pelo próprio Dyzenhaus A obra de Waldron repito e reforço está para muito além de uma tese que endossa direitos individuais mas propugna pela interpretação final e autoritativa por parte do Legislativo Waldron também entende nesse sentido mas me parece inadequado classificar como positivista inclusivo constitucional normativo benthamiano neobenthamiano hobbesiano o que for um autor que se aproxima tão fortemente de Dworkin na questão conceitual e faz exigências tão sólidas com relação à legitimidade de sistemas jurídicos e se não inadequado reducionista porque os eventuais rótulos desse tipo serão sempre como os de Dyzenhaus aplicáveis e muito restritos a somente uma pequena parcela da jurisprudence de Jeremy Waldron 34 UMA CONCLUSÃO PARCIAL E OS ECOS DE UMA TEORIA DEMOCRÁTICA Uma vez explorados os principais pressupostos da teoria jurídica de Waldron699 a partir de i sua abordagem conceitual e metodológica ii suas considerações sobre o fenômeno jurídico e as matrizes teóricas que o explicam e iii sua concepção de democracia e a consequente oposição a uma jurisprudence avalorativa e igualmente à prática do judicial review tornase bastante claro por que me parece adequado colocar o autor em uma posição diferente daquelas já ocupadas de um lado pelo positivismo tradicional e de outro 698 Grifos meus David Dyzenhaus infers from my essay that I am moving away from my neoBenthamite version of political positivism in the sense of opposition to the sheer existence of a bill of rights over which judges might have some interpretive authority 10 I am not sure I ever was a political positivist in the strict sense that Dyzenhaus specifies if I ever was I think he is right and I have now abandoned that position Once I did set out some reasons why the formulations of a bill of rights might be unduly constrictive but I did not understand those to be decisive 11 I suppose I am a constitutional positivist in the sense that Dyzenhaus defines it because now I do think it is important for individual legal systems to represent for themselves the principles of individual rightshuman rightsto which they take themselves to be committed WALDRON Jeremy Refining the Question about Judges Moral Capacity International Journal of Constitutional Law vol 07 n 01 jan 2009 pp 6982 699 E reforço que são os principais elementos de sua teoria jurídica afinal para além disso tudo Waldron ainda é um scholar prolífico em diferentes subdivisões da filosofia política 192 por Dworkin Para os positivistas o Direito tem uma resposta e ela deve ser descrita para Dworkin tratase de o Direito encontrar a resposta certa para Waldron é uma questão de encontrar uma ou a resposta da forma certa 341 Reconstruindo o trajeto Waldron vimos não se satisfaz com uma teoria jurídica que se pretende puramente analíticodescritiva À luz do que já haviam feito autores como Lon Fuller Waldron sugere que o Direito pode ser considerado um conceito funcional de modo que só se poderia abordá lo a partir da consideração de elementos outros que por sua natureza valorativa impedem uma proposta meramente conceitual ou se não impedem no mínimo tornam a proposta condescendente com sistemas jurídicos que por não cumprirem requisitos mínimos que constituem a função própria do Direito não são dignos do rótulo Vimos também que Waldron assim o faz ao sugerir que a melhor teoria é aquela que se aproxima ao mesmo tempo dos conceitos de Direito e rule of law sem uma cisão rígida para o autor só se entende o Direito de forma adequada se consideradas também as exigências do império da lei exigências de impossível análise completa sem fundamentos natural e essencialmente normativos Isso indica aquela que o próprio autor toma como uma de suas tarefas a construção de uma teoria democrática na filosofia jurídica e exatamente porque democrática normativa Daí contudo é o que sustento até aqui não se segue que Waldron seja um positivista normativo afinal i uma vez que ele próprio define o positivismo normativo como a prescrição de teses exclusivistas em um Direito que é corretamente descrito pelo positivismo inclusivo sua proposta de democratic jurisprudence pareceme transcender essa ideia Além disso ii não apenas o próprio autor afirma ou nunca ter endossado ou ter abandonado um positivismo benthamiano e Bentham era o positivista normativo par excellence iii Waldron ainda concorda expressamente com Dworkin com relação ao argumento dos desacordos teóricos um problema para qualquer tipo de positivismo afinal se descritivo a descrição é insuficiente se normativo tanto as premissas quanto as propostas também o são já que aceitar o argumento dos desacordos e prescrever um positivismo excludente seria simplesmente ilógico Waldron e Dworkin então têm um acordo a partir dos desacordos Mas ambos têm também um desacordo a partir de seu acordo com relação à normatividade da Teoria do Direito e o valor da democracia em sua construção um desacordo 193 com relação à ilegitimidade da prática do judicial review que é uma consequência prática e natural derivada de suas diferentes concepções de democracia e do valor do princípio majoritário Para Dworkin retomando i direitos individuais são trunfos em face da maioria e ii têm uma resposta correta com relação à sua interpretação e uma vez que iii o majoritarianismo pode levar a políticas antidemocráticas iv os juízes estariam legitimados democraticamente para o controle de constitucionalidade Waldron rebate os pontos a partir da ideia de que o judicial review não garante uma melhor proteção aos direitos e carece dessa legitimidade política não se trata de rejeitar a ideia de direitos ou mesmo a existência de uma resposta correta mas o fato de i haver desacordos e ii não haver uma metodologia compartilhada capaz de demonstrar epistemologicamente a resposta correta o procedimento majoritário é o mais adequado a respeitar os cidadãos e suas crenças 342 Os caminhos a partir da terceira via Seja como for a oposição ao judicial review não é a única forma por meio da qual se materializa em termos práticos a proposta teórica de Waldron Antes de encerrar portanto é positivo trazer à tona outros pontos que decorrem das concepções mais fundamentais do autor Um deles e talvez ainda mais importante na mesma proporção em que a meu juízo é negligenciado por aqueles que eventualmente comentam a obra do autor é aquele que se depreende das consequências que tem sua exigência de sistematicidade no Direito700 a noção de que o Direito deve ser desenvolvido e interpretado de modo a guardar uma coerência própria com o sistema jurídico tal como se apresenta O Direito não é um conjunto de normas isoladas mas forma um corpus juris um corpo de padrões normativos que somados um ao outro formam o sistema a que pertencem O próprio Waldron como visto reconhece a proximidade que essa noção guarda com uma ideia dworkiniana de integridade penso contudo que é acertado dizer que a proposta de Waldron é menos ambiciosa mais realista que a de Dworkin enquanto a ideia de integridade do juiz Hércules passa por considerações bastante mais abstratas sobre integridade valor moralidade política ajuste institucional Waldron parece propugnar aquilo a que Gerald Postema chama de 700 Cf nesse sentido o quinto elemento da proposta de Waldron exposta no item 3212 desta pesquisa 194 sistematicidade doutrinal701 um tipo de sistematicidade que é tanto um fato normativo quanto uma demanda ou projeto702 e sendo assim exige que aqueles que compõem a prática busquem não apenas uma consistência formal com a série de normas existentes mas também uma espécie de coerência prática e integridade sistemática703 É exatamente por isso que na concepção de Waldron em hard cases os juízes têm a obrigação de perguntarem a si próprios que tipo de elemento indireto eou implícito no Direito no corpus juris ou seja no sistema jurídico estabelecido permite que a decisão seja jurídica O juiz deve manterse em contato com o Direito deve buscar ao máximo relacionar os fundamentos das questões presentes com os padrões normativos preteritamente estabelecidos eg diretrizes regras padrões princípios sem abandonar o Direito pelos encantos da moralidade ao primeiro sinal de dificuldade Deve portanto perguntar a si próprio algo como uma questão dworkiniana o que a melhor interpretação do Direito implica para um caso como este considerando que o direito existente não determina a questão direta nem explicitamente Isso é mais do que mera sugestão de raciocínio jurídico por analogia é afinal para Waldron o que o império da lei exige704 Waldron diz não saber se Dworkin está certo ao dizer que todos os casos mesmo os hard cases têm uma resposta correta mas diz também não ser essa sua preocupação Afinal e novamente haja uma resposta correta ou não o ponto é que faz sentido que os juízes abordem os casos com esse espírito A razão ou as razões de decisão mesmo que não tenham sido previamente articuladas de forma direta e explícita devem ser jurídicas e para que possam ser jurídicas devem guardar coerência e integridade sistemáticas com os padrões normativos que o Direito apresenta 701 Doctrinal systematicity Aqui convém uma observação Postema pareceme o autor que melhor comentou a obra de Waldron dando a devida ênfase às considerações de Waldron com relação ao ideal de rule of law e o caráter eminentemente argumentativo do Direito Enquanto eu sustento Waldron como uma terceira via porém Postema diz em seu comentário que embora crítico da metodologia positivista Waldron teria ainda assim uma concepção positivista acerca do Direito do ponto de vista substantivo o ponto e isso importa para quem deseja sustentar aquilo que sustento é que o mesmo Postema diz que o trabalho mais recente de Waldron é fortemente crítico ao positivismo também do ponto de vista substancial algo que reforça minha ideia de uma terceira via exatamente entre positivismo e Dworkin Cf POSTEMA Gerald J PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 11 Legal Philosophy in the Twentieth Century The Common Law World Nova York Springer 2011 pp 565570 702 Doctrinal systematicity as Waldron characterized it is both a normative fact and a demand or project 703 Cf POSTEMA Gerald J PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 11 Legal Philosophy in the Twentieth Century The Common Law World Nova York Springer 2011 pp 568569 704 She the judge must stay in touch with the law She should not abandon the law for the siren charms of morality at the first sign of difficulty She must ask herself something like a Dworkinian question what does the best understanding of the law imply for a case like this given that the existing law does not determine the matter directly or explicitly This is what the rule of law requires WALDRON Jeremy Stare Decisis and the Rule of Law A Layered Approach Michigan Law Review v 111 n 01 out 2012 p 15 195 Se isso parece uma noção positivista não é o caso Ela talvez seja em alguma medida quase705 formalista mas o fato é que para Waldron como vimos é exatamente o positivismo que não consegue dar conta de um Direito que seja em aspectos conceituais ou práticos opere para além de um mero amontoado de regras O positivista dirá Waldron não concebe o Direito como um sistema como uma estrutura de padrões que além de regras contém também princípios e também propósitos subjacentes e é nesse sentido em que há uma clara aproximação com Dworkin que Waldron vai também além de Dworkin706 O ponto é importante para uma compreensão mais completa de sua teoria no que diz respeito à interpretação jurídica e além disso deixa também bastante clara a visão de Waldron acerca da necessidade de integridade sistemática Waldron parte do exemplo de um estatuto que contém centenas de dispositivos algo de fácil visualização especialmente para o leitor no âmbito do civil law Por vezes em um estatuto complexo há uma seção explicitando o propósito do estatuto em outros casos contudo o propósito é implícito e devemos inferilo de nossa leitura do estatuto como um todo707 O mesmo cenário é válido quando tomamos áreas mais amplas e específicas do Direito eg direito dos contratos direito sucessório direito penal etc de modo que por vezes é possível existir uma diretriz específica na área que em virtude de sua força clareza e vivacidade expressa o espírito que anima toda aquela área do Direito esse tipo de padrão tornase um tipo de emblema de símbolo de ícone do todo tornase assim um arquétipo daquela área708 uma diretriz particular em um sistema de normas que carrega um significado que transcende seu conteúdo normativo imediato um significado derivado do fato de que esse padrão normativo resume ou torna vívido o ponto o propósito o princípio ou a política de toda a área do Direito Como um princípio dworkiniano o arquétipo representa uma função de background de pano de fundo no sistema jurídico diferentemente dos princípios em Dworkin contudo operam também como disposições explícitas como através de regras ou precedentes só que ao assim funcionarem eles 705 E digo quase porque o próprio Waldron ao reconhecer uma possível aproximação com o formalismo explicita também divergências e ressalvas para com a corrente Cf WALDRON Jeremy Torture and Positive Law Jurisprudence for the White House Columbia Law Review vol 105 n 06 out 2005 pp 16811750 706 This is where I go beyond Dworkin WALDRON Jeremy Torture and Positive Law Jurisprudence for the White House Columbia Law Review vol 105 n 06 out 2005 pp 16811750 707 Sometimes in a complex statute there is a section explicitly stating the statutes purpose In other cases the purpose is implicit and we have to infer it from our reading of the statute as a whole 708 Grifos meus The same two possibilities arise with regard to larger clusters of law Sometimes we have to infer the underlying principle or policy eg in the way Dworkin suggests in his theory of interpretation Sometimes however and this is where I go beyond Dworkin there is one provision in the cluster which by virtue of its force clarity and vividness expresses the spirit that animates the whole area of law It becomes a sort of emblem token or icon of the whole I shall say it becomes an archetype of the spirit of the area of law in question 196 resumem o espírito de todo um corpo jurídico que vai além daquilo que se pode pensar que eles exigem em seus próprios termos709 A ideia de um arquétipo em Waldron portanto representa uma norma jurídica que porque paradigmática e representativa da lógica e da função própria do sistema a que pertence estabelece o significado jurídico autêntico da área em questão ao assim funcionar permite exatamente o tipo de interpretação que o império da lei exige dos juízes diante de hard cases Um dos exemplos do autor é o habeas corpus sua importância não se exaure naquilo que faz em si mesmo por mais absolutamente importante que seja O habeas corpus é também arquetípico de toda a orientação de nossa tradição jurídica em torno da ideia de liberdade em torno da restrição que o Direito impõe à arbitrariedade estatal710 Ainda com relação à interpretação em Waldron é importante ainda uma última reflexão um último esclarecimento O autor define a si próprio e fazêlo de forma mais direta e explícita seria impossível como um textualista I am a textualist711 Devese colocar então que o textualismo de Waldron não é ingenuamente literal ou radicalmente conservador isso seria contraditório com suas próprias considerações sobre o caráter argumentativo do Direito caráter este que para Waldron não só faz parte do Direito como é positivo e é positivo na medida em que um argumento contínuo em sociedade sobre o melhor significado de termos contestáveis é muito superior à pretensão de conclusões artificiais712 O textualismo de Waldron é aquele a que Marmor chama de textualismo 709 Grifos meus When I use the term archetype I mean a particular provision in a system of norms which has a significance going beyond its immediate normative content a significance stemming from the fact that it sums up or makes vivid to us the point purpose principle or policy of a whole area of law Like a Dworkinian principle the archetype performs a background function in a given legal system But archetypes differ from Dworkinian principles and policies in that they also operate as foreground provisions They do foreground work as rules or precedents but in doing that work they sum up the spirit of a whole body of law that goes beyond what they might be thought to require on their own terms The idea of an archetype then is the idea of a rule or positive law provision that operates not just on its own account and does not just stand simply in a cumulative relation to other provisions but that also operates in a way that expresses or epitomizes the spirit of a whole structured area of doctrine and does so vividly effectively publicly establishing the significance of that area for the entire legal enterprise WALDRON Jeremy Torture and Positive Law Jurisprudence for the White House Columbia Law Review vol 105 n 06 out 2005 pp 16811750 710 Trecho baseado na seguinte passagem traduzida livremente The best example I think is given by the Habeas Corpus statutes The importance of the Great Writ is not exhausted by what it does in itself overwhelmingly important though that is Habeas Corpus is also archetypal of the whole orientation of our legal tradition towards liberty in the physical sense of freedom from confinement It is archetypal too of laws set against arbitrariness in regard to actions that impact upon the rights of the subject WALDRON Jeremy Torture and Positive Law Jurisprudence for the White House Columbia Law Review vol 105 n 06 out 2005 pp 16811750 711 WALDRON Jeremy Partly Laws Common to All Mankind Foreign Law in American Courts New Haven e Londres Yale University Press 2012 p 156 712 Não concordamos com relação a muitas coisas em nossa sociedade mas talvez possamos concordar com relação a isto somos uma sociedade melhor ao continuarmos discutindo sobre certas questões do que seríamos se esses argumentos fossem conclusos de forma artificial We do not agree on many things in our society but perhaps we can agree on this that we are a better society for continuing to argue about certain issues than we 197 negativo713 um tipo de textualismo para o qual a interpretação judicial não deve basearse em questões como por exemplo a vontade do legislador ou o sentido original do texto714 um textualismo que portanto permite que as Cortes interpretem de inúmeras formas mas que insiste na autoridade legislativa e na vinculação à autoridade do texto das normas democraticamente promulgadas entendidas como atos coletivos715 É a meu ver uma questão muito mais institucional que qualquer outra coisa funcionando como uma espécie de barreira contra possíveis tergiversações judiciais que apelem a elementos que carecem da autoridade que tem o texto enquanto texto legislativo Nesse sentido reforçando a ideia Waldron é bastante claro em suas ressalvas às propostas originalistas de interpretação constitucional dizendo que no tipo de cláusulas que por exemplo versam sobre a crueldade de penas e punições caso da Oitava Emenda à Constituição dos Estados Unidos ele aceita o argumento de Dworkin no sentido de que os juízes do século xxi têm a responsabilidade de enfrentar os juízos de valor relevantes por eles próprios não lhes sendo exigido nem sequer permitido interpretar buscando como esses juízos teriam sido formados em 1791 quando da adoção das eventuais emendas Não se trata de supremacia judicial tratase de juízes seguindo as instruções que lhes dá a própria Constituição716 343 Aquilo que fica Finalmente antes de concluir pretendo externar aqui uma consideração que me é fundamental em termos waldronianos uma premissa que se pode dizer arquetípica do objetivo mais fundamental da pesquisa seja sua matriz teórica uma terceira via ou não e precisamente pelo fato de os rótulos importarem menos em um autor mais preocupado com a democracia do que com as meras análises conceituais o que importa importa mesmo é would be if such arguments were artificially or stipulatively concluded Em WALDRON Jeremy Vagueness in Law and Language Some Philosophical Issues California Law Review vol 82 n 03 mai 1994 pp 509540 713 Negative textualism 714 Cf MARMOR Andrei The Immorality of Textualism Loyola of Los Angeles Law Review vol 38 dez 2005 pp 20632079 715 WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 pp 144146 716 Tradução livre grifos meus I accept Ronald Dworkins argument that when language like this is used eg in the US Constitutions 8th and 4th amendments respectively it is the responsibility of 21st century judges to make the relevant valuejudgments for themselves they are not required or even permitted to defer to the way in which such judgments would have been made in 1791 when these amendments were adopted That is not judicial supremacy that is the judges carrying out the instructions that the constitution gives them WALDRON Jeremy Judicial Review and Judicial Supremacy New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 1457 out 2014 Disponível em httpsssrncomabstract2510550 Acesso em 15 mar 2019 198 que também Waldron deu à prática jurídica e à Academia exatamente aquilo que ele atribui a Dworkin uma teoria viva que creditou à prática do Direito a razão e a reflexão e não apenas uma aplicação mecânica de regras 717 Assim se é verdade que estamos ocupados brigando sobre o que H L A Hart devia ter respondido a Ronald Dworkin já há muito tempo e que já é hora de os filósofos analíticos do Direito acordarem a questões substantivas718 o melhor que aquele que pretende abordála pode fazer à teoria de Waldron é dedicar atenção e respeito a tudo que implica sua proposta e aos elementos democráticos de sua teoria elementos que têm muito a contribuir e a auxiliam a iluminar os caminhos para aqueles que compartilham da noção de que uma teoria jurídica coerente com as exigências da democracia e do império da lei pode ser mais valiosa e mais interessante 717 Parte da passagem que serve de epígrafe ao segundo capítulo da pesquisa que se repita é parte do tributo de Waldron quando do falecimento de Dworkin A living jurisprudence one which credited the practice of law with reason and thoughtfulness not just the mechanical application of rules WALDRON Jeremy Ronald Dworkin An Appreciation New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 1339 jul 2013 718 Passagem que serve de epígrafe à Introdução We have been too busy squabbling about what H L A Hart should have said to Ronald Dworkin I think it is high time analytic legal philosophers woke up to some of these issues Em WALDRON Jeremy Partly Laws Common to All Mankind Foreign Law in American Courts New Haven e Londres Yale University Press 2012 p 23 199 CONCLUSÃO A pluralidade dos sentidos que atribuímos a um ato revela não a incapacidade mas os limites do nosso saber e a complexidade do real É explorando um mundo por essência equívoco que se pode atingir a verdade O conhecimento não é inacabado por nos faltar onisciência mas por estar a riqueza de significações inscrita no objeto719 Raymond Aron Deixado claro aquilo que fica aquilo que mais importa neste projeto de pesquisa chega a hora de retomar sinteticamente o que foi trabalhado até que se pudesse chegar à conclusão fundamental a classificação da teoria jurídica de Jeremy Waldron como uma terceira via que independentemente de rótulos analíticos ilumina caminhos possíveis na construção de uma jurisprudence voltada aos ideais de democracia e império da lei Naturalmente a grandeza do desafio exigiu um caminho longo até aqui caminho dividido em três No primeiro capítulo contextualizações e as origens do positivismo no common law no segundo o positivismo dos séculos xx e xxi e a concepção de Ronald Dworkin finalmente no terceiro capítulo a obra de Waldron per se abordada de forma direta Assim para concluir lembremos os principais conceitos trabalhados em cada uma dessas partes No primeiro capítulo tratouse de investigar as origens daquilo a que se convencionou chamar positivismo jurídico Primeiro é claro o mais fundamental o que é afinal o positivismo jurídico Com base em autores tradicionais autores que aderem e outros que se opõem às teses positivistas vimos que em seu sentido mais amplo o positivismo é a acepção fundamental segundo a qual o Direito como ele deveria ser é diferente do Direito tal como ele é de modo que não é necessariamente verdade que o Direito vai sempre satisfazer a eventuais exigências substantivas de justiça e moralidade Com isso posto a contextualização o surgimento do positivismo anglosaxão em meio à teoria clássica do common law personificada especialmente por autores como Sir Edward Coke e depois John Selden e Sir Matthew Hale Depois de uma exposição dos conceitos e ideias fundamentais que davam forma à teoria clássica anglosaxônica vimos o nascimento 719 La pluralité des sens que nous attribuons à un acte révèle non lincapacité mais les limites de notre savoir et la complexité du réel Cest en explorant un monde par essence équivoque que lon a chance datteindre la vérité La connaissance nest pas inachevée parce que lomniscience nous manque mais parce que la richesse de significations est inscrite dans lobjet ARON Raymond Lopium des intellectuels Paris CalmannLévy 2004 p 147 200 do positivismo que não levava esse nome à época com Thomas Hobbes que desafiou as noções dominantes à época segundo as quais o Direito era baseado na razão e no costume imemorial Nesse sentido essa parte do primeiro capítulo mostrou a origem das teses positivistas na obra de Hobbes a partir de suas considerações sobre autoridade sobre lei civil e lei natural sobre moralidade e natureza humana Depois de Hobbes passouse à obra jurídica Jeremy Bentham que como o primeiro desafiou as noções que dominavam o common law à época Bentham filósofo do utilitarismo ridicularizava os ideais jusnaturalistas que imperavam no direito anglosaxônico para ele o Direito era imperativista era uma questão de comando do soberano e sendo assim o common law não seria Direito legítimo Bentham então muito influenciado por David Hume e articulando de forma muito clara a dicotomia entre is e ought que perpassa todo o positivismo divide sua teoria jurídica entre a parte expositória expository jurisprudence e censória censory jurisprudence a primeira responsável por descrever o que é o Direito a segunda por dizer como esse Direito deveria ser Assim ainda no primeiro capítulo vimos o desenvolvimento do pensamento jurídico de Bentham o casamento por ele celebrado entre o utilitarismo e o positivismo suas críticas ao common law e com isso todo seu ideal político radical reformista para não dizer revolucionário Depois de Bentham passouse à obra de John Austin seu discípulo Para Austin Bentham acertava em sua noção imperativista do Direito Diferentemente do mestre contudo Austin inaugurou a metodologia que é até hoje dominante no positivismo uma proposta analítica que porque analítica preocupase muito mais com aquilo que Bentham chamava de expository jurisprudence isto é uma proposta que pretende analisar e descrever o Direito tal como ele é ponto É por isso que por vezes é possível encontrar livros que classificam John Austin como o primeiro positivista enquanto Hobbes e Bentham desenvolveram vertentes normativas políticas de positivismo foi Austin quem inaugurou aquela que seria sua característica metodológica tradicionalmente dominante desenvolvendo articulando e estabelecendo uma tradição centrada em uma noção imperativista sobre o fenômeno jurídico Como dito Austin inaugurou a tradição dominante do positivismo a preocupação analíticodescritiva Assim tomando essa questão como um elemento de transição passouse ao segundo capítulo que começa com aquele que personificou o positivismo jurídico anglo saxão no séc xx H L A Hart Foi Hart quem rompeu com o domínio austiniano que vigorava até então na explicação acerca da natureza do Direito sem contudo abandonar a proposta de metodologia descritiva Hart define seu projeto como uma sociologia descritiva e a partir da filosofia da linguagem ordinária modernizou e sofisticou o projeto 201 de Austin já inadequado ao contexto da época que não mais podia ter como suficiente uma noção imperativista de Direito Assim com Hart inauguraramse conceitos fundamentais até hoje na Teoria do Direito noções de regras primárias e regras secundárias regra de reconhecimento conceitos que definem sua proposta teórica e inauguram as mais importantes características que em maior ou menor grau definem grande parte do positivismo jurídico até hoje Afinal é a partir da obra de Hart que temos as duas grandes teses positivistas articuladas de forma clara a tese da separabilidade entre Direito e moral e a tese das fontes sociais Depois de Hart o segundo capítulo aborda aquele que mais desafiou o positivismo jurídico até hoje Ronald Dworkin para quem o positivismo jurídico teria ainda uma terceira tese característica a tese da discricionariedade judicial que lhe era inconcebível Assim ao longo dos anos Dworkin desenvolveu uma série de críticas ao positivismo e não só isso desenvolveu uma teoria própria e muito original Ronald Dworkin trouxe à tona a existência de princípios no Direito inaugurou a ideia de um Direito entendido enquanto um conceito interpretativo defendeu a ideia de interpretação construtiva de coerência e integridade de uma resposta correta em casos difíceis nos quais positivistas e pragmatistas capitulariam Tudo isso define a concepção dworkiniana de law as integrity o Direito como integridade uma matriz teórica cujos pressupostos acabaram por se adequar ao projeto holístico de Dworkin uma obra filosófica ampla sobre moralidade justiça interpretação sobre a vida boa a partir da ideia de unidade do valor Por fim ainda abordouse rapidamente o positivismo jurídico contemporâneo e sua divisão pósDworkin Finalmente o terceiro capítulo aborda a obra de Jeremy Waldron per se A ideia foi apresentala em contraste com o positivismo e com a proposta de Dworkin explicandoa a partir de seus próprios elementos Assim para compreender a terceira via de Waldron vimos suas considerações sobre a relação conceitual entre Direito e império da lei a suas críticas à metodologia positivista e seu acordo com Dworkin sua concepção de democracia e seu desacordo com Dworkin Vimos em meio a isso as implicações práticas da proposta teórica de Waldron seus reflexos nas críticas ao judicial review e na interpretação e decisão judicial Assim em síntese o que se viu foi i a primeira via o positivismo jurídico em suas vertentes clássicas e modernas ii a segunda via o Direito como integridade o interpretativismo dworkiniano e iii a terceira via a teoria democrática de Jeremy Waldron e os caminhos por ela inaugurados Argumentei portanto que a obra de Waldron tem elementos suficientes a exigir uma nova classificação mas sobretudo argumentei que seu valor está para muito além de qualquer rótulo e que aquilo que mais importa nessas páginas é a noção de que é possível uma teoria jurídica adequada à democracia 202 REFERÊCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBOUD Georges Processo Constitucional Brasileiro 2 ed São Paulo Revista dos Tribunais 2018 ARON Raymond Lopium des intellectuels Paris CalmannLévy 2004 AUSTIN John A Plea for the 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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS UNISINOS UNIDADE ACADÊMICA DE PESQUISA E PÓSGRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓSGRADUAÇÃO EM DIREITO NÍVEL MESTRADO GILBERTO MORBACH A TERCEIRA VIA DE JEREMY WALDRON São Leopoldo 2019 GILBERTO MORBACH A TERCEIRA VIA DE JEREMY WALDRON Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito Público pelo Programa de PósGraduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS Orientador Prof Dr Lenio Luiz Streck São Leopoldo 2019 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Silvana Teresinha Dornelles Studzinski CRB 102524 M832t Morbach Gilberto A terceira via de Jeremy Waldron Gilberto Morbach 2019 211 f il 30 cm Dissertação mestrado Universidade do Vale do Rio dos Sinos Programa de PósGraduação em Direito 2019 Orientador Prof Dr Lenio Luiz Streck 1 Direito Filosofia 2 Jurisprudência 3 Positivismo jurídico 4 Waldron Jeremy 1953 I Título CDU 34012 Para Bruna Grün minha namorada companheira melhor amiga que me ensina a ver as coisas com atenção e amor AGRADECIMENTOS Todos aqueles a quem agradeço aqui contribuíram de alguma forma cada um à sua maneira dentro do que lhes cabia dentro de seus limites e suas possibilidades Estabelecer uma ordem de prioridade ou importância é então simplesmente impossível O que me parece mais adequado é recorrer ao velho critério da ordem alfabética não posso cometer nenhuma injustiça especialmente para com qualquer daqueles cujo nome está aqui Agradeço à Ana Cristina minha mãe rainha deste mundo que de tanto ouvir sobre Thomas Hobbes e Jeremy Bentham Ronald Dworkin e Jeremy Waldron é seguramente a psicanalista que mais conhece sobre Teoria do Direito no mundo Agradeço ao Prof Anderson Vichinkeski Teixeira pela leitura pelas contribuições pela indispensável presença em minhas bancas de qualificação e avaliação Agradeço à Prof Andrea Faggion que contribuiu muito muito muito muito para esta pesquisa exercendo os papeis de professora e amiga ainda como se não bastasse aceitou compor minha banca de avaliação Minha gratidão só é proporcional à admiração que sinto Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq pela concessão da bolsa de estudos que é a mais fundamental condição de possibilidade a essa pesquisa Agradeço ao Frederico e à Giovanna meus queridos amigos que não apenas me ajudaram muito na execução das tarefas do gabinete de pesquisas como também o fizeram sempre com alegria e bomhumor tornando as terçasfeiras muito mais leves e agradáveis Agradeço ao Prof Gerson Neves Pinto pela leitura por todas as conversas pelos cafés nas quartasfeiras pelas discussões sobre os bons e velhos Platão e Aristóteles Agradeço ao Gilberto meu pai cujo trabalho de uma vida possibilitou que eu pudesse dedicar minha vida à pesquisa Agradeço ao Gustavo meu irmão por estar sempre disposto a conversar sobre meus insights de pesquisa e a conversar sobre qualquer outra coisa quando tudo que eu precisava era falar sobre algo que não fosse minha pesquisa Agradeço ao Prof Igor Raatz meu amigo e orientador à época de graduação que foi quem me levou à Unisinos e comigo deu o primeiro passo sem o qual nada nada disso teria acontecido Agradeço ao Prof Lenio Luiz Streck que é meu orientador professor e gosto de pensar assim amigo Agradeço por ter permitido que eu visse aquilo que nem todos veem o grande professor é também um grande homem O grande intelecto é proporcional ao grande coração Agradeço demais à Secretaria do PPGD Vera Ronaldo Paloma Daiana por todo auxílio ao longo do mestrado auxílio que se deu através de um trabalho simplesmente irrepreensível feito com competência seriedade dedicação com gentileza e atenção Com bom humor e disposição Mãe Prof Anderson Prof Andrea CNPq Fred e Gio Prof Gersinho Pai Irmãozinho Prof Igor Maestro pessoal da Secretaria muito obrigado De coração I do not forget the position assumed by some that constitutional questions are to be decided by the Supreme Court nor do I deny that such decisions must be binding At the same time the candid citizen must confess that if the policy of the Government upon vital questions affecting the whole people is to be irrevocably fixed by decisions of the Supreme Court the people will have ceased to be their own rulers having to that extent practically resigned their Government into the hands of that eminent tribunal1 Abraham Lincoln Inaugural Address Mar 04 1861 Une théorie qui se soustrait aux réfutations échappe à lordre de la vérité 2 Raymond Aron Lopium des intellectuels 1955 1 Não esqueço a posição por alguns tomada de que algumas questões constitucionais devem ser decididas pela Suprema Corte tampouco nego que essas decisões devam ser vinculantes Ao mesmo tempo o cidadão franco imparcial terá de admitir que se as políticas do Governo que afetam toda a população forem fixadas irrevogavelmente por decisões da Corte Suprema o povo deixará de ser seu próprio regente tendo praticamente submetido seu governo às mãos do eminente tribunal 2 Uma teoria que se esquiva das refutações escapa da categoria da verdade RESUMO Esta dissertação tem como seu principal objetivo uma investigação da proposta teorética de Jeremy Waldron à Teoria do Direito uma investigação que revelando os principais pressupostos e as principais implicações da teoria de Waldron classifica o autor como uma terceira via possível entre as correntes que lhe servem de contexto e influência o positivismo jurídico de um lado e de outro a concepção de law as integrity de Ronald Dworkin Para tanto e a partir de uma pesquisa bibliográfica conduzida sob o método fenomenológico subjacente à tradição da Crítica Hermenêutica do Direito de Lenio Streck a pesquisa estruturada em três capítulos aborda os seguintes tópicos no capítulo primeiro i o contexto histórico de surgimento do positivismo jurídico no âmbito da teoria clássica do common law e ii o positivismo clássico avant la lettre de Thomas Hobbes e Jeremy Bentham e de John Austin no segundo capítulo a investigação voltase i ao positivismo do séc xx e ii à proposta de Ronald Dworkin de Direito como integridade abordando também iii o positivismo contemporâneo pósDworkin finalmente o terceiro capítulo aborda a teoria jurídica de Jeremy Waldron a partir de seus pressupostos conceituais seus elementos principais suas repercussões práticas ao Direito e dos caminhos possíveis por ela inaugurados Nesse sentido o que se conclui é que é sim possível apresentar e sustentar Waldron como uma terceira via em Teoria do Direito ao mesmo tempo o que também se conclui é que seja como for a proposta de Jeremy Waldron pretende justamente transcender uma preocupação com meros rótulos analíticos e contribuir de forma substantiva às discussões que gravitam em torno das possibilidades de uma teoria jurídica democrática e adequada ao império da lei Palavraschave Jurisprudence Jeremy Waldron Positivismo jurídico Law as integrity ABSTRACT The main objective of this research is to investigate Jeremy Waldrons theoretical contributions on jurisprudence from such an investigation based on Waldrons fundamental theoretical grounds and its main implications I argue that his jurisprudential work is a third way between those theories that have directly influenced him namely legal positivism and Dworkins law as integrity By way of a phenomenological methodology the methodological grounds that underlie the tradition of Lenio Strecks Crítica Hermenêutica do Direito Hermeneutical Critique of Law and based on a bibliographic research this work is structured by three chapters In the first chapter I seek to clarify the origins of classical legal positivism personified by Thomas Hobbes Jeremy Bentham and John Austin in a context of classical common law theory The second chapter turns to 20th legal positivism Ronald Dworkins law as integrity and briefly to postDworkin contemporary positivism Finally the third chapter is built directly upon Waldrons theory its conceptual grounds its main elements and practical implications and the prospects his jurisprudences insights inaugurate My conclusion is that while it is indeed possible to maintain that Jeremy Waldrons theory is a third way for jurisprudence the fact is that be that is it may Waldrons goal it seems to me is exactly to transcend mere analytical labelling contributing in a more substantive way for the possibilities of a democratic jurisprudence that respects what the ideal of the rule of law fundamentally demands Keywords Jurisprudence Jeremy Waldron Legal Positivism Law as integrity SUMÁRIO INTRODUÇÃO 13 1 AS ORIGENS DO POSITIVISMO JURÍDICO ANGLOSAXÃO 17 11 POSITIVISMO JURÍDICO ALGUMAS PALAVRAS SOBRE UMA PALAVRA 21 12 A TEORIA CLÁSSICA DO COMMON LAW 23 121 Sir Edward Coke e a artificial reasoning 25 122 John Selden e Sir Matthew Hale 28 13 O POSITIVISMO JURÍDICO COMO TAL THOMAS HOBBES 34 131 Hobbes e o common law autoridade não razão 36 132 Hobbes era mesmo um positivista 39 1321 Direito e lei natural em Thomas Hobbes 42 1322 Law of nature e civil law 44 133 Conclusão parcial 49 14 O DIREITO EM JEREMY BENTHAM 50 141 Bentham e o utilitarismo 52 142 Bentham e o positivismo 54 143 Dog law 61 144 Bentham e a evolução de seu pensamento jurídico 66 145 Conclusão parcial 71 15 O DIREITO EM JOHN AUSTIN 72 151 A analytical jurisprudence 74 1511 Contradições e convergências com Jeremy Bentham 77 1512 John Austin entre a Alemanha e a Inglaterra 79 152 Conclusão parcial e o legado da teoria jurídica de John Austin 82 2 POSITIVISMO E DIREITO COMO INTEGRIDADE 84 21 O DIREITO EM H L A HART 86 211 O que é o Direito 88 2111 As críticas de Hart à concepção imperativista 89 2112 Regras primárias e secundárias 95 2113 Regra de reconhecimento 100 2114 Direito e moral em H L A Hart 103 212 Conclusão parcial o positivismo e suas duas ou três grandes teses 108 22 O DIREITO EM RONALD DWORKIN 111 221 O general attack ao positivismo jurídico 112 2211 A controvérsia dos princípios 113 2212 Convenções e o aguilhão semântico 115 222 Law as integrity 119 2221 Interpretativismo conceito e concepções 120 2222 Convencionalismo e pragmatismo 124 2223 As respostas da integridade 126 2224 Interlúdio A evolução do pensamento de Dworkin 129 23 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O POSITIVISMO JURÍDICO DEPOIS DE RONALD DWORKIN 131 231 O postscript de The Concept of Law 132 232 O positivismo inclusivoincludente 136 233 O positivismo exclusivoexcludente 139 234 Conclusão parcial 143 3 JEREMY WALDRON E A DEMOCRATIC JURISPRUDENCE 146 31 WALDRON E O POSITIVISMO NORMATIVO 147 32 WALDRON E DWORKIN ACORDO A PARTIR DOS DESACORDOS 150 321 Law e rule of law o conceito e o império do Direito 152 3211 Against Casual Positivism 156 3212 Uma nova definição 158 322 A democratic jurisprudence 163 3221 A metodologia de uma teoria democrática 165 3222 O positivismo revisitado por que não a integridade 169 33 WALDRON E DWORKIN DESACORDOS A PARTIR DOS ACORDOS 174 331 Democracia e judicial review 175 3311 O argumento contra o judicial review 178 3312 O argumento da irrelevância da objetividade moral 183 3313 Positivismo constitucional 189 34 UMA CONCLUSÃO PARCIAL E OS ECOS DE UMA TEORIA DEMOCRÁTICA 191 341 Reconstruindo o trajeto 192 342 Os caminhos a partir da terceira via 193 343 Aquilo que fica 197 CONCLUSÃO 199 REFERÊCIAS BIBLIOGRÁFICAS 202 13 INTRODUÇÃO Estamos ocupados brigando sobre o que H L A Hart devia ter respondido a Ronald Dworkin já há muito tempo Penso que já é hora de os filósofos analíticos do Direito acordarem a outras questões1 Jeremy Waldron A terceira via de Jeremy Waldron Como o título da pesquisa sugere o que pretendo apresentar é aquilo que acredito ser uma terceira via na história da filosofia no Direito um terceiro caminho possível entre as matrizes teóricas que lhe servem de base de um lado o positivismo jurídico clássico e contemporâneo e de outro a concepção de law as integrity Direito como integridade de Ronald Dworkin Tratase assim de uma releitura da obra de Jeremy Waldron seus pressupostos teóricos e suas implicações práticas A proposta impõe alguns desafios porque Waldron é um autor que tem sido até hoje frequentemente apontado especial e mais diretamente na América Latina mas também no resto do mundo como um positivista Qualquer pesquisa rápida sobre sua obra vai acabar uma hora ou outra situando suas teses como se estas pertencessem à tradição histórica do positivismo jurídico Por uma questão de honestidade intelectual e acadêmica devo conceder que isso não é sem razão para além da solidez e importância de autores comentadores e tradutores que sustentam a atribuição do rótulo ao autor o próprio Waldron tem uma série de artigos em que discute e mais que isso defende e parece até assumir os pressupostos do positivismo jurídico a partir de uma perspectiva normativa O ponto então é que não pretendo sustentar que aquele que associa Waldron ao positivismo está errado mas que a evolução da obra do autor apresenta elementos suficientes para afirmar que sua posição transcende a mera abordagem positivista do ponto de vista analítico ou prescritivo acerca do Direito Mais do que isso procuro demonstrar igualmente que na medida em que é bem verdade que há uma série de 1 Tradução livre e contextualizada da seguinte passagem We have been too busy squabbling about what H L A Hart should have said to Ronald Dworkin I think it is high time analytic legal philosophers woke up to some of these issues Em WALDRON Jeremy Partly Laws Common to All Mankind Foreign Law in American Courts New Haven e Londres Yale University Press 2012 p 23 Tomei a liberdade de trocar some of these issues algumas dessas questões por outras uma vez que no original Waldron referese a algo específico no caso controvérsias no direito norteamericano acerca da natureza do direito internacional consuetudinário De qualquer maneira penso que a contextualização é adequada porque o ponto principal é o mesmo teoria e filosofia do Direito ainda que analítica está para além de discussões demasiadamente academicistas no sentido mais ordinário do termo 14 convergências entre Waldron e cada um dos outros dois espectros opostos positivismos e Dworkin sua aproximação com a concepção dworkiniana de law as integrity é tamanha que há boas razões para que sua obra seja tratada como algo que está para além do positivismo De todo modo dito isso retomo aquilo que diz Oakeshott não sugiro que seja a única hipótese que um indivíduo sensato pode aceitar sugiro tão somente que ela é digna de investigação2 O ponto é exatamente esse E para que isso seja possível e para estruturar a pesquisa de forma a ter coerência com a analogia que meu próprio título sugere a pesquisa está ordenada de forma tal que cada um de seus três capítulos dialogue respectivamente com uma das vias da história da Teoria do Direito Além disso cada um deles terá a pretensão de responder a algumas perguntas que lhe servem de leitmotiv No primeiro capítulo a primeira via procuro reconstruir o fenômeno do positivismo jurídico desde suas origens O que é o positivismo Mais o que é isso a que chamamos de positivismo Como e onde ele surgiu Com quem e por quê No segundo capítulo em uma transição que pretendo bastante clara com relação ao que encerra o primeiro busco explicitar uma mudança na trajetória positivista que rompeu com o que era característico ao positivismo clássico junto disso e a partir disso mostrarse á como se deu o general attack o ataque geral de Ronald Dworkin ao positivismo jurídico Com isso será possível demonstrar os reflexos desse ataque na tradição do fenômeno positivista enquanto tal ao mesmo tempo em que passo a explicar finalmente as diretrizes mais gerais da segunda via justamente a concepção dworkiniana de law as integrity Como se diferenciam os positivismos contemporâneos do positivismo clássico Por que Dworkin rejeitava o positivismo Quais eram seus argumentos Como o positivismo jurídico reagiu O que define o direito como integridade de Ronald Dworkin Até aqui com os dois primeiros capítulos a ideia é abordar evidentemente que de forma sintética as origens do positivismo jurídico a transição de sua vertente clássica às contemporâneas e os desafios de Ronald Dworkin e sua concepção aos pressupostos positivistas Os teóricos abordados logo serão o próprio Dworkin como também os mais fundamentais a todos esses assuntos especialmente Thomas Hobbes Jeremy Bentham John Austin3 e H L A Hart 2 Tradução livre I do not suggest that it is the only hypothesis a sensible man might entertain I suggest only that it is one worth while investigating OAKESHOTT Michael The Politics of Faith and the Politics of Scepticism Avon The Bath Press 1993 p 19 3 O jurista John Austin de The Province of Jurisprudence Determined Não confundir com o John L Austin da filosofia da linguagem ordinária autor de How to do Things with Words 15 O terceiro capítulo é todo dedicado à obra de Jeremy Waldron alguém cuja obra foi e tem sido construída com base justamente nas teorias desses autores abordados nos capítulos que a este antecedem Finalmente pretendo abordar a terceira via Como Jeremy Waldron encara o positivismo jurídico E a concepção de law as integrity Quais são os reflexos de ambas as correntes em sua obra O que Waldron propõe exatamente Quais são suas contradições e convergências com relação aos positivismos e Dworkin Suas teses são mesmo uma terceira via Por quê Basicamente em termos analíticos essa é a estrutura e a ideia da pesquisa Tendo esses capítulos e a pesquisa que lhes sustenta como alicerce a tese da dissertação é apresentar Jeremy Waldron como uma terceira via em Teoria do Direito Ainda assim penso que em sede de Introdução explicar também um outro lado da pesquisa é importante sua motivação e sua importância Diante de trabalhos teóricos não é raro que se pergunte algo como muito bem e qual é a relevância disso Talvez paradoxalmente enquanto acadêmico que pesquisa Teoria do Direito penso que não raro aqueles que fazem essa pergunta têm uma boa dose de razão Por trás da ideia de apresentar a obra de Jeremy Waldron como uma terceira via então estão duas rejeições e duas afirmações Primeiro as mais óbvias e diretas minha tese significa i rejeitar a vinculação de Waldron à tradição positivista e ii afirmar uma releitura de sua obra como uma terceira via possível Só que para além disso o projeto tem ainda outro detalhe por trás um detalhe que é ao mesmo tempo motivação e objetivo da pesquisa A citação que serve de epígrafe a esta Introdução ali está porque concordo com a afirmação Fazer filosofia no Direito está ou deveria estar para muito além de um fetiche acadêmico que gostemos ou não acaba por não ter qualquer relevância prática Se ao final da leitura alguém entender que é melhor dar a Waldron um rótulo de positivista tudo bem O objetivo principal autêntico é outro que considero bem mais importante Ao argumentar que a jurisprudence de Jeremy Waldron é uma terceira via quero também como sustento o próprio autor ir além dos rótulos Não acho que eles não sejam importantes se pensasse assim não teria escolhido logo uma nova rotulação ao dar o próprio título desta pesquisa Se palavras não tivessem relevância não haveria qualquer razão para escolheremos uma em vez de qualquer outra O ponto porém é que existe algo que transcende a rotulação pela rotulação que é algo com o qual perdemos muito tempo enquanto pesquisadores Assim minha tese aqui quer também i rejeitar claro que por motivos diferentes as alternativas que os positivismos e Dworkin ofereceram à prática jurídica e ii afirmar que temos muito a aprender com as considerações de Waldron sobre o papel do 16 Direito em uma comunidade política leve sua teoria o rótulo que for Não é sem razão que autores como John Rawls F A Hayek Robert Nozick e o próprio Ronald Dworkin consideravam que a filosofia política era um ramo diretamente relacionado à filosofia do Direito e à discussão da justiça e direitos fundamentais4 discutir o Direito é discutir direitos política justiça questões sobre as quais discordamos frequente e profundamente enquanto sociedade Discordamos e discordamos muito Como se verá na pesquisa isso é um dos pontos mais centrais e fundamentais na obra de Waldron É por isto que apresento sua obra como uma terceira via possível e adequada em uma democracia e sobretudo nos tempos interessantes em que vivemos é fundamental que o Direito saiba representar seu papel de maneira adequada na resolução dos desacordos Isso só será possível com uma Teoria do Direito democrática uma democratic jurisprudence Enfrentar essa questão é a autêntica raison dêtre desta pesquisa 4 O ponto é de John Gray GRAY John The Two Faces of Liberalism Nova York The New Press 2000 p 14 17 1 AS ORIGENS DO POSITIVISMO JURÍDICO ANGLOSAXÃO And when men that think themselves wiser than all others clamor and demand right Reason for judge yet seek no more but that things should be determined by no other mens reason but their own it is as intolerable in the society of men as it is in play after trump is turned to use for trump on every occasion that suite whereof they have most in their hand5 Thomas Hobbes O positivismo jurídico diz Lenio Streck é um fenômeno complexo6 Uma das razões por trás dessa complexidade fundamental é a existência de uma vasta série de concepções e teorias cada qual com suas respectivas peculiaridades e nuances cujos principais expoentes são intitulados ou se autodenominam positivistas Assim considerandose a complexidade do fenômeno antes que se inicie uma abordagem direta mais específica do tópico que dá nome a este capítulo ie o positivismo jurídico anglo saxão em suas origens tornase inevitável a seguinte reflexão quais são as características comuns que unem as obras de tantos teóricos oriundos de épocas e locais distintos sob a mesma escola de pensamento Dito de outro modo o que é ou o que define o positivismo jurídico O elevado número de definições distintas é muito provavelmente proporcional ao tamanho da controvérsia que levantam Norberto Bobbio autor vinculado ao positivismo continental tem uma forma muito própria de explicar o fenômeno e sua definição é bastante difundida no Brasil Bobbio ao 5 Em tradução livre e contextualizada e quando os homens que se julgam mais sábios do que todos os outros clamam e exigem que o critério de julgamento seja a razão reta right reason objetivam nada mais senão que as coisas sejam determinadas não pela razão de outros homens mas pela sua própria Isso é tão intolerável na sociedade dos homens como no jogo uma vez escolhido o trunfo em todas ocasiões subsequentes usar como trunfo aquela série de que se tem mais cartas na mão Cf HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 pp 111112 Mantive a epígrafe em seu idioma de origem de forma a respeitar o inglês da época 6 A frase de Lenio Streck está no magistral verbete Positivismo Jurídico em seu belíssimo Dicionário de Hermenêutica Vale conferir a obra e no ponto que importa a esta pesquisa mais especificamente o verbete acerca do positivismo Streck é pioneiro em uma interpretação acerca do fenômeno juspositivista assentada nos paradigmas da hermenêutica filosófica Cf STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 p 159 e seguintes Na mesma linha antes mesmo da publicação do Dicionário de Hermenêutica Streck foi pioneiro no Brasil em uma crítica hermenêutica ao positivimo vide Hermenêutica Jurídica em Crise e sobretudo Verdade e Consenso a meu ver a magnum opus de Steck Cf STRECK Lenio Luiz Hermenêutica Jurídica em Crise uma Exploração Hermenêutica da Construção do Direito 11 ed revista atualizada e ampliada com prefácio de Ernildo Stein Porto Alegre Livraria do Advogado 2013 pp 134138 STRECK Lenio Luiz Verdade e Consenso Constituição Hermenêutica e Teorias Discursivas 6 ed revista modificada e ampliada São Paulo Saraiva 2017 pp 3366 18 conceituar a doutrina juspositivista enumera os sete pontos ou problemas que considera como características fundamentais do positivismo jurídico7 Defineo assim como uma teoria que i considera o Direito como um fato e não como um valor e sendo assim ii considera como Direito aquilo que vige como tal em determinado lugar fazendose valer por meio da coação de forma a iii atribuir à legislação o caráter de fonte preeminente do Direito A partir daí a concepção positivista deve ser entendida como iv uma teoria imperativista isto é uma teoria segundo a qual o Direito reúne normas comandos imperativos que tomados como uma estrutura formam o ordenamento jurídico este que para o positivismo frisese segundo Bobbio seria v um ordenamento completo e coerente a ser portanto vi interpretado mecanicamente pelo juiz Por fim haveria ainda um ponto que mesmo não se podendo fazer sobre ele aquilo que o autor chama de generalizações fáceis faria parte de uma conceituação ampla do positivismo vii a teoria da obediência absoluta da lei enquanto tal8 que Bobbio resume no aforismo Gesetz ist Gesetz ie lei é lei9 7 Cf a Introdução da parte intitulada A Doutrina do Positivismo Jurídico em BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 pp 131134 8 Diz Bobbio que com referência a esta teoria contudo melhor do que de positivismo jurídico deverseia falar de positivismo ético visto que se trata de uma afirmação de ordem não científica mas moral ou ideológica e também as origens históricas dessa doutrina são diferentes daquelas das outras teorias juspositivistas enquanto de fato estas últimas concernem ao pensamento racionalista do século XVIII a primeira diz respeito ao pensamento filosófico alemão da primeira metade do século XI e em particular a Hegel BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 133 Ou seja Bobbio diz que esse último aspecto enumerado como característica fundamental do positivismo jurídico poderia ser colocado mais como uma assertiva ideológica ou moral vinculada a uma concepção positivista do Direito e menos como parte de uma empreitada científica entendida aqui como analítica e sendo assim chama a esse ponto de positivismo ético Esse rótulo não é difundido contemporaneamente o que se tem entendido por positivismo ético é aquilo mais comumente chamado de positivismo normativo vertente do positivismo jurídico mais atual sobre o qual os próximos capítulos deste trabalho especialmente o terceiro tratarão com mais vagar que distanciandose de uma pretensão meramente analítica visa a prescrever uma concepção positivista do Direito O termo ethical positivism foi cunhado por Tom Campbell notadamente um positivista normativo ele próprio justamente com a intenção de evitar confusões conceituais uma vez que a palavra normativo segundo Campbell poderia remeter a positivismo normativista esta a vertente kelseniana que muito resumidamente entende o Direito a partir de uma concepção de normas Cf WALDRON Jeremy Normative or Ethical Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 pp 410434 Esta nota que tem óbvias pretensões explicativas acaba tendo também uma interessante função exemplificativa do ponto abordado pelo presente subcapítulo Senão vejamos em um tópico que surgiu justamente com a pretensão de prestar esclarecimentos prévios sobre um tema que implica a possibilidade de malentendidos terminológicos aqui tão somente em uma explicação sobre um único termo já fica explícita outra possível confusão conceitual Dito de outro modo não apenas o termo positivismo é como veremos ao longo da pesquisa controverso por si só outros termos disputados acabam emergindo dentro da própria discussão terminológica que paradoxalmente visava a tornar as coisas mais claras Não surpreende pois que até hoje haja tanta divergência doutrinária 9 Para uma crítica que além de importantíssima diferencia com rigor os positivismos ideológico teórico e metodológicoconceitual Cf STRECK Lenio Luiz Verdade e Consenso Constituição Hermenêutica e Teorias Discursivas 6 ed revista modificada e ampliada São Paulo Saraiva 2017 pp 4547 19 A definição de Bobbio passa muito longe de resolver as controvérsias10 Ainda que alguns de seus pontos especialmente aqueles de i a iv estejam em alguma medida em consonância com as vertentes e entendimentos contemporâneos que se têm acerca do positivismo suas definições são duplamente restritivas primeiro porque ensejam uma compreensão limitada do Direito segundo porque se adotadas suas noções já não mais possibilitariam que muitos autores hoje apontados unanimemente como positivistas tivessem seus nomes vinculados àquilo que se entende por positivismo Que fique muito claro pois esta pesquisa não subscreve à noção de que o positivismo jurídico atende às sete características reunidas pelo autor italiano Para H L A Hart indisputavelmente um dos maiores nomes do positivismo jurídico senão o maior11 o positivismo designa a afirmação simples de que não é necessariamente verdade que as leis reproduzam certas exigências da moral ou a satisfaçam12 Disso seguese que tanto a existência quanto o conteúdo do Direito dependem de fatos sociais e não da satisfação de determinados valores substantivos13 daí pois duas grandes teses positivistas i a tese justamente das fontes sociais e ii a tese da separabilidade entre Direito e moral Uma questão é o que o Direito é is o que o Direito deve ser ought é outra questão John Gardner14 por sua vez em capítulo dedicado justamente a desmistificar algumas noções atribuídas com certa frequência ao positivismo jurídico segue uma definição muito similar à de Hart fazendo questão de expor muito claramente que a trata como a única característica distintiva do positivismo jurídico e seus adeptos Para Gardner será um positivista jurídico somente aquele que subscreve à proposição segundo a qual em um sistema jurídico a validade jurídica de uma norma depende de suas fontes não de seus méritos15 10 SILTALA Raimo Law Truth and Reason A Treatise on Legal Argumentation Dordrecht Springer Netherlands 2011 p 119 11 Que curiosamente dificilmente poderia ser chamado de positivista se as seis características ditas fundamentais de Bobbio fossem integralmente levadas em consideração 12 HART H L A O Conceito de Direito Pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz tradução de Antônio de Oliveira SetteCâmara São Paulo WMF Martins Fontes 2012 p 240 13 GREEN Leslie Legal Positivism In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesspr2018entrieslegalpositivism Acesso em 14 mar 2018 14 Que assim como Hart ocupou a cátedra de Jurisprudence na Universidade de Oxford 15 In this chapter I intend to treat one and only one proposition as the distinctive proposition of legal positivism and to designate as legal positivists all and only those who advance or endorse this proposition The proposition is LP In any legal system whether a given norm is legally valid and hence whether it forms part of the law of that system depends on its sources not its merits Cf GARDNER John Legal Positivism 5½ Myths In GARDNER John Law as a Leap of Faith Oxford Oxford University Press 2012 p 20 20 Uma definição mais modesta porque exigente de muito menos requisitos como as de Hart e Gardner16 será consideravelmente mais segura que aquela de Bobbio Ainda assim por óbvio são definições abstratas tratam do positivismo em linhas gerais e por isso servem apenas de ponto de partida17 Gerald Postema autor contemporâneo que também é por sua vez vinculado ao positivismo por exemplo em interessantes reflexões sobre o tema menciona que não apenas as teses positivistas são contestadas como também o são as próprias alegações sobre quais são essas teses18 Assim o autor sugere que em vez de um apego exacerbado a contestadas formulações canônicas que prédefinam a doutrina positivista de forma taxativa é mais interessante que se trabalhe a partir de investigações que abordem como o positivismo foi articulado e desenvolvido ao longo dos séculos mais precisamente para que se possa compreender o fenômeno adequadamente é importante que o olhar esteja voltado às suas origens E as origens do positivismo com toda sua longa história e ampla influência remontam à Inglaterra mais precisamente i à filosofia de David Hume e ii às suas primeiras manifestações jurídica de facto19 desenvolvidas por Thomas Hobbes e Jeremy Bentham20 É sobre essas origens que trata o presente capítulo À época contudo ainda que já fosse 16 A definição de ambos Hart e Gardner é muito próxima da clássica definição de John Austin um dos mais influentes teóricos de toda a história do Direito anglosaxão que será tratado com mais vagar em subcapítulo subsequente e apontado como um dos pioneiros do positivismo jurídico enquanto tal ainda que à época o rótulo não existisse como será explanado a seguir Para Austin muito diretamente a existência do Direito é uma coisa seus méritos ou deméritos outra Existir é uma questão estar de acordo a um determinado padrão é outra Uma lei que de fato existe é uma lei ainda que eventualmente desgostemos dela ou venha de um texto que aprovamos ou desaprovamos Tradução livre para the existence of law is one thing its merit or demerit is another Whether it be or not is one enquiry whether it be or be not conformable to an assumed standard is a different enquiry A law which actually exists is a law though we happen to dislike it or though it vary from the text by which we regulate our approbation and disapprobation Em AUSTIN John The Province of Jurisprudence Determined Edited by Wilfrid E Rumble Cambridge Cambridge University Press 2001 1832 p 157 17 Já que como vimos há uma série de teorias muito particulares que levam esse mesmo rótulo Lembrando as acertadíssimas palavras de Streck o positivismo é mesmo um fenômeno complexo Se esta pesquisa não atender a seus objetivos que ao menos sirva para demonstrar a complexidade do fenômeno 18 POSTEMA Gerald J Legal Positivism Early Foundations University of North Carolina Legal Studies Research Paper Series n 1975470 dez 2011 Disponível em httpsssrncomabstract1975470 Acesso em 14 mar 2018 19 Sobre a primeira manifestação jurídica já estar em Thomas Hobbes ver BOYLE James Thomas Hobbes and the Invented Tradition of Positivism Reflections on Language Power and Essentialism University of Pennsylvania Law Review vol 135 pp 383426 Gerald Postema por sua vez chega inclusive a mencionar a identificação de uma Teoria do Direito já em Hume em suas reflexões sobre a justiça cf POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 pp 81134 Seja como for o mais importante é que são esses Hume Hobbes e Bentham os três nomes mais frequentes quando se fala nas raízes do positivismo jurídico 20 Cf GREEN Leslie Legal Positivism In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesspr2018entrieslegalpositivism Acesso em 14 mar 2018 DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 pp 174 175 CHIASSONI Pierluigi O Enfoque Analítico na Filosofia do Direito de Bentham a Kelsen São Paulo Contracorrente 2017 pp 2627 21 possível observar as raízes do positivismo como tal não se falava em positivismo isto é nenhum desses autores era chamado de ou autointitulado positivista Isso levanta novas questões sobre a expressão o que naturalmente exige mais algumas considerações prévias 11 POSITIVISMO JURÍDICO ALGUMAS PALAVRAS SOBRE UMA PALAVRA21 Para além da contestabilidade das teses positivistas e sobretudo sobre quais são as teses positivistas há ainda outras questões pertinentes se em suas vertentes clássicas os primeiros expoentes dessa matriz teórica assim o eram avant la lettre não eram chamados de positivistas22 qual é a origem na Teoria do Direito23 do termo positivismo Quando e por que então os autores vinculados ao fenômeno passaram a receber o rótulo Essas duas perguntas definitivamente não estão controvertidas ainda assim buscar respondelas auxilia a esclarecer e compreender a teoria positivista Como dito ainda que a teoria já existisse não se atribuía o nome de positivismo a qualquer concepção jurídica antes do início do século xx e é no mínimo muito difícil precisar o surgimento do termo na literatura jurídica Ainda assim de acordo com Frederick Schauer outro positivista contemporâneo é possível afirmar que essa rotulação tornouse 21 Aqui devese obrigatoriamente fazer menção a Frederick Schauer a quem pode ser atribuída a origem deste subcapítulo quase que em sua integralidade tanto das reflexões aqui levantadas quanto do próprio título Em Positivism Before Hart Schauer faz uma investigação sobre a expressão positivismo e no ponto intitula seu tópico de Some Words about a Word justamente em tradução livre Algumas Palavras sobre uma Palavra Cf SCHAUER Frederick Positivism Before Hart In FREEMAN Michael MINDUS Patricia eds The Legacy of John Austins Jurisprudence Rotterdam Springer Netherlands 2013 pp 271290 22 Em Law Legislation and Liberty Hayek chega a classificar Hobbes Bentham e até Austin este último que é penso chamado unanimemente de positivista como racionalistas construtivistas ao identificalos com uma corrente por ele chamada justamente de racionalismo construtivista rationalist constructivism uma vez que conforme se verá ao longo desta pesquisa esses autores identificavam o conteúdo das normas jurídicas como produto de um ato de vontade algo a que Hayek chama criticamente de falácia construtivista constructivist fallacy Ainda assim o mesmo Hayek na mesma obra acaba por identificar esse pensamento como algo tipicamente juspositivista identificando Hobbes como o primeiro expoente da escola Cf HAYEK F A Law Legislation and Liberty A New Statement of the Liberal Principles of Justice and Political Economy Cornwall Routledge 1998 pp 28 45 74 23 Sobre a locução Teoria do Direito fiquemos aqui com as lições de Chiassoni em tópico denominado de Advertência Preliminar que em certa medida não deixa de ter a mesma missão do presente tópico já que aqui antes de se abordar o positivismo diretamente também se procura fazer exatamente advertências preliminares A filosofia do direito positivo é na cultura jurídica ocidental o que fizeram ou fazem os estudiosos na maioria das vezes os acadêmicos os quais para designar seu trabalho ou seus produtos literários usaram ou usam tal denominação ou denominações consideradas sinônimas na língua portuguesa ou em outras línguas como jurisprudence legal philosophy legal theory Rechtstheorie teoria do direito teoría del diritto théorie du droit allgemeine Rechtstheorie allgemeine Rechtslehre general theory of law teoria geral do direito teoria generale del diritto teoría del derecho etc In CHIASSONI Pierluigi O Enfoque Analítico na Filosofia do Direito de Bentham a Kelsen São Paulo Contracorrente 2017 pp 2223 22 mais ampla difundida a partir justamente de um autor não positivista ou antipositivista24 notadamente Lon Fuller em The Law in Quest of Itself Ainda que Fuller i seja um autor jusnaturalista e ii talvez por vezes ao tratar sobre o positivismo tenha incorrido em aquilo que Schauer chama de imprecisões o próprio Schauer diz que Fuller acertou em alguma medida em suas considerações25 mais precisamente Fuller teria acertado ao caracterizar o positivismo como uma direção de pensamento jurídico que insiste em traçar uma afiada distinção entre o Direito como ele é e o Direito como ele deve ser26 Controvérsias à parte a expressão positivismo tem sido amplamente aceita tanto por aqueles que subscrevem quanto por aqueles que criticam as teses ou ao menos algumas das teses que no mais das vezes vêm a ser chamadas de positivistas e sendo assim a definição de Fuller aliada às de Hart e Gardner27 é um bom ponto de partida À ela somase ainda uma relação bastante difundida a associação direta entre o termo positivismo e a locução direito positivo28 Hayek menciona os termos gregos physei e thesei e seus equivalentes latinos naturalis e positivus para daí decorrer a expressão direito positivo e depois positivismo2930 24 SCHAUER Frederick Positivism Before Hart In FREEMAN Michael MINDUS Patricia eds The Legacy of John Austins Jurisprudence Rotterdam Springer Netherlands 2013 pp 271290 25 SCHAUER Frederick Positivism Before Hart In FREEMAN Michael MINDUS Patricia eds The Legacy of John Austins Jurisprudence Rotterdam Springer Netherlands 2013 pp 271290 26 Tradução livre para a direction of legal thought which insists on drawing a sharp distinction between the law that is and the law that ought to be Em FULLER Lon L The Law in Quest of Itself Boston Beacon Press 1940 p 08 Observese que a definição do jusnaturalista Fuller aproximase ao menos em alguns aspectos daquela de Hart e Gardner exposta no item anterior Isso indica que mesmo que inevitavelmente generalizantes e ainda que seja de nosso interesse investigar as origens do fenômeno é possível seguir essas abstrações em alguma medida e sempre com certa cautela como uma espécie de ponto de referência 27 Cf p 12 desta pesquisa 28 Cf BIX Brian H Diccionario de Teoría Jurídica Tradução para o espanhol de Enrique Rodríguez Trujano e Pedro A Villarreal Lizárraga Cidade do México UNAM 2009 p 197 BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 15 Chiassoni inclusive chega a falar em uma filosofia do direito positivo CHIASSONI Pierluigi O Enfoque Analítico na Filosofia do Direito de Bentham a Kelsen São Paulo Contracorrente 2017 p 26 Aqui cumpre fazer uma observação ao associar positivismo com direito positivo tanto Brian Bix quanto Norberto Bobbio fazem questão de expressamente afastar qualquer relação entre o positivismo jurídico e o positivismo científico de Auguste Comte um dos argumentos inclusive especialmente em Bix é a de que autores anteriores a Comte como justamente Hobbes e Bentham como vimos já eram chamados de positivistas Por outro lado autores como Suri Ratnapala professor da cátedra de Direito Público na Universidade de Queensland e no Brasil Lenio Streck sustentam que há uma relação filosófica inexorável entre o positivismo jurídico e o positivismo científico cf STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 p 159 RATNAPALA Suri Jurisprudence Nova York Cambridge University Press 2009 pp 2223 Evidentemente Streck e Ratnapala não negam que autores vinculados ao positivismo jurídico sejam anteriores a Comte a relação que o hermeneuta sustenta está no apego de ambas as escolas a tudo aquilo que é empírico e isso relações diretas ou não entre os dois positivismos à parte não é negado por nenhum dos lados na discussão É o que nos importa para a presente pesquisa 29 HAYEK F A Law Legislation and Liberty A New Statement of the Liberal Principles of Justice and Political Economy Cornwall Routledge 1998 pp 20 e seguintes 23 É por isto portanto que autores cujas obras situamse em uma época na qual sequer se falava em positivismo são tranquilamente associados à escola porque ressalvadas todas as controvérsias que envolvem a identificação das teses positivistas e mais o próprio surgimento do termo no estudo do Direito parece ser plenamente possível falar hoje em positivismo jurídico associandoo a teorias voltadas i ao direito positivo e ii a possibilidade de uma distinção entre uma análise do Direito como ele é e outra de como ele deve ser Isso significa que ainda que não levassem esse nome à época essas teses foram desenvolvidas justamente por autores clássicos De todo modo feitas essas considerações sigamos a recomendação de Gerald Postema Ultrapassando qualquer pretensão de se chegar a um conceito último de positivismo tentemos melhor compreendelo enquanto fenômeno primeiro a partir de suas origens para a partir daí identificalo em suas vertentes modernas e contemporâneas É muito mais adequado e sensato discorrer sobre as manifestações do pensamento juspositivista do que definilo de forma taxativa e abstrata como dizia Merquior citando a Nietzsche apenas seres ahistóricos permitem uma definição no verdadeiro sentido a palavra31 12 A TEORIA CLÁSSICA DO COMMON LAW As raízes do positivismo jurídico então porque inglesas acabam remetendo por óbvio ao common law mais precisamente aos desafios que uma visão positivista do Direito propôs ao common law no século XVII Esses desafios podem ser bem ilustrados pelas considerações de Thomas Hobbes em Leviathan publicado em 165132 e especialmente em Dialogue between a Philosopher a Student of the Common Laws of England33 escrito na década de 1660 e publicado em 1681 razão pela qual Hobbes é de 30 Outro entendimento que ainda que não faça menção expressa à locução direito positivo em si muito se aproxima da explanação de Bix e Bobbio nota 28 supra é a de Siltala cuja distinção entre os dois tipos de positivismo dáse no seguinte sentido enquanto o positivismo científico reivindicaria uma concepção positivista das ciências o positivismo jurídico basearseia em uma concepção voluntarista do Direito Cf SILTALA Raimo Law Truth and Reason A Treatise on Legal Argumentation Dordrecht Springer Netherlands 2011 p 113 Essa é a mesma lógica que perpassa a ideia hayekiana de um positivismo jurídico como um construtivismo racionalista cf nota 21 supra 31 MERQUIOR José Guilherme O Liberalismo Antigo e Moderno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991 p 15 32 HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 Passim 33 HOBBES Thomas Diálogos entre um Filósofo e um Jurista Prefácio de Renato Janine Ribeiro e tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino São Paulo Landy 2004 1681 Passim 24 acordo com a interpretação ortodoxa o primeiro positivista34 de todo modo Hobbes não foi o único é possível dizer que o positivismo anglosaxão nasce justamente a partir desses desafios que impôs ao direito comum inglês Antes que se explique quais foram esses desafios contudo é preciso tecer algumas noções sobre qual era esse cenário a ser desafiado sobre quais eram os paradigmas que lhe serviam de sustentação Iniciemos portanto pelo começo pelo começo histórico sobre o qual prometo ser breve Ainda que as origens e a tradição do common law remontem a tempos muito anteriores ao século XVII é por volta deste período que se passou a desenvolver uma teoria do common law É por isso que quando se fala em uma teoria clássica do common law estáse falando no corpo teórico que começava a tomar forma a partir das contribuições de um dos mais importantes juristas de toda a história anglosaxã Sir Edward Coke 1552163435 razão pela qual o direito inglês ao longo de parte do século XVII viveu aquilo que se convencionou chamar de Era Coke36 O desenvolvimento de um corpo teórico dedicado ao estudo do Direito no common law deve enorme parcela de seu surgimento a uma tentativa de resposta