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Salah H Khaled Jr HORIZONTES IDENTITÁRIOS A construção da narrativa nacional brasileira pela historiografia do século XIX IMPRESSO EM 2023 Chanceler Dom Dadeus Grings Reitor Joaquim Clotet ViceReitor Evilázio Teixeira Conselho Editorial Ana Maria Lisboa de Mello Elaine Turk Faria Érico João Hammes Gilberto Keller de Andrade Helenita Rosa Franco Jane Rita Caetano da Silveira Jerônimo Carlos Santos Braga Jorge Campos da Costa Jorge Luis Nicolas Audy Presidente José Antônio Poli de Figueiredo Jurandir Malerba Lauro Kopper Filho Luciano Klöckner Maria Lúcia Tiellet Nunes Marília Costa Morosini Marlise Araújo dos Santos Renato Tetelbom Stein René Ernaini Gertz Ruth Maria Chittó Gauer EDIPUCRS Jerônimo Carlos Santos Braga Diretor Jorge Campos da Costa Editorchefe Salah H Khaled Jr HORIZONTES IDENTITÁRIOS A construção da narrativa nacional brasileira pela historiografia do século XIX Porto Alegre 2010 EDIPUCRS 2010 CAPA Deborah Cattani DIAGRAMAÇÃO Rodrigo Valls REVISÃO Rafael Saraiva Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BCPUCRS EDIPUCRS Editora Universitária da PUCRS Av Ipiranga 6681 Prédio 33 Caixa Postal 1429 CEP 90619900 Porto Alegre RS Brasil Fonefax 51 3320 3711 email edipucrspucrsbr wwwpucrsbredipucrs K45h Khaled Junior Salah H Horizontes identitários a construção da narrativa nacional brasileira pela historiografia do século XIX recur so eletrônico Salah H Khaled Jr Dados eletrônicos Porto Alegre EDIPUCRS 2010 263 p Sistema requerido Adobe Acrobat Reader Modo de Acesso World Wide Web httpwwwpucrsbrorgaosedipucrs ISBN 9788574309798 online 1 Historiografia Brasil Século XIX 2 Identidade Naci onal 3 Na cionalidade Brasil I Título CDD 981033 Para Aline de Almeida Motta Khaled meu amor para todo o sempre Salah H Khaled Jr Professor Assistente de Direito Penal e Criminologia da Universidade Federal do Rio Grande FURG Doutorando em Ciências Criminais PUCRS Mestre em Ciências Criminais PUCRS Mestre em História UFRGS Especialista em História do Brasil FAPA Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais PUCRS Licenciado em História FAPA Líder do Grupo de Pesquisa Hermenêutica e Ciên cias Criminais FURGCNPq AGRADECIMENTOS Agradeço à professora Cláudia Wasserman pela inestimável orientação Agradeço à professora e querida amiga Ruth Gauer pelo proveitoso aprendizado e por tudo que fez por mim nos últimos anos Agradeço aos professores Cezar Guazzelli e Regina Weber pelas contribuições prestadas no colóquio que uma vez internalizadas se mostraram fundamentais para o desenvolvimento desta pesquisa Agradeço aos meus antigos mestres e amigos Véra Barroso e Ricardo Fitz pela contribuição à minha formação e à professora Maria Emília Prado pela riqueza de sua arguição na defesa de minha dissertação assim como pela gentileza na aceitação do convite para prefaciar a presente obra Agradeço ao professor Aury Lopes Jr por ter me ajudado a encontrar novamente algo que eu julgava ter perdido Tratase de uma dívida impagável Agradeço aos colegas do curso de Ciências Jurídicas e Sociais em especial ao meu cunhado Felipe por terem me auxiliado a concluir a graduação em meio às responsabilidades com o mestrado em História Agradeço aos meus alunos e exalunos dos colégios Protásio Alves e Ernesto Dornelles pela compreensão diante da exaustão e pelas contribuições que emprestaram indiretamente ao meu trabalho Em especial agradeço por me tornarem mais humano e por me lembrarem constantemente o motivo pelo qual escolhi ser professor Finalmente agradeço a Deus que me deu forças para suportar a pesada carga de trabalho e a multiplicidade de compromissos e responsabilidades que assumi nos últimos anos SUMÁRIO PREFÁCIO 10 APRESENTAÇÃO 13 INTRODUÇÃO 15 1 ERGUENDO OS ALICERCES DA NARRATIVA NACIONAL FACE À HETERO GENEIDADE DA NAÇÃO O IHGB E VON MARTIUS22 11 O legado colonial fragmentação heterogeneidade e uma identidade portuguesa 22 111 O Brasil independente e o BrasilNação 36 12 O IHGB e sua missão inventar a narrativa nacional 46 121 Por que é preciso inventar a nação 46 122 O IHGB e o poder 49 123 O discurso fundador de Januário da Cunha Barboza 55 124 A narrativa nacional escrita pelo sujeito nacional o brasileiro 69 13 Martius como escrever a história do Brasil 72 131 O marco fundador da nação 73 132 As três matrizes e o assimilacionismo76 133 A exaltação dos feitos portugueses e a repulsa aos atos de rebeldia 81 134 O todo e a parte questãochave da problemática nacional 83 2 O MONUMENTO VARNHAGEN E O ENREDO DA NAÇÃO A NARRATIVA NACIONAL88 21 O que representou Varnhagen 88 211 Biografia 90 212 Convicções pessoais 96 213 A providência 111 22 As partes se tornam um todo a partir da narrativa nacional uma história geral da nação brasileira 118 23 A tragédia o inimigo e o herói a função paradigmática da narrativa nacional 140 3 O ESTADONAÇÃO PROTAGONISTA DA NARRATIVA NACIONAL 179 31 A relação com Portugal na narrativa nacional 179 32 O Estado dentro do Estado os jesuítas 188 33 Revolta e ilegitimidade os movimentos e sua apreensão 194 34 Transferência e presença do Estado português um Brasil independente em afirmação 203 35 Uma teoria da nação na obra de Varnhagen 217 36 Varnhagen advogado do estado e juiz inquisidor do tribunal da história 234 CONSIDERAÇÕES FINAIS 253 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 259 Horizontes Identitários 10 PREFÁCIO Claudia Wasserman UFRGS Orientadora Maria Emília Prado UERJ Banca de avaliação Na América Latina o processo de constituição do EstadoNação foi o resultado de uma complexa interface entre os fatores materiais objetivos tais como língua território e história comuns existência de um mercado interno criação de símbolos pátrios etc e a intervenção criativa dos intelectuais ligados ao Estado destinados a definir o aspecto subjetivo da identidade nacional O fator subjetivo referese ao nacionalismo ou seja à intenção explícita de construir e consolidar uma fraternidade que ultrapassasse os limites locais e regionais Os nacionalismos foram os veículos por meio dos quais se construíram as nações modernas eles elaboraram programas capazes de em sociedades tão desiguais como as nossas latinoamericanas por exemplo incorporar grande parte da população e fazer com que todos se sentissem partícipes dessa comunidade imaginada As primeiras discussões a respeito da identidade nacional do surgimento das nações e dos obstáculos para a sua constituição plena surgiram a partir das independências pautadas por uma preocupação política por parte dos protagonistas do processo Depois das independências os países da América Latina se transformaram em espaço de debates sobre a questão constitucional sobre o povoamento e acerca das medidas necessárias para implantação dos ordenamentos políticos e administrativos Essas discussões também foram realizadas por políticos e intelectuais que se propunham a fazer parte das administrações Somente mais tarde na segunda metade do século XIX apareceram os Salah H Khaled Jr 11 primeiros historiadores intelectuais ligados a academias de história ou centros e institutos sem caráter oficial mas cujos membros tiveram uma preocupação destacada com a investigação histórica e suas obras transformaramse em um legado de valor documental e analítico para futuros historiadores A dissertação de Mestrado de Salah H Khaled Jr intitulada A Construção da narrativa nacional brasileira a escrita da nação em Barboza Martius e Varnhagen defendida em julho de 2007 no Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS e agora publicada pela EDIPUCRS com o título de Horizontes identitários a construção da narrativa nacional brasileira pela historiografia do século XIX propõe a análise da elaboração de uma narrativa nacional por parte da historiografia oitocentista a partir de alguns dos mais destacados intelectuais da época Januário da Cunha Barboza Karl Friedrich Von Martius e Francisco Adolpho de Varnhagen Como fio condutor da análise Salah optou pela interpretação do amplo grau de pragmatismo presente nas obras dos autores brasileiros do século XIX que segundo sua ótica perseguiam o objetivo de construir uma narrativa fundadora da nacionalidade e da nação Sem prescindir dos teóricos contemporâneos a respeito da questão nacional e dos demais comentadores das obras analisadas Salah constrói um trabalho original e que contribui para compreensão do que ele mesmo chama de pedagogia social ou estratégias de convencimento A utilização adequada das fontes revela a escrita daqueles intelectuais do século XIX que pretendiam pautar condutas de comportamento e moldar o cidadão nacional A exegese dos textos permeada pelo contexto histórico propicia a emergência desse discurso que é segundo Salah sobretudo político Sendo assim Salah recupera o grau de inventividade sugerido por Ernest Gellner ao discurso da nacionalidade recuperando os episódios nacionais que se prestam aos objetivos dos pioneiros e militantes da questão nacional A preocupação com a pedagogia social e com as estratégias de convencimento resultou na tentativa de erradicação da diferença demonstrando a intolerância e recusa da heterogeneidade e revelou o recorte e seleção arbitrária de fatos bem como de prefiguração do passado de acordo com os objetivos de uma elite no presente realizada pelos autores estudados São estes os objetivos práticos que Salah descobre por trás de toda a narrativa Horizontes Identitários 12 fundadora do BrasilNação parecendo por vezes as intenções políticas se sobreporem a revelarem toda a insídia dos autores O resultado do esforço é um texto fluente bem escrito e que contribui para a historiografia brasileira e latinoamericana a respeito de um assunto sobre o qual os historiadores subcontinentais tiveram tanta responsabilidade para o bem e para o mal Salah H Khaled Jr 13 APRESENTAÇÃO A análise desenvolvida por Salah H Khaled Jr dá visibilidade ao pensamento histórico brasileiro do século XIX que buscava estabelecer um futuro promissor para o Império e simultaneamente preservar o vínculo com Portugal enfatizando a importância da ancestralidade europeia para o Brasil independente Salah realiza essa tarefa buscando nos nexos analíticos presentes nos textos de Barboza Martius e Varnhagen a forma com que o processo de uniformização do discurso histórico foi construído desde uma perspectiva de constituição de uma identidade nacional O autor relata como se articulou o enfoque da problemática da conformação do Brasil a um ideal de civilização nacionalidade brasileira apresentada e representada pela identidade nacional cuja ambiguidade retratada nos discursos é encoberta por diferentes estratégias de convencimento Partindo dessas premissas Salah detecta com objetividade o problema que o modelo de narrativa construído pela intelectualidade da época tentava solucionar o que era disperso precisava ser agregado discursivamente por uma estratégia de convencimento que pretendia superar a impossibilidade de utilização de um modelo eurocêntrico e homogêneo para explicar a brasilidade Ao se utilizarem de tal modelo os historiadores se defrontavam com o paradoxo da diversidade nacional problema este que foi enfrentado diretamente por Martius como explicar a unidade nacional a partir de tantas diferenças e dar a ela nacionalidade uma igualdade tal como pretendida pelo pensamento histórico da época Com esse enfoque a pesquisa desenvolvida por Salah revela que o problema de aplicação de um modelo que considerasse a diversidade logo foi deixado de lado sendo priorizado o modelo cientifico moderno homogêneo e igualitário o que pode ser nitidamente percebido na obra de Varnhagen O autor retrata que a inscrição da diversidade representou um problema que a intelectualidade da época tentou solucionar buscando uma estratégia de convencimento que ansiava pela assimilação Horizontes Identitários 14 e eventual anulação do outro índios e negros e que se valia de holandeses franceses e espanhóis propriamente reconhecidos narrativamente como outros condição negada a negros e índios para constituir o caráter heroico dos brasileiros unidos na defesa da pátria prefigurada argumentativamente nos tempos coloniais Salah propõe ainda no conjunto de sua dissertação uma difícil tarefa captar os postulados de construção do conhecimento histórico no contexto do