ao absolutismo A teoria clássica do common law nesse sentido visava a retomar as concepções medievais segundo as quais o Direito não era produzido pela mão humana ou seja não era construído por reis juízes ou membros do Parlamento Legisladores e juristas não criavam mas declaravam e expressavam um Direito preexistente que era a manifestação de uma realidade muito mais profunda37 Partindo desse pressuposto Sir Coke e os teóricos clássicos consideravam que o direito comum era a única fonte verdadeira de Direito na Inglaterra38 Esse direito comum por sua vez remetia ao costume comum ao povo e de tão antigo imemorial39 que por 34 A eventual controvérsia será discutida mais adiante 35 POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 p 04 36 Ver o segundo capítulo The Age of Sir Edward Coke de LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 37 POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 p 05 38 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 33 39 Coke por vezes chega a fazer menção aos costumes das tribos saxônicas Em POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 p 06 25 meio da tradição e da experiência representava em si uma espécie de coletânea histórica de máximas nãoescritas 40 O common law portanto não reunia simplesmente um padrão de regras que podia ser previamente definido Isso porque além dos costumes que não podiam ser simples e facilmente descritos justamente porque imemoriais as leis naturais formavam as bases a partir das quais o sistema era construído Não por menos Sir Coke enquanto common lawyer não hesitava em invocar aquilo que chamava de eternas leis do Criador41 Além disso mas também por isso o common law era visto pela teoria clássica também como a expressão natural do bem comum e da razão humana Nas palavras de A W B Simpson não haveria no sistema anglosaxão qualquer possibilidade de uma distinção muito clara entre dizer que determinada solução para um problema estava de acordo com o Direito e dizer que tal solução era a solução justa racional42 A lei era a razão Isso não significa dizer que o common law era aceito e validado pela razão seus princípios latentes expressavam a razão Tampouco significa que o common law resumirseia à razão porque os common lawyers ie juízes juristas advogados davam forma a essa razão comum a partir de um tipo de raciocínio específico típico e particular do Direito43 121 Sir Edward Coke e a artificial reasoning De acordo com a teoria clássica do common law esse raciocínio subjacente ao direito comum inglês era uma espécie de aperfeiçoamento artificial da razão Nenhum homem dizia Sir Coke deve ser mais sábio que o Direito que é a razão aperfeiçoada44 O common law a partir dessa visão45 dentro da qual além de Sir Coke uma série de importantes 40 POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 pp 0507 41 Em LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 pp 36 37 42 Cf SIMPSON A W B The Common Law and Legal Theory In SIMPSON A W B ed Oxford Essays in Jurisprudence second series Oxford Oxford University Press 1973 pp 7799 43 POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 pp 0507 44 Tradução livre para No man ought to be wiser than the law which is the perfection of reason Em LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 35 45 Como dito ao início deste item a visão de Sir Coke foi uma das concepções dominantes sobre o common law na teoria clássica surgida no século XVII havia ainda outra importante linha teórica nesse século associada a Selden e Sir Hale que serão tratados com mais vagar no item subsequente Os scholars contemporâneos 26 teóricos como Thomas Hedley e Sir John Davies46 trabalhavam sob paradigmas muito similares tinha sim seus alicerces na razão mas constituía em si um outro tipo de processo intelectual O common law portanto expressava essa razão natural que lhe servia de base a partir de um tipo artificial de raciocínio que por si mesmo aperfeiçoava essa razão fundante O termo artificial reasoning ie artificial uso da razão raciocínio artificial que veio a ser amplamente difundido e aceito como fundamento do direito inglês no século XVII deve suas origens à resposta de Sir Coke a uma série de tentativas do Rei James I de decidir pessoalmente alguns casos tirandoos da competência das Cortes Para o jurista a única forma através da qual seria possível honrar plenamente o princípio fundamental disposto em lex facit regem47 seria contrapor ao raciocínio dito natural do Rei que tentava decidir casos extrajudicialmente a artificial reasoning do common law a razão do rule of law que se daria exatamente através do exercício dessa espécie distinta de razão disciplinada nas Cortes48 Esse raciocínio artificial alicerce do common law segundo as concepções dominantes à época teria seis características típicas seis dimensões que além de caracteriza lo explicariam por que essa espécie distinta de razão do Direito seria um aperfeiçoamento da razão natural A artificial reasoning era i pragmática focada na resolução de problemas práticos e constituía ii uma missão pública que conferia considerações voltadas à justiça a esse aspecto pragmático era também iii contextual no sentido de que o juiz do common law somente adquiriria sua capacidade especial de raciocínio e julgamento a partir da experiência com anos de imersão na particularidade do direito comum e iv não sistematizada no sentido de que uma coerência local seguindo a lógica pragmática era mais importante que perspectivas teóricas sobre o corpo do sistema como um todo v discursiva isto é construída oralmente e por isso nas palavras de Sir Coke a argumentação discursiva era expressão da razão e por fim era uma razão vi comum compartilhada divergem sobre qual das duas teorias era e foi a mais significativa Para um aprofundamento no tema ver especialmente em 169176 POSTEMA Gerald J Classical Common Law Jurisprudence Part I Oxford University Commonwealth Law Journal vol 02 n 02 2002 pp 155180 46 Alguns autores chegam a se referir ao período em comento como a Era CokeDavies 47 O Direito ou a lei faz o Rei Atribuído a Bracton em De Legibus et Consuetudinibus Angliae Cf POSTEMA Gerald J Classical Common Law Jurisprudence Part II Oxford University Commonwealth Law Journal vol 03 n 01 2003 pp 0128 48 POSTEMA Gerald J Classical Common Law Jurisprudence Part II Oxford University Commonwealth Law Journal vol 03 n 01 2003 pp 0128 27 superando assim enquanto prática compartilhada a razão natural por sua vez passível de ser exercida a individualmente49 Esse aperfeiçoamento da razão dizia respeito concomitantemente ao processo e ao produto à atividade dos common lawyers e o conhecimento que nela era expressado e adquirido Coke atribuía ao Direito a razão e a tarefa do profissional consistia em revelar a sabedoria nele contida Assim o direito inglês passava a ser dotado de autoridade no mesmo lugar no qual adquiria uma forma racional na mente do juiz50 Nas palavras de Anderson Vichinkeski Teixeira Sir Coke enxergava na figura do juiz um intérprete do conhecimento empíricojurídico criado durante séculos e esse conhecimento era norteador da conduta do magistrado na busca da realização da justiça Isso porque em Sir Coke a lei escrita perfectibilização formal da sabedoria e da vontade do legislador poderia ser afastada nas hipóteses em que o juiz responsável por aplicala entendesse ser mais conveniente aplicar uma regra costumeira em determinado caso concreto51 Essa evidentemente era a caracterização feita pelos praticantes que subscreviam a essa ideia de uma artificial reasoning Há quem sustente hoje que essa cisão essa divisão entre dois tipos distintos de raciocínio era nada mais que uma tentativa de afastar o Direito dos cidadãos comuns uma espécie de acordo mútuo e silencioso entre juristas juízes e advogados para preservar um distanciamento entre os cidadãos e uma elite jurídica52 Para Postema contudo ao mesmo tempo em que seria ingênuo pensar que os juristas da época eram absolutamente alheios a intenções do tipo também não se pode por outro lado deixar que uma espécie de cinismo exacerbado considere como absoluta mistificação elitista aquilo que tem importante valor teórico para caracterizar a prática do common law do século XVII53 Isso quer dizer que seja genuína seja artifício retórico para conservar uma 49 Em POSTEMA Gerald J Classical Common Law Jurisprudence Part II Oxford University Commonwealth Law Journal vol 03 n 01 2003 pp 0128 50 CROMARTIE Alan Sir Matthew Hale 16091676 Law Religion and Natural Philosophy Cambridge Cambridge University Press 1995 pp 15 1819 51 TEIXEIRA Anderson Vichinkeski Estado de Nações Hobbes e as Relações Internacionais no Século XXI Porto Alegre Sergio Antonio Fabris 2007 p 24 Sobre o ponto ver o primeiro capítulo da obra que ainda que trabalhe sob outra perspectiva diferente da adotada por esta pesquisa enquanto aqui abordase o positivismo de Thomas Hobbes para se chegar em Jeremy Waldron a obra de Vichinkeski Teixeira parte de Hobbes para traçar paralelos com as relações internacionais contemporâneas é preciso mencionar é uma das raras em língua portuguesa a abordar a filosofia hobbesiana com tamanha profundidade 52 NENNER Howard By Colour of Law Legal Culture and Constitutional Politics in England 16601689 Chicago University of Chicago Press 1977 p 117 53 POSTEMA Gerald J Classical Common Law Jurisprudence Part II Oxford University Commonwealth Law Journal vol 03 n 01 2003 pp 0128 28 mistificação do sistema é necessário entender a artificial reasoning para que se possa ter uma perspectiva suficientemente ampla de um período histórico do direito inglês Em síntese pois era este o núcleo do common law na Era Coke um sistema jurídico fundado i em costumes cujas origens diziase eram impossíveis de se datar ii na lei natural e iii na razão que era aperfeiçoada pela artificial reasoning do Direito54 e esse portanto era o contexto em que Thomas Hobbes desenvolvia suas críticas Antes contudo abordarseá novamente de forma breve um ponto frequentemente ignorado na literatura jurídica sobretudo a brasileira a possibilidade levantada especialmente por Michael Lobban55 de que se atribua John Selden e Sir Matthew Hale autores típicos do common law um certo pioneirismo em um redirecionamento teórico do direito anglosaxão a uma direção mais positivista 122 John Selden e Sir Matthew Hale Como já observado o início da tradição do positivismo é mais que frequentemente associado a Thomas Hobbes De todo modo não é como se a concepção de Sir Coke sobre o common law fosse uma unanimidade absoluta ainda que Hobbes tenha sido de fato o grande responsável pelo primeiro ataque geral a uma visão segundo a qual o direito comum inglês seria um aperfeiçoamento artificial da razão baseado nos costumes e na lei natural razão pela qual se explica por que ao contratualista é justa e pontualmente atribuída essa condição de marco teórico já era possível observar no mesmo século XVII outras frentes que serviam de alicerce àquilo que se sinalizava como a condução da teoria do common law a em 54 LOBBAN Michael The common law mind in the age of Sir Edward Coke Amicus Curiae n 33 janfev 2001 pp 1821 Disponível em httpsasspacesasacuk37661134814841SMpdf Acesso em 16 mar 2018 55 Ver especialmente o item 31 pp 6164 intitulado The Positivism of Selden and Hale do terceiro capítulo de LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 Lobban reforça o ponto em outras passagens em outras obras If Sir Edward Coke was the champion of the notion that the common law was the perfection of reason his contemporaries took a view wich looks more positivist Em tradução livre se Sir Edward Coke era o campeão da noção de que o common law era a razão aperfeiçoada seus contemporâneos Selden e Hale tomavam uma visão que aparenta ser mais positivista Em LOBBAN Michael Custom Nature and Authority the roots of English legal positivism In LEMMINGS David ed The British and their Laws in the Eighteenth Century Woodbridge The Boydell Press 2005 p 29 Digase ainda que essa relação entre a Era SeldenHale e um giro positivista não aparece somente em Lobban Cf SYTSMA David S Matthew Hale as Theologian and Natural Law Theorist In HELMHOLZ R H HILL Mark eds Great Christian Jurists in English History Cambridge Cambridge University Press 2017 pp 163186 29 alguma medida ao menos uma direção mais positivista56 Isso é importante porque ainda que Hobbes e Bentham sejam os primeiros teóricos da escola que hoje entendemos como positivismo jurídico ou seja os primeiros positivistas per se essa reaproximação teórica do direito anglosaxão com o direito positivo deuse a partir de John Selden e seu discípulo Sir Matthew Hale57 e a relevância desses juristas para o direito inglês não pode ser subestimada uma vez que a Era Coke não foi o único fio condutor do common law presente no século XVII Também foi esse o século da Era SeldenHale58 Enquanto a concepção da Era Coke por fazer uma associação direta entre os costumes e a lei natural exigia que se respeitasse em alguma medida um certo caráter de imutabilidade do direito inglês59 já que em todo seu conservadorismo Sir Edward Coke via como extremamente perigosa qualquer modificação naquilo no qual se verificava uma continuidade imemoriável especialmente quando a manifestação desses costumes pelo Direito têm como pano de fundo a artificial reasoning tipicamente jurídica esta por sua vez imutável por essência60 havia quem entendesse que as leis eram perfeitamente sujeitas a mudanças John Selden jurista cuja importância é tamanha que John Milton o consagrado poeta inglês chamavao de o líder dos homens instruídos em sua terra61 foi o grande representante dessa corrente na divergência Contrariando a ideia cokeana de que o common law não reunia em si regras e costumes que podiam ser descritos já que a origem dos costumes porque fundados na justiça natural e comum aos homens e repetidos quase que integralmente através dos tempos fugiria ao alcance da memória Selden entendia que o Direito era um conjunto de regras positivas cujas fontes seja o próprio costume ou um Ato do Parlamento eram 56 Aqui lembremos e portanto tenhamos em mente que o termo positivismo remete a direito positivo Isso quer dizer que uma direção mais positivista significa uma direção que se aproxima mais do direito positivo e proporcionalmente pois afastase do apego ao direito natural predominante na Era Coke 57 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 61 58 Ver o terceiro capítulo The Age of Selden and Hale de LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 59 Em LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 pp 3435 60 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 pp 3435 61 Em HAIVRY Ofir John Selden and the Western Political Tradition Cambridge Cambridge University Press 2017 p 02 30 identificáveis62 A lei não era produto da razão mas da autoridade e ainda que antigos os costumes não eram nem imutáveis nem tinham origens de impossível identificação Em Sir Coke havia um apelo à razão em Selden um apelo ao contrato63 Dito de outro modo ainda que ambos convergissem ao ver no common law um longo desenvolvimento histórico havia uma clara divergência enquanto Coke via nisso uma característica de imemoriabilidade que levaria quase a uma imutabilidade natural já que sua base era a razão Selden via a partir da compreensão da história uma clara demonstração de mudanças ao longo do tempo64 já que as leis emanavam menos da razão e mais de uma autoridade que se perfectibilizava nos acordos entre os cidadãos65 Assim é importante que se diga que Michael Lobban não deixa de ter razão ao atribuir à Era SeldenHale o início de um acolhimento a teses mais positivistas no common law Ainda que as noções inauguradas por John Selden tivessem por trás a lei natural e sua respectiva observância como alicerce básico era possível identificar66 a partir delas no direito comum um conjunto de regras válidas mutáveis muito mais abertas às contingências que estavam menos vinculadas à razão e muito mais fortemente atreladas a acordos sociais um conjunto pois de regras positivas E essa tendência em tese mais positivista inaugurada por John Selden foi acompanhada e teve em grande medida seu seguimento e difusão em razão de um discípulo de seus discípulos Sir Matthew Hale Juiz e proponente de reformas no direito inglês ainda que não tenha atingido a mesma relevância de seu mestre em um sentido teórico e 62 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 pp 6263 63 Cf os títulos dos dois primeiros capítulos de CROMARTIE Alan Sir Matthew Hale 16091676 Law Religion and Natural Philosophy Cambridge Cambridge University Press 1995 respectivamente Coke The Appeal to Reason pp 1129 e Selden The Appeal to Contract pp 3041 64 Em seus trabalhos Selden rejeitava uma veneração cokeana da antiguidade do common law Todas as leis dizia ele eram igualmente antigas e igualmente fundadas na natureza Entretanto elas tomavam caminhos distintos e para Selden todos os costumes que vêm de uma fundação a natureza variam de commonwealth para commonwealth Mais do que isso as leis eram sujeitas a mudanças De suas origens as leis aumentavam alteravamse ou eram interpretadas de modo que salva somente a parte imutável da natureza elas eram como um barco que por constantes reformas já não mais tem seus primeiros materiais Tradução livre para in these works Selden rejected a Cokean veneration of the antiquity of the common law All laws he retorted were equally founded in nature However they had taken different paths and hence it is that those customs which have come all out of one foundation nature thus vary from and cross one another in several commonwealths Moreover laws were subject to change From their beginnings laws increased altered or were interpreted so that save for the meerly immutable part of nature they were like a ship that by often mending had no piece of the first materials remaning Em LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 61 65 CROMARTIE Alan Sir Matthew Hale 16091676 Law Religion and Natural Philosophy Cambridge Cambridge University Press 1995 p 32 66 E isso por si só já é importante Afinal lembremos em Sir Coke os costumes imemoriais apontavam à sua impossível identificação e descrição 31 filosófico Sir Hale foi o grande responsável por transmitir e difundir as concepções de John Selden sobre o common law E não só isso foi ele quem conseguiu enquanto teórico combinar os insights de Sir Coke sobre a natureza do Direito à perspectiva histórica de Selden67 O que é importante aqui é saber que para Sir Matthew Hale a partir de Selden as leis eram como em Coke oriundas de um corpo histórico mas passíveis de modificação a partir do raciocínio judicial que interpretaria e desenvolveria essas leis levando em consideração as circunstâncias do presente de forma a manter fidelidade ao espírito expressado por esse corpus juris histórico Todavia mesmo que em clara divergência com relação ao ideal cokeano de imutabilidade mantevese em SeldenHale a primazia de uma espécie de raciocínio distinto subjacente ao direito comum já que as reformas jurídicas deviam ser feitas exclusivamente a partir do trabalho dos common lawyers68 Agora considerando que em SeldenHale havia esse apelo à autoridade às regras positivas ao contrato se em SeldenHale a autoridade jurídica era muito mais uma questão de atos impositivos do Estado69 que reforçaria o Direito entendido enquanto contrato celebrado entre os cidadãos do que qualquer espécie de evolução natural da razão70 por que então não foi esse outro grande marco teórico a representar um primeiro ataque positivista ao common law Por que é Thomas Hobbes o único autor apontado como ruptura paradigmática como grande representante e pioneiro do positivismo jurídico É possível especular algumas razões71 De pronto é importante dizer que Sir Coke Selden e Sir Hale todos eles concordavam quanto à ideia de que o direito comum era a única fonte de Direito na Inglaterra Isso significa assim que é bastante provável que a condição de ruptura paradigmática seja atribuída a Thomas Hobbes e não a Selden porque dadas todas as 67 Cf CROMARTIE Alan Sir Matthew Hale 16091676 Law Religion and Natural Philosophy Cambridge Cambridge University Press 1995 p 30 No ponto é bom reforçar mesmo consideradas as divergências as visões de Coke e Selden não eram irreconciliáveis 68 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 pp 8889 69 Aqui a palavra é mantida entre aspas por questões temporais uma vez que ainda discutiamse e portanto desenvolviamse à época as noções de um Estado moderno enquanto tal 70 Ser um common lawyer para Sir Coke era compreender a razão por trás do Direito e naturalmente ao conceber o direito inglês como racional isto é ao entendelo como uma expressão da razão que se aperfeiçoava ao ser expressada pelo Direito qualquer concepção cokeana que apela à razão vai negar que em grande medida a origem das leis no common law estaria em contratos ou seja em acordos entre os cidadãos tão arbitrários quanto consentidos Cf CROMARTIE Alan Sir Matthew Hale 16091676 Law Religion and Natural Philosophy Cambridge Cambridge University Press 1995 p 30 71 Para além evidentemente do reconhecimento muito maior que a história tratou de conferir a Thomas Hobbes cuja obra teve e tem um alcance muito mais abrangente que a de John Selden fato este reconhecido inclusive por comentadores de Selden Cf HAIVRY Ofir John Selden and the Western Political Tradition Cambridge Cambridge University Press 2017 p 02 32 divergências as visões do último72 não eram completamente irreconciliáveis com as concepções de Sir Coke acerca do common law73 Afinal ainda que relacionasse muito fortemente a própria natureza do Direito às ideias de contrato de autoridade o que por si explica o ponto de Lobban sobre um aspecto positivista no autor todo seu corpo teórico era ainda assim não obstante em alguma medida muito fortemente dependente tanto do direito natural quanto do historicismo por trás da ideia de contrato entre os cidadãos74 Isso não significa que Selden recorresse à primazia da razão mas é um bom indicativo de sua rejeição ao absolutismo hobbesiano ao mesmo tempo portanto em que considerava insuficiente a atribuição da autoridade do Direito à razão Selden também rejeitava que ela fosse definida tão somente a partir da ideia de soberania Para ele o conhecimento do e a vinculaçãoobediência ao Direito tinham sim a ver com a ideia de autoridade mas também tinha a ver com os contratos os acordos entre os cidadãos e a história do costume a tudo isso sempre subjacente a ideia de que o mundo existe dentro de uma ordem de justiça metafísica75 A Era SeldenHale portanto ficava em alguma medida no meio do caminho Ao mesmo tempo em que não reproduz uma simplificação reducionista algo extremo como lex iniusta non est lex tampouco inaugura uma ruptura positivista por completo no sentido de que o conteúdo e a validade do Direito estariam apartados de qualquer valor substantivo em Selden uma lei seria inválida vale dizer sequer haveria que se falar em Direito quando ela violasse i aquilo que tivesse sido prévia e socialmente contratado entre os cidadãos a que se destina e ii a justiça fundamental expressada na máxima fides et servanda ie a fé deve ser seguida76 Nesse sentido fica bastante claro por que mesmo que SeldenHale falem em contrato em autoridade há praticamente unanimidade no sentido de ser Hobbes o primeiro positivista porque na concepção seldeniana a validade do Direito não está somente na autoridade mas também em um número mesmo que reduzidos de preceitos morais e sobretudo em seu respeito à intuição de que as leis eram em si consideradas como 72 Diferentemente do que acontecia com Hobbes como se verá no item subsequente 73 Como vimos combinar os insights de ambos foi justamente o que fez Sir Hale 74 Não por menos Giambattista Vico célebre iluminista italiano considerava Selden ao lado de Grócio e Pufendorf um dos três príncipes do direito natural Em HAIVRY Ofir John Selden and the Western Political Tradition Cambridge Cambridge University Press 2017 p 02 75 HAIVRY Ofir John Selden and the Western Political Tradition Cambridge Cambridge University Press 2017 pp 269270 76 HAIVRY Ofir John Selden and the Western Political Tradition Cambridge Cambridge University Press 2017 pp 270273 33 promessas históricas de uma tentativa de expressar um ideal de justiça77 A existência e a validade do Direito depende também de sua conformidade a essas premissas Tudo isso deixa claro que Selden e na sequência Sir Hale foram os responsáveis por cada um à sua maneira integrar as concepções de direito natural positivismo e historicismo78 Seus pressupostos assim reuniam i elementos de cunho mais jusnaturalista voltados a princípios morais estes atrelados à razão e à consciência ii elementos tradicionalmente ligados ao que hoje chamamos de positivismo através de uma noção de que as regras são postas e reforçadas pela autoridade soberana e finalmente iii elementos historicamente ligados ao historicismo com a devida licença para a proposital redundância manifestados na Inglaterra no pioneirismo de Sir Coke ao relacionar a validade moral e política do Direito a seu caráter histórico cujo olhar voltase aos costumes e tradições da comunidade a qual o direito em questão diga respeito79 Enfim o que se pode dizer de forma sintetizada é que para SeldenHale o common law tinha raízes positivas é bem verdade em um passado histórico Subjazia a esse passado histórico não apenas o contrato entre os cidadãos que poderia ser modificado mas também as noções de costume e lei natural Tudo isso era histórico e definia o alcance do poder soberano estabelecendo limites à validade de suas ações Em Hobbes a concepção era outra Sua visão não era histórica e muito menos fazia tantas digamos concessões ao jusnaturalismo como a de Selden as leis e sua validade eram derivadas do soberano que estivesse no poder 80 Resumidamente o que se pode dizer é que enquanto as concepções de Direito pósgrotianas de SeldenHale aceitavam premissas a priori o positivismo entende o 77 Aqui ao menos como uma espécie de acordo préinterpretativo lembremos a definição de John Gardner p 17 e notas 12 e 13 supra tomada por esta pesquisa como suficientemente explicativa e satisfatoriamente paradigmática segundo a qual o positivista jurídico é aquele que diz que em um sistema jurídico a validade jurídica de uma norma depende de suas fontes não de seus méritos Se tomarmos essa premissa como verdadeira o que é plenamente possível visto que mesmo considerando todas as controvérsias sobre quais são de fato as teses que se caracterizam como positivistas a concepção de Gardner é amplamente aceita Com o termo acordo préinterpretativo falo sobre pressupostos acerca de uma prática ou definição a ser interpretada que são suficientemente aceitos e compartilhados entre os intérpretes O termo original é de Ronald Dworkin e pode ser visto e logo melhor compreendido em DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge Belknap Press 1986 pp 6568 78 BERMAN Harold WITTE John The Integrative Christian Jurisprudence of John Selden In HELMHOLZ R H HILL Mark eds Great Christian Jurists in English History Cambridge Cambridge University Press 2017 pp 139161 79 De fato Berman é quem melhor explica essa integração Cf BERMAN Harold J The Origins of Historical Jurisprudence Coke Selden Hale The Yale Law Journal v 103 n 07 1994 pp 16511738 80 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 86 34 fenômeno jurídico como uma construção deliberada baseada em um conhecimento empírico dos efeitos que essa construção teria na concretização de propósitos humanos desejáveis81 Em uma palavra final talvez seja ainda interessante também diferenciar as concepções contratualistas de Hobbes daquelas dos juristas que também mencionavam a ideia de contrato se não todos a mais absoluta maioria dos pensadores prévios da ideia de consentimento visualizam este como um ato corporativo da comunidade que fora efetuado no passado A originalidade de um filósofo como Hobbes consiste em sublinhar esse mesmo consentimento agora pelo indivíduo82 13 O POSITIVISMO JURÍDICO COMO TAL THOMAS HOBBES Thomas Hobbes de Malmesbury 15881679 simplesmente ridicularizava a noção cokeana do Direito como artificial reasoning A fonte do Direito não é a razão não é a sabedoria em Hobbes é a autoridade pura e simplesmente83 Mais do que uma análise histórica do direito inglês interessanos claro compreender o pensamento políticojurídico de Hobbes como dito até aqui tratouse de uma contextualização De todo modo bastante brevemente é interessante colocar um dos possíveis motivos pelos quais a inauguração do positivismo como tal por Hobbes foi algo tão significativo na Teoria do Direito à época e por que sua contribuição no âmbito jurídico teve tamanho impacto junto aos juristas da teoria clássica A relevância de Hobbes na filosofia política hoje é tão aceita e difundida que se dispensam maiores explicações contudo penso ser interessante abordar uma razão específica que mostra a importância e mais a causa da importância de Hobbes ao Direito especialmente porque concordo com David Dyzenhaus e Thomas Poole no sentido de que é surpreendente tão grande discrepância entre de um lado o enorme engajamento e de 81 Tradução livre e contextualizada da seguinte passagem na qual Hayek discorre sobre os jusnaturalistas contemporâneos e posteriores a Grotius de Groot Grócio e suas convergências com o pensamento positivista This new rationalist law of nature of Grotius and his successors indeed shared with its positivist antagonists the conception that all law was made by reason or could at least be fully justified by it and differed from it only in the assumption that law could be logically derived from a priori premises while positivism regarded it as a deliberate construction based on empirical knowledge of the effects it would have on the achievement of desirable human purposes HAYEK F A Law Legislation and Liberty A New Statement of the Liberal Principles of Justice and Political Economy Cornwall Routledge 1998 p 21 82 Cf MERQUIOR José Guilherme O Liberalismo Antigo e Moderno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991 p 45 83 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 81 35 outro a pouca atenção da doutrina quanto a no primeiro caso a teoria política e no segundo a Teoria do Direito em Hobbes84 porque concordo com Martin Loughlin quando este diz que Hobbes era um jurista do mais alto nível que sua obra classificase mais como teoria política do Direito do que como filosofia política tão somente e que Leviathan é a maior obra prima políticojurídica political jurisprudence escrita na língua inglesa8586 Aliás é interessante mencionar que não se trata de hipérbole Michael Oakeshott grande filósofo do conservadorismo britânico e célebre comentador de Hobbes diz que talvez Leviathan seja a única obraprima de filosofia política escrita na língua inglesa87 No Brasil Eduardo Giannetti diz que o berço do tratamento moderno do problema da ordem social é sem dúvida a filosofia hobbesiana88 Uma obra de tal magnitude de autor de tamanha importância não poderia ser ignorada Assim na medida em que os juristas da teoria clássica do common law sentiamse obrigados a gostando ou não conceder a Hobbes o ponto de que o Direito emanava ao menos em alguma medida da autoridade o ataque geral hobbesiano ao common law deixava os com um problema como conciliar uma visão segundo a qual o Direito era concebido em termos de autoridade não de razão com a existência de um corpo de normas que se desenvolviam ao longo do tempo através da atividade judiciária ie judgemade law Até se tentou responder Sir Hale por exemplo ainda que aceitasse a concepção positivista ie ligada à ideia de direito positivo em contraposição a tão somente um direito natural em alguma medida em resposta a Hobbes a partir de suas concepções históricas explicava o desenvolvimento do Direito nas Cortes através de uma espécie de extensão das regras existentes estas sim que eram por sua vez derivadas do acordo social passado pelo uso por parte dos juízes da analogia somente quando o recurso fosse impossível devia o juiz recorrer à razão De todo modo a resposta era insatisfatória uma vez que além de pouco desenvolvida não era capaz de i lidar bem com a realidade de que os juízes desenvolviam 84 O ponto está na quarta capa e na Introduction de Hobbes and the Law editado pela Universidade de Cambridge Cf DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 85 Tradução livre para Leviathan stands as the greatest masterpiece of political jurisprudence written in the English language Em LOUGHLIN Martin The political jurisprudence of Thomas Hobbes In DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 p 05 86 Pessoalmente colocaria ainda ao lado de Leviathan An Introduction to the Principles of Morals and Legislation 1789 de Jeremy Bentham sobre a qual tratarei mais adiante 87 Leviathan is the greatest perhaps the sole masterpiece of political philosophy written in the English language OAKESHOTT Michael Hobbes on Civil Association Indianapolis Liberty Fund 1975 p 03 88 GIANNETTI Eduardo Vícios Privados Benefícios Públicos A Ética na Riqueza das Nações São Paulo Companhia das Letras 1993 p 71 36 sim o Direito e especialmente ii responder à questão da atividade do juiz diante de casos inéditos89 131 Hobbes e o common law autoridade não razão De forma muito direta é possível através de uma só afirmação responder a duas perguntas fundamentais i se Hobbes rejeitava o Direito como este era entendido pelos juristas da teoria clássica do common law qual era sua compreensão acerca do fenômeno jurídico E finalmente ii por que Hobbes é por muitos apontado como um dos senão o fundador do positivismo jurídico Em síntese ii Hobbes é o pai do positivismo jurídico90 da coisa senão do nome91 porque i definia o Direito em termos de comandos da autoridade soberana de forma tal que a validade do comando independe de seu conteúdo moral92 Essa concepção naturalmente é fruto das bases filosóficas de seu pensamento de suas noções de Estado e soberania e nos pontos que mais nos dizem respeito suas visões acerca do common law que são naturalmente uma consequência lógica decorrente da conjugação dos dois primeiros elementos Assim é importante que antes de abordarmos a jurisprudence93 de Hobbes per se tenhamos exposta ainda que muito sucintamente sua concepção acerca do Estado seu papel e seu autêntico significado Hobbes não entendia a commonwealth94 como uma entidade natural ou orgânica Ao contrário a instituição estatal era uma criação humana95 89 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 155 90 Nesse sentido Lenio Streck ao mesmo tempo em que aponta que em Thomas Hobbes 15581679 já se anunciava o positivismo ou ao menos é perceptível o seu gérmen faz uma interessante consideração acerca de uma espécie de positivismo já nos sofistas uma vez que para eles o nomos seria apenas uma expressão cultural e contingente isto é não estaria predeterminada no cosmos O nomos estaria sujeito ao homem e não o inverso STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 p 167 91 Ver ponto 11 desta pesquisa 92 LOBBAN Michael Thomas Hobbes and the common law In DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 p 39 Não por menos e o ponto que endosso é também trazido pelo próprio Lobban Austin que popularizou essa concepção a partir de sua jurisprudência analítica era um admirador de Hobbes Cf a título de exemplo a Lecture VI de Lectures on Jurisprudence AUSTIN John Lectures on Jurisprudence or the Philosophy of Positive Law 5 ed vol I Editado por Robert Campbell Londres John Murray 1885 pp 234 279 93 Sobre o termo jurisprudence entendido enquanto Teoria do Direito ver nota n 22 supra p 19 94 Commonwealth é um tradicional termo da filosofia política anglosaxã que se traduz na ideia de uma comunidade política construída visando ao bem comum Peço aqui licença para tomar emprestada a nota de Anderson Vichinkeski Teixeira acerca da locução Registrese a dificuldade de tradução literal para o português que a expressão commonwealth nos oferece pois ela possui vários significados como bemcomum Estado 37 Com a arte criamos o Leviatã chamado de commonwealth ou Estado do latim civitas que é nada senão um homem artificial embora maior e mais forte que o homem natural para cuja proteção e defesa o Leviatã é criado96 E o Direito na passagem que segue chamado por Hobbes de lei civil nesse contexto é posto97 pela autoridade soberana é produto daquilo que impõe o Leviatã Constituise pois para todo súdito pelas regras que o Estado a ele impõe oralmente ou por escrito ou por qualquer outro sinal suficiente da sua vontade empregando tais regras para diferenciar o que é certo do que é errado 98 Daí decorre que o que torna uma proposição boa ou má justa ou injusta certa ou errada não é a razão nem a sabedoria ou a consciência mas sua a fonte notadamente o soberano E se é o soberano quem determina seguese logicamente que a validade do Direito independe da valoração moral dos súditos acerca do comando que este lhes estabelece Eis pois o grande argumento para sustentar Hobbes como o primeiro positivista clássico em sua concepção de Direito satisfeitas estão as duas grandes teses positivistas de que falei no item que abre esta pesquisa a tese das fontes e a tese da separabilidade99 Nesse sentido quem melhor valida minha afirmação anterior de que na concepção hobbesiana a fonte do Direito é pura e simplesmente a autoridade é o próprio Thomas Hobbes ao dispor que o que faz uma lei não é a sabedoria e sim a autoridade100 daí o clássico adágio hobbesiano já notório auctoritas non veritas facit legem nação e comunidade Cf a nota n 7 em TEIXEIRA Anderson Vichinkeski Estado de Nações Hobbes e as Relações Internacionais no Século XXI Porto Alegre Sergio Antonio Fabris 2007 p 23 95 LOUGHLIN Martin The political jurisprudence of Thomas Hobbes In DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 p 08 96 Tradução livre para for by Art is created that great LEVIATHAN called a COMMONWEALTH or STATE in latine CIVITAS which is but an Artificiall Man Em HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 p 81 No ponto para melhor compreender o sentido de homem natural e homem artificial é interessante que se tenha em mente a ilustração original que serve de capa a Leviathan feita pelo próprio Hobbes ao lado do artista Abraham Bosse representando o Estado ou seja o próprio Leviatã a figura de um homem vestindo uma coroa e segurando em cada uma das mãos um cetro e uma espada o soberano detentor dos poderes secular e eclesiástico Quando olhamos de perto o corpo do soberano o homem artificial é composto por centenas de corpos de indivíduos menores ao homens naturais cujos olhares estão voltados à cabeça daquele que criaram para sua proteção 97 Posto Logo direito positivo no inglês essa relação pode ser vista mais diretamente posited positive law Daí positivismo jurídico legal positivism 98 Grifo meu Tradução livre para CIVIL LAW is to every subject those rules which the commonwealth hath commanded him by word writing or other sufficient sign of the will to make use of for the distinction of right and wrong Em HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 p 176 99 Cf GOLDSMITH M M Hobbes on law In SORELL Tom ed The Cambridge Companion to Hobbes Cambridge Cambridge University Press 2006 p 275 100 HOBBES Thomas Diálogos entre um Filósofo e um Jurista Prefácio de Renato Janine Ribeiro e tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino São Paulo Landy 2004 p 37 38 Para Hobbes um contexto no qual cada cidadão é o juiz de ações boas e ruins seria uma doença para a commonwealth dado que essa condição ie cada indivíduo julgando por si próprio a injusteza de uma ação é própria da condição do estado de natureza no qual ainda não há direito positivo ou governo civil Agora quando há governo quando há lei civil é ela que determina a medida em que as ações são boas ou ruins101 A consequência é lógica se é o direito positivo que determina o que é o Bom e por decorrência direta também o Mal não há sequer a possibilidade de se falar em uma lei injusta É essa concepção legalista de justiça que leva Norberto Bobbio a atribuir a Hobbes o surgimento das estruturas ideológicas102 do positivismo jurídico o comando do soberano é justo tão somente porque oriundo do único que detém o poder legítimo para comandar o que é proibido é injusto meramente porque proibido É uma ideia positivista porque o direito positivo é completamente e em si mesmo um critério autossuficiente para determinar o que é justo e injusto103104 É justamente por isso que Hobbes rejeitava com afinco a noção de artificial reason perpetrada no imaginário da teoria clássica do common law por Sir Coke Fora aquele que tem o poder legislativo ninguém pode fazer uma lei Razão artificial jurídica Nas criaturas terrenas não há razão outra que não a razão humana105 A ética hobbesiana é eminentemente subjetivista razão pela qual Hobbes seria incoerente se subscrevesse ao ideal de razão reta afinal para ele não existe um padrão ético de validade inquestionável e aceitação universal através do qual se possa determinar como devemos viver106 Essas noções todas estão bem sintetizadas no anteriormente mencionado Diálogos entre um Filósofo e um Jurista107 Escrita na metade final dos 1660 a obra tem um título autoexplicativo trata de um diálogo entre um filósofo crítico e um jurisconsulto defensor do 101 As citações foram extraídas e traduzidas livremente do seguinte trecho I observe the Diseases of a Common wealth that proceed from the poyson of seditious doctrines whereof one is That every private man is Judge of Good and Evill actions This is true in the condition of meer Nature where there are no Civill Lawes and also under Civill Government in such cases as are not determined by the Law But otherwise it is manifest that the measure of Good and Evill actions is the Civill Law Em HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 p 365 102 Ideological framework A edição aqui utilizada é norteamericana e foi traduzida do italiano por Daniela Gobetti 103 BOBBIO Norberto Thomas Hobbes and the Natural Law Tradition Tradução de Daniela Gobetti Chicago University of Chicago Press 1993 p 116 104 Mais adiante enfrentarei uma divergência doutrinária acerca disso originada por algumas considerações de Hobbes acerca da lei natural 105 HOBBES Thomas Diálogos entre um Filósofo e um Jurista Prefácio de Renato Janine Ribeiro e tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino São Paulo Landy 2004 p 37 106 GIANNETTI Eduardo Vícios Privados Benefícios Públicos A Ética na Riqueza das Nações São Paulo Companhia das Letras 1993 p 72 107 A Dialogue between a Philosopher and a Student of the Common Laws 39 common law Para alguns autores como é o caso de Norberto Bobbio o filósofo é o próprio Hobbes ao passo que o jurista seria uma representação de Sir Edward Coke108 O contraste entre Sir Coke Davies que de um lado representam o common law e Hobbes do outro personificando um desafio ao common law tornase assim muito visível Em Davies o common law ainda que fruto da autoridade era derivado da sabedoria dos tempos em Sir Coke era expressão natural da razão através da artificial reasoning exercida pelos juízes Em Hobbes Direito é a vontade do soberano a right reason109 ou razão reta é a razão do soberano a lei será o comando do soberano Lex não se confunde com jus110 132 Hobbes era mesmo um positivista Eis meu argumento anterior reduzido a poucas palavras é seguro colocar Thomas Hobbes como o precursor do positivismo jurídico uma vez que sua concepção acerca da lei civil satisfaz as grandes teses positivistas Agora por que lei civil Por que Hobbes dispõe seu conceito de Direito a partir daquilo que chama de civil law111 em vez de dizer apenas e simplesmente law Porque Hobbes como os autores de sua época pressupunha sempre a existência prévia de um outro tipo de lei uma natural law a lei natural As pergunta mais óbvias que se dão a partir dessa constatação não poderiam expressar algo diferente lei direito natural E o positivismo E toda a questão de auctoritas non veritas facit legem Ao que parece a associação Hobbespositivismo que prima facie parecia tão tranquila já não mais parece assim tão simples Por essa mesma razão Bobbio traz os mesmos questionamentos apenas formulados em outras palavras como pode um sistema que começa por aceitar a lei natural ser uma expressão típica de uma concepção formal de justiça Como pode o poder do Estado ser absoluto se a vontade do soberano deve medir a si mesma contra uma lei que é natural 112 108 BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 34 109 A ideia de right reason razão reta recta ratio é historicamente uma contenção básica da teoria do direito natural segundo a qual existiria justamente uma razão reta em consonância com a natureza O conceito pode ser traçado e atribuído originalmente a Cícero em De republica Cf MERQUIOR José Guilherme O Liberalismo Antigo e Moderno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991 p 39 110 Jus and Lex Right and Law they ought to be distinguished Em HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 p 86 111 Não confundir com o sistema jurídico de tradição romanogermânica que é o que via de regra temos em mente ao lermos civil law 112 The question thus arises how can a system which begins by accepting laws of nature be a typical expression of a formal conception of justice How can the power of the state be absolute if the will of the sovereign 40 Alguns ainda que visualizem a tradicional associação entre Hobbes e o positivismo como algo em alguma medida duvidoso considerada sua percepção acerca das relações entre o direito natural e as leis positivas entendem que os fundamentos intelectuais para a tradição moderna do positivismo tenham de fato raízes hobbesianas Um belo exemplo dessa corrente é Sean Coyle para o autor a relação entre a lei natural e as leis positivas da sociedade civil em Hobbes faz com que seja intrigante associálo de forma tão frequente quanto insistente ao positivismo jurídico113 Ainda assim o mesmo Coyle diz que uma vez que a epistemologia moral exposta em Leviathan dá a entender que é impossível qualquer consenso ético114 quaisquer que sejam crenças internas de um indivíduo e o que quer elas digam acerca das demandas de justiça do que é certo e de integridade pessoal o comportamento externo e o discurso desse indivíduo devem conformarse aos padrões da lei civil115 Para o autor isso é razão suficiente para i afastar Hobbes da tradição jusnaturalista e ii atribuir a seu pensamento as raízes juspositivistas116117 Por outro lado outros autores muito relevantes e academicamente respeitados digase rejeitam o rótulo a Hobbes Sabine por exemplo chega a afirmar expressamente que Hobbes devia ter antes de tudo abandonado qualquer vinculação a noções de direito natural e que por não têlo feito não seria exatamente correto classificalo como um juspositivista118 must measure itself against a natural law Em BOBBIO Norberto Thomas Hobbes and the Natural Law Tradition Tradução de Daniela Gobetti Chicago University of Chicago Press 1993 p 117 113 In the face of the foregoing account of Hobbess perception of the relationship between natural law and the positive laws of a civil society it may seem perplexing to persist in regarding such an account as positivist Cf COYLE Sean Thomas Hobbes and the Intellectual Origins of Legal Positivism Canadian Journal of Law and Jurisprudence vol 16 n 2 jul 2003 pp 243270 114 Aqui ainda que reconheça que determinadas tradições doutrinárias diferenciem os termos moral e ética como Dworkin por exemplo que em Justice for Hedgehogs define a ética como o estudo de como viver bem e a moral como o estudo de como devemos tratar as outras pessoas tratálosei como sinônimos intercambiáveis Quem melhor explica isso é Arthur Ferreira Neto em Metaética e a Fundamentação do Direito FERREIRA NETO Arthur Maria Metaética e a Fundamentação do Direito Porto Alegre Elegantia Juris 2015 pp 45 46 115 The epistemology of the Leviathan firmly precludes the possibility of moral consensus emerging through individual assessments of the demands of reason Whatever my internal beliefs may say about the demands of justice or right or personal integrity my external speech and behaviour must conform to the standards laid down in the civil law Cf COYLE Sean Thomas Hobbes and the Intellectual Origins of Legal Positivism Canadian Journal of Law and Jurisprudence vol 16 n 2 jul 2003 pp 243270 116 Coyle diz que mesmo considerando a aparente contradição há um senso mais profundo no qual o pensaento de Hobbes deve ser considerado a fundação da tradição posiivista moderna There is a deeper sense in which Hobbess thought should be regarded as the foundation of the modern positivist tradition Cf COYLE Sean Thomas Hobbes and the Intellectual Origins of Legal Positivism Canadian Journal of Law and Jurisprudence vol 16 n 2 jul 2003 pp 243270 117 Autores importantíssimos como o próprio Ronald Dworkin consideram o positivismo de Hobbes um truísmo Cf DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 p 175 118 SABINE George H A History of Political Theory 3 ed Londres George G Harrap and Co 1963 pp 460461 41 David Dyzenhaus por sua vez argumenta que para Hobbes a ordem legal é uma característica essencial para que seja mantida a ordem da sociedade civil e que por esse motivo as instituições de ordem jurídica a partir do pensamento hobbesiano devem ser estruturadas de forma tal que só é intrinsicamente legítima a autoridade que aja de acordo com o rule of law119120 A partir dessa leitura o autor chega a aproxima Hobbes de Lon Fuller121 autor já do século xx jusnaturalista que dispõe e claro que aqui exponho de forma muito sucinta que o Direito tem uma espécie de moralidade interna a partir da qual entre outros elementos é possível deduzir a invalidade de um sistema jurídico como tal não por menos colocao como Fuller como um antipositivista122 É o mesmo Dyzenhaus contudo na Introdução da coletânea por ele editada juntamente de Thomas Poole que já aqui referenciamos intitulada Hobbes and the Law que diz que classificar Hobbes como um precursor do positivismo clássico é característica da visão ortodoxa da doutrina mais tradicional123 De todo modo ainda que i eu esteja plenamente convencido quanto à interpretação segundo a qual Hobbes é sim o precursor do juspositivismo como tal e espero que os motivos que me levam a essa conclusão estejam suficientemente claros ao final deste tópico e ii essa seja a interpretação mais tradicionalmente aceita e difundida não seria justo que eu tratasse como unanimidade acadêmica aquilo que não o é afinal como novamente o próprio David Dyzenhaus muito bem diz não há interpretação incontroversa acerca do pensamento jurídico de Hobbes124 119 A locução rule of law é muito comumente no Brasil traduzida como Estado de Direito Não critico a tradução per se uma vez que me parece muito difícil neste caso uma tradução mais adequada seja como for penso que rule of law expressa algo um pouco diferente de Estado de Direito que penso pode acabar em alguma medida remetendo à clássica ideia alemã de Rechtstaat que na acertada lição de José Guilherme Merquior inclui alguns outros elementos adicionais como por exemplo a sacralização dos direitos públicos subjetivos na lei positiva Trato aqui de um conceito mais amplo propositalmente mais amplo no sentido de império da lei Cf MERQUIOR José Guilherme O Liberalismo Antigo e Moderno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991 p 133 120 Muitas são as concepções que substancializam um ideal tão amplo mas todas em maior ou menor grau gravitam em torno da noção de que indivíduos em posições de autoridade devem exercer seu poder nos limites de uma estrutura de normas públicas e não a partir de suas próprias preferências ideologias ou sensos de certo e errado Cf WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Research Paper Series Working Paper n 0850 nov 2008 p 06 121 Cuja definição acerca do conceito de positivismo jurídico foi tratada no item 11 desta pesquisa na p 14 122 DYZENHAUS David Hobbes and the Legitimacy of Law Law and Philosophy vol 20 n 05 set 2001 pp 461498 De forma muito similar Dyzenhaus rejeita a relação típica entre Hobbes e o positivismo jurídico em DYZENHAUS David Hobbes on the authority of law In DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 pp 186209 123 DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 p 02 124 Tradução livre para there is no uncontroversial interpretation of Hobbess juristic thought Cf uma vez mais a Introdução de DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 p 02 42 1321 Direito e lei natural em Thomas Hobbes No pensamento hobbesiano os conceitos de direito natural e lei natural são centrais e a distinção entre os termos deve ser ressaltada para Hobbes direito diferese de lei o primeiro trata de liberdades ao passo que o segundo trata de obrigaçãoões125 Há uma grande diferença entre lei e direito a lei é uma corrente o direito uma liberdade e eles diferemse como contrários126 Como dito anteriormente em Hobbes há uma cisão entre lex e jus em todos os sentidos É com isso em mente que Hobbes determinava que no estado de natureza os indivíduos teriam um direito natural fundamental o da autopreservação A fundação primeira do direito natural diz Thomas Hobbes é a de que todo homem com o máximo de suas forças visa a proteger sua vida e seus membros127 Isso é algo que simplesmente está no homem em sua constituição própria daí que o instinto da e pela autopreservação é algo que sequer pode ser evitado e daí que justamente porque algo que é um impulso natural não menos que aquele pelo qual uma pedra cai do alto o homem pode utilizarse de todos os meios e fazer todas as ações sem osas quais ele não pode preservar a si mesmo128 Aqui já começa a ficar muito claro como por que e em que medida a ideia de direito natural em Hobbes está diretamente relacionada a seu conceito de soberania Isso porque diante de um cenário no qual o homem tem a liberdade de fazer tudo dentro da esfera do necessário e do possível não é difícil de imaginar por que a imagem que Hobbes dispõe quando de sua já célebre descrição da vida no estado de natureza é como é Todo homem é inimigo de todo homem Em tal condição não há lugar para a indústria porque incertos seus frutos consequentemente não há 125 LOUGHLIN Martin The political jurisprudence of Thomas Hobbes In DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 p 13 126 Tradução livre para There is great difference therefore between Law and Right For Law is a fetter Right is freedome and they differ like contraries Em HOBBES Thomas De Cive The English Version entitled in the first edition Philosophicall Rudiments Concerning Government and Society Oxford Oxford University Press 1987 1643 p 170 127 Tradução livre para The first foundation of natural Right is this That every man as much as in him lies endeavour to protect his life and members Em HOBBES Thomas De Cive The English Version entitled in the first edition Philosophicall Rudiments Concerning Government and Society Oxford Oxford University Press 1987 1643 p 47 128 By a certain impulsion of nature no lesse then that whereby a Stone moves downward That since every man hath a Right to preserve himself he must also be allowed a Right to use all the means and do all the actions without which he cannot preserve himself Em HOBBES Thomas De Cive The English Version entitled in the first edition Philosophicall Rudiments Concerning Government and Society Oxford Oxford University Press 1987 1643 p 47 43 cultivo da terra Não há navegações nem uso das mercadorias importadas através do mar Não há construções confortáveis não há instrumentos que possam mover e remover as coisas que exigem grande força Não há conhecimento da face da Terra não há qualquer cômputo do tempo nem arte nem um alfabeto nem sociedade E o pior de tudo há um medo constante e o perigo de uma morte violenta e a vida do homem solitária pobre perversa bruta curta129 Esse cenário absolutamente assustador e os motivos que me levam a assim declara lo são autoevidentes é nada mais que uma óbvia consequência de um estado no qual todo e cada homem tem um direito de fazer aquilo que entender como necessário para a preservação de sua própria vida É por essa razão que diferentemente de vertentes liberais como as de autores como Locke e Kant o liberalismo hobbesiano não é exemplo de um projeto de um regime universal mas tão somente de uma busca por coexistência pacífica130 Além do direito natural que Hobbes entendia como uma liberdade o autor também faz menção às correntes da lei natural Essas por sua vez também estão diretamente relacionadas ao impulso humano natural instintivo de autopreservação Mas lembremos em Thomas Hobbes as leis naturais são uma série de preceitos de axiomas lógicos descobertos através do exercício da razão segundo os quais aos homens é vedado fazer tudo aquilo que i for destrutivo à vida e ii tira de outrem os meios de preservala131 Só que para que se possa compreender o verdadeiro sentido que essas leis naturais tinham para Hobbes não se pode perder de vista que elas eram vinculantes tão somente in foro interno Daí dizer que esses preceitos eram tão somente axiomas lógicos132 esses ditames da razão são chamados pelos homens de leis mas erroneamente porque são nada mais que conclusões ou teoremas que dizem respeito àquilo que leva à conservação e defesa de suas vidas133 Para Hobbes portanto a lei natural não é uma lei de facto esses teoremas são em verdade 129 Tradução livre para Every man is Enemy to every man In such condition there is no place for Industry because the fruit thereof is uncertain and consequently no Culture of the Earth no Navigation nor use of the commodities that may be imported by Sea no commodious Building no Instruments of moving and removing such things as require much force no Knowledge of the face of the Earth no account of Time no Arts no Letters no Society and which is worst of all continuall feare and danger of violent death And the life of man solitary poore nasty brutish and short Em HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 p 186 130 GRAY John The Two Faces of Liberalism Nova York The New Press 2000 p 02 131 A LAW OF NATURE Lex Naturalis is a Precept or generall Rule found out by Reason by which a man is forbidden to do that which is destructive of his life or taketh away the means of preserving the same Em HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 p 86 132 Cf STRAUSS Leo The Political Philosophy of Hobbes Its Basis and Its Genesis Tradução de Elsa M Sinclair Chicago University of Chicago Press 1952 p 17 133 These dictates of Reason men use to call by the name of Lawes but improperly for they are but Conclusions or Theoremes concerning what conduceth to the conservation and defence of themselves Em HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 pp 216217 44 disposições gerais deduzidas da razão que muito mais do que leis são contribuições à ciência moral134 Seriam muito mais conselhos do que comandos Em outras palavras de forma mais clara seria como dizer que esses axiomas porque racionais determinam algo como faça isso porque considerada a natureza humana é simplesmente bom135 lógico racional que seja assim Isso não é coercitivo é simplesmente lógico a partir da natureza humana deduzir a existência dessa lei natural mas não há uma sanção na hipótese de um eventual descumprimento Hobbes nega a existência dessa lei natural qua lei propriamente dita136 Nas palavras de Michael Oakeshott um preceito da razão em Hobbes é um preceito hipotético e não o equivalente a um dever137 Propriamente falando segundo o mesmo Oakeshott já em outro ensaio os axiomas que correspondem à lei natural em Hobbes são inúteis até que transformados de meros teoremas a máximas que regulam a conduta humana e transformados dessas máximas em leis de facto138 1322 Law of nature e civil law Tudo isso até aqui parece bastante tranquilo Aquilo a que Hobbes chama de lei natural são axiomas lógicoracionais que se deduzem a partir da natureza humana e dada a concepção hobbesiana acerca dessa natureza essas proposições tinham um caráter de conselho obedeça de forma tal que é apenas lógico que o respeito a este axioma seja também um respeito ao seu próprio instinto de autopreservação Esses conselhos só podem ser considerados regras uma vez que estabelecidos por aquele que detém a autoridade para tal 134 HARRISON Ross The equal extent of natural and civil law In DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 p 23 135 Bom Aqui exigese um importante esclarecimento Com Oakeshott temos que no vocabulário hobbesiano bom e mau não têm em si conotações morais prévias Bom é aquilo que é meramente desejável mau aquilo que é meramente objeto de aversão São portanto palavras redundantes que meramente repetem aquilo que já estava significado em palavras como prazeroso e doloroso No trecho original It is to be observed however that in Hobbess vocabulary the words good and evil had as a rule no moral connotation Good merely stood for what is desirable that is for whatever may be the object of human appetite evil signified whatever is the object of aversion They are therefore redundant words which merely repeat what is already signified in words such as pleasurable and painful Cf OAKESHOTT Michael Rationalism in Politics and other essays Londres Methuen 1962 p 261 136 STRAUSS Leo The Political Philosophy of Hobbes Its Basis and Its Genesis Tradução de Elsa M Sinclair Chicago University of Chicago Press 1952 pp 2426 137 A precept of reason is only a hypothetical precept and not the equivalent of a duty Cf OAKESHOTT Michael Rationalism in Politics and other essays Londres Methuen 1962 p 262 138 Trecho traduzido de forma livre e contextualizada properly speaking they are only theorems and they are fruitless until they are transformed from mere theorems into maxims of human conduct and from maxims into laws OAKESHOTT Michael Hobbes on Civil Association Indianapolis Liberty Fund 1975 p 39 45 A possível controvérsia contudo dáse a partir das seguintes passagens na obra de Hobbes i a lei natural e a lei civil contém uma a outra e são de igual extensão139 e especialmente ii o soberano seja um monarca ou uma assembleia teve o poder a si atribuído para garantir a segurança do povo tarefa à qual ele está vinculado pela lei da natureza140 Evidentemente ao menos prima facie isso parece contradizer toda a argumentação mais tradicional tanto no sentido de que Hobbes teria sido o precursor do juspositivismo tanto quanto na tradicionalíssima tese comumente atribuída ao autor do poder absoluto se o soberano está vinculado a uma lei natural i seu poder não é absoluto e mais especificamente no ponto que interessa aqui ii resta no mínimo fragilizada a afirmação que atribui a Thomas Hobbes e sua political jurisprudence uma subscrição àquilo que se convencionou a posteriori como típico das grandes teses positivistas Mas há uma explicação Retomando uma vez mais Martin Loughlin141 é possível a partir de um olhar mais cuidadoso e contextualizado da obra de Hobbes tratar esse aparente paradoxo como um misunderstanding um malentendido Diz o scholar que o argumento hobbesiano de que a autoridade do soberano é pautada em preceitos de uma lei natural não o levavam a reconhecer a validade de uma norma superior Seu objetivo era o de explicar que não poderia haver lei válida que não a lei civil e que a função básica da lei civil era satisfazer as condições de sua ciência civil142 de forma que suas premissas fundamentais fossem universalmente válidas E para que fosse possível estabelecer as bases de um regime político cuja sustentação fosse dotada de validade absoluta a única maneira efetiva era colocar esse regime no mesmo pedestal das leis naturais já que como vimos dentro da própria acepção hobbesiana essas leis naturais eram sempre racionalmente deduzíveis de outra lei natural 139 Grifos meus e tradução livre para the Law of Nature and the Civill Law contain each other and are of equall extent HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 p 314 140 O último grifo é meu e as traduções do trecho todo deramse livremente a partir da seguinte passagem THE OFFICE of the Soveraign be it a Monarch or an Assembly consisteth in the end for which he was trusted with the Soveraign Power namely the procuration of the safety of the people to which he is obliged by the Law of Nature HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 p 376 141 De um lado as constantes referências ao autor neste trabalho e de outro a infelizmente digase pouca frequência com que são citadas suas obras no Brasil talvez exijam uma explicação Martin Loughlin é um constitucionalista britânico professor de direito público na London School of Economics com sólidos estudos em temas como soberania rule of law e autores como Thomas Hobbes e Carl Schmitt 142 His primary objective was to explain that there could be no valid law except that of civil law and that the basic function of civil law was to meet the conditions of his civil science LOUGHLIN Martin The political jurisprudence of Thomas Hobbes In DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 p 18 46 evidente em si mesma O ponto é complexo mas pode ser sintetizado Com Bobbio temos que diante das pretensões eminentemente racionalistas da ciência de sua época a ambição de Hobbes era justamente a de afirmar o sistema político por ele descrito como tão válido quanto a geometria Para tanto a construção do raciocínio tinha obrigatoriamente de ser a seguinte i a ideia de que os indivíduos em nome da segurança conferem ao soberano o poder absoluto é absolutamente válida e ela só pode deter essa validade absoluta porque é a consequência lógica de outra lei justamente ii a lei primeira e suprema da natureza que prescreve de forma autoevidente a ideia geral de autopreservação143 Assim parece suficientemente conclusivo afirmar como o faz por exemplo Ross Harrison que compreendida adequadamente a relação entre lei natural e lei civil em Hobbes indica que o direito natural meramente mostra que deve haver uma lei civil sem contudo limitar seu conteúdo144 Uma vez mais o próprio Thomas Hobbes em De Cive parece resolver a questão Roubo assassinato adultério são proibidos pelas leis da natureza Mas aquilo que deve ser considerado roubo assassinato adultério isso não é determinado pela lei natural mas pela lei civil nem toda subtração de algo que outro possui é roubo essa é uma questão que pertence à lei civil De forma análoga nem todo ato de matar um homem é assassinato mas somente aquilo que a lei civil proíbe como tal nem todo encontro com outra mulher é adultério mas somente aquilo que a lei civil proíbe O que portanto é roubo assassinato adultério é determinado pela lei civil isto é os comandos daquele que detém a autoridade suprema145 É justamente com base nesse trecho que Bobbio resolveu de forma plenamente satisfatória aquilo que poderia ser uma aparente contradição146 Para ele o pensamento jurídico de Hobbes mostra que as leis naturais existem mas não vinculam Vinculante é o 143 O parágrafo apresenta conclusões baseadas nas premissas do seguinte trecho que teve passagens traduzidas livremente Hobbes espouses the rationalistic vocation of his times and has the ambition of establishing a political system which is absolutely valid as valid as geometry But he had only one way to give absolute validity to his system He had to place it on the pedestal of natural laws that is on a law which was either evident in itself like a mathematical axiom or rationally deductible from another law of nature evident in itself BOBBIO Norberto Thomas Hobbes and the Natural Law Tradition Tradução de Daniela Gobetti Chicago University of Chicago Press 1993 pp 143144 144 Cf HARRISON Ross The equal extent of natural and civil law In DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 pp 2238 145 Tradução livre para Theft Murther Adultery are forbid by the Lawes of nature but what is to be called Theft what Murther what Adultery is this is not to be determined by the naturall but by the civill Law for not every taking away of the thing which another possesseth but only another mans goods is theft but what is ours and what anothers is a question belonging to the civill Law In like manner not every killing of a man is Murther but only that which the civill Law forbids neither is all encounter with women Adultery but only that which the civill Law prohibits What therefore Theft what Murther what Adultery is must be known by the civill Lawes that is the commands of him who hath the supreme authority Em HOBBES Thomas De Cive The English Version entitled in the first edition Philosophicall Rudiments Concerning Government and Society Oxford Oxford University Press 1987 1643 pp 101102 146 Ver a p 34 desta pesquisa 47 direito positivo e o direito positivo é a vontade do soberano147 Repito em Hobbes as noções de certo e errado justo e injusto dependem da constituição de um poder político soberano148 A teoria hobbesiana da justiça diz Luc Foisneau ignora qualquer referência a um conteúdo moral específico149 É pois bem verdade que o direito natural e já que Hobbes fazia uma diferenciação também a lei natural faziam parte do que há de mais central na teoria hobbesiana contudo Hobbes assim o fez tão somente visando a expor os problemas por assim dizer ontológicos do estado de natureza de forma que fosse possível reconstruir seus preceitos tendo em vista justamente o propósito de legitimar a autoridade absoluta do poder soberano150 Enquanto muitos de seus contemporâneos utilizavamse de ideais de direito natural de modo a justificar revoluções e resistência ao poder do Estado Hobbes fazia justamente o contrário seu objetivo era a partir das leis e direito da natureza demonstrar que deles resta justamente a necessidade de obediência incondicional Também essa é uma conclusão lógica se adotadas as premissas hobbesianas afinal nas palavras de Leo Strauss a lei natural aparentemente vinculante também ao soberano somente assume sua total força vinculante a partir do comando do soberano151 Eis o positivismo hobbesiano todos devem considerar que as regras postas pelo soberano são a interpretação correta a verdadeira atribuição do sentido próprio da moralidade Isso porque não fosse assim a alternativa seria que cada um dos indivíduos como num estado de natureza seguisse seu próprio juízo sua própria interpretação cenário no qual sequer haveria regras Por essa razão somente o soberano tem o direito de interpretar o direito natural E aquele que de acordo com Hobbes interpreta o direito de forma dotada de 147 BOBBIO Norberto Thomas Hobbes and the Natural Law Tradition Tradução de Daniela Gobetti Chicago University of Chicago Press 1993 p 131 OAKESHOTT Michael Hobbes on Civil Association Indianapolis Liberty Fund 1975 p 45 148 GIANNETTI Eduardo Vícios Privados Benefícios Públicos A Ética na Riqueza das Nações São Paulo Companhia das Letras 1993 p 73 149 Ainda de acordo com Foisneau Hobbes havia compreendido perfeitamente bem que é difícil fundar uma teoria moral da justiça quando não mais se dispõe de uma teoria objetiva do bem O autor segue dizendo que é precisamente a ausência de uma tal teoria que torna indispensável o recurso ao Direito Para Foisneau Hobbes havia desde o início compreendido que o subjetivismo da concepção de bem implica o pluralismo de valores o qual requer por sua vez o primado da justiça sobre o bem algo que os filósofos morais não teriam bem entendido em Hobbes Grifos meus FOISNEAU Luc Pluralismo e concepção do bem em Thomas Hobbes Tradução de Wladimir Barreto Lisboa In STORCK Alfredo Carlos LISBOA Wladimir Barreto orgs Norma Moralidade e Interpretação Temas de Filosofia Política e do Direito Porto Alegre Linus 2009 pp 203220 150 LOUGHLIN Martin The political jurisprudence of Thomas Hobbes In DYZENHAUS David POOLE Thomas ed Hobbes and the Law Cambridge Cambridge University Press 2012 p 12 151 Tradução livre para the law of nature which is apparently binding on the sovereign takes on full binding force only by command of the sovereign STRAUSS Leo The Political Philosophy of Hobbes Its Basis and Its Genesis Tradução de Elsa M Sinclair Chicago University of Chicago Press 1952 p 69 48 autoridade é quem pode estabelecelo152 A partir de Thomas Hobbes nenhuma lei civil válida pode ser considerada injusta uma vez que a conduta justa só é identificável enquanto justa nos termos da lei e na associação civil não há lei propriamente dita que não seja a lei civil153 Essa é também a leitura de Yves Charles Zarka para quem as leis civis fornecem as regras do justo e do injusto pressupondo tão somente uma dimensão político jurídica desses termos154 Por fim cabe ainda mencionar aqui que é nesse mesmo sentido ainda que talvez a partir de outra perspectiva que Lenio Streck atribui a gênese do positivismo hobbesiano à sua subscrição ao nominalismo155156 concepção a partir da qual se considera que só há universalidade justamente nos nomes157 vale dizer evidentemente que de forma bastante sintetizada como é típico de qualquer abordagem filosófica em pesquisas que não tratam diretamente da tradição em análise o nominalismo de Hobbes é aquele segundo o só há objetos particulares e exceção feita aos nomes tudo é pois particular158 Streck traduz seu ponto e bem fundamenta ao trazer que a suposição nominalista de que um saber formulado em termos gerais tenha um equivalente como objeto concreto singular na realidade acaba por gerar a negação de todo valor cognitivo a juízos de valor e enunciados 152 Tradução live para for this reason only the sovereign has the right to interpret natural law And whoever according to Hobbes interprets the law authoritatively establishes it Em MARIS Cees JACOBS Frans eds Law Order and Freedom A Historical Introduction to Legal Philosophy Tradução de Jacques de Ville Amsterdam Springer 2012 p 122 153 OAKESHOTT Michael Hobbes on Civil Association Indianapolis Liberty Fund 1975 p 45 154 Grifos meus e tradução livre e contextualizada de civil laws furnish the rules of the just and of the unjust These suppose a juridicopolitical definition only from terms like the just and the unjust yours and mine ZARKA Charles Yves Hobbes and Modern Political Thought Tradução e introdução de James Griffith Edimburgo Edinburgh University Press 2016 pp 133134 155 Não é por acaso que a obra de ruptura que fundamenta o Estado Moderno tenha sido escrita por Thomas Hobbes um nominalista o que faz dele o primeiro positivista da modernidade STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 p 86 Streck chega a traçar uma interessante aproximação ente o positivismo e o nominalismo típico de Ockham Cf STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 p 130 156 Fica pois muito clara e bem fundamentada a inexorável relação sustentada por Streck entre o positivismo e a arbitrariedade que para o autor vai desde o nominalismo hobbesiano à tese da discricionariedade dos positivismos contemporâneos de que trataremos a seguir sobretudo é a partir desse ponto que Lenio Streck em sua abordagem típica e inevitavelmente hermenêutica associa o positivismo jurídico aos paradigmas por ele chamados de subjetivistas da metafísica moderna Cf STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 pp 129131 157 STEWART Duncan Thomas Hobbes In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Summer 2017 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivessum2017entrieshobbes Acesso em 25 out 2018 158 RODRIGUEZPEREYRA Gonzalo Nominalism in Metaphysics In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Winter 2016 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchiveswin2016entriesnominalismmetaphysics Acesso em 25 out 2018 49 normativos Para Streck é a partir disso que se nega a objetividade de conceitos como bom justo e correto na medida em que se referem a propriedades que não podem ser verificadas pela avaliação lógica ou empírica159 Hobbes assim acaba por igualar a liberdade com tudo o que a lei permite na mesma proporção em que não proíbe A liberdade pressuposta pelo liberalismo hobbesiano é nas palavras de Merquior liberdade por meio da lei e não exterior à legislação160 Com Hobbes nasce o positivismo a ideia de que não será qualquer concepção de justiça substantiva o critério a partir do qual se identifica o Direito161 133 Conclusão parcial Antes de avançarmos uma breve recapitulação revelase oportuna de forma que não se perca de vista o que já é possível concluir até aqui e sobretudo de que maneira tudo que foi até aqui abordado relacionase com o próximo tópico a ser discutido Em síntese portanto já temos algumas premissas que servem de alicerce ao que será discutido posteriormente i Positivismo jurídico com base em autores como Hart e Gardner pressupõe um pensamento que separa o Direito do que ele é daquilo que ele deve ser em outras palavras é uma concepção em seu sentido mais amplo segundo a qual não é verdade que o Direito para ser válido como tal deve necessariamente se conformar a determinado padrão moral o que naturalmente inclui valores substantivos considerações acerca do justo e do injusto noções divinas transcendentais enfim ii É possível afirmar que a origem dessa concepção é anglosaxã e remonta a Thomas Hobbes Inserido no common law cuja teoria clássica era dominada por duas grandes eras a Era Coke e seu apelo à razão e a Era SeldenHale e seu apelo a um historicismo contratual Hobbes desenvolveu uma teoria políticojurídica para por suas considerações acerca da natureza humana que fazia com que o estado de natureza fosse basicamente um estado de barbárie justificar a submissão dos cidadãos ao poder soberano Muito embora seja bem verdade que Hobbes até por uma questão temporal seja um autor vinculado à tradição do direito natural é possível concordar com os teóricos contemporâneos ortodoxos 159 STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 p 168 160 MERQUIOR José Guilherme O Liberalismo Antigo e Moderno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991 p 28 161 HAYEK F A Law Legislation and Liberty A New Statement of the Liberal Principles of Justice and Political Economy Cornwall Routledge 1998 p 48 50 dominantes que dizem ser Hobbes o primeiro grande positivista ao compreender o Direito como um comando do soberano a partir do qual se depreende qualquer noção de certo e errado justo e injusto o autor acaba por inaugurar as bases teóricas que possibilitam o desenvolvimento de uma corrente de pensamento jurídico cujas teses apontam à separabilidade entre Direito e moral Do mesmo modo da definição de liberdade como ausência de obstáculos externos é com Hobbes que nasce a tradicional concepção inglesa de liberdade negativa162 O positivismo então lembrando como coisa e não como nome nasce com o desafio de Hobbes à teoria clássica do common law Basicamente de forma bastante sintética são essas as conclusões naturalmente parciais que se depreendem da pesquisa até este ponto Depois de Hobbes também a continuação da tradição positivista deuse no common law mais precisamente e assim como também o foi com o próprio Hobbes a partir de desafios às tradições dominantes no common law De forma até mais explícita com Jeremy Bentham 14 O DIREITO EM JEREMY BENTHAM Logo após referenciar uma afirmação crítica de Sir Fitzjames Stephens163 para quem os escritos de Jeremy Bentham 17481832 eram como projéteis implodidos enterrados sob as ruínas a que eles próprios deram causa164 Gerald Postema ao menos no Direito provavelmente o maior de todos os comentadores de Bentham165 no prefácio de seu 162 A conclusão não é minha apenas subscrevo à de José Guilherme Merquior que coloca Hobbes como o nome paradigmático da teoria inglesa da liberdade uma das três possíveis escolas divisórias do conceito além da francesa e da alemã Enquanto a inglesa preconizava para o conceito de liberdade a concepção de independência a francesa rousseauniana adotava a concepção de autonomia Por sua vez a alemã vinculada a von Humboldt à moralidade kantiana e à política de Hegel entendia liberdade enquanto realização pessoal Cf MERQUIOR José Guilherme O Liberalismo Antigo e Moderno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991 pp 2732 163 Célebre jurista advogado e juiz britânico no séc xix 164 Tradução livre para a epígrafe do livro que será mencionado na sequência Originalmente em Digest of Law of Evidence de Sir Stephens a frase lê Benthams writings are like exploded shells buried under the ruins which they have made 165 Sydney Smith em comentário ao Book of Fallacies de Bentham disse que nem deuses homens ou vendedores de livros poderiam duvidar da necessidade de um intermediário entre Bentham e o público em razão de sua obra longa original complexa peculiar A colocação é aduzida por H L A Hart na introdução de seu Essays on Bentham Neither gods men nor booksellers can doubt the necessity of a middleman between Mr Bentham and the public Cf HART H L A Essays on Bentham Studies in Jurisprudence and Political Theory Oxford Oxford University Press 2001 p 01 51 excelente166 Bentham and the Common Law Tradition afirma que o comentário depreciativo era em grande medida verdadeiro grande parte da obra benthamiana dedicada ao Direito estaria sim escondida debaixo de escombros mas para Postema nesses escombros encontramse as ruínas de muito da prática e da ideologia do common law que Bentham atacava de forma efetiva e implacável E justamente por isso projéteis gastos estão de fato enterrados nessas ruínas mas projéteis ainda não consumidos permanecem lá e com grande potencial explosivo167 Bentham pois não pode ter sua importância subestimada e estudar sua obra ainda hoje assume extrema relevância Ao trabalho pois Como visto anteriormente o desafio de Hobbes ao common law colocava nas mãos da teoria clássica britânica o problema de reconciliar as noções de Direito como produto mais da autoridade e menos da razão exercida e representada na judgemade law A única saída encontrada por Sir William Blackstone o maior jurista da teoria clássica do common law após a Era Coke foi a de conformarse às tendências seldenianas de explicar o direito positivo a partir de uma ideia de autoridade Contudo muito em razão da força que o direito natural ainda representava e exercia sobre a tradição anglosaxônica Sir Blackstone ao discutir a natureza do Direito como tal acabava por vezes a tomar posições contraditórias Ainda que falasse no direito positivo como fruto daquilo que produz o soberano em termos até mesmo quasihobbesianos insistia que Deus ditava uma lei natural universalmente vinculante e superior a qualquer outra forma de lei168 Muito diferente de Hobbes para quem como vimos o Direito seria meramente o produto do soberano sem que estivesse ligado a qualquer ontoteologia a qualquer tipo de valores transcendentes169 Foram essas concepções atreladas ao jusnaturalismo racionalista anglosaxão e em alguma medida contraditórias depois do problema criado por Hobbes que Bentham encontrou ao frequentar as palestras de Sir Blackstone em Oxford Diferentemente do próprio Blackstone porém e daqueles que o antecederam Bentham via essas contradições além de 166 E de certa forma pouco ortodoxo ao oferecer leituras bastante próprias da obra de Bentham 167 Trechos traduzidos de forma livre e contextualizada da seguinte passagem Fitzjames Stephens disparaging comment contains more than a grain of truth Benthams most important jurisprudential work has lain buried under a great rubble In this rubble we find the ruins of much of the practice and ideology of the Common Law system he so mercilessly and effectively attacked but also a mountain of inaccessible and largely unpublished manuscripts the remains of a very long and curiously undisciplined writing career Spent shells are buried here to be sure but live ones with great explosive potential remain Prefácio de POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 vii 168 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 99 169 STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 p 167 Ver ainda o interessante jogo de palavras streckiano diz Lenio que em Hobbes Direito seria aquilo que o soberano disepõe 52 latentes demais como algo intolerável diante daquilo que a teoria clássica via como expressão do direito natural e da right reason Bentham viu nada mais que mera retórica que ao mesmo tempo em que invocava a natureza e os costumes era além de tão somente apologética ao Parlamento num sentido de reconhecer sua autoridade por mera e pura obrigação incapaz de conciliar as duas coisas170 Para Bentham a teoria clássica do common law não apresentava qualquer descrição minimamente clara do Direito enquanto fenômeno ou de como o direito anglosaxão desenvolvia suas próprias regras e quanto mais Bentham clarificava a teoria clássica mais a via como inadequada e problemática Tudo isso por uma razão muito clara Jeremy Bentham não apenas discordava mas ridicularizava a própria ideia da existência de um direito natural a ser invocado na decisão judicial Bentham afinal não era um grande simpatizante de teorias baseadas na suposta existência de normas deontológicas deduzidas a priori era um consequencialista por essência ao repristinar aquilo que dizia ter aprendido de Beccaria e Priestley171172 foi o grande pioneiro do utilitarismo Inclusive de acordo com Postema foi Bentham quem pela primeira vez expôs e defendeu de forma detalhada em língua inglesa o utilitarismo e o positivismo jurídico arranjando um sofisticado casamento entre as duas doutrinas173 141 Bentham e o utilitarismo A frase de Postema é muito boa porque muito elucidativa acerca do legado benthamiano Bentham foi mesmo o responsável por unir de um lado o utilitarismo e de outro o positivismo jurídico foi assim o responsável pelo casamento entre uma teoria ética e uma teoria jurídica 170 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 155 171 HART H L A Bentham and Beccaria In HART H L A Essays on Bentham Studies in Jurisprudence and Political Theory Oxford Oxford University Press 2001 pp 4052 172 Fred Rosen na Introdução a uma das edições de An Introduction to the Principles of Morals and Legislation de Bentham diz que Bentham não foi o primeiro utilitarista uma vez que o clássico adágio a maior felicidade do maior número já estava em Beccaria além de haver formulações similares em Hutcheson Leibniz e no próprio Priestley cuja influência possível é como visto reconhecida pelo próprio Bentham ROSEN Fred Introduction In BENTHAM Jeremy An Introduction to the Principles of Morals and Legislation An Authoritative Edition by J H Burns and H L A Hart with a new Introduction by F Rosen and an Interpretive Essay by H L A Hart Oxford Clarendon Press 2005 p li 173 Tradução livre e contextualizada para he gave both utilitarianism and legal positivism their first detailed exposition and defence in English and negotiated a sophisticated marriage of the two doctrines Prefácio de POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 vii 53 Antes de seguir contudo assim como fiz com relação ao termo positivismo sinto me obrigado a esclarecer desde logo o que quero dizer com utilitarismo já que como o primeiro este termo assume agora uma posição fundamental para uma adequada compreensão do assunto Além disso é importante que se deixe sempre explícito o que se quer dizer quando da utilização de determinado conceito especialmente quando o conceito em questão é tão amplamente repetido sob pena de perpetuar possíveis caricaturas que se tornam muito comuns com relação a termos que de tão repetidos acabam por se tornar até abstratos Não é por acaso que Bentham dizia ter aprendido os princípios subjacentes à sua teoria ética com além de Priestley Beccaria174 é o autor italiano que em seu Dei delitti e delle pene Dos Delitos e das Penas menciona muito possivelmente pela primeira vez aquilo que se tornaria a máxima utilitarista em sua essência a maior felicidade dividida no maior número175 Com base nisso a melhor definição do utilitarismo é dada pelo grande John Stuart Mill para o discípulo direto de Bentham a doutrina que tem a utilidade justamente o princípio da maior felicidade do maior número como parâmetro é aquela que define que um ato será certo na mesma proporção em que gere felicidade e logo errado na mesma proporção em que gere infelicidade sendo felicidade para o autor definida como prazer e ausência de dor e daí infelicidade como dor e ausência de prazer176 Esses termos e seus correlatos que Stuart Mill emprega para dar uma definição sistemática do utilitarismo enquanto doutrina eram expressamente adotados também por Bentham para quem o prazer e a dor em sua própria linguagem metafórica eram os dois mestres soberanos que regulavam a conduta humana177 Nesse sentido evidenciase no autor uma possível influência filosófica de Thomas Hobbes não é difícil traçar um paralelo entre i uma concepção segundo a qual a natureza humana e por decorrência lógica também o comportamento humano é regulada pelas sensações de dor e prazer e ii a clássica ideia hobbesiana de uma natureza humana vinculada àquilo que Julia Driver na Stanford Encyclopedia of Philosophy chama de 174 As influências de Beccaria na obra de Bentham são tratadas por ninguém menos que H L A Hart no excepcional ensaio Bentham and Beccaria Cf HART H L A Essays on Bentham Studies in Jurisprudence and Political Theory Oxford Oxford University Press 2001 pp 4052 175 BECCARIA Cesare On Crimes and Punishments Tradução de David Young Indianápolis Hackett 1986 1764 p 03 176 MILL John Stuart Utilitarianism Kitchener Batoche Books 2001 1863 p 10 177 A natureza colocou a humanidade sob a governança de dois mestres soberanos a dor e o prazer Tradução livre para a passagem que abre An Introduction to the Principles of Morals and Legislation Nature has placed mankind under the governance of two sovereign masters pain and pleasure BENTHAM Jeremy An Introduction to the Principles of Morals and Legislation An Authoritative Edition by J H Burns and H L A Hart with a new Introduction by F Rosen and an Interpretive Essay by H L A Hart Oxford Clarendon Press 2005 p 11 54 egoísmo psicológico178179 Assim Bentham a partir de uma expressa subscrição ao argumento de Hume acerca de uma distinção entre as instâncias do is e do ought180 e dessa aproximação com o pensamento de Hobbes vinculase à tradição do empirismo anglosaxão acompanhando a epistemologia de Bacon e Locke o autor sustentava que não se deriva aquilo que se pode conhecer de nada a não ser daquilo que pode ser obtido através da experiência sensorial Isso por razões óbvias acaba por se refletir diretamente em sua filosofia moral e jurídica sob pena de contradições teoréticofilosóficas segundo Bentham a concepção de uma natureza humana governada pelas sensações de dor e de prazer não vem de uma disposição assumida a partir de elementos puramente racionais a priori viria em verdade do fato empiricamente verificável de que os seres humanos buscam a felicidade e evitam seu antônimo181 142 Bentham e o positivismo Retomando vimos até aqui que i o utilitarismo então é a doutrina ética segundo a qual uma ação é considerada correta na medida em que promova a maior felicidade do maior 178 DRIVER Julia The History of Utilitarianism In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Winter 2014 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchiveswin2014entriesutilitarianismhistory Acesso em 17 set 2018 179 Pessoalmente penso que o termo ainda que acerte na aproximação da concepção utilitarista a uma doutrina do interesse próprio no sentido psicológico é em alguma medida inadequado porque concordo com Dworkin quando este diz que o utilitarismo seja ele o de Bentham Mill ou até o de Sidgwick mencionado pelo próprio Dworkin acaba por exigir uma subordinação do interesse próprio uma perspectiva objetiva distinta que veja os interesses do agente como não mais importantes do que os interesses de qualquer outra pessoa Nada menos egoísta que isso Morality this tradition insisted means a subordination of self interest it requires taking up a distinct objective perspective that counts the agents own interests as in no way more important than anyone elses That is the morality of self abnegation a morality that spawned the moral philosophy of impersonal consequentialism of which the theories of Jeremy Bentham John Stuart Mill and Henry Sidgwick are famous examples Cf DWORKIN Ronald Justice for Hedgehogs Cambridge The Belknap Press 2011 p 18 Detalhe Dworkin é um ferrenho crítico do utilitarismo 180 Sobre a qual falarei com um pouco mais de vagar no item subsequente 181 De todo modo é importante mencionar que o princípio da utilidade como tal aquele segundo o qual a ação correta é aquela que visa à maior felicidade do maior número é concebida tanto por Bentham quanto por Mill como uma espécie de princípio primeiro que prova tudo o mais de forma que não pode ser provado por si mesmo O que se pode fazer não é pois provalo diretamente mas argumentar logicamente de maneira tal a fazer considerações a partir das quais os homens sensatos aceitem o princípio Cf HART H L A Benthams Principle of Utility and Theory of Penal Law In BENTHAM Jeremy An Introduction to the Principles of Morals and Legislation An Authoritative Edition by J H Burns and H L A Hart with a new Introduction by F Rosen and an Interpretive Essay by H L A Hart Oxford Clarendon Press 2005 p lxxxviii Isso apesar de contestável não parece violar a Lei de Hume isought já que a interpretação mais correta acerca do princípio humeniano é para mim aquela segundo a qual você pode derivar um dever ser de um ser desde que haja uma argumentação lógica que sustente a derivação e não a leitura de que haveria uma espécie de barreira ontológica separando em absoluto os planos is e ought 55 número de pessoas e que ii Bentham um dos pais do utilitarismo estabeleceu uma ligação entre sua ética utilitária e o positivismo jurídico E iii o positivismo por sua vez como também já vimos é a tese uma vez mais remontando a Gardner segundo a qual em um sistema jurídico a validade jurídica de uma norma depende de suas fontes não de seus méritos182 Uma coisa é aquilo que o Direito efetivamente é o que ele deveria ser é outra Retomo esse ponto porque com isso em mente visualizar o positivismo jurídico na Teoria do Direito de Bentham que ainda não levava esse nome à época passa a ser algo verdadeiramente muito tranquilo Como dito quando do encerramento do item antecedente Bentham assumidamente influenciado por David Hume183 trabalha sob uma perspectiva dicotômica entre fato e valor com uma distinção entre aquilo que é e aquilo que deveria ser Uma coisa é o is ser outra é e ought dever ser184185 Não se pode derivar o que deve ser daquilo que é sem que para isso 182 GARDNER John Legal Positivism 5½ Myths In GARDNER John Law as a Leap of Faith Oxford Oxford University Press 2012 p 20 183 Diz Bentham Há mais ou menos oitenta anos por David Hume em seu Tratado sobre a Natureza Humana A Treatise of Human Nature a observação foi trazida à luz acreditase pela primeira vez quão aptos os homens têm sido em questões que dizem respeito a qualquer área no campo da ética ir de um ponto a outro sem sequer perceber da questão do que foi feito à questão do que deve ser feito e viceversa mais especialmente do primeiro em direção ao último Essa questão apresentouse ao autor destas páginas como sendo um ponto de importância fundamental Tradução livre da passagem some fourscore years ago by David Hume in his Treatise on Human Nature the observation was for the first time it is believed brought to lighthow apt men have been on questions belonging to any part of the field of Ethics to shift backwards and forwards and apparently without their perceiving it from the question what has been done to the question what ought to be done and vice versá more especially from the former of these points to the other That observation presented itself to the writer of these pages as one of cardinal importance BENTHAM Jeremy Chrestomathia In BOWRING Sir John ed The Works of Jeremy Bentham vol 8 Edimburgo William Tait 1843 p 128 Nota O Treatise de Hume é de 173840 Chrestomathia de Bentham de 1817 184 A celebre passagem do Treatise em que Hume dispõe sua celebre lei com relação à distinção isought é a seguinte Em todo sistema de moralidade que encontrei até hoje tenho sempre percebido que o autor procede durante algum tempo a partir do modo ordinário de raciocínio e estabelece o ser de um Deus ou tece observações acerca do comportamento humano quando de repente surpreendome ao encontrar que em vez das cópulas proposicionais usuais ser e não ser não encontro qualquer proposição que não esteja conectada a um dever ser ou não dever er Essa mudança é imperceptível mas é contudo de grave consequência Uma vez que um dever ser ou não dever ser expressa uma nova relação ou afirmação é necessário que ela seja observada e explicada e ao mesmo tempo uma razão deve ser dada porque parece inconcebível que essa nova relação seja derivada das outras que são completamente diferentes Tradução livre para in every system of morality which I have hitherto met with I have always remark d that the author proceeds for some time in the ordinary way of reasoning and establishes the being of a God or makes observations concerning human affairs when of a sudden I am surprizd to find that instead of the usual copulations of propositions is and is not I meet with no proposition that is not connected with an ought or an ought not This change is imperceptible but is however of the last consequence For as this ought or ought not expresses some new relation or affirmation tis necessary that it should be observd and explaind and at the same time that a reason should be given for what seems altogether inconceivable how this new relation can be a deduction from others which are entirely different from it Cf HUME David A Treatise of Human Nature Being an attempt to introduce the experimental method of reasoning into moral subjects Reprinted from the original edition in three volumes and edited with an analytical index by L A SelbyBigge MA Oxford Clarendon Press 1960 173840 III I I 27 p 469 185 Para considerações acerca da filosofia moral em David Hume ver COHON Rachel Humes Moral Philosophy In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Fall 2018 Edition 56 haja uma argumentação lógica186 Ronald Dworkin chama a isso de princípio de Hume um princípio de epistemologia moral Esse princípio afirma que nenhuma série de proposições como o mundo é enquanto fato científico ou metafísico pode fornecer argumentos convincentes sem algum juízo se valor escondido nos interstícios para qualquer conclusão sobre o que deveria ser o caso 187 Divergências interpretativas à parte o fato é que Bentham subscreve expressamente à distinção entre fato e valor e uma vez por ele adotada essa distinção como não poderia ser diferente é um aspecto fundamental para sua Teoria do Direito que viria a ser dividida em expository jurisprudence e censory jurisprudence a primeira a parte expositória de sua jurisprudence seria responsável por descrever o fenômeno jurídico como ele efetivamente era a segunda a parte censória na tradução de Chiassoni algo como crítica188 destinar seia a dizer como o Direito deveria ser189 Aqui é importante trazer o que o próprio Bentham Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesfall2018entrieshumemoral Acesso em 04 out 2018 186 De fato alguns autores sustentam que a passagem de Hume levaria a uma espécie de barreira ontológica absoluta entre os dois planos sendo impossível derivar um dever ser de um ser Não me parece ser o caso concordo com Alasdair MacIntyre quando este diz que Hume não chega a dizer que não se pode passar de um ser para um dever ser mas apenas que talvez pareça à primeira vista inconcebível que isso seja feito Fomos levados a acreditar tão firmemente na ironia humeniana que talvez seja necessário ocasionalmente que nos lembremos que Hume não necessariamente quer dizer mais ou outra coisa além daquilo que ele efetivamente diz Seria estranho se Hume pensasse que observações acerca do comportamento humano necessariamente não pudessem levar a julgamentos morais uma vez que tais observações são constantemente utilizadas pelo próprio Hume Tradução livre para Hume does not actually say that one cannot pass from an is to an ought but only that it seems altogether inconceivable how this can be done We have all been brought up to believe in Humes irony so thoroughly that it may occasionally be necessary to remind ourselves that Hume need not necessarily mean more or other than he says It would be odd if Hume thought that observations concerning human affairs necessarily could not lead on to moral judgments since such observations are constantly so used by Hume himself Cf MACINTYRE Alasdair Hume on is and ought In HUDSON W D ed The IsOught Question A Collection of Papers on the Central Problem in Moral Philosophy Basingstoke Macmillan 1969 pp 3550 O mesmo é sustentado por autores como Hilary Putnam que diz que Hume não declara essa impossibilidade absoluta em lugar algum Hume nowhere says exactly this PUTNAM Hilary The Collapse of the FactValue Dichotomy and other Essays Cambridge Harvard University Press 2002 p 149 Massimo Pigliucci por sua vez é taxativo Hume nunca disse exatamente que você não pode fazêlo derivar um dever ser de um ser somente que se fizesse era melhor que estivesse preparado para justificar a derivação sem tomala como automática como aparentemente faziam alguns dos colegas de seu tempo tradução livre para Hume didnt really say that you cannot do it just that if you do it you had better be prepared to justify that move not taking it as automatic as apparently some of his colleagues at the time used to do PIGLIUCCI Massimo Is Ethics a Science Philosophy Now Magazine Londres Anja Publications maijun 2006 p 25 187 Tradução livre para the principle of moral epistemology I called Humes principle This holds that no series of propositions about how the world is as a matter of scientific or metaphysical fact can provide a successful case on its own without some value judgment hidden in the interstices for any conclusion about what ought to be the case DWORKIN Ronald Justice for Hedgehogs Cambridge The Belknap Press 2011 p 44 188 CHIASSONI Pierluigi O Enfoque Analítico na Filosofia do Direito de Bentham a Kelsen São Paulo Contracorrente 2017 p 33 189 A atribuição do rótulo de positivista a Bentham aqui fica muito bem explicada Lembremos a própria definição do conceito de positivismo de Lon Fuller p 18 desta pesquisa uma direção de pensamento jurídico que insiste em traçar uma afiada distinção entre o Direito como ele é e o Direito como ele deve ser FULLER Lon L The Law in Quest of Itself Boston Beacon Press 1940 p 08 57 dizia não apenas acerca da divisão por ele feita expositorycensory como também sobre o próprio conceito de jurisprudence190 Conhecer seus próprios fundamentos e sua compreensão do que há por trás da análise teoréticofilosófica do Direito enquanto tal da forma mais direta possível auxilia a melhor entender os desdobramentos da teoria jurídica benthamiana Bentham diz que a jurisprudence Teoria do Direito é em si uma entidade fictícia e portanto não é possível encontrar um significado qualquer para a palavra a não ser colocandoa próxima de qualquer outra que designe uma entidade real Para compreender o significado de jurisprudence devemos antes conhecer por exemplo qual é o significado da expressão um livro de jurisprudence Um livro de jurisprudence pode ter como objeto somente um ou outro dos seguintes 1 Determinar o que é o Direito 2 Determinar o que ele deve ser No primeiro caso podese denominalo um livro de Teoria do Direito expositiva expository jurisprudence no segundo caso podese denominalo um livro de teoria do Direito crítica censorial jurisprudence ou em outras palavras um livro sobre a arte de legislar191 Para que se possa entender a opção de Bentham por essa linguagem muito própria que faz uso de algo físico in casu um livro não se pode perder de vista a relação entre a epistemologia materialista a ética utilitária e o positivismo jurídico benthamiano se é um princípio básico que só se pode conhecer genuinamente aquilo que é observável e verificável também as filosofias moral e jurídica devem ter esse caráter científico não por menos Bentham argumentava que a teoria jurídica deveria ser construída nas mesmas bases ligadas à sensação e à experiência da medicina192193 190 Mantenho o termo em inglês uma vez que a tradução de jurisprudence não é algo assim tão simples É comum que na tradição jurídica de nosso país entendase por jurisprudência um conjunto muitas vezes recorrente de decisões judiciais Em inglês contudo ainda que jurisprudence possa também remeter a decisões na hipótese case law o termo é mais geralmente empregado de forma a significar algo como Teoria do Direito no sentido de estudo teórico do Direito enquanto conceito filosofia ou ciência social 191 Tradução livre da seguinte passagem Jurisprudence is a fictitious entity nor can any meaning be found for the word but by placing it in Company with some word that shall be significative of a real entity To know what is meant by jurisprudence we must know for example what is meant by a book of jurisprudence A book of jurisprudence can have but one or the other of two objects 1 to ascertain what the law is 2 to ascertain what it ought to be In the former case it may be styled a book of expository jurisprudence in the latter a book of censorial jurisprudence or in other words a book on the art of legislation BENTHAM Jeremy An Introduction to the Principles of Morals and Legislation An Authoritative Edition by J H Burns and H L A Hart with a new Introduction by F Rosen and an Interpretive Essay by H L A Hart Oxford Clarendon Press 2005 pp 293294 192 CRIMMINS James E Jeremy Bentham In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Summer 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivessum2018entriesbentham Acesso em 17 set 2018 193 Até mesmo por esse motivo ao ser referenciado por Thomas Macaulay o grande liberal whig Bentham era descrito como o teórico responsável por ter transformado a Teoria do Direito após têla encontrado envolta em um vocabulário sem sentido em uma ciência autêntica O ponto é mencionado por Hart em seu ensaio que serve de abertura à edição da Clarendon de An Introduction to the Principles of Morals and Legislation Cf HART H L A Benthams Principle of Utility and Theory of Penal Law In BENTHAM Jeremy An Introduction to the Principles of Morals and Legislation An Authoritative Edition by J H Burns and H L 58 Em Bentham portanto dizer como o Direito deveria ser equivale à arte de legislar e esta por sua vez na interpretação de Chiassoni equivaleria a guiar uma comunidade política a perseguir o curso de ação mais idôneo que conduzisse à felicidade da comunidade inteira194 Dessa forma fica evidente que é ao discorrer sobre como o Direito deveria ser que Bentham vincula sua teoria jurídica ao utilitarismo teoria ética da qual foi como já dito em alguma medida pioneiro Se para Bentham a ação correta é aquela que promove a maior felicidade do maior número de pessoas a partir do princípio da utilidade também o Direito deve ser pautado por este princípio Nas palavras de Isaiah Berlin Bentham diz que cada homem é o melhor juiz de sua própria felicidade a tarefa da legislação é portanto em grande parte negativa remover a interferência de instituições obsoletas corruptas ou ineficientes195 Muito bem Quanto ao ought Bentham recorre ao utilitarismo Mas como ele chega lá Mais quais eram suas considerações acerca do is ou seja acerca dos fundamentos do Direito como ele efetivamente era Sua definição conceitual quanto aos fundamentos ontológicos do fenômeno jurídico afastase das noções da teoria clássica sejam elas as noções de artificial reasoning Era Coke ou de um contrato abstrato celebrado pela comunidade política Era SeldenHale Subscrevendo uma vez mais a David Hume Bentham definia uma sociedade política em termos de seu hábito de obediência196 aos comandos de um soberano197 Para ele pois as leis em uma sociedade que constituem o que é o Direito são justamente os comandos daquele que for o soberano na comunidade que estiver em questão198 A Hart with a new Introduction by F Rosen and an Interpretive Essay by H L A Hart Oxford Clarendon Press 2005 p lxxxiii 194 CHIASSONI Pierluigi O Enfoque Analítico na Filosofia do Direito de Bentham a Kelsen São Paulo Contracorrente 2017 p 33 Chiassoni chega a atribuir essa definição da arte de legislar ao próprio Bentham em passagem de An Introduction to the Principles of Morals and Legislation logo após aquela também por mim referenciada acima contudo a edição utilizada para esta pesquisa Clarendon Press 2005 não apresenta o trecho De todo modo as considerações de Bentham tomadas em conjunto apontam mesmo facilmente a uma evidente vinculação de sua censorial jurisprudence ao utilitarismo de forma que é bastante tranquilo concordar com a leitura que faz Chiassoni 195 BERLIN Isaiah Ideias Políticas na Era Romântica Ascensão e influência no pensamento moderno Organização de Henry Hardy São Paulo Companhia das Letras 2016 p 113 196 A palavra hábito também acaba por demonstrar em si mesma os fundamentos empiristas de Bentham Em vez de recorrer a um argumento hipotético ou de deduzir qualquer noção apriorística o conceito de sociedade política benthamiano depende inexoravelmente de algo empírico um hábito passível de ser observado e verificado 197 A locução hábito de obediência cominada com a ideia de um comando de um soberano faço questão de frisar é importante Recomendo que se tenha esses conceitos em conta quando abordarmos John Austin o próximo autor a ser estudado 198 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 156 59 Isso significa que Bentham vai até concordar com seus predecessores common lawyers quanto à ideia de que os fundamentos do Direito estão no costume ou em uma espécie de convenção vai discordar contudo dos conteúdos dessas possíveis convenções Em contraposição ao que poderiam alegar os teóricos clássicos Bentham insistiria que o critério de validade dessa convenção mesma ie o Direito não estava em qualquer padrão substantivo mas no fato próprio e simples de vir do soberano 199 Além disso configurar aquilo que Postema chama de uma concepção positivista forte200 de Direito Bentham em sua definição acerca do Direito como ele é dá os primeiros passos a partir dos quais se fortaleceu uma concepção jurídica imperativista exatamente uma concepção segundo a qual o Direito é o comando sustentado coercitivamente através de sanções daquele constituído como soberano indivíduo ou grupo que detém o poder de facto em determinada comunidade política que tem para com ele um hábito de obediência Essa teoria imperativista é positivista por essência uma vez que identifica a existência de sistemas jurídicos com padrões de comando e obediência estes por sua vez que podem ser verificados sem que se faça considerações morais acerca do direito que tem o soberano de comandar ou mesmo considerações meritórias acerca de seus comandos201 Essa compreensão de Direito baseada em seu poder coercitivo está no âmago do espírito reformista de Bentham é ao separar a identificação do Direito de suas possíveis valorações morais que ele abre espaço para suas próprias reivindicações morais e seus próprios fins políticos Longe de enxergar o positivista como um apologista dos arranjos legais existentes como faz a caricatura comum diz Frederick Schauer o positivista benthamiano requer uma noção completamente descritiva do Direito precisamente em razão do propósito de manter um distanciamento moral202 Jeremy Waldron resume em uma brevíssima passagem de forma magistral tanto a concepção do que seria o is quanto a concepção do que seria o ought de Bentham acerca do 199 Cf POSTEMA Gerald J Bentham and the Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 pp 260262 200 Strong positivist conception of law Cf POSTEMA Gerald J Bentham and the Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 p 262 201 Tradução livre e contextualizada do seguinte trecho This imperatival theory is positivist for it identifies the existence of legal systems with patterns of command and obedience that can be ascertained without considering whether the sovereign has a moral right to rule or whether his commands are meritorious Cf GREEN Leslie Legal Positivism In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesspr2018entrieslegalpositivism Acesso em 14 mar 2018 202 Far from seeing the legal positivist as an apologist for existing legal arrangements as a common caricature has it the Benthamite positivist requires an entirely descriptive notion of law precisely for the purpose of keeping ones moral distance from it Bentham was after all a radical reformer and his efforts to separate the identification of law from its moral evaluation was itself in the service of what were plainly moral and political ends SCHAUER Frederick The Force of Law Cambridge Harvard University Press 2015 p 13 60 Direito isto é o que Bentham i considerava que o Direito efetivamente era e ii aquilo que ele deveria ser concomitantemente acaba ainda por deixar muito clara a concepção positivista subjacente Waldron diz que para Jeremy Bentham o Direito não era natural tampouco era em si fruto de um contrato social per se203 mas era compreendido tão somente em termos de determinados comandos sustentados por sanções de um soberano identificado E já que era nada mais que fruto de produção humana204 como qualquer outra ação também o Direito devia uma vez identificado como tal ter seus méritos avaliados de acordo com sua tendência a promover a felicidade da maioria205 Em Bentham então temos que o Direito é são os comandos sanções do soberano e em momento posterior uma vez que isso esteja devidamente identificado cabe ao jurista dizer que esse Direito deve ser produzido e avaliado de acordo com a máxima de que a ação correta é aquela que promove a maior felicidade do maior número de pessoas Disso é apenas uma decorrência lógica a pretensão de Bentham de reformar o direito inglês se i o Direito é o comando do soberano e ii o common law é judgemade ie direito judiciário feito por juízes seguese que o common law não é Direito de facto Assim cabe agora explorar as críticas de Bentham ao suposto direito anglosaxão e suas insuficiênciasmistificações e as soluções por ele apontadas 203 Aqui se evidencia um ponto de divergência entre Hobbes e Bentham Ambos identificam o Direito a partir do comando daquele que representa o poder soberano mas divergem acerca da identificação do próprio soberano Hobbes fala no contrato social Bentham vê a ideia de contrato igualmente como fictícia e defende que o soberano seja identificado a partir dos hábitos de obediência uma vez mais algo empiricamente verificável dos súditoscidadãos 204 Como a arte de que falava Hobbes sobre a commonwealth e portanto também o Direito em Leviathan Cf pp 3233 deste trabalho 205 Este parágrafo é uma sintetização adaptada daquilo que consta ipsis litteris na seguinte passagem Bentham atacou as teorias estabelecidas do common law e da constituição histórica inglesa ridicularizando o que chamava de ficções do direito natural e contrato social e insistindo em uma compreensão de Direito em termos de comandos de um soberano identificável sustentado por sanções de um ou outro tipo Uma vez que o Direito vinha da vontade humana a legislação produção do Direito tinha de ser avaliada do mesmo modo que qualquer outra conduta humana a partir de sua tendênciaaptidão a produzir a felicidade daqueles afetados Tradução livre para Bentham attacked established theories of the common law and the English constitution ridiculing what he called the fictions of natural law and the social contract and insisting on understanding law in terms of the determinate commands of an identifiable sovereign backed up by the threat of sanctions of one kind or another Since law sprang from the human will lawmaking was to be evaluated in the same way as all other human conduct by its tendency to promote the happiness of those affected Cf WALDRON Jeremy Jeremy Benthams Anarchical Fallacies In WALDRON Jeremy ed Nonsense upon Stilts Bentham Burke and Marx on the Rights of Man Londres Methuen 1987 p 30 61 143 Dog law Com esses fundamentos em mente é possível finalmente compreender por que Bentham ridicularizava as noções jusnaturalistas atreladas à razão da teoria clássica do common law206 Enquanto Blackstone e os demais juristas de sua era continuavam a ver o direito comum inglês como sendo nada mais que uma expressão daquilo que já existia na tradição e no costume imemorial dos povos guiada pela lei da natureza e pela razão Bentham via esse apelo à racionalidade e a uma justiça natural como uma completa farsa De acordo com Gerald Postema para Bentham apelar ao direito natural à razão ou à irracionalidade de uma prática ou regra é apelar a uma quimera Esse apelo não poderia ser construído como um apelo a um padrão ou princípio público independente de julgamento uma vez que não existe tal padrão Ao contrário isso tudo era nada mais que a expressão de uma opinião particular ou mais frequentemente um sentimento particular disfarçado de apelo a um padrão público207 Como em Hobbes a obra de Bentham denota uma rejeição da teoria clássica do common law com base em um ceticismo em relação a seus princípios subjacentes Com todas suas eventuais diferenças os autores clássicos que iam de Sir Coke a Blackstone passando até mesmo por autores com concepções mais relativamente positivistas como Selden e Sir Hale viam na razão e na justiça natural um padrão comum universal algo estabelecido fixo que poderia portanto servir de critério e diretriz fundamental Com Bentham ao contrário temos que isso é uma falácia Isso porque para o autor a ideia de razão ao menos no sentido empregado à época seria radicalmente subjetiva quando um jurista dizia que determinada lei ou regulação jurídica contrariava a razão ele estava dizendo tão somente que o dispositivo em questão contrariava sua própria razão subjetiva Para Bentham contrário à razão é uma mistificação que em verdade quer dizer contrário ao que eu aprovo208 O 206 Não que fosse estritamente necessário têlos em mente de qualquer forma concordo com Merquior quando ao falar sobre Mill este diz que um liberal utilitarista precisamente porque utilitarista não argumenta porque sequer poderia argumentar a partir de qualquer posição atrelada a uma ideia de direito natural O mesmo obviamente vale para Bentham Cf MERQUIOR José Guilherme O Liberalismo Antigo e Moderno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991 p 99 207 Tradução livre para according to Bentham to appeal to natural law or to reason or to the reasonableness or unreasonableness of some practice or rule is to appeal to a chimera It cannot be construed as an appeal to some independent public standard or principle of judgment for there is no such standard rather it is only the expression of private opinion or more often simply private sentiment disguised as appeal to a public standard POSTEMA Gerald J Bentham and the Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 p 269 208 POSTEMA Gerald J Bentham and the Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 p 270 62 positivismo de Bentham nesse sentido é definido por Dworkin como uma Teoria do Direito baseada na eficiência209 eficiência que seria comprometida ameaçada quando testes morais são incluídos entre os testes para determinar o que é direito válido uma vez que esses testes esses juízos morais permitiriam que aqueles que discordam frequentemente com veemência acerca daquilo que a moralidade requer substituíssem os padrões públicos estabelecidos pelos seus próprios juízos subjetivos210 Nesse ponto a aproximação com o positivismo de Hobbes fica mais clara que nunca O subjetivismo por trás do apelo à razão indicado por Bentham faz lembrar a paradigmática passagem de Leviathan na qual Hobbes dispõe que quando os homens que se julgam mais sábios que os demais exigem que o critério de julgamento seja a razão reta right reason eles estão em realidade buscando nada mais que as coisas sejam determinadas pela sua própria razão no lugar da razão dos outros homens211 Com base nessa mesma premissa a Teoria do Direito de Bentham tinha como tarefa principal a desmistificação das ficções jurídicas que serviam de base à teoria clássica do common law Ainda com Postema temos que na tarefa de desmistificar o direito inglês Bentham tinha como intenção contrastar esse mito justamente o common law com as realidades da vida da maioria das pessoas sujeitas a esse sistema jurídico e demonstrar as flagrantes inconsistências entre teoria e performance O objetivo dessa desmistificação não era simplesmente abrir caminho a uma explicação mais realista acerca do funcionamento do direito comum inglês Bentham também pretendia expor em que medida esse mito era manipulado pelos interesses sinistros e corruptos tanto de uma elite jurídica quanto daqueles a quem essa elite servia212 Àquilo que Coke chamava de artificial reasoning portanto Bentham acusava de farsa A linguagem técnica do Direito seria nada mais que um vocabulário absurdo e desonesto para sob a justificativa de uma suposta perfectibilização de uma razão natural e universal mascarar a razão subjetiva do próprio common lawyer A analogia benthamiana é tão ilustrativa quanto curiosa dizia o utilitarista que o direito inglês era como o garoto mentiroso 209 Efficiency 210 Cf DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 p 174 211 Tradução livre e contextualizada para a seguinte passagem que em sua íntegra serve de epígrafe introdutória a este capítulo And when men that think themselves wiser than all others clamor and demand right Reason for judge yet seek no more but that things should be determined by no other mens reason but their own HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 p 111 212 Tradução livre e contextualizada para to set this myth against the realities of life of most people subject to this form of law and to show up the glaring inconsistencies between theory and performance The objective of this demythologizing was not simply to clear the way for a more realistic account of the workings of Common Law but also to expose the extent to which this myth had been manipulated by the corrupt and sinister interests of the legal élite and those in whose service they worked POSTEMA Gerald J Bentham and the Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 p 268 63 da Fábula os abusos de uma linguagem demasiadamente técnica fictícia ainda que não fossem perpétuos eram tão frequentes que diante das formas através das quais o common law manifestavase o cidadão comum jamais poderia sentir confiança e segurança plena Essa técnica para além de ontologicamente falsa falaciosa fazia com que o acesso à justiça213 fosse possível apenas através dessa mesma elite profissional que perpetuava o mito do common law214 Evidentemente portanto não se tratava só disso o problema estava para muito além do uso de uma linguagem mistificada Sob a ótica de Bentham o mais grave era o que essa mistificação causava Essas ficções perpetradas pela elite jurídica da teoria clássica eram por ele tratadas como mentiras com uma consequência estarrecedora munidos dessa linguagem técnica que serviam de instrumento a esconder aquilo que Bentham considerava como flagrantes injustiças os juízes do common law não apenas usurpavam o poder legislativo o que já seria grave por si só já que legislar não era tarefa de sua competência como também se aproveitavam dessa usurpação para ter em mãos um poder tão ilimitado quanto corrupto215 Naquilo que seria uma crítica às constituições estadunidense e francesa216 Bentham argumentava que as disposições constitucionais que remetiam a direitos naturais fundamentais eram construídas em uma linguagem demasiadamente vaga por essência Eis aí uma vez mais o positivismo de Bentham in a nutshell essa linguagem vaga e fictícia fazia com que a propria ideia de condicionar a validade da legislação à conformidade do direito positivo a algum padrão ou critério moral transferisse o poder legislativo ao Judiciário algo por ele considerado uma receita para a tirania217 Afinal como vimos o Direito em Bentham era o comando do soberano e o soberano era identificado a partir do hábito de obediência da comunidade para com ele Isso quer dizer i que o poder legislativo não cabe ao Judiciário e ii implica na necessidade de que as leis mesmas fossem transmitidas de maneira clara para 213 Justiça aqui entendida enquanto sistema jurídico e não uma justiça abstrata metafísica 214 POSTEMA Gerald J Bentham and the Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 pp 271272 215 POSTEMA Gerald J Bentham and the Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 pp 273 216 Bentham como se percebe era um ferrenho crítico da linguagem própria ao direito natural Paradoxalmente contudo há quem sustente que o pensamento político anglosaxão entre a Revolução Gloriosa e a publicação da constituição americana já foi encarado como um caminho direto de Locke a Bentham isto é do liberalismo dos direitos naturais à democracia utilitária O ponto em MERQUIOR José Guilherme O Liberalismo Antigo e Moderno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991 p 69 217 POSTEMA Gerald J The Soul of Justice In ZHAI Xiaobo QUINN Michael eds Benthams Theory of Law and Public Opinion Cambridge Cambridge University Press 2014 pp 4062 Disponível em httpsssrncomabstract2294730 Acesso em 26 set 2018 64 que pudessem ser reconhecidas como tais sob pena de a comunidade política não saber se estaria ou não diante de comandos autênticos218 As críticas de Bentham e essa linguagem não se baseavam apenas em seus ideias de clareza de linguagem219 mas como vimos na frase de Postema que abre o item presente na sua rejeição absoluta à própria existência desses direitos supostamente naturais Os pressupostos jusnaturalistas de Blackstone eram motivo de riso para Bentham que os chamava de tolices tão inexistentes quanto retóricas consideravaas uma desonesta mistificação metafísica um lixo sem sentido um abuso de linguagem um amálgama obsoleto de fórmulas mágicas uma mistificação deliberada220 nonsense upon stilts221222 É por essa razão que em Anarchical Fallacies cujo título traduzido livremente como Falácias Anárquicas é suficientemente sugestivo por si só Bentham chega ao ponto de artigo pro artigo desconstruir um código baseado em uma mentira Falar em direitos naturais diz Bentham é simplesmente uma bobagem223 Nas palavras do próprio John Stuart Mill o grande discípulo do utilitarismo benthamiano Bentham teria mostrado que termos como recta ratio direito natural eram todos dogmatismos disfarçados a partir dos quais se impunha os próprios sentimentos224 travestidos de razão225 218 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 156 219 Não que isso seja pouco como Hobbes Bentham estava convencido de que uma das principais fontes de conflitos políticos eram a vagueza e equivocidade verbais O ponto em WALDRON Jeremy Jeremy Benthams Anarchical Fallacies In WALDRON Jeremy ed Nonsense upon Stilts Bentham Burke and Marx on the Rights of Man Londres Methuen 1987 p 34 220 BERLIN Isaiah Ideias Políticas na Era Romântica Ascensão e influência no pensamento moderno Organização de Henry Hardy São Paulo Companhia das Letras 2016 pp 107 224 221 BENTHAM Jeremy Anarchical Fallacies being an Examination of the Declaration of Rights issued during the French Revolution In WALDRON Jeremy ed Nonsense upon Stilts Bentham Burke and Marx on the Rights of Man Londres Methuen 1987 p 53 222 Em tradução literal tolices em pernasdepau em alusão à suposta fragilidade dessas ideias Merquior traduz como tolices com base em nada Cf MERQUIOR José Guilherme O Liberalismo Antigo e Moderno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991 p 79 223 Natural rights is simple nonsense BENTHAM Jeremy Anarchical Fallacies being an Examination of the Declaration of Rights issued during the French Revolution In WALDRON Jeremy ed Nonsense upon Stilts Bentham Burke and Marx on the Rights of Man Londres Methuen 1987 p 53 224 A própria escolha da palavra demonstra o caráter empíricosensorial talvez até emotivista em alguma medida subjacente à compreensão de Bentham e Mill acerca da verdadeira natureza desses vocábulos 225 Trecho adaptado de uma passagem da autobiografia de J S Mill What thus impressed me was the chapter in which Bentham passed judgment on the common modes of reasoning in morals and legislation deduced from phrases like law of nature right reason the moral sense natural rectitude and the like and characterized them as dogmatism in disguise imposing its sentiments upon others under cover of sounding expressions which convey no reason for the sentiment but set up the sentiment as its own reason It had not struck me before that Benthams principle put an end to all this The feeling rushed upon me that all previous moralists were superseded and that here indeed was the commencement of a new era in thought Cf MILL John Stuart Autobiography and other Literary Essays Edited by John M Robson and Jack Stillinger Toronto University of Toronto Press 1981 p 66 65 Como se isso não bastasse o common law essa entidade fictícia ainda padeceria de outro grave defeito era um direito ex post facto isto é com força retroativa É por essa razão que Bentham com sua ironia peculiar referiase ao direito comum inglês não como common law mas como dog law Para Bentham assim como quando se quer modificar determinado comportamento de um cão esperase justamente que o cão faça aquilo para somente então punilo também o Direito sob o common law só funcionava retrospectivamente226 Quem bem resume é Streck ao dispor em seu Dicionário de Hermenêutica que Bentham dizia que o cidadão inglês aprendia as regras do direito inglês do mesmo modo que um cachorro aprendia a não fazer algo apanhando227 Bentham vai além a partir de suas considerações como dissemos deduzse que sequer haveria como se falar em algo como um direito comum O common law era ele mesmo como tal uma composição fictícia assim sequer era Direito O Direito legítimo autêntico era e devia ser uma qüestão de padrões públicos publicamente declarados autorizados acessíveis228 O common law portanto falhava enquanto Direito Bentham dizia Common law como se atribui a si mesmo na Inglaterra ou um direito judiciário judiciary law como se poderia dizer melhor em outros lugares essa composição fictícia que não tem qualquer pessoa conhecida como autor nenhum conjunto de palavras como conteúdo forma onde quer que seja a parte principal da construção jurídica como éter imaginário que na falta de matéria sensível preenche a medida do universo Pedaços e fragmentos de um direito autêntico presos nesse solo imaginário compõem as estruturas de qualquer código nacional O que se segue dissoque aquele que pelo propósito mencionado ou qualquer outro que seja deseja um exemplo de um corpo completo de leis a que se referir deve começar por fazer um229 Retomando relacionando o ponto com elementos trabalhados anteriormente e traduzindo a passagem de forma mais clara Bentham diz que o Direito é aquilo que se 226 DINWIDDY John R Bentham Selected Writings of John Dinwiddy Edited with an Introduction by William Twining Stanford Stanford University Press 2004 p 53 227 STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 p 169 228 Bentham insisted law is and must be a matter of public standards publicly declared authorized and accessible As traditionally understood common law failed as law POSTEMA Gerald J Jurisprudence University of Northern Colorado Legal Studies Research Paper Series Working Paper n 1785400 mar 2011 Disponível em httpsssrncomabstract1785400 Acesso em 10 dez 2018 229 Tradução livre e contextualizada da seguinte passagem Common law as it styles itself in England judiciary law as it might more aptly be styled every where that fictitious composition which has no known person for its author no known assemblage of words for its substance forms every where the main body of the legal fabric like that fancied ether which in default of sensible matter fills up the measure of the universe Shreds and scraps of real law stuck on upon that imaginary ground compose the furniture of every national code What followsthat he who for the purpose just mentioned or for any other wants an example of a complete body of law to refer to must begin with making one BENTHAM Jeremy An Introduction to the Principles of Morals and Legislation An Authoritative Edition by J H Burns and H L A Hart with a new Introduction by F Rosen and an Interpretive Essay by H L A Hart Oxford Clarendon Press 2005 p 08 66 identifica partir dos comandos do soberano estabelecido de forma clara à população que tem um hábito de obediência para com esse indivíduo ou grupo que detém a soberania diz também que o Direito deve ser construído através da arte de legislar de forma a promover a maior felicidade do maior número de pessoas Disso seguese que o common law i não era Direito e ii sequer poderia ser uma boa forma de Direito É com base nisso tudo então que na passagem supramencionada extraída do prefácio de An Introduction to the Principles of Morals and Legislation Bentham dispõe de forma bastante clara e direta a empreitada a que se propõe a de reformar o ilegítimo direito inglês a partir de uma proposta de codificação 144 Bentham e a evolução de seu pensamento jurídico Bentham era um liberal reformista Os dons de Bentham ao liberalismo diz Merquior incluem um entusiasmo pela administração inteligente e pela reforma judiciária Isso e mais importante do que isso segue o intelectual brasileiro uma visão mais ampla do das finalidades do Estado o qual para ele devia promover o bemestar e a igualdade além da liberdade e da segurança230 Assim se o common law não apenas perpetuava injustiças como também era uma farsa que sequer se qualificava como Direito legítimo nada mais natural a um liberal reformista que precisamente o desejo de reforma Bentham não era ingênuo quanto aos problemas que o direito estatutário também apresentava ele próprio como Sir Blackstone reconhecia que o conteúdo daquilo que produzia o Parlamento à época era passível de objeção231 Ainda assim uma vez que para Bentham o Direito é a expressão da vontade do soberano que lembrese também pode significar o Poder Legislativo reforçada por sanções a codificação232 do Direito além de qualificarse ao contrário do que acontecia com o common law genuína e efetivamente como 230 O grifo é meu Cf MERQUIOR José Guilherme O Liberalismo Antigo e Moderno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1991 p 79 231 Mais especificamente Bentham era um grande crítico do uso indiscriminado da pena de morte nos estatutos de direito penal 232 O historiador John Dinwiddy cuja obra sobre Bentham é uma das mais importantes referências nesta parte da pesquisa chega a atribuir a Jeremy Bentham a própria cunhagem do termo codificação codification Dinwiddy diz que ainda que a prática de codificação estivesse muito em voga na Europa continental o termo é de Bentham suas origens estariam em cartas de 1806 Although Bentham invented the term codificationhe started using it in his letters in 1806 and in print about ten years laterthe practice of codemaking was much in vogue on the Continent during his lifetime and had of course a long previous history Cf DINWIDDY John R Bentham Selected Writings of John Dinwiddy Edited with an Introduction by William Twining Stanford Stanford University Press 2004 p 55 O mesmo ponto é mencionado por Bobbio que além de codification atribui a Bentham a cunhagem do termo international Cf BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 93 67 Direito legítimo permitiria ao mesmo tempo uma aproximação muito maior com aquilo que o Direito efetivamente deveria ser justamente um sistema de governança organizado e estruturado a partir do princípio da utilidade233 É claro que uma proposta tão ruptural não é de fácil surgimento não seria de uma hora para outra que nem mesmo um gênio como Bentham seria capaz de estruturar e articular um projeto de tamanha magnitude especialmente considerando os altíssimos graus de exigência que Bentham tinha para consigo mesmo como todo gênio arrisco dizer Antes pois de levar a cabo seu projeto de codificação na pretensão de reformar completamente o direito inglês Bentham ainda na primeira década de sua vida adulta 1770 colocavase como um revisor crítico do common law voltandose ao processo decisório dos juízes do direito comum inglês Talvez isso surpreenda tanto àqueles que conhecem somente sua versão radical que colocálo como um mero revisionista pareça até mesmo implausível com a própria teoria benthamiana e quem assume isso é o próprio Gerald Postema scholar que descobriu essa vertente reformista no digamos primeiro Bentham234 A primeira fase do pensamento jurídico benthamiano era bastante mais modesta já que o common law era judgemade que os juízes subsequentes então pautassemse sempre a partir daquilo que já existia como corpo jurídico e nunca recorressem à própria razão ao próprio conceito de justiça Para evitar arbitrariedades Bentham propugnava por uma adesão estrita e rígida aquilo que havia sido previamente estabelecido como precedente com o perdão da redundância somente seria possível qualquer expectativa minimamente razoável da decisão judicial em um cenário no qual os juízes respeitassem uma doutrina rígida do stare decisis de aderência absolutamente obrigatória ao precedente judicial Bentham não defendia um respeito ao costume imemorial à sabedoria dos juízes como poderiam fazer Sir Blackstone e seus antecessores da teoria clássica sua ideia era tão somente que os juízes obedecessem a uma regra estabelecida e na hipótese de novos casos decidissem em analogia àquilo já decidido previamente de forma a respeitar um mínimo de previsibilidade decisória 233 Cf DINWIDDY John R Bentham Selected Writings of John Dinwiddy Edited with an Introduction by William Twining Stanford Stanford University Press 2004 pp 5354 234 O ódio de Bentham diante do common law inglês claro é lendário e já havia se desenvolvido na sua demolição dos Commentaries de Blackstone É provável então que sugerir que Bentham tenha em algum momento de sua trajetória considerado a possibilidade de uma revisão do common law em contraste com uma radical desconstrução pareça implausível a muitos leitores Tradução livre para Benthams hatred of English Common Law of course is legendary and had already fully matured in his demolition of Blackstones Commentaries The suggestion then that Bentham at any point in his career considered a revisionist account of Common Law as opposed to a radical deconstruction of it is likely to strike many readers as implausible Cf POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 p 192 68 Não se tratava de respeito à suposta sabedoria dos mortos dizia Bentham mas ao bemestar dos vivos235 De espírito inquieto Bentham logo deixou de darse por satisfeito com essa aparente solução Depois de em uma fase inicial na já mencionada primeira década de sua vida adulta defender a doutrina rígida do stare decisis Bentham percebeu que essa rigidez acarretava em mais um daqueles que eram os paradoxos inerentes ao common law um sistema que era ao mesmo tempo excessivamente rígido e arbitrariamente flexível e indeterminado cujo processo decisório envolvia tanto repetições acríticas quanto manipulação judicial de ficções e fórmulas abstratas como direito natural e similares levadas a cabo por caprichos de juízes e interesses sinistros236237 Assim Bentham antigo defensor do stare decisis percebeu que o precedente sobretudo a rigidez da força vinculante do precedente acarretava em nada mais que a perpetuação de erros e injustiças238 ainda que a decisão original não fosse em si e por si equivocada sua estabilização absoluta enquanto regra subsequente acabava por fazer perdurar então como regras de facto estabelecidas padrões e práticas e regulações pensados em outra época para outra época Não só isso acarretava em imbecilidade mental uma vez que os juízes dispensados do discernimento e da reflexão recorriam convenientemente à 235 POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 pp 194196 236 Tradução livre para Common Law is excessively rigid and arbitrarily flexible and indeterminate Common Law adjudication involves both mindless imitation and judicial manipulation of fictions and abstract formulas of natural law and the like governed only by judicial whim and sinister interest POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 pp 279280 237 Isso não era uma contradição por parte de Bentham ao contrário o próprio Bentham apontava essas contradições como característica inerente ao common law 238 Ao tratar disso Postema rememora belíssimas passagens da literatura que criticam a doutrina do precedente na Inglaterra e a absoluta genialidade dos autores obrigame a reproduzilas aqui A primeira em Gullivers Travels de Jonathan Swift É uma máxima entre advogados que o que quer que tenha sido decidido antes pode ser legalmente decidido novamente por isso tomam um cuidado especial para que se reúna todas as decisões feitas anteriormente contra a justiça comum e a razão humana Essas decisões sob o nome de precedentes são proferidas por autoridades de forma a justificar as opiniões mais iníquas as quais os juízes nunca deixam de ter em conta Tradução livre para it is a maxim among lawyers that whatever hath been done before may legally be done again and therefore they take special care to record all the decisions formerly made against common justice and the general reason of mankind There under the name of precedents they produce as authorities to justify the most iniquitous opinions and the Judges never fail of directing accordingly Cf SWIFT Jonathan Gullivers Travels Londres Penguin Classics 2003 1726 p 296 A outra passagem trazida por Postema é de William Shakespeare em Merchant of Venice IV i Não há poder em Veneza que possa alterar um decreto estabelecido Este será registrado como um precedente e muitos erros seguindo o mesmo exemplo entrarão Estado adentro Tradução livre para there is no power in Venice Can alter a decree established Twill be recorded for a precedent And many an error by the same example Will rush into the state Cf SHAKESPEARE William The Merchant of Venice Fully annotated with an Introduction by Burton Raffel with an essay by Harold Bloom New Haven Yale University Press 2006 1596 99 IV I p 122 69 imitação cega239 É claro que um espírito radicalmente reformador não se contentaria com pretensões de mera revisão De um revisionismo crítico o projeto benthamiano em idos da década de 1810 depois de um longo período de gestação240 passou a tratar de uma proposta de completa reforma e reestruturação justa e finalmente a partir da mencionada codificação do direito inglês241 A evolução é claro foi gradual Antes de iniciar seu projeto completo de um código completo Bentham chegou a esboçar uma espécie de mero Digesto242243 do direito inglês expondo sistematicamente os princípios fundamentais do ordenamento jurídico244 Entendia ele que a partir desse Digesto o common law seria ao menos um pouco mais previsível um pouco menos obscuro Bentham o radical logo abandonou a ideia de uma simples compilação à la Justiniano Não é difícil de imaginar a razão não apenas as críticas de Bentham ao common law eram fortes demais contundentes demais basta lembrar que para ele o sistema sequer era Direito os juízes que o construíam era uma elite que sem legitimidade para tal legislava de modo a perpetuar sua tirania fictícia Assim não bastava dar uma clareza um pouco maior àquilo tudo era preciso construir tudo de novo O código de Bentham por ele batizado de Pannomion245 assim viria a reformar o direito inglês ex novo e diferentemente por exemplo i da declaração francesa de direitos e ii do próprio common law acarretaria em um código compreensivo claro longe das ficções jusnaturalistas a ser promulgado por legisladores ou seja essencialmente a partir da vontade daqueles constituídos enquanto poder soberano esta sim a autêntica definição 239 POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 p 279 240 BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 95 241 Autores como Philip Schofield e David Lieberman contudo argumentam no sentido de que Bentham já tinha um projeto de codificação ainda nos anos 1780 Cf SCHOFIELD Philip Jeremy Bentham Legislator of the World Current Legal Problems Oxford v 51 n 1 jan 1988 pp 115147 LIEBERMAN David The Province of Legislation Determined Legal Theory in EighteenthCentury Britain Cambridge Cambridge University Press 1989 pp 257 276 242 Lieberman expõe detalhadamente essa fase do pensamento de Bentham com maestria em capítulo intitulado justamente The Digest O Digesto LIEBERMAN David The Province of Legislation Determined Legal Theory in EighteenthCentury Britain Cambridge Cambridge University Press 1989 pp 241257 243 Do latim digerere pôr em ordem Em referência à compilação de Justiniano I imperador bizantino que reunia fragmentos das obras dos jurisconsultos à época ordenando portanto um Direito já existente 244 BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 95 245 Primeiro Bentham deu a seu projeto de codificação o nome de Pandikaion Mais tarde Pannomion BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 95 BENTHAM Jeremy An Introduction to the Principles of Morals and Legislation An Authoritative Edition by J H Burns and H L A Hart with a new Introduction by F Rosen and an Interpretive Essay by H L A Hart Oxford Clarendon Press 2005 p 305 70 de Direito e sobretudo positivando o direito vigente a partir do princípio da utilidade246 Essa codificação porque completa seria o passo final em direção à autêntica ciência da jurisprudence247 Além disso a reforma do direito inglês a partir de um código claro compreensivo e cognoscível era para Bentham a mais adequada maneira de limitar a autoridade política uma vez que as regras estariam previamente estabelecidas e escritas afastando assim também o caráter de dog law do direito anglosaxão248 Segurança contra o desmando era seu mantra e foco singular publicidade sua ferramenta mais poderosa na persecução dessa segurança249 Nada mais adequado que a codificação do Direito Quem bem resume a evolução do pensamento jurídico de Bentham a quem José del Valle político guatemalteco chamava de legislador do mundo250 mesmo como é Norberto Bobbio fazendoo de forma bastante sistematizada Diz o autor italiano que para compreender a Teoria do Direito de Bentham é necessário que se tenha em mente aquilo que o utilitarista considerava como os cinco defeitos fundamentais do common law i a incerteza dito de outro modo a insegurança jurídica subjacente a um sistema não escrito ii a retroatividade que dava luz à analogia de Bentham do direito inglês com aquilo a que chamava de dog law leis ex post facto de eficácia retroativa iii a ideia de que o common law não se fundava no princípio da utilidade ie a máxima da maior felicidade para o maior número de pessoas iv a ausência de uma divisão mais clara de competências de forma que os juízes do common law decidiam casos sobre os quais eles não necessariamente detinham um conhecimento específico prévio e finalmente v o caráter eminentemente antidemocrático do direito comum inglês que não permitia qualquer tipo de controle popular sobre a produção do direito251 judiciário nas Cortes252 246 DINWIDDY John R Bentham Selected Writings of John Dinwiddy Edited with an Introduction by William Twining Stanford Stanford University Press 2004 p 56 247 HART H L A Benthams Principle of Utility and Theory of Penal Law In BENTHAM Jeremy An Introduction to the Principles of Morals and Legislation An Authoritative Edition by J H Burns and H L A Hart with a new Introduction by F Rosen and an Interpretive Essay by H L A Hart Oxford Clarendon Press 2005 pp xxxviixl 248 CRIMMINS James E Jeremy Bentham In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Summer 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivessum2018entriesbentham Acesso em 18 out 2018 249 Security against misrule was his mantra and his singular aim publicity was his most powerful tool for achieving such security Cf POSTEMA Gerald J The Soul of Justice In ZHAI Xiaobo QUINN Michael eds Benthams Theory of Law and Public Opinion Cambridge Cambridge University Press 2014 pp 40 62 Disponível em httpsssrncomabstract2294730 Acesso em 26 set 2018 250 O ponto é mencionado por Philip Schofield em SCHOFIELD Philip Jeremy Bentham Legislator of the World Current Legal Problems Oxford v 51 n 1 jan 1988 pp 115147 251 Entre aspas porque como vimos aquilo sequer seria Direito genuíno para Bentham 252 BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 pp 9799 71 Daí de tudo isso para além das já mencionadas críticas de Bentham às ficções de direito natural e da própria linguagem artificial das elites judiciárias seguiase para Bentham a necessidade de reforma do direito inglês a partir de seu projeto de codificação projeto este que segundo Bobbio também pode ser sistematizado em quatro princípios fundamentais i a utilidade ou seja regras escritas a partir da máxima da maior felicidade do maior número ii a completitude para evitar o preenchimento de lacunas por parte da ilegítima judgemade law253 iii a cognoscibilidade respeitando os ideais de clareza e acessibilidade permitindo aos cidadãos o conhecimento do que efetivamente era o Direito e iv justificabilidade já que somente quando seus motivos são conhecidos uma lei se torna compreensível254 145 Conclusão parcial Se o positivismo de Hobbes ainda que sustentado pela doutrina majoritária não é exatamente um consenso o positivismo em Jeremy Bentham é muito claro Se aceitamos a definição fulleriana segundo a qual o positivismo é a teoria que traça uma clara distinção entre o Direito como ele efetivamente é e como deveria ser a matriz positivista em um autor que adota como pressuposto mais básico de sua Teoria do Direito a dicotomia fatovalor separando as instâncias do is e do ought é mais que evidente Isso fica claro quando Bentham ele próprio divide sua teoria em expository e censory jurisprudence a primeira responsável por dizer o que o Direito é um comando do soberano sustentado por uma sanção a segunda responsável por dizer como o Direito deve ser claro acessível em consonância com o princípio mais básico do utilitarismo a máxima de que a ação correta é aquela através da qual se atinge a maior felicidade do maior número de pessoas Mesmo assim se nem isso fosse suficiente para classificalo como mais um positivista avant la lettre Bentham ainda é um autor que como Hobbes ridiculariza as noções racional jusnaturalistas da teoria clássica do common law se aquele opunhase a Coke Bentham 253 Há neste ponto uma pequena divergência doutrinária Gerald Postema defende a ideia de que o Pannomion consistiria em princípios utilitaristas que deveriam guiar a atividade judiciária sem necessariamente predeterminála A leitura tradicional porém defende que Bentham visava sim um código detalhado que eliminaria integrações que fossem judgemade e argumenta num sentido de que fosse a atividade criativa judiciária algo com o qual ele concordasse ele já estaria satisfeito com seu projeto prévio de Digesto do common law sem abandonálo para construir um novo sistema de codificação legislativa Cf FERRARO Francesco Adjucation and Expectations Bentham on the Role of the Judges Cambridgeshire Utilitas vol 25 n 2 jun 2013 pp 140160 254 BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 100 72 tinha um rival à altura em Blackstone Diferentemente de Hobbes contudo e nesse sentido mais radical Bentham afasta peremptoriamente qualquer menção a direitos naturais aos quais tão ironicamente atribuía o rótulo de tolices nonsense upon stilts É com base em tudo isso que Jeremy Bentham atribuiu a si mesmo a missão de desmistificar a farsa do common law a que chamava de dog law que sequer era Direito legítimo uma vez que era construído por juízes que não tinham competência para tal a partir de uma proposta de codificação do Direito Seu código positivaria aquilo que o Direito realmente era fruto da vontade do soberano que nada mais seria que aquele que tivesse a genuína atribuição legislativa a partir da máxima utilitária atingiria no Direito finalmente utilidade notoriedade completitude razoabilidade manifesta em contraste com o common law corrupto desconhecido incompleto arbitrário255 15 O DIREITO EM JOHN AUSTIN Se Mill é o grande discípulo de Bentham no que diz respeito ao utilitarismo John Austin 17901859 talvez seja seu maior discípulo no Direito Só que ainda que i também seja utilitarista ii simpático à codificação do Direito256 e iii tenha afirmado expressamente que seu objetivo de vida era disseminar as doutrinas de Jeremy Bentham Austin não apenas se difere de seu mestre em um importante aspecto como sobretudo tornouse o mais influente jurista inglês do século xix257 Como Bentham e como a mais absoluta maioria da tradição filosófica anglo saxônica desde então Austin acompanha a já mencionada dicotomia humeniana que traça uma distinção entre as instâncias do is e do ought isto é a ideia de que não se pode derivar uma premissa de cunho prescritivo de outra descritiva sem que se argumente logicamente para tal258 Isso é algo muito claro na distinção benthamiana entre as abordagens expositória e censorial de sua jurisprudence Só que diferentemente de Bentham cuja empreitada jurídico filosófica propugnava uma reforma do direito inglês através da codificação completa ou 255 SCHOFIELD Philip Jeremy Bentham Legislator of the World Current Legal Problems Oxford v 51 n 1 jan 1988 pp 115147 256 Ao menos no que diz respeito a uma fase mais tardia do seu pensamento como se verá mais adiante 257 Tradução livre para although John Austin declared that his aim in life was only to disseminate the doctrines of Jeremy Bentham it was the younger man who became the most influential English jurist of the nineteenth century LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 173 258 Ver p 53 e nota 182 supra desta pesquisa 73 seja com uma ênfase muito clara no aspecto normativo da teoria Austin estava muito mais interessado na primeira abordagem ou seja no aspecto expositório da teoria jurídica estava pois muito mais interessado em construir uma Teoria do Direito que identificasse o fenômeno jurídico como ele efetivamente era e a partir daí descrevêlo259 É por isso que a Austin creditase a fundação daquilo a que se convencionou chamar posteriormente de analytical jurisprudence que nada mais é que justamente a abordagem analíticodescritiva do fenômeno jurídico260 É precisamente em razão disso que Austin é considerado como dito no parágrafo anterior o mais influente jurista inglês do xix Bentham é verdade é um filósofo na acepção clássica e mais abrangente da palavra muito mais