século XIX comparandoos aos postulados do herói na narrativa de Varnhagen e como ele pensou o Brasil de forma global O autor consegue de forma exemplar demonstrar a especificidade da construção narrativa oitocentista revelando como Varnhagen subordina a ação individual aos objetivos colocados pelo Estado de forma a dificultar a mobilidade dos indivíduos frente à condução da história pela Providência A singularidade nacional é apresentada por Varnhagen como relato por excelência de um personagem o BrasilEstado Dessa forma a História Geral do Brasil configura uma narrativa nacional que assume caráter de grande relato da nacionalidade Um relato que tem nítida vocação pragmática apesar de sua pretensão científica propondose a fundar uma ideia de nação de acordo com as premissas do Império e assumindo assim caráter de verdadeira pedagogia social A análise desenvolvida enfatiza a originalidade com que essas ideias foram utilizadas pelos autores analisados em especial por Varnhagen que aborda diversas questões referentes ao que entendia ser um processo de domínio da civilização sobre a barbárie demonstrando a percepção do processo de colonização pelo pensamento dos historiadores brasileiros do século XIX A desconstrução da obra História Geral do Brasil de Varnhagen revela uma narrativa estruturada para produzir identificação subjetiva nos habitantes do país dentro de um contexto histórico no qual havia uma pretensão de fazer do Brasil um grande Império no século XIX A análise discursiva das simetrias e assimetrias brasileiras representa um olhar apurado podese dizer emblemático sobre uma etapa importante e significativa da história do pensamento brasileiro revelando um caráter unificador que desde os seus primórdios procurou erradicar a diferença expressando um conhecimento construído sob o signo do poder e de sua justificação Ruth Maria Chittó Gauer Salah H Khaled Jr 15 INTRODUÇÃO A proposta deste livro consiste em analisar a construção da narrativa nacional por Januário da Cunha Barboza Karl Friedrich Phillipe Von Martius e Francisco Adolpho de Varnhagen no século XIX durante a primeira etapa de constituição da nação brasileira A investigação desse processo de construção identitária a partir da escrita da história tem como base o estudo de três obras significativas para a sua compreensão O discurso fundador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro de Januário da Cunha Barboza o artigo Como se deve escrever a História do Brasil de Martius e a História Geral do Brasil de Varnhagen A opção pelo tratamento conjunto dos textos referidos relacionase à existência de um fio de continuidade entre o discurso fundador do IHGB o guia para escrita da história nacional de Martius e a concretização de tais ideais através do grande relato da nacionalidade de Varnhagen que é o produto mais elaborado do esforço discursivo de construção da nação brasileira nos oitocentos Dentro de tal proposta um horizonte de análise é privilegiado nos textos referidos a preocupação com a construção da nação e da identidade nacional a partir de uma narrativa enfatizando um recorte de natureza política Sendo assim é feita uma análise da narrativa nacional construída no século XIX buscando compreender o seu sentido propriamente identitário através de uma pesquisa pautada pelos critérios de procedimento da História Intelectual Uma vez que a abordagem do problema referese à construção de identidades nacionais se torna importante destacar que o recorte é sobretudo político e não historiográfico estando a discussão voltada para as questões chave da definição identitária brasileira nos autores referidos e nas suas respectivas obras Logo não se trata de uma investigação sobre método escrita paradigma ou utilização de fontes pelos autores embora tais questões possam ser incidentalmente abordadas O que interessa sobretudo é o conteúdo das respectivas falas A análise está centrada no caráter da narrativa nacional por eles proposta e na relação entre a realidade externa Horizontes Identitários 16 e o seu discurso que se dá a partir de um horizonte decididamente pragmático Esse é o enfoque proposto para a investigação realizada Portanto a intenção é de uma leitura das obras como integrantes de uma narrativa fundadora da nacionalidade e da nação e não como obras de história em sentido estrito motivo pelo qual as questões propostas extrapolam o âmbito de interesse específico dos historiadores O enfoque da obra é político pois se refere à invenção do BrasilNação pela historiografia oitocentista Sendo assim o componente privilegiado de análise é a identidade nacional e a nação na forma com que a narrativa nacional busca estabelecêlos Entretanto estes são elementos que não se evidenciam facilmente pois a obra de Varnhagen privilegia o Estado tendo inclusive sido taxada no passado de uma história administrativa do Império Português Todavia percebese de forma subjacente uma série de elementos que permitem ao observador inferir uma teoria da nação na obra do autor Além disso há uma tentativa deliberada de construção de sentidos ao longo da narrativa através do estabelecimento de uma pedagogia social que busca determinar condutas a partir de exemplos Para o enfoque proposto para essa análise é interessante observar a dinâmica dessa função exemplar inserida no discurso intelectual principalmente no que se refere à sua inserção na narrativa nacional Como a narrativa nacional desenvolvida nos oitocentos é o objeto analisado a partir do fio de continuidade anteriormente citado os referenciais teóricos oferecidos pelos vários elementos que compõem a teoria do nacionalismo bem como pelos comentadores de Barboza Martius e Varnhagen se mostram de grande valia Sendo assim como se espera do tema da identidade nacional a obra se vale de uma série de autores para fins de embasamento teórico As considerações de ordem teórica são aproveitadas como parâmetros que orientam e fundamentam a análise norteando a própria leitura do discurso intelectual sendo esse o sentido de sua utilização Dessa forma a intenção é pensar a partir dos teóricos da nação e dos comentadores sem no entanto se limitar a eles Esta é portanto uma obra que se vale exclusivamente de fontes de ordem bibliográfica para a formação dos elementos de convicção que lhe são pertinentes A contribuição que o presente estudo visa prestar encontrase ligada à construção de identidades nacionais através da narrativa nacional e em particular do modo como a historiografia buscou construir tais identidades Portanto a dimensão de Salah H Khaled Jr 17 análise em questão privilegia a forma com que a constituição de um passado histórico a partir de recortes específicos e exemplos delimitados trabalha para formar o tipo de consciência que é típico de uma identidade nacional Nesse sentido a intenção é descer ao nível do discurso e de suas estratégias de convencimento e dessa maneira contribuir para a discussão em torno da elaboração do BrasilNação nos oitocentos1 As avaliações sobre a obra de Varnhagen costumam se reportar aos mesmos pontos destacandose principalmente a questão da nação Nesse sentido o diferencial da análise aqui proposta está na forma de abordar o objeto ou seja no enfoque adotado para problematizar a narrativa nacional revelar a existência de um sistema de pensamento dotado de considerável sofisticação e alicerçado por um pragmatismo político cuja intenção é efetivamente moldar o cidadão nacional Em virtude dessa opção analítica a utilização de citações é abundante uma vez que é interessante permitir que os autores falem por si mesmos e na sua própria forma de se expressar Essa opção se deu inclusive em função da leitura de alguns comentadores dar a impressão de que eles por vezes se afastam demais dos autores que procuram analisar2 A intenção aqui ao contrário é permitir que o leitor conheça não apenas uma interpretação sobre os textos escolhidos mas que também efetivamente os conheça ainda que obviamente dentro de um recorte estabelecido pelas necessidades da análise em questão A intenção de revelar um sistema de pensamento referese a uma compreensão que diz respeito ao conteúdo e sentido do que é posto através da historiografia Não se trata de uma refutação factual ou de uma afirmação de superação de um modelo em tese defasado de historiografia até porque isso já foi feito mas sim da busca de um entendimento abrangente do que de fato se pretendia como se fazia e o que se realizava ao constituirse um passado para a nação brasileira no século XIX Em outras palavras uma tentativa de apreensão do sentido por trás da narrativa nacional inserida dentro de uma obra descritiva como a de Varnhagen Portanto o que move esta análise é uma reflexão crítica sobre os textos que encaminharam a narrativa nacional e a obra de Varnhagen que por fim a constituiu e dessa forma inventou legitimou e celebrou a nação É importante que esses questionamentos fiquem claros para que seja 1 Os demais estudiosos de Martius e Varnhagen trataram de outros aspectos de suas produções inte lectuais de forma que esta parece ser uma questão na qual ainda há espaço para discussão 2 É o caso por exemplo de Nilo Odalia José Carlos Reis e José Honório Rodrigues Horizontes Identitários 18 evidenciada a diferença deste estudo em relação ao trabalho realizado por outros comentadores de Varnhagen cujo enfoque é geralmente historiográfico Varnhagen é um autor que já foi observado por uma série de autores Dentre a extensa literatura podem ser citados os trabalhos de Arno Wehling Temístocles Cezar Nilo Odalia José Carlos Reis José Honório Rodrigues Manuel Salgado Guimarães e Capistrano de Abreu entre tantos outros São autores de renome Aqui não há qualquer pretensão de superálos Procurase apenas contribuir para essa extensa discussão a partir de uma análise que conta com um enfoque diferenciado em relação aos estudos até então realizados Tais autores são inclusive muito utilizados e citados no decorrer da presente obra Também é importante salientar que diferentemente dos autores acima referidos não existe aqui a pretensão de realizar um extenso levantamento da obra de Varnhagen mas sim em sintonia com o recorte previsto verificar os elementos importantes para o estudo da identidade nacional em sua História Geral do Brasil Além disso é interessante referir que enquanto objeto a HGB tem uma particularidade que é a existência de duas edições distintas sendo que há diferenças significativas de posicionamento do autor em ambas Quanto ao recorte aqui proposto embora em certa medida a primeira edição seja contemplada quando considerada relevante a opção foi pela segunda edição por entender que nela se encontram mais cristalizados os pontos de vista de Varnhagen sobre a questão nacional que é o aspecto que sobretudo interessa verificar Um outro ponto que deve ser destacado é a questão do contexto Para a análise aqui proposta e em busca de respostas para uma série de questões levantadas parece fundamental verificar de que forma uma série de fatores concorreram para a realização dessa historiografia dos oitocentos Nesse sentido a análise leva em consideração os elementos contextuais integrantes do processo histórico em que se deu a invenção da narrativa nacional além das obras dos autores A observação dos elementos materiais que compõem esse contexto não pode ser ignorada sob pena de incorrerse em um empobrecimento injustificado do objeto de pesquisa Logo uma vez que para essa análise o contexto é imprescindível o seu estabelecimento se dá através da utilização da historiografia contemporânea que se reporta às questões pertinentes para a investigação do objeto em questão bem como ao próprio período em que Varnhagen escreveu sua obra A importância do contexto está ligada ao Salah H Khaled Jr 19 entendimento de que sendo todo o texto por excelência datado não há possibilidade de compreensão proveitosa de uma obra sem que fique estabelecido o devido marco temporal e espacial em que se deu sua escrita3 Como se trata de uma pesquisa cujo elemento central é uma análise de discurso intelectual isso levanta questões de ordem metodológica Sendo assim pela natureza do objeto selecionado e pela forma de sua abordagem uma vez que se preocupa com a relação entre os intelectuais e o poder político esta pesquisa insere se dentro da metodologia da História Intelectual cujo projeto é pautado pela busca de uma elucidação das obras dos pensadores dentro de sua historicidade4 Em síntese a História Intelectual procura inscrever historicamente o discurso dos intelectuais tentando ultrapassar a alternativa entre explicações internas e externas5 Para que essa ambição analítica da História Intelectual seja bem sucedida se faz necessária a superação da dicotomia entre uma análise interna e externa observando as duas escalas de análise6 Portanto tanto o contexto histórico integra o seu enfoque como os paradigmas intelectuais os modelos dominantes que integram o pensamento científico da época ainda que a apreensão de tais modelos não seja tão simples7 Nesse sentido uma análise determinada por tais critérios leva em 3 Nesse sentido é relevante a afirmação de Hobsbawm que afirma que conceitos certamente não são parte de discursos filosóficos flutuantes mas são histórica social e localmente enraizados e por tanto devem ser explicados em termos destas realidades HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalis mo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p18 4 O historiador francês François Dosse afirma que a História Intelectual se estabeleceu em um espaço vazio entre a história clássica das ideias a história da filosofia a história das mentalidades e a história cultural Como afirma o autor esse novo espaço de investigação tende a adquirir autonomia pois a história intelectual tem como ambição a convergência em sua análise das obras seus autores e o con texto em que haviam nascido dentro de um processo que rechaça a alternativa empobrecedora entre de um lado uma leitura internalista das obras e de outro uma aproximação externalista que privilegia somente as redes de sociabilidade DOSSE François Regreso al país de la historia intelectual In Con trahistoiras La otra mirada de clio n 3 setembro de 2004fevereiro de 2005 p87 5 SILVA Helenice Rodrigues A história Intelectual em questão In LOPES Marco Antônio org Gran des nomes da História Intelectual São Paulo Contexto 2003 p15 Disponível em httpbooksgooglecombrbookshlptBRlridfCCwBmPjcCoifndpgPA9dq22Lop es2222GrandesnomesdahistC3B3riaintelectual22ots4EVkG2eFcqsigX4f7fy Si9BDtEN93GMKV75F2svonepageq22Lopes222022Grandes20nomes20da20 histC3B3ria2 6 A ideia é ir além de uma abordagem que privilegie a relação entre a análise externa dos acontecimen tos históricos sociais políticos e a análise interna da obra a hermenêutica ou a análise do discurso a História Intelectual deve levar em consideração simultaneamente a dimensão diacrônica história e sincrônica os aspectos diferentes de um mesmo conjunto em um mesmo momento de evolução falta fechar aspas Ibid p19 Para Dosse é a vontade de manter juntas estas dimensões que caracteriza o objeto da história intelectual DOSSE op cit p87 7 SILVA op cit p20 Disponível em httpbooksgooglecombrbookshlptBRlridfCCwB mPjcCoifndpgPA9dq22Lopes2222GrandesnomesdahistC3B3riaintelectual 22ots4EVkG2eFcqsigX4f7fySi9BDtEN93GMKV75F2svonepageq22Lopes2220 Horizontes Identitários 20 consideração a trajetória pessoal dos autores assim como o contexto histórico em que estão inseridos para efeito de análise de seu discurso e decifração de seus sistemas de pensamento bem como de sua relação com o poder e o poder que exercem através da ciência8 Esse entendimento parte da noção que aponta que uma análise de produção intelectual não pode ser realizada fora de um contexto social político econômico e cultural uma vez que nenhum fenômenoobjeto será compreendido se analisado de forma isolada e independente dos demais9 Evidente que tratase de um objeto dotado de complexidade imensa o que por sua vez conduz à insuficiência da análise que não se reveste aqui de qualquer pretensão de estabelecer uma verdade absoluta Esse é em linhas gerais o espírito de investigação através do qual o problema da narrativa nacional será abordado dentro do objeto e das fontes escolhidas Tendo como base tais norteadores para que a avaliação da trajetória e do caráter da construção da narrativa nacional brasileira no século XIX seja realizada com sucesso dentro do espírito aqui proposto se faz necessário que sejam percorridas algumas etapas que se refletem na estrutura da presente obra No primeiro capítulo a intenção é estabelecer as bases em torno das quais foi elaborada a narrativa nacional Dessa forma são abordadas questões como a condição política de excolônia o que havia de identificação com o país por que era necessário inventar a nação e finalmente qual o sentido da fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e como ele se articula com o poder A partir do estabelecimento desse contexto a análise de desloca para o discurso fundador de Januário da Cunha Barboza e como ele busca estabelecer os parâmetros de uma narrativa nacional Finalmente chegase ao artigo de Karl Friedrich Von Martius que efetivamente se constitui em um guia para a invenção discursiva da nação No segundo capítulo a análise enfoca Varnhagen Assim em um primeiro momento procurase discutir a trajetória do autor do grande relato da nacionalidade 22Grandes20nomes20da20histC3B3ria2 8 Helenice Rodrigues da Silva refere que a História Intelectual domínio pluridisciplinar por excelência como o dos contextos de produção de idéias o dos agentes socioprofissionais e o das correntes de pensamento ela parece visar dois pólos de análise de um lado o conjunto de funcionamento de uma sociedade intelectual o campo na versão de Pierre Bordieu isto é suas práticas seu modo de ser suas regras de legitimação suas estratégias seus habitus e de outro lado as características de um momento histórico e conjuntural que impõe formas de percepção e de apreciação ou seja modali dades específicas de pensar e de agir de uma comunidade intelectual Ibid p16 9 Ou seja para Silva em outras palavras a história intelectual teria por principal pressuposto res tituir do ponto de vista sociológico filosófico e histórico o contexto de produção de uma obra Ibidem Salah H Khaled Jr 21 oitocentista expondo sua biografia e avaliando suas convicções pessoais Em um segundo momento a análise é voltada para o discurso enfocando dois pontos marcantes da sua obra a ideia de uma história geral que por excelência nega a diferença e procura promover integração e a construção de sentidos exemplares paradigmáticos através das categorias da tragédia dos nossos e do inimigo No terceiro capítulo surge o personagem central da narrativa nacional de Varnhagen o EstadoNação Assim é possível observar como Varnhagen se posiciona diante de questões que envolvem tal personagem como o relacionamento com Portugal os jesuítas e a ideia de Estado dentro do Estado os movimentos rebeldes e finalmente a transferência do Estado português para o Brasil A partir de tais elementos é possível esboçar uma teoria da nação que transparece na obra de Varnhagen ainda que de forma difusa ou subjacente Finalmente no último trecho fica claro como o pragmatismo de Varnhagen acaba por lhe conferir dois papéis que ele mesmo repudiava o de advogado do EstadoNação e o de juiz inquisidor do tribunal da história Com base nos subsídios investigados ao longo dos três capítulos tornase possível uma apreciação analítica do caráter da narrativa nacional brasileira concebida pela historiografia oitocentista Boa leitura Horizontes Identitários 22 1 ERGUENDO OS ALICERCES DA NARRATIVA NACIONAL FACE À HETEROGENEIDADE DA NAÇÃO O IHGB E MARTIUS A proposta neste capítulo consiste em demonstrar o esforço necessário para inventar o BrasilNação no século XIX e as primeiras iniciativas nesse sentido com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o artigo de Karl Friedrich Von Martius A estruturação do capítulo desenvolvese em três etapas atendendo a essa proposta Em um primeiro momento é esboçado um quadro da problemática nacional que precede à fundação do IHGB utilizando as contribuições mais recentes da historiografia sobre a questão identitária brasileira Em um segundo momento a preocupação se desloca para o Instituto propriamente dito seu surgimento sua associação com o poder seus objetivos e seu discurso fundador nos quais já são delineados os parâmetros teóricos e políticos da escrita da história da nação Finalmente no terceiro trecho é analisado o artigo de Martius Como se deve escrever a história do Brasil o qual funciona como verdadeiro guia para a elaboração do produto mais acabado do esforço de invenção da nação a História Geral do Brasil de Varnhagen que passa a ser abordada no segundo capítulo 11 O Legado Colonial fragmentação heterogeneidade e uma identidade portuguesa A invenção da nação se tornou por excelência a missão da história como ciência no século XIX O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro se propôs a elaborar um passado para a nação a construir esse passado discursivamente e portanto a compor uma narrativa nacional Nesse sentido parece interessante verificar quais eram os elementos sobre os quais a nação poderia ser construída discursivamente e porque a invenção da nação se fazia tão necessária à viabilidade do país Qual era a Salah H Khaled Jr 23 situação do Brasil enquanto colônia e enquanto país recém independente e de que forma esse passado poderia ou não ser moldado para promover através de uma narrativa nacional um sentimento de identificação com o todo da nação Se antes dos oitocentos havia alguma identidade brasileira era somente de forma tímida e embrionária e mesmo assim era difícil separála de sua vinculação lusitana As elites do país preservavam sobretudo a sua origem branca e europeia e isso implicava em uma falta de identificação com a colônia Afinal era essa herança que os diferenciava de índios e negros e portanto não havia como abrir mão dessa vinculação De fato tudo indica que o Brasil pouco representava enquanto foco de identificação10 Além disso a própria percepção e sentido atribuídos à colônia pelos colonizadores não lhes era própria O Brasil não era reconhecido por suas características mas sim como uma extensão da cultura portuguesa localizada no alémmar11 Em essência pode ser dito que o Brasil era tido pelos portugueses como uma espécie de reprodução de Portugal12 Evidentemente essa não era realidade concreta da colônia ainda que os colonizadores pudessem ter tal compreensão13 Desde os primórdios de sua existência portanto o Brasil não foi instituído pelos portugueses para ser algo novo mas sim para existir em função das necessidades e dos modelos impostos pela metrópole14 Em função disso parece 10 De acordo com Evaldo Cabral de Melo o sentimento no primeiro século de colonização 15321630 não era de originalidade mas sim de orgulho pela lusitanidade da nova terra MELO Evaldo Cabral de Uma nova Lusitânia In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta A experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac1999 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA48dqUmanovaLusitC3A2niav onepageqUma20nova20LusitC3A2niaffalse 11 Jorge Couto em sentido semelhante observa que os visíveis progressos alcançados no final do século XVI levaram muitos a considerar a promissora província sulamericana como uma Nova Lu sitânia ou um Outro Portugal COUTO Jorge A gênese do Brasil In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta A experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 p48 Grifo nosso Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJspt N0PWYCpgPA45dqagC3 12 O jesuíta Fernão Cardim proclamava este Brasil já é outro Portugal MELO Op cit p73 Disponí vel parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA48dqUmanova LusitC3A2niav onepageqUma20nova20LusitC3A2niaffalse 13 Couto afirma que o Brasil tratase de um componente do Império português que possuía caracte rísticas bem vincadas e que apesar da prevalência sobretudo nas áreas urbanas de elementos da matriz cultural linguística e religiosa lusitana não poderia desde o início do processo de colonização ser automaticamente associada ao padrão metropolitano COUTO Op cit p65 Disponível parcial mente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA45dqagC3AAnesedo brasilv onepageqa20gC3AAnese20do20brasilffalse 14 É nesse sentido que Stuart Schwartz afirma que em termos sociais ou religiosos o Brasil foi cria do para reproduzir Portugal não para