completo e reconhecido mas foi Austin com sua teoria jurídica analítica que inaugurou de vez a tônica dominante que perpassa toda a tradição juspositivista que veio e ainda vem depois dele261 Outra divergência de Austin com relação a Bentham é política embora tenha compartilhado o radicalismo do mestre enquanto jovem mais tarde Austin converteuse ao conservadorismo político opondose expressamente em 1859 mais precisamente a reformas parlamentares e ao sufrágio popular262 Austin sobretudo de acordo com Wiflrid E Rumble responsável pela Introdução da célebre edição da Cambridge University Press de The Province of Jurisprudence Determined magnum opus de Austin não era um discípulo servil de Bentham ao contrário divergências políticas entre ambos desenvolveramse e multiplicaramse no curso do tempo Mesmo assim Bentham teve provavelmente um impacto na filosofia moral e jurídica de Austin maior que o de qualquer outro autor263 Isso não é mera curiosidade Para alguns autores como Thomas Bustamante e Michael Lobban por exemplo é justamente o conservadorismo político de Austin que o levou a esse seu desinteresse pelo eventual caráter pretensamente prescritivo de uma teoria 259 Em Austin se encontra o germe do positivismo descritivo STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 p 169 260 BIX Brian John Austin In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesspr2018entriesaustinjohn Acesso em 18 out 2018 261 Para Roger Cotterrell isso também se deve ao fato de que os escritos jurídicos de Bentham só foram publicados de forma sistemática postumamente quando o trabalho de Austin já havia sido publicado e difundido Cf COTTERRELL Roger The Politics of Jurisprudence A Critical Introduction to Legal Philosophy 2 ed Londres LexisNexis 2003 p 50 262 AUSTIN John A Plea for the Constitution In SCARROW Susan E Perspectives on Political Parties Classic Readings Nova York Palgrave Macmillan 2002 pp 135139 263 Tradução livre para Austin was no slavish follower of Bentham and criticized many of his ideas Then too political differences between the two men developed and multiplied in the course of time Nevertheless Bentham probably had a heavier impact upon Austins ethical and legal philosophy than any other person Cf AUSTIN John The Province of Jurisprudence Determined Edited by Wilfrid E Rumble Cambridge Cambridge University Press 2001 1832 p ix 74 jurídica264 enquanto Bentham como vimos era um verdadeiro revolucionário Austin preocupouse em tão somente desenvolver uma análise de conceitos jurídicos de forma a fazer sentido do Direito que ele visualizava apontando o caminho para reformas enquanto Bentham voltava sua teoria muito mais ao aspecto censório Austin dedicou pouco tempo à ciência da legislação confinando a teoria jurídica a uma análise e descrição do direito positivo265 que ele dizia analisar sem valorar seus aspectos positivos ou negativos266 151 A analytical jurisprudence John Austin é o autor da mais clássica máxima positivista que expressa a doutrina em sua mais básica essência A existência do Direito é uma coisa seus méritos ou deméritos outra Existir é uma questão estar de acordo a um determinado padrão é outra Uma lei que de fato existe é uma lei ainda que eventualmente desgostemos dela ou venha de um texto que aprovamos ou desaprovamos 267 O ponto o propósito e a própria tese de Austin parecem ser bastante diretos até mesmo simples e de fato são Bix no verbete específico sobre Austin que escreveu à Stanford Encyclopedia of Philosophy chega a dizer que a análise austiniana sobre o Direito pode ser encarada legitimamente de duas maneiras ela pode ser tomada tanto como 264 BUSTAMANTE Thomas da Rosa A Breve História do Positivismo Descritivo O que Resta do Positivismo Jurídico Depois de H L A Hart Novos Estudos Jurídicos Itajaí vol 20 n 1 janabr 2015 pp 309327 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 173 265 De forma que parece fazer muito sentido a interpretação de entre outros Bustamante e Lobban sobre ser o conservadorismo de Austin um dos motivos por trás de seu rompimento para com a empreitada reformista revolucionária da censorial jurisprudence de seu mestre Bentham Afinal se Bentham via a si mesmo como uma espécie de legislador universal não há nada mais anticonservador que essa disposição especialmente quando o conservadorismo britânico parece ser precisamente uma ideologia se é que pode ser assim chamado da imperfeição humana Cf PEREIRA COUTINHO João As Ideias Conservadoras Explicadas a Revolucionários e Reacionários 2 ed São Paulo Três Estrelas 2014 pp 6263 266 Tradução livre e contextualizada a partir da seguinte passagem Unlike his mentor moreover Austin sought to reform rather than revolutionise the English legal system He developed an analysis of legal concepts to help make sense of the law he found and to point the way to reform For Austin jurisprudence was concerned with positive laws considered without regard to their goodness or badness LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 pp 173174 267 Tradução livre para the existence of law is one thing its merit or demerit is another Whether it be or not is one enquiry whether it be or be not conformable to an assumed standard is a different enquiry A law which actually exists is a law though we happen to dislike it or though it vary from the text by which we regulate our approbation and disapprobation Em AUSTIN John The Province of Jurisprudence Determined Edited by Wilfrid E Rumble Cambridge Cambridge University Press 2001 1832 p 157 75 paradigmática quanto como uma caricatura da filosofia analítica a partir do fato de suas discussões serem repletas de distinções cruas mas rasas em argumento grifo meu268 Distinções É esse rigorosamente o objetivo da teoria jurídica de Austin clarificar o conceito autêntico de direito positivo ie leis humanas diferenciandoo de comandos morais divinos ou de qualquer outra natureza isso porque para Austin o objeto da teoria jurídica é o direito positivo o Direito simples e rigorosamente assim chamado ou o direito posto por superiores políticos a subalternos políticos Sendo assim chegar em uma definição conceitual clara é a tarefa do teórico do Direito já que o direito positivo para Austin Direito simples e rigorosamente assim chamado é com frequência confundido com objetos aos quais se relaciona por similaridade objetos esses que também são significados própria e impropriamente com a expressão ampla e vaga Direito A proposta de Austin é exatamente esta delimitar de forma clara a esfera da teoria jurídica269 É com esse objetivo em mente que seguindo a Bentham e até mesmo a Hume270 Austin foi adepto do que hoje se chama de command theory of law aquilo a que se convencionou chamar nas traduções para o português de concepção imperativista do Direito271 traduzindo e em termos mais claros é possível dizer que ao definir o direito positivo como o direito posto por superiores políticos a subalternos políticos Austin subscreve à ideia de que o Direito ie o próprio direito positivo que é nada mais que o Direito simples e rigorosamente assim chamado a natureza do Direito está no comando do soberano Mais precisamente um comando geral e abstrato a expressão de um desejo que coloca qualquer indivíduo para quem esse desejo é expresso passível de um mal 268 Tradução livre para Austins analysis can be seen as either a paradigm of or a caricature of analytical philosophy in that his discussions are dryly full of distinctions but are thin in argument BIX Brian John Austin In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesspr2018entriesaustinjohn Acesso em 18 out 2018 269 Tradução livre e contextualizada da seguinte passagem que abre The Province of Jurisprudence Determined título que pode ser livremente traduzido exatamente como a esfera a área o campo no sentido de limites da teoría do Direitoteoria jurídica determinadao THE matter of jurisprudence is positive law law simply and strictly so called or law set by political superiors to political inferiors But positive law or law simply and strictly so called is often confounded with objects to which it is related by resemblance with objects which are also signified properly and improperly by the large and vague expression law To obviate the difficulties springing from that confusion I begin my projected Course with determining the province of jurisprudence or with distinguishing the matter of jurisprudence from those various related objects AUSTIN John The Province of Jurisprudence Determined Edited by Wilfrid E Rumble Cambridge Cambridge University Press 2001 1832 p 18 270 Ver p 54 desta pesquisa 271 BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 108 76 qualquer por ato daquele que exprime o desejo se este não for realizado justamente uma sanção272 E na medida em que novamente em grande parte como em Bentham273 o soberano austiniano é definido como um indivíduo ou grupo de indivíduos que i recebem a obediência habitual da população e ii não obedecem habitualmente a qualquer outro indivíduo ou instituição terrena é pontualmente essa definição que permite Austin a diferenciar o Direito o comando jurídico de objetos impropriamente chamados de leis como os comandos jurídicos ou os ditames da moralidade positiva274 A formulação comando do soberano sanção só se observa no direito positivo que é exato objeto da teoria jurídica Uma vez mais quem bem sintetiza o ponto acerca da diferenciação austiniana acerca do Direito propriamente assim chamado daqueles objetos impropriamente chamados de leis é Bobbio As leis divinas e o direito positivo constituem comandos soberanos o direito positivo e as leis propriamente ditas da moralidade positiva são comandos humanos as leis positivas o direito positivo e as leis propriamente ditas da moralidade positiva isto é todas as leis exceto aquelas impropriamente ditas da moralidade positiva são comandos O objeto da jurisprudência isto é da ciência do direito é o direito tal como ele é e não o direito como deveria ser concepção positivista do direito a norma jurídica tem a estrutura de um comando concepção imperativista do direito o direito é posto pelo soberano da comunidade política independente isto é em termos modernos pelo órgão legislativo do Estado275 Ao inaugurar a analytical jurisprudence portanto Austin inaugurou de vez uma proposta analítica na Teoria do Direito 276 que a partir de uma concepção imperativista que definiu o Direito como um comando sanção do soberano aquele para com quem uma comunidade política tem um hábito de obediência tinha como proposta descrever esse fenômeno jurídico tal como ele era distinguindoo de outros comandos eg ditames divinos 272 BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 105 273 LOBBAN Michael PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 08 A History of the Philosophy of Law in The Common Law World 16001900 Nova York Springer 2016 p 177 274 AUSTIN John The Province of Jurisprudence Determined Edited by Wilfrid E Rumble Cambridge Cambridge University Press 2001 1832 pp 2024 275 BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 108 276 Andrew Halpin atribui a Austin o título de o progenitor de uma tradição analítica na Teoria do Direito the progenitor of an analytical tradition in jurisprudence Cf HALPIN Andrew Austins Methodology His Bequest to Jurisprudence In FREEMAN Michael MINDUS Patricia eds The Legacy of John Austins Jurisprudence Dordrecht Springer Netherlands 2013 pp 1540 77 e de moralidade social e sobretudo traçando uma afiada distinção entre Direito e moralidade277 1511 Contradições e convergências com Jeremy Bentham Até aqui temos i que Austin foi um discípulo de Bentham e ii que diferentemente de seu mestre um democrata radical era um conservador político possivelmente razão pela qual iii Austin diferentemente de seu mentor preocupavase tão somente em identificar e descrever o Direito diferenciandoo de outros tipos de comandos ao contrário de Bentham Austin não tinha como prioridade em sua teoria jurídica qualquer caráter normativo Quanto a isso contudo isto é quanto à identificação do objeto de uma teoria ou ciência jurídica iv Austin concordava com Bentham quanto à sua definição do que o Direito efetivamente era o comando do soberano que desobedecido acarretava em uma sanção Até aqui prima facie sem maiores problemas a grande questão entretanto surge quando se reflete um pouco mais a fundo sobre a relação que todas essas premissas acabam tendo uma com relação à outra Vejase divergências políticas à parte e mais interferência ou não de visões políticas na proposta de teoria jurídica fato é que Austin e Bentham concordam com relação à definição do que é o Direito É aí que surge a grande questão para além de qualquer motivação pretensamente democrática a proposta de reforma radical do direito inglês propugnada por Bentham deviase exatamente pela sua definição do que era o Direito Lembremos que ao conceber o Direito a partir da command theory concepção imperativista Bentham entendia que o common law sequer estava apto a se classificar como Direito legítimo aquilo que Bentham observava era um direito judiciário judgemade law propor uma reforma então é nada mais que uma decorrência lógica Então se i Austin concorda com o mestre e como ele subscreve à command theory e ii essa teoria mesma obrigava Bentham a rejeitar o common law enquanto Direito a pergunta é óbvia como pode Austin contentarse com a descrição com uma teoria meramente expositória em termos benthamianos se o objeto a ser descrito sequer é Direito legítimo A resposta de Austin ao final da primeira de suas célebres lectures é bastante curiosa se satisfatória ou se apologética se genuína ou evasiva para tão somente justificar o status quo difícil responder com um mínimo grau de objetividade qualquer palpite seria 277 Cf o prefácio de FREEMAN Michael MINDUS Patricia eds The Legacy of John Austins Jurisprudence Rotterdam Springer Netherlands 2013 78 somente um palpite de forma que não me preocupa especular nesse sentido Dito isso o que Austin argumentava para legitimar sua proposta descritiva conciliandoa com a subscrição à tese imperativista de Bentham acerca da natureza do Direito era que tanto o direito judiciário quanto o reconhecimento jurídico dos costumes eram comandos tácitos do soberano o direito judiciário era portanto direito legítimo por aquiescência desse soberano a quem cabe a competência legislativa Austin define Schauer até mais do que Bentham esteve entre os primeiros a reconhecer os poderes legislativos do juiz no common law278 A diferença entre ambos reside no fato de que para Bentham isso era ilegítimo Para Austin por outro lado quando costumes tornamse regras jurídicas a partir da decisão judicial as regras jurídicas que emergem dos costumes são comandos tácitos da legislatura soberana O Estado que tem a faculdade de abolir essas regras permite que seus membros efetivemnas e isso portanto significa seu contentamento por sua aquiescência voluntária que essas regras sirvam como Direito aos jurisdicionados 279 Austin portanto rejeitava o próprio termo judgemade law que ele atribui a Bentham e considera desrespeitoso Dizia que apesar de sua grande admiração pelo Sr Bentham o direito judiciário era não apenas altamente benéfico como até mesmo absolutamente necessário Não só isso nos países em que se podia observar leis feitas pelos juízes verificavase que esse direito produzido nas cortes era muito melhor que aquelas partes do direito local que consistiam em estatutos promulgados pela legislatura Austin ia mais além e dizia ainda que se Bentham fosse criticar a suposta judgemade law que a criticasse pela maneira tímida e estreita através da qual esses juízes legislavam280 278 Austin even more than Bentham was among the first to recognize the lawcreating powers of the common law judge SCHAUER Frederick The Force of Law Cambridge Harvard University Press 2015 p 19 279 Tradução livre para when customs are turned into legal rules by decisions of subject judges the legal rules which emerge from the customs are tacit commands of the sovereign legislature The state which is able to abolish permits its ministers to enforce them and it therefore signifies its pleasure by that its voluntary acquiescence that they shall serve as a law to the governed Em AUSTIN John The Province of Jurisprudence Determined Edited by Wilfrid E Rumble Cambridge Cambridge University Press 2001 1832 p 37 280 Eu de forma alguma desaprovo aquilo a que o Sr Bentham escolheu chamar pelo desrespeitoso e portanto penso que imprudente nome de judgemade law Porque considero imprudente chamar de qualquer nome que indique qualquer desrespeito àquilo que me parece como algo altamente benéfico e até mesmo absolutamente necessário Eu não sou capaz de entender como qualquer pessoa que pensou sobre o assunto pode supor que a sociedade poderia ter sobrevivido se juízes não tivessem legislado ou que haja qualquer perigo que seja em conferilos o poder que eles de fato têm exercido de preencher a lacuna deixada pela negligência ou incapacidade do legislador constituído Aquela parte do Direito de cada país que foi feita pelos juízes costuma ser muito melhor que aquelas que consistem em estatutos promulgados pela legislatura Apesar de minha grande admiração pelo Sr Bentham não posso deixar de pensar que em vez de culpar os juízes por terem legislado ele devia ao contrário culpalos pela maneira tímida estreita e gradual através da qual eles têm legislado Tradução livre para a seguinte passagem I by no means disapprove of what Mr Bentham has chosen to call by the disrespectful and therefore as I conceive injudicious name of judgemade law For I consider it injudicious to call by any name indicative of disrespect what appears to me highly beneficial and even absolutely necessary I cannot understand how any person who has considered the subject can suppose that society could possibly 79 Por fim ainda é necessário que se diga que em uma de suas lectures mais tardias Austin reconheceu ainda que classificasse maior parte das críticas ao que ele chamava de judicial law e não judgemade law281 como vimos como objeções sem fundamento282 que era possível sim que o direito produzido nas Cortes acarretasse em alguns problemas aos quais o autor levantou algumas objeções Embora assumidamente conservador e simpático ao direito judicial o Austin tardio i reconhecia benthamianamente a possibilidade de se construir o Direito com mais clareza a partir da codificação porque ainda que o direito estatutário possa também ser eivado de ambiguidades como o discurso jurídico das Cortes ele era mais facilmente acessível e cognoscível facilitando que o problema fosse contornado Austin também ii entendia que em razão da rotina própria típica das Cortes haveria o risco de que o Direito enquanto produzido no Tribunal assim o fosse de forma apressada283 sem a prudente deliberação284 típica do Parlamento Também à la Bentham Austin iii colocava que a judicial law era sempre invariavelmente ex post facto285 e iv entendia que a codificação significava um Direito mais coerente e estável286 1512 John Austin entre a Alemanha e a Inglaterra Seja como for e por mais que se tenha mostrado simpático a uma proposta de codificação mais ao final de suas exposições em Londres o fato é que Austin jamais teve a pretensão política reformista de seu mestre Só que a explicação um pouco mais completa disso para além do conservadorismo austiniano contrastado com o espírito revolucionário de Bentham passa por uma compreensão de outro aspecto de sua teoria jurídica que será have gone on if judges had not legislated or that there is any danger whatever in allowing them that power which they have in fact exercised to make up for the negligence or the incapacity of the avowed legislator That part of the law of every country which was made by judges has been far better made than that part which consists of statutes enacted by the legislature Notwithstanding my great admiration for Mr Bentham I cannot but think that instead of blaming judges for having legislated he should blame them for the timid narrow and piecemeal manner in which they have legislated Em AUSTIN John The Province of Jurisprudence Determined Edited by Wilfrid E Rumble Cambridge Cambridge University Press 2001 1832 p 163 281 Lei judicial em vez de lei feita por juízes tradução livre de forma a denotar que considerava os juízes como uma espécie de delegados subordinados e tacitamente autorizados do soberano 282 Groundless objections 283 In haste 284 The mature deliberation which legislation requires Isto é a deliberação prudente que o processo de legislação exige Tradução livre 285 Lembrese da metáfora benthamiana do common law como dog law Cf item 143 pp 5661 desta pesquisa 286 Todo o ponto em AUSTIN John Lectures on Jurisprudence or the Philosophy of Positive Law 5 ed vols I e II Editado por Robert Campbell Londres John Murray 1873 pp 669675 80 exposto de forma bastante breve a influência da escola alemã287 Ignorado esse aspecto corre se o risco de fazer injustiça a Austin como se suas considerações sobre a atuação dos juízes fosse mera retórica conservadora sem qualquer sustentação filosóficojurídica Se as influências inglesas formaram a teoria de Austin acerca do que o Direito era diz Michael Lobban as influências alemãs ensinaramno como o Direito funcionava288 É nesse sentido que se pode explicar as concessões austinianas ao direito judiciário ao passo que sua concepção de Direito era tipicamente britânica hobbesbenthamiana Austin também entendia como os alemães que esse Direito porque sempre incompleto implicava necessariamente no reconhecimento de princípios Rechtsgrundsätze tácitos de caráter eminentemente jurídico subjacentes à ordem jurídica Rechtsordnung de cada local Eram esses princípios que permitiam que as decisões proferidas em casos novos fosse de fato jurídica rechtlich e não baseada meramente em juízos de equidade ou em pura discricionariedade289 Quem pretende revisitar a jurisprudence neste caso rechtstheorie alemã não pode evitar senão voltar a atenção à Escola Histórica290 personificada ao menos quando tratamos da influência sobre Austin especialmente por Savigny ainda que brevemente tão somente para os fins a que se propõe um subcapítulo dedicado a John Austin291 Para 287 Para um excelente apanhado geral ver os verbetes Jurisprudência dos conceitos e Jurisprudência dos interesses do Dicionário de Streck Cf STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 pp 104114 288 Tradução livre da seguinte passagem If the English influences shaped Austins theory of what law was the German ones taught him how it worked LOBBAN Michael Austin and the Germans In FREEMAN Michael MINDUS Patricia eds The Legacy of John Austins Jurisprudence Rotterdam Springer Netherlands 2013 pp 255270 289 LOBBAN Michael Austin and the Germans In FREEMAN Michael MINDUS Patricia eds The Legacy of John Austins Jurisprudence Rotterdam Springer Netherlands 2013 pp 255270 290 Quem bem explica a Escola Histórica da forma sintetizada mas sobretudo responsável que nos é necessária aqui é Isaiah Berlin Os juristas históricos alemães declararam que a lei não era nem uma aproximação de algo chamado lei natural apenas discernível por um tipo a priori especial de visão pois isso era claramente uma ficção nem baseada nos comandos arbitrários de governantes individuais pois uma vez que os direitos naturais e divinos eram dados por findos isso já não possuía autoridade mas que ela derivava das relações históricas em evolução que os homens tinham de fato uns com os outrosdas maneiras reais como os homens se comportavam e achavam correto comportarse dentro de comunidades e como conjuntos comunais visàvis uns com os outrose que essa rede elaborada de relações não era nem algo passível de ser decomposto em arranjos utilitários conscientes nem um comportamento dedutível do que podia ser descoberto sobre o hábito anatômico físico e fisiológico de indivíduos mas só podia ser compreendida da mesma forma que o membro de uma família entendia o padrão de vida familiar de que ele próprio era parte aceitando as regras dessa vida não por ela poder ser deduzida de princípios abstratos nem por ter sido ordenada por um superior específico mas porque aceitar essas regras era em alguma medida levar esse tipo de vida e isso fazia parte dos hábitos perspectiva e moralidade naturais daqueles que constituíam a família Grifos meus BERLIN Isaiah Ideias Políticas na Era Romântica Ascensão e influência no pensamento moderno Organização de Henry Hardy São Paulo Companhia das Letras 2016 pp 296297 291 De modo que a obra de Savigny exigiria por si só toda uma pesquisa completa abordarseá aqui tão somente os aspectos tomados por Austin para sua compreensão acerca da atividade dos juízes nas Cortes 81 Savigny a tarefa dos juízes era dúplice No primeiro aspecto uma dimensão material criativa uma vez que o Direito não se desenvolvia de forma espontânea a partir do costume caberia ao juiz desenvolvêlo articulando o Volksgeist292293 e o Direito No segundo aspecto uma dimensão formal de atribuição de unidade e cientificidade ao material surgido da atividade prática Evidentemente pois a atividade do jurista ie daquele envolvido na práxis e não o teórico digase não era meramente descritiva de algo já existente294 Austin assume o tributo que deve à escola alemã o reconhecimento de que a prática jurídica era também criativa e não apenas cognitiva Nessa linha Bobbio atribui a Austin uma tentativa de mediação entre a escola histórica alemã e o utilitarismo inglês num esforço notável mas também insciente de fazer de Bentham um historicista e de Savigny um utilitarista A crítica de Bobbio reside no fato de que de acordo com sua interpretação as convergências pensamento entre Austin e os alemães eram bastante limitadas e superficiais redutíveis meramente a uma rejeição das concepções jusnaturalistas295 Seja como for e interpretações críticas à parte o fato é que Austin menciona Herr von Savigny expressamente em uma de suas lectures ao referirse exatamente a natureza dúplice da atividade judiciária moderna296297 As raízes germânicas que se fazem presentes na obra de Austin não param por aí A tardia defesa de Austin em favor da codificação não se aproximava do Pannomion de Bentham mas sim a uma proposta muito mais relacionada a uma compreensão germânica da atividade judiciária de modo que as ideias de Austin acerca da codificação eram conforme alerta Michael Lobban muito mais próximas à proposta de Thibaut jurista alemão298 para seu 292 As noções de um Volksgeist um espírito do povo remontam a Herder O Volksgeist é o espírito interior próprio de um povo que moldava sua perspectiva e condicionava a forma concreta que a expressão dessa perspectiva adotava A influência do romantismo de Herder sobre os juristas históricos é fundamental BERLIN Isaiah Ideias Políticas na Era Romântica Ascensão e influência no pensamento moderno Organização de Henry Hardy São Paulo Companhia das Letras 2016 pp 286287 297 293 Ao direito natural a escola histórica contrapõe o direito consuetudinário considerado como a forma genuína do direito enquanto expressão imediata da realidade históricosocial e do Volksgeist BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 p 53 294 VON SAVIGNY Friedrich Carl System of the Modern Roman Law vol I Traduzido por William Holloway Chennai J Higginbotham 1867 pp 3739 295 BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 pp 101 103 296 AUSTIN John Lectures on Jurisprudence or the Philosophy of Positive Law 5 ed vols I e II Editado por Robert Campbell Londres John Murray 1873 pp 667668 297 Não compreendamos a passagem a partir de interpretações anacrônicas 298 Que em favor da codificação do Direito travou debates com o contrário von Savigny Thibaut propugnava uma sistematização do direito positivo um sistema do direito das Pandectas System das Pandektenrechts de modo que a Alemanha fosse estruturada a partir de um código geral válido que impedisse arbitrariedades dos Estados independentes Savigny de acordo com Bobbio entendia que a Alemanha passava por um momento de decadência jurídica razão pela qual a codificação nas circunstâncias da época somente agravaria os problemas 82 país299 Exatamente pelo fato de Austin germanicamente entender pela impossibilidade de completitude do Direito um código austiniano seria um digesto sistematizado das rationes decidendi a partir das quais o direito judiciário era constituído visando tão somente a preencher as lacunas geradas pela ausência de positivação300 152 Conclusão parcial e o legado da teoria jurídica de John Austin301 Até aqui portanto temos que seguindo a Hobbes e Bentham Austin subscreve à teoria imperativista do Direito concebendo o fenômeno jurídico como um comando do soberano cominado com uma sanção em caso de descumprimento desse comando próprio Diferentemente de seus predecessores porém Austin preocupouse muito mais com a dimensão descritiva do Direito deixando de lado as preocupações políticonormativas do positivismo jurídico de até então Sua proposta muito claramente era a de delimitar aquilo a que chamava de province of jurisprudence esfera da Teoria do Direito diferenciando o Direito de outras normas de ordem social moral divina Finalmente convém ainda que se teçam algumas reflexões acerca do legado de John Austin na Teoria do Direito Além das razões óbvias falar sobre um legado observável até hoje tem uma importância autoevidente isso devese ao fato de que é parte do legado austiniano que permite em outra instância que se construa um elemento de conexão entre este capítulo com o início do próximo dentro do qual trato dos positivismos contemporâneos Se Hobbes e Bentham já desafiavam o common law e sobretudo com isso desafiavam a teoria clássica em sua concepção segundo a qual os juízes racionalmente acessavam e declaravam um direito preexistente a ser descoberto na sabedoria do costume que por vezes tinha a si atribuído até mesmo um caráter imemorial como vimos ter sido o caso durante a Era Coke foi somente a partir de Austin que se tornou mais difundida uma existentes Cf BOBBIO Norberto O Positivismo Jurídico Lições de Filosofia do Direito Tradução e notas de Márcio Pugliesi Edson Bini e Carlos E Rodrigues São Paulo Ícone 1995 pp 5762 299 LOBBAN Michael Austin and the Germans In FREEMAN Michael MINDUS Patricia eds The Legacy of John Austins Jurisprudence Rotterdam Springer Netherlands 2013 pp 255270 300 Austin argued that a code which digested and put in order the rationes decidendi of which judicial law was made up would be an advance on leaving it all embedded in cases His view was that one should codify on the basis of induction from legal science LOBBAN Michael Austin and the Germans In FREEMAN Michael MINDUS Patricia eds The Legacy of John Austins Jurisprudence Rotterdam Springer Netherlands 2013 pp 255270 301 Devo o título deste subcapítulo ao título da obra editada por Michael Freeman e Patricia Mindus The Legacy of John Austin Jurisprudence FREEMAN Michael MINDUS Patricia eds The Legacy of John Austins Jurisprudence Rotterdam Springer Netherlands 2013 83 noção de que o Direito seria em verdade fundado muito mais em regras criadas e impostas de cima para baixo A influência tanto hobbesiana quanto benthamiana é cristalina ainda assim é a Austin é que se credita a primazia dessa perspectiva imperativista em face da clássica teoria declaratória de matriz racionaljusnaturalista talvez até por razões temporais302 já que à época de publicação de suas lectures as características típicas de um Estado moderno com governo centralizado estavam muito mais estabelecidas fazendo com que essa nova forma de se enxergar a natureza do Direito harmonizassese muito mais com as circunstâncias de tempo e lugar303 Essa conexão está no legado deixado por John Austin já que de uma maneira ou outra foi ele quem inaugurou definitivamente a tradição dominante na escola juspositivista algo que nos permite inclusive dizer que foi Austin quem inaugurou a tradição dominante em toda a Teoria do Direito anglosaxônica Ainda que de forma atualizada a postura analítica é ainda aquela que pauta majoritariamente o debate na academia jurídica ainda que a analytical jurisprudence tenha sido desafiada por alguns em anos recentes304 segue sendo a abordagem dominante na discussão acerca da natureza do Direito e se a analytical jurisprudence tem em Austin seu expoente seu legado é indubitável305 302 Ver nota 250 supra p 69 303 COTTERRELL Roger The Politics of Jurisprudence A Critical Introduction to Legal Philosophy 2 ed Londres LexisNexis 2003 pp 2177 304 Tratarei com mais vagar das críticas de Ronald Dworkin no capítulo subsequente No Brasil arrisco dizer que é precisamente esse o principal ponto de divergência de Lenio Streck com o positivismo a pretensão de uma descrição arquimediana incompatível por óbvio com uma abordagem hermenêutica do Direito à la Streck 305 Though analytical jurisprudence has been challenged by some in recent years it remains the dominant approach to discussing the nature of law Cf BIX Brian H John Austin In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesspr2018entriesaustinjohn Acesso em 26 out 2018 84 2 POSITIVISMO E DIREITO COMO INTEGRIDADE Em sua grande e elegante obra Ronnie Ronald Dworkin nos deu uma teoria viva que creditou à prática do Direito a razão e a reflexão e não apenas uma aplicação mecânica de regras Uma teoria que nos ensinou a levar a sério a argumentação que para a perplexidade dos positivistas pragmáticos e céticos em geral leva os advogados e juízes a buscar profundamente nos livros de Direito com tenacidade de novo e de novo as respostas jurídicas para casos difíceis em vez de admitir derrota ao primeiro sinal de que não há texto ou precedente específico sobre o ponto em questão306 Jeremy Waldron John Austin no século xix foi o grande marco teórico a partir do qual se desenvolveu aquela que seria a característica dominante do positivismo jurídico tal como o compreendemos nas versões de seus mais influentes representantes teóricos Suas teses é verdade podem ter sido superadas se é que se pode empregar o termo superação sem olhares anacrônicos sem desconsiderar que somente uma teoria ahistórica não está sujeita aos implacáveis avanços dos tempos mas houve continuidade com relação ao seu método de abordagem Bentham como vimos em referência expressa a Hume307 adotou em sua teoria jurídica a distinção entre as instâncias do is e do ought Essa distinção entre questões descritivas e normativas agora tão profundamente arraigada a ponto de não precisar de elaboração308 foi igualmente seguida por Austin A diferença é que enquanto Bentham entendia ser papel da jurisprudence discutir também aquilo que deve ou deveria Austin preocupouse muito mais em atribuir à Teoria do Direito o papel de descrever aquilo que era factual acerca daquilo a que chamamos Direito Como o mundo externo está para a física 306 Tradução livre de passagem de Jeremy Waldron em memorial a Ronald Dworkin quando de seu falecimento In this great and graceful body of work Ronnie gave us a living jurisprudence one which credited the practice of law with reason and thoughtfulness not just the mechanical application of rules It was a jurisprudence that taught us to take seriously forms of argument thatto the bewilderment of positivists pragmatists and all sorts of skepticshave lawyers and judges delving doggedly again and again into the books of the law to search for legal answers to hard cases rather than just admitting defeat at the first sign that there is not going to be any text or precedent directly on point WALDRON Jeremy Ronald Dworkin An Appreciation New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 1339 jul 2013 307 Ver pp 5254 desta pesquisa além especialmente da nota 182 supra 308 BERLIN Isaiah Ideias Políticas na Era Romântica Ascensão e influência no pensamento moderno Organização de Henry Hardy São Paulo Companhia das Letras 2016 p 82 85 também o fenômeno jurídico estaria para a jurisprudence devese identificar as leis sob as quais o fenômeno opera e disso descrevêlo analiticamente Se for possível fazêlo sem que isso pareça um certo reducionismo podese dizer que esse era basicamente o propósito daquele que sem maiores contestações pode ser chamado de maior nome representativo do positivismo jurídico anglosaxão H L A Hart 1907 1992 Sua proposta teórica para um conceito de Direito309 está presente direta ou indiretamente em toda discussão acadêmica na esfera da jurisprudence a partir dali Seja com a proposta de refutálo de endossálo em maior ou menor grau com mais ou menos variações ou tão somente de discutilo o conceito de Direito de Hart é um marco referencial para um sem número de importantíssimos livros ensaios artigos a partir dali Da analytical jurisprudence de Austin passando pelo ensaio analíticojurídico pela sociologia descritiva310 de Hart o foco do positivismo jurídico tem sido o de de uma forma ou outra aprofundar a compreensão do Direito da coerção e da moralidade como fenômenos sociais distintos embora relacionados311 descrevendo o Direito enquanto fenômeno autônomo tal como é Vejase contudo que entre a herança imaterial deixada por Hart mencionei obras lato sensu que se propunham a rejeitar sua proposta Seus discípulos são maioria é verdade mesmo assim há um nome talvez tão paradigmático quanto o de Hart que se sobressai entre os poucos que se manifestaram em oposição a Hart Ronald Dworkin 19312013 exaluno de Hart assim o fez com veemência desafiando a obra de seu outrora professor em termos metodológicos e substantivos Muito já foi escrito e discutido sobre o agora célebre debate HartDworkin de modo que nenhuma pesquisa inserida no contexto anglosaxão poderia deixar de abordálo em especial um estudo que investiga ao final a obra de Jeremy Waldron a meu ver um herdeiro direto não apenas de Hart não apenas de Dworkin312 mas do próprio debate Há naturalmente um caminho a ser percorrido Comecemos pois por Hart em uma modesta tentativa de fazer justiça à importância de sua obra 309 Sua magnum opus é justamente The Concept of Law publicado originalmente em 1961 310 Não obstante sua preocupação com a análise este livro justamente The Concept of Law pode ser classificado como um ensaio em sociologia descritiva Notwithstanding its concern with analysis the book may also be regarded as an essay in descriptive sociology HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p v 311 Tradução livre para a passagem que abre The Concept of Law em que Hart expõe o propósito subjacente ao livro MY aim in this book has been to further the understanding of law coercion and morality as different but related social phenomena HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p v 312 E ao final pretendo deixar muito claro por que isso não é um paradoxo ainda que o pareça prima facie 86 21 O DIREITO EM H L A HART A questão temporal ainda que não seja o foco principal do tema exposto não deve ter passado despercebido aos olhos do leitor mais atento aos detalhes Austin homem do xix escreveu na década de 1830 Hart por sua vez teve sua obra magna publicada em 1961 Não é pouco provável que a pergunta mais óbvia emerja da análise que liga um elemento ao outro não seria esse um salto grande demais do ponto de vista temporal Estamos falando afinal de mais de um século de diferença entre uma obra e outra Se o leitor atento percebeu esse detalhe cronológico o leitor iniciado em discussões sobre Teoria do Direito bem sabe que muito pouco para que não se diga nada ou quase nada até hoje foi escrito sobre o estado das discussões teoréticoacadêmicas do mundo jurídico anglosaxão entre Austin e Hart Qualquer um que pesquise manuais de jurisprudence visando a compreender o desenvolvimento do assunto na Inglaterra diz Neil Duxbury vai concluir razoavelmente que nada de maior significado aconteceu do meio do século xix ao meio do século xx O autor segue dizendo que entre 1832 quando Austin deixou o posto de professor de Teoria do Direito na University College London e 1952 quando Hart foi indicado à cátedra de jurisprudence em Oxford o único desenvolvimento digno de nota deuse a partir da obra de Sir Henry Mane E ainda assim mesmo isso recebe nada mais do que uma dedicação limitadíssima até nos mais detalhados livros didáticos sobre teoria jurídica313 Postema faz coro à afirmação de Duxbury dizendo que a teoria jurídica europeia era um vilarejo sonolento satisfeito complacente dominado pela teoria jurídica austiniana314 Não é por menos portanto não é por acidente315 que após uma brevíssima introdução o primeiro passo de Hart em sua proposta de um conceito para aquilo a que chamamos Direito é oporse à definição dada anteriormente por John Austin Mas 313 Trecho livremente traduzidos a partir da seguinte passagem ANYONE who looks to textbooks on jurisprudence to understand the development of this subject in England might fairly conclude that nothing of great significance happened from the middle of the nineteenth century to the middle of the twentieth Between 1832 when John Austin resigned as the professor of jurisprudence at University College London UCL and 1952 when HLA Hart was appointed to the jurisprudence chair at Oxford the only English development of note seems to have been the work of Sir Henry Mainethough even this receives but scant treatment in the most detailed of English jurisprudence textbooks DUXBURY Neil English Jurisprudence between Austin and Hart Virginia Law Review vol 91 n 01 mar 2005 pp 0291 314 A sleepy contented complacent village dominated by Austinian jurisprudence POSTEMA Gerald J PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 11 Legal Philosophy in the Twentieth Century The Common Law World Nova York Springer 2011 p 03 315 This was no accident POSTEMA Gerald J PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 11 Legal Philosophy in the Twentieth Century The Common Law World Nova York Springer 2011 p 03 87 lembrese Hart não rejeitava a metodologia analítica de Austin ele próprio como vimos define seu livro como um ensaio analíticojurídico ao fazêlo em seu prefácio utiliza justamente o termo tipicamente austiniano analytical jurisprudence Este é o ponto Hart não rejeita a proposta descritiva de Austin mas a descrição por ele apresentada Como seu antecessor pretende ocuparse da clarificação das estruturas gerais do pensamento jurídico e não da crítica sobre o Direito ou política judiciária316 Isso passa por questões que dizem respeito às virtudes que Kramer chama de teoréticoexplanatórias em uma teoria analítica317 e Hart fruto de seu meio pretende fazêlo a partir de questões muito caras à filosofia analítica de Oxford318 a partir de questões que se podem classificar como relativas aos significados das palavras É nesse sentido que se pode brincar que a obra de Hart nasce de sua leitura dos dois John Austin John Austin o jurista de que tanto falamos aqui e John Austin o filósofo da linguagem ordinária John Langshaw J L Austin É com aportes no i John Austin filósofo da linguagem que Hart parte para rebater a definição analítica de Direito do ii John Austin filósofo do Direito São as deficiências do modelo simples de sistema jurídico que são produto da concepção imperativista do ii John Austin filósofo do Direito que Hart pretende superar a partir de uma análise linguística por ele exposta através da máxima de i J L Austin para quem uma consciência afiada das palavras possibilitam que se afie nossa percepção acerca dos fenômenos319 Hart compreende 316 The lawyer will regard the book as an essay in analytical jurisprudence for it is concerned with the clarification of the general framework of legal thought rather than with the criticism of law or legal policy HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p v 317 Theoreticalexplanatory virtues Cf KRAMER Matthew H H L A Hart Medford Polity 2018 p 13 318 A filosofia da linguagem ordinária era proeminente em Oxford local onde sob a influência de Ludwig Wittgenstein personificouse sobretudo em autores como J L Austin citado diretamente por Hart P F Strawson a quem Austin agradece expressamente no prefácio de The Concept of Law e Gilbert Ryle Além de ser impossível i abordala com o rigor que merece neste espaço também é impossível ii classificar esses autores de maneira uniforme taxativa Ainda que cada um desses pensadores de um modo ou outro tivesse o uso da linguagem ordinária como objeto de análise está longe de ser claro em que exatamente além disso o rótulo filósofo da linguagem ordinária acarreta sendo igualmente pouco claro que os vários pensadores assim chamados merecem ser reunidos sob a mesma classificação Seja como for para meus propósitos aqui basta que se entenda que aquilo a que se convencionou chamar de filosofia da linguagem ordinária com ou sem imprecisões era bastante popular em Oxford à época em que Hart lá ocupava a cátedra de jurisprudence Sua herança para com J L Austin será exposta aqui a partir dos insights do próprio Hart Para além do trecho livremente traduzido e citado nesta nota mais informações sobre J L Austin no belíssimo artigo de Guy Longworth para a Stanford Although each of these thinkers was sometimes concerned in one or another way with our use of ordinary language it is far from clear what in addition to that the label is supposed to entail And it is equally unclear that the various thinkers solabelled deserve to be grouped together Cf LONGWORTH Guy John Langshaw Austin In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2017 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesspr2017entriesaustinjl Acesso em 07 dez 2018 319 Trecho construído a partir de tradução livre e contextualizada da seguinte passagem In this field of study it is particularly true that we may use as Professor J L Austin said a sharpened awareness of words to sharpen our perception of the phenomena I am heavily and obviously indebted to other writers indeed much of the book is concerned with the deficiencies of a simple model of a legal system constructed along the lines of Austins 88 pois que somente uma atenção à linguagem jurídica permite uma melhor compreensão acerca do fenômeno social a que se refere essa linguagem evidentemente o Direito É por essa razão em obediência a essas premissas próprias que Hart estabelece desde o início aquela que seria uma distinção fundamental em sua análise a distinção entre os pontos de vista externo e interno que são ambos possíveis quando se trata de quaisquer que sejam as regras sociais observadas320 Não se pode compreender uma prática social que consista em seguir regras como é o caso do Direito sem que se compreenda como é essa prática a partir de seu ponto de vista interno ie o ponto de vista de alguém que aceita essa prática como guia de conduta Mais sobre isso será dito na medida em que se avance sobre as premissas e conclusões fundamentais de Hart o fundamental de início é que se tenha em mente qual é o propósito por trás de sua obra o desenvolvimento de uma teoria descritiva do Direito a partir de uma atenção dedicada à linguagem jurídica e a partir disso à atitude interna com relação à prática que aquilo a que chamamos Direito implica 211 O que é o Direito O que é o Direito Poucas questões relativas à sociedade humana têm sido levantadas com tanta persistência e respondidas por pensadores sérios de formas tão diversas estranhas e até paradoxais321 É dentro desse cenário que Hart coloca três questões fundamentais frequentes e persistentes três perguntas que traduzem em partes menores a pergunta maior ie O que é o Direito i O que diferencia o Direito de mera coerção ie ordens sustentadas por ameaças ii Quais são as relações semelhanças diferenças entre obrigações morais e jurídicas E finalmente iii o que são as regras sociais e em que medida o Direito é por elas constituído322 Em linhas gerais é isso que Hart enfrenta em seu Conceito Para iniciar suas reflexões exatamente a partir dessas perguntas o autor explora a ideia daquilo a que chama de imperative theory HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp vvi 320 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p v 321 Tradução livre da passagem que abre o primeiro capítulo de The Concept of Law FEW questions concerning human society have been asked with such persistence and answered by serious thinkers in so many diverse strange and even paradoxical ways HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 01 322 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 13 89 definição323 Há definições simples que nos são muito úteis ao expressarem determinados objetos a partir de ideias menos complexas que nos permitem substituilas exatamente por essas definições simples O exemplo de Hart é um triângulo cuja definição simples é algo como uma figura retilínea de três lados essa definição é o que permite que substituamos figura retilínea de três lados324 por justamente triângulo O ponto entretanto é que por mais úteis que sejam as definições simples não são sempre aplicáveis não o são com relação ao Direito e não o são em razão daquilo que as três perguntas destacadas por Hart todas elas subjacentes à grande pergunta O que é o Direito iluminam a de que nada suficientemente conciso a ponto de ser classificado como uma definição poderia servir de resposta satisfatória325 Ainda assim Hart considera ser possível estabelecer caracterizar e descrever elementos centrais que constituem uma parte comum326 àquilo que responde às três perguntas centrais na busca por um conceito de Direito E para melhor desenvolver esses elementos Hart considera necessário antes considerar detalhadamente as deficiências327 da teoria analíticojurídica até então dominante a de Austin segundo a qual na leitura do próprio Hart a chave para se compreender o Direito poderia ser encontrada na simples noção de uma ordem sustentada por ameaças a que o próprio Austin denominava um comando328 2111 As críticas de Hart à concepção imperativista Hart rejeita portanto qualquer possibilidade de uma definição simples para o conceito de Direito por decorrência lógica então deve também rejeitar qualquer teoria que entenda como uma tentativa do tipo Assim antes de apresentar sua proposta conceitual per se Hart propõese a confrontar a noção imperativista de Direito de matriz eminentemente 323 Definition 324 A threesided rectilinear figure 325 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 1317 326 It is possible to isolate and characterize a central set of elements which form a common part of the answer to all three questions HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 16 327 Deficiencies 328 Grifo meu e tradução livre da seguinte passagem What these elements are and why they deserve the important place assigned to them in this book will best emerge if we first consider in detail the deficiencies of the theory which has dominated so much English jurisprudence since Austin expounded it This is the claim that the key to the understanding of law is to be found in the simple notion of an order backed by threats which Austin himself termed a command HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 16 90 austiniana e dominante até então de uma definição conceitual para o Direito como este segundo a qual este seria constituído e identificável a partir de uma ordem de um soberano sustentada por uma ameaça em Austin como vimos temos comando e sanção Para enfrentala propõese primeiro a reconstruir os passos que poderiam levar à sua adoção Hart e sua preocupação com a questão linguística fica clara desde muito cedo começa por distinguir entre alguns tipos de imperativos e inicia suas reflexões ilustrando a partir do exemplo de um homem armado Um assaltante que diz ao funcionário de um banco Entregueme o dinheiro ou eu atiro329 está ordenando e não meramente pedindo ou menos ainda suplicando Ele ameaça se tiver sucesso podese dizer que coagiu o funcionário Sobre esse cenário Hart diferencia o verbo to order ordenar de give an order dar uma ordem sustentando que o segundo caso sugere uma espécie de direito uma espécie de autoridade ou competência para emitir ordens algo que não está presente no caso do assaltante330 Esse exemplo diz Hart não é o que se tem em mente quando se fala em comandos essa sim uma noção à qual subjaz o elemento de autoridade de que carece a ordem comum do assaltante Assim embora a teoria de Austin tenha elementos suficientes a ponto de satisfatoriamente diferenciar o Direito das meras ordens de um assaltante331 Hart entende que a compreensão austiniana acerca da palavra comando não transcende de forma clara a definição simples de ordem ameaça uma vez que aquele a quem compete emitir comandos detém autoridade sobre os comandados nem sempre é o caso de que quando um comando é emitido haja uma ameaça latente de dano no sentido de punição na hipótese de desobediência332 Seja como for o Direito pode começar a ser distinguido ainda que em sua definição simples da situação do homem armado a partir de três características i sua generalidade no sentido de que as condutas prescritas são gerais e aplicamse a uma classe geral de indivíduos dos quais se espera a observância dessas condutas333 ii seu caráter persistente no sentido de que diferentemente das ordens dadas pelo assaltante as leis são 329 Hand over the money or I will shoot 330 HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 19 331 Austin estava ciente das diferenças entre os comandos de um soberano e os ditames de um homem armado Austin was aware of the dissimilarities between a sovereigns commands and a gunmans dictates Cf KRAMER Matthew H H L A Hart Medford Polity 2018 p 35 332 Em tradução livre de it need not be the case where a command is given that there should be a latent threat of harm in the event of disobedience HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 20 333 HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 2122 91 promulgadas com a pretensão de que sua observância seja contínua334 ao longo do tempo335 e finalmente iii seguindo a Austin o hábito de obediência por parte daqueles que obedecem àquele a quem compete a criação legislativa que é internamente supremo e externamente independente336 em outras palavras austinianas o soberano que é obedecido em seu território e não obedece a nenhum outro soberano embora Hart diga que por mais essencial que essa característica seja para diferenciar o Direito do exemplo do assaltante é uma noção como muitos outros aspectos do Direito essencialmente vaga ou imprecisa337 Então diz Hart seguindo a Austin se tomarmos isso como verdadeiro e chamarmos à pessoa ou grupo supremo e independente de soberano as leis de qualquer país serão as ordens gerais sustentadas por ameaças proferidas pelo soberano ou seus subordinados338 Isso contudo traz alguns problemas nas palavras de Hart uma série de objeções339 por ele sintetizadas uma vez mais a partir de três principais pontos Primeiro esse modelo clássico baseado em ordens sustentadas por ameaças está muito relacionado a uma ideia de que as leis impõem inexoravelmente deveres como se todas as leis fossem da mesma espécie das que encontramos mais facilmente nas esferas específicas da responsabilidade civil340 e do direito penal O modelo de definição simples não parece ser capaz de abarcar em suas dimensões a existência de regras que conferem poderes341 e atribuições isto é leis que regulam uma série de aspectos de nossas vidas e nossa prática jurídica que não impõem sanções em hipóteses de desobediência ao cumprimento de um dever legalmente exigido342 É o caso por exemplo de regras que definem competências legislativas e jurídicas ou mesmo diretrizes que regulam atividades da vida privada eg contratos testamentos etc 334 É claro que há a possibilidade de digamos revogação legislativa O ponto de Hart é que a ordem do assaltante perde sua raison dêtre uma vez que obedecida e portanto satisfeita no ato algo que não se observa num sistema legal 335 HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 23 336 Internally supreme and externally independent 337 We shall call this here following Austin a general habit of obedience and note with him that like many other aspects of law it is an essentially vague or imprecise notion Yet in this fact of general obedience lies a crucial distinction between laws and the original simple case of the gunmans order HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 2324 25 338 If following Austin we call such a supreme and independent person or body of persons the sovereign the laws of any country will be the general orders backed by threats which are issued either by the sovereign or subordinates in obedience to the sovereign HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 25 339 A crowd of objections 340 Tort 341 Powerconferring rules 342 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 2742 92 Segundo o modelo simples ao conceber o Direito como alguém ou um grupo dando uma ordem a alguém ou um grupo ignora um importante aspecto característico ao Direito a de que as leis são igualmente aplicáveis àqueles que legislam Não se pode portanto conceituar o Direito adequadamente a partir de uma noção que implique a imposição de diretrizes de forma vertical de cima para baixo343 Essa imagem segundo Hart embora seja atrativa em sua simplicidade só poderia ser reconciliado com a realidade a partir de uma distinção artificial entre duas pessoas diferentes de um ponto de vista metafórico o legislador como uma pessoa em sua esfera oficial e em sua esfera privada uma pessoa diferente Agindo dentro de sua primeira esfera o legislador cria uma lei que impõe obrigações a outras pessoas incluindo a sua própria na esfera privada344 Em termos mais simples Hart quer dizer que o modelo clássico levarnosia a conceber o legislador como uma espécie de soberano hobbesiano ao não dar conta da noção de que a aplicação das leis e suas previsões recaem igualmente sobre aqueles que legislam Terceiro por fim Hart argumenta no sentido de que o modelo de ordensameaças dá a entender a possibilidade de que se verifique exatamente quando e onde uma lei em sentido lato foi criada se o conteúdo do Direito são nada mais que ordens é natural que se possa identificar o tempo e o lugar de sua promulgação345 Não é o caso do Direito como ele de fato funciona uma vez que especialmente no common law346 é plenamente possível identificar algo no exemplo de Hart exatamente os costumes como Direito sem que contudo seja igualmente possível localizar sua origem exata Em um sistema jurídico cuja teoria clássica fala em costumes imemoriais parece mesmo bastante difícil conciliar a ideia de um conceito definido a partir da noção de ordens com a realidade jurídica de facto É verdade alguém poderia argumentar que o costume só se torna parte do Direito efetivamente uma vez que reconhecido e sobretudo aplicado por um órgão oficial Hart rapidamente enfrenta essa objeção Seu primeiro ponto diz que i não é necessariamente o caso de que costumes só adquiram status realmente jurídico quando invocados pela primeira vez em um caso concreto se é verdade que as cortes reconhecem como vinculante o princípio segundo o 343 Toptobottom 344 Grifos meus e tradução livre da seguinte passagem This vertical or toptobottom image of lawmaking so attractive in its simplicity is something which can only be reconciled with the realities by the device of distinguishing between the legislator in his official capacity as one person and in his private capacity as another Acting in the first capacity he then makes law which imposes obligations on other persons including himself in his private capacity HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 42 345 Parece estranho falar em promulgação quando se está a falar de ordens Talvez isso acabe por em maior ou menor grau conferir ainda mais razão a Hart 346 O ponto pareceme ser de todo modo amplamente válido uma vez que até mesmo os livros didáticos sobre o sistema romanogermânico mencionam os costumes como fonte de Direito 93 qual é Direito aquilo que é promulgado por uma legislatura competente por que não poderia ser verdade que as cortes reconhecessem igualmente um princípio geral a partir do qual determinados costumes de um determinado tipo também sejam Direito Além disso como um segundo ponto Hart ainda diz que ii mesmo que se conceda o ponto de que um costume só se torna jurídico ao ser aplicado parece muito difícil interpretar esse reconhecimento por parte da corte como um à la Austin comando tácito do soberano347 É com base principalmente nesses argumentos que Hart entende que o modelo de ordens sustentadas por ameaças obscurece mais do que revela sobre o Direito O esforço necessário para reduzir o fenômeno jurídico em toda sua variedade a essa forma única e simples acabaria por impor forçosamente uma uniformidade espúria348 Assim é por razões como essas que Hart encerra sua crítica fatal à definição simples trazendo aquele que seria conceito importantíssimo à sua teoria jurídica Austin lembremos349 definia ao menos nesse aspecto seguindo a seu mestre Bentham o soberano como uma pessoa ou grupo de pessoas cuja soberania sustentavase a partir dos hábitos de obediência dos membros da comunidade em questão O problema disso aponta Hart é que essa definição é incapaz de levar em conta qualquer possibilidade de mudança de soberania de modo que um eventual novo soberano estaria obrigado a esperar pela constituição e perfectibilização de uma obediência habitual agora a ele e não mais a seu antecessor Hart ilustra isso a partir do exemplo da transição entre o governo de um monarca por ele chamado de Rex ao de outro Rex II até que se caracterizasse um novo hábito uma definição simples de Direito enquanto ordens obrigarnosia a aceitar um interregno no qual nenhuma nova lei poderia ser promulgada350 Um simples hábito de obediência é muito diferente do que significa seguir uma regra Hábitos é verdade parecemse com regras sociais em alguns aspectos mas diferemse destas em três importantes questões i para a constituição de um hábito basta que haja convergência de comportamento entre os membros de grupo mas essa identidade de comportamento não é suficiente para constituir a existência de uma regra que exige esse tipo de comportamento Além disso ii onde há regras não há somente eventuais críticas na hipótese de desvio do comportamento exigido esse desvio por 347 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 4449 348 Tradução livre de the model of orders backed by threats obscures more of law than it reveals the effort to reduce to this single simple form the variety of laws ends by imposing upon them a spurious uniformity HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 49 349 Cf p 72 desta pesquisa 350 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 5154 94 si constitui já uma boa razão para que essa crítica seja feita porque no caso das regras essa crítica é considerada justificada legítima Ainda e mais importante Hart retoma o ponto e introduz acerca das regras iii a ideia do aspecto interno das regras Quando um hábito é geral em um grupo social essa generalidade é meramente um fato acerca do comportamento observável de maior parte do grupo Para que haja tal hábito nenhum membro do grupo precisa pensar sobre o comportamento geral ou mesmo saber que o comportamento em questão é geral menos ainda é necessário qualquer esforço para ensinar este hábito ou mesmo que sua manutenção seja planejada É suficiente que cada membro do grupo por sua vez comportese do modo que os outros também se comportam 351 Por outro lado para que uma regra social exista é necessário ao menos que alguns observem o comportamento em qüestão como um padrão geral que deve ser seguido pelo grupo como um todo Uma regra social tem um aspecto interno que se soma ao aspecto externo que compartilha com um hábito social que consiste no comportamento uniforme e regular que qualquer observador seria capaz de notar352 Hart ilustra seu ponto a partir do exemplo das regras de um jogo de xadrez cujo aspecto interno poderia ser traduzido na seguinte ideia um observador externo poderia descrever os jogadores movendo suas peças como indivíduos que compartilham hábitos similares Evidentemente não se trata disso Esse observador externo precisamente porque externo não leva em conta a atitude dos jogadores em relação aos movimentos que escolhem às suas peças não é capaz de perceber a crítica atitude reflexiva que os jogadores têm com relação a esse modelo de comportamento subjacente ao jogo por eles entendido como um padrão um standard a ser seguido por todos que eventualmente joguem o jogo As regras são vinculantes353 É essa aparente inflexão que autoriza Hart a resolver o problema do interregno levantado pelo próprio modelo de hábitos de obediência Para Hart o soberano em 351 Tradução livre da seguinte passagem When a habit is general in a social group this generality is merely a fact about the observable behaviour of most of the group In order that there should be such a habit no members of the group need in any way think of the general behaviour or even know that the behaviour in question is general still less need they strive to teach or intend to maintain it It is enough that each for his part behaves in the way that others also in fact do HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 56 352 Tradução livre e contextualizada da seguinte passagem By contrast if a social rule is to exist some at least must look upon the behaviour in question as a general standard to be followed by the group as a whole A social rule has an internal aspect in addition to the external aspect which it shares with a social habit and which consists in the regular uniform behaviour which an observer could record HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 56 353 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 5657 95 qualquer sistema jurídico sofisticado é constituído precisamente pela ideia das regras As pessoas responsáveis pelas tarefas legislativas ocupam cargos offices e não são soberanas elas próprias354 As regras são constitutivas do soberano e não meramente coisas que temos de mencionar em uma descrição dos hábitos de obediência ao soberano355 Em síntese Hart sustenta que as regras sociais compreendem um padrão aceito pelos membros que constituem o grupo social ao qual essas regras dizem respeito e que essa noção de regra explica o Direito de forma muito mais adequada que uma definição simples que gravita em torno das noções de soberania ordem e ameaça As regras transcendem essas ideias e para Hart podem explicar as lacunas deixadas pelas insuficiências da definição clássica eg a ideia de que as regras são igualmente aplicáveis em relação àqueles que as produzem e a dificuldadeimpossibilidade de localização da origem de uma regra do ponto de vista temporal ou geográfico É com essa proposta de regras portanto que Hart rejeita a concepção clássica imperativista e passa aos elementos centrais enfim de seu conceito de Direito 2112 Regras primárias e secundárias A razão pela qual Hart desconstrói a proposta austiniana não é meramente acadêmica a definição clássica era incapaz de levar adequadamente em conta a normatividade do Direito e das instituições de um sistema jurídico moderno356 É por isso que a referência a Austin é necessária para a ilustração do cenário a partir do qual Hart desenvolve o seu próprio conceito de Direito Como visto uma de suas críticas à definição simples era a de que tal definição era incapaz de levar em conta algumas características fundamentais de um sistema jurídico características que devem necessariamente transcender as meras noções de ordem e sanção precisamente para que esse sistema possa ser enfim e efetivamente jurídico Assim Hart começa sua proposta por enumerar três problemas fundamentais inerentes a um fenômeno legal estruturado sob o modelo de uma clássica definição simples Hart imagina uma comunidade um grupo de indivíduos vivendo sob um sistema de regras centrado somente na questão de comandos em sua clássica definição Esse seria para 354 Esse ponto tem relação com o ponto anterior que faz uma distinção analítica metafórica entre a pessoa privada e a pessoa oficial do legislador 355 Tradução livre The rules are constitutive of the sovereign not merely things which we should have to mention in a description of the habits of obedience to the sovereign HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 76 356 Cf KRAMER Matthew H H L A Hart Medford Polity 2018 p 36 96 Hart um sistema baseado em padrões autônomos apartados e independentes um do outro sem qualquer critério capaz de unificalos ou tornalos um sistema genuíno Sendo assim qualquer dúvida que surgisse acerca do conteúdo dessas regras ou mesmo acerca de seu alcance estaria desprovida de qualquer procedimento ou instância capaz de solucionála Não haveria qualquer possibilidade de esclarecimento através de referência a um texto dotado de autoridade ou a um oficial cujas declarações fossem dotadas de autoridade precisamente porque tanto i esse procedimento per se quanto ii o próprio reconhecimento de um critério a funcionar como instância regulatória no caso de dúvidas exigiriam a existência de regras de um tipo diferente daquele que define as regras de obrigação ou dever que são ex hypothesi tudo que esse grupo em questão tem357 Assim o primeiro problema identificado por Hart em um sistema jurídico hipoteticamente austiniano seria a possibilidade de incerteza358 com relação às regras estabelecidas sua identificação conteúdo escopo e alcance Esse não é o único defeito359 latente em um cenário no qual as únicas regras são aquelas que sustentadas por sanções impõem deveres Hart alude ainda ao caráter eminentemente estático desse protossistema uma vez que a adaptação das regras às circunstâncias da realidade seja através da eliminação de regras antigas ou da introdução de regras novas também pressupõe a existência de regras de um tipo diferente das regras primárias de obrigação unicamente pelas quais essa sociedade hipotética vive360 Finalmente o terceiro defeito fundamental de um protossistema jurídico de ordens e ameaças seria a ineficiência da difusa pressão social por meio da qual se mantém as regras Hart considera que eventuais violações de uma regra admitida enquanto tal serão sempre objeto de disputa num sentido de que será sempre discutível se tal violação efetivamente ocorreu ou não partindo desse pressuposto seu argumento da ineficiência quer dizer que essas disputas seriam contínuas e intermináveis caso não houvesse uma agência especializada dotada da autoridade de confirmar final e autoritativamente a ocorrência ou 357 Tradução livre de such a procedure and the acknowledgement of either authoritative text or persons involve the existence of rules of a type different from the rules of obligation or duty which ex hypothesi are all that the group has HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 92 358 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 9192 359 Defect 360 Original Adapting the rules to changing circumstances either by eliminating old rules or introducing new ones presupposes the existence of rules of a different type from the primary rules of obligation by which alone the society lives HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 93 97 não da suposta violação Essa agência esse órgão naturalmente pressupõe a existência de outras regras sociais que não se caracterizam pelo binômio ordemameaça361 São esses portanto os três defeitos inerentes e intrínsecos de uma estrutura social baseada na definição simples de Direito a i incerteza o ii caráter estático e a iii ineficiência e é naquilo que apresenta como a solução desses problemas que Hart inaugura um dos elementos mais centrais de seu conceito de Direito Uma vez que cada solução para cada um dos defeitos traz em si elementos tipicamente jurídicos cada uma delas pode significar um passo do mundo préjurídico ao mundo jurídico362 sendo assim é a soma dessas três soluções que faz desse protossistema um sistema jurídico de facto Em sentido amplo é possível dizer com Hart que aquilo que torna verdadeiramente legal um sistema baseado regras primárias de obrigação é sua complementação com as regras secundárias que são regras de outro tipo Em Hart finalmente podemos definir o Direito como uma união de regras primárias de obrigação com essas regras secundárias363 em Hart os sistemas jurídicos não consistem apenas em regras mas são também igualmente fundados nelas364 Shapiro em uma frase que diz ter ouvido de Jeremy Waldron diz que enquanto para Bentham e Austin o soberano faz as regras para Hart as regras fazem o soberano365 A solução para o primeiro problema o problema da incerteza é de tal importância que o tema será tratado com mais vagar no item subsequente seja como for e até em obediência à linha de raciocínio desenvolvida por Hart em The Concept of Law já a adianto aqui A solução para a incerteza de um sistema baseado somente em regras primárias está na introdução daquilo a que Hart chama de regra de reconhecimento rule of recognition a regra que define o critério que especifica as características que uma vez 361 Parágrafo construído a partir de uma tradução livre e contextualizada da seguinte passagem The third defect of this simple form of social life is the inefficiency of the diffuse social pressure by which the rules are maintained Disputes as to whether an admitted rule has or has not been violated will always occur and will in any but the smallest societies continue interminably if there is no agency specially empowered to ascertain finally and authoritatively the fact of violation HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pós escrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 94 362 Prelegal legal 363 A union of primary rules of obligation with such secondary rules HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 94 364 Nas palavras de Scott Shapiro esse é um dos elementos centrais na compreensão de The Concept of Law One of the principal lessons of The Concept of Law is that legal systems are not only comprised of rules but founded on them as well Cf SHAPIRO Scott J What Is the Rule of Recognition And Does It Exist In ADLER Matthew HIMMA Kenneth Einar eds The Rule of Recognition and the US Constitution Oxford Oxford University Press 2009 pp 235268 365 Tradução livre para in sharp contrast to Bentham and Austin who had insisted that the sovereign makes all of the rules Hart argued instead that the rules make the sovereign Shapiro diz ter ouvido a frase de Waldron I once heard Jeremy Waldron describe Harts inversion of Austin in this way SHAPIRO Scott J What Is the Rule of Recognition And Does It Exist In ADLER Matthew HIMMA Kenneth Einar eds The Rule of Recognition and the US Constitution Oxford Oxford University Press 2009 pp 235268 98 presentes em determinada regra indicam de forma conclusiva que essa regra em questão é uma regra jurídica366 Em termos mais simples podese dizer que essa regra de reconhecimento para Shapiro uma regra sobre regras 367 para Postema uma regra de identificação368 é a que determina que define autoritativa e finalmente quais são as regras vinculantes que fazem parte do sistema jurídico de modo que qualquer questão relativa à existência de uma regra possa ser resolvidas sem a necessidade de engajamento em deliberação negociação ou persuasão369 É assim que a regra de reconhecimento surge pois como uma solução à incerteza inerente a um protossistema jurídico enquanto regra secundária é uma espécie de metaregra uma regra a partir da qual as demais regras do sistema jurídico são derivadas e definidas como regras jurídicas É a regra de reconhecimento que introduz ainda que de forma embrionária finalmente a ideia de um sistema jurídico isso porque a partir de sua harmonia sob a regra de reconhecimento as regras não mais constituem uma série desconexa são unificadas Hart complementa seu ponto dizendo que isso é assim porque é na simples operação a partir da qual se identifica uma determinada regra como possuidora da característica fundamental de ser um elemento em uma lista autoritativa de regras que temos o germe da ideia de validade jurídica370 A regra de reconhecimento então soluciona o problema da incerteza O problema do caráter estático de um protossistema por sua vez é solucionado na emergência de outro tipo de regras secundárias as chamadas rules of change que poderiam ser traduzidas por regras de mudança ou regras de modificação Como o nome já indica são essas as regras que permitem que um indivíduo ou grupo de pessoas introduza novas regras primárias que 366 This the rule of recognition will specify some feature or features possession of which by a suggested rule is taken as a conclusive affirmative indication that it is a rule of the group to be supported by the social pressure it exerts HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 94 367 Cf SHAPIRO Scott J What Is the Rule of Recognition And Does It Exist In ADLER Matthew HIMMA Kenneth Einar eds The Rule of Recognition and the US Constitution Oxford Oxford University Press 2009 pp 235268 368 A rule of identification POSTEMA Gerald J PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 11 Legal Philosophy in the Twentieth Century The Common Law World Nova York Springer 2011 369 Legal systems address the problem of uncertainty by providing a rule which determines which rules are binding By referring to this rule about rules what Hart termed the rule of recognition normative questions can be resolved without engaging in deliberation negotiation or persuasion SHAPIRO Scott J What Is the Rule of Recognition And Does It Exist In ADLER Matthew HIMMA Kenneth Einar eds The Rule of Recognition and the US Constitution Oxford Oxford University Press 2009 pp 235268 370 Grifos meus Tradução livre e contextualizada da seguinte passagem By providing an authoritative mark it introduces although in embryonic form the idea of a legal system for the rules are now not just a discrete unconnected set but are in a simple way unified Further in the simple operation of identifying a given rule as possessing the required feature of being an item on an authoritative list of rules we have the germ of the idea of legal validity HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 95 99 conduzam a vida da comunidade ou de uma classe dela e elimine regras antigas371 Há nesse sentido uma conexão próxima entre essas regras e a regra de reconhecimento onde aquelas existirem esta deverá necessariamente incorporar uma referência à legislação como uma característica identificativa das regras372 A regra de reconhecimento portanto deve necessariamente definir autoritativamente a existência de um sistema legislativo do contrário as regras de mudança não fariam parte do sistema jurídico uma vez que é a regra de reconhecimento que no limite determina quais são essas regras que pertencem ao sistema Solucionados os problemas da incerteza e do caráter estático inerentes a um sistema formado somente por regras primárias restaria ainda o problema da ineficiência da pressão social que reforça as regras uma vez que havendo apenas regras primárias não há qualquer critério por meio do qual seja possível verificar e estabelecer de forma definitiva se houve ou não uma possível violação As regras secundárias que solucionam esse problema são as rules of adjudication as regras de julgamento ou regras de decisão judicial Hart caracteriza essas regras como aquelas que conferem a determinados indivíduos o poder de estabelecer determinações autoritativas ie decidir acerca da questão de se em uma ocasião particular uma regra primária foi violada373 Hart segue dizendo que além de identificar os indivíduos responsáveis por julgardecidir essas regras também definem o procedimento a ser seguido são as rules of adjudication portanto que além de centralizar as sanções oficiais de um sistema legal374 definem um grupo de importantes conceitos jurídicos nesse caso os conceitos de juiz ou corte de jurisdição e julgamento375 Em síntese portanto é possível dizer que são três os problemas essenciais inerentes a um protossistema jurídico composto apenas por regras primárias p1 a incerteza p2 o caráter estático e p3 a ineficiência de sua pressão social Igualmente são três as soluções que somadas na medida em que resolvem os problemas de um protossistema inauguram 371 É então a regra que nos termos originais de Hart empowers an individual or body of persons to introduce new primary rules for the conduct of the life of the group or of some class within it and to eliminate old rules HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 95 372 Plainly there will be a very close connection between the rules of change and the rules of recognition for where the former exists the latter will necessarily incorporate a reference to legislation as an identifying feature of the rules HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 96 373 Tradução livre e com acréscimos igualmente livres da seguinte passagem secondary rules empowering individuals to make authoritative determinations of the question whether on a particular occasion a primary rule has been broken HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 96 374 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 98 375 These rules define a group of important legal concepts in this case the concepts of judge or court jurisdiction and judgment HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 97 100 também a ideia de um sistema jurídico autêntico composto também por regras secundárias que são exatamente a solução aos problemas de um sistema que delas carece s1 a regra de reconhecimento s2 as regras de modificação e s3 as regras de julgamentodecisão judicial É tanto por sua complexidade quanto por sua importância que Hart dedica mais algumas páginas especificamente à regra de reconhecimento E é por essas razões todas incluindo a opção do autor que opto por também discutila aqui com um cuidado um pouco maior 2113 Regra de reconhecimento A regra de reconhecimento regra secundária que soluciona a incerteza subjacente a um protossistema jurídico é como visto uma metaregra a partir da qual as demais regras do sistema jurídico são derivadas é como bem define Shapiro a regra sobre regras de um dado sistema jurídico A regra de reconhecimento é de tal importância que merece um tópico especificamente dedicado a ela não apenas importantes elementos da teoria hartiana emergem de sua adequada compreensão compreender o positivismo contemporâneo e suas teses passa por entender a regra de reconhecimento Hart diz que onde quer que uma regra tal de reconhecimento seja aceita tanto os cidadãos quanto os officials376 do sistema jurídico dispõem de critérios autoritativos a partir dos quais se pode identificar as regras primárias de obrigação377 Esses critérios podem adquirir substância através de diversas formas referências a um determinado texto autoritativo a promulgações legislativas à práticas de costumes a declarações gerais de pessoas especificadas ou a decisões pretéritas em casos particulares378 Isso revela por si o caráter complexo da regra de reconhecimento em sistemas jurídicos modernos complexidade que se torna ainda maior quando percebemos que na maioria das vezes isto é na maioria dos sistemas jurídicos que se verificam na prática para além de uma especulação 376 O termo original officials é de difícil tradução Nas edições brasileiras geralmente temos funcionários mas officials pareceme ter um significado mais includente do que sua tradução comum para o português tende a expressar uma vez que inclui todos aqueles que são efetivamente participantes da prática jurídica Isso inclui funcionários em sentido estrito juízes advogados etc 377 Wherever such a rule of recognition is accepted both private persons and officials are provided with authoritative criteria for identifying primary rules of obligation HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 100 378 Reference to an authoritative text to legislative enactment to customary practice to general declarations of specified persons or to past judicial decisions in particular cases HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 100 101 meramente analíticaconceitual a regra de reconhecimento não é uma regra disposta como é o caso de por exemplo uma regra escrita sua existência é demonstrada na forma através da qual regras particulares são identificadas379 Aqui se torna importante a distinção de Hart entre os pontos de vista externo e interno aquele que utiliza a regra de reconhecimento ao assim fazêlo manifesta sua própria aceitação dessa regra como guia Há assim uma atitude geral e compartilhada de deferimento à regra de reconhecimento380 Na medida em que i a regra de reconhecimento é uma regra cuja função é estabelecer os critérios pelos quais se pode identificar se outra regra é ou não parte de um sistema jurídico e ii é comum que nesse tipo de sistema haja uma série desses critérios é possível dizer que i a regra de reconhecimento é a regra última381 ultimate rule de um sistema e ii há sempre um critério supremo supreme criterion Um critério de identificação de validade ou fonte jurídica que como não poderia ser diferente está na regra de reconhecimento é supremo se as regras identificáveis a partir de uma referência a esse critério são reconhecidas como regras do sistema ainda que entrem em conflito com outras regras identificáveis a partir de referência a outro critério hipótese na qual são essas últimas que deixam de ser reconhecidas enquanto tais382 Uma explicação em termos mais simples ao lado de um exemplo pode clarificar o conceito O critério supremo é um dos critérios presentes na regra de reconhecimento que é superior aos demais na hipótese de um conflito no Reino Unido o critério supremo é o ato de promulgação no Parlamento em caso de conflito entre a lei promulgada e digamos um costume local ou geral do common law prevalece o ato do Parlamento Nas palavras de Hart Onde uma legislatura não se sujeita a limitações constitucionais de modo que suas promulgações podem tirar o caráter de lei de qualquer outra regra que emane de outra fonte é parte da regra de reconhecimento desse sistema que a promulgação legislativa é o critério supremo de validade 383 379 Tradução livre e contextualizada da seguinte passagem For the most part the rule of recognition is not stated but its existence is shown in the way in which particular rules are identified HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 101 380 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 102 381 No sentido de definitiva suprema termo que optei por não utilizar para evitar possíveis confusões 382 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 106 383 Tradução livre da seguinte passagem For where there is a legislature subject to no constitutional limitations and competent by its enactment to deprive all other rules of law emanating from other sources of their status as law it is part of the rule of recognition in such a system that enactment by that legislature is the supreme criterion of validity HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 106 102 Por sua vez a regra de reconhecimento é a ultimate rule do sistema porque simplesmente não se pode ir além dela O ponto porém é que a distinção é feita para que não se confunda o critério supremo com a regra de reconhecimento No exemplo anterior isso seria como dizer que na Inglaterra a regra de reconhecimento qua regra de reconhecimento é lei é aquilo que o Parlamento promulga Não é o caso esse é o critério supremo mas está na regra de reconhecimento regra esta que lembremos não é declarada expressamente mas se mostra na prática A regra de reconhecimento portanto não é uma regra transcendental ou uma regra pressuposta mas uma regra social que existe porque praticada384 Na definição de Ronald Dworkin alguém que como veremos mais tarde rejeita peremptoriamente as teses de Hart Hart entendia que em qualquer sistema jurídico em qualquer comunidade na qual há proposições jurídicas a maior parte dos officials dessa comunidade aceita como uma espécie de convenção uma regra mestra de reconhecimento que identifica quais fatos tornam essas proposições verdadeiras385 Essa regra pode variar de sistema para sistema uma convenção pode identificar atos legislativos e precedentes como a fonte de proposições jurídicas verdadeiras tanto quanto outra em outro sistema pode identificar os costumes por exemplo A forma que toma a convenção em qualquer comunidade particular é uma questão de fato social tudo passa por aquilo que a maior parte dos officials da comunidade acaba por concordar como sendo o teste último386 A definição de Dworkin é verdadeira a regra de reconhecimento sendo um padrão público comum é uma regra convencional e assim o é exatamente porque fundada em uma prática convergente entre juízes e outros officials do sistema jurídico387 Joseph Raz elenca seis considerações sobre a regra de reconhecimento tal como desenvolvida por Hart Além de uma excelente síntese os seis pontos de Raz permitem que se faça uma transição muito oportuna entre a regra de reconhecimento do ponto de vista conceitual e suas implicações teóricas que aqui me são importantes Os pontos são i A regra de reconhecimento é uma regra que exige que aqueles que compõem o sistema jurídico 384 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 107110 GREEN Leslie Legal Positivism In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesspr2018entrieslegal positivism Acesso em 21 dez 2018 385 Hart thought that in every community in which claims of law are made the great bulk of the officials of the community all accept as a kind of convention some master rule of recognition that identifies which historical or other facts or event make claims of law true DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 p 163 386 What form the convention takes in any particular community is a matter of social fact everything turns on what the bulk of the officials in that community happen to have agreed on as the master test DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 p 164 387 Cf MACCORMICK Neil H L A Hart 2 ed Stanford Stanford University Press 2008 p 132 103 enquanto membros388 apliquem as regras identificáveis a partir do critério de validade por ela exposto ii Todo sistema jurídico tem ao menos uma regra de reconhecimento iii Nenhum sistema jurídico tem mais de uma regra de reconhecimento iv Toda regra de reconhecimento é aceita e praticada pelos officials do sistema jurídico de que faz parte v Os officials ainda que a observem e devem observála aplicando as regras que dela são derivadas não precisam necessariamente aprovala como uma regra intrinsecamente boa ou moralmente justificável vi Um sistema jurídico é constituído por sua regra de reconhecimento e todas as demais regras identificáveis a partir dela389 2114 Direito e moral em H L A Hart A regra de reconhecimento em Hart é o elemento central para a formulação em seus termos de uma daquelas que se entendem como as grandes teses do positivismo moderno a tese das fontes sociais Não é difícil compreender por que se i as regras jurídicas e a própria regra suprema são regras sociais e ii é essa regra suprema que determina os critérios a partir do quais as demais regras são derivadas disso seguese que a validade de determinada proposição jurídica ou melhor para que qualquer proposição seja efetivamente jurídica está atrelada a uma fonte social a regra de reconhecimento uma regra social que existe essencialmente porque praticada pelos officials do sistema a que pertence O próprio Hart torna isso muito claro ao dispor quais são as condições mínimas suficientes e necessárias para que um sistema seja qualificado como um sistema jurídico de um lado as regras de comportamento que são válidas de acordo com o critério último do sistema devem ser geralmente obedecidas de outro as regras de reconhecimento especificando os critérios de validade jurídica nesse sistema bem como suas regras de modificação e julgamento devem ser todas elas efetivamente aceitas pelos officials como padrões públicos de comportamento oficial390 A primeira condição ie a obediência generalizada por parte dos destinatários das regras primárias válidas é a única que os 388 Officials Ver n 365 supra 389 O ponto em RAZ Joseph Practical Reason and Norms Oxford Oxford University Press 2002 p 146 390 There are therefore two minimum conditions necessary and sufficient for the existence of a legal system On the one hand those rules of behaviour which are valid according to the systems ultimate criteria of validity must be generally obeyed and on the other hand its rules of recognition specifying the criteria of legal validity and its rules of change and adjudication must be effectively accepted as common public standards of official behaviour by its officials HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 116 104 cidadãos em sua esfera privada precisam satisfazer sua obediência pode darse pelo motivo que for mas qualquer sociedade que funcione é composta por cidadãos que de maneira geral aceitam essas regras como padrões comuns de comportamento e reconhecem uma obrigação de obedecêlos ou mesmo identificam essa obrigação a outra mais geral de obediência à constituição391 A segunda condição por sua vez deve ser satisfeita pelos officials São eles que devem considerar essas regras como padrões públicos de comportamento oficial e considerar criticamente como lapsos qualquer desvio eventual de sua parte ou da parte alheia392 Havendo cooperação aquiescência generalizada por parte dos cidadãos a aceitação de uma regra pelos officials que a aplicam é suficiente para a existência do sistema a aceitação convencional dos cidadãos ordinários é dispensável é inclusive raro que cidadãos comuns destinatários das regras jurídicas tenham conhecimento acerca do funcionamento da regra de reconhecimento393 Essa exposição acerca das condições suficientes e necessárias para a existência de um sistema jurídico moderno sintetizam os pressupostos todos da teoria de Hart abordados até aqui as críticas às definições simples uma rejeição a um modelo de sistema jurídico baseado em ordens e ameaças bem como os conceitos de regras primárias e secundárias assim explicam a tese das fontes sociais ao demonstrar que a validade das regras passam por uma regra suprema que em si é uma regra social Essa concepção de Direito acaba por pressupor outras teses expressamente assumidas por Hart sendo uma delas traduzida exatamente em um dos elementos identificados por Raz em seu comentário sobre a regra de reconhecimento a ideia de que a aprovação moral por parte dos officials não é um pressuposto necessário para a existência de um sistema jurídico e a validade de suas regras Dito de outro modo ao estabelecer a tese das fontes tal como fez Hart também acabou por estabelecer outra tese positivista a tese da separabilidade Hart inicia suas reflexões sobre as relações entre Direito e moral colocando ênfase no plural por considerar impossível o estabelecimento de uma a relação entre Direito e moral 391 The first condition is the only one which private citizens need satisfy they may obey each for his part only and from any motive whatever though in a healthy society they will in fact often accept these rules as common standards of behaviour and acknowledge an obligation to obey them or even trace this obligation to a more general obligation to respect the constitution HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 116117 392 The second condition must also be satisfied by the officials of the system They must regard these as common standards of official behaviour and appraise critically their own and each others deviations as lapses Of course it is also true that besides these there will be many primary rules which apply to officials in their merely personal capacity which they need only obey HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 117 393 Cf POSTEMA Gerald J PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 11 Legal Philosophy in the Twentieth Century The Common Law World Nova York Springer 2011 p 320 105 dizendo que parece ser inegável o fato de que historicamente o desenvolvimento do Direito em todas suas épocas e lugares sofreu profundas influências daquilo que constitui a moral em sentido amplo foi influenciado tanto pela moralidade convencional expressada através dos ideais de grupos sociais particulares quanto pelas formas iluminadas de crítica moral de indivíduos cujo horizonte moral transcendeu a moralidade vigente comum394 Agora é precisamente por encarar essa premissa como um truísmo que Hart faz questão de dizer que é preciso cuidado para que não se derive dela uma proposição distinta Notadamente a de que um sistema jurídico deve exibir uma conformidade específica com a moralidade ou a justiça ou deve estabelecerse a partir de uma ampla e difusa convicção de que há uma obrigação moral de obedecê lo Embora isso possa ser em alguma medida verdadeiro disso não se segue que os critérios de validade jurídica de leis particulares utilizados em um sistema jurídico devem incluir tácita senão explicitamente uma referência à moralidade ou à justiça395 É a partir disso que Hart finalmente pela primeira vez expõe o que entende por positivismo jurídico396 a simples alegação de que não é de forma alguma uma verdade necessária que as leis reproduzam ou satisfaçam certas demandas da moralidade ainda que assim o tenham feito com frequência397 Hart está em suma dizendo o seguinte é verdade que i é possível verificar empiricamente que os sistemas jurídicos ao longo dos tempos foram em maior ou menor grau influenciados por proposições critérios ideais morais e que ii com é possível dizer que as leis em geral e com certa frequência satisfazem critérios morais isso não quer dizer que satisfazer esses critérios morais seja um pressuposto necessário para a validade de um sistema jurídico Ao menos nesse sentido Hart segue com Austin a existência da lei como lei é uma coisa sua eventual satisfação de critérios impostos pela moralidade é outra 394 Tradução livre e contextualizada It cannot seriously be disputed that the development of law at all times and places has in fact been profoundly influenced both by the conventional morality and ideals of particular social groups and also by forms of enlightened moral criticism urged by individuals whose moral horizon has transcended the morality currently accepted HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 185 395 Namely that a legal system must exhibit some specific conformity with morality or justice or must rest on a widely diffused conviction that there is a moral obligation to obey it Again though this proposition may in some sense be true it does not follow from it that the criteria of legal validity of particular laws used in a legal system must include tacitly if not explicitly a reference to morality or justice HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 185 396 Exposição esta que utilizei ainda na abertura do primeiro capítulo desta pesquisa naquelas que seriam minhas definições conceituais básicas Ainda com relação à locução positivismo jurídico e seu surgimento na literatura ver item 11 desta pesquisa 397 The simple contention that it is in no sense a necessary truth that laws reproduce or satisfy certain demands of morality though in fact they have often done so HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 185 186 106 A relação entre as duas teses tornase ainda mais clara quando observamos que a definição de Hart para o positivismo e sobretudo as implicações dessa definição tornam explícito aquilo ao qual Hart já apontava quando ainda tratava sobre a regra de reconhecimento em The Concept of Law Hart diz que é plenamente possível imaginar um caso extremo no qual apenas os officials aceitam e usam os critérios de validade jurídica de um sistema Essa sociedade seria para Hart uma sociedade de ovelhas deploravelmente e que as ovelhas poderiam muito bem acabar no matadouro Ainda assim e por mais deplorável que isso seja não há razão para se pensar que isso não pode existir ou para negar a esse sistema o título de sistema jurídico398 Discutindo essa passagem Jeremy Waldron define que a partir dela é possível concluir que aos olhos do positivista acrescentar a satisfação de condições morais como um pressuposto necessário à definição conceitual de Direito é um equívoco399 Naturalmente há uma série de razões pelas quais isso poderia ser um equívoco Waldron entende que as justificativas de Hart são pragmáticas400 uma vez que para ele condicionar a validade de um sistema jurídico à sua conformidade com exigências da moralidade seria um erro em razão de suas consequências práticas No mesmo sentido em seu excelente perfil sobre Hart Neil MacCormick define que Hart opta pela tese de que o valor moral não deve ser tratado como uma condição necessária de validade jurídica por razões tanto teóricas quanto morais401 Vejamos quais são essas razões e em que medida elas têm efeitos práticos De acordo com Hart uma definição estrita de Direito que exclua sistemas considerados injustos tirandolhes o caráter de sistemas jurídicos obrigarnosia a excluir certas regras ainda que elas exibam todas as outras características complexas do Direito Isso acarretaria na relegação do estudo dessas regras a outra disciplina algo que por sua vez geraria nada além de confusão Assim a primeira consequência prática negativa decorrente dessa confusão conceitual seria aquela que recai sobre o estudo teorético 398 In an extreme case only officials might accept and use the systems criteria of legal validity The society in which this was so might be deplorably sheeplike and the sheep might end in the slaughterhouse But there is little reason for thinking that it could not exist or for denying it the title of a legal system HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 117 399 Cf WALDRON Jeremy All We Like Sheep Canadian Journal of Law and Jurisprudence Vol XII n 01 jan 1999 pp 169186 400 O termo pragmatic é do próprio Waldron Cf WALDRON Jeremy All We Like Sheep Canadian Journal of Law and Jurisprudence Vol XII n 01 jan 1999 pp 169186 401 On both theoretical and moral grounds Hart opts for the thesis that moral value ought not to be treated as a necessary condition of legal validity MACCORMICK Neil H L A Hart 2 ed Stanford Stanford University Press 2008 p 196 107 científico do Direito como um fenômeno social402 um conceito estrito de Direito que exclua de seu âmbito os sistemas injustos acabaria por criar um problema de taxonomia sociológica403 Outro problema é da ordem de juízos práticos Homens maus diz Hart criarão leis más leis que outros irão reforçar Assim diante da clara possibilidade de abuso de poder oficial é necessário que se preserve o senso de que a certificação de algo como legalmente válido não é conclusivo acerca da questão da obediência independentemente de quão grande seja a aura de majestade ou autoridade que detém o sistema jurídico suas demandas devem finalmente submeterse ao escrutínio moral Essa percepção da existência de algo extrínseco ao sistema jurídico a noção de que há algo fora do Direito a que os cidadãos podem tomar como referência quanto à questão da obediência é algo que tem muito mais chances de manterse vivo entre aqueles que estão acostumados à ideia de que as leis podem ser injustas muito mais do que entre aqueles que pensam que nada que é iníquo pode adquirir o status de Direito404 É curioso e talvez até aparentemente paradoxal ao menos prima facie a principal razão que sustenta a insistência de Hart em uma separação conceitual entre Direito e moral é uma razão moral Hart era um positivista porque era também um crítico moral Seu objetivo não era o de conferir um mandado para obediência aos mestres do Estado era ao contrário o de reforçar a possibilidade de os cidadãos disporem da possibilidade de implacável crítica moral aos usos e abusos do poder estatal405 O paradoxo claro é apenas aparente o positivista diz que o erro está em considerar a moralidade como um critério de validade jurídica e nada além disso a tese da separabilidade é conceitual 402 Trecho adaptado com traduções livres da seguinte passagem Nothing is to be gained in the theoretical or scientific study of law as a social phenomenon by adopting the narrower concept it would lead us to exclude certain rules even though they exhibit all the other complex characteristics of law Nothing surely but confusion could follow from a proposal to leave the study of such rules to another discipline HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 209 403 Sociological taxonomy 404 Tradução livre Wicked men will enact wicked rules which others will enforce What surely is most needed in order to make men clearsighted in confronting the official abuse of power is that they should preserve the sense that the certification of something as legally valid is not conclusive of the question of obedience and that however great the aura of majesty or authority which the official system may have its demands must in the end be submitted to a moral scrutiny This sense that there is something outside the official system by reference to which in the last resort the individual must solve his problems of obedience is surely more likely to be kept alive among those who are accustomed to think that rules of law may be iniquitous than among those who think that nothing iniquitous can anywhere have the status of law HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 210 405 Paradoxical as some may find it this reason offered by Hart for insisting on the conceptual separateness of law and morality was a moral reason Hart was a positivist because he was also a critical moralist His aim was not to issue a warrant for obedience to the masters of the state It was to reinforce the citizens warrant for unrelenting moral criticism of the uses and abuses of state power MACCORMICK Neil H L A Hart 2 ed Stanford Stanford University Press 2008 p 197 108 Nenhum positivista jamais disse que o Direito é nãomoral406 Basta lembrar que o próprio Hart considera um truísmo a influência direta da moralidade positiva sobre a maior parte dos sistemas jurídicos ao longo da história A tese da separabilidade em Hart portanto baseiase na ideia de que confundir invalidade e imoralidade é um erro um erro que nos impede de ver a complexidade e a variedade dessas questões distintas Um conceito de Direito que nega validade jurídica à regras iníquas pode cegarnos a tão importantes questões407 212 Conclusão parcial o positivismo e suas duas ou três grandes teses Até aqui temos os principais elementos da teoria analítica de Hart Seu legado enquanto teórico verdade é enorme inestimável seus influentes escritos abordam desde questões como a descriminalização do aborto da homossexualidade e da prostituição na Inglaterra passando por assuntos como a pena de morte as justificações para a punição como reforço da moralidade convencional seu debate sobre direito penal transmitido pela rede britânica BBC com Patrick Devlin juiz conservador chegou a ser à época considerado o debate da década408 Não fosse isso ainda que sua obra estivesse restrita à esfera que aqui nos interessa sua teoria analítica sua herança ao pensamento jurídico já seria gigantesca é praticamente unânime no mundo anglosaxão que com os insights da filosofia linguística Hart basicamente reinventou a filosofia do Direito tendo um impacto comparável ao de Wittgenstein na filosofia409 Tudo isso é verdade Hart praticamente reinventou a filosofia do Direito no mundo anglosaxão Como vimos foi ele o primeiro teórico realmente paradigmático depois de Austin precisamente por modernizar os principais pressupostos de seu antecessor Enquanto 406 Whereas no legal positivist has ever contended that law is nonmoral virtually every legal positivist contends that the efforts by naturallaw theorists to portray law as inherently benign or legitimate are unfounded KRAMER Matthew H H L A Hart Medford Polity 2018 p 156 407 A concept of law which allows the invalidity of law to be distinguished from its immorality enables us to see the complexity and variety of these separate issues whereas a narrow concept of law which denies legal validity to iniquitous rules may blind us to them HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 211 408 Harts writings on abortion on the legalization of homosexuality and prostitution and on capital punishment had a huge impact on informed opinion In particular his debate with the conservative judge Patrick Devlin about p2 the propriety of using law to enforce conventional morality parts of which were broadcast by the BBC was probably the debate of the decade LACEY Nicola A Life of H L A Hart The Nightmare and the Noble Dream Oxford Oxford University Press 2006 pp 0102 409 Hart was credited with having more or less reinvented the philosophy of law In this field his impact could be compared with that of say Wittgenstein in general philosophy LACEY Nicola A Life of H L A Hart The Nightmare and the Noble Dream Oxford Oxford University Press 2006 p 01 109 Austin entendia acompanhando a Bentham e em maior ou menor grau Hobbes o Direito enquanto os comandos e as ameaças de sanções por parte de um soberano habitualmente obedecido Hart considerava essa compreensão incapaz de dar conta de um sistema jurídico moderno Assim embora não pretendesse rejeitar o método de Austin sua proposta é igualmente descritiva Hart i rejeitou a definição clássica austiniana baseada somente naquilo a que chamou de regras primárias e ii somou a essas regras primárias as regras secundárias regras essas aptas a conferir poderes e competências modificar e revogar as regras primárias e em última instância delimitarem os critérios próprios a partir dos quais as regras jurídicas são definidas como tais Essas regras secundárias são as regras de modificação as regras de julgamento e finalmente a regra de reconhecimento uma regra social empírica cuja existência é a própria prática pela qual aqueles que compõem um sistema jurídico identificam e aplicam as regras que formam esse sistema Todas essas definições que Hart expõe a partir de uma proposta de sociologia descritiva são conduzidas através da análise linguística e clarificação de conceitos algo que perpassa todo o projeto hartiano de oferecer um moderno conceito de Direito Desse modelo de sistema jurídico baseado exatamente na união de regras primárias e secundárias emergem exatamente aquelas que viriam a ser até hoje reconhecidas como as grandes teses do positivismo jurídico moderno Todas essas teses são aspectos que o modelo positivista de Direito implica A primeira dessas teses é i a tese das fontes sociais também chamada por vezes de tese do pedigree Se os critérios de validade das regras que compõem um sistema jurídico estão na regra de reconhecimento e essa regra é uma regra social baseada em uma convenção entre os indivíduos que compõem a prática seguese logicamente que as regras de um sistema jurídico originamse de uma fonte eminentemente social A segunda tese é ii a tese da separabilidade entre Direito e moral e ela também decorre logicamente das condições mínimas determinadas por Hart para a existência de um sistema genuinamente jurídico Se as regras têm sua validade determinada a partir dos critérios elencados pela regra de reconhecimento e essa regra é definida a partir da prática dos officials do sistema que identificam e aplicam as regras isso significa que a satisfação de critérios morais não é um pressuposto necessário para a validade das regras jurídicas É verdade Hart reconhece que a maioria dos sistemas jurídicos ao longo dos tempos foi influenciado pela moralidade entendia em sentido amplo também é verdade que com frequência as regras jurídicas ao menos em sua maior parte satisfazem reivindicações da moralidade convencional Disso não se segue que a satisfação de critérios morais seja 110 necessariamente um pressuposto para a validade das regras jurídicas A tese da separabilidade portanto não é amoralista em nenhum sentido diz apenas que é possível separar o Direito enquanto conceito e enquanto um sistema de regras válidas de sua eventual satisfação de critérios morais O Direito e sua validade são uma coisa e a satisfação dos critérios da moralidade é outra Temos pois duas grandes teses positivistas a tese das fontes e a tese da separabilidade Ambas pretendemse teses conceituais verdadeiras com relação a todo sistema jurídico possível Juntas levam à conclusão lógica de que em todo sistema jurídico possível as proposições jurídicas são válidas em razão de terem sido proferidas de acordo com os critérios estabelecidos por uma convenção social e sendo assim não é verdade que o conteúdo legal de todo sistema jurídico deva necessariamente atender critérios morais Essas são as teses mais claras e mais aceitas entre os próprios positivistas de modo que a meu ver a satisfação de somente ambas essas teses já é o suficiente para que uma tese ou um autor sejam classificados como tais Há contudo autores que apontam a uma terceira tese eminentemente positivista a tese da discricionariedade Nesse sentido é bastante pertinente trazer uma importante citação na íntegra de Kenneth Himma um dos mais importantes teóricos contemporâneos a escrever sobre o positivismo Himma na passagem explica brilhantemente i as duas grandes teses ii a possível terceira e iii por que existe uma controvérsia com relação a essa última O corpo teórico central do positivismo consiste pensase em três teses acerca da natureza do Direito A tese da separabilidade nega a existência necessária de restrições morais sobre o conteúdo do Direito A tese do pedigree dispõe que as condições suficientes e necessárias à validade jurídica têm a ver com como ou por quem as leis ésão promulgadas A tese da discricionariedade estabelece que os juízes ao decidirem casos difíceis produzem direito novo Enquanto é geralmente presumido que essas teses formam um corpo teórico coerente como um todo esse pressuposto é falso Tomada como uma tese sobre todos os sistemas jurídicos possíveis a tese da discricionariedade é incompatível com a tese do pedigree Tomada como uma tese verdadeira para alguns mas não todos sistemas jurídicos a tese acaba por trazer um argumento de um tipo fundamentalmente diferente daquele que subjaz às teses do pedigree e da separabilidade e portanto não deve ser considerada como parte da teoria positivista do Direito 410 410 Grifos meus Tradução livre da seguinte passagem The theoretical core of positivism is thought to consist of three theses about the nature of law The separability thesis denies the existence of necessary moral constraints on the content of law The pedigree thesis articulates necessary and sufficient conditions for legal validity having to do with how or by whom law is promulgated The discretion thesis asserts that judges decide hard cases by making new law While it is often assumed that these theses form a coherent theoretical whole such an assumption is false Construed as a claim about all possible legal systems the discretion thesis is inconsistent with the pedigree thesis Construed as a claim that is true in some but not all possible legal systems the discretion thesis makes a fundamentally different kind of claim than those made by the pedigree and separability 111 Por que então é tão comum que a tese da discricionariedade seja considerada ao lado das outras duas uma das grandes teses do positivismo Novamente o melhor a se fazer é buscar a origem do argumento Quem desenvolveu e atrelou a tese da discricionariedade ao positivismo foi aquele que provavelmente é seu maior adversário histórico Ronald Dworkin 22 O DIREITO EM RONALD DWORKIN Ronald Dworkin 19312013 é sem dúvida um dos mais influentes jusfilósofos da história do pensamento jurídico ocidental Como bem define Stephen Guest Dworkin tem sido por muitas décadas enormemente citado em livros e periódicos jurídicos políticos filosóficos e econômicos importantes autores que concordam e discordam com ele estão certamente unidos em torno da noção de que suas ideias são de enorme significado411 Ex aluno de Hart e seu sucessor na cátedra de Jurisprudence em Oxford Dworkin ganhou notoriedade exatamente ao atacar o positivismo jurídico sobretudo na versão apresentada através das teses do próprio H L A Hart seu antecessor e antigo professor em The Concept of Law412 Dworkin é claro não foi somente um crítico do positivismo jurídico foi também um grande crítico do pragmatismo sobretudo na versão de Richard Posner da proposta originalista de interpretação constitucional tendo seu antagonista no então juiz da Suprema Corte Antonin Scalia do pluralismo de valores personificado por Isaiah Berlin Naturalmente também não foi somente um crítico um teórico negativo enquanto desenvolvia suas tão amplas críticas Dworkin acabou também por articular ao longo dos anos uma concepção original muito própria acerca do Direito da prática jurídica da teoria política e da justiça e em sentido mais amplo da filosofia moral em um projeto que se apresenta como unitário e coerente Seja como for comecemos pelo início com The Model of Rules O Modelo de Regras cuja publicação na University of Chicago Law Review construiu sua reputação413 theses and hence should not be thought of as part of positivisms theory of law HIMMA Kenneth Einar Judicial Discretion and the Concept of Law Oxford Journal of Legal Studies Oxford v 19 1999 pp 7182 411 He has now for many decades been enormously cited in legal political philosophical and economics books and journals and serious writers who disagree or agree with him are certainly united in thinking his ideas are of great significance GUEST Stephen Ronald Dworkin 3 ed Stanford Stanford University Press 2013 p 11 412 Cf GUEST Stephen Ronald Dworkin 3 ed Stanford Stanford University Press 2013 pp 1112 413 It was the publication of The Model of Rules in the University of Chicago Law Review that made his reputation GUEST Stephen Ronald Dworkin 3 ed Stanford Stanford University Press 2013 p 12 112 221 O general attack ao positivismo jurídico Foi portanto em The Model of Rules publicado originalmente em 1967 e posteriormente relançado como The Model of Rules I um dos ensaios que constituem o primeiro livro de Dworkin Taking Rights Seriously 1977 que Dworkin articulou suas primeiras críticas ao positivismo de Hart e em meio a isso passou a desenvolver sua própria teoria jurídica Neste ensaio Dworkin diz pretender examinar a solidez da teoria tornada popular por John Austin agora aceita de uma forma ou outra pela maioria dos profissionais e acadêmicos jurídicos chamada com alguma liberdade histórica414 positivismo jurídico sobretudo na poderosa forma articulada com clareza e elegância por H L A Hart415 Embora assuma que nem todo filósofo que se intitule ou seja chamado de positivista deva necessariamente subscrever as teses da forma por ele apresentada Dworkin define as teses centrais do positivismo jurídico da seguinte maneira i O Direito de uma comunidade pode ser identificado a partir de critérios específicos através de testes que não têm a ver com o conteúdo das regras mas com seu pedigree416 ii As regras que exsurgem desse teste de validade são exaustivas quanto ao Direito no consequente sentido de que se o caso de alguém não é claramente coberto por uma regra tal então esse caso não pode ser decidido por meio da aplicação do Direito deve ser então decidido por algum official como um juiz exercendo sua discricionariedade o que significaria na leitura de Dworkin ir além do Direito em busca de outro tipo de padrão a guialo na construção de uma nova regra ou na suplementação de uma regra antiga 417 Essa portanto a tese da discricionariedade atribuída ao positivismo articulada por Dworkin recepcionada por alguns rejeitada por outros 414 O que nos remete ao que foi discutido nos itens 1 e 11 desta pesquisa 415 The theory first made popular by the nineteenth century philosopher John Austin and now accepted in one form or another by most working and academic lawyers who hold views on jurisprudence I shall call this theory with some historical looseness legal positivism I want to examine the soundness of legal positivism particularly in the powerful form that Professor H L A Hart has given to it I choose to focus on his position not only because of its clarity and elegance but because here as almost everywhere else in legal philosophy constructive thought must start with a consideration of his views DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 p 16 416 Daí por que às vezes a tese das fontes sociais é chamada de tese do pedigree 417 Tradução livre e contextualizada da seguinte passagem The set of these valid legal rules is exhaustive of the law so that if someones case is not clearly covered by such a rule because there is none that seems appropriate or those that seem appropriate are vague or for some other reason then that case cannot be decided by applying the law It must be decided by some official like a judge exercising his discretion which means reaching beyond the law for some other sort of standard to guide him in manufacturing a fresh legal rule or supplementing an old one DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 p 17 113 iii Finalmente na leitura de Dworkin o positivismo implica na ideia de que na ausência de uma regra jurídica válida não há obrigação jurídica disso seguirseia que quando um juiz decidisse alguma questão específica com base em seu poder discricionário ele não estaria reforçando um direito com relação a ela Esse para Dworkin é o esqueleto do positivismo jurídico418 a teoria contra a qual deseja lançar um ataque geral fazendo da versão de Hart um alvo toda vez que um alvo particular for necessário419 2211 A controvérsia dos princípios A partir do esqueleto delineado por Dworkin o positivismo seria um modelo de e para um sistema de regras de modo que sua noção fundamental de um teste único e último para fins de determinação do que constitui Direito válido ie a tese das fontes ou do pedigree acabaria por deixar de fora padrões jurídicos de outro tipo que não funcionam como regras No ataque geral de Dworkin os mais importantes desses padrões são os princípios Dworkin começa sua explanação acerca dos princípios com o célebre caso Riggs v Palmer talvez tão célebre muito em razão do próprio Dworkin Sucintamente tratase de um caso no qual em 1889 uma corte de Nova York teve de decidir se um herdeiro que assassinou o próprio avô tinha o direito de herdar o que lhe era garantido por testamento À época os estatutos regulatórios sobre a matéria levavam à conclusão de que o assassino tinha esse direito ainda assim a Corte entendeu por negálo baseada no princípio segundo o qual a ninguém pode ser permitido beneficiarse da própria torpeza420 Esse tipo de padrão segundo Dworkin por se tratar de um princípio opera de forma muito distinta de regras estas articuladas através de proposições como em seus exemplos a velocidade máxima permitida em horários de pico é de 60 mph ou um testamento é inválido a não ser que assinado por três testemunhas421 418 Cf DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 p 17 419 I want to make a general attack on positivism and I shall use H L A Harts version as a target when a particular target is needed DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 p 22 420 Cf DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 p 23 421 The standard set out in these quotations are not the sort we think of as legal rules They seem very different from propositions like The maximum legal speed on the turnpike is sixty miles an hour or A will is invalid unless signed by three witnesses They are different because they are legal principles rather than legal rules DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 p 23 114 A diferença entre princípios e regras jurídicas portanto é uma distinção lógica ainda que ambos os padrões apontem a decisões particulares sobre obrigações jurídicas em circunstâncias particulares diferemse fundamentalmente em caráter e na direção a que apontam422 As regras para Dworkin funcionam à maneira tudo ou nada423 aplicamse ou não são válidas ou não Os princípios por outro lado têm uma dimensão de peso424 eles dispõem uma razão que conduz a argumentação e o raciocínio judicial em uma direção mas não exigem uma decisão particular é possível que haja princípios que apontem a direções conflitantes mas a prevalência de um não significa que o outro não faça parte do sistema jurídico dado que em razão da dimensão de peso ele pode ser decisivo em outro caso subsequente As regras por outro lado dada sua própria natureza quando são conflitantes necessariamente uma delas não pode ser válida425 Uma vez explicada a diferença entre regras e princípios426 é possível passar ao que realmente importa É do argumento dos princípios que Dworkin deriva e sustenta a discricionariedade como uma das grandes teses do positivismo jurídico Isso porque na medida em que i os positivistas afirmam que os sistemas jurídicos têm cada um à sua maneira um teste criteriológico capaz de determinar o que configura direito válido tese do pedigree eles devem também afirmar segundo Dworkin ii que os princípios não são direito válido Se os princípios não são direito válido e o Direito é constituído apenas pelas regras que assim o são de acordo com seu pedigree e se a impossibilidade de as regras cobrirem todos os casos possíveis é uma questão lógica assim como as decisões judiciais para além do conteúdo fixado por essas regras são uma realidade em qualquer sistema seguese disso que toda atividade judicial que está para além da esfera das regras jurídicas dáse com base no poder discricionário do juiz discricionário porque livre de qualquer padrão jurídico que o vincule em uma ou outra direção427 O ponto ii exige uma explicação um pouco mais detalhada Pela sua própria natureza é impossível que os princípios estejam todos elencados de antemão em uma regra de reconhecimento Não há como diz Dworkin conceber qualquer fórmula que sirva de teste 422 Grifos meus tradução livre The difference between legal principles and legal rules is a logical distinction Both sets of standards point to particular decisions about legal obligation in particular circumstances but they differ in the character of the direction they give DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 p 24 423 Allornothing fashion 424 Dimension of weight 425 Cf DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 pp 2428 426 Cf nessa questão o verbete Diferença entre regras e princípios no Dicionário de Hermenêutica de Streck STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 427 DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 pp 2839 115 com relação a quanto e que tipo de suporte institucional é necessário para que um princípio seja jurídico haverá menos ainda qualquer tipo de teste capaz de fixar seus pesos em uma ordem de magnitude particular428 Mais do que isso qualquer tentativa de adaptação da regra de reconhecimento que tentasse incluir os princípios nos critérios nelas dispostos estaria fadada a fracassar se os princípios e nesse sentido quaisquer padrões outros que não as regras fossem aceitos como jurídicos e portanto como padrões institucionalmente vinculantes à atividade judicial as próprias regras como tais passariam a dever parte de sua força à autoridade subjacente aos princípios enquanto padrões jurídicos assim a regra de reconhecimento já não mais seria o teste final apto a servir de critério último e único determinando o que é direito válido429 Em síntese para Dworkin qualquer teoria baseada em uma regra de reconhecimento vai ou considerar os princípios como extrajurídicos ou derrotar a si própria Sendo assim padrões extrajurídicos os princípios não vinculam estritamente os juízes do ponto de vista institucional de modo que não havendo padrão a ser seguido no caso concreto há discricionariedade na decisão É por isso que Dworkin sustenta a tese da discricionariedade como necessária ao positivismo como tal e é também por isso que Dworkin considera o positivismo insuficiente porque nos remete a uma tese da discricionariedade que leva a lugar nenhum e nada diz430 Se o positivismo pretende descrever a prática jurídica não o faz adequadamente porque não é capaz de descrever uma prática que apresenta padrões jurídicos que transcendem a mera noção de regras 2212 Convenções e o aguilhão semântico Em um livro anterior Taking Rights Seriously diz Dworkin já em 2006 argumentei que o positivismo analítico distorce a verdadeira prática de advogados e juízes em sistemas jurídicos contemporâneos e portanto oferece uma compreensão inadequada dessas práticas Notadamente Dworkin tem em mente o argumento dos princípios e a consequente tese da discricionariedade Em Laws Empire 1986 segue o autor ofereci 428 Tradução livre e adaptada Yet we could not devise any formula for testing how much and what kind of institutional support is necessary to make a principle a legal principle still less to fix its weight at a particular order of magnitude DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 p 40 429 Cf DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 p 43 430 The positivist remits us to a doctrine of discretion that leads nowhere and tells nothing DWORKIN Ronald Taking Rights Seriously Cambridge Harvard University Press 1978 p 45 116 uma explicação de por que os positivistas analíticos cometem esse erro431 O presente tópico trata dessa nova explicação antes porém dada sua complexidade expôla em linhas bastante gerais é cabível O positivismo analítico segundo a nova tese dworkiniana parte do pressuposto de que todos os conceitos incluindo pois o conceito de Direito são conceitos criteriais conceitos que são compartilháveis somente quando as pessoas que os compartilham concordam em uma definição precisa ou grosseira da qual se derivem os critérios para a aplicação correta do termo ou frase associada432 As pessoas no exemplo de Dworkin compartilham o conceito de um triângulo equilátero somente quando sabem que o triângulo em questão tem lados de igual comprimento Assim uma análise positivista do conceito de Direito que o toma por um conceito criterial passaria pela elucidação de quais são os testes que aqueles que compõem a prática jurídica compartilham à exceção dos casos marginais limítrofes para identificar quais proposições jurídicas são verdadeiras ie quais proposições são realmente jurídicas em última análise o que é e o que não é direito válido433 Esse é o argumento do semantic sting o argumento do aguilhão semântico Em Laws Empire para que possa inaugurar o semantic sting argument Dworkin primeiro diferencia três tipos de questões que surgem em Direito e com relação a essas questões próprias três tipos de desacordos possíveis i desacordos empíricos ou factuais eg O que aconteceu O trabalhador que operava o torno mecânico realmente deixou que uma chave inglesa caísse sobre um dos pés de um colega ii desacordos teóricos eg Qual é a lei aplicável O Direito permite que um trabalhador que sofre lesão em trabalho cobre os danos de seu empregador e iii desacordos morais eg Se o Direito não garante a compensação isso é injusto E se é os juízes devem ignorar a lei e garantir a compensação de qualquer forma434 O primeiro tipo de desacordo empírico é simples É bastante fácil identificar primeiro sobre o que se discute e segundo que tipo de evidência se disponível seria capaz de solucionar a eventual disputa O terceiro tipo o desacordo moral é para Dworkin 431 Grifos meus In an early book Taking Rights Seriously I argued that analytic positivism distorts the actual practice of lawyers and judges in contemporary legal systems and therefore provides an inadequate understanding of those practices In Laws Empire I offered an explanation of why analytic positivists make that mistake DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 p 225 432 People share some concepts only when they agree on a definitionrough or precisethat sets out the criteria for the correct application of the associated term or phrase DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 p 09 433 Cf DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 p 225 434 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 03 117 bastante diferente mas também familiar435 É afinal bastante frequente que as pessoas divirjam sobre o que é certo e errado436 Mas e o segundo tipo de desacordo isto é o desacordo que Dworkin vem a classificar como desacordo teórico sobre o Direito O autor explica a partir das discussões sobre a classificação de uma proposição jurídica como verdadeira ou falsa em outras palavras o desacordo teórico é o desacordo acerca dos fundamentos do Direito No exemplo de Dworkin juízes podem concordar do ponto de vista empírico sobre que tipo de estatutos e precedentes têm relevância na hipótese de um caso em que um empregado cobra danos em virtude de acidente de trabalho de seu empregador ainda assim podem discordar sobre o que a lei de compensação de danos significa na medida em que eles discordam com relação ao ponto que questiona do ponto de vista teórico se os precedentes e estatutos exaurem esgotam os fundamentos pertinentes do Direito Juízes ainda que concordem entre si com relação a quais estatutos sobre a matéria em questão foram promulgados e com relação a quais precedentes têm relação com o ponto podem ainda discordar sobre o que o Direito realmente é sobre o significado e o alcance de seus fundamentos enquanto fundamentos jurídicos437 Nesse sentido Dworkin como lhe é habitual ilustra o ponto a partir de uma série de exemplos concretos do direito norteamericano Em meio a alguns outros casos no livro Dworkin novamente lança mão do caso Riggs v Palmer que foi seu pano de fundo para o argumento dos princípios Agora contudo o argumento é um pouco diferente Dworkin não quer somente mostrar que em Direito há padrões jurídicos que estão para além das regras Isso já havia sido desenvolvido em The Model of Rules Agora Dworkin diz o seguinte quando se discutiu no caso do neto que assassinou o avô visando à herança se o assassino tinha ou não o direito pleiteado não se estava a discutir se os juízes deviam seguir a lei ou deixar o Direito de lado em nome da justiça baseado nos fundamentos utilizados pelos próprios juízes em seus votos Dworkin diz que o desacordo em questão era uma disputa sobre o que o Direito era sobre o que o estatuto real que os legisladores promulgaram realmente dizia438 435 Very different but also familiar 436 DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 03 437 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 pp 0405 438 The dispute about Elmer o neto assassino was not about whether judges should follow the law or adjust it in the interests of justice At least it was not if we take the opinions I described at face value and we have no justification for taking them in any other way It was a dispute about what the law was about what the real statute the legislators enacted really said DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 20 118 Para Dworkin a explicação que o positivismo e qualquer outra teoria do tipo a que Dworkin chama de teorias semânticas439 oferece para esse tipo de desacordo é absolutamente insuficiente precisamente porque está estão baseadas em uma noção a partir da qual o Direito é tratado como um conceito criterial Se o Direito é um conceito criterial então i todos seguimos um certo tipo de critérios linguísticos na apreciação de proposições jurídicas enquanto tais e ii o filósofo do Direito deve produzir teorias que identifiquem esses critérios e sobretudo uma vez que o próprio significado da palavra Direito faz com que o Direito dependa de certos critérios de aplicação iii aquele que rejeitasse ou desafiasse esses critérios próprios estaria falando sem fazer sentido nonsense Dito de outro modo segundo as teorias semânticas wittgensteinianamente nós seguimos regras compartilhadas no uso das palavras que usamos e são essas regras a partir das quais se pode derivar os critérios que dão à palavra seu significado Daí que os conceitos são criteriais E se o conceito de Direito também o é seguese que o desacordo teórico não se dá sobre os fundamentos do Direito tal como ele é mas talvez sobre o que ele deveria ser falar pois em desacordos teóricos é ilusório Nas palavras de Dworkin as teorias semânticas supõem que advogados e juízes utilizamse basicamente dos mesmos critérios ainda que estes estejam escondidos irreconhecidos para determinar se proposições jurídicas são verdadeiras ou falsas440 Um positivista Dworkin concede poderia argumentar no sentido de que há um uso ordinário padrão da palavra Direito e por outro lado há também casos limítrofes Nesse sentido advogados e juízes todos seguiriam basicamente a mesma regra criterial com relação a Direito mas uma vez que as regras acerca dos usos das palavras não são sempre exatas é possível que haja casos limítrofes que operam em uma zona de penumbra441442 Assim sendo explicarseia os desacordos em casos difíceis hard cases cada um utiliza uma versão levemente diferente da mesma regra e as diferenças tornamse manifestas nesses casos especiais443 Aquele que negasse a uma residência suburbana a classificação de casa simplesmente não compreende as regras idiomáticas ainda assim nem todos seguem 439 Semantic theories of law 440 Semantic theories suppose that lawyers and judges use mainly the same criteria though these are hidden and unrecognized in deciding when propositions of law are true or false DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 33 441 Penumbral cases 442 Hart no sétimo capítulo de The Concept of Law já trazia essa questão da indeterminação da textura aberta open texture e da zona de penumbra Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 124154 443 Each uses a slightly different version of the main rule and the differences become manifest in these special cases DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 39 119 exatamente a mesma regra alguns diriam legitimamente que o Palácio de Buckingham é uma casa outros de forma igualmente legítima diriam que não444 Diante desse possível contraargumento Dworkin questiona se assim for os juízes que discordavam entre si em Riggs v Palmer e pois em qualquer outro caso em discussão estariam envolvidos em um desacordo meramente verbal E mais ainda a hipótese segundo a qual esse desacordo é meramente verbal é incapaz de explicar a prática jurídica e a atuação dos juízes e advogados ao longo dos tempos Afinal pessoas razoáveis não discutem entre si se o Palácio de Buckingham é ou não uma casa tratase tão somente de como uma pessoa escolhe usar uma palavra445 Se Direito for realmente um conceito como casa então por que os membros de uma prática jurídica haveriam de discutir por tanto tempo sobre a veracidade ou falsidade de proposições jurídicas Como eles haveriam de pensar ter argumentos sensatos capazes de sustentar uma decisão que no limite é essencialmente arbitrária porque relacionada meramente ao uso de uma palavra de um jeito em vez de outro Essa defesa semântica do Direito enquanto conceito criterial com casos limítrofes é para Dworkin um insulto por caracterizar juízes e advogados como tolos446 Esse é portanto o argumento do aguilhão semântico Aquele que pensa que só podemos discutir uns com os outros se e somente se todos aceitarmos e seguirmos os mesmos critérios conceituais ainda que não possamos especificar quais são esses critérios é vítima do semantic sting Dworkin é claro reconhece os argumentos das teorias semânticas como argumentos filosóficos assim assume que ao rejeitálos deve confrontálos também com argumentos filosóficos447 Filosoficamente portanto Dworkin vai revisitar a Teoria do Direito oferecendo sua própria concepção tendo como base a ideia de que em vez de criterial o Direito é um conceito interpretativo 222 Law as integrity A obra de Dworkin é uma obra que por mais que seja sempre coerente e unitária é uma obra densa longa complexa Esgotála e especialmente em uma pesquisa que não tem 444 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 pp 3940 445 Sensible people do not quarrel over whether Buckingham Palace is really a house This is not a genuine issue but only a matter of how one chooses to use a word DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 pp 4041 446 Simpletons 447 We have no choice but to confront that argument It is a philosophical argument so the next stage of our project must be philosophical as well DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 44 120 em Dworkin seu elemento central seria uma tarefa impossível Ainda assim para que se possa apresentar Waldron como uma terceira via entre o positivismo e a concepção de Dworkin é necessário também compreendela ainda que em suas linhas mais gerais Um bom ponto de partida talvez seja o contraste entre a abordagem do positivismo sobre o Direito como um conceito criterial abordagem que como vimos Dworkin rejeita peremptoriamente e a abordagem dworkiniana que aborda o Direito como um conceito interpretativo Uma vez que grande parte dos desacordos que permeiam a prática jurídica são não empíricos mas teóricos a abordagem criterial é vítima do aguilhão semântico já que uma de suas decorrências lógicas é a de que em seus desacordos aqueles que compõem a prática jurídica estão ou fingindo ou discordando sobre um caso limítrofe Somente o tratamento do Direito como um conceito interpretativo pode oferecer uma imagem adequada dos desacordos que compõem a prática tal como se apresenta na realidade 2221 Interpretativismo conceito e concepções Isso posto o que significa afinal a abordagem interpretativa Para além daquilo que nega o que afirma o interpretativismo de Dworkin Quem responde é o próprio Em sua concepção o raciocínio jurídico legal reasoning é um exercício de interpretação construtiva de modo que o Direito de uma comunidade consiste na melhor justificativa que sustenta as práticas jurídicas como um todo consiste pois na história narrativa que faz dessas práticas o melhor que elas podem ser448 A interpretação construtiva de uma prática na leitura de Dworkin é precisamente uma questão de atribuição de modo a tornala o melhor exemplo possível da forma ou gênero ao qual se presume que ela pertence O propósito da interpretação é visto sob essa perspectiva tornar aquilo que se interpreta o melhor que pode ser assim uma abordagem de interpretação construtiva sobre a prática jurídica será uma proposta interpretativa que visa a oferecer uma leitura dessa prática vista sob sua melhor luz449 Com relação ao processo interpretativo per se Dworkin delimita e divide o processo em três estágios Primeiro i um estágio préinterpretativo no qual se determinam as 448 Grifos meus tradução livre Legal reasoning is an exercise in constructive interpretation Our law consists in the best justification of our legal practices as a whole it consists in the narrative story that makes of these practices the best they can be DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p vii 449 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 pp 52 61 139 121 regras e padrões dentro dos quais se pode identificar o conteúdo da prática interpretada São classificações cotidianas os graus mínimos que permitem que algo seja inteligivelmente interpretado Dworkin exemplifica o estágio préinterpretativo através da interpretação literária na qual esse estágio consistiria na identificação de MobyDick e sua distinção dos textos que correspondem a outras obras450 Depois surge ii o estágio interpretativo estágio que ilumina de forma bastante clara a concepção de interpretação construtiva em Dworkin Para o autor o estágio interpretativo é o estágio no qual o intérprete adota uma justificativa geral para com os principais elementos que constituem a prática identificada no estágio préinterpretativo451 o que consiste basicamente em um argumento sobre a validade da prática em questão Essa interpretação não precisa contemplar todo aspecto todos os elementos da prática interpretada é verdade deve contudo ainda assim ir de encontro a elementos suficientes elementos que pertencem ao estágio préinterpretativo452 de modo a fazer com que o intérprete esteja genuinamente interpretando a prática e não inventando uma nova453 Finalmente então vem o terceiro estágio o iii estágio pósinterpretativo ou estágio reformador454 Nessa fase o intérprete ajusta sua percepção do que a prática realmente exige de modo a melhor servir à justificação por ele aceita no estágio interpretativo455 Dworkin aqui dá novamente o exemplo da cortesia em uma sociedade prática que permeia a obra de Dworkin como um paradigma suficientemente exemplificativo de uma prática interpretativa no estágio pósinterpretativo um intérprete da cortesia poderia vir a pensar que um reforço consistente daquilo que melhor justifica a prática exigiria que as pessoas saudassem com seus chapéus os soldados que retornam de uma guerra ou ainda que a melhor justificativa da prática exige em verdade uma nova exceção a um padrão previamente estabelecido de modo que soldados que retornam da guerra estariam isentos de demonstrações de cortesia ainda o intérprete poderia chegar à noção de que a prática vista sob sua melhor luz levaria à conclusão de que toda uma regra que estipulasse a deferência a toda uma classe ou grupo de indivíduos é em si uma regra equivocada456 450 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 pp 6566 451 The interpreter settles on some general justification for the main elements of the practice identified at the preinterpretive stage DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 66 452 Conservo o termo entre aspas porque Segundo o próprio Dworkin mesmo o estágio préinterpretativo é também interpretativo no sentido de envolver algum tipo de interpretação 453 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 66 454 Reforming stage 455 Grifo meu The interpreter adjusts his sense of what the practice really requires so as better to serve the justification he accepts at the interpretive stage DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 66 456 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 66 122 Aqui uma pausa o leitor mais atento perceberá que ao longo da pesquisa utilizei os conceitos de conceito e concepção A distinção é do próprio Dworkin é por ele explicada a partir dos pressupostos de sua ideia de interpretação construtiva e exemplificada também a partir da ideia de cortesia De forma geral é seguro dizer que a absoluta maioria das pessoas concorda com relação às proposições mais gerais e abstratas sobre a cortesia ainda assim essas mesmas pessoas discordam com relação às especificidades e às subinterpretações dessas proposições abstratas Todos concordam que a cortesia é uma questão de respeito mas haverá desacordos com relação à interpretação correta do que respeito significa As pessoas concordam com relação ao tronco da árvore mas discordam com relação aos galhos No exemplo respeito é o que forma o conceito de cortesia e as diferentes posições adotadas sobre como a ideia de respeito pode deve ser materializada corretamente formam as concepções sobre esse conceito A diferença entre conceito e concepção portanto é um contraste entre os níveis de abstração nos quais a interpretação de uma prática pode ser estudada457 Essa aparente digressão abstrata é exatamente o que torna Dworkin capaz de oferecer sua contraposição à explicação que o positivismo oferece para os desacordos teóricos no Direito O Direito como a cortesia é um conceito não criterial mas interpretativo Na medida em que os juízes reconhecem e assumem uma responsabilidade de dar continuidade à prática da qual fazem parte eles desenvolvem teorias sobre a melhor interpretação de suas responsabilidades sob essa prática Os desacordos teóricos são portanto eles próprios desacordos interpretativos458 Sendo o Direito uma prática interpretativa também sua interpretação terá os três estágios No estágio préinterpretativo contudo não se trata de identificar o que compõe a prática jurídica através de definições compartilhadas sobre definições acerca do que conta como um sistema jurídico sob pena de a explicação ser uma explicação criterial semântica e eo ipso vítima do aguilhão semântico Não é difícil identifica coletivamente as práticas que contam como práticas jurídicas em nossa cultura cortes legislaturas agências administrativas sabese tranquilamente que isso forma um sistema jurídico Contudo a questão sobre quais características específicas esses elementos têm características em virtude das quais elas formam um sistema jurídico é parte do problema interpretativo É 457 The contrast between concept and conception is here a contrast between levels of abstraction at which the interpretation of the practice can be studied DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 71 458 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 87 123 parte do processo controverso e incerto de atribuir sentido ao que encontramos e não um dado da estrutura préinterpretativa459 Nesse sentido o filósofo do Direito deve começar a partir de uma identificação pré interpretativa minimamente incontroversa sobre o caráter da prática jurídica Como o respeito é um conceito da cortesia as concepções sobre a prática partem desse conceito também assim será com relação ao Direito visto que práticas da mesma natureza Assim Dworkin propõe que dado que os governos têm propósitos atingíveis também por meio do monopólio do uso da força é legítimo dizer que o sentido mais fundamental e abstrato da prática jurídica é justificar a coerção do Estado que exsurge de decisões políticas do passado A prática jurídica de uma comunidade é nesse sentido um esquema de direitos e responsabilidades que vai de encontro a esse padrão e é jurídica porque relacionada a essas decisões políticas do passado Essa é para Dworkin uma caracterização préinterpretativa segura porque compatível com um bastante amplo rol de reivindicações e argumentos que contradizem um ao outro com relação a quais direitos e responsabilidades de fato derivam dessas decisões políticas do passado e por tal razão permitem a coerção do Estado É possível explicar a proposta dworkiniana através de um esquema conceitual Conceito de Direito Direitos e responsabilidades que se seguem de decisões políticas do passado e por essa razão autorizam ou mesmo exigem o uso da coerção por parte do Estado Paradigma que exsurge como acordo préinterpretativo O conceito é o tronco da árvore Concepções de Direito Respostas conectadas a três perguntas que surgem a partir do conceito i A suposta relação entre Direito e coerção é justificada Há algum sentido na exigência de que a força pública seja exercida somente de modo a conformarse com direitos e responsabilidades que se derivam de decisões políticas do passado ii Se há qual é esse sentido iii Qual é a leitura adequada dessa derivação de direitos e responsabilidades de decisões políticas do passado ie que noção de consistência com decisões pretéritas melhor explica essa derivação As concepções são os galhos da árvore460 459 It is part of the controversial and uncertain process of assigning meaning to what we find not a given of the preinterpretive structure DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 87 460 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 pp 9294 124 2222 Convencionalismo e pragmatismo Uma vez que o conceito de Direito não é criterial e as concepções de Direito são as respostas a essas perguntas que exsurgem do acordo préinterpretativo acordo sobre o que se pode concordar de forma minimamente incontroversa e inteligível acerca da prática jurídica é natural que haja concepções rivais concepções que sendo o Direito um conceito interpretativo oferecem cada uma à sua maneira suas diferentes interpretações acerca da prática jurídica Dworkin explica três concepções dominantes na Teoria do Direito A primeira concepção por ele explicada é o convencionalismo Vejamos então as respostas convencionalistas às três perguntas decorrentes do conceito de Direito i A suposta relação entre Direito e coerção é justificada Sim dirá o convencionalista que aceita a ideia de Direito e de direitos ii Qual é o sentido o ponto que sustenta os limites que o Direito impõe ao uso da força pelo Estado Para o convencionalismo o motivo pelo qual se exige que a força estatal seja usada somente de modo consistente com as decisões políticas precedentes está na previsibilidade e justiça procedimental que essa limitação fornece461 Finalmente iii que noção de consistência com decisões pretéritas melhor explica essa limitação jurídica quanto à coerção por parte do Estado O convencionalismo oferece uma explicação bastante restrita acerca da forma de consistência que podemos exigir só se pode dizer que um direito ou responsabilidade deriva das decisões políticas do passado se essa derivação for ou puder ser tornada explícita através de métodos ou técnicas convencionalmente aceitas pela profissão jurídica como um todo Para o convencionalismo portanto a moralidade política não exige qualquer respeito pelo passado para além disso de modo que quando se esgota a força da convenção os juízes devem encontrar fundamentos prospectivos para fundamentar suas decisões462 Em síntese portanto segundo o convencionalismo a coerção do Estado é exercível de forma legítima através do respeito aos direitos e responsabilidades que se originam a partir de decisões políticas do passado e esse respeito é observado através das convenções daqueles que compõe a comunidade jurídica assim quando se esgota a convenção esgotamse também os fundamentos jurídicos de modo que na hipótese os juízes decidem com base em 461 The predictability and procedural fairness this constraint supplies 462 Grifos meus e trecho traduzido da seguinte passagem Conventionalism proposes in answer to the third question a sharply restricted account of the form of consistency we should require with past decisions a right or responsibility flows from past decisions only if it is explicit within them or can be made explicit through methods or techniques conventionally accepted by the legal profession as a whole Political morality according to conventionalism requires no further respect for the past so when the force of convention is spent judges must find some wholly forwardlooking ground of decision DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 95 125 seu poder discricionário463 É possível dizer com segurança que o convencionalismo é a forma por meio da qual Dworkin apresenta o positivismo como uma teoria interpretativa sobre o Direito É nas palavras do próprio Dworkin uma versão do positivismo jurídico como uma intepretação da prática contemporânea464 é pois o positivismo adaptado a um conceito interpretativo em suas respostas no estágio pósinterpretativo Naturalmente então para Dworkin o convencionalismo não é uma boa concepção por razões muito similares àquelas por ele adotadas quando de suas críticas ao positivismo enquanto teoria semântica sua incapacidade de explicar a ideia de que na prática jurídica há direitos e responsabilidades jurídicosas que transcendem as convenções de modo que as pessoas têm direito a uma extensão coerente e de princípio das decisões políticas do passado ainda que juízes discordem profundamente com relação ao que isso significa465 o juiz convencionalista não tem qualquer razão para reconhecer essa consistência de princípio na ausência ou no esgotamento de uma convenção Dworkin é claro vai oferecer sua própria concepção buscando fornecer respostas que melhor expliquem a prática jurídica sob sua melhor luz Antes porém vai apresentar uma segunda frequente e insuficiente concepção o pragmatismo uma concepção cética Por quê Porque diante da pergunta A suposta relação entre Direito e coerção é justificada o pragmatista dirá Não E dirá não porque o pragmatismo cético questiona e até mesmo nega que uma comunidade pode garantir qualquer benefício genuíno ao exigir que o processo decisório dos juízes esteja limitado por qualquer exigência de consistência para com decisões políticas tomadas no passado466 A interpretação pragmatista da prática jurídica assim dirá que os juízes tomam e devem tomar467 suas decisões de modo eu elas pareçam ser o melhor para o futuro da comunidade sem que haja qualquer compromisso com o passado como se este fosse valioso em si mesmo O pragmatismo portanto não leva direitos a sério468 porque os considera tão somente como instrumentos que visam a um melhor futuro qualquer que seja este e não os vê com qualquer força ou fundamento que independam dessa 463 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 pp 114150 464 Grifos meus tradução livre A version of legal positivism as itself an interpretation of contemporary practice DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 p 226 465 Grifos meus e tradução livre People are entitled to a coherent and principled extension of past political decisions even when judges profoundly disagree about what this means DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 134 466 It pragmatism denies that a community secures any genuine benefit by requiring that judges adjudicative decisions be checked by any supposed right of litigants to consistency with other political decisions made in the past DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 95 467 Ou seja é uma interpretação ontológica e normativa da prática 468 It pragmatism does not take legal rights seriously DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 160 Contraste com a primeiro obra de Dworkin já aqui referenciada Taking Rights Seriously Levando os Direitos a Sério 126 visão prospectiva469 naturalmente algo que para Dworkin não faz sentido e não dá conta de explicar a verdadeira natureza da prática jurídica ao apresentar uma interpretação de Direito sem direitos470 2223 As respostas da integridade Que seja dito explicitamente o que agora já ficou óbvio Dworkin rejeita peremptoriamente tanto o convencionalismo ie a concepção interpretativa que se deriva do positivismo quanto o pragmatismo Mas então qual é afinal a sua concepção A interpretação que Dworkin oferece acerca da prática jurídica é aquela por ele chamada de law as integrity o Direito como integridade Como o convencionalismo e diferente do pragmatismo o direito como integridade aceita de bom grado a ideia de Direito e direitos471 Ao responder portanto se i A suposta relação entre Direito e coerção é justificada aquele que adota o Direito como integridade como o convencionalista responderá afirmativamente A diferença está na resposta às duas outras perguntas que exsurgem do acordo pré interpretativo ii Qual é o sentido o ponto que sustenta os limites que o Direito impõe ao uso da força pelo Estado Para o Direito como integridade os limites jurídicos não oferecem apenas previsibilidade eou justiça procedimental ou qualquer outra questão meramente instrumental o Direito é o que garante um tipo de igualdade entre cidadãos que torna sua comunidade mais genuína e melhora a justificação moral que sustenta o exercício de seu poder político472 Isso posto então para a concepção de law as integrity iii Que noção de consistência com decisões pretéritas melhor explica essa limitação jurídica quanto à coerção por parte do Estado Direitos e responsabilidades derivam de decisões políticas precedentes e são qua direitos e responsabilidades jurídicos não apenas quando estiverem explícitos nessas 469 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 160 470 Law without rights Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 pp 160164 471 Like conventionalism law as integrity accepts law and legal rights wholeheartedly DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 95 472 A kind of equality among citizens that makes their community more genuine and improves its moral justification for exercising the political power it does DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 96 127 decisões mas também quando deriváveis dos princípios de moralidade política e pessoal que as decisões explícitas pressupõem como suas justificativas473474 Nesse sentido o Direito como integridade nega que proposições jurídicas sejam as descrições factuais de olhar retrospectivos do convencionalismo ou os programas instrumentais prospectivos do pragmatismo jurídico Law as integrity insiste que reivindicações jurídicas são juízos interpretativos e sendo assim combinam elementos retro e prospectivos interpretam a prática jurídica atual como uma narrativa política que se desdobra O Direito como integridade então classifica como inútil a velha questão que pergunta se os juízes descobrem ou inventam Direito e sugere que só compreendemos o raciocínio jurídico ao enxergamos em que medida eles fazem ambas as coisas e nenhuma delas475 Assim à luz das perguntas interpretativas o Direito como integridade vai conceber que as proposições jurídicas são verdadeiras enquanto proposições jurídicas na medida em que se seguirem de princípios de justiça equidade e devido processo a partir dos quais se pode estabelecer a melhor interpretação construtiva476 da prática jurídica da comunidade477 Os direitos e responsabilidades jurídicas derivados das decisões políticas do passado devem sob essa ótica expressar uma concepção coerente de justiça e equidade No mesmo sentido uma vez que oferece uma concepção ao mesmo tempo retro e prospectiva uma concepção na qual por isso o velho dualismo entre criar direito novo e descobrir direito preexistente 473 Grifos meus tradução livre Rights and responsibilities flow from past decisions and so count as legal not just when they are explicit in these decisions but also when they follow from the principles of personal and political morality the explicit decisions presuppose by way of justification DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 96 474 Nesse sentido tornase bastante clara a interpretação de Dworkin também assumida por outros autores no âmbito do direito anglosaxão acerca da doutrina do precedente e sua força vinculante a ideia de que o respeito ao elemento genuinamente vinculante na ratio no stare decisis como tal está na aplicação dos princípios subjacentes à decisão do tribunal que a tiver proferido De acordo com essa interpretação o precedente em relação ao contexto factual do caso que lhe serviu de origem não apenas exibe como serve de suporte a princípios jurídicos que em razão de seu papel no ordenamento podem e devem ter relevância na decisão de casos futuros Os tribunais subsequentes olham para os precedentes no sentido lato de decisões pretéritas e quando da identificação do que constitui a ratio verificam se eles representam princípios suficiente e adequadamente justificatórios quanto à decisão a ser tomada no caso que estiver em questão Cf PERRY Stephen R Judicial obligation Precedent and the Common Law Oxford Journal of Legal Studies Oxford v 07 n 02 jul 1987 pp 215257 Disponível em httpsdoiorg101093ojls72215 Acesso em 21 fev 2019 475 Traduzido livremente da seguinte passagem Law as integrity denies that statements of law are either the backwardlooking factual reports of conventionalism or the forwardlooking instrumental programs of legal pragmatism It insists that legal claims are interpretive judgments and therefore combine backward and forwardlooking elements they interpret contemporary legal practice seen as an unfolding political narrative So law as integrity rejects as unhelpful the ancient question whether judges find or invent law we understand legal reasoning it suggests only by seeing the sense in which they do both and neither DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 225 476 Cf o ponto inicial do item 2221 desta pesquisa 477 The best constructive interpretation of the communitys legal practice DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 225 128 perde sua raison dêtre Dworkin explica a prática judiciária entendida a partir do processo decisório dos juízes em uma analogia com o processo de escrita de um romance em cadeia478 um empreendimento coletivo entre autores que se propõem à escrita conjunta de uma única obra Um processo tal pressupõe naturalmente a obrigação daquele que escreve de manter coerência com os elementos que já fazem parte da obra Assim como os autores envolvidos no romance em cadeia e trazendo a analogia para a esfera jurídica os juízes são igualmente autores e críticos decidindo os casos que a eles são apresentados juízes contribuem para com a tradição que interpretam adicionando a ela novos elementos os juízes subsequentes portanto vão encontrar uma tradição que se renova ao mesmo tempo em que guarda coerência de princípio com o passado Eis em brevíssima síntese law as integrity como uma concepção interpretativa do conceito interpretativo que é o Direito uma concepção que entende o Direito como uma estrutura de princípios coerentes de justiça equidade e devido processo que entende que os juízes devem reforçar e guardar coerência com esses princípios subjacentes à tradição jurídica diante de novos casos que se apresentem de modo que precisamente por uma questão de equidade as novas situações sejam julgadas de acordo com os mesmos padrões O juiz responsável que adota o Direito como integridade como sua concepção interpretativa juiz que na metáfora exemplificativa de Dworkin leva o nome de Hércules479 deve portanto testar sua interpretação acerca de qualquer parte da grande rede de estruturas e decisões políticas de sua comunidade perguntando se ela é capaz de fazer parte de uma teoria coerente que justifique essa rede como um todo480 Aquele que aceita o ideal interpretativo da integridade481 deve então decidir casos difíceis de modo a tentar encontrar a melhor interpretação construtiva da estrutura política e da prática jurídica da comunidade a partir de e em meio a um todo coerente de princípios de moralidade política482 deve fazer dessa estrutura e dessa prática o melhor que elas podem ser483 Dworkin ao batizar seu juiz metafórico é o primeiro a reconhecer que a tarefa é hercúlea Disso não se segue que um juiz de verdade não possa não deva imitar Hércules da 478 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 228232 DWORKIN Ronald A Matter of Principle Cambridge Harvard University Press 1985 pp 146166 479 Razões óbvias Para o hercúleo processo interpretativo de Hércules cf especialmente DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 pp 239266 480 Law as integrity requires a judge to test his interpretation of any part of the great network of political structures and decisions of his community by asking whether it could form part of a coherent theory justifying the network as a whole DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 245 481 O termo friso é do próprio Dworkin The Interpretive ideal of integrity 482 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 255 483 The best they can be 129 limitada forma que está a seu alcance484 em busca da resposta correta no singular Isto é Dworkin ainda em face da discricionariedade sustenta a right answer thesis a tese de que os casos judiciais têm uma resposta correta no sentido de objetiva Do equilíbrio entre as exigências da integridade do necessário ajuste institucional e da interpretação construtiva emerge a resposta correta a que os cidadãos têm direito em juízo485 2224 Interlúdio A evolução do pensamento de Dworkin Antes que se passe às breves considerações sobre a reação do positivismo jurídico à proposta interpretativa de Dworkin e todos os desafios que ela representa à doutrina positivista é interessante que se faça alguns brevíssimos apontamentos com relação à evolução do pensamento de Dworkin ao longo dos anos e o desenvolvimento de sua obra como um todo coerente Nada mais dworkiniano que isso afinal E os apontamentos são brevíssimos porque ter a pretensão de realizar algo mais profundo nesse sentido exigiria toda uma pesquisa dedicada unicamente a esse propósito Dworkin não apenas desafiou o positivismo jurídico desenvolveu uma concepção interpretativa muito própria e original acerca do fenômeno e da prática jurídica Mas não só isso desenvolveu também considerações muito mais amplas considerações sobre ética e moral sobre interpretação sobre liberdade sobre moralidade pessoal e política Falar ao menos que de forma breve sobre o desenvolvimento dessa teoria ao longo dos anos é necessário necessário afinal porque Dworkin é um ouriço e seu pensamento deve ser abordado como um todo Em The Hedgehog and the Fox Isaiah Berlin consagrou um fragmento da obra de Arquíloco poeta grego que diz que a raposa sabe muitas coisas mas o ouriço sabe uma grande coisa Na interpretação de Berlin o aforismo pode ser levado a representar uma das mais profundas diferenças que dividem os seres humanos de um lado aqueles que veem nas coisas a partir de seu modo de enxergar o mundo uma variedade infinita as pluralistas raposas de outro aqueles que relacionam e ligam tudo a um sistema central unitário mais ou menos coerente e articulado os holísticos ouriços486 Sendo talvez o pluralista par 484 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Cambridge The Belknap Press 1986 p 245 485 Cf nesse sentido DWORKIN Ronald No Right Answer New York University Law Review vol 53 n 01 abr 1978 BIX Brian Law Language and Legal Determinacy Oxford Clarendon Press 2003 pp 77 132 486 BERLIN Isaiah The Hedgehog and the Fox An Essay on Tolstoys View of History Editado por Henry Henry prefaciado por Michael Ignatieff Princeton Princeton University Press 2013 pp 0102 130 excellence487 Berlin vai naturalmente tender a tomar o lado das raposas Dworkin por outro lado no último livro que escreveu em vida quer fazer justiça para ouriços quer assim fazer sustentando que há uma unidade no valor488 Isso significa que há em todas as áreas do valor uma dependência mútua nossas concepções sobre liberdade e igualdade valor e princípio ética e moralidade devem estar unidas em um todo coerente Princípios aparentemente díspares são interpretados não como as muitas coisas que conhecem as raposas mas são enxergados sob uma grande coisa uma concepção fundamental Naturalmente exatamente por ser ampla essa visão será igualmente aplicável com relação ao que aqui nos interessa o Direito A partir da tese da unidade do valor o Direito em Dworkin passa a ser não um sistema à parte mas um ramo da moralidade política moralidade política que é um ramo de uma moralidade pessoal mais geral que por sua vez é um ramo de uma teoria ainda mais ampla sobre o que significa viver bem489 Para Waldron essa versão jurídica do argumento da unidade já havia sido inicialmente articulada em Justice in Robes490 Havendo então uma unidade no valor e portanto uma unidade sistemática entre as esferas jurídica e político moral não há que se falar em um suposto conflito entre Direito e justiça porque igualmente sendo o Direito um ramo da moralidade política não há que se falar em sistema rival de regras que conflita com as exigências da moralidade Dworkin assim abandona a existência de dois sistemas não mais dividindo o conteúdo do Direito em regras e princípios Como bem sintetiza Jeremy Waldron ainda que Dworkin tenha argumentado em toda sua obra que fatos morais fazem parte das condições para que proposições jurídicas sejam verdadeiras ele agora foi ainda mais adiante passando a sustentar que o Direito é como tal um ramo da moralidade política uma visão mais ousada e radical491 487 Cf CHERNISS Joshua HARDY Henry Isaiah Berlin In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivessum2018entriesberlin Acesso em 25 fev 2019 MASON Elinor Value Pluralism In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesspr2018entriesvaluepluralism Acesso em 25 fev 2019 488 This book defends a large and old philosophical thesis the unity of value DWORKIN Ronald Justice for Hedgehogs Cambridge The Belknap Press 2011 p 01 489 DWORKIN Ronald Justice for Hedgehogs Cambridge The Belknap Press 2011 pp 05 400415 490 E é verdade Em 2006 Dworkin falava em tratar o Direito não como separado mas como um departamento da moralidade Grifo meu Not as separate from but as a department of morality DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 pp 3435 491 Although Professor Dworkin argued in all his earlier work that moral facts about rights and justice were among the truth conditions of legal propositions now in Justice for Hedgehogs he argued that law is itself a branch of morality This is a bolder and more radical claim WALDRON Jeremy Jurisprudence for Hedgehogs New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 1345 jul 2013 Disponível em httpsssrncomabstract2290309 131 Como consequência temse que juízos jurídicos não são juízos que envolvem elementos morais são juízos morais Argumentos jurídicos não são também argumentos que têm a ver com a moralidade são argumentos morais Quando um juiz interpreta a Constituição não está apenas a considerar elementos morais a atividade interpretativa desse hipotético juiz é de saída uma questão moral tout court Isso a meu ver em nada invalida as considerações de Dworkin sobre law as integrity não há que se falar em um segundo Dworkin Afinal muito embora tenha articulado sua concepção de Direito em diversas maneiras ao longo dos anos e muito embora tenha escrito sobre uma ampla variedade de assuntos Dworkin não era uma raposa ao desenvolver sua teoria ele um ouriço estava afinal construindo os alicerces de uma visão holística que em seu todo levam a uma teoria da justiça teoria baseada em duas noções fundamentais interpretação e integridade492 23 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O POSITIVISMO JURÍDICO DEPOIS DE RONALD DWORKIN Temos afinal até aqui apresentadas em linhas gerais as duas primeiras vias de que trata esta pesquisa o positivismo em sua versão mais tradicional como articulado por H L A Hart e a partir dos desafios ao positivismo a concepção dworkiniana de law as integrity Isso já autorizaria que se passasse finalmente à grande tese sustentada nestas páginas a de que a teoria de Jeremy Waldron é uma terceira via que exsurge da combinação de elementos dessas duas propostas Antes porém é importante trazer algumas palavras sobre a reação do positivismo ao desafio lançado por Dworkin tanto pela riqueza argumentativa quanto pela demonstração de que mesmo em suas versões mais desenvolvidas e sofisticadas as teorias positivistas com todas as nuances e diferenças que guardam entre si seguem o caminho metodológicoconceitual hartiano para não dizer austiniano 492 Cf POSTEMA Gerald J PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 11 Legal Philosophy in the Twentieth Century The Common Law World Nova York Springer 2011 p 425 132 231 O postscript de The Concept of Law Durante muitos anos Hart teve em mente o projeto de adicionar um capítulo a The Concept of Law Hart queria responder às muitas discussões surgidas do livro defendendo sua posição daqueles que a mal interpretaram refutando críticas infundadas e com igual importância a seus olhos concedendo o ponto a críticas justificadas493 Lamentavelmente Hart veio a falecer antes que pudesse completar sua empreitada em vida especulase que muito em razão do próprio perfeccionismo494 coube então a Penelope A Bulloch e Joseph Raz a edição de uma nova versão de The Concept of Law com o pósescrito de Hart que embora provavelmente viesse a ser polido e aperfeiçoado495 pelo próprio autor i apresenta suas respostas a muitas das críticas de Dworkin e sendo assim ii materializa finalmente aquele que veio a ser um dos mais célebres episódios de toda a história da jurisprudence o debate HartDworkin São as respostas que provavelmente viriam a ser apresentadas por Hart que procuro sintetizar aqui A resposta de Hart começa por rebater as objeções à sua proposta descritiva e parte primeiro de uma reexplicação da teoria hartiana em sua proposta descritiva e seus conceitos e elementos centrais eg regra de reconhecimento validade etc e segundo de uma explicação bastante sintética dos contraargumentos de Dworkin ie princípios Direito como conceito interpretativo Para Hart não é óbvio por que deveria ou mesmo poderia haver qualquer conflito significativo entre empreitadas tão diferentes entre si496 quanto a sua e a de Dworkin Hart diz não estar preocupado com uma teoria jurídica valorativa como são as três concepções apresentadas por Dworkin face ao Direito como conceito interpretativo convencionalismo pragmatismo law as integrity e que uma proposta analíticodescritiva do fenômeno jurídico não se torna impossível ou inútil simplesmente com base nas objeções de Dworkin Para Hart não há nada no projeto de uma teoria descritiva que impeça um observador externo de descrever os meios pelos quais os 493 For many years Hart had it in mind to add a chapter to The Concept of Law He wanted to respond to the many discussions of the book defending his position against those who misconstrued it refuting unfounded criticism andof equal importance in his eyesconceding the force of justified criticism HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p vii 494 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p vii 495 Polished and improved 496 Grifo meu tradução livre It is not obvious why there should be or indeed could be any significant conflict between enterprises so different as my own and Dworkins conceptions of legal theory HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 241 133 participantes veem o Direito a partir de um ponto de vista interno O teórico diz Hart deve compreender até mesmo porque pretende descrever a aceitação dessa prática por parte de seus participantes internos mas disso não se segue que como parece indicar Dworkin uma representação adequada dessa perspectiva interna não possa ser fornecida por uma teoria descritiva497 Com relação ao argumento do aguilhão semântico ie o positivismo e o Direito como um conceito criterial Hart diz que não há nada em sua teoria que indique que sua proposta é uma teoria semântica diz que a tese de que sistemas jurídicos modernos têm uma regra de reconhecimento fixando os critérios de identificação das leis aplicáveis não está baseada na equivocada ideia de que faz parte do significado da palavra Direito que deva haver tal regra em todos os sistemas menos ainda na ainda mais equivocada ideia de que se os critérios para identificação dos fundamentos do Direito não forem incontroversamente fixados Direito significaria coisa diferentes para pessoas diferentes498 Isso seria para Hart confundir o significado de um conceito com os critérios para sua aplicação Do mesmo modo rejeitar a possibilidade de uma abordagem descritiva a partir da ideia de que membros da prática discutem acerca das condições para que uma proposição jurídica seja verdadeira ie desacordos teóricos é segundo Hart confundir o significado de Direito com o significado de proposições jurídicas Proposições tais não são proposições sobre o que Direito qua conceito é mas sobre qual é o direito no sentido das normas específicas de determinado sistema jurídico499 Respondidas essas críticas Hart passa a uma das mais controversas e relevantes passagens do pósescrito passagem que será relevante para os próximos itens desta 497 Trecho traduzido e adaptado livremente a partir da seguinte passagem His Dworkins central objection seems to be that legal theory must take account of an internal perspective on the law which is the viewpoint of an insider or participant in a legal system and no adequate account of this internal perspective can be provided by a descriptive theory whose viewpoint is not that of a participant but that of an external observer But there is in fact nothing in the project of a descriptive jurisprudence as exemplified in my book to preclude a nonparticipant external observer from describing the ways in which participants view the law from such an internal point of view It is true that for this purpose the descriptive legal theorist must understand what it is to adopt the internal point of view and in that limited sense he must be able to put himself in the place of an insider but this is not to accept the law or share or endorse the insiders internal point of view or in any other way to surrender his descriptive stance HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 242 498 My doctrine that developed municipal legal systems contain a rule of recognition specifying the criteria for the identification of the laws which courts have to apply may be mistaken but I nowhere base this doctrine on the mistaken idea that it is part of the meaning of the word law that there should be such a rule of recognition in all legal systems or on the even more mistaken idea that if the criteria for the identification of the grounds of law were not uncontroversially fixed law would mean different things to different people HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 246 499 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 246247 134 pesquisa Ao responder à objeção dworkiniana de que a ideia de regra de reconhecimento implica em um teste de pedigree que se relacionaria tão somente a uma questão acerca de como as leis são adotadas independentemente de seu conteúdo Hart diz que em alguns sistemas jurídicos como é o caso dos Estados Unidos o critério último de validade jurídica pode incorporar explicitamente para além do pedigree princípios de justiça ou valores morais substantivos500 Eis afinal a tese a que o próprio Hart chama de soft positivism501 a tese segundo a qual a regra de reconhecimento pode incorporar como critérios de validade jurídica a conformidade com princípios morais eou valores substantivos502 Com relação ao argumento dos princípios503 Hart diz que muito embora tenha de fato dito muito pouco em sua obra sobre a existência de princípios jurídicos acomodálos à sua teoria ao contrário do que alega Dworkin não representaria qualquer consequência mais grave ao seu desenvolvimento tal como se deu504 especialmente porque Hart discorda da forma através da qual Dworkin ilustrou a diferença entre regras e princípios frisese ainda na década de 1960 Para Hart Dworkin merece todos os créditos por ter iluminado a importância e o papel dos princípios no argumento jurídico mas sua distinção a partir da tese de que regras operam na base do tudo ou nada505 é uma distinção equivocada Hart diz que seu uso da palavra regra não implica nem pretendeu implicar que um sistema jurídico tem somente padrões normativos do tipo identificado por Dworkin506 como sendo uma regra e inclui também aquilo que Hart classificou talvez segundo o próprio de modo infeliz como padrões jurídicos variados507 Além disso diz Hart i não apenas não há nada nos 500 Grifos meus In some systems of law as in the United States the ultimate criteria of legal validity might explicitly incorporate besides pedigree principles of justice or substantive moral values HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 247 501 Posteriormente em suas versões contemporâneas que se derivam exatamente dessa visão de Hart o positivismo soft em sentido amplo veio a ser identificado como positivismo inclusivoincludente Essa doutrina será trabalhada com um pouco mais de vagar no item subsequente 502 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 250254 503 Posição desenvolvida ainda em The Model of Rules que lembremos foi abandonada a partir de Justice in Robes 504 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 259 505 Cf o item 2211 desta pesquisa 506 É a leitura de Scott Shapiro Para o scholar de Yale Dworkin atribuiu a Hart argumentos por ele nunca utilizados Contrary to Dworkins interpretation Hart never embraced the model of rules either explicitly or implicitly SHAPIRO Scott J The HartDworkin Debate A Short Guide for the Perplexed University of Michigan Law School Public Law and Legal Theory Working Paper Series Working Paper n 77 mar 2007 Disponível em httpsssrncomabstract968657 Acesso em 28 fev 2019 507 Much credit is due to Dworkin for having shown and illustrated their importance and their role in legal reasoning and certainly it was a serious mistake on my part not to have stressed their nonconclusive force But 135 princípios que determine que eles não possam ser identificados pelos critérios que Dworkin chama de pedigree ii tampouco a regra de reconhecimento é capaz de fornecer somente esse tipo de critério508 Seja como for foi a partir dos princípios que Dworkin atacou a suposta tese da discricionariedade positivista Se o Direito é constituído por regras uma vez que não haja regra não há Direito não havendo Direito o juiz decide com base em seu poder discricionário Hart contudo não apenas rejeita a objeção de que seu sistema seja um modelo de regras como ilustra Dworkin a discricionariedade judicial por ele apresentada não é predicada nesse modelo Ela está baseada em verdade em uma concepção de Direito baseada em padrões normativos que em razão do caráter eminente e invariavelmente indeterminado que é próprio da linguagem como tal em sua textura aberta509 são incapazes de antecipar todas as questões possíveis todas as hipóteses de incidência e aplicação Nesse sentido a discricionariedade judicial é em Hart inevitável mas não por uma questão de o Direito ter ou não princípios em meio a seus padrões normativos Scott Shapiro sintetiza muito bem a controvérsia da discricionariedade na qual ambos tomam suas posições em razão de suas muito distintas teorias acerca da natureza do Direito para Hart os juízes exercem poder discricionário porque ele considera que o Direito é formado por padrões socialmente designados que não podem antecipar todas suas hipóteses de aplicação para Dworkin os juízes não têm esse poder precisamente porque ele nega a centralidade da orientação social para fins de determinação de existência ou conteúdo de normas jurídicas510 I certainly did not intend in my use of the word rule to claim that legal systems comprise only allornothing or nearconclusive rules I not only drew attention see pp 1303 of this book to what I termed perhaps infelicitously variable legal standards which specify factors to be taken into account and weighed against others but I attempted see pp 1334 to explain why some areas of conduct were suitable for regulation not by such variable standards as due care but rather by near conclusive rules prohibiting or requiring the same specific actions in all but rare cases HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 263 508 A double error first the belief that legal principles cannot be identified by their pedigree and secondly the belief that a rule of recognition can only provide pedigree criteria HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 264 509 Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 pp 124135 510 To be sure Hart and Dworkin did disagree about whether judges have strong discretion in hard cases Yet this dispute is a derivative one both sides take their positions on judicial discretion because of their very different theories about the nature of law As we have just seen Hart held that judges must sometimes exercise strong discretion because he takes the law to consist in those standards socially designated as authoritative Dworkin on the other hand believes that judges do not have strong discretion precisely because he denies the centrality of social guidance to determining the existence or content of legal rules SHAPIRO Scott J The HartDworkin Debate A Short Guide for the Perplexed University of Michigan Law School Public Law 136 Em síntese esses são os principais pontos do debate HartDworkin um debate que coloca frente a frente dois modelos diferentes de Direito O Direito deve ser compreendido como composto por padrões socialmente designados como vinculantes Ou é constituído por padrões assim designados também moralmente Os fatores determinantes para Direito contar como Direito são fatos sociais ou envolvem também elementos morais511 Não é sem razão portanto que o debate HartDworkin é tão relevante para a jurisprudence e a teoria jurídica Os particulares mudaram mas a questão básica e sua importância fundamental permanecem a mesma de quarenta anos atrás o Direito é baseado somente em fatos sociais ou fatos morais também determinam sua existência e conteúdo512 Como bem diz Shapiro somente o futuro dirá quem pode reivindicar vitória nesse debate Por agora o que importa é que as críticas de Dworkin dividiram o campo positivista em dois o que um lado aceitou como persuasivo em seus argumentos o outro rejeitou e vice versa513 Entre as heranças do debate HartDworkin está a casa dividida do positivismo514 entre inclusivoincludente e exclusivoexcludente515 232 O positivismo inclusivoincludente O positivismo como vimos até aqui trabalha a partir da noção de que não é necessariamente verdade que o Direito válido será justo que a existência do Direito é and Legal Theory Working Paper Series Working Paper n 77 mar 2007 Disponível em httpsssrncomabstract968657 Acesso em 28 fev 2019 511 Should law be understood to consist in those standards socially designated as authoritative Or is it constituted by those standards morally designated as authoritative Are the ultimate determinants of law social facts alone or moral facts as well SHAPIRO Scott J The HartDworkin Debate A Short Guide for the Perplexed University of Michigan Law School Public Law and Legal Theory Working Paper Series Working Paper n 77 mar 2007 Disponível em httpsssrncomabstract968657 Acesso em 28 fev 2019 512 Tradução livre The particulars have changed but the basic issue and its fundamental importance remains the same today as it did forty years ago Is the law ultimately grounded in social facts alone or do moral facts also determine the existence and content of the law SHAPIRO Scott J The HartDworkin Debate A Short Guide for the Perplexed University of Michigan Law School Public Law and Legal Theory Working Paper Series Working Paper n 77 mar 2007 Disponível em httpsssrncomabstract968657 Acesso em 28 fev 2019 513 It Dworkins argument divided the positivist camp in two What one wing found persuasive in the argument the other rejected out of hand and vice versa POSTEMA Gerald J PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 11 Legal Philosophy in the Twentieth Century The Common Law World Nova York Springer 2011 p 407 514 Positivisms Divided House POSTEMA Gerald J PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 11 Legal Philosophy in the Twentieth Century The Common Law World Nova York Springer 2011 p 407 515 Os termos inclusivo e exclusivo são mais frequentes na doutrina mas alguns autores como é o caso do Prof Thomas Bustamante optam pela variação includenteexcludente 137 diferente de seus eventuais méritos ou deméritos O positivismo então retomando tudo que já foi trabalhado aqui direta e indiretamente é uma tese segundo a qual as relações entre as esferas do Direito e da moral não são necessárias são no máximo relações contingentes Ou seja nenhum positivista nega que há conexões contingentes entre Direito e moral há muitas leis qua dispositivos legais que funcionam como a reafirmação de princípios morais tais como aquelas que proíbem agressão e roubo O ponto é que da mesma forma há igualmente um sem número de exemplos de leis que embora igualmente válidas são indefensáveis de um ponto de vista moral como as leis do apartheid na África do Sul No mesmo sentido o positivismo não terá nenhum problema em admitir que por vezes juízes decidem casos difíceis apelando a princípios de moralidade mas dirá que uma vez que juízes são falíveis essas decisões também podem vir a ser moralmente indefensáveis516 Até aqui o ponto é comum o caminho é compartilhado Há contudo uma controvérsia específica com relação à possibilidade de uma conexão particular entre as esferas do Direito e da moral que divide os positivistas divideos entre i aqueles que aceitam essa relação como possível e até característica de sistemas jurídicos modernos e ii aqueles que a rejeitam por enxergala como sendo inconsistente com a natureza própria do Direito enquanto Direito Essa conexão particular entre as esferas jurídica e da moralidade que divide o campo positivista em dois traduzse na ideia segundo a qual valores e princípios morais substantivos podem contar entre os critérios possíveis a partir dos quais um sistema jurídico pode determinar a existência e o conteúdo daquilo que conta como Direito válido No exemplo de Waluchow expoente do campo positivista que aceita essa conexão é como se a regra de reconhecimento de um sistema contivesse testes ou critérios morais explícitos para asserção de validade à legislação promulgada pelos órgãos competentes Somente o pedigree pode não bastar Aqueles que defendem essa tese ie a tese segundo a qual a regra de reconhecimento pode incorporar critérios morais de validade pertencem ao positivismo inclusivo ou soft positivism campo personificado por autores como David Lyons Jules Coleman 517 o próprio Hart do pósescrito518 e o próprio Wil Waluchow Uma vez explicada a tese a razão do nome tornase autoevidente Impossível trabalhar minuciosamente as visões de todo e cada um desses autores O que deve ficar claro é que segundo o positivismo inclusivo Dworkin tem razão ao alertar à 516 Cf WALUCHOW W J Inclusive Legal Positivism Oxford Oxford University Press 2003 p 81 517 Cf WALUCHOW W J Inclusive Legal Positivism Oxford Oxford University Press 2003 pp 8182 518 Que inaugura não somente o termo soft positivism como principalmente inaugura a própria vertente tal como veio a se desenvolver depois Cf HART H L A The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 247 138 possibilidade de que a existência e o conteúdo do Direito tenham sim relação com sua justificação moral está contudo errado quanto à sua explicação sobre essa possibilidade O positivismo inclusivo sustenta que a validade jurídica pode depender de critérios morais substantivos não em razão de um processo interpretativo que se engaja na busca de um Direito visto sob sua melhor luz Dworkin mas simplesmente porque é uma possibilidade que sistemas jurídicos modernos reconheçam esses princípios como determinantes acerca da validade jurídica Em termos mais claros o positivismo inclusivo dirá que são as próprias fontes sociais que tornam esses critérios morais relevantes como critérios519 Em suma diz Lenio Streck ao caracterizar o positivismo inclusivo se o Direito é identificado por convenções nada impediria que estas circunstancialmente incorporem ou façam uso de princípios de moral política como critério de validade do Direito Ainda assim não se pode perder de vista que possibilidade que não quer dizer necessidade520 Na mesma linha o célebre jusnaturalista John Finnis apresenta uma boa definição Positivistas inclusivos não gostariam de separar a questão Qual é o direito aplicável a esse caso da questão Qual é de acordo com nosso direito minha responsabilidade como juiz deste caso Se o Direito de um Estado tomado como um todo explícita ou implicitamente autoriza ou exige que os juízes em certos tipos de caso perguntem a si próprios o que a moralidade requer nesse tipo de circunstâncias então os padrãoões morais que respondem à questão ou ao menos as conclusões morais aplicáveis em tais circunstâncias têm além de autoridade moral autoridade jurídica Os padrões morais contam nessa medida e por essa razão como parte do Direito São como alguns dizem incluídos ou incorporados ao Direito da comunidade521 Da acertadíssima lição de Finnis contudo não se pode perder de vista o que disse antes e pela importância que tem o ponto repito que essa incorporação ie a validade jurídica dependente de considerações morais para o positivismo inclusivo é uma questão contingencial critérios morais só afetam a validade jurídica nas eventuais hipóteses em que 519 Cf GREEN Leslie Legal Positivism In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Spring 2018 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesspr2018entrieslegalpositivism 520 Grifos meus STRECK Lenio Luiz Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito à Luz da Crítica Hermenêutica do Direito Belo Horizonte Casa do Direito 2017 p 169 521 Tradução livre Inclusive legal positivists are unwilling to sever the question What is the law governing this case from the question What according to our law is my duty as judge in this case If a states law taken as a whole explicitly or implicitly authorizes or requires the judges in certain kinds of case to ask themselves what morality requires in circumstances of this kind then the moral standards answering that questionor at least the moral conclusions applicable in such circumstanceshave legal as well as moral authority The moral standards are to that extent and for that reason to be counted as part of our law They are as some say included within or incorporated into the communitys law FINNIS John Natural Law The Classical Tradition In COLEMAN Jules L HIMMA Kenneth E SHAPIRO Scott J The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law Oxford Oxford University Press 2004 p 11 139 a eventual regra de reconhecimento assim determine em determinado sistema jurídico Em outras palavras a relevância da moralidade é determinada em qualquer sistema jurídico pelo conteúdo contingente das regras de reconhecimento daquela sociedade522 O positivista inclusivo portanto discorda de Dworkin ao subscrever a tese do pedigree mas ao menos em alguma medida em maior ou menor grau concorda parcialmente com algumas das objeções dworkinianas com relação à tese das fontes523524 O positivismo inclusivo então em síntese permite que critérios morais figurem entre os testes de validade jurídica desde que a comunidade jurídica em questão tenha adotado esses critérios convencionalmente afinal seja como for o positivista inclusivo ainda é um positivista e entende que critérios jurídicos sempre serão uma questão de convenções525 É possível discordar com relação ao caráter da convenção que confere autoridade aos critérios de validade mas todo positivista vai concordar que esses critérios tem autoridade em virtude de uma convenção social526 233 O positivismo exclusivoexcludente Todo positivista portanto inclusivosoft ou exclusivohard vai concordar que em última instância fatos jurídicos são determinados por fatos sociais O inclusivista porém dirá que esses fatos jurídicos podem envolver critérios morais em sua identificação se as regras de reconhecimento assim permitirem o positivista exclusivo por sua vez dirá que fatos jurídicos são determinados por fatos sociais ponto Uma regra de reconhecimento nunca vai dispor de testes de legalidade que condicionam a validade do Direito à sua conformação a determinados eventuais critérios morais527 Parêntesis não nos esqueçamos do alerta de Waluchow Positivista algum exclusivista ou inclusivista negará que determinadas normas 522 Tradução livre da seguinte passagem In other words the relevance of morality is determined in any legal system by the contingent content of that societys rules of recognition MARMOR Andrei Exclusive Legal Positivism In COLEMAN Jules L HIMMA Kenneth E SHAPIRO Scott J The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law Oxford Oxford University Press 2004 p 105 523 Cf MARMOR Andrei Exclusive Legal Positivism In COLEMAN Jules L HIMMA Kenneth E SHAPIRO Scott J The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law Oxford Oxford University Press 2004 p 115 524 Para Dworkin o positivismo ao se tornar inclusivo já não é mais positivismo Para um debate DworkinColemanRaz cf Thirty Years On em Justice in Robes DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 pp 187222 525 Cf COLEMAN Jules L The Practice of Principle In Defence of a Pragmatist Approach to Legal Theory Oxford Oxford University Press 2003 pp 99100 526 HIMMA Kenneth E Inclusive Legal Positivism Cf MARMOR Andrei Exclusive Legal Positivism In COLEMAN Jules L HIMMA Kenneth E SHAPIRO Scott J The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law Oxford Oxford University Press 2004 p 130 527 Cf SHAPIRO Scott J Legality Cambridge The Belknap Press 2011 p 270 140 jurídicas façam referência a padrões morais ou necessariamente discordará que por muitas vezes juízes empregam argumentos morais em meio à argumentação jurídica O ponto é que ao passo que o positivista inclusivo aceita que a regra de reconhecimento incorpore critérios morais de validade o exclusivo dirá que muito embora haja leis em sentido lato cujo conteúdo envolve conceitos morais essas leis são leis válidas em razão de seu pedigree são leis porque por exemplo foram promulgadas por uma legislatura decididas por meio de precedente judicial ou inauguradas por decisões administrativas Os positivistas exclusivos portanto não negam a existência óbvia de referências a conceitos morais no Direito negam em outras palavras que fatos morais possam ser responsáveis por sua existência ou conteúdo528 Padrões morais portanto ainda que presentes nos textos legislativos ou na argumentação jurídica não fazem parte dos critérios de validade jurídica e enquanto padrões sequer são jurídicos se carentes de conformidade com as fontes sociais da comunidade529 Como dito anteriormente Postema tem razão ao traçar a divisão no campo positivista de volta ao debate HartDworkin Não apenas i a primeira formulação do positivismo soft foi desenvolvida pelo próprio Hart no pósescrito ii cada uma das vertentes positivistas responde de uma forma ou outra cada uma à sua maneira aos desafios lançados pelo general attack de Dworkin ao positivismo Nesse sentido então Scott Shapiro ele próprio um representante do positivismo exclusivo ao lado de nomes como por exemplo Joseph Raz e Andrei Marmor explica os diferentes positivismos e suas reações a Dworkin de forma magistral À objeção dworkiniana de que o positivismo leva a um convencionalismo isto é uma concepção segundo a qual o Direito termina quando se esgota a convenção de modo que o juiz acaba por decidir hard cases com discricionariedade o positivista inclusivo responde dizendo que a objeção é inadequada De acordo com a tese inclusivista em linhas gerais casos difíceis podem ter respostas corretas desde que a regra de reconhecimento exija a aplicação de normais morais quando as normas primárias de pedigree esgotamse530 528 Exclusive positivists claim that these rules are law because they have social pedigrees for example they have been passed by a legislature decided by judicial precedent or enacted by administrative rulings They deny in other words that moral facts can be responsible for their existence or content SHAPIRO Scott J Legality Cambridge The Belknap Press 2011 pp 271272 529 FINNIS John Natural Law The Classical Tradition In COLEMAN Jules L HIMMA Kenneth E SHAPIRO Scott J The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law Oxford Oxford University Press 2004 p 12 530 Grifos meus tradução livre Hard cases might have right answers on this view provided that the secondary rule of recognition requires the application of moral norms when the pedigreed primary norms run out SHAPIRO Scott J Legality Cambridge The Belknap Press 2011 p 273 141 Fatos morais então determinam o Direito porque os fatos sociais em última instância determinam que esses fatos morais desempenhem esse papel531 Agora se o inclusivismo responde à objeção dworkiniana dizendo que ela não se aplica o positivista exclusivo dirá que sim o Direito válido é determinado por fatos sociais e apenas fatos sociais sendo assim uma vez que esses fatos precisamente porque sociais apenas não podem responder de antemão a todos os casos possíveis o Direito qua sistema terá sim muitas lacunas e inconsistências532 Disso não se segue contudo dirá o positivista exclusivo que isso por si só obrigue que se dê razão a Dworkin em sua proposta interpretativista Afinal mesmo quando se exige que juízes recorram à esfera da moralidade quando da resolução de hard cases o positivista exclusivista dirá simplesmente que os juízes estão respondendo à obrigação que têm de aplicar padrões extrajurídicos quando as normas jurídicas esgotamse533 Por fim o mesmo Shapiro apresenta três conclusões interessantes a meu ver uma delas convida algumas objeções ao passo que concordo integralmente com as outras duas Primeiro Shapiro diz que ambos os campos positivistas respondem aos desafios de Dworkin penso que a questão exige ainda maior discussão à qual voltarei quando da discussão das considerações de Jeremy Waldron acerca do argumento do aguilhão semântico trazendo inclusive os pontos do próprio Shapiro534 Segundo Shapiro embora acabe por tomar ele próprio o lado do positivismo exclusivo diz que é possível discutir qual das duas respostas positivistas é superior Tem razão o positivismo inclusivo ao permitir que o Direito dependa também de fatos morais desde que estes figurem entre os fatos sociais Ou ao contrário a razão estaria com os positivistas exclusivos que negam que o Direito possa ser determinado por fatos morais sob qualquer circunstância535 De fato há sólidos argumentos possíveis sustentando cada um dos dois lados basta ver a força intelectual de teóricos que subscrevem a cada uma dessas teorias Terceiro Shapiro diz que muitas vezes o senso comum reforça uma ideia de que filósofos jurídicos preocupamse meramente com uma questão de rotulação a teoria jurídica 531 Moral facts determine the law because social facts ultimately determine that they play such a role SHAPIRO Scott J Legality Cambridge The Belknap Press 2011 p 273 532 Many gaps and inconsistencies 533 Grifos meus tradução livre For even when judges are required to look to morality to resolve hard cases exclusive legal positivists simply say that judges are responding to their obligation to apply extralegal standards when the legal norms run out SHAPIRO Scott J Legality Cambridge The Belknap Press 2011 p 273 534 Both the inclusive and exclusive legal positivist therefore can respond to Dworkins challenge SHAPIRO Scott J Legality Cambridge The Belknap Press 2011 p 273 535 Is the inclusive legal positivist right in allowing the law to depend on moral facts as long as it ultimately rests on social facts Or is the exclusive positivist correct in denying that the law may be determined by moral facts under any circumstances SHAPIRO Scott J Legality Cambridge The Belknap Press 2011 p 273 142 resumese à atribuição ou não do nome Direito enquanto rótulo a algum objeto Embora argumente que problemas desse tipo não são o interesse primário da filosofia do Direito Shapiro confessa que o debate inclusivismoexclusivismo é essencialmente536 uma disputa desse tipo O ponto de desacordo afinal está em saber se uma norma que os juízes têm a obrigação de aplicar e não está no pedigree é ainda assim uma norma jurídica Tanto o positivista exclusivista quanto o positivista inclusivista em outras palavras concorda que os juízes devem aplicar normas morais quando se esgotam os padrões do pedigree Eles apenas discordam quanto a como descrever o que esses juízes estão fazendo para o positivista inclusivista os juízes estão aplicando normas jurídicas para o positivista exclusivista eles estão criando normas jurídicas Nesse sentido o resultado imediato desse debate não afeta o que os juízes devem fazer diz respeito apenas a como descrever o que eles estão efetivamente fazendo537 A conclusão de Shapiro é bastante conclusiva com o perdão da redundância e além disso muito importante para os propósitos desta análise Retomo um ponto específico da passagem para explicar Shapiro diz que o resultado imediato desse debate entre positivismo inclusivo e positivismo exclusivo não afeta o que os juízes devem fazer diz respeito apenas a como descrever o que eles isto é os juízes estão efetivamente fazendo Shapiro é verdade diz acertadamente que ainda que surja como uma disputa semântica as eventuais considerações em favor de um lado ou outro acabam sendo as mesmas razões em favor de uma ou outra abordagem normativa acerca da prática jurídica538 Seja como for o que fica é o positivista modernocontemporâneo qualquer que seja a posição por ele tomada no debate interno tem como preocupação fundamental a proposta de descrever o Direito Seja exclusivo ou inclusivo hard ou soft o positivismo jurídico dá continuidade à metodologia de Hart que por sua vez ainda que tenha rejeitado as definições fundamentais deu continuidade à proposta metodológica de John Austin O positivismo portanto ainda que apresente uma série de vertentes e versões próprias ainda que enseje debates teoréticos interessantes e até divertidos539 como diz Shapiro é uma proposta eminente e fundamentalmente analítica Para Dworkin e isso é inegável quem quer que tenha razão 536 Essentially 537 Grifos meus tradução livre The point of contention after all is whether it is proper to call a nonpedigreed norm that judges are legally bound to apply a legal norm Both the exclusive and inclusive legal positivist in other words agree that judges are bound to apply moral norms when the pedigree standards have run out They just disagree about how to describe what they are doing for the inclusive legal positivist judges are applying legal norms for the exclusive legal positivist they are creating legal norms In this regard the immediate outcome of this debate does not affect what judges should do it only concerns how to describe what they are doing SHAPIRO Scott J Legality Cambridge The Belknap Press 2011 p 274 538 Cf SHAPIRO Scott J Legality Cambridge The Belknap Press 2011 p 274 539 Fun 143 no debate a metodologia analítica enquanto proposta de em maior ou menor grau uma sociologia descritiva hartiana é uma proposta insuficiente Também o é para Jeremy Waldron e é a isso que finalmente passo agora Antes porém mais uma breve conclusão parcial para que os principais pontos fundamentais estejam mínima e devidamente controvertidos 234 Conclusão parcial Ao longo do primeiro capítulo vimos o desenvolvimento do positivismo jurídico antes mesmo que levasse o nome de positivismo no contexto anglosaxão Com Thomas Hobbes e Jeremy Bentham ainda que com diferenças muito claras o positivismo jurídico surge como uma teoria normativa política em favor de postulados filosóficopolíticos que levam a conclusões deles derivados no âmbito do Direito Tanto Hobbes quanto Bentham desenvolveram avant la lettre concepções positivistas acerca do fenômeno jurídico que exatamente porque baseadas em pressupostos eminentemente normativos levavam a propostas igualmente normativas É com Bentham porém que começa a aparecer de forma mais clara do que em Hobbes aquilo que marca o positivismo em todas as suas vertentes desde as mais clássicas às mais contemporâneas a distinção entre o Direito como ele é e como ele deveria ser O positivismo então ontem e hoje passa por uma distinção muito clara entre fato e valor entre as esferas do is e do ought Nesse sentido e exatamente com a dicotomia fatovalor como alicerce Austin discípulo de Bentham ainda no séc xix inaugura afinal aquela que viria ser a abordagem dominante em praticamente toda doutrina positivista a busca por uma teoria analítica do Direito Muito embora também tivesse uma definição analítica do ponto de vista ontológico acerca do Direito Bentham desenvolveu todo um corpo teórico normativo com relação ao Direito na Inglaterra Austin por outro lado tomou como verdadeira a definição benthamiana acerca do que o Direito efetivamente era e com isso em mente preocupouse em diferenciar os comandos jurídicos de outros tipos de comandos A pretensão normativa foi senão completamente quase totalmente deixada de lado Austin com sua analytical jurisprudence foi o teórico que serviu de paradigma ao Direito anglosaxão durante muitos anos Finalmente no século xx veio H L A Hart e seu The Concept of Law que pretendia justamente elaborar um conceito de Direito reformulando as definições oitocentistas de Austin Hart assim inaugura uma série de 144 subconceitos que figuram até hoje nas discussões jurídicas no contexto anglosaxão conceitos como regras primárias regras secundárias regra de reconhecimento A ideia de regra além de importante é elucidativa porque não é por acaso denota a influência admitida e expressa sobre Hart da filosofia da linguagem oxfordiana Homem de seu meio então Hart vai seguir também exatamente essa proposta analítica de modo que enquanto rejeita as definições de Austin segue a proposta teórica de uma analytical jurisprudence a que Hart chama de sociologia descritiva Hart então entende que o Direito não necessariamente satisfaz critérios morais e os critérios de validade jurídica estão em uma regra social a que Hart chama de regra de reconhecimento uma regra sobre regras uma metaregra a partir da qual as demais regras do sistema jurídico são derivadas Isso inaugura a grande tese positivista segundo a qual os critérios de validade do Direito emanam de fontes sociais Ronald Dworkin exaluno de Hart discorda completamente da análise positivista seja no plano metodológico seja naquilo que Dworkin entende como suas consequências práticas Para Dworkin em suas primeiras críticas uma concepção positivista leva logicamente a uma concepção fechada na qual o Direito é um sistema de e composto apenas por regras um sistema que é incapaz de levar em conta a existência de princípios jurídicos padrões normativos igualmente jurídicos que operam de forma bastante distinta dessas regras que os positivistas identificam no sistema por eles descrito Dworkin não parou por aí ao longo de sua carreira acadêmica refinou o argumento e desenvolveu novas objeções Já na década de 1980 passados vinte anos de seu primeiro ataque ao positivismo de Hart Dworkin passou a tratar o positivismo como uma teoria semântica uma teoria incapaz de dar conta do Direito adequadamente já que o Direito ao contrário do que dá a entender o positivismo não é um conceito criterial mas um conceito interpretativo Assim Dworkin entende que o positivismo sendo o Direito um fenômeno interpretativo leva a uma abordagem convencionalista da prática jurídica que condiciona sua existência enquanto prática jurídica a convenções sociais e sendo essa uma explicação insuficiente analítica e normativamente Dworkin desenvolve sua própria concepção Para Dworkin a melhor interpretação da prática jurídica é o Direito como integridade que propõe a melhor interpretação construtiva do Direito Em síntese a proposta de dworkiniana de law as integrity é que o Direito deve ser aquilo que ele já é interpretado sob sua melhor luz540 540 Essa fantástica definição é do Prof Dr André Coelho da Universidade Federal do Rio de Janeiro e é por ele utilizada em suas palestras Registro a fonte e o agradecimento 145 Dworkin é um filósofo cuja teoria ampla abrangente desenvolveuse ao longo de muitos anos Mais tarde já ao final de sua carreira Dworkin abandonou a ideia de regras e princípios de uma conexão entre Direito e moral e passou a trabalhar com a ideia à luz de sua proposta holística de uma unidade do valor de o Direito como um ramo da moralidade política Seja como for com relação ao debate no âmbito da jurisprudence o desafio de Dworkin ao positivismo jurídico permanecia a explicação analítica do Direito baseada nas fontes sociais não explicava a prática e a argumentação jurídica e seu inevitável engajamento com premissas explicações razões justificações de caráter moral E o desafio dworkiniano certo ou errado foi suficientemente paradigmático exigiu uma resposta póstuma é verdade de Hart que dispôs que i ambos tinham propostas diferentes e nãoexcludentes com relação ao Direito e principalmente ii que a ideia de regra de reconhecimento não exclui necessariamente que os critérios de validade envolvam também critérios morais O debate HartDworkin assim dividiu o campo positivista em dois entre os positivistas inclusivistas que concordam em maior ou menor grau com a tese de Hart no pósescrito e os positivistas exclusivistas que entendem que a validade do Direito está assentada somente em fatos sociais Com todas suas nuances todas suas diferenças o fato é que o positivismo desde Austin é uma proposta analítica acerca do Direito pretende oferecer um conceito explicativo acerca do que é is o Direito Dworkin rejeita a proposta positivista em todos os seus níveis Eis que surge em meio a esse debate aquilo que procuro apresentar como uma terceira via a proposta teórica de Jeremy Waldron 146 3 JEREMY WALDRON E A DEMOCRATIC JURISPRUDENCE Eu estou interessado em algumas características específicas do Direito em uma democracia A abordagem puramente descritiva está equivocada Uma Teoria do Direito democrática será inevitavelmente uma teoria que pressupõe determinados valores e em minha visão em nada perde nesse sentido541 Jeremy Waldron Jeremy Waldron tem figurado já há muito tempo entre os mais astutos filósofos do Direito542 Ronald Dworkin Jeremy Waldron é indubitavelmente um dos mais influentes pensadores na teoria jurídica contemporânea Com escritos substanciais cujas áreas abordadas vão desde a Teoria do Direito per se passando pelo constitucionalismo o direito internacional e o rule of law a questões mais amplas em moralidade e filosofia política como o liberalismo e o conceito de dignidade humana sua obra tem a meu juízo elementos suficientes a ponto de i permitir que sua proposta teorética acerca do Direito seja organizada de modo sistemático e sobretudo ii classificalo como uma autêntica terceira via entre positivismos e law as integrity Não estará completamente enganado aquele que ao menos à primeira vista tender a associar Waldron e sua obra ao positivismo jurídico a associação não é por acaso A influência hobbesiana sobre a obra de Waldron não é apenas inegável é expressa Não só isso foi ele quem articulou e definiu talvez da forma mais clara já publicada aquilo que pode ser chamado de positivismo normativo vertente sobre a qual falo no item subsequente exatamente a partir do texto de Waldron demonstrando e afirmando uma forte afinidade com a posição expressada através da locução543 Como o próprio nome já indica tratase de uma 541 I am interested in some distinctive features of law in a democracy The purely descriptive approach is mistaken A democratic jurisprudence is bound to be a valueladen jurisprudence and in my view none the worse for that WALDRON Jeremy Can There Be a Democratic Jurisprudence Emory Law Journal vol 58 n 3 2009 pp 675712 542 Jeremy Waldron has long been among the most astute legal philosophers WALDRON Jeremy Did Dworkin Ever Answer the Crits In HERSHOVITZ Scott ed Exploring Laws Empire The Jurisprudence of Ronald Dworkin Oxford Oxford University Press 2012 p 298 543 Cf WALDRON Jeremy Normative or Ethical Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 pp 410434 147 variação de cunho normativo do positivismo jurídico que em vez de tentar descrever o fenômeno jurídico a partir das teses tipicamente positivistas pretende prescrever em maior ou menor grau que o Direito seja estruturado a partir de uma ideia baseada na tese das fontes e na tese da separabilidade conceitual entre Direito e moral Não é sem razão portanto que autores importantes sobretudo no contexto latinoamericano classifiquem Waldron como um positivista Roberto Gargarella e José Luis Martí por exemplo em sua introdução a Derecho y desacuerdos tradução para o espanhol de Law and Disagreement magnum opus de Waldron afirmam expressamente que a teoria de Waldron encaixase em um rótulo positivista ainda que normativo544 No Brasil em outro exemplo Georges Abboud inclui Waldron no rol de positivistas inclusivistas545 Como dito não é sem razão de fato Waldron escreveu sobre aquilo a que ele próprio chamou de positivismo normativo e quase que até diretamente assumiu a própria filiação teorética à corrente O que pretendo sustentar ao longo deste capítulo e antecipo desde já baseado em escritos posteriores do próprio Jeremy Waldron é que o desenvolvimento teórico da obra waldroniana ao longo dos anos é suficiente para classificalo como um autor que foi além do positivismo seja ele conceitual ou normativo De todo modo comecemos a análise pelo positivismo normativo ou ético conforme apresentado pelo próprio autor 31 WALDRON E O POSITIVISMO NORMATIVO Logo ao início de seu texto publicado em coletânea que editada por Jules Coleman reúne ensaios que de uma forma ou outra gravitam em torno do pósescrito de Hart a The Concept of Law Waldron faz menção ao fato já articulado ao longo desta pesquisa própria de que o positivismo é frequentemente tomado por uma tese puramente conceitual isto é o positivismo sustenta que conceitualmente não há uma relação necessária entre Direito e moralidade entre os fundamentos do juízo jurídico e do juízo moral tese da separabilidade O que Waldron diz a partir disso é que é possível articular o positivismo como uma tese normativa acerca do Direito de forma a sustentar que a separabilidade entre Direito e moral e para o ponto de Waldron ainda mais precisamente a separabilidade 544 Cf GARGARELLA Roberto MARTÍ José Luis Estudio Preliminar La Filosofía del Derecho de Jeremy Waldron Convivir entre Desacuerdos In WALDRON Jeremy Derecho y Desacuerdos Tradução de José Luis Martí e Águeda Quiroga com estudo preliminar de Roberto Gargarella e José Luis Martí Madrid Marcial Pons 2005 pp xlixliii 545 Cf ABBOUD Georges Processo Constitucional Brasileiro 2 ed São Paulo Revista dos Tribunais 2018 pp 107108 148 entre juízos jurídicoslegais e juízos morais é algo bom positivo talvez até indispensável de um ponto de vista moral social ou político e certamente algo a ser valorizado e encorajado546 Essa é portanto a tese a que Waldron chama de positivismo normativo Waldron é verdade já em seu título abre a possibilidade de que a tese seja chamada não de positivismo normativo mas de positivismo ético é o nome que prefere e adota por exemplo Tom Campbell autor expressamente filiado à corrente normativa ética do positivismo jurídico Para Campbell o termo ético seria superior de modo a evitar possíveis confusões com aquilo que parte da doutrina chama de positivismo normativista ie uma versão que conceitualmente isto é sem um cunho que se pretende normativo identifica e relaciona o Direito a uma ideia de normas eg Hans Kelsen principalmente e o próprio Hart Waldron diz preferir ainda assim o termo normativo porque entende que ético remete a padrões normativos pessoais individuais em oposição a padrões normativos que dizem respeito à avaliação de instituições que é precisamente a ideia por trás de sua posição positivistanormativa547 Assim como Waldron preocupouse em fazer portanto faço igualmente questão de deixar claro Positivismo normativista O Direito é um conjunto de normas Positivismo normativoético O Direito é um conjunto de normas Positivismo normativoético Juízos jurídicos devem ser diferenciados de juízos morais Nesse sentido portanto o positivismo normativo é caracterizado como uma proposta que prescreve algum tipo de uma tese da separabilidade Como o próprio Waldron levanta no ensaio e como procurei mostrar ao longo dos capítulos antecedentes é em alguma medida a proposta positivista original clássica de Hobbes e Bentham548 não uma análise puramente conceitual das esferas jurídica e moral mas uma preocupação normativa com as condições necessárias para coordenação resolução de conflitos e para a estabilidade geral das 546 Perhaps even indispensable from a moral social or political point of view and certainly something to be valued and encouraged WALDRON Jeremy Normative or Ethical Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 p 410 547 Posição que como já disse sustentarei ter sido senão abandonada transcendida por Waldron ao longo de sua obra 548 Esse é também o ponto de Gerald Postema talvez ele próprio em alguma medida um positivista normativo no sentido de que fala Waldron Cf POSTEMA Gerald J Bentham and The Common Law Tradition Oxford Oxford University Press 1986 pp 328336 149 expectativas de convívio entre as pessoas549 Suas concepções positivistas então tinham como pressupostos e eram formadas por interesses normativopolíticos Poderseia argumentar é verdade e é o que faz Jules Coleman por exemplo550 que uma versão que se pretende normativa do positivismo jurídico depende necessariamente do positivismo enquanto tese conceitual551 Nesse sentido Waldron desenvolve seu ponto exatamente a partir dos positivismos conceitualis dizendo que há um espaço lógico entre afirmar i que o Direito não necessariamente implica moralidade e ii que o Direito necessariamente não implica moralidade Como já vimos é a tese do positivismo inclusivo que determinados sistemas jurídicos podem incluir critérios morais em sua regra de reconhecimento e com base no próprio Coleman Waldron diz que a versão do positivismo que não proíbe essa possibilidade em termos conceituais pode ser igualmente chamada de positivismo negativo552 Nesse espaço lógico entraria o positivismo normativo se o positivismo negativo deixa em aberto a possibilidade de inclusão de critérios morais entre os critérios jurídicos as pretensões normativas do positivismo ético condenam essa possibilidade inclusiva que o positivismo negativo autoriza Nos termos de Waldron portanto é possível dizer que o positivismo normativo dá razão ao conceito do positivismo inclusivo concordando que não é impossível ou conceitualmente incoerente pressupor a existência de sistemas jurídicos que incluem critérios morais na regra de reconhecimento mas prescreve algum tipo de versão mais próxima do positivismo exclusivo no sentido de dar um caráter normativo a uma tese forte da separabilidade de cunho obviamente mais exclusivista553554 549 In their respective versions of the separation thesis Hobbes and Bentham showed no particular interest in the analysis of pure conceptual differences between law and morality Instead they were interested in the conditions necessary for coordination for conflict resolution and for the general stability of expectations in peoples dealings with one another Those were the normative interests that informed and shaped their positivist account of the nature and function of law WALDRON Jeremy Normative or Ethical Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 p 411 550 COLEMAN Jules L Markets Morals and the Law Cambridge Cambridge University Press 1988 p 11 551 O próprio Waldron reconhece o ponto em alguma medida ao dizer que uma concepção positivista de Direito é comum a ambos tipos de positivismo descritivo e normativo Repito meu ponto não pretende afirmar uma rejeição completa da parte de Waldron ao positivismo enquanto concepção conceitual mas uma transcendência gradual em relação a uma posição meramente positivista Cf WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 166 552 COLEMAN Jules L Markets Morals and the Law Cambridge Cambridge University Press 1988 p 07 WALDRON Jeremy Normative or Ethical Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 p 414 553 Trecho baseado na seguinte passagem Another way of putting this is that what I am calling normative positivism assumes what Coleman calls negative positivism but prescribes something like exclusive positivism WALDRON Jeremy Normative or Ethical Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 p 414 150 Também seria possível contraargumentar e Waldron toma Coleman novamente como exemplo da possível posição555 que a adoção de um positivismo normativo ie conferir um caráter normativo a uma concepção positivista de Direito seria atentatório à posição metodológica tradicionalmente positivista seria afinal misturar a moralidade no sentido de dever ser com o conceito de Direito que para o positivista está na esfera daquilo que é Nesse sentido a incorporação de uma abordagem normativa à teoria jurídica ameaçaria é o que diz a posição representada por Coleman a possibilidade inaugurada pelo positivismo analítico de falar conceitualmente sobre o Direito ie a possibilidade de dizer o que é o Direito é sem emitir juízos morais sobre o conceito556 Waldron então questiona será que é negativo o fato de talvez com isso não mais podermos distinguir assim tão facilmente o positivismo normativo de posições que poderiam ser desenvolvidas por teorias modernas do direito natural O próprio Waldron responde e taxativamente Não Para o autor a dicotomia positivismojusnaturalismo é tão ultrapassada que a hipótese de seu desaparecimento é não uma perda mas no máximo uma interessante consequência557 da adoção de um positivismo normativo Se a dicotomia entre positivismo e direito natural for janela afora que seja558 32 WALDRON E DWORKIN ACORDO A PARTIR DOS DESACORDOS Waldron portanto identificase com uma abordagem normativa do positivismo jurídico Em sua própria definição articulada indiretamente em Law and Disagreement e diretamente em seu ensaio presente no Harts Postscript essa abordagem i assume uma concepção conceitualmente inclusivista dando razão a quem diz que certos sistemas jurídicos podem incluir critérios morais entre seus critérios de juridicidade mas ao mesmo tempo ii prescreve uma concepção normativamente exclusivista dizendo que há boas razões políticas sociais morais em favor de uma separação entre juízos morais e juízos jurídicoslegais É à 554 Talvez seja essa a razão pela qual Georges Abboud classifica Waldron como um inclusivista interpretação da qual embora a respeite discordo Discordo por razões que ficarão melhor expostas no item 32 quando abordo a relação de Waldron para com o argumento dworkiniano do aguilhão semântico 555 COLEMAN Jules L Markets Morals and the Law Cambridge Cambridge University Press 1988 p 11 556 The distinctively positivist position that it must be possible to say what the law is without making moral judgments WALDRON Jeremy Normative or Ethical Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 p 416 557 Interesting consequence 558 If the dichotomy between positivism and natural law goes out the window so be it WALDRON Jeremy Normative or Ethical Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 p 416 151 la Bentham e Hobbes a posição segundo a qual seria bom para o Direito ser como o positivista descritivo pensa que ele é Nesse sentido portanto o positivismo normativo é ele próprio uma posição moral porque identifica a contaminação de uma decisão judicial por juízos morais como uma desvantagem moral sustenta que perdemos algo de valor quando isso ocorre559 Aqui isto é onde desenvolve o conceito de positivismo normativo em Law and Disagreement embora demonstre grande afinidade com a posição Waldron não se define expressamente como um positivista normativo diz somente560 que o positivismo normativo é de longe a mais interessante forma de positivismo jurídico561 Mas não é só isso em meio a esse ponto Waldron traz ainda um outro aspecto de sua posição que começa a iluminar outros importantes pontos de sua teoria pontos de convergência não mais com o positivismo mas com Ronald Dworkin Waldron diz que considera difícil que uma definição positivista acerca do conceito de Direito possa ser sustentada sem que se recorra eventualmente a uma tese normativa562 Waldron é coerente com as próprias alegações para ele o positivismo exclusivo acaba sendo com muita frequência e ainda que não pretenda uma tese normativa Tanto assim o é que a leitura de Waldron da obra de Joseph Raz o mais proeminente exclusivista é a de que o israelense é em verdade um positivista normativo563 Nesse sentido Waldron parece subscrever a ideia dworkiniana que trata o Direito como um conceito interpretativo na medida em que o positivismo acaba sendo também ele uma abordagem interpretativa acerca do Direito prescrevendo uma abordagem teoréticonormativa da prática jurídica E o que sustento é exatamente isso não se trata de uma aparente concessão ao argumento de Dworkin mas apenas mais um reflexo da profunda influência dworkiniana sobre a obra de Waldron influência que me permite começar a esboçar os argumentos com base nos quais sustento a possibilidade de dizer que Waldron transcende o positivismo jurídico apresentando uma proposta mais original e complexa com relação ao Direito 559 It normative positivism is the thesis that it would be a good thing for the law to be as the descriptive positivist thinks it is Normative positivism is itself a moral claim indeed it is a moral claim about the making of moral claims in the particular area of social life we call law It identifies the contamination of legal decision by moral judgement as a moral disadvantage it says that we lose something of value thereby WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 167 560 Aspas não de citação mas aspas minhas conferindo certa ironia ao uso da palavra somente 561 It is by far the most interesting form of legal positivism WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 167 562 Indeed it is hard to imagine how a positivist definition of the concept of law could be sustained without eventually having to resort to some such Normative thesis WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 167 563 WALDRON Jeremy Normative or Ethical Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 pp 412 414 152 321 Law e rule of law o conceito e o império do Direito A meu juízo a posição teórica de Waldron acerca do Direito foi por ele melhor articulada e claramente exposta em The Concept and the Rule of Law564 paper de 2008 Waldron em meio ao texto diz expressamente que sua posição é fortemente influenciada por Dworkin e sua insistência de que um conceito de Direito deve ser capaz de i levar em conta nossos desacordos com relação aos fundamentos jurídicos sobre determinada questão e não só isso ii de tratar esses desacordos não como uma exceção uma patologia teórica mas como um aspecto constitutivo da prática jurídica565 Ou seja Waldron seguindo a Dworkin adota o argumento dos desacordos teóricos566 argumento que o influencia profundamente567568 Penso que uma vez que subscreve expressamente o argumento do aguilhão semântico Waldron já de pronto não mais pode ser classificado com um positivista puro par excellence Seja como for muito mais importante do que o rótulo é explanar sua teoria tal como se apresenta Waldron diz que é sua leitura da visão de Dworkin visão com a qual ele concorda que os desacordos teóricos em Direito têm natureza dúplice o desacordo é tanto i com relação aos fundamentos do Direito em casos particulares quanto ii com relação ao que o rule of law a legalidade exige Desacordos teóricos portanto existem são parte constitutiva de nossa prática e além de envolverem o Direito qua conceito envolvem também o ideal de rule of law entendido enquanto as exigências da legalidade Isso é importante porque sendo 564 WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 04 mar 2019 565 Here the account that I want to give draws heavily on the recent work of Ronald Dworkin Professor Dworkin has insisted that our concept of law must be able to make sense of the disagreements we often have about how to determine what the law on a particular topic is Moreover it must be able to explain this disagreement not just as a jurisprudential puzzlement or pathology but as a distinctive aspect of legal practice WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 54 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 04 mar 2019 566 Cf o item 2212 desta pesquisa 567 Palavras do próprio Waldron em Artigo de 2012 e saliento a data para demonstrar a diferença temporal entre esse ponto e a posição desenvolvida ainda em 1999 em Law and Disagreement I am strongly influenced by Dworkins work on theoretical disagreement in law Cf n 35 em WALDRON Jeremy Stare Decisis and the Rule of Law A Layered Approach Michigan Law Review v 111 n 01 out 2012 pp 0131 568 Cf WALDRON Jeremy Who Needs Rules of Recognition New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0921 abr 2009 Disponível em httpswwwssrncomabstract1358477 Acesso em 06 mar 2019 153 assim Waldron dirá que desacordos sobre o rule of law estão diretamente conectados com o próprio conceito de Direito como tal569 Isso significa que Waldron trabalha com a ideia de um conceito de Direito a partir de três premissas fundamentais premissas eminentemente dworkinianas i A compreensão acerca do ideal de rule of law legalidade e a compreensão acerca do conceito de Direito devem ser muito mais proximamente conectadas do que são na Teoria do Direito moderna ii Nossa compreensão acerca do rule of law deve enfatizar não apenas a presença de regras estabelecidas e determinadas e o valor de previsibilidade que elas garantam deve enfatizar também a importância fundamental dos aspectos procedimentais e argumentativos que constituem a prática jurídica iii Essas duas proposições anteriores estão intimamente conectadas570 isto é o aspecto procedimental da legalidade ajuda a materializar nosso pensamento conceitual acerca do Direito Além disso compreender os sistemas jurídicos também a partir da argumentação nas cortes e não somente na ideia de existência e reconhecimento de regras é o que garante as bases de uma compreensão muito mais rica dos valores que o ideal de rule of law pressupõe571 Breve interlúdio quando equiparo rule of law e legalidade assim o faço porque o próprio Waldron equipara as ideias de todo modo é importante expor aqui também a partir de Waldron o que quero dizer ainda que de forma ampla Com rule of law falo do ideal de moralidade política segundo o qual indivíduos em posições de autoridade devem exercer seu poder nos limites de uma estrutura de normas públicas e não a partir de suas próprias preferências ideologias ou sensos de certo e errado Tratase portanto exatamente de um ideal de legalidade no sentido de fidelidade ao Direito Agradame nesse sentido a tração império da lei572 569 Grifos meus tradução livre Disagreements about the Rule of Law are bound up with the very concept of law itself WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 59 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 04 mar 2019 570 Our understanding of the Rule of Law and our understanding of the concept of law ought to be much more closely connected than they are in modern jurisprudence our understanding of the Rule of Law should emphasize not just the value of settled determinate rules and the predictability that they make possible but also the importance of the procedural and argumentative aspects of legal practice These two propositions are connected WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 04 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 04 mar 2019 571 The procedural aspect of the Rule of Law helps bring our conceptual thinking about law to life and an understanding of legal systems that emphasizes argument in the courtroom as much as the existence and recognition of rules provides the basis for a much richer understand of the values that the Rule of Law comprises in modern political argument 572 People in positions of authority should exercise their power within a constraining framework of public norms rather than on the basis of their own preferences their own ideology or their own individual sense of right and wrong WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of 154 Qual é então a relação entre o ideal de rule of law e o trabalho especializado dos teóricos analíticos em sua elaboração de um conceito de Direito Mais qual é relação entre o rule of law e o estabelecimento de uma precisa delineação acerca de juízos morais e juízos jurídicos e a relação entre validade jurídica e verdade moral Uma abordagem gramática parece pressupor que entender o conceito de Direito vem antes de uma compreensão sobre o rule of law afinal rule of law é uma locução que tem a palavra law como um de seus componentes Gramaticalmente falando portanto é óbvio que law vem antes de rule of law a gramática indica que é preciso entender o que é o Direito para que se possa entender o que é o império da lei Certo Não para Waldron que discorda do ponto ao qual a gramática parece indicar Para ele a lógica indicada pela perspectiva gramatical é enganosa misleading e que nós não podemos realmente compreender o conceito de Direito sem também compreender os valores que integram o rule of law573 Isso não significa uma inversão não se trata de compreender o que é o império da lei a legalidade e depois buscar entender o que é o Direito o que Waldron quer indicar é que ambos os termos ambas as ideias devem ser compreendidas concomitantemente tratadas de modo que não lhes coloque como componentes separados um do outro Autores como Raz por exemplo dirão que compreender o que é o Direito deve vir antes porque a ideia de rule of law é exatamente uma virtude negativa que corrige os problemas que emergem do Direito Em outras palavras Raz quer dizer que precisamos compreender os perigos que o Direito pode engendrar e que esses perigos podem ser corrigidos pelo ideal de rule of law pode corrigir nesse sentido entender o conceito de Direito deve necessariamente vir antes574 Waldron novamente discorda na medida em que o rule of law em sua concepção é um ideal concebido para corrigir os perigos de abuso do exercício do poder político em geral em sentido amplo e não do Direito em particular O império da lei exige um modo particular de exercício do poder político notadamente Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 05 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 04 mar 2019 573 I think the surface grammar here is misleading and that we cannot really grasp the concept of law itself without also understanding the values comprised in the Rule of Law WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 pp 0910 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 04 mar 2019 574 Raz levanta o ponto ao rebater a ideia de Lon Fuller de que os princípios de legalidade fazem parte do Direito essencialmente e o que o rule of law é digamos condição de possibilidade do ponto de vista ontológico para que o Direito seja enfim Direito Para Raz a ideia conceitual de Direito é algo que sempre vem antes de modo que não é verdade que todo sistema jurídico pressupõe ao menos algum grau de moralidade por supostamente relacionarse em tese necessariamente com uma ideia de legalidade Cf RAZ Joseph The Authority of Law Essays on Law and Morality Oxford Oxford University Press 1979 pp 223224 155 governança através do Direito575 O Direito portanto enquanto Direito é o próprio remédio e não o problema ou potencial problema que um ideal separado à parte in casu o império da lei pretende corrigir O argumento positivista em favor de um conceito claro analítico e prévio de Direito diz Waldron poderia ainda ser sustentado a partir de algo similar à proposta benthamiana de uma divisão entre aspectos teoréticos e censórios de uma teoria576 Bentham lembremos baseado nos pressupostos filosóficos de David Hume defendia a necessidade de uma linha muito clara entre os aspectos descritivos e normativos de uma teoria sob pena de incorrerse em uma explicação no sentido descritivo moralista e porque moralista inadequada à realidade Nesta questão então seria benéfico sustentaria o positivista distinguir entre um conceito descritivo de Direito e um ideal valorativo de império da lei A resposta de Waldron é extremamente interessante e para os fins a que me proponho aqui bastante elucidativa com relação às suas diferenças para com o positivismo tradicional Waldron questiona se de fato devemos ou até podemos considerar o conceito de Direito como sendo parte de uma questão puramente descritiva diz ainda que a partir da visão por ele sustentada descrever o exercício de um poder como uma instância de criação ou aplicação de leis já é dignificalo com um certo caráter já é pois fazer um certo tipo de julgamento ou avaliação Nesse sentido até mesmo na teoria positivista o Direito não é uma categoria fundamentalmente descritiva na medida em que a camada de investigação descritiva é que fornece os dados para nossas avaliações Assim na concepção positivista uma categoria como Direito é simplesmente um modo de estabelecer esses dados preliminares antes de avalialos para Waldron contudo já é um modo de começar o processo valorativo577 575 Grifos meus Indeed the Rule of Law aims to correct abuses of power by insisting on a particular mode of the exercise of political power namely governance through law WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 11 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 04 mar 2019 576 Cf item 142 desta pesquisa 577 Grifos meus Trecho adaptado e traduzido livremente da seguinte passagem It begs the question to say that the concept of law must be regarded as part of that descriptive or empirical apparatus On the view that I shall argue for to describe an exercise of power as an instance of lawmaking or lawapplication is already to dignify it with a certain character it is already to make a certain assessment or evaluation of what has happened Even in positivist jurisprudence law is not a fundamental descriptive category So on all accounts there is a layer of description beneath the level at which we use the term law a layer of descriptive inquiry that everyone agrees needs to be conducted clearheadedly before we can begin the process of evaluation That descriptive inquiry gives us the data for our evaluations On the positivist account a category like law is simply a way of sorting that preliminary data before we begin to evaluate it on the account that I favor it is way of beginning the process of evaluation WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series 156 Waldron então considera que i o conceito de Direito está diretamente ligado ao ideal de rule of law de modo que ii não há que se falar em descrever um conceito de forma neutra e só então depois avaliar esse conceito próprio descrito O processo na concepção de Waldron é muito mais emaranhado do que uma figura positivistadescritiva faz parecer Essa é portanto uma das razões que me fazem crer que as coisas não são assim tão simples quanto simplesmente classificar Jeremy Waldron como um positivista normativo ponto De fato como já vimos o próprio autor diz considerar essa vertente a mais interessante versão de positivismo mas não é como se Waldron simples e tão somente adotasse pressupostos positivistas em uma teoria normativa do Direito As razões por ele adotadas para desenvolver uma proposta teórica normativa passam também por uma rejeição muito clara a importantes aspectos do positivismo aspectos que a meu juízo são tão fortes tão presentes na tradição positivista dominante que rejeitálos significa rejeitar o positivismo tout court Não por menos Waldron ele próprio expõe os motivos pelos quais rejeita aquilo a que chama de positivismo casual578 3211 Against Casual Positivism Waldron diz que há uma analogia possível e interessante entre os modos como usamos os termos Direito aqui entendido enquanto sistema jurídico e democracia Expliquemos a partir do exemplo do próprio autor como faz o próprio autor durante o período da Guerra Fria não se podia levar a sério qualquer regime que atribuía a si mesmo o título de democrático eg DDR República Democrática Alemã sem de fato sêlo Dizer ser uma democracia é diferente de ser uma democracia que pressupõe a possibilidade de dissidências políticas de eleições livres de sufrágio universal etc Onde entra a analogia com o Direito Precisamente na ideia de que para Waldron nem todo sistema baseado na ideia de comandoecontrole que atribui a si mesmo o nome de sistema jurídico é efetivamente um sistema jurídico digno do nome Para Waldron teóricos modernos particularmente positivistas modernos são demasiadamente casuais com relação a como um sistema de governança deve ser para se qualificar como Direito579 O ponto está Working Paper n 0850 set 2008 p 12 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 04 mar 2019 578 Casual positivism 579 I worry that modern students of jurisprudenceparticularly modern legal positivistsare quite casual about what a system of governance has to be like in order to earn the appellation law WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory 157 diretamente relacionado à acertadíssima leitura de Waldron acerca da proposta teorético metodológica do positivismo moderno Basicamente qualquer sistema estruturado e centralizado utilizando prescrições e proibições articuladas e identificáveis conta como Direito desde que uma determinada elite participante desse sistema seja capaz de distinguir as prescrições e proibições que vêm do centro desse mesmo sistema de outras normas que possam circular na sociedade Esse é o positivismo de Hart e seus seguidores modernos Nesse sentido não se difere muito do positivismo de Austin580 Eu chamo a isso isto é a proposta conceitual do positivismo lato sensu baseada em uma regra de reconhecimento em um sistema articulado e centralizado a partir dela de positivismo casual Para esse positivismo casual que é nada mais afinal que o positivismo os regimes de Kim JongIl na Coreia do Norte e de Saddam Hussein no Iraque pré2003 são sistemas jurídicos E Waldron que se opõe à essa casualidade propõe que a filosofia do Direito deve ser menos casual e menos complacente do que isso581 É bastante natural e até provável que aqui se relacione o nome de Waldron a uma proposta jusnaturalista Não por acaso um dos autores trazidos por ele é justamente Lon Fuller autor vinculado à tradição do direito natural Contudo diferentemente de autores vinculados à tradição da lei natural a abordagem de Fuller não passa pela imposição de limites morais substantivos ao conteúdo do direito para Fuller o fenômeno jurídico está sujeito a uma moralidade procedimental uma moralidade que lhe é própria Uma moralidade que é portanto interna ao Direito como tal O Direito em Lon Fuller é um conceito funcional o Direito tem como função a busca da ordem social atingível por meio de regras gerais que regulam o comportamento dos jurisdicionados Como decorrência lógica temos que o sistema jurídico que não é capaz de atingir o fim próprio que lhe constitui enquanto atividade é também incapaz de ser qualificado como um sistema jurídico legítimo E nesse sentido o Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 14 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 04 mar 2019 580 Grifos meus tradução livre Basically any wellorganized system of centralized order using articulate and identifiable prescriptions and prohibitions counts as law provided that elite participants in the system can distinguish prescriptions and prohibitions coming from the centre from other norms that may be circulating in the society This is the positivism of HLA Hart and his modern followers In this regard it really is not much different from the positivism of earlier generations of jurists stretching back through John Austin WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 14 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 581 I call this casual positivism On this account the regimes of Kim Il Jung in North Korea and Saddam Hussein in pre2003 Iraq were legal systems I want to propose that a philosophy of law should be less casual and less accommodating than this WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 14 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 158 Direito só é capaz de cumprir sua função se observados alguns princípios que lhe são condição de possibilidade Princípios justamente de legalidade daí a importância de um autor como Fuller para Waldron que sustenta uma relação necessária entre as noções de Direito e império da lei582 Para Waldron é verdade a teoria de Lon Fuller superestima a ideia de que os princípios procedimentais de legalidade têm uma conexão necessária com um ideal de justiça substantiva Seja como for Fuller está certo com relação à necessidade de superação do positivismo casual com relação à necessidade de que se mantenha fidelidade com uma noção de Direito mais rica mais complexa mais exigente583 E se não fosse só por isso o próprio Waldron já disse se abandonar a complacência do positivismo casual significa abandonar a dicotomia rígida entre positivismojusnaturalismo que seja 3212 Uma nova definição Sendo assim ao i vincular Direito e rule of law ii rejeitando o positivismo casual e ii reconhecendo os méritos de teóricos que como Lon Fuller buscam uma concepção de Direito que se relacione com o ideal de legalidade e ao fazêlo transcendem o positivismo casual Waldron propõe agora em sugestões próprias alguns requisitos elementares para que um sistema conte como jurídico Talvez alguns desses requisitos pareçam irritantemente óbvios Waldron reconhece mas sugere a irritação seja direcionada às teorias positivistas que ignoram essas obviedades584 582 É com base nessa ideia que Lon Fuller articula uma série de princípios que juntos e porque morais constituem a moralidade que torna o Direito possível the morality that makes law possible Com Fuller portanto podemos falar em oito princípios que constituem a moralidade interna do direito princípios formais de legalidade que em si representam as condições mínimas próprias de existência de um sistema jurídico qua sistema jurídico De acordo com a estrutura principiológica temos que as leis para que sejam legítimas devem ser i gerais ii públicas iii prospectivas iv inteligíveis v consistentes umas com as outras ie não contraditórias vi praticáveis vii estáveis e finalmente deve haver viii congruência entre a lei tal como anunciada e sua posterior administração por parte do Estado É por serem condições mínimas para um exercício adequado de sua própria função que a inobservância de qualquer uma delas não resulta apenas em um sistema jurídico ruim mas em algo que sequer pode ser chamado legitimamente de sistema jurídico Cf FULLER Lon L The Morality of Law Edição revisada New Haven Yale University Press 1964 pp 33 39 98 102 106 583 WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 18 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 584 You may be irritated by how obvious my suggestions are I hope you will redirect some of that irritation towards the philosophical theories of law particularly positivist theories that have largely ignored or downplayed these elements in contemporary jurisprudence WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 pp 1920 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 159 Primeiro nenhum sistema pode ser jurídico se não tiver i Cortes ie instituições que aplicam as normas e diretivas estabelecidas em nome da comunidade política e sobretudo que o fazem por meio de procedimentos formais que permitem a participação argumentativa de todos envolvidos na eventual disputa que se apresenta Se é verdade que isso parece óbvio também é verdade que há muito pouco escrito sobre as cortes nas propostas conceituais da teoria positivista moderna Mais do que isso os pressupostos desse requisito em Waldron indicam a necessidade de que a aplicação das normas por parte das cortes deve respeitar a participação argumentativa do indivíduo a elas sujeito585 Segundo um sistema jurídico deve basearse em ii Normas gerais e públicas isto é aquelas normas aplicadas pelas Cortes indicadas como primeiro requisito são normas estabelecidas em nome de toda a sociedade por meio de procedimentos rigidamente estruturados586 É por isso que seu caráter de generalidade não é meramente contingencial um sistema baseado em algo como decretos ad hoc não é não pode ser um sistema jurídico Em si a palavra lei já é a priori associada com a ideia de generalidade em oposição a proposições particulares eg leis da natureza lei moral na ética kantiana etc daí seguese que também a Teoria do Direito deve adotar os princípios de impessoalidade e igualdade que a palavra ela própria pressupõe Naturalmente as normas devem então também ser públicas diretivas secretas não podem servir como pontos de referência de conduta O positivismo é verdade reconhece a necessidade de identificação das normas como tais isso está na própria ideia de regra de reconhecimento Contudo e retomando Hart a regra de reconhecimento positivista é compatível com um reconhecimento exclusivo parte de uma elite uma elite participante do sistema supostamente jurídico responsável pela aplicação das regras Para o positivismo é plenamente possível que os jurisdicionados em geral sob um sistema desconheçam a estrutura jurídica e seus critérios de validade587 Para Waldron contudo é um erro conceber um sistema como jurídico sem que nele haja um meio publicamente acessível de identificação das normas gerais que regulam a conduta dos cidadãos Não se trata de mera questão pragmática a publicidade e a generalidade do Direito 585 Cf WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 pp 20 25 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 586 Grifos meus A second feature is suggested by the way I characterized courts I said that courts were institutions which apply norms established in the name of the whole society through the medium of tightly structured proceedings WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 25 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 587 Cf The Concept of Law 2 Ed Com pósescrito organizado por Penelope A Bulloch e Joseph Raz Oxford Clarendon Press 1994 p 114 160 passam pela ideia que Waldron deve a Henry Hart e Albert Sacks de autoaplicação o Direito trabalha constantemente com a ideia de tornar cada vez mais possível a autoaplicação voluntária de suas normas588 e isso é também uma questão de respeito aos jurisdicionados e sua capacidade de agir589 O terceiro elemento waldroniano é a iii Positividade no sentido de que um sistema jurídico na medida em que trabalha com a ideia de direito positivo ie direito produzido através da atividade humana deve ter além das cortes legislaturas processos legislativos Isso tem a ver com a ideia de i tornar explícito que o Direito é criado modificado e não meramente descoberto e ii desenvolver esse direito positivo a partir de um processo legislativo legítimo e não através de uma atividade judiciária ad hoc 590 O quarto elemento sugerido por Waldron é uma iv Orientação ao bem comum Parte da ideia de um sistema jurídico legítimo pressupõe que suas normas não são meros comandos emitidos por lideranças políticas mas padrões em nome e de preocupação de toda a comunidade política Vejase não se trata de uma posição jusnaturalista radical ou de repristinar o célebre adágio augustiniano segundo o qual lex iniusta non est lex Waldron não está dizendo que um sistema que não promove o bem comum não é um sistema jurídico Está em verdade dizendo que um sistema que não pretende promover o bem comum que não se orienta na direção do bem comum não é um sistema jurídico legítimo591 Não é uma ideia substantiva mas um ideal de aspiração ainda assim muito significativo592 O Direito não será necessariamente justo mas deve ao menos tentar do contrário não se trata de um sistema jurídico digno da qualificação O quinto elemento de uma assumida dificuldade em sua definição é a v Sistematicidade Tratase de algo similar àquilo que Waldron chama de caráter cumulativo do Direito Basicamente a ideia é a de que um sistema jurídico legítimo não é apenas uma 588 Nesse sentido cf WALDRON Jeremy Selfapplication New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 1646 set 2016 Disponível em httpsssrncomabstract2848578 Acesso em 05 mar 2019 589 Cf WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 pp 2429 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 590 Cf WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 pp 2932 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 591 Nesse sentido ver também WALDRON Jeremy Does Law Promise Justice Georgia State University Law Review vol 17 n 03 03 2001 pp 759788 592 Instead of saying that nothing is law unless it promotes the public good we might want to say that nothing is law unless it purports to promote the public good ie unless it presents itself as oriented in that direction This is an aspirational or orientational idea not a substantive one It is nevertheless very significant WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 pp 3334 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 161 sucessão de normas autônomas independentes no Direito não há um ano zero593 Se adotarmos uma concepção crua de positivismo estaremos fadados a compreender o Direito como um amontoado de comandos ainda que seja impossível depreender qualquer sentido inteligível do conjunto594 Ao Direito segundo Waldron não basta uma ideia fraca de coerência meramente institucional o Direito é um sistema não somente em seu sentido institucional mas num sentido que tem a ver com lógica coerência e talvez até com aquilo a que Ronald Dworkin chama de integridade595 Na proposta de Waldron portanto um sistema jurídico legítimo é caracterizado também por um processo legislativo que respeite o ambiente jurídico no qual opera sendo não apenas uma adição de novas leis a um amontoado de comandos apartados um do outro mas uma modificação do corpus juris 596 É isso afinal que permite que a lei seja plenamente suscetível ao escrutínio público a sistematicidade do Direito garante sua apresentação como um sistema unificado de governança que é coerente em si mesmo São esses cinco elementos combinados um ao outro i cortes ii generalidade e publicidade iii positividade iv orientação ao bem comum e v sistematicidade que para Waldron caracterizam as exigências os requisitos mínimos que um sistema deve observar para que seja um sistema legitimamente jurídico Tratase de uma questão de dignidade de respeito à dignidade da argumentação e da racionalidade dos indivíduos cujo comportamento é regulado pelas normas do corpus juris tratase portanto de uma concepção na qual o Direito e o rule of law informam definem e protegem um ao outro respeitando a liberdade e a dignidade de cada cidadão como um centro ativo de inteligência597 Esse é o problema que Waldron identifica no positivismo casual e seu débito para com Dworkin se 593 Year Zero 594 On the crudest positivist understanding that is what the law of the society amounts to that heap of commands whether or not anyone can make sense of them all together WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 35 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 595 Grifos meus Law is a system not only in an institutional sense but in a sense that has to do with logic coherence and perhaps even what Ronald Dworkin has called integrity WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 36 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 596 Legislation is not just the addition of a rule to the heap of laws it is a modification of the corpus juris WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 36 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 597 Cf WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 pp 38 66 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 162 não fosse expresso ficaria muito claro de qualquer forma Tomo liberdade para uma citação mais longa em razão de sua clareza e importância para meus pontos Nenhuma teoria analítica do que é o Direito e o que diferencia um sistema jurídico de outras formas de governança pode ignorar o caráter argumentativo de nossa prática jurídica e o papel distinto que ele representa na consideração por parte de um sistema jurídico de seus cidadãos como centros ativos de inteligência A falácia do positivismo moderno é sua ênfase exclusiva no aspecto de comandoecontrole do Direito sem que se faça qualquer referência à cultura argumentativa que ele forma incentiva e institucionaliza O reconhecimento institucionalizado de uma série característica de normas pode ser um elemento importante Mas no mínimo tão importante quanto aquilo que nós fazemos no Direito com as normas que identificamos Nós não apenas obedecemos a elas ou aplicamos as sanções por elas prescritas nós argumentamos adversariamente sobre elas nós usamos nossas noções acerca do que está em jogo quando de sua aplicação para possibilitar um processo contínuo de troca de argumentos e nós engajamonos em elaborados exercícios interpretativos sobre o que significa aplicalas fielmente como um sistema aos casos que nos são apresentados598 Essa passagem é a meu ver paradigmática na obra de Waldron Suas críticas ao positivismo casual os elementos eminentemente dworkinianos latentes em sua proposta a gravitação em torno de uma cultura argumentativa que define a prática jurídica599 Sistematicidade participação democrática aplicação fiel das normas aos casos a partir da ideia de um corpus juris coerente Subscrição ao argumento dos desacordos teóricos recepção de uma abordagem valorativanormativa rejeição a uma ideia convencionalista a partir da qual o Direito do ponto de vista conceitual é uma questão de reconhecimento de normas do sistema É com tudo isso em mente que Waldron rechaça um positivismo casual e orienta seus esforços à construção de uma proposta teórica diferente E tudo isso para mim é mais muito mais do que meramente uma questão de um positivismo normativo ie aceitar um 598 Grifos meus tradução livre No analytic theory of what law is and what distinguishes legal systems from other systems of governance can afford to ignore this aspect the argumentative character of our legal practice and the distinctive role it plays in a legal systems respect for ordinary citizens as active centres of intelligence The fallacy of modern positivism it seems to me is its exclusive emphasis on the commandand control aspect of law without any reference to the culture of argument that it frames sponsors and institutionalizes The institutionalized recognition of a distinctive set of norms may be an important feature But at least as important is what we do in law with the norms that we identify We dont just obey them or apply the sanctions that they ordain we argue over them adversarially we use our sense of what is at stake in their application to license a continual process of argument back and forth and we engage in elaborate interpretive exercises about what it means to apply them faithfully as a system to the cases that come before us WALDRON Jeremy The Concept and the Rule of Law New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 0850 set 2008 p 61 Disponível em httpsssrncomabstract1273005 Acesso em 05 mar 2019 599 Esses pontos de convergência também ficam muito claros em WALDRON Jeremy Did Dworkin Ever Answer the Crits In HERSHOVITZ Scott ed Exploring Laws Empire The Jurisprudence of Ronald Dworkin Oxford Oxford University Press 2012 pp 158159 163 positivismo inclusivo e prescrever um positivismo exclusivo Waldron propõe uma teoria especializada e democrática sua própria democratic jurisprudence 322 A democratic jurisprudence A palavra football traduzida como futebol pode ter significados distintos a depender do contexto Vejase há muitos livros sobre o assunto football que tratam sobre aquilo a que chamamos de futebol americano do tipo disputado nas faculdades dos Estados Unidos e a nível profissional na NFL600 Igualmente há muitos livros sobre football que tratam sobre o nosso futebol association football soccer nos EUA do tipo praticado por clubes como o Manchester United e o Dínamo de Kiev Da mesma forma há uma série de livros sobre football que tratam sobre o rugby neozelandês Agora há ao mesmo tempo pouquíssimos livros escritos para tratar do football como tal da ideia de football como algo compartilhado pelo futebol americano pelo futebol soccer pelo rugby É fato que se pode desenvolver uma empreitada do tipo não há nada de contraditório ou incoerente na ideia de um livro sobre football em geral sobre aquilo que todos seus códigos específicos compartilham mas o interesse nesse tipo de empreendimento seria impressionantemente limitado601 se comparado aos estudos acerca da teoria e prática do rugby do soccer do futebol americano É nisso afinal que as pessoas com muita razão têm interesse602 Será que não se pode dizer algo similar acerca da Teoria Geral do Direito general jurisprudence o estudo do Direito como tal Afinal há um sem número de livros artigos de material escrito sobre direito romano common law direito canônico direito islâmico lex mercatoria civil law o direito do laissezfaire o Rechtstaat direito administrativo direito internacional e por aí vai603 Em contraste com o exemplo do futebol contudo há igualmente uma série de livros e artigos que abordam o Direito como tal na busca de uma definição acerca do que todos esses sistemas têm e guardam de relação entre si No caso do exemplo autores que tentassem escrever sobre o conceito de football como tal estariam 600 National Football League 601 Staggeringly limited 602 Cf WALDRON Jeremy Can There Be a Democratic Jurisprudence Emory Law Journal vol 58 n 03 2009 pp 675712 603 Might something similar be said about general jurisprudence the study of law as such There are lots of books and articles written on Roman law common law canon law Islamic law the lex mercatoria civil law the body of law associated with classic laissez faire the Rechtsstaat the law of the modern administrative state international law and so on WALDRON Jeremy Can There Be a Democratic Jurisprudence Emory Law Journal vol 58 n 03 2009 pp 675712 164 obrigados à produção de proposições vagas e abstratas como todo football envolve regras que orientam o empreendimento de tentar mover uma bola de um lado do campo a outro contra um time adversário que tenta movêla na outra direção É exatamente o que acontece com os autores que se propõem a elaborar uma Teoria Geral do Direito que acabam por desenvolver proposições vagas e abstratas como todo Direito envolve a governança de regras primárias por regras secundárias604 Waldron reconhece a importância do rigor analítico e do estudo teoréticoconceitual acerca da natureza e dos fundamentos do Direito mas entende também que o mesmo nível de talento analítico605 empregado por autores na busca de respostas a perguntas como O que é o Direito Qual é o conceito de sistema jurídico pode ser orientado a questões jurídicas mais substantivas Nesse sentido então o autor sugere uma orientação a uma teoria jurídica mais especializada uma special jurisprudence Poderseia argumentar que uma teoria mais especializada exige antes uma Teoria Geral do Direito falar sobre uma questão jurídica específica eou substantiva afinal exige exigiria e envolveria antes um conceito geral de Direito Como falar afinal do direito inglês por exemplo sem que se saiba antes o que é o Direito ponto Contudo assim como fez quando da discussão acerca do que vem antes entre law ou rule of law Waldron diz que de novo não é necessariamente o caso que a ordem das coisas seja aquela que a lógica gramatical parece indicar Esse é um importante pressuposto a servir de fundamento da proposta que Waldron desenvolve em sua teoria em vez de uma Teoria Geral do Direito uma general jurisprudence uma teoria especializada uma teoria jurídica democrática uma democratic jurisprudence Na sua proposta de uma teoria democrática Waldron não está interessado em uma abordagem jurídica acerca de tópicos como eleições financiamento de campanhas etc está interessado em uma teoria que indique como o Direito apresentase e deve apresentarse em regimes democráticos Estou interessado diz Waldron em alguns elementos característicos do Direito em uma democracia não se trata de uma análise do tipo gêneroespécie mas sim de demonstrar como alguns dos elementos e teoremas enfatizadas pela abordagem eminentemente analítica do Direito materializamse em uma teoria democrática de modo que assim dentro desse contexto o verdadeiro sentido desses 604 Tradução livre e contextualizada Just as our imagined writers about the general theory of football would have to produce vague and abstract propositions like All football involves rules governing the enterprise of trying to move a ball from one end of a field to the other against the opposition of a team trying to move it in the other direction so writers in general jurisprudence produce vague and abstract propositions like All law involves the governance of primary rules by secondary rules WALDRON Jeremy Can There Be a Democratic Jurisprudence Emory Law Journal vol 58 n 03 2009 pp 675712 605 Analytical talent 165 elementos teóricos outrora demasiadamente abstratos pode ser demonstrado606 digamos em termos dworkinianos sob sua melhor luz 3221 A metodologia de uma teoria democrática Um rápido ponto intermediário Ao desenvolver seu argumento em favor de uma democratic jurisprudence Waldron demonstra de novo e de forma muito clara seu distanciamento com relação ao positivismo metodológico tradicionalmente analítico Afinal a Teoria do Direito deve ser analítica ou normativa Deve preocuparse com o valor de certas práticas e instituições ou deve tão somente buscar identificalas e descrevêlas de forma neutra e desengajada Até aqui ficou espero ter ficado claro que as diferenças entre as duas abordagens são muito bem definidas Arquetipicamente podemos tomar o debate HartDworkin como dois polos opostos nessa questão E Waldron Em The Concept and the Rule of Law e até mesmo nos escritos sobre um positivismo normativo vimos que ele acaba por se afastar da proposta descritiva Na exposição de sua democratic jurisprudence Waldron expõe novamente o lado por ele tomado A abordagem puramente descritiva diz Waldron está equivocada Sua proposta afinal explora as conexões e convergências entre o valor da democracia e o conceito de Direito a democratic jurisprudence de Waldron portanto vai ser necessariamente uma teoria valorativa normativa E na visão dele em nada perde nesse sentido607 O que deve ainda ficar claro porém não é apenas que Waldron i opta por uma abordagem normativa ele também ii rejeita a proposta descritiva Dizer i não necessariamente quer dizer ii e ii é um importante elemento que reforça a rejeição de Waldron ao positivismo tradicional Como vimos em Can There Be a Democratic Jurisprudence Waldron diz que a abordagem puramente descritiva está equivocada608 606 I am interested in some distinctive features of law in a democracy But instead of a straight genusspecies analysis I will show how some of the elements and theorems that are emphasized in the general analytic study of law come to life in democratic jurisprudence I will argue that we can see the point of them in that context whereas they seem rather mysterious abstractions in the context of the most general jurisprudential inquiry WALDRON Jeremy Can There Be a Democratic Jurisprudence Emory Law Journal vol 58 n 03 2009 pp 675712 607 I have said elsewhere that I think the purely descriptive approach is mistaken The kind of democratic jurisprudence that I have in mind explores the connections and the consilience between the value of democracy and the concept of law So a democratic jurisprudence is bound to be a valueladen jurisprudence and in my view none the worse for that WALDRON Jeremy Can There Be a Democratic Jurisprudence Emory Law Journal vol 58 n 03 2009 pp 675712 608 Referência à passagem anterior mas agora com grifo meu 166 Essa posição é reafirmada em um debate com Andrei Marmor609 teórico do positivismo exclusivo que atribui à jurisprudence um caráter basicamente descritivo e moralmente neutro610 Em uma resposta a Marmor que defende a ideia de que a Teoria do Direito deve sim ter um papel puramente descritivo e moralmente neutro Waldron retoma sua analogia entre os termos Direito e democracia sugerindo uma vez mais que assim como sugeria Fuller é possível conceber o Direito como um conceito essencialmente funcional como consequência também o Direito seria já de pronto um conceito essencialmente valorativo611 Exatamente como é o caso de democracia Waldron sugere também o Direito pode ter um conceito do tipo denso thick na terminologia de Bernard Williams ou na referência de Waldron Jonathan Dancy612 ao envolver significados valorativos e descritivos 609 Cf WALDRON Jeremy Arguing about the Normativity of Jurisprudence Comments on Andrei Marmors Philosophy of Law Jerusalem Review of Legal Studies vol 10 n 01 2014 pp 8192 610 Grifos meus Jurisprudence is still basically descriptive and morally neutral MARMOR Andrei Philosophy of Law Princeton Princeton University Press 2014 p 135 611 Aqui nesse sentido cabe fazer referência às implicações que conceitos funcionais têm sobre a dicotomia fatovalor tão essencial ao positivismo jurídico Para tanto retomo ponto de Alasdair MacIntyre filósofo escocês À tese de que nenhuma conclusão do tipo dever ser pode ser derivada a partir de premissas do tipo ser No ought conclusions from is premises thesis MacIntyre levanta um contraargumento exatamente a partir dessa noção de conceitos funcionais MacIntyre diz que por exemplo das premissas factuais f1 Este relógio é muito pesado para se carregar de maneira confortável e f2 Este relógio é muito impreciso e irregular ao marcar as horas derivase logicamente a conclusão valorativa v1 Este relógio é um mau relógio Da mesma forma das premissas factuais f3 Ele é capaz de colher mais por acre lavrado do que qualquer outro fazendeiro do distrito f4 Ele tem o mais efetivo programa de renovação do solo que conhecemos e f5 O leite de suas vacas ganha todos os prêmios da categoria seguese de forma igualmente válida a conclusão valorativa v2 Ele é um bom fazendeiro Esses argumentos que derivam conclusões do tipo ought de premissas do tipo is são válidos precisamente por tratarem de conceitos funcionais fazendeiro e relógio são ambos conceitos definidos em termos de seus propósitos de suas funções Se i MacIntyre tiver razão e ii o Direito for mesmo um conceito funcional como sugere Fuller e como parece sugerir Waldron a abordagem essencialmente e pretensamente descritiva de Marmor e demais positivistas metodológicos está desafiada From such factual premises as This watch is grossly inaccurate and irregular in timekeeping and This watch is too heavy to carry about comfortably the evaluative conclusion validly follows that This is a bad watch From such factual premises as He gets a better yield for this crop per acre than any farmer in the district He has the most effective programme of soil renewal yet known and His dairy herd wins all the first prizes at the agricultural shows the evaluative conclusion validly follows that He is a good farmer Both of these arguments are valid because of the special character of the concepts of a watch and of a farmer Such concepts are functional concepts that is to say we define both watch and farmer in terms of the purpose or function which a watch or a farmer are characteristically expected to serve It follows that the concept of a watch cannot be defined independently of the concept of a good watch nor the concept of a farmer independently of that of a good farmer and that the criterion of somethings being a watch and the criterion of somethings being a good watchand so also for farmer and for all other functional conceptsare not independent of each other MACINTYRE Alasdair After Virtue A Study in Moral Theory 3 ed Notre Dame University of Notre Dame Press 2007 pp 5758 612 Basicamente conceitos thick densos são conceitos que combinam elementos valorativos e elementos não valorativos ie descritivos A explicação é mais fácil através de um exemplo mais fácil Coragem é um conceito que combina ao mesmo tempo uma descrição de firmeza em face de uma situação perigosa com a recomendação da mesma conduta descrita na forma de uma virtude moral Cf WILLIAMS Bernard Ethics and the Limits of Philosophy Cambridge Harvard University Press 1985 pp 140141 DANCY Jonathan In Defense of Thick Concepts FRENCH Peter A UEHLING Theodore A WETTSTEIN Howard K eds Midwest Studies in Philosophy vol xx Moral Concepts Notre Dame University of Notre Dame Press 1996 167 interrelacionados Essa ideia do Direito como um conceito thick e sobretudo funcional permeia a obra de Waldron Em outras passagens o autor atribui o caráter funcional ao conceito de Direito através daquilo que chama de hospital thesis só se pode compreender adequadamente o termo hospital se considerado para que serve um hospital descrever um estabelecimento como um hospital implica em reconhecer a promessa de cuidado Não é o mesmo com o Direito que talvez prometa no mínimo uma orientação ao bem comum613 Lembremos que Waldron sugere ser precisamente esse o caso Para além disso a desconfiança de Waldron com relação a uma jurisprudence puramente descritiva fica ainda mais clara na discussão que permeia grande parte do debate WaldronMarmor a tese de Waldron e Stephen Perry de que já em Hart o positivismo acabava por trazer consigo inevitavelmente elementos de cunho normativo evidenciando assim o caráter thick do conceito de Direito Em Hart o conceito de regras secundárias614 inclui uma dimensão essencialmente valorativa na medida em que nos próprios termos hartianos a evolução de um sistema préjurídico para um sistema jurídico traria consigo i certos riscos eg abuso de autoridade e ao mesmo tempo ii benefícios eg eficiência segurança jurídica para uma sociedade Para Waldron615 e para Stephen Perry616 a ideia de evolução de defeitos617 de riscos e benefícios morais provam falsa a reivindicação de Hart de um engajamento em uma teoria puramente descritiva618 Andrei Marmor rebate a tese de Waldron e Perry alegando que Hart estaria tão somente dizendo que a sociedade jurídica em comparação com a sociedade préjurídica tem um Direito melhor e não que ela é uma sociedade melhor do ponto de vista moral segundo Marmor Hart diz que o Direito somente o Direito enquanto Direito é mais eficiente após a evolução por meio da emergência de regras secundárias e que isso não prejudica a abordagem p 263 VÄYRYNEN Pekka Thick Ethical Concepts In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Fall 2017 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesfall2017entriesthickethicalconcepts Acesso em 06 mar 2019 613 Cf WALDRON Jeremy Legal and political philosophy In COLEMAN Jules L HIMMA Kenneth E SHAPIRO Scott J The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law Oxford Oxford University Press 2004 p 371 614 Cf item 2112 desta pesquisa 615 Cf WALDRON Jeremy All We like Sheep Canadian Journal of Law and Jurisprudence vol xii n 01 jan 1999 pp 169186 WALDRON Jeremy Normative or Ethical Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 p 429 616 Cf PERRY Stephen Harts Methodological Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 pp 311354 617 Defects 618 Grifo meu As Stephen Perry has rightly pointed out the thesis of advantages and disadvantages of legal over prelegal gives the lie to Harts claim to be engaged in a purely descriptive jurisprudence WALDRON Jeremy Normative or Ethical Positivism In COLEMAN Jules ed Harts Postscript Essays on the Postscript to The Concept of Law Oxford Oxford University Press 2005 p 429 168 descritiva neutra de Hart619 De pronto em si o argumento de Marmor ainda que correto com relação à proposta de Hart não me convenceria dizer que o Direito é melhor ainda que melhor qua Direito já me parece prejudicar a proposta puramente descritiva Waldron por sua vez apresenta bons argumentos contra o ponto de Marmor diz recorrendo a passagens do próprio Hart que uma sociedade préregras secundárias talvez sequer tenha Direito do contrário talvez não fosse chamada por Hart de préjurídica prelegal o que faz com que a transição não seja de um Direito pior para um Direito melhor mas de uma situação social pior para uma situação social melhor melhorada pelo Direito Hart então realmente está dizendo que as regras secundárias melhoram a sociedade da qual elas passam a fazer parte620 Seja como for o que importa mesmo é o seguinte Waldron não quer negar ou desconsiderar a importância de uma abordagem teórica desengajada Quer sim insistir que ao contrário do que diz Marmor um desengajamento radical seja a missão definitiva da jurisprudence621 e que afinal se o positivismo tem razão ao dizer que o Direito com todas suas vantagens pode ser injusto ele tem uma tarefa uma tarefa moral de explicar essa possibilidade622 Como dito além de abrir espaço ao reconhecimento do Direito como um conceito funcional Waldron define sua própria democratic jurisprudence como uma teoria essencialmente normativa valorativa e sua visão lembremos é a de que ela em nada perde nesse sentido623 Essa é a visão de Waldron a minha é a de que não só ela não perde como tem muito a ganhar 619 Cf MARMOR Andrei Philosophy of Law Princeton Princeton University Press 2014 p 119 620 Indeed Hart is inclined to wonder whether the presecondaryrules society he hypothesizes has law at all with the addition of secondary rules we do not move from worse law to better law we move from a worse social situation to a social situation ameliorated by law in the true sense So Marmor has misled us about what Hart is claiming Hart really is saying that the secondary rules characteristic of law on his conception improve society And so he really is doing what Marmor says he would be doing if the WaldronPerry reading were correct WALDRON Jeremy Arguing about the Normativity of Jurisprudence Comments on Andrei Marmors Philosophy of Law Jerusalem Review of Legal Studies vol 10 n 01 2014 pp 8192 621 I do not want to deny that there is room for a theoretical approach to law that is more detached than that But I do want to insist in the light of Harts comments that it is probably a mistake to regard such radical detachment as definitive of the mission of the philosophy of law WALDRON Jeremy Arguing about the Normativity of Jurisprudence Comments on Andrei Marmors Philosophy of Law Jerusalem Review of Legal Studies vol 10 n 01 2014 pp 8192 622 Cf WALDRON Jeremy All We like Sheep Canadian Journal of Law and Jurisprudence vol xii n 01 jan 1999 pp 169186 623 I have said elsewhere that I think the purely descriptive approach is mistaken The kind of democratic jurisprudence that I have in mind explores the connections and the consilience between the value of democracy and the concept of law So a democratic jurisprudence is bound to be a valueladen jurisprudence and in my view none the worse for that WALDRON Jeremy Can There Be a Democratic Jurisprudence Emory Law Journal vol 58 n 03 2009 pp 675712 169 3222 O positivismo revisitado por que não a integridade Waldron e Dworkin compartilham então um acordo a partir dos desacordos Waldron concorda com Dworkin com relação ao argumento dos desacordos teóricos o positivismo metodológico semântico casual tradicional falha entre outras coisas também por ser incapaz de levar em conta o caráter essencialmente argumentativo interpretativo da prática jurídica O Direito afinal não é apenas uma questão de reconhecimento e aplicação de normas é também uma questão de argumento de discussão de debate acerca do modo por meio do qual a aplicação dessas normas deve ser feita Igualmente tanto para Dworkin quanto para Waldron o positivismo é demasiadamente complacente com relação aos requisitos mínimos para que um sistema possa qualificarse enquanto sistema jurídico Como vimos contudo Waldron não é um interpretativista no sentido dworkiniano all the way down Se o fosse ainda que sua teoria seja mesmo apta de qualificação como uma terceira via possível como me parece ser o caso Waldron dificilmente teria expressado tamanha identificação com uma vertente normativa de positivismo E essa identificação que o leva a ser rotulado como positivista como vimos nos exemplos de autores como Gargarella Martí e no Brasil Georges Abboud levanta dúvidas legítimas afinal ainda que o positivismo de Waldron seja fosse normativo suas críticas ao positivismo que chama de casual não são por demais contundentes Não há elementos dworkinianos suficientes em sua obra que o colocam em uma posição difícil para defender o positivismo qualquer que seja sua pretensão metodológica É nesse ponto que surge uma certa divergência entre Waldron e Dworkin diferença teórica que i relacionada às suas concepções de democracia têm as implicações práticas que veremos no próximo capítulo e ii ajudame sobremaneira a explicitar a partir da diferença própria o caminho exato tomado por Waldron em face do debate Dworkinpositivismo Em Dworkin as falências as insuficiências do positivismo tradicional levamno a rejeitálo em todo seu corpo teórico e todas suas premissas em Waldron essas mesmas insuficiências são o que exigem uma releitura do que pode haver de valioso nas premissas positivistas A melhor definição afinal é a seguinte Waldron não é um positivista Waldron faz uma releitura do positivismo e adota algumas de suas premissas já reinterpretadas como 170 seu ponto de partida para a construção da democratic jurisprudence Waldron Eu tenho mais fé que Dworkin na teoria positivista e uso seu corpo teórico como meu ponto de partida na exploração das possibilidades de uma democratic jurisprudence O autor segue dizendo não estar sugerindo que só há teoria democrática com positivismo ou que o positivismo leva necessariamente a uma teoria democrática o que ele diz sim é que a democratic jurisprudence já constituída permite ela própria uma interessante interpretação de alguns elementos do positivismo contemporâneo que parecem um pouco estranhos quando tomados isoladamente624 Quais são esses elementos Waldron acertadamente define o positivismo a teoria positivista a partir de seus três elementos característicos i Uma preocupação com as fontes das normas jurídicas ii Uma ênfase no reconhecimento das normas enquanto normas jurídicas eg regra de reconhecimento em Hart e claro iii A tese da separabilidade entre Direito e Moral ie uma norma é pode ser jurídica independentemente de seu conteúdo moral Muito bem O próprio Waldron segue dizendo que a democratic jurisprudence por ele articulada toma um caminho diferente das formas tradicionais de positivismo com base em dois novos elementos iv O caráter fundamentalmente público do Direito ao qual o positivimo ao entender as normas jurídicas como normas reconhecidas por uma elite participante do sistema dá atenção insuficiente e no mesmo sentido v A generalidade das normas jurídicas também deixada de lado pelas teorias positivistas Aqui lembremos que em Waldron em sua associação entre os conceitos de Direito e império da lei o caráter público e geral das normas passa a ser um requisito de um sistema jurídico legítimo Daí por que o positivismo é um possível ponto de partida para a proposta waldroniana de uma teoria democrática o autor sugere que quando se coloca os elementos iv e v publicidade e generalidade ao lado de uma releitura democrática dos elementos i e ii tese das fontes e reconhecimento das normas emerge uma democratic jurisprudence uma teoria que trata o elemento positivista iii tese da separabilidade não como uma ideia conceitual austiniana mas a partir da ideia de que em uma democracia é preciso saber separar a proposição de que p1 Uma norma foi adotada da forma certa do ponto de vista procedimental de uma proposição p2 A norma certa foi adotada Tratase afinal 624 Grifos meus I have more faith in positivist jurisprudence than Dworkin does and in what follows I shall use that body of theory as a starting point in my exploration of the prospects for a democratic jurisprudence I do not mean to suggest that there can be no democratic jurisprudence except a positivist one Nor do I mean to suggest that democracy is positivisms destiny The most I will claim is that democratic jurisprudence provides an interesting interpretation of some features of contemporary legal positivism that look a little odd standing on their own WALDRON Jeremy Can There Be a Democratic Jurisprudence Emory Law Journal vol 58 n 03 2009 pp 675712 171 exatamente de uma releitura dos pressupostos positivistas com uma ênfase muito maior nos elementos que Waldron considera necessários a um sistema jurídico digno do nome625 E na medida em que o próprio autor define o positivismo normativo como aceitação das teses inclusivistas prescrição das teses exclusivistas pareceme muito claro que a proposta de Waldron está para muito além disso Não me parece sem razão pois que Waldron use sempre o termo democratic jurisprudence e não mais positivismo normativoético Ao mesmo tempo porém em que Waldron concorda com Dworkin com relação ao caráter essencialmente argumentativo da prática jurídica e portanto compartilhe das críticas interpretativistas ao positivismo acredito que sua maior insistência nas possibilidades democráticas de uma releitura de certos pressupostos positivistas tem a ver com algumas de suas ressalvas à concepção dworkiniana Waldron é mais otimista que Dworkin com relação ao positivismo como um ponto de partida frisese mas bastante mais pessimista com relação ao ideal de integridade Segundo Waldron o processo decisório de um juiz dworkiniano Hércules é demasiadamente difícil cada juiz deve idealmente considerar a gama completa de analogias possíveis locais e remotas entre o caso à sua frente e outros casos que podem ter sido decididos pelas cortes sendo assim as exigências da integridade acabam por estabelecer uma série de questões cuja resolução tornase praticamente impossível Não sendo portanto por menos que Dworkin tenha batizado seu juiz hipotético com o nome de um semideus E na medida em que essas questões tornamse inevitavelmente mais e mais complexas é muito possível que dois juízes igualmente responsáveis e de boafé cheguem a resultados diferentes Quando as questões são mais complexas e os ônus de julgamento maiores desacordos são quase inevitáveis626 Waldron ilustra seu ponto no seguinte sentido imagine dois juízes chameos de Hércules e Heraclea Hércules627 é um juiz liberal Heraclea uma juíza 625 Cf WALDRON Jeremy Can There Be a Democratic Jurisprudence Emory Law Journal vol 58 n 03 2009 pp 675712 626 That is why the decisionproblem faced by a Dworkinian judge is so difficult each judge ought ideally to consider the full range of possible analogies local and remote between the case in front of him or her and other cases that have been decided by the courts The requirements of integrity define an almost impossibly difficult array of questions for each judge to consider in Dworkinian jurisprudence This is why the judges are named for demigods It is to be expected that different judges reasoning their way to their utmost ability through these questionsreasoning competently and in a scrupulously objective spirit will come up with different answers Where the questions are more complex and the burdens of judgment greater disagreement is almost inevitable WALDRON Jeremy Lucky in Your Judge Theoretical Inquiries in Law Tel Aviv vol 09 n 01 2008 pp 185216 627 Sobre o juiz Hércules e Waldron uma curiosidade Waldron em breve nota diz que por vezes reflete e questionase se não teria sido mais interessante que Dworkin tivesse optado por um advogado ideal em vez de um juiz ideal de modo a considerar também a presença de argumentos adversariais contrários a serem refutados o que não ocorre no caso de um juiz que escreve sua opinion de seu gabinete Cf a nota n 62 em 172 conservadora Ainda que ambos adotem a integridade como sua concepção e sigam os passos por ela prescritos e obedeçam in their hearts of hearts todas suas exigências ou seja ainda que o raciocínio subjacente a seus processos decisórios não seja arbitrário ainda assim casos similares podem ter respostas diferentes628 Notese que isso não é nenhuma injustiça de Waldron para com a proposta de Dworkin os juízes dworkinianos consideram sim seus princípios próprios de moralidade e justiça é verdade apenas aqueles que acreditem de boa fé fazerem parte de uma interpretação geral coerente da cultura jurídica e política da comunidade em questão629 Ainda assim princípios próprios Da mesma maneira o próprio Dworkin diz expressamente que as razões que sustentam as exigências da integridade persistem mesmo quando juízes discordam sobre a melhor interpretação da ordem política admitindo portanto ao menos a possibilidade do cenário ilustrado por Waldron630 Alguém poderia dizer que voltamos ao início a saída então seria a prescrição de um tipo de positivismo exclusivo eliminando todo tipo de raciocínio moral que permeia o raciocínio judicial e recorrendo a leis mais facilmente aplicáveis não631 Não exatamente O mérito de Waldron um dos méritos de Waldron está em perceber que as coisas não são tão simples632 A interpretação e o caráter argumentativo a moralidade própria esses elementos são inescapáveis à prática jurídica Afinal o que nós temos no raciocínio WALDRON Jeremy Did Dworkin Ever Answer the Crits In HERSHOVITZ Scott ed Exploring Laws Empire The Jurisprudence of Ronald Dworkin Oxford Oxford University Press 2012 p 171 628 Ver a seguinte passagem Suppose Hercules is a liberal ie suppose he is convinced that certain liberal positions are the objectively right answers to exactly the questions that his role requires him to address He will be aware that some defendants will think themselves lucky to have his Dworkinian reasoning deciding their case rather than the Dworkinian reasoning of another wellknown judge called Heraclea who articulates and argues in the same objective spirit for different more conservative postulates of justice and different more conservative interpretations of the relation between one precedent and another And Hercules may be aware that parties may sometimes complain that they have been unfairly treated because they did not get the benefit of his liberal reasoning as other people did in cases similar to theirs Em WALDRON Jeremy Lucky in Your Judge Theoretical Inquiries in Law Tel Aviv vol 09 n 01 2008 pp 185216 629 Cf DWORKIN Ronald A Matter of Principle Cambridge Harvard University Press 1985 p 02 630 Cf DWORKIN Ronald Laws Empire Londres Belknap Press 1986 pp 239 264 412 We want our officials to treat us as tied together in an association of principle and we want this for reasons that do not depend on any identity of conviction among these officials either about fit or about the more substantive principles an interpretation engages Our reasons endure when judges disagree at least in detail about the best interpretation of the communitys political order because each judge still confirms and reinforces the principled character of our association by striving in spite of the disagreement to reach his own opinion I have not devised an algorithm for the courtroom No electronic magician could design from my arguments a computer program that would supply a verdict everyone would accept once the facts of the case and the text of all past statutes and judicial decisions were put at the computers disposal 631 It is tempting to see the musings of this Article as prelude to an argument for something like Exclusive Legal Positivism The argument would go as follows So long as there are prominent elements of moral reasoning in law the outcomes of lawsuits are bound to depend on the happenstance of a given cases being argued before one judge rather than another So let us eliminate that element altogether and replace the sort of jurisprudence that calls for moral reasoning with a body of easily applicable law that does not WALDRON Jeremy Lucky in Your Judge Theoretical Inquiries in Law Tel Aviv vol 09 n 01 2008 pp 185216 632 I am not sure this would improve the situation any more than integrity does WALDRON Jeremy Lucky in Your Judge Theoretical Inquiries in Law Tel Aviv vol 09 n 01 2008 pp 185216 173 judicial é uma mistura uma mistura que em sua riqueza e textura diferese consideravelmente tanto de um raciocínio puramente moral quanto da versão de raciocínio letradalei que certos positivistas ingênuos podem imaginar633 Mais um importante ponto de transcendência de Waldron para com o positivismo mesmo que em uma vertente normativa Seja como for e ainda que rejeite o positivismo Waldron dá mais valor que Dworkin aos ideais democráticos que o próprio Dworkin reconhece e identifica634 no positivismo em suas origens ideais que na concepção de Waldron talvez sejam mais garantidos melhor observados se certos princípios democráticos que podem ser extraídos dos ideais positivistas clássicos ou da releitura de teses positivistas modernas sejam reforçados Não se trata de rejeitar a integridade mas de revitalizar a preocupação positivista com questões como previsibilidade autoridade e sobretudo coordenação social e resolução de disputas e desacordos Coordenação social e resolução de desacordos é o que serve de ponte ao próximo tópico de discussão afinal se tanto Waldron quanto Dworkin desenvolvem cada um à sua maneira teorias jurídicas normativas e democráticas é natural que seus pressupostos teóricos tenham repercussões e consequências práticas e se ambos dão ênfases diferentes em níveis diferentes a princípios diferentes também esse desacordo terá consequências práticas Retomando a frase que serve de epígrafe à Introdução desta pesquisa para Waldron já passa da hora de a filosofia jurídica acordar para questões substantivas chega de discutir o que Hart disse ou devia ter dito a Dworkin635 Waldron parece sofrer do mesmo problema ao menos era um problema para John Gardner que sofria Dworkin a ideia de que a filosofia no Direito deve ser interessante636 E se ambos concordam que a jurisprudence pode ser algo interessante passemos àquilo que interessantemente materializa o seu desacordo o judicial review ie o controle difuso de constitucionalidade do tipo praticado nos Estados Unidos637 633 Tradução livre grifos meus What we have with legal reasoning is a mélange of reasoning which in its richness and its texture differs considerably from pure moral reasoning as well as from the pure version of blackletter legal reasoning that certain naïve positivists might imagine WALDRON Jeremy Judges as Moral Reasoners International Journal of Constitutional Law vol 07 n 01 jan 2009 pp 0224 634 Dworkin atribui uma tônica democrática ao positivismo clássico sobretudo em sua versão benthamiana Cf DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 p 211 635 WALDRON Jeremy Partly Laws Common to All Mankind Foreign Law in American Courts New Haven e Londres Yale University Press 2012 p 23 636 Em Justice in Robes Dworkin conta um episódio em que em um encontro com John Gardner em Oxford disse pensar que a filosofia jurídica deve ser interessante Gardner incrédulo teria respondido algo como Vê Esse é seu problema Cf DWORKIN Ronald Justice in Robes Cambridge The Belknap Press 2006 p 186 637 Mantenho a expressão original em vez de traduzila para evitar possíveis confusões com o controle judicial de constitucionalidade brasileiro Nesse sentido é preciso que fique claro que falo do controle difuso de constitucionalidade nos EUA que nasce da Supremacy Clause VI 2 da Constituição NorteAmericana que exige de cada juiz a observância da supremacia do texto constitucional em razão das características próprias da Constituição do país muito diferente da nossa analítica por excelência 174 Do acordo com relação aos desacordos em Direito passemos ao desacordo entre Waldron e Dworkin que se dá a partir do acordo de ambos sobre a necessidade de uma teoria normativa interessante democrática 33 WALDRON E DWORKIN DESACORDOS A PARTIR DOS ACORDOS Antes vimos que Waldron embora concorde com Dworkin com relação às insuficiências do positivismo tradicional propõe uma releitura democrática de teses tipicamente identificadas como teses positivistas vimos que Waldron diz ter mais fé que Dworkin no positivismo de forma que utiliza seu corpo teórico como um ponto de partida na construção de uma nova teoria democrática 638 Agora retomando essa mesma passagem é importante destacar uma das razões que Waldron identifica em Dworkin como uma das justificativas para seu maior ceticismo com relação aos pressupostos positivistas Ronald Dworkin observa que o positivismo jurídico costumava ser associado a valores democráticos na obra de Jeremy Bentham por exemplo ou na teoría jurídica progressista nos Estados Unidos na primeiro parte do séc xxi Aqui Waldron referese à passagem já por mim mencionada de Justice in Robes em que Dworkin fala sobre os valores subjacentes ao positivismo benthamiano Dworkin pensa que essa conexão foi perdida em parte porque ele associa a democracia a uma teoría jurídica de direitos reforçados pelo Judiciário e os positivistas na sua visão nunca foram muito contundentes nesse sentido e em parte porque ele pensa que os filósofos analíticos em seu posto de guardiões do último suspiro do positivismo voltaramse contra qualquer tipo de conexão política639 Waldron concorda com Dworkin em apontar que os filósofos analíticos erram ao abandonar as conexões entre jurisprudence e teoria política só que e este é o ponto discorda fundamentalmente que a democracia esteja necessariamente associada a uma concepção de direitos reforçados pelo Poder Judiciário O acordo e o desacordo para Dworkin e Waldron i a teoria jurídica pode e deve ser liberaldemocrática mas ambos ii discordam sobre a 638 I have more faith in positivist jurisprudence than Dworkin does and in what follows I shall use that body of theory as a starting point in my exploration of the prospects for a democratic jurisprudence WALDRON Jeremy Can There Be a Democratic Jurisprudence Emory Law Journal vol 58 n 03 2009 pp 675712 639 Grifos meus Ronald Dworkin has observed that legal positivism used to be associated with democratic valuesin the work of Jeremy Bentham for example or in American Progressive jurisprudence in the first part of the twentieth century24 Dworkin thinks that this connection has been lostpartly because he associates democracy with a jurisprudence of rights enforced by the judiciary and positivists in his view have never been strong on that and partly because he thinks that analytic legal philosophers have turned against any sort of political connection in their capacity as guardians of positivisms death rattle WALDRON Jeremy Can There Be a Democratic Jurisprudence Emory Law Journal vol 58 n 03 2009 pp 675712 175 melhor interpretação da ideia de democracia que afinal é um termo contestável640 par excellence e a atuação do Poder Judiciário dentro de suas perspectivas distintas 331 Democracia e judicial review As críticas de Waldron ao judicial review constituem fundamentalmente a parcela mais conhecida e discutida de sua teoria especialmente em nosso contexto acadêmico sendo nosso o contexto latinoamericano Trazêla aqui portanto é importante por uma série de aspectos i a própria relevância do assunto já torna importante a discussão e ii demonstra que a proposta de democratic jurisprudence de Waldron tem repercussões práticas significativas Além disso tratase iii da materialização do desacordo políticofilosófico entre Waldron e Dworkin de modo que explicar a posição do primeiro tornase mais fácil se abordada em contraste com os argumentos do segundo Muito bem Qual é o contexto do debate Dworkin e Waldron concordam com relação à questão dos desacordos teóricos em Direito Mas uma vez resolvida a questão conceitual e resolvida em favor de um Direito entendido como prática interpretativoargumentativa como devem ser resolvidas as questões morais e institucionais Dito de outro modo como deve o Direito responder aos desacordos morais profundos em sociedades modernas Afinal se há poucos consensos em sociedade paradoxalmente um deles é precisamente o fato de que discordamos entre nós mesmos Discordamos todos concordam com isso Somos muitos e são muitos nossos desacordos Não discordamos apenas sobre a existência de Deus e o sentido da vida diz Jeremy Waldron discordamos também sobre o que conta como termos 640 Democracia é exatamente o termo que Waldron toma como exemplo para explicar a definição de contestabilidade Um predicado P é contestável se 1 não for implausível dizer tanto algo é P se também for A quanto algo é P se também for B como explicações alternativas do significado de P se 2 também houver um elemento e de força valorativa ou normativa atrelada ao significado de P e se 3 como consequência de 1 e 2 houver um histórico do uso de P de forma a significar padrões ou princípios rivais tais como A é e e B é e Exemplo O termo democracia é contestável porque 1 enquanto é plausível explicar seu significado em termos de representação não é implausível explicálo em termos de participação direta 2 o termo tem um sentido valorativo favorável e deve ser promovido etc e 3 há como consequência de 1 e 2 um histórico de usos do termo para reivindicar princípios políticos rivais tais como Todo sistema político deve ter uma estrutura representativa e Devemos encorajar a participação popular direta no governo Grifos meus tradução livre A predicate P is contestable if 1 it is not implausible to regard both something is P if it is A and something is P if it is B as alternative explications of the meaning of P and 2 there is also an element e of evaluative or other normative force in the meaning of P and 3 there is as a consequence of 1 and 2 a history of using P to embody rival standards or principles such as A is e and B is e Example The term democracy is contestable because 1 while it is plausible to explicate its meaning in terms of representation it is also not implausible to explicate its meaning in terms of direct participation in government 2 the term has a favorable evaluative meaning e ought to be promoted etc and 3 there is as a consequence of 1 and 2 a history of using the term democracy to embody rival political principles such as Every political system should have a representative structure and We ought to encourage direct popular participation in government WALDRON Jeremy Vagueness in Law and Language Some Philosophical Issues California Law Review vol 82 n 03 1994 pp 509540 176 justos de cooperação entre pessoas que discordam sobre a existência de Deus e o sentido da vida Discordamos portanto também sobre o que devemos uns aos outros como uma questão de tolerância respeito cooperação e auxílio mútuo641 Discordamos portanto sobre justiça e sobre moralidade política Isso significa dizer que nossos desacordos não se dão somente com relação a questões que dizem respeito a nós próprios e ninguém mais Nossas divergências relacionamse também com aquilo que corresponde à melhor maneira de resolver essas divergências próprias especialmente em sociedades formadas por cidadãos que sustentam diferentes perspectivas e concepções de justiça de moralidade do bom do justo do certo E se o Direito é essencialmente argumentativo nossos desacordos sobre digamos nosso sistema tributário não se encerram em uma lei que o organize porque também haverá desacordos quando discutirmos o sentido autêntico por trás da norma a melhor interpretação do significado subjacente à diretriz legislativa É precisamente por isso que não basta definir o Direito com uma das instâncias responsáveis por regular nossos desacordos é necessário também que se diga como Se é verdade então que Dworkin e Waldron concordam tanto i com relação ao papel que o Direito preenche nesse sentido um papel de resolução democrática quanto ii com relação à sua natureza interpretativa argumentativa também é verdade que ambos discordam com relação a algumas das perguntas que surgem exatamente a partir desse acordo inicial Cada um deles portanto responde de forma diferente à pergunta que poderíamos elaborar da seguinte forma se i o Direito é uma das instâncias que regulam nosso comportamento e deve exercer sua função de maneira democrática e ii enquanto sociedade discutimos sobre a melhor interpretação desse exercício democrático qual deve ser então o papel i de um lado dos legisladores do Parlamento e ii de outro dos juízes e das Cortes nisso a que chamamos Direito e conferimos a competência de resolver nossos desacordos Em outras palavras e simplificando do ponto de vista institucional e democrático quem deve ter a última palavra na resolução de nossos desacordos morais em sociedade A resposta de cada um dos autores ao mesmo tempo indica e também já pressupõe suas concepções de democracia Já tivemos uma pista quando mencionada a passagem em que Waldron a ele atribui uma visão em favor de direitos reforçados pelo Judiciário que para Dworkin não há que se 641 There are many of us and we disagree about justice That is we not only disagree about the existence of God and the meaning of life we disagree also about what count as fair terms of cooperation among people who disagree about the existence of God and the meaning of life We disagree about what we owe each other in the way of tolerance forbearance respect cooperation and mutualaid Com essas palavras Waldron abre sua magnum opus WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 01 177 falar em ofensa à democracia quando questões de direitos são resolvidas pelas Cortes Em Dworkin a democracia liberal é algo que transcende as noções que envolvem apenas um ideal meramente majoritário Direitos individuais políticos funcionam como trumps como trunfos em face de argumentos que porque baseados em préargumentos anteriores de cunho majoritário podem muitas vezes carregar um viés utilitárioinstrumental intrínseco642 A regra da maioria não tem qualquer valor por si só e em si mesma643 É essencialmente com base nessas premissas de fundo e em razão delas que Dworkin sustenta que em muitas questões sensíveis tais como questões que envolvam relações raciais644 por exemplo legisladores estão sujeitos a pressões às quais juízes não estão razão pela qual teríamos boas razões para supormos que juízes estão mais propensos a chegar em conclusões sensatas sobre direitos645 Afinal dirá Dworkin o processo majoritário mesmo quando esclarecedor encoraja compromissos que podem subordinar importantes questões de princípio646 É verdade Dworkin reconhece que quando controvérsias políticas são decididas por legislaturas é provável que a decisão seja orientada por aquilo que a maioria deseja o que seria obviamente desejável quando uma questão voltase ao que está no interesse da comunidade como um todo Em certos casos é verdade os números devem contar Mas nem sempre quando se estiver a discutir questões de princípio fundamental como é o caso de decidir se os negros têm ou não um direito constitucional de proteção contra a discriminação é importante que o público participe da decisão não porque a comunidade deve chegar à decisão favorecida pela maioria mas porque o respeito próprio exige que as pessoas participem como parceiros em uma empreitada comum do argumento moral sobre as regras sob as quais vivem Há uma diferença portanto entre o poder de um único cidadão sobre uma decisão coletiva um poder praticamente ilusório em um país populoso e seu papel enquanto agente moral que é por vezes melhor protegido se os mecanismos de decisão não são em última instância majoritários647 642 Cf DWORKIN Ronald A Matter of Principle Cambridge Harvard University Press 1985 pp 59 68 82 DWORKIN Ronald Freedoms Law The Moral Reading of the American Constitution Oxford Oxford University Press 2005 pp 0137 643 Cf DWORKIN Ronald Justice for Hedgehogs Cambridge Belknap Press 2011 p 348 644 O exemplo é do autor 645 Grifos nossos e tradução livre para legislators are subject to pressures that judges are not and this must count as a reason for supposing that at least in such cases judges are more likely to reach sound conclusions about rights DWORKIN Ronald A Matter of Principle Cambridge Harvard University Press 1985 p 25 646 Grifos meus Even when the debate is illuminating the majoritarian process encourages compromises that may subordinate important issues of principle DWORKIN Ronald Freedoms Law The Moral Reading of the American Constitution Oxford Oxford University Press 2005 p 30 647 Trecho adaptado e traduzido livremente da seguinte passagem It is true of course that when political controversies are decided by legislatures or other elected officials the decision is likely to be governed by what most people want That is desirable when an issue turns on the question of what is in the best interests of the 178 Nesse sentido o argumento de Dworkin é teorético institucional648 e sobretudo um argumento de moralidade política Na medida em que é a própria democracia que exige a proteção de direitos individuais649 o judicial review é uma prática autenticamente democrática que responde às insuficiências do majoritarianismo aparecendo como um elemento característico da democracia norteamericana um elemento invejado e copiado que força o debate político a incluir argumentos sobre princípios não apenas quando um caso chega à Suprema Corte mas também muito antes e muito depois650 É portanto uma prática democrática e democrática porque retira algumas discussões do campo de batalha da política do poder e leva essas mesmas questões ao fórum de princípio prometendo que os conflitos mais profundos e fundamentais entre indivíduo e sociedade serão tratados como questões de justiça651 Em síntese em Dworkin o judicial review é a prática institucional que possibilita que em uma democracia os direitos sejam trunfos sobre a maioria garantidos não por políticas do jogo político mas por príncipio no fórum de princípio E Waldron Retomar a epígrafe de seu Law and Disagreement que serve igualmente de epígrafe ao primeiro capítulo desta pesquisa em que trato do positivismo clássico já garante uma indicação bastante elucidativa acerca de seu posicionamento nessa questão 3311 O argumento contra o judicial review É em Leviathan que Thomas Hobbes diz que community as a whole and the gains to some group are balanced against losses to others In such matters numbers should count But they need not count at least not for that reason in matters of fundamental principle when the community must decide for example whether blacks have a constitutional right to be protected from discrimination In such cases it is important that the public participate in the decision not because the community should reach the decision most people favor but because selfrespect requires that people participate as partners in a joint venture in the moral argument over the rules under which they live There is a distinction between a single citizens power over a collective decision which in a large nation is all but illusory and that citizens role as a moral agent participating in his own governance which is sometimes better protected if the mechanisms of decision are not ultimately majoritarian DWORKIN Ronald Freedoms Law The Moral Reading of the American Constitution Oxford Oxford University Press 2005 p 344 648 Cf DWORKIN Ronald A Matter of Principle Cambridge Harvard University Press 1985 p 28 649 Cf DWORKIN Ronald Justice for Hedgehogs Cambridge Belknap Press 2011 p 05 650 Judicial review is a distinctive feature of our political life envied and increasingly copied elsewhere It is a pervasive feature because it forces political debate to include argument over principle not only when a case comes to the Court but also long before and long after DWORKIN Ronald A Matter of Principle Cambridge Harvard University Press 1985 p 70 651 We have an institution that calls some issues from the battleground of power politics to the forum of principle It holds out the promise that the deepest most fundamental conflicts between individual and society will once someplace finally become questions of justice DWORKIN Ronald A Matter of Principle Cambridge Harvard University Press 1985 p 71 179 quando os homens que se julgam mais sábios do que todos os outros clamam e exigem que o critério de julgamento seja a razão reta right reason objetivam nada mais senão que as coisas sejam determinadas não pela razão de outros homens mas pela sua própria Isso é tão intolerável na sociedade dos homens como no jogo uma vez escolhido o trunfo em todas ocasiões subsequentes usar como trunfo aquela série de que se tem mais cartas na mão652 A razão pela qual Waldron opta por essa passagem como destaque indicativo inicial de sua obra iluminase a partir de suas considerações sobre o judicial review em face do argumento dworkiniano de que direitos são trunfos contramajoritários Como vimos é inegável que as pessoas discordam sobre justiça e sobre direitos e na medida em que esses desacordos sejam razoáveis sensatos e de boafé essa circunstância política leva Waldron a sustentar que a última palavra em decisões sobre direitos não deve caber a juízes Afinal se há desacordos sobre direitos em sociedade então direitos como tais não podem ser trunfos sobre procedimentos majoritários é a esse tipo de procedimento que apelamos para determinar o posicionamento que deve ser mantido como o posicionamento social sobre direitos apesar dos desacordos profundos Nós precisamos de direitos jurídicos determinados Waldron reconhece e é precisamente por isso que precisamos de procedimentos políticos para selecionar quais serão esses direitos procedimentos decisórios que não pressuponham como é o caso da ideia de direitos como trunfos que já decidimos entre nós mesmos que tipo de direitos temos e em que consiste fundamentalmente a ideia abstrata de justiça Então se em Dworkin direitos são trunfos a serem reforçados de forma contramajoritária pelo Judiciário Waldron hobbesianamente dirá que não podemos jogar trunfos se discordamos com relação aos naipes das cartas653 Direitos não podem servir de 652 And when men that think themselves wiser than all others clamor and demand right Reason for judge yet seek no more but that things should be determined by no other mens reason but their own it is as intolerable in the society of men as it is in play after trump is turned to use for trump on every occasion that suite whereof they have most in their hand HOBBES Thomas Leviathan Editado com introdução de C B Macpherson Londres Penguin Books 1981 1651 pp 111112 653 As citações do trecho traduzidas livremente extraídas da seguinte passagem People disagree about justice and rights The intractability of this disagreement and the understanding that it is reasonable goodfaith disagreement is the background to the general argument I have made against empowering judges to make final decisions about rights I have argued that if there is disagreement about rights in society then rights as such cannot be trumps over procedures like majoritydecision which might have to be appealed to in order to determine the social position on rights that is to be maintained in spite of such disagreement We cannot play trumps if we disagree about the suits We need determinate legal rights and we need political procedures for sorting out what these shall be We must set up a decisionprocedure to settle this matter and we must argue for it in a way that does not presupposeas the trumps idea presupposesthat we have settled already among ourselves what rights we have and what justice consists in WALDRON Jeremy Moral Truth and Judicial Review The American Journal of Jurisprudence vol 43 n 01 jan 1998 pp 7597 180 trunfos sobre procedimentos majoritários se as pessoas discordam com relação a quais são e como se materializam esses direitos básicos654 Dworkin é muito claro ao clamar pela transferência da discussão sobre direitos da política o suposto centro de poder para as Cortes o suposto fórum de princípio Para Waldron esse tipo de argumento i reforça uma ideia de que a atividade legislativa é uma atividade essencialmente baseada em interesses espúrios em negociatas trocas de favores uma atividade baseada em tudo menos em processos decisórios de princípio e ii assim o faz exatamente para silenciar as possíveis dificuldades democráticas que emergem do ideal contramajoritário subjacente ao judicial review Esse tipo de argumento para Waldron compara uma imagem cínica do processo legislativo com uma imagem idealizada das Cortes é um argumento que não coloca as legislaturas digamos sob sua melhor luz como uma possível fonte respeitável de Direito na qual representantes decidem os rumos comuns em nome das diferenças de opinião e princípios na comunidade em que representam655 Dito isso é importante ressaltar o argumento de Waldron não passa apenas ou necessariamente por um certo ceticismo com relação ao Judiciário ou por uma visão mais favorável do processo políticolegislativo A grande questão que o faz rejeitar o judicial review é exatamente a existência de desacordos sobre justiça em sociedade Waldron reconhece que o processo democrático é imperfeito e que historicamente a prática do judicial review garantiu decisões que reforçavam o compromisso social com direitos individuais Por outro lado essa é praticamente a única coisa boa que tem a dizer sobre o review judicial da legislação um modo de decisão final resolutória que é inapropriado a uma sociedade livre e democrática656 Seja como for Waldron sustenta a possibilidade de um argumento contra o judicial review que independe de suas manifestações históricas e de eventuais efeitos particulares de decisões específicas positivos ou negativos657 Seu ponto central é são os seguintes i esse tipo de processo ao contrário do que alegam seus defensores não garante ou atrai a atenção dos cidadãos ao que realmente importa nas questões sobre as quais eles discordam uma vez que o judicial review envolve muitas 654 Ver também WALDRON Jeremy A RightBased Critique of Constitutional Rights Oxford Journal of Legal Studies vol 13 n 01 spring 1993 pp 1851 655 Cf WALDRON Jeremy The Dignity of Legislation Cambridge Cambridge University Press 1999 p 02 656 That is almost the last good thing I shall say about judicial review which is inappropriate as a mode of final decisionmaking in a free and democratic society WALDRON Jeremy The Core of the Case against Judicial Review The Yale Law Journal vol 115 n 06 abr 2006 p 1348 657 What I want to do is identify a core argument against judicial review that is independent of both its historical manifestations and questions about its particular effectsthe decisions good and bad that it has yielded the heartbreaks and affirmations it has handed down WALDRON Jeremy The Core of the Case against Judicial Review The Yale Law Journal vol 115 n 06 abr 2006 p 1351 181 questões laterais acerca de interpretação judicial respeito a ou afastamento de precedentes estabelecidos etc e ii é politicamente ilegítimo de modo que retirando o peso do voto dos cidadãos ordinários e dos princípios de representação e equanimidade política privilegia o voto igualmente majoritário de um pequeno número de juízes nãoeleitos658 Nesse sentido Waldron esclarece que sua crítica é diretamente voltada ao controle judicial de legislação e não de decisões administrativas esclarece também que seus argumentos direcionamse contra aquilo a que chama de strong judicial review um controle forte por meio do qual as Cortes têm a autoridade de absterse de aplicar ou de fixar a nãoaplicação de um estatuto ou diretriz legislativa por vezes até de revogar diretamente a legislação Waldron não tem problemas com um eventual controle fraco weak judicial review por meio do qual as Cortes revisam determinados estatutos que parecem não se conformar à ideia de direitos individuais e emitem uma espécie de declaração de incompatibilidade com uma convenção internacional ratificada por exemplo sem contudo a prerrogativa de revogar a lei ou fixar sua nãoaplicação é o que acontece por exemplo no Reino Unido em que esse tipo de declaração autoriza ministros a iniciar um processo legislativo visando a remediar eventual incompatibilidade sem permitir que juízes abstenhamse de aplicar aquilo que foi aprovado pelo Parlamento659 Essa não é a única premissa na qual o argumento de Waldron está baseado Todas suas críticas ao judicial review serão válidas somente em uma sociedade com i instituições democráticas aceitavelmente sólidas incluindo uma legislatura representativa e eleita por meio de um processo de sufrágio adulto universal ii uma série de instituições judiciárias igualmente sólidas formadas de forma nãorepresentativa e aptas a solucionar conflitos e garantir o império da lei iii o comprometimento da maioria dos membros da sociedade com a ideia de direitos individuais e direitos de minorias e iv desacordos persistentes substantivos e de boafé com relação ao significado e às implicações desses direitos com os quais os membros dessa sociedade estão comprometidos O ponto de Waldron é que uma sociedade nessas condições será mais democrática se a resolução desses desacordos couber às instituições legislativas e que o argumento em favor da resolução final por meio das Cortes 658 Cf WALDRON Jeremy The Core of the Case against Judicial Review The Yale Law Journal vol 115 n 06 abr 2006 p 1353 Esse ponto acerca do princípio majoritário entre os juízes tão frequentemente ignorado pelos defensores do judicial review é reforçado em vários escritos de Waldron Cf por exemplo WALDRON Jeremy Moral Truth and Judicial Review The American Journal of Jurisprudence vol 43 n 01 jan 1998 pp 7597 WALDRON Jeremy Five to Four Why Do Bare Majorities Rule on Courts The Yale Law Journal vol 123 n 06 abr 2014 pp 16921730 659 WALDRON Jeremy The Core of the Case against Judicial Review The Yale Law Journal vol 115 n 06 abr 2006 pp 13531355 182 em uma sociedade que satisfaça esses requisitos será muito pouco convincente660 As críticas de Waldron portanto aplicamse somente em sociedades cuja democracia é constituída e sólida tornando seus argumentos em favor de procedimentos majoritários legítimos mesmo em face da premissa dworkiniana de que procedimentos democráticos só o são quando os cidadãos respeitam os direitos alheios Em síntese repetindo os problemas de Waldron com o judicial review são i esse tipo de processo não garante ou atrai a atenção dos cidadãos ao que realmente importa nas questões sobre as quais eles discordam e ii é politicamente ilegítimo Com relação a i vimos que Dworkin prefere a discussão no fórum de princípio longe do campo de batalha da política Waldron questiona não é melhor não seria mais correto que o local apropriado para uma discussão moral sobre direitos fosse onde a discussão não envolve doutrinas jurídicas precedentes e possíveis afastamento de precedentes textos interpretação e teorias da interpretação etc Tudo isso faz parte inevitavelmente do raciocínio judicial e sendo assim se importantes decisões sobre questões divisivas devem ser tomadas Waldron diz ser apropriado que elas sejam feitas em um ambiente institucional que é mais aberto mais explicita e intencionalmente aberto aos pontos de vista comentários e contribuições da sociedade do que são as Cortes661 Discutir questões como o aborto pode ser muito melhor se os princípios subjacentes sejam abordados diretamente sem que seja necessário aterse a um exercício de caligrafia constitutional662 sem que se precise discutir sobre a interpretação de um documento do século xviii a discussão sobre a pena de morte pode ser muito mais acertada se abordar direta e extensivamente questões sobre política criminal sobre princípios morais e substantivos sem que se precise discutir a leitura e a interpretação correta de uma cláusula constitucional que proíbe penas cruéis663 O raciocínio legislativo afinal é uma forma de raciocínio que deve ser estruturado em nome de toda a sociedade acerca de 660 We are to imagine a society with 1 democratic institutions in reasonably good working order including a representative legislature elected on the basis of universal adult suffrage 2 a set of judicial institutions again in reasonably good order set up on a nonrepresentative basis to hear individual lawsuits settle disputes and uphold the rule of law 3 a commitment on the part of most members of the society and most of its officials to the idea of individual and minority rights and 4 persisting substantial and good faith disagreement about rights ie about what the commitment to rights actually amounts to and what its implications are among the members of the society who are committed to the idea of rights WALDRON Jeremy The Core of the Case against Judicial Review The Yale Law Journal vol 115 n 06 abr 2006 p 1360 661 If important watershed decisions have to be made it seems to me appropriate that they should be made in an institutional setting that is more openand more explicitly and deliberately opento societal inputs than courts are WALDRON Jeremy Refining the Question about Judges Moral Capacity International Journal of Constitutional Law vol 07 n 01 jan 2009 pp 6982 662 Constitutional calligraphy 663 Cf WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 290 183 importantes questões morais exatamente por isso é importante que se proceda sem os limites impostos por textos doutrinas precedentes664 E com relação à ii ilegitimidade políticodemocrática do judicial review Dworkin na sua concepção de direitos como trunfos alega que na medida em que a legislação pode contrariar princípios democráticos fundamentais a decisão final com relação à sua validade deve caber à instituição que tiver mais probabilidade de chegar à resposta correta a melhor instituição será portanto aquela mais apta a oferecer os resultados democráticos certos665 Será Para Waldron haverá sempre um problema democrático intrínseco quando uma visão sore os princípios democráticos é imposta por uma instituição nãodemocrática mesmo quando essa visão for a visão moralmente correta e mesmo quando o resultado analisado isoladamente pareça democrático Não se pode resolver questões de democracia de forma antidemocrática mesmo que a resposta seja certa o procedimento é uma questão afinal de democracia666 O ponto de Dworkin contudo não deixa de ser relevante e se for a resposta correta Afinal uma objeção comum que se pode levantar aos argumentos de Waldron contra o judicial review seria algo como Ora você é um cético você não acredita na objetividade na possibilidade de uma resposta certa verdadeira sobre direitos individuais é óbvio que vai preferir mera contagem de cabeças como um procedimento decisório667 Em face dessa possível objeção Waldron dirá que a objetividade moral é irrelevante 3312 O argumento da irrelevância da objetividade moral Nós discordamos acerca de questões de princípio diz Waldron mas é claro que isso não significa que não haja respostas corretas668 Mas a possibilidade de que haja respostas corretas uma resposta correta não tem não deve ter consequências na política669 A objetividade moral é portanto irrelevante para o argumento de Waldron em favor dos procedimentos majoritários procedimentos que respeitam os desacordos e os 664 Cf Judges as Moral Reasoners International Journal of Constitutional Law vol 07 n 01 jan 2009 pp 0224 665 Cf DWORKIN Ronald Freedoms Law The Moral Reading of the American Constitution Oxford Oxford University Press 2005 p 34 666 Cf WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 pp 291294 302 667 Cf WALDRON Jeremy Moral Truth and Judicial Review The American Journal of Jurisprudence vol 43 n 01 jan 1998 pp 7597 668 We disagree on matters of principle but of course that does not mean there are no right answers WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 164 669 Cf WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 164 184 indivíduos que discordam Não se trata de negar a ideia de verdade não se trata de um relativismo moral do tipo você pensa que o aborto é correto eu penso que é incorreto concordemos em discordar respeitar os desacordos é tratar com respeito as crenças de cada um acerca da justiça em circunstâncias nas quais nenhuma delas é autocertificável670 Quem bem define o ponto de Waldron nesse sentido é Andrea Faggion que diz que na leitura do autor pode até existir mesmo uma única resposta objetivamente correta para cada uma das divergências que possam surgir entre nós o que não existe é uma metodologia compartilhada por nós que nos permita provar a todos qual seria essa resposta671 Expliquemos a partir do início da argumentação do autor Vejamos o realismo moral é como os filósofos chamam a tese segundo a qual é possível falar em coisas como uma verdade moral objetiva e juízos morais objetivamente falsos Dito de outro modo realistas morais são aqueles que sustentam que proposições morais dizem respeito a fatos e que essas proposições podem ser verdadeiras exatamente na medida em que reportem bem os fatos a que se referem sustentam portanto que algumas proposições morais são verdadeiras672 Logicamente o antirrealismo é a antítese filosófica dessa alegação673674 A questão que Waldron coloca a partir disso especialmente considerando que prima facie o realismo moral se verdadeiro parece ter consequências para nosso modo de pensar sobre os desacordos é a seguinte quais são as implicações dessas teses metaéticas às nossas posições sobre as relações entre juízos morais e juízos jurídicos Ou dito de outro modo e trazendo a discussão à questão substantiva que preocupa Waldron a eventual existência de uma resposta correta não legitimaria a prática do judicial review Embora o autor reconheça que a resposta afirmativa pareça ser a mais óbvia a sua é negativa Waldron portanto ataca a ideia comum de que realistas morais sentemse ou sentirseiam muito mais 670 O Segundo grifo é meu Respect has to do with how we treat each others beliefs about justice in circumstances where none of them is selfcertifying WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 111 671 FAGGION Andrea Democracia Liberal vs NeoFeudalismo Libertário O Estado de S Paulo São Paulo 11 dez 2018 Estado da Arte Disponível em httpsculturaestadaocombrblogsestadodaartedemocracia liberalvsneofeudalismolibertario Acesso em 12 mar 2019 672 Cf SAYREMCCORD Geoff Moral Realism In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Fall 2017 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesfall2017entriesmoralrealism Acesso em 13 mar 2019 673 Tradução livre Moral realism is what philosophers call the thesis that there are such things as objective moral truth and objective moral falsity and antirealism is the term for the philosophical denial of that thesis WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 164 674 Para mais detalhes e para a divisão específica dos nãorealistas entre nãocognitivistas e adeptos da error theory cf SAYREMCCORD Geoff Moral Realism In ZALTA Edward N ed The Stanford Encyclopedia of Philosophy Fall 2017 Edition Stanford Metaphysics Research Lab Stanford University Disponível em httpsplatostanfordeduarchivesfall2017entriesmoralrealism Acesso em 13 mar 2019 185 confortáveis que antirrealistas com relação a juízes decidindo questões morais675 Para ele decisões morais em Direito tendem a ser tão arbitrárias para um realista moral quanto tendem a ser para qualquer um que se oponha à ideia de objetividade moral676 Lembremos o alerta do próprio autor Waldron não está a derivar da existência de desacordos em sociedade a ideia de que não há respostas corretas verdadeiras Ele concorda com realistas como Michael Moore677 por exemplo que dispõem que há um espaço lógico entre a existência de desacordos e a suposta nãoexistência de fatos morais objetivos mas discorda ao mesmo tempo que essa seja a única questão que os desacordos morais impõem aos realistas eles ainda representam uma dificuldade persistente ao realismo ainda que não impliquem sua falsidade na medida em que o realista fracassa em estabelecer conexões entre a ideia de objetividade e a existência de procedimentos que resolvam esses desacordos678 A título de exemplo por mais problemática que seja uma abordagem científicopositivista de uma realidade já complexa por si só há nas ciências naturais uma concepção minimamente ampla e aceita de método resolutório no caso de eventuais desacordos empíricocientíficos é dizer um número muito significativo de membros que compõem a prática em questão resolvem seus desacordos a partir dessa concepção de método e quando não são capazes de fazêlo ainda assim é possível referirse aos termos do próprio método para explicar por quê Entre filósofos morais não há nada sequer remotamente comparável Em vez disso cada visão segue sua própria teoria acerca do que conta como justificação679 Ainda no exemplo de Waldron utilitaristas têm uma visão frisese não apenas uma visão moral específica mas uma visão igualmente específica acerca de um método de verificação kantianos têm outra cristãos têm outra e por aí vai aristotélico tomistas nietzscheanos marxistas etc etc e etc todos reconhecem que seus desacordos são importantes o caso é que diferentemente de seus correspondentes na comunidade 675 Cf WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 169 676 Moral decisionmaking in law is likely to be as arbitrary for a moral realist as it is for any opponent of moral objectivity WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 170 677 Cf MOORE Michael S Moral Reality Wisconsin Law Review n 06 novdez 1982 pp 10611156 678 Grifos meus tradução livre e adaptação da seguinte passagem Moral disagreement remains a continuing difficulty for realism even if it does not entail its falsity so long as the realist fails to establish connections between the idea of objective truth and the existence of procedures for resolving disagreement WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 177 679 Among moralists there is nothing remotely comparable Instead each view comes along trailing its own theory of what counts as justification WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 178 186 científica eles não compartilham virtualmente nada em termos de uma epistemologia ou de um método por meio do qual esses desacordos podem ser em princípio aproximados680 Como exatamente devemos verificar a veracidade ou falsidade de um juízo moral O que esse processo de verificação envolve Quais procedimentos Que metodologia Nunca nos é dito681 Ainda assim há desacordos e aqueles que acreditam em respostas corretas não são capazes portanto de concordar com relação a como podemos chegar nessa resposta O que impõe a questão na medida em que o Direito é uma das instâncias que lidam diretamente com esses problemas como deve comportarse o juiz em face desses desacordos Mais especificamente a existência de uma resposta correta ie o realismo moral faz alguma diferença com relação aos problemas inerentes à arbitrariedade dos argumentos morais em Direito problemas como a imprevisibilidade a irracionalidade e a ilegitimidade democrática Autores realistas como o já mencionado Michael Moore sustentam que antirrealistas se honestos devem sempre qualificar seus próprios juízos morais com proposições do tipo Eu acho que Eu penso que mas é claro isso é apenas a minha opinião e que por isso para evitar a óbvia arbitrariedade que subjaz a esse tipo de afirmações os juízes devem acreditar na objetividade Um juiz cético sustenta Moore é o juiz que impõe sua opinião aos desafortunados litigantes682 O ponto porém dirá Waldron é que à luz de tudo que foi dito acerca da inexistência não de objetividade mas de uma epistemologia que a demonstre ainda que o ceticismo seja rejeitado ainda que haja fatos morais que tornam verdadeiros os juízos verdadeiros e falsos os juízos falsos ainda assim o melhor que um juiz pode fazer é impor sua opinião sobre os fatos tais aos desafortunados litigantes que vêm a juízo683 Afinal mesmo que também os litigantes em questão sejam como o juiz realistas morais eles questionarão por que a visão do juiz acerca dos fatos morais deve prevalecer sobre a sua A verdade do realismo moral se ele é verdadeiro não valida as crenças morais 680 They all acknowledge that the disagreements between them are important Yet unlike their counterparts in the scientific community they share virtually nothing in the way of an epistemology or a method with which these disagreements might in principle be approached WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 178 681 How exactly are we to assess the truth or falsity of a moral judgment What does the assessment involve What procedures What methodology We are never told WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 179 682 Hapless litigants Cf MOORE Michael S Moral Reality Wisconsin Law Review n 06 novdez 1982 pp 10611156 683 Even if scepticism is rejected even if there are moral facts which make true judgements true and false judgements false still the best a judge can do is impose his opinion about such facts on the hapless litigants who come before him WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 181 187 de qualquer indivíduo específico ou juiz específico 684 ela no máximo altera a compreensão acerca do caráter dos desacordos sem contudo aproximarnos de saber quem está certo e quem está errado com relação a determinada questão mesmo que objetiva Ou seja na medida em que há desacordos e não há uma metodologia compartilhada por meio da qual se possa resolvêlos o juiz encarregado de juízos morais quando do processo decisório também deverá qualificar seus próprios juízos morais com proposições do tipo Eu acho que Eu penso que mas é claro isso é apenas a minha opinião mesmo que o realismo moral seja verdadeiro Seja ele um realista ou não se ele entender que não é a única pessoa em sociedade que detém uma opinião sobre a questão moral à sua frente e que seja essa questão factual objetiva ele terá a consciência de que haverá ao menos um nível de arbitrariedade na prevalência de sua posição seja ela uma mera opinião ou uma crença genuína sobre as outras685 Voltemos então i aos três principais problemas identificados por Waldron como subjacentes à ideia de arbitrariedade nos juízos morais em decisões judiciais imprevisibilidade irracionalidade ilegitimidade democrática e ii a irrelevância da objetividade moral com relação a esses problemas próprios Primeiro com relação à i imprevisibilidade a existência de respostas morais verdadeiras objetivas faria qualquer diferença com relação à previsibilidade de decisões judiciais que envolvem elementos morais Dito de outro modo em que poderia contribuir a objetividade moral com relação à possibilidade de uma maior previsibilidade decisória Sem uma epistemologia moral minimamente aceita de forma ampla a resposta é para Waldron em nada686 Segundo com relação à ii irracionalidade se a pergunta com relação à arbitrariedade judicial for colocada em termos de O juízo moral em questão é simplesmente posto ou é derivado de considerações mais gerais o realista ainda que diga ter razões para agir no caso para decidir derivadas de fatos objetivos extrínsecos na medida em que não tem uma epistemologia não será capaz de demonstrar essas razões e sendo assim estará na mesma posição justificatória do antirrealista 687 E terceiro com relação à iii ilegitimidade democrática se o realismo moral for verdadeiro as crenças dos juízes podem entrar em choque com as crenças dos legisladores se o realismo é falso as atitudes e preferências dos juízes podem divergir das atitudes e 684 The truth of moral realism if it is true does not validate any particular persons or any particular judges moral beliefs WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 181 685 Cf WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 182 686 Without an epistemology the answer I think is nothing WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 182 687 Cf WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 183 188 preferências dos legisladores Novamente então assim como fez em The Dignity of Legislation Waldron alerta para a necessidade de uma comparação justa o melhor das Cortes deve ser comparado com o melhor das legislaturas o que as legislaturas têm de pior deve ser comparado com o que as Cortes têm de pior No ponto portanto defensores do judicial review não podem restringir sua posição metaética favorita àquele órgão que lhe parece o mais indicado para ter a última palavra em questões constitucionais como se as crenças dos juízes entrassem em choque com as atitudes e preferências dos legisladores como se o fórum de princípio fosse um paraíso realista e a arena da política fosse um inferno emotivista You cant have it both ways Ademais em face dos defensores do judicial review que à la Dworkin sustentam que juízes têm uma maior capacidade de decidir sobre questões morais Waldron insiste uma vez mais que os realistas morais não são capazes de produzir uma epistemologia correspondente a seus comprometimentos ontológicos de modo que a inadequação epistêmica do realismo moral tem consequências em questões práticas os realistas estão desprovidos de quase tudo que poderiam dizer ou argumentar em favor da objetividade688 Assim resumindo se o realismo é falso a eventual divergência entre Judiciário e Legislativo é uma colisão de meras preferências divergentes se o realismo é verdadeiro a eventual divergência é uma colisão entre crenças divergentes sobre questões de fato Mas o fato de essas crenças serem sobre questões factuais não tira da hipótese o mesmo elemento de arbitrariedade latente na hipótese antirrealista exatamente pela inexistência de uma metodologia verificatória compartilhada A arbitrariedade estará lá em qualquer versão metaética689 O que deve ser repetido reforçado então é basicamente o seguinte ao se opor i em termos teoréticos mais amplos à moralização judicial e ii em termos práticos mais específicos ao judicial review à última palavra do Judiciário sobre interpretação constitucional sobre questões divisivas Waldron não está sustentando a ideia de que os desacordos em sociedade significam a inexistência de objetividade ou de respostas corretas O ponto de Waldron é sua distinção entre aquilo que é uma questão de ontologia e aquilo que é uma questão de epistemologia a existência de respostas corretas de fatos morais é uma coisa uma metodologia compartilhada capaz de demonstrar essas respostas corretas essas fatos morais é oura A mera existência de uma resposta correta não significa que o juiz vá 688 Moral realists can produce no epistemology to match their ontological commitments Thus the epistemic inadequacy of moral realism is farreaching in practical matters it deprives realists of almost everything that they might want to say or argue for in the name of objectivity WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 185 689 Arbitrariness is there on either metaethical account WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 186 189 necessariamente buscala muito menos significa que vai alcançala Afinal diferentes juízes chegarão em resultados diferentes mesmo quando eles próprios estiverem buscando a resposta correta690 e mesmo nesse cenário não há nada na ontologia de respostas corretas que dê a eles qualquer razão para pensar que a sua visão é mais correta que qualquer outra691 Assim ao final não é apenas necessariamente um subjetivismo que preocupa Waldron com relação à moralização judicial são exatamente pela ausência de uma epistemologia adequada e minimamente compartilhada a existência própria dos desacordos morais tout court Havendo uma resposta correta ou não sendo a moralidade uma questão de fato ou não havendo ou não objetividade moral ainda assim haverá desacordos É por isso que a objetividade moral é irrelevante para o argumento contra o judicial review692 Na medida em que a existência de uma resposta objetivamente correta é uma questão ontológica nada no que diz respeito a decisões sociais políticas ou jurídicas pode ser resolvido quando se insiste que uma questão seja conduzida pela resposta correta a determinada questão693 3313 Positivismo constitucional Aqui um parêntesis antes de prosseguir parêntesis relevante porque além de reforçar meu argumento principal permite uma transição para o próximo ponto a ser abordado É precisamente em seu ensaiocapítulo mais importante sobre o tema da irrelevância da objetividade moral exatamente o The Irrelevance of Moral Objectivity que Waldron alinhase de forma mais clara e direta a uma vertente normativa de positivismo dizendo por exemplo que não é necessariamente verdade que um positivista normativo seja um antirrealista moral e aproximandose muito claramente da tradição de autores como Hobbes e Bentham é por isso que há sim elementos a partir dos quais alguns autores classificam e podem vir a classificar Waldron como um positivista normativo Meu pontos são que i se como vimos para o próprio Waldron o positivismo normativo é uma espécie 690 E essa visão de Waldron fica bastante clara quando lembramos os elementos da concepção dworkiniana de law as integrity por ele rejeitados e exemplificados a partir do exemplo de Hércules e Heraclea 691 Different judges will reach different results even when they all take themselves to be pursuing the right answer and nothing about the ontology of right answers gives any of them a reason for thinking his own view is any more correct than any other WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 187 692 Cf WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 p 187 693 The existence of an objectively right answer to a given question is so far just a matter of ontology nothing in the way of social or political or legal decision is settled when we insist that some issue be governed by the right answer to some question WALDRON Jeremy Legal and Political Philosophy In COLEMAN Jules L HIMMA Kenneth E SHAPIRO Scott J The Oxford Handbook of Jurisprudence and Philosophy of Law Oxford Oxford University Press 2004 p 377 190 de aceitação das premissas do positivismo inclusivo uma prescrição das teses do positivismo exclusivo sua obra vai para muito além disso e ii ainda que tenha sido um dia um positivista normativo Waldron abandonou essa posição à medida que desenvolveu e avançou as próprias teses Reforço meu argumento a partir do próprio Waldron e também de Dyzenhaus Em um simpósio organizado pelo International Journal of Constitutional Law em 2009 Waldron discutiu seus argumentos sobre a questão da moralidade no raciocínio judicial com David Dyzenhaus Olivier Beaud e Wojciech Sadurski694 Em seu artigo Dyzenhaus diz que ao argumentar em favor da soberania do Parlamento em questões de interpretação constitucional no sentido de que não cabe às Cortes controlar atos legislativos com base na sua interpretação do verdadeiro significado de cláusulas e diretrizes constitucionais Waldron dá um passo além de sua versão neobenthamiana de positivismo político já que um positivista político não discutiria questões de interpretação constitucional exatamente como Bentham um positivista político oporseia a bills of rights e suas subjacentes noções de direitos individuais695 Para Dyzenhaus então a posição de Waldron seria aquilo a que chama de positivismo constitucional696 uma posição que não apenas não objeta a ideia de direitos mas até mesmo admite que há boas razões para que ordenamentos adotem cartas de direitos697 Waldron em resposta diz o que segue e tomo a liberdade de citar a passagem na íntegra dada sua importância para meu argumento central David Dyzenhaus conclui a partir de meu ensaio que estou afastandome de minha versão neobenthamiana de positivismo político no sentido de uma oposição à mera existência de uma bill of rights sobre a qual juízes podem vir a ter autoridade interpretativa Eu não estou certo de que eu tenha sido um dia um positivista político no sentido estrito especificado por Dyzenhaus se é que o fui ele está certo e eu agora abandonei essa posição Suponho que eu seja um positivista constitucional no sentido atribuído por Dyzenhaus ao termo porque agora eu acredito que é sim importante que sistemas jurídicos específicos representem por si próprios os princípios de 694 Cf DORSEN Norman ROSENFELD Michel Roundtable An exchange with Jeremy Waldron International Journal of Constitutional Law vol 07 n 01 jan 2009 p 01 695 In my view Waldrons argument takes him a further step away from his neoBenthamite version of political positivism Political positivism does not engage with questions about who is to interpret such principles fundamental principles of legal order since the very idea of such principles written or unwritten is anathema to it DYZENHAUS David Are legislatures good at morality Or better at it than the courts International Journal of Constitutional Law vol 07 n 01 jan 2009 pp 4652 696 Constitutional positivism 697 A position that not only does not object to the idea of rights but even allows that there are good reasons for legal orders to adopt bills of rights DYZENHAUS David Are legislatures good at morality Or better at it than the courts International Journal of Constitutional Law vol 07 n 01 jan 2009 pp 4652 191 direitos individuais direitos humanos com os quais se comprometem698 Ou seja Waldron diz sequer estar certo de um dia ter sido um positivista político no sentido benthamiano e que sim aceita as premissas elencadas por Dyzenhaus como aquelas que definiriam um positivista constitucional Penso contudo que isso só reforça a ideia de Waldron como uma terceira via não apenas a expressão é de Dyzenhaus o próprio Waldron i diz ou nunca ter subscrito ou não mais subscrever um positivismo normativo à la Bentham e ii afirma que aquilo que caracteriza um positivismo constitucional é assim definido pelo próprio Dyzenhaus A obra de Waldron repito e reforço está para muito além de uma tese que endossa direitos individuais mas propugna pela interpretação final e autoritativa por parte do Legislativo Waldron também entende nesse sentido mas me parece inadequado classificar como positivista inclusivo constitucional normativo benthamiano neobenthamiano hobbesiano o que for um autor que se aproxima tão fortemente de Dworkin na questão conceitual e faz exigências tão sólidas com relação à legitimidade de sistemas jurídicos e se não inadequado reducionista porque os eventuais rótulos desse tipo serão sempre como os de Dyzenhaus aplicáveis e muito restritos a somente uma pequena parcela da jurisprudence de Jeremy Waldron 34 UMA CONCLUSÃO PARCIAL E OS ECOS DE UMA TEORIA DEMOCRÁTICA Uma vez explorados os principais pressupostos da teoria jurídica de Waldron699 a partir de i sua abordagem conceitual e metodológica ii suas considerações sobre o fenômeno jurídico e as matrizes teóricas que o explicam e iii sua concepção de democracia e a consequente oposição a uma jurisprudence avalorativa e igualmente à prática do judicial review tornase bastante claro por que me parece adequado colocar o autor em uma posição diferente daquelas já ocupadas de um lado pelo positivismo tradicional e de outro 698 Grifos meus David Dyzenhaus infers from my essay that I am moving away from my neoBenthamite version of political positivism in the sense of opposition to the sheer existence of a bill of rights over which judges might have some interpretive authority 10 I am not sure I ever was a political positivist in the strict sense that Dyzenhaus specifies if I ever was I think he is right and I have now abandoned that position Once I did set out some reasons why the formulations of a bill of rights might be unduly constrictive but I did not understand those to be decisive 11 I suppose I am a constitutional positivist in the sense that Dyzenhaus defines it because now I do think it is important for individual legal systems to represent for themselves the principles of individual rightshuman rightsto which they take themselves to be committed WALDRON Jeremy Refining the Question about Judges Moral Capacity International Journal of Constitutional Law vol 07 n 01 jan 2009 pp 6982 699 E reforço que são os principais elementos de sua teoria jurídica afinal para além disso tudo Waldron ainda é um scholar prolífico em diferentes subdivisões da filosofia política 192 por Dworkin Para os positivistas o Direito tem uma resposta e ela deve ser descrita para Dworkin tratase de o Direito encontrar a resposta certa para Waldron é uma questão de encontrar uma ou a resposta da forma certa 341 Reconstruindo o trajeto Waldron vimos não se satisfaz com uma teoria jurídica que se pretende puramente analíticodescritiva À luz do que já haviam feito autores como Lon Fuller Waldron sugere que o Direito pode ser considerado um conceito funcional de modo que só se poderia abordá lo a partir da consideração de elementos outros que por sua natureza valorativa impedem uma proposta meramente conceitual ou se não impedem no mínimo tornam a proposta condescendente com sistemas jurídicos que por não cumprirem requisitos mínimos que constituem a função própria do Direito não são dignos do rótulo Vimos também que Waldron assim o faz ao sugerir que a melhor teoria é aquela que se aproxima ao mesmo tempo dos conceitos de Direito e rule of law sem uma cisão rígida para o autor só se entende o Direito de forma adequada se consideradas também as exigências do império da lei exigências de impossível análise completa sem fundamentos natural e essencialmente normativos Isso indica aquela que o próprio autor toma como uma de suas tarefas a construção de uma teoria democrática na filosofia jurídica e exatamente porque democrática normativa Daí contudo é o que sustento até aqui não se segue que Waldron seja um positivista normativo afinal i uma vez que ele próprio define o positivismo normativo como a prescrição de teses exclusivistas em um Direito que é corretamente descrito pelo positivismo inclusivo sua proposta de democratic jurisprudence pareceme transcender essa ideia Além disso ii não apenas o próprio autor afirma ou nunca ter endossado ou ter abandonado um positivismo benthamiano e Bentham era o positivista normativo par excellence iii Waldron ainda concorda expressamente com Dworkin com relação ao argumento dos desacordos teóricos um problema para qualquer tipo de positivismo afinal se descritivo a descrição é insuficiente se normativo tanto as premissas quanto as propostas também o são já que aceitar o argumento dos desacordos e prescrever um positivismo excludente seria simplesmente ilógico Waldron e Dworkin então têm um acordo a partir dos desacordos Mas ambos têm também um desacordo a partir de seu acordo com relação à normatividade da Teoria do Direito e o valor da democracia em sua construção um desacordo 193 com relação à ilegitimidade da prática do judicial review que é uma consequência prática e natural derivada de suas diferentes concepções de democracia e do valor do princípio majoritário Para Dworkin retomando i direitos individuais são trunfos em face da maioria e ii têm uma resposta correta com relação à sua interpretação e uma vez que iii o majoritarianismo pode levar a políticas antidemocráticas iv os juízes estariam legitimados democraticamente para o controle de constitucionalidade Waldron rebate os pontos a partir da ideia de que o judicial review não garante uma melhor proteção aos direitos e carece dessa legitimidade política não se trata de rejeitar a ideia de direitos ou mesmo a existência de uma resposta correta mas o fato de i haver desacordos e ii não haver uma metodologia compartilhada capaz de demonstrar epistemologicamente a resposta correta o procedimento majoritário é o mais adequado a respeitar os cidadãos e suas crenças 342 Os caminhos a partir da terceira via Seja como for a oposição ao judicial review não é a única forma por meio da qual se materializa em termos práticos a proposta teórica de Waldron Antes de encerrar portanto é positivo trazer à tona outros pontos que decorrem das concepções mais fundamentais do autor Um deles e talvez ainda mais importante na mesma proporção em que a meu juízo é negligenciado por aqueles que eventualmente comentam a obra do autor é aquele que se depreende das consequências que tem sua exigência de sistematicidade no Direito700 a noção de que o Direito deve ser desenvolvido e interpretado de modo a guardar uma coerência própria com o sistema jurídico tal como se apresenta O Direito não é um conjunto de normas isoladas mas forma um corpus juris um corpo de padrões normativos que somados um ao outro formam o sistema a que pertencem O próprio Waldron como visto reconhece a proximidade que essa noção guarda com uma ideia dworkiniana de integridade penso contudo que é acertado dizer que a proposta de Waldron é menos ambiciosa mais realista que a de Dworkin enquanto a ideia de integridade do juiz Hércules passa por considerações bastante mais abstratas sobre integridade valor moralidade política ajuste institucional Waldron parece propugnar aquilo a que Gerald Postema chama de 700 Cf nesse sentido o quinto elemento da proposta de Waldron exposta no item 3212 desta pesquisa 194 sistematicidade doutrinal701 um tipo de sistematicidade que é tanto um fato normativo quanto uma demanda ou projeto702 e sendo assim exige que aqueles que compõem a prática busquem não apenas uma consistência formal com a série de normas existentes mas também uma espécie de coerência prática e integridade sistemática703 É exatamente por isso que na concepção de Waldron em hard cases os juízes têm a obrigação de perguntarem a si próprios que tipo de elemento indireto eou implícito no Direito no corpus juris ou seja no sistema jurídico estabelecido permite que a decisão seja jurídica O juiz deve manterse em contato com o Direito deve buscar ao máximo relacionar os fundamentos das questões presentes com os padrões normativos preteritamente estabelecidos eg diretrizes regras padrões princípios sem abandonar o Direito pelos encantos da moralidade ao primeiro sinal de dificuldade Deve portanto perguntar a si próprio algo como uma questão dworkiniana o que a melhor interpretação do Direito implica para um caso como este considerando que o direito existente não determina a questão direta nem explicitamente Isso é mais do que mera sugestão de raciocínio jurídico por analogia é afinal para Waldron o que o império da lei exige704 Waldron diz não saber se Dworkin está certo ao dizer que todos os casos mesmo os hard cases têm uma resposta correta mas diz também não ser essa sua preocupação Afinal e novamente haja uma resposta correta ou não o ponto é que faz sentido que os juízes abordem os casos com esse espírito A razão ou as razões de decisão mesmo que não tenham sido previamente articuladas de forma direta e explícita devem ser jurídicas e para que possam ser jurídicas devem guardar coerência e integridade sistemáticas com os padrões normativos que o Direito apresenta 701 Doctrinal systematicity Aqui convém uma observação Postema pareceme o autor que melhor comentou a obra de Waldron dando a devida ênfase às considerações de Waldron com relação ao ideal de rule of law e o caráter eminentemente argumentativo do Direito Enquanto eu sustento Waldron como uma terceira via porém Postema diz em seu comentário que embora crítico da metodologia positivista Waldron teria ainda assim uma concepção positivista acerca do Direito do ponto de vista substantivo o ponto e isso importa para quem deseja sustentar aquilo que sustento é que o mesmo Postema diz que o trabalho mais recente de Waldron é fortemente crítico ao positivismo também do ponto de vista substancial algo que reforça minha ideia de uma terceira via exatamente entre positivismo e Dworkin Cf POSTEMA Gerald J PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 11 Legal Philosophy in the Twentieth Century The Common Law World Nova York Springer 2011 pp 565570 702 Doctrinal systematicity as Waldron characterized it is both a normative fact and a demand or project 703 Cf POSTEMA Gerald J PATTARO Enrico ed A Treatise of Legal Philosophy and General Jurisprudence vol 11 Legal Philosophy in the Twentieth Century The Common Law World Nova York Springer 2011 pp 568569 704 She the judge must stay in touch with the law She should not abandon the law for the siren charms of morality at the first sign of difficulty She must ask herself something like a Dworkinian question what does the best understanding of the law imply for a case like this given that the existing law does not determine the matter directly or explicitly This is what the rule of law requires WALDRON Jeremy Stare Decisis and the Rule of Law A Layered Approach Michigan Law Review v 111 n 01 out 2012 p 15 195 Se isso parece uma noção positivista não é o caso Ela talvez seja em alguma medida quase705 formalista mas o fato é que para Waldron como vimos é exatamente o positivismo que não consegue dar conta de um Direito que seja em aspectos conceituais ou práticos opere para além de um mero amontoado de regras O positivista dirá Waldron não concebe o Direito como um sistema como uma estrutura de padrões que além de regras contém também princípios e também propósitos subjacentes e é nesse sentido em que há uma clara aproximação com Dworkin que Waldron vai também além de Dworkin706 O ponto é importante para uma compreensão mais completa de sua teoria no que diz respeito à interpretação jurídica e além disso deixa também bastante clara a visão de Waldron acerca da necessidade de integridade sistemática Waldron parte do exemplo de um estatuto que contém centenas de dispositivos algo de fácil visualização especialmente para o leitor no âmbito do civil law Por vezes em um estatuto complexo há uma seção explicitando o propósito do estatuto em outros casos contudo o propósito é implícito e devemos inferilo de nossa leitura do estatuto como um todo707 O mesmo cenário é válido quando tomamos áreas mais amplas e específicas do Direito eg direito dos contratos direito sucessório direito penal etc de modo que por vezes é possível existir uma diretriz específica na área que em virtude de sua força clareza e vivacidade expressa o espírito que anima toda aquela área do Direito esse tipo de padrão tornase um tipo de emblema de símbolo de ícone do todo tornase assim um arquétipo daquela área708 uma diretriz particular em um sistema de normas que carrega um significado que transcende seu conteúdo normativo imediato um significado derivado do fato de que esse padrão normativo resume ou torna vívido o ponto o propósito o princípio ou a política de toda a área do Direito Como um princípio dworkiniano o arquétipo representa uma função de background de pano de fundo no sistema jurídico diferentemente dos princípios em Dworkin contudo operam também como disposições explícitas como através de regras ou precedentes só que ao assim funcionarem eles 705 E digo quase porque o próprio Waldron ao reconhecer uma possível aproximação com o formalismo explicita também divergências e ressalvas para com a corrente Cf WALDRON Jeremy Torture and Positive Law Jurisprudence for the White House Columbia Law Review vol 105 n 06 out 2005 pp 16811750 706 This is where I go beyond Dworkin WALDRON Jeremy Torture and Positive Law Jurisprudence for the White House Columbia Law Review vol 105 n 06 out 2005 pp 16811750 707 Sometimes in a complex statute there is a section explicitly stating the statutes purpose In other cases the purpose is implicit and we have to infer it from our reading of the statute as a whole 708 Grifos meus The same two possibilities arise with regard to larger clusters of law Sometimes we have to infer the underlying principle or policy eg in the way Dworkin suggests in his theory of interpretation Sometimes however and this is where I go beyond Dworkin there is one provision in the cluster which by virtue of its force clarity and vividness expresses the spirit that animates the whole area of law It becomes a sort of emblem token or icon of the whole I shall say it becomes an archetype of the spirit of the area of law in question 196 resumem o espírito de todo um corpo jurídico que vai além daquilo que se pode pensar que eles exigem em seus próprios termos709 A ideia de um arquétipo em Waldron portanto representa uma norma jurídica que porque paradigmática e representativa da lógica e da função própria do sistema a que pertence estabelece o significado jurídico autêntico da área em questão ao assim funcionar permite exatamente o tipo de interpretação que o império da lei exige dos juízes diante de hard cases Um dos exemplos do autor é o habeas corpus sua importância não se exaure naquilo que faz em si mesmo por mais absolutamente importante que seja O habeas corpus é também arquetípico de toda a orientação de nossa tradição jurídica em torno da ideia de liberdade em torno da restrição que o Direito impõe à arbitrariedade estatal710 Ainda com relação à interpretação em Waldron é importante ainda uma última reflexão um último esclarecimento O autor define a si próprio e fazêlo de forma mais direta e explícita seria impossível como um textualista I am a textualist711 Devese colocar então que o textualismo de Waldron não é ingenuamente literal ou radicalmente conservador isso seria contraditório com suas próprias considerações sobre o caráter argumentativo do Direito caráter este que para Waldron não só faz parte do Direito como é positivo e é positivo na medida em que um argumento contínuo em sociedade sobre o melhor significado de termos contestáveis é muito superior à pretensão de conclusões artificiais712 O textualismo de Waldron é aquele a que Marmor chama de textualismo 709 Grifos meus When I use the term archetype I mean a particular provision in a system of norms which has a significance going beyond its immediate normative content a significance stemming from the fact that it sums up or makes vivid to us the point purpose principle or policy of a whole area of law Like a Dworkinian principle the archetype performs a background function in a given legal system But archetypes differ from Dworkinian principles and policies in that they also operate as foreground provisions They do foreground work as rules or precedents but in doing that work they sum up the spirit of a whole body of law that goes beyond what they might be thought to require on their own terms The idea of an archetype then is the idea of a rule or positive law provision that operates not just on its own account and does not just stand simply in a cumulative relation to other provisions but that also operates in a way that expresses or epitomizes the spirit of a whole structured area of doctrine and does so vividly effectively publicly establishing the significance of that area for the entire legal enterprise WALDRON Jeremy Torture and Positive Law Jurisprudence for the White House Columbia Law Review vol 105 n 06 out 2005 pp 16811750 710 Trecho baseado na seguinte passagem traduzida livremente The best example I think is given by the Habeas Corpus statutes The importance of the Great Writ is not exhausted by what it does in itself overwhelmingly important though that is Habeas Corpus is also archetypal of the whole orientation of our legal tradition towards liberty in the physical sense of freedom from confinement It is archetypal too of laws set against arbitrariness in regard to actions that impact upon the rights of the subject WALDRON Jeremy Torture and Positive Law Jurisprudence for the White House Columbia Law Review vol 105 n 06 out 2005 pp 16811750 711 WALDRON Jeremy Partly Laws Common to All Mankind Foreign Law in American Courts New Haven e Londres Yale University Press 2012 p 156 712 Não concordamos com relação a muitas coisas em nossa sociedade mas talvez possamos concordar com relação a isto somos uma sociedade melhor ao continuarmos discutindo sobre certas questões do que seríamos se esses argumentos fossem conclusos de forma artificial We do not agree on many things in our society but perhaps we can agree on this that we are a better society for continuing to argue about certain issues than we 197 negativo713 um tipo de textualismo para o qual a interpretação judicial não deve basearse em questões como por exemplo a vontade do legislador ou o sentido original do texto714 um textualismo que portanto permite que as Cortes interpretem de inúmeras formas mas que insiste na autoridade legislativa e na vinculação à autoridade do texto das normas democraticamente promulgadas entendidas como atos coletivos715 É a meu ver uma questão muito mais institucional que qualquer outra coisa funcionando como uma espécie de barreira contra possíveis tergiversações judiciais que apelem a elementos que carecem da autoridade que tem o texto enquanto texto legislativo Nesse sentido reforçando a ideia Waldron é bastante claro em suas ressalvas às propostas originalistas de interpretação constitucional dizendo que no tipo de cláusulas que por exemplo versam sobre a crueldade de penas e punições caso da Oitava Emenda à Constituição dos Estados Unidos ele aceita o argumento de Dworkin no sentido de que os juízes do século xxi têm a responsabilidade de enfrentar os juízos de valor relevantes por eles próprios não lhes sendo exigido nem sequer permitido interpretar buscando como esses juízos teriam sido formados em 1791 quando da adoção das eventuais emendas Não se trata de supremacia judicial tratase de juízes seguindo as instruções que lhes dá a própria Constituição716 343 Aquilo que fica Finalmente antes de concluir pretendo externar aqui uma consideração que me é fundamental em termos waldronianos uma premissa que se pode dizer arquetípica do objetivo mais fundamental da pesquisa seja sua matriz teórica uma terceira via ou não e precisamente pelo fato de os rótulos importarem menos em um autor mais preocupado com a democracia do que com as meras análises conceituais o que importa importa mesmo é would be if such arguments were artificially or stipulatively concluded Em WALDRON Jeremy Vagueness in Law and Language Some Philosophical Issues California Law Review vol 82 n 03 mai 1994 pp 509540 713 Negative textualism 714 Cf MARMOR Andrei The Immorality of Textualism Loyola of Los Angeles Law Review vol 38 dez 2005 pp 20632079 715 WALDRON Jeremy Law and Disagreement Oxford Oxford University Press 1999 pp 144146 716 Tradução livre grifos meus I accept Ronald Dworkins argument that when language like this is used eg in the US Constitutions 8th and 4th amendments respectively it is the responsibility of 21st century judges to make the relevant valuejudgments for themselves they are not required or even permitted to defer to the way in which such judgments would have been made in 1791 when these amendments were adopted That is not judicial supremacy that is the judges carrying out the instructions that the constitution gives them WALDRON Jeremy Judicial Review and Judicial Supremacy New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 1457 out 2014 Disponível em httpsssrncomabstract2510550 Acesso em 15 mar 2019 198 que também Waldron deu à prática jurídica e à Academia exatamente aquilo que ele atribui a Dworkin uma teoria viva que creditou à prática do Direito a razão e a reflexão e não apenas uma aplicação mecânica de regras 717 Assim se é verdade que estamos ocupados brigando sobre o que H L A Hart devia ter respondido a Ronald Dworkin já há muito tempo e que já é hora de os filósofos analíticos do Direito acordarem a questões substantivas718 o melhor que aquele que pretende abordála pode fazer à teoria de Waldron é dedicar atenção e respeito a tudo que implica sua proposta e aos elementos democráticos de sua teoria elementos que têm muito a contribuir e a auxiliam a iluminar os caminhos para aqueles que compartilham da noção de que uma teoria jurídica coerente com as exigências da democracia e do império da lei pode ser mais valiosa e mais interessante 717 Parte da passagem que serve de epígrafe ao segundo capítulo da pesquisa que se repita é parte do tributo de Waldron quando do falecimento de Dworkin A living jurisprudence one which credited the practice of law with reason and thoughtfulness not just the mechanical application of rules WALDRON Jeremy Ronald Dworkin An Appreciation New York University School of Law Public Law Legal Theory Research Paper Series Working Paper n 1339 jul 2013 718 Passagem que serve de epígrafe à Introdução We have been too busy squabbling about what H L A Hart should have said to Ronald Dworkin I think it is high time analytic legal philosophers woke up to some of these issues Em WALDRON Jeremy Partly Laws Common to All Mankind Foreign Law in American Courts New Haven e Londres Yale University Press 2012 p 23 199 CONCLUSÃO A pluralidade dos sentidos que atribuímos a um ato revela não a incapacidade mas os limites do nosso saber e a complexidade do real É explorando um mundo por essência equívoco que se pode atingir a verdade O conhecimento não é inacabado por nos faltar onisciência mas por estar a riqueza de significações inscrita no objeto719 Raymond Aron Deixado claro aquilo que fica aquilo que mais importa neste projeto de pesquisa chega a hora de retomar sinteticamente o que foi trabalhado até que se pudesse chegar à conclusão fundamental a classificação da teoria jurídica de Jeremy Waldron como uma terceira via que independentemente de rótulos analíticos ilumina caminhos possíveis na construção de uma jurisprudence voltada aos ideais de democracia e império da lei Naturalmente a grandeza do desafio exigiu um caminho longo até aqui caminho dividido em três No primeiro capítulo contextualizações e as origens do positivismo no common law no segundo o positivismo dos séculos xx e xxi e a concepção de Ronald Dworkin finalmente no terceiro capítulo a obra de Waldron per se abordada de forma direta Assim para concluir lembremos os principais conceitos trabalhados em cada uma dessas partes No primeiro capítulo tratouse de investigar as origens daquilo a que se convencionou chamar positivismo jurídico Primeiro é claro o mais fundamental o que é afinal o positivismo jurídico Com base em autores tradicionais autores que aderem e outros que se opõem às teses positivistas vimos que em seu sentido mais amplo o positivismo é a acepção fundamental segundo a qual o Direito como ele deveria ser é diferente do Direito tal como ele é de modo que não é necessariamente verdade que o Direito vai sempre satisfazer a eventuais exigências substantivas de justiça e moralidade Com isso posto a contextualização o surgimento do positivismo anglosaxão em meio à teoria clássica do common law personificada especialmente por autores como Sir Edward Coke e depois John Selden e Sir Matthew Hale Depois de uma exposição dos conceitos e ideias fundamentais que davam forma à teoria clássica anglosaxônica vimos o nascimento 719 La pluralité des sens que nous attribuons à un acte révèle non lincapacité mais les limites de notre savoir et la complexité du réel Cest en explorant un monde par essence équivoque que lon a chance datteindre la vérité La connaissance nest pas inachevée parce que lomniscience nous manque mais parce que la richesse de significations est inscrite dans lobjet ARON Raymond Lopium des intellectuels Paris CalmannLévy 2004 p 147 200 do positivismo que não levava esse nome à época com Thomas Hobbes que desafiou as noções dominantes à época segundo as quais o Direito era baseado na razão e no costume imemorial Nesse sentido essa parte do primeiro capítulo mostrou a origem das teses positivistas na obra de Hobbes a partir de suas considerações sobre autoridade sobre lei civil e lei natural sobre moralidade e natureza humana Depois de Hobbes passouse à obra jurídica Jeremy Bentham que como o primeiro desafiou as noções que dominavam o common law à época Bentham filósofo do utilitarismo ridicularizava os ideais jusnaturalistas que imperavam no direito anglosaxônico para ele o Direito era imperativista era uma questão de comando do soberano e sendo assim o common law não seria Direito legítimo Bentham então muito influenciado por David Hume e articulando de forma muito clara a dicotomia entre is e ought que perpassa todo o positivismo divide sua teoria jurídica entre a parte expositória expository jurisprudence e censória censory jurisprudence a primeira responsável por descrever o que é o Direito a segunda por dizer como esse Direito deveria ser Assim ainda no primeiro capítulo vimos o desenvolvimento do pensamento jurídico de Bentham o casamento por ele celebrado entre o utilitarismo e o positivismo suas críticas ao common law e com isso todo seu ideal político radical reformista para não dizer revolucionário Depois de Bentham passouse à obra de John Austin seu discípulo Para Austin Bentham acertava em sua noção imperativista do Direito Diferentemente do mestre contudo Austin inaugurou a metodologia que é até hoje dominante no positivismo uma proposta analítica que porque analítica preocupase muito mais com aquilo que Bentham chamava de expository jurisprudence isto é uma proposta que pretende analisar e descrever o Direito tal como ele é ponto É por isso que por vezes é possível encontrar livros que classificam John Austin como o primeiro positivista enquanto Hobbes e Bentham desenvolveram vertentes normativas políticas de positivismo foi Austin quem inaugurou aquela que seria sua característica metodológica tradicionalmente dominante desenvolvendo articulando e estabelecendo uma tradição centrada em uma noção imperativista sobre o fenômeno jurídico Como dito Austin inaugurou a tradição dominante do positivismo a preocupação analíticodescritiva Assim tomando essa questão como um elemento de transição passouse ao segundo capítulo que começa com aquele que personificou o positivismo jurídico anglo saxão no séc xx H L A Hart Foi Hart quem rompeu com o domínio austiniano que vigorava até então na explicação acerca da natureza do Direito sem contudo abandonar a proposta de metodologia descritiva Hart define seu projeto como uma sociologia descritiva e a partir da filosofia da linguagem ordinária modernizou e sofisticou o projeto 201 de Austin já inadequado ao contexto da época que não mais podia ter como suficiente uma noção imperativista de Direito Assim com Hart inauguraramse conceitos fundamentais até hoje na Teoria do Direito noções de regras primárias e regras secundárias regra de reconhecimento conceitos que definem sua proposta teórica e inauguram as mais importantes características que em maior ou menor grau definem grande parte do positivismo jurídico até hoje Afinal é a partir da obra de Hart que temos as duas grandes teses positivistas articuladas de forma clara a tese da separabilidade entre Direito e moral e a tese das fontes sociais Depois de Hart o segundo capítulo aborda aquele que mais desafiou o positivismo jurídico até hoje Ronald Dworkin para quem o positivismo jurídico teria ainda uma terceira tese característica a tese da discricionariedade judicial que lhe era inconcebível Assim ao longo dos anos Dworkin desenvolveu uma série de críticas ao positivismo e não só isso desenvolveu uma teoria própria e muito original Ronald Dworkin trouxe à tona a existência de princípios no Direito inaugurou a ideia de um Direito entendido enquanto um conceito interpretativo defendeu a ideia de interpretação construtiva de coerência e integridade de uma resposta correta em casos difíceis nos quais positivistas e pragmatistas capitulariam Tudo isso define a concepção dworkiniana de law as integrity o Direito como integridade uma matriz teórica cujos pressupostos acabaram por se adequar ao projeto holístico de Dworkin uma obra filosófica ampla sobre moralidade justiça interpretação sobre a vida boa a partir da ideia de unidade do valor Por fim ainda abordouse rapidamente o positivismo jurídico contemporâneo e sua divisão pósDworkin Finalmente o terceiro capítulo aborda a obra de Jeremy Waldron per se A ideia foi apresentala em contraste com o positivismo e com a proposta de Dworkin explicandoa a partir de seus próprios elementos Assim para compreender a terceira via de Waldron vimos suas considerações sobre a relação conceitual entre Direito e império da lei a suas críticas à metodologia positivista e seu acordo com Dworkin sua concepção de democracia e seu desacordo com Dworkin Vimos em meio a isso as implicações práticas da proposta teórica de Waldron seus reflexos nas críticas ao judicial review e na interpretação e decisão judicial Assim em síntese o que se viu foi i a primeira via o positivismo jurídico em suas vertentes clássicas e modernas ii a segunda via o Direito como integridade o interpretativismo dworkiniano e iii a terceira via a teoria democrática de Jeremy Waldron e os caminhos por ela inaugurados Argumentei portanto que a obra de Waldron tem elementos suficientes a exigir uma nova classificação mas sobretudo argumentei que seu valor está para muito além de qualquer rótulo e que aquilo que mais importa nessas páginas é a noção de que é possível uma teoria jurídica adequada à democracia 202 REFERÊCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBOUD Georges Processo Constitucional Brasileiro 2 ed São Paulo Revista dos Tribunais 2018 ARON Raymond Lopium des intellectuels Paris CalmannLévy 2004 AUSTIN John A Plea for the 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