transformálo ou transcendêlo SCHWARTZ Stuart B APUD Horizontes Identitários 24 claro que o ambiente colonial não era nada propício ao surgimento de algo que mesmo remotamente lembrasse uma identidade nacional Pensando a partir da categoria de protonacionalismo15 de Hobsbawm percebese que mesmo que de forma embrionária não havia por parte dos portugueses uma ligação com o Brasil O que havia de identificação remetia à metrópole Além disso sequer havia um Estado propriamente dito e localizado em seu território em virtude da condição colonial Como um dos fatores para a promoção do sentimento nacional é o Estado percebese o quanto o Brasil estava distante de ter um sentido próprio para os seus habitantes Isso representa um problema com que a elaboração discursiva da nação teria que lidar pois um dos elementos que por excelência legitimam uma nação é a sua antiguidade o fato de sua existência já estar longamente solidificada pelo decurso do tempo Embora fosse desejável para a invenção da narrativa nacional que um sentimento de identificação com o Brasil já estivesse presente desde os primórdios da colonização o fato é que durante séculos a única perspectiva identitária realmente existente para as próprias elites era a portuguesa O sentimento de identidade nacional se é que pode ser entendido assim em pleno Brasil era luso ou inexistente Isso dificultava o surgimento de uma identidade brasileira uma vez que nada vinculava subjetivamente os portugueses mesmo os não reinóis ao Brasil A relação dos colonizadores era na realidade de espoliação O que se buscava era o enriquecimento individual e o retorno a Portugal16 Dentro dessa perspectiva a percepção dos índios e negros em relação à colônia pouco importava para as elites pois o Brasil era por excelência uma invenção do homem europeu e cabia a ele atribuir sua significação Somente no final do século XVIII começou a surgir ainda que de forma inicial MELO Evaldo Cabral de Uma nova Lusitânia In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta A experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac1999p73 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA48dqUmanovaLu sitC3A2niav onepageqUma20nova20LusitC3A2niaffalse 15 HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Ja neiro Paz e Terra 1990 p63 16 Como assinala Schwartz apesar do reconhecimento do potencial econômico do Brasil este era visto pela maioria dos portugueses como um lugar de exílio e perigo um lugar para enriquecer ou progredir na carreira mas um lugar a ser evitado a qualquer custo SCHWARTZ Stuart B Gente da terra braziliense da nasção Pensando o Brasil a construção de um povo In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta A experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Se nac 1999 p109 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCp gPA103lpgPA103dqGentedaterrabraziliensedanasC3A7C3A3osourceblots 6yhETIYdcXsignA25vURQTJe3IBZ1GOCYgnU8t1IhlptBReivpjfSouxOoul8Abp4NBlsaXo ibookresultctresultresnum1ved0CAoQvonepageqGente20da20terra20brazilien se20da20nasC383C2A7C383C2A3offalse Salah H Khaled Jr 25 uma espécie de identificação com o Brasil dentro de tais elites Para que isso ocorresse foi necessário que fosse operada uma inversão de significado em que o conquistador passasse a se enxergar como nativo um processo nada simples Essa constatação faz com que transpareça a imensidão da tarefa a ser realizada através da invenção da nação nos oitocentos Para os intelectuais que elaboravam a narrativa nacional no século XIX não bastava que o Brasil fosse uma nova nação Ele devia estar prefigurado desde os tempos coloniais pois esse passado podia se constituir em um cimento importante para um país que tinha a integridade do seu território ameaçada Fica portanto a pergunta como deixar de lado a identificação com Portugal fonte de orgulho e prestígio e assumir uma proximidade com um território satélite do império português que detinha pouca importância além de uma lógica de exportação de produtos tropicais O pouco que havia de identificação era sobretudo regional Justamente a identificação que teria que ser ferrenhamente combatida no século XIX para estimular o sentimento nacional Havia identidade local no Brasil colônia mas não nacional A identificação era sobretudo regional ou então com Portugal Jancsó e Pimenta por exemplo afirmam que os colonos de São Paulo ao mesmo tempo que reconheciamse como paulistas eram percebidos pelos espanhóis como portugueses e assim se sentiam ao confrontálos Paulista baiense ou pernambucano significava ser português ainda que uma forma diferenciada de sêlo mas não brasileiro17 Tais constatações dão uma boa amostra do quanto era limitado o sentido de Brasil para aqueles que passariam a ser considerados como brasileiros no futuro pela historiografia dos oitocentos O exemplo demonstra o quanto é difícil pensar o Brasil antes da independência e mesmo depois como uma nação a partir de critérios subjetivos a partir da ideia de vontade de adesão ao todo da nação A que fatores pode ser atribuída essa condição Por que era tão difícil a identificação com o Brasil Será que a manutenção de uma identidade portuguesa se 17 Para os autores o que interessa ressaltar é a concomitante emergência de três diferenças A primei ra é aquela que distinguia o português da América por exemplo um baiense de todos que não fossem portugueses holandeses franceses espanhóis A segunda simultânea com a anterior é a que lhe permitia distinguirse ao baiense de outros portugueses por exemplo do reinol do paulista Final mente uma terceira diferença é a que distingue entre os portugueses aqueles que são americanos dos que não partilham essa condição JANCSÓ István e PIMENTA João Paulo G Peças de um mosai co ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta A experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 p137 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJspt N0PWYCpgPA127dqPeC3A7asdeummosaico28ouapontamentosparaoestudo daemergC3AAnciadaidentidadenacionalbrasileira29vonepageqPeC3A7as20 de20um20mosaico20ou20apontamentos20para20o20esffalse Horizontes Identitários 26 restringia ao diferencial em relação a negros e índios A questão não parece limitar se a esse aspecto pois não abrange o florescimento de uma identidade regional estabelecida pela convergência de interesses locais Nesse sentido é importante salientar que antes que fruto do mero acaso a fragmentação era propositalmente engendrada os funcionários da Coroa referiamse a América portuguesa como Brasil mas jamais a seus habitantes como brasileiros Todo o cuidado era tomado para evitar o surgimento de uma identidade coletiva que ultrapassasse o âmbito regional18 Ou seja a própria metrópole tratou de dificultar o surgimento de uma identificação que fizesse com que os habitantes do Brasil se voltassem contra ela Isso significa que Portugal apesar de alémmar não deveria ser percebido de forma alguma como um outro Os outros deveriam ser os espanhóis e não os portugueses Tais constatações aprofundam o entendimento por trás da manutenção no campo subjetivo de uma identidade portuguesa Mas e quanto ao campo objetivo A extensão do que implicava a condição colonial para o surgimento de uma identificação nacional é bem demonstrada por impedimentos que são de ordem políticoadministrativa Além do âmbito subjetivo encontravase a própria questão do espaço colonial da disparidade de seu desenvolvimento e de sua delimitação política19 Enquanto na costa entre Pernambuco e Rio de Janeiro havia uma pretensão de constituir uma réplica da Europa no interior e nas periferias da colônia a composição da sociedade e a estrutura do governo eram muito afastadas desse padrão civilizatório São Paulo permaneceu uma região rústica até bem avançado o século XVIII20 O Estado do Maranhão era em essência uma colônia independente 16211777 e as capitanias do Sul eram tratadas como região separada embora as 18 Segundo Jancsó e Pimenta a força coesiva do conjunto lusoamericano era indiscutivelmente a Metrópole e o continente do Brasil representava para os coloniais pouco mais que uma abstração enquanto para a Metrópole se tratava de algo muito concreto unidade cujo manejo impunha esta per cepção É por isso que é correto afirmar que a apreensão de conjunto de partes que genericamente se chamou de Brasil estava no interior da burocracia estatal portuguesa Ibid p140 19 Como Schwartz afirma é preciso considerar também a dimensão geográfica desse processo O Brasil não era em realidade apenas um mas era constituído por uma série de colônias Os Ingleses tinham razão quando falavam nos séculos XVII e XVIII dos Brasis pois havia de fato mais de uma co lônia SCHWARTZ Stuart B Gente da terra braziliense da nasção Pensando o Brasil a construção de um povo In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta A experiência brasileira 1500 2000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 p112 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA103lpgPA103dqGentedaterrabr aziliensedanasC3A7C3A3osourceblots6yhETIYdcXsignA25vURQTJe3IBZ1GOCY gnU8t1IhlptBReivpjfSouxOoul8Abp4NBlsaXoibookresultctresultresnum1ved0CA oQvonepageqGente20da20terra20braziliense20da20nasC383C2A7C383 C2A3offalse 20 Ibid p112113 Salah H Khaled Jr 27 tentativas de criação de um governo à parte do Rio de Janeiro 15731578 1608 1612 tivessem fracassado Percebese que a coesão não era sequer política e a fragmentação era a regra21 A própria diversidade que depois com a independência teria de ser erradicada era antes de certa forma incentivada Esse processo se manteve em curso de forma eficaz durante séculos A própria heterogeneidade da colônia e as diferenças regionais implicavam em uma pluralidade de horizontes identitários e nesse sentido de expectativas não correspondidas que explodiriam com toda a força nas primeiras décadas após a Independência Em meio a tanta heterogeneidade o que havia de comum era o laço que prendia a colônia a Portugal22 Não por acaso esse aspecto foi enfatizado pelos inventores da narrativa nacional oitocentista pois promovia uma certa coesão Tais questionamentos dão uma boa dimensão do esforço necessário para inventar uma narrativa nacional no século XIX De alguma forma esse todo inteiramente disperso devia ser reunido Na medida em que a fragmentação se dava tanto no âmbito objetivo quanto na própria esfera subjetiva fica evidente o esforço monumental que teria que ser dado para tornar a antiga colônia uma nação no século XIX Não seria uma tarefa fácil superar a pluralidade que era intencionalmente incentivada com inegáveis êxitos como demonstra a fragmentação política o poder pulverizado localmente e a permanência de uma identificação com Portugal Além disso ainda restava o problema de toda uma população segregada socialmente a qual em maior ou menor grau deveria ser integrada de alguma forma ao projeto de nação que o horizonte identitário oitocentista gostaria de ver concretizado Essa tendência à fragmentação e à não identificação com o Brasil não se sustentou entretanto em virtude de uma série de circunstâncias que modificaram ao menos parcialmente a percepção dos habitantes da colônia em relação a ela e a si mesmos No século XVIII o surgimento de uma articulação comercial interna que se deveu principalmente ao ciclo do ouro fez com que várias províncias 21 O estado do Maranhão se reportava diretamente a Lisboa e não a Salvador Da mesma forma as capitanias do Sul embora não independentes tinham pouco controle por parte do governo na Bahia Em ambos os casos as populações de origem europeia eram bem pequenas e predominavam os mis sionários já desaparecidos das zonas de exportação Enquanto isso na costa entre Pernambuco e Rio de Janeiro predominavam os modelos culturais europeus 22 Odalia afirma que a unidade da colônia se perde no momento mesmo em que se desvincula do Im pério que a assegurava em vez dela o que se tem é a heterogeneidade a divisão a discriminação em todos os níveis ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p41 Disponível em httpwwwdominiopubli cogovbrdownloadtextoup000007pdf Horizontes Identitários 28 incrementassem a realização de trocas comerciais o que integrou por exemplo de forma mais pronunciada a região Sul à colônia Isso subverteu em certo sentido a lógica colonial ainda que o Estado luso tenha se feito mais presente no país a partir de então reforçando a sua autoridade administrativa em virtude da riqueza que o ouro representava Ironicamente foi justamente a partir do momento que Portugal intensificou sua ação na colônia que a integração regional mais se dinamizou Subitamente a presença do Estado português no território brasileiro se fez sentir de forma inédita e com ela uma dimensão de controle a que a colônia não estava habituada Dessa súbita contraposição mais acentuada de interesses começou a surgir uma compreensão de que as elites coloniais enquanto tais sendo dotadas de ambições diversas de suas contrapartes metropolitanas constituíamse em algo diverso Ou seja os portugueses de alémmar começavam a ser percebidos como um outro uma dimensão de alteridade fundamental para a ideia de nação Entretanto ainda que um componente importante a mera identificação do outro não bastava para a existência de um sentimento nacional Era ainda necessário que esse antagonismo se intensificasse ao limite do insuportável e que a identificação passasse a ser nacional e não regional em relação aos portugueses Isso em certa medida se verificou nas lutas pela Independência que todavia não se deram dentro de um clima de unanimidade mas sim de diversidade imensa de interesses e horizontes identitários O surgimento de uma identidade nacional sempre ocorre dentro de um processo truncado desconexo e descontínuo Existe uma tendência a enxergar uma evolução provida de linearidade e continuidade o que não é verdadeiro ainda que para um setor considerável da historiografia uma nação brasileira já estivesse prefigurada antes da independência23 Um primeiro indício para essa corrente da suposta continuidade 23 De acordo com Richard Graham essa vertente relacionase com a ideia de nativismo na qual se enxerga nos séculos que antecederam a emancipação política uma identidade brasileira e uma cons ciência nacional José Honório Rodrigues argumenta em Independência revolução e contrarevolução Rio de Janeiro Francisco Alves 1975 que a nação já existia há muito tempo De acordo com o autor D Pedro I descobriu que os brasileiros estavam animadamente preparados para endossar sua decla ração de independência do Brasil e que permaneceram unidos a partir de então por um sentimento nacional O autor referese a um sentido profundo da história nacional cuja unidade é o tema central a motivação permanente Dessa forma Rodrigues afirma que desde o princípio a unidade nacional foi uma aspiração partilhada por todos O sonho de um Brasil único e indivisível teria dominado todos os brasileiros evidenciando o orgulho nacional nascente Rodrigues segue a trilha aberta por Manuel de Oliveira Lima 1867 1928 o qual afirma que antes da separação de Portugal o Brasil já tinha seu objetivo aquilo que já passara a ser expressa ou latente sua aspiração comum a independência Ver O movimento da independência O Império brasileiro 1821 1889 2ª ed São Paulo Melhoramentos 196 1ª ed 1922 p 22 Essa visão é predominante nos primeiros trabalhos publicados pelo Instituto Salah H Khaled Jr 29 seria a Inconfidência Mineira em 1789 Nesse sentido Schwartz assinala que ainda que de maneira difusa no final do século XVIII vários membros da sociedade colonial começaram a reivindicar o lugar de filhos da terra e a constituir o povo do Brasil mas agora sob a influência da Revolução Francesa com um novo significado inclusivo24 Assim os jovens que participaram do movimento inconfidente fracassado no Rio de Janeiro em 1794 começavam a se considerar brasileiros e a conceber um Brasil de outro tipo25 Para Schwartz ainda que tais conspiradores pertencessem à elite colonial quatro anos depois na Bahia uma conspiração de artesãos escravos brancos pardos e negros manifestou preocupações semelhantes com uma nítida preocupação social que não estava evidente nos movimentos anteriores De acordo com Schwartz para eles e muitos brasileiros do século XIX não restava dúvida de Histórico e Geográfico Brasileiro como pode se observado em Manuel Luiz Lima Salgado Guimarães no artigo A Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e os temas de sua historiografia 1835 1857 fazendo a história nacional em Origens do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro idéias filosóficas e sociais e estrutura do poder no segundo reinado organizado por Arno Wehling Rio de Janeiro Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro 1989 p 2141 e também em Lilia KMoritz Schwarz Os guardiões da nossa história oficial os institutos históricos e geográficos brasileiros em História das Ciências Sociais n 9 São Paulo Instituto de Estudos Econômicos Sociais e Políticos de São Paulo IDESP 1989 p 732 Também é um ponto de vista que recorre em histórias intelectuais como a que E Bradford Burns escreveu sobre o nacionalismo brasileiro O crescimento da consciência nacional teve seu triunfo inevitável na proclamação da independência do Brasil o Brasil apareceu e cres ceu como uma nação unificada graças pelo menos em parte ao nativismo viril ou nacionalismo preco ce Esse sentimento nacional e sentimento de devoção à sua terra natal acrescenta Burns ajuda a explicar porque aquele gigantesco país diferente das outras enormes áreas administrativas da América Latina colonial não se fragmentou após a independência E Bradford Burns Nationalism in Brazil a historical survey Nova York Praeger 1968 p 28 A opinião comum dos brasileiros de hoje excluindo historiadores profissionais é refletida nas palavras de um crítico literário que escreveu Se existe um fenômeno verdadeiramente maravilhoso na história do Brasil este deve ser o sentimento nacional que se manifesta desde os primeiros dias coloniais e tem mantido a união das províncias estados Wil son Martins Brazilian Politics LusoBrazilian Review 12 Inverno de 1964 p 33 Rodrigues Oliveira Lima e Burns tomam como certa a unidade brasileira Eles precisam apenas estabelecer que alguns brasileiros nativos veem a si mesmos como diferentes e oprimidos por parte daqueles que nasceram em Portugal e pronto aí está a nação única e unida GRAHAM Richard Construindo a nação no Brasil do século XIX visões novas e antigas sobre classe cultura e estado In Diálogos Maringá v 5 2001 Disponível em httpwwwdhiuembrpublicacoesdhidialogosvolume01vol5mesa1html 24 SCHWARTZ Stuart B Gente da terra braziliense da nasção Pensando o Brasil a construção de um povo In MOTA Carlos Guilerme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 p123 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA103lpgPA103dqGentedaterrabr aziliensedanasC3A7C3A3osourceblots6yhETIYdcXsignA25vURQTJe3IBZ1GOCY gnU8t1IhlptBReivpjfSouxOoul8Abp4NBlsaXoibookresultctresultresnum1ved0CA oQvonepageqGente20da20terra20braziliense20da20nasC383C2A7C383 C2A3offalse 25 Ibidem Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA 103lpgPA103dqGentedaterrabraziliensedanasC3A7C3A3osourceblots6yh ETIYdcXsignA25vURQTJe3IBZ1GOCYgnU8t1IhlptBReivpjfSouxOoul8Abp4NBlsaXoi bookresultctresultresnum1ved0CAoQvonepageqGente20da20terra20brazilien se20da20nasC383C2A7C383C2A3offalse Horizontes Identitários 30 que o Brasil tinha um povo26 Todavia parece questionável atribuir a essa visão dos estratos inferiores uma perspectiva propriamente nacionalista ainda que dotada de alguns de seus indícios27 A interpretação de tais movimentos constituise sem dúvida em uma das maiores polêmicas da historiografia nacional Varnhagen por exemplo os condenou por motivos que serão discutidos posteriormente De qualquer forma para expor uma outra interpretação Jancsó e Pimenta não compartilham do entendimento de Schwartz pois afirmam que a Conjuração Baiana não pode ser considerada como um movimento de caráter nacional o que parece ser o entendimento mais acertado28 E sendo assim não há que se falar em uma identidade brasileira já existente pois os supostos movimentos precursores da independência no Brasil as conspirações tramadas em Minas Gerais e na Bahia tentaram libertar do domínio português somente aquelas áreas específicas e não visaram a independência de uma nação brasileira29 Portanto embora as considerações sobre os movimentos 26 Ibid p123124 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA103lpgPA103dqGentedaterrabr aziliensedanasC3A7C3A3osourceblots6yhETIYdcXsignA25vURQTJe3IBZ1GOCY gnU8t1IhlptBReivpjfSouxOoul8Abp4NBlsaXoibookresultctresultresnum1ved0CA oQvonepageqGente20da20terra20braziliense20da20nasC383C2A7C383 C2A3offalse Graham indica que Schwartz também expressa a visão de que os habitantes colo niais tinham uma identidade distinta de Portugal em The Formation of a Colonial Identity in Brazil In Colonial Identity in the Atlantic World 1500 1800 Nicholas Canny e Anthony Pagden org Princeton NJ Princeton University Press 1987p1550 GRAHAM Richard Construindo a nação no Brasil do século XIX visões novas e antigas sobre classe cultura e estado In Diálogos Maringá v 5 2001 Disponível em httpwwwdhiuembrpublicacoesdhidialogosvolume01vol5mesa1html 27 Claro que quem de fato fez a separação e deu início efetivo ao processo de constituição da nação foi a elite Mas isso está longe de ser uma especificidade do país Como diz Hobsbawm em muitos casos a nação política que originalmente formulou o vocabulário do que mais tarde tornouse o povonação compreendia uma pequena fração dos habitantes de um Estado a sua elite privilegiada ou a nobreza e a aristocracia HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p88 28 Os autores afirmam que é inútil procurar alguma ideologia nacionalista entre os sediciosos baianos de 1798 A nova ordem que propugnavam não buscava sua legitimidade em direitos históricos ou em ancestral trajetória comum típicos dos nacionalismos europeus emergentes no século XVIII O con fronto delineado em 1798 na Bahia colocava frente a frente a monarquia absoluta e uma comunidade que afirmava ter configuração específica o povo baiense instituidor potencial de um novo Estado que viria a ser nacional mediante um pacto de cidadãos o inimigo do povo não tinha uma configuração nacional a opressão não era percebida como a de uma nação estrangeira a privação de liberda de do povo baiense não advinha da sujeição à nação portuguesa mas ao trono JANCSÓ István e PIMENTA João Paulo G Peças de um mosaico ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 p147 grifos dos autores Dis ponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA127dqPeC 3A7asdeummosaico28ouapontamentosparaoestudodaemergC3AAnciadaiden tidadenacionalbrasileira29vonepageqPeC3A7as20de20um20mosaico20ou20 apontamentos20para20o20esffalse 29 Jancsó e Pimenta apontam através de jornais da época que nos termos dos pasquins o povo é baiense pelo que é inútil procurar o brasileiro Este é o povo que configura a comunidade imaginada a Salah H Khaled Jr 31 anticoloniais sejam relevantes parece haver um perigo inclusive apontado por Jancsó e Pimenta que é a tendência a enxergar uma continuidade entre o que costuma ser chamado de nativismo e a eventual Independência Partindo desse enfoque o regional é visto sob uma perspectiva nacional e portanto afirmase a existência de uma identidade brasileira ou consciência nacional nos séculos anteriores à Independência o que para Jancsó e Pimenta não passa de um mito ainda que enraizado na memória coletiva e na historiografia30 O processo certamente é muito mais complexo do que uma mera continuidade pode sugerir e de qualquer forma a divergência de interpretação entre autores de renome sinaliza a imensa problemática envolvida e inclusive indica que tais movimentos foram utilizados posteriormente de uma forma ou de outra com conotação nacional Se já existe tal percepção em relação aos movimentos anticoloniais evidentemente que a transferência do Estado português para o Brasil também seria vista por muitos como um indicativo que aponta para a afirmação da nacionalidade brasileira Afinal com a vinda da família real ao Brasil foi extinto o exclusivo metropolitano através da Abertura dos Portos Dessa forma praticamente chegava ao fim o Pacto Colonial pois o que configurava a própria ideia de Metrópole passou a estar presente no Brasil Esse detalhe permite uma percepção melhor do que representavam os próprios fundamentos do sistema Como a subordinação era ao monarca e não a Portugal não há nada de contraditório na medida pois uma vez que a sua pessoa se faz presente fisicamente no território o seu quinhão pode ser nação pensável opondose ou aliandose a outras nações conforme seus interesses JANCSÓ István e PIMENTA João Paulo G Peças de um mosaico ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 p144 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA127dqPeC3A7asdeumm osaico28ouapontamentosparaoestudodaemergC3AAnciadaidentidadenacionalbr asileira29vonepageqPeC3A7as20de20um20mosaico20ou20apontamentos20 para20o20esffalse Graham refere que ponto de vista semelhante pode ser encontrado em Kenneth R Maxwell A devassa da devassa a inconfidência mineira BrasilPortugal 17501808 3 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 1995 Luís Henrique Dias Tavares História da sedição intentada na Bahia em 1798 a conspiração dos alfaiates São Paulo Livraria Pioneira 1975 e István Jancsó Na Bahia contra o Império história do ensaio de sedição de 1798 São Paulo HUCITEC e Salvador EDUFBA 1995 GRAHAM Richard Construindo a nação no Brasil do século XIX visões novas e antigas sobre classe cultura e estado In Diálogos Maringá v 5 2001 Disponível em httpwwwdhiuembrpublicacoesdhidialogosvolu me01vol5mesa1html 30 JANCSÓ István e PIMENTA João Paulo G Op cit p133134 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA127dqPeC3A7asdeummosa ico28ouapontamentosparaoestudodaemergC3AAnciadaidentidadenacionalbras ileira29vonepageqPeC3A7as20de20um20mosaico20ou20apontamentos20 para20o20esffalse Horizontes Identitários 32 coletado diretamente Embora a separação política só tenha ocorrido em 1822 a principal característica da colonização o monopólio estava extinta31 Poderia ser e inclusive foi afirmado algumas vezes que a transferência do governo português para o Brasil representou a independência de fato senão de direito da colônia pois encerrou o monopólio comercial ultramarino elemento central da relação colonial A presença do Estado português no Brasil conferiu certa unidade administrativa ao país na medida em que passou a existir uma estrutura de poder organizado para controlar diretamente os pontos mais distantes da Colônia Quando chegou a hora de realizar a separação política em definitivo essa maquinaria de poder já estava posta e à disposição das elites motivo pelo qual se optou pela estratégia de romper o vínculo mas manter a Monarquia Mas será que isso equivale ao surgimento ou à libertação da nação brasileira A própria afirmativa de uma independência de fato a partir da Abertura dos Portos já carrega a pressuposição de que havia um BrasilNação que ansiava por essa liberdade o que não parece muito provável Embora realmente houvesse uma quantidade considerável de pessoas que se regozijavam com o término do controle exercido por Lisboa isso não implicava que necessariamente celebrassem uma autoridade centralizada no Rio de Janeiro e apreendessem esse momento como de afirmação nacional As consequências foram muito mais complexas do que esse raciocínio indica pois a instalação do Estado português no Brasil paradoxalmente reforçou os vestígios de identidade brasileira sob alguns aspectos e os negou sob outros De um lado em decorrência da presença do Estado português no Brasil foram encerradas formalmente as distinções entre portugueses nascidos de um e de outro lado do Atlântico borrando ainda mais a definição do que poderia representar ser brasileiro e também português Mas por outro lado a busca de favores diretamente através do governo que se encontrava instalado no Brasil levava a uma aportuguezação dos 31 D João VI também anulou o Alvará de 1785 de D Maria o qual proibia a fabricação de manufaturas na colônia Entretanto não pode escapar um detalhe a partir de 1810 com os Tratados de Comércio Navegação e Amizade instituíase um imposto alfandegário favorável à Inglaterra que era inclusive inferior ao que pagariam as próprias mercadorias portuguesas para entrar no país Dessa forma um novo ciclo de dominação econômica tinha início Assim sendo além do próprio entrave que represen tava a escravidão e a falta de tecnologia apropriada para uma industrialização as poucas metalúrgicas e manufaturas de tecidos foram incapazes de enfrentar a concorrência que os produtos ingleses repre sentavam a partir de tais tratados Uma incipiente modernização nacional viase assim rapidamente abortada pois se fazia evidente que o Brasil estava sendo atrelado a economia inglesa Por outro lado a criação do Banco do Brasil em 1808 também favorecia sob alguns aspectos uma ideia nacional embora seja uma mera suposição imaginar que sua existência pudesse ter esse efeito sobre os habi tantes do país Salah H Khaled Jr 33 brasileiros de elite Em um momento cujo horizonte identitário era de pragmatismo valorizavase a identidade e a descendência portuguesa De fato a materialização concreta do Estado no território da colônia representava ainda que simbolicamente maior unidade política o que em alguma medida poderia promover a coesão necessária à ideia de nação Entretanto com exceção da Abertura dos Portos as medidas tomadas por D João VI em pouco favoreciam um nacionalismo brasileiro como é o caso da criação da Imprensa Régia configurando o primeiro jornal impresso no país cujo caráter entretanto era de louvor a reis e princesas Uma série de instituições foram criadas por D João VI para dar ares europeus ao país32 Todavia havia um limite claro para as ações modernizadoras do monarca33 Apesar de tais restrições foi o término do exclusivo metropolitano que rompeu os laços que prendiam materialmente o país a Portugal possibilitando o florescimento de certa identidade e interesses comuns à boa parte das elites Essa condição se acentuou com a mudança de status da antiga colônia em 1815 que permitiu pela primeira vez em um sentido político começar a pensar na possibilidade de uma nação brasileira34 Afinal pode ser afirmado com certa margem de segurança que o 32 Como a Biblioteca real o Museu Nacional o Jardim Botânico a Academia Militar e a Escola de Medicina 33 Ao mesmo tempo que adotar em toda a extensão os princípios do liberalismo econômico significaria destruir as próprias bases sobre as quais se apoiava a Coroa manter o sistema intacto era impossível sob as novas condições e em alguns aspectos até inviável Daí as contradições da política econômica joanina um misto de liberalismo e mercantilismo no qual de um lado D João agradava os colonos com medidas que eles gostariam de ver ampliadas e de outro se via diante o desejo dos metropolitanos de restringilas Nesse sentido ele também tomou algumas medidas em favor dos portugueses como bai xar as tarifas alfandegárias para os vinhos reduzir a tarifa alfandegária para portugueses a 15 com o Alvará de 1818 bem como o monopólio de comércio com o Oriente VIOTTI Emília Da monarquia a república momentos decisivos 6ª ed São Paulo Brasiliense 1994 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidRaxGQlNxIo4CpgPA1dqVIOTTIEmC3ADliaDamo narquiaarepC3BAblicamomentosdecisivosvonepageqffalse Além disso Pernambuco exportador de açúcar e algodão continuava submetido ao monopólio dos comerciantes portugueses o que teve peso na revolta de 1817 34 Jancsó e Pimenta afirmam que O novo reino transformara ainda que apenas no plano simbólico um conglomerado de capitanias atadas pela subordinação ao poder de um mesmo príncipe numa entidade política dotada de precisa territorialidade e de um centro de gravidade que além de sêlo do novo reino erao também de todo o império Portanto mesmo que no tocante à trajetória das identidades políticas no universo americano as variantes anteriormente apontadas tenham se mantido seus significados tornaramse passíveis de alteração substantiva A partir de então a anterior identidade lusoamericana poderia tornarse brasileira e como tal se autonomizar somandose ao elenco de identidades políticas que já então coexistiam a portuguesa e as outras ancoradas em trajetórias instauradas pela colo nização cada qual expressando uma possibilidade de projeto de nação incompatível no limite com aquelas que as outras encerravam A partir daí a nação brasileira tornavase pensável se referida ao Estado o Reino do Brasil que definia seus contornos como uma comunidade politicamente imaginá vel retornando novamente aos termos de Benedict Anderson JANCSÓ István e PIMENTA João Paulo G Peças de um mosaico ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional bra sileira In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Horizontes Identitários 34 nacionalismo depende de um Estado Nacional para ser concretizado o que certamente era o caso do Brasil35 Ainda que a mudança de status da antiga colônia não implicasse diretamente na existência de um Estado Nacional em sentido estrito a relativa independência do país deixava de ter caráter transitório Não era apenas uma condição temporária mas sim uma realidade concreta o Brasil não estava mais subordinado politicamente a Portugal e isso não tinha relação com a presença do monarca no país mas sim com a própria condição de reino irmão assumida Todavia apesar de tais mudanças a configuração identitária permanecia sendo regional e não nacional Quando nacional o vínculo era Portugal Em 1815 um observador francês Horace Say em um sentido político concluiu que o Brasil era simplesmente a designação genérica das possessões portuguesas na América do Sul36 Um nacionalismo brasileiro praticamente inexistia no início do século XIX Se existia caracterizavase muito mais a partir do movimento pela independência por um sentimento antilusitano do que brasileiro e mesmo assim ambíguo Tal ambiguidade entre os dois sentimentos esteve presente no seio do movimento revolucionário pernambucano de 1817 reprimido em poucos meses por tropas leais ao governo Mesmo buscando a independência em um âmbito separatista e marcado por uma identidade regional manifestava preocupação com os riscos de abrir mão da identidade portuguesa37 Afinal isso significaria igualdade entre a elite branca e os Formação histórias São Paulo Senac 1999 p154155 grifos dos autores Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA127dqPeC3A7asdeumm osaico28ouapontamentosparaoestudodaemergC3AAnciadaidentidadenacionalbr asileira29vonepageqPeC3A7as20de20um20mosaico20ou20apontamentos20 para20o20esffalse 35 O que certamente não é uma característica exclusivamente sua Como afirma Hobsbawm Os EUA e a Austrália são exemplos evidentes de Estadosnações nos quais todas as características nacionais específicas e critérios de existência de nação foram estabelecidos desde o final do século XVIII e de fato poderiam não ter existido antes da fundação de seus respectivos Estados e países Todavia não precisamos lembrar que o mero estabelecimento de um Estado não é suficiente em si mesmo para criar uma nação HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e reali dade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p93 36 Holanda Sérgio Buarque de org História geral da civilização brasileira São Paulo Difusão Eu ropéia do Livro 1962 72 v3p16 APUD GRAHAM Richard Construindo a nação no Brasil do século XIX visões novas e antigas sobre classe cultura e Estado In Diálogos Maringá v 5 2001 Disponível em ttpwwwdhiuembrpublicacoesdhidialogosvolume01vol5mesa1html 37 Graham indica que a perspectiva regional do movimento é evidente em Carlos Guilherme Mota Nordeste 1817 estruturas e argumentos Estudos N 8 São Paulo Perspectiva 1972 e Glacyra La zzari Leite Pernambuco 1817 estrutura e comportamentos sociais Estudos e Pesquisas 52 Recife Fundação Joaquim Nabuco e Editora Massangana 1988 Um outro enfoque que afirma que o movi mento não era separatista mas buscava a independência republicana para todo o Brasil unido pode ser encontrado no poeta pernambucano Gonçalo Barros Carvalho e Mello Mourão em A revolução de Salah H Khaled Jr 35 homens negros e pardos que compunham a maioria da população do país O sentimento de identidade brasileira no período se torna ainda mais complexo de ser avaliado pois Kenneth Maxwell afirma que em virtude do Estado português estar presente no Brasil Portugal declarou sua independência do Brasil na Revolução do Porto fazendo queixas comuns às das declarações de independência coloniais no seu manifesto38 A ambiguidade do movimento era evidente poderia ser considerado liberal de um lado por buscar o fim do absolutismo português mas por outro lado era conservador uma vez que pretendia recolonizar o Brasil39 De certa forma a vinda da família real e a posterior extinção dos privilégios de alémmar pareciam ter gerado uma espécie de nacionalismo português Portanto a Revolução do Porto 1820 tornou ainda mais complexo o quadro identitário do momento Com a convocação da Assembleia Constituinte estava sendo derrubado o absolutismo pois a partir daí D João VI teria que se submeter à constituição elaborada pelas Cortes portuguesas o parlamento Quando foi exigido o retorno do rei a Portugal as províncias do Norte do Brasil aprovaram enquanto as do Sul protestaram insistindo para que ele ficasse Várias províncias inclusive passaram a vincular a suas lealdades ao Estado reformado e não mais ao rei40 D João acabou retornando e seu filho D Pedro permaneceu no Brasil como príncipe regente O processo de independência e rompimento se iniciava o que poria em conflito por definitivo os interesses portugueses e brasileiros 1817 e a história do Brasil um estudo diplomático Villa Rica Ibidem Disponível em httpwwwdhiuembrpublicacoesdhidialogosvolume01vol5mesa1html 38 Como afirma Maxwell o Manifesto da Nação Portuguesa aos soberanos e povos da Europa pro mulgado pelos rebeldes do Porto em 1820 soava como e continha muitas das queixas comumente encontradas nas declarações de independência das colônias Maxwell afirma que em 1820 Portugal declarou sua independência do Brasil e em 1822 o Brasil declarou sua independência de Por tugal MAXWELL Kenneth Por que o Brasil foi diferente O contexto da independência In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Formação his tórias São Paulo Senac 1999 p187188 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombr booksidfJsptN0PWYCpgPA177dqPorqueoBrasilfoidiferente3FOcontextodaind ependC3AAnciavonepageqPor20que20o20Brasil20foi20diferente3F20O20 contexto20da20independC3AAnciaffalse 39 Nesse sentido além da exigência do retorno do rei começaram a ser desmontados os órgãos da administração que D João VI havia trazido para o Brasil Foi decretado que as províncias teriam um governador de armas independente das juntas governativas O contingente de tropas portuguesas foi reforçado no Rio de Janeiro e Pernambuco e os impostos de importação dos produtos ingleses foram elevados para 30 40 Militares se revoltaram em Belém e Salvador formando governos provisórios as juntas governativas Dessa forma manifestavam que somente obedeceriam às cortes de Lisboa Os comerciantes e milita res portugueses imaginavam que a revolução reestabeleceria o monopólio colonial Por outro lado os fazendeiros e os comerciantes brasileiros assim como os altos funcionários da Coroa com interesses locais já estabelecidos esperavam que a Revolução acabaria de vez com os monopólios restantes e permitiria uma representatividade brasileira nas Cortes para defender seus interesses Entretanto dos 70 a 75 deputados previstos em universo de 200 apenas 49 acabaram indo para Lisboa Horizontes Identitários 36 trazendo consequências diretas para a questão da nação brasileira 111 O Brasil independente e o BrasilNação Tornase particularmente difícil definir a questão identitária em um quadro tão rico e contraditório como o que se formou durante o confronto direto estabelecido entre os interesses do Brasil e de Portugal Para que se tenha uma ideia da complexidade da questão a ida de representantes da excolônia a Portugal para participar do processo de elaboração de uma constituição liberal levou à identificação dos mesmos como brasileiros o que até então era inédito Todavia essa vinculação não era necessariamente ao Brasil mas sim apenas indicava que tinham nascido no alémmar41 No entanto à medida que os interesses conjuntos dos deputados das mais diversas províncias se viam confrontados pelas Cortes começavam a aproximarse uns dos outros pois tinham propósitos em comum dentre os quais a continuidade do sistema escravista era o mais evidente Agora sim o outro entendido como inimigo comum começava mesmo que indiretamente a promover coesão dentro da fragmentação que era típica do Brasil Esse princípio de espírito nacional pode ser claramente percebido na frase de um deputado o Brasil é um reino bem como Portugal ele é indivisível e desgraçados daqueles que atentarem contra a sua categoria e grandeza desmembrando suas províncias para aniquilálo42 Entretanto o fantasma da condição colonial e a descendência portuguesa tornavam esse quadro confuso De fato o sentimento de identidade brasileira ainda que embrionário começava a se afirmar em oposição aquele que surgia como outro o português No entanto a complexidade da questão não para por aí Dois deputados das províncias brasileiras em meio à elaboração da Constituição portuguesa consideravam por exemplo o Brasil como seu país mas afirmavam que 41 JANCSÓ István e PIMENTA João Paulo G Peças de um mosaico ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incom pleta a experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 p167 Dis ponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA127dqPeC 3A7asdeummosaico28ouapontamentosparaoestudodaemergC3AAnciadaiden tidadenacionalbrasileira29vonepageqPeC3A7as20de20um20mosaico20ou20 apontamentos20para20o20esffalse 42 Deputado Lino Coutinho sessão de 3 de jul de 1822 Ibid p167 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA127dqPeC3A7asdeummosa ico28ouapontamentosparaoestudodaemergC3AAnciadaidentidadenacionalbras ileira29vonepageqPeC3A7as20de20um20mosaico20ou20apontamentos20 para20o20esffalse Salah H Khaled Jr 37 a nação a que pertenciam era a portuguesa43 Uma carta publicada no Revérbero Constitucional Fluminense em 1822 em pleno processo de independência afirmava que a convocação de uma Constituinte no Brasil era a única forma de salvar a Nação em ambos os hemisférios e se referia aos que aclamavam o imperador na América como portugueses do Brasil44 Ou seja tratavase de uma manifestação de nacionalismo português em pleno Brasil Até as vésperas da proclamação da Independência as elites brasileiras ainda pensavam em manter uma Monarquia dual com o rei de Portugal sendo rei do Brasil e com o país sendo governado por um regente situação na qual seria mantida a autonomia e o livre comércio Entretanto uma vez que os interesses se mostraram irreconciliáveis esta solução acabou inviabilizada A insistência na recolonização com a busca de extinção da liberdade de comércio e autonomia administrativa conquistadas no período joanino estabelecia uma situação política complexa que por sua vez exigia posicionamento por parte dos habitantes da antiga colônia45 É inegável que havia de fato uma vontade de persistir como comunidade por parte das elites que comandaram o processo de independência Mas será que essa vontade pode ser entendida como pretensão a uma comunidade nacional Na realidade sequer havia essa consciência de pertencimento Havia uma vontade de persistir em um status quo alcançado a partir da Abertura dos Portos mas isso não equivale a uma consciência nacional e a uma vontade de pertencer à nação embora possa ser percebida dessa forma Parece evidente que as elites brasileiras foram empurradas para a Independência pela força das circunstâncias sendo muito questionável a ideia de que já havia uma nação imanente clamando pela realização de seu espírito nacional como país independente Ao que tudo indica o Brasil era tido em 1822 às vésperas da independência como um conjunto disperso um agregado de Províncias que são tantos outros reinos que não têm ligação uns com os outros 43 Ibid p130 44 Ibid p131 45 Em síntese os vários interesses se configuravam através de grupos políticos que apesar do nome não tinham a estrutura de partidos O Partido Português avesso à independência como o nome in dica reunia comerciantes interessados no retorno do Pacto Colonial e também militares portugueses e alguns funcionários da Coroa O Partido Brasileiro que incluía alguns portugueses reunia latifundi ários altos funcionários da burocracia estatal e comerciantes ligados ao comércio inglês ou francês bem como traficantes de escravos Desejava o fim das restrições coloniais mas certamente temia os excessos democráticos do liberalismo Seu líder era José Bonifácio de Andrada e Silva Finalmente os chamados radicais eram compostos por um grupo com influência nos setores médios urbanos pe quenos comerciantes advogados padres professores farmacêuticos funcionários públicos de baixo escalão enfim Para esse grupo o modelo era a Independência dos EUA ou a Revolução Francesa Horizontes Identitários 38 não conhecem necessidades gerais cada uma governandose por leis particulares de municipalidade46 O que havia de coesão era em torno de um Estado estabelecido e uma vez que o clima políticomoral se mostrou favorável a partir do conflito de interesses com os portugueses de alémmar se colocou uma relação em que as elites em essência o Partido Brasileiro se dirigiram ao Estado personificado na figura do príncipe regente vide o dia do Fico em janeiro de 1822 para através dele então encaminhar o país para a independência Logo em seguida foi nomeado um ministério que tinha a frente José Bonifácio e em fevereiro D Pedro convocava o Conselho de Procuradores Gerais das Províncias do Brasil Em essência a ideia era preparar a união de todas as províncias e evitar a fragmentação política A partir do cumprase os decretos das Cortes portuguesas só valeriam com a autorização do príncipe O caminho começava a tornarse irreversível como a convocação para uma Assembleia Constituinte demonstra47 Sendo assim a exigência do retorno de D Pedro a Portugal e a negativa melodramática independência ou morte formalizou o que já era evidente o Brasil era um país independente Com a Independência o Brasil havia conquistado sua autonomia política através de uma mudança conservadora que mantinha o vínculo com Portugal através de um governante português e da dinastia de Bragança48 Dentre os vários projetos a opção foi por aquele que garantiria a maior estabilidade e manutenção da ordem o que garantiu a exclusão dos radicais e do próprio povo Dessa forma o nacionalismo utilitário das elites se articulou através do Estado para conformar uma relação eminentemente pragmática na qual a nação era uma preocupação subsequente Portanto será que pode ser afirmado que o nascimento do Brasil independente coincide com o da nação 46 Palavras de Lino Coutinho na sessão de 6 de mar 1822 Extraído de JANCSÓ István e PIMENTA João Paulo G Peças de um mosaico ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 p167 Disponível parcialmente em http booksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA127dqPeC3A7asdeummosaico 28ouapontamentosparaoestudodaemergC3AAnciadaidentidadenacionalbrasileira 29vonepageqPeC3A7as20de20um20mosaico20ou20apontamentos20para20 o20esffalse 47 Onde a perspectiva do Partido Brasileiro preponderou pois foi estabelecido o voto indireto e censi tário 48 Dessa forma por mais estranha que pareça a afirmativa o Brasil não tinha um Estado Nacional bra sileiro mas sim um Estado português que ainda persistia após a independência O contexto histórico do período demonstra esse ponto de vista com certa segurança Salah H Khaled Jr 39 brasileira49 Embora a pergunta pareça simples sua resposta está longe de sêlo Com a proclamação da Independência os jornais afirmavam que o Brasil constituíase em uma nação separada de Portugal apesar de vários brasileiros ainda vincularem suas lealdades à nação portuguesa Percebese claramente que a questão identitária longe de estar assentada era multifacetada marcada por vários horizontes identitários50 Dentre os vários projetos a opção política foi por aquele que garantiria a maior estabilidade e manutenção da ordem ou seja a Monarquia51 O preço a pagar por essa manutenção era a continuidade a percepção de que no Brasil havia uma sociedade afinal portuguesa Um preço alto demais a pagar para alguns mas até mesmo desejado por outros pois implicava na continuidade de uma hierarquia excludente no âmbito interno e garantia um limite claro para o potencial revolucionário embutido na desvinculação com Portugal52 Dentro desse contexto o liberalismo se restringia a um desejo de acesso a mercados à proteção da propriedade e a garantia de que as dívidas seriam pagas Essa opção resultou em uma situação contraditória 49 No que se refere a esse momento de transição política Jancsó e Pimenta argumentam que a even tual relação de simultaneidade entre a emergência desse Estado e a nação em que ele foi instituído é uma das questões mais controversas da nossa historiografia e que a equação entre ambas as partes do problema certamente não é tão direta quanto pode parecer JANCSÓ István e PIMENTA João Pau lo G Peças de um mosaico ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional bra sileira In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 p133134 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA127dqPeC3A7asdeummosa ico28ouapontamentosparaoestudodaemergC3AAnciadaidentidadenacionalbras ileira29vonepageqPeC3A7as20de20um20mosaico20ou20apontamentos20 para20o20esffalse 50 Como afirmam Jancsó e Pimenta a instauração do Estado brasileiro se dá em meio à coexistência no interior do que fora anteriormente a América portuguesa de múltiplas identidades políticas cada qual expressado trajetórias coletivas que reconhecendose particulares balizam alternativas de seu futuro Ibid p132 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWY CpgPA127dqPeC3A7asdeummosaico28ouapontamentosparaoestudodaem ergC3AAnciadaidentidadenacionalbrasileira29vonepageqPeC3A7as20de20 um20mosaico20ou20apontamentos20para20o20esffalse 51 Para Maxwell O Brasil havia sido independente para todas as intenções e propósitos desde 1808 desde 16 de dezembro de 1815 o Brasil fazia parte de um reino unido em pé de igualdade com Portugal O que estava em jogo no início da década de 1820 era mais uma questão de monarquia estabilidade continuidade e integridade territorial do que de revolução colonial MAXWELL Kenneth Por que o Bra sil foi diferente O contexto da independência In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999p186 Disponí vel parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA177dqPorque oBrasilfoidiferente3FOcontextodaindependC3AAnciavonepageqPor20que20 o20Brasil20foi20diferente3F20O20contexto20da20independC3AAnciaffalse 52 Nesse sentido a ameaça a ser evitada era o que representavam os perigosos ideais revolucionários dos jacobinos franceses A Revolução Francesa havia assumido na memória coletiva das elites confor mação de perigo e exemplo negativo do potencial revolucionário Horizontes Identitários 40 em que o rompimento político se via acompanhado de uma continuidade no campo identitário Portanto a questão da contradição entre as identidades brasileira e lusa não foi resolvida após a proclamação da Independência A dimensão de significação identitária ainda se encontrava vinculada à ancestralidade portuguesa Havia um sentimento de nacionalidade mas incipiente mal resolvido Na verdade em virtude das alforrias e do crescente número de escravos livres muitos membros das elites se apegavam cada vez mais à sua identidade portuguesa53 As identidades regionais superavam qualquer identificação nacional com o Brasil A mera existência de um Estado nacional e de fronteiras definidas ainda que compondo dois dos critérios objetivos mais básicos do que consiste uma nação era insuficiente Para Carlos Guilherme Mota sem unidade constitucional ou cultural consolidada sem ter resolvido ou sequer equacionado alguns de seus problemas básicos posto que não era uma nação o Brasil emerge em 18221823 como entidade políticano cenário internacional54 Ainda que a Independência definitivamente não se misture com o nascimento da nação é inegável que foi um momento marcante de mudança da relação das elites com o território do país com o Brasil Passou a imprimir de forma mais contundente a necessidade de um conjunto de uma homogeneidade anseios que podiam ser atendidos plenamente pela criação de uma identidade como forma de garantir a integridade do território brasileiro o bem maior a ser buscado No entanto essa integração não era tão simples de ser obtida quanto parecia Tendências estabelecidas 53 Como consideram Jancsó e Pimenta Não era simples para as elites lusoamericanas despiremse de algo tão profundamente arraigado como a identidade portuguesa expressão sintética de sua dife rença e superioridade diante dos muitos para quem essa condição estava fora de alcance Saberemse portugueses constituía o cerne da memória que esclarecia a natureza das relações que mantinham com o restante do corpo social nas suas pátrias particulares aquela massa de gente de outras ori gens com a qual sobre a qual caberia organizar o novo corpo político JANCSÓ István e PIMENTA João Paulo G Peças de um mosaico ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 p173 Disponível parcialmente em http booksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA127dqPeC3A7asdeummosaico 28ouapontamentosparaoestudodaemergC3AAnciadaidentidadenacionalbrasileira 29vonepageqPeC3A7as20de20um20mosaico20ou20apontamentos20para20 o20esffalse 54 MOTA Carlos Guilherme Idéias de Brasil formação e problemas In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Se nac 1999 p199 Grifo nosso Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJspt N0PWYCpgPA207IA6dqIdC3A9iasdeBrasilformaC3A7C3A3oeproblemasv onepageqffalse Salah H Khaled Jr 41 por séculos conspiravam contra tais intenções Como visto anteriormente a metrópole sempre tomou todos os cuidados necessários para impedir a articulação de uma unidade colonial e o poder do governador geral e dos vicereis era geralmente limitado A própria elite colonial esteve durante muito tempo ligada a Europa porque era nascida lá ou porque estava vinculada por experiência ou interesse a Portugal A colônia cresceu e se formou sob esse espírito desagregador uma tendência que irrompeu com força enorme na primeira metade do século XIX Revertêla não era uma tarefa nada fácil Dessa forma o Brasil esteve longe de conhecer a estabilidade após a separação política55 Quando D Pedro I declarou a Independência do Brasil em 1822 a Bahia e a maior parte das províncias do Norte foram contra e permaneceram leais a Portugal e somente aderiram após empreendimentos militares Portanto como sustentar que havia uma vontade de persistir como nação se a convivência e a própria união política se deu ao menos parcialmente através do uso da força A resposta é simples não é possível sustentar essa posição satisfatoriamente Na verdade muito pouco unia o Brasil um novo país que parecia caminhar para a desagregação como havia sido o caso da antiga América espanhola Portanto a sobrevivência implicava sobretudo na eliminação da diferença na supressão da diversidade Nesse sentido José Bonifácio de Andrada e Silva dá uma boa dimensão da tarefa que devia ser realizada ao afirmar que é da maior necessidade ir acabando tanta heterogeneidade física e civil cuidemos pois desde já em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários e em amalgamar tantos metais diversos para que saia um Todo homogêneo e compacto que não se esfarele ao pequeno toque de qualquer convulsão política56 Reservas à parte é impressionante a visão demonstrada por Bonifácio no ideal exposto acima57 Todavia isso levanta questões sobre quem deveria amalgamar o 55 Como Odalia afirma a liberdade política traz uma série de problemas relacionados com a emer gência do país independente ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997p30 Disponível em http wwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 56 JANCSÓ István e PIMENTA João Paulo G Peças de um mosaico ou apontamentos para o es tudo da emergência da identidade nacional brasileira In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta A experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999p173 Grifos dos autores Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWY CpgPA127dqPeC3A7asdeummosaico28ouapontamentosparaoestudodaem ergC3AAnciadaidentidadenacionalbrasileira29vonepageqPeC3A7as20de20 um20mosaico20ou20apontamentos20para20o20esffalse 57 Kenneth Maxwell refere que Bonifácio também advertiu seus contemporâneos logo no início da in Horizontes Identitários 42 que e em que proporção As propostas de Bonifácio nesse sentido eram por demais ousadas e logo não foram executadas pois não condiziam com os reais objetivos dos protagonistas da separação política do país58 Como referem Jancsó e Pimenta não parece irrelevante destacar que a identidade nacional brasileira emergiu para expressar a adesão a uma nação que deliberadamente rejeitava identificarse com todo o corpo social do país e dotouse para tanto de um Estado para manter sob controle o inimigo interno59 Embora Bonifácio tivesse feito uma série de alertas de fato o objetivo imediato e primordial era a integração a manutenção do território nacional60 O sentido da identidade brasileira a ser criada era portanto justamente o de unir as elites nacionais em torno de uma mesma identidade que garantisse não somente a integridade do território nacional mas também a manutenção de uma estrutura social excludente Tratavase de um processo de homogeneização que deveria ser implantado o mais rápido possível para construir o EstadoNação de forma efetiva e superar as inúmeras dificuldades já relacionadas dependência nacional sobre os efeitos negativos de longo prazo que o fracasso em lidar com a questão da escravidão e da reforma agrária traria para o futuro do Brasil MAXWELL Kenneth Por que o Brasil foi diferente O contexto da independência In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999p185 Disponí vel parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA177dqPorque oBrasilfoidiferente3FOcontextodaindependC3AAnciavonepageqPor20que20 o20Brasil20foi20diferente3F20O20contexto20da20independC3AAnciaffalse 58 Richard Graham indica que José Honório Rodrigues chega a sustentar a tese de que a Independên cia deveria ter sido um processo revolucionário que daria início à construção da nacionalidade brasilei ra em bases popular e liberal O ato de demissão de Bonifácio por D Pedro teria abortado o processo revolucionário instaurando um movimento contrarrevolucionário mais contundente por meio do qual os interesses oligárquicos sobrepuseramse às aspirações populares RODRIGUES José Honório Independência revolução e contrarevolução Rio de Janeiro Francisco Alves 1975 APUD GRAHAM Richard Construindo a nação no Brasil do século XIX visões novas e antigas sobre classe cultura e estado In Diálogos Maringá v 5 2001 Disponível em httpwwwdhiuembrpublicacoesdhidialo gosvolume01vol5mesa1html 59 JANCSÓ István e PIMENTA Op cit p174 Curiosamente embora a frase tenha um certo sentido ambíguo Jancsó e Pimenta parecem ter se confundido nesse ponto pois a afirmação implica na exis tência de uma nação antes do Estado que é exatamente a posição oposta a que os autores defendem Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA127dqP eC3A7asdeummosaico28ouapontamentosparaoestudodaemergC3AAnciada identidadenacionalbrasileira29vonepageqPeC3A7as20de20um20mosaico20 ou20apontamentos20para20o20esffalse 60 Nesse sentido José Murilo de Carvalho aponta que a busca pela integração tratavase antes de tudo de garantir a sobrevivência da unidade política do país de organizar um governo que mantivesse a união das províncias e a ordem social O autor aponta que embora José Bonifácio já tivesse alertado para o problema de formação da nação mencionando particularmente as questões da escravidão e da diversidade racial tudo isso ficou em segundo plano pois a tarefa mais urgente a ser cumprida era a da sobrevivência pura e simples do país CARVALHO José Murilo de A formação das almas São Paulo Companhia das Letras 1990 p23 Salah H Khaled Jr 43 Entretanto a autoridade central encontrava problemas em se impor e as identidades regionais permaneciam problemáticas Pernambuco novamente se revoltou em 1824 e ao obter a adesão do Ceará Rio Grande do Norte e Paraíba formouse a Confederação do Equador que foi reprimida através do uso da força61 A autoridade continuava a buscar sua afirmação através da coerção e a fragmentação parecia iminente pois as províncias recusavam a sujeição ao poder central62 Um dos motivos para a manutenção da Monarquia no processo de independência foi devido ao fato de garantir a continuidade da estrutura social e afastar os perigosos ideais revolucionários franceses bem como reduzir os possíveis questionamentos sobre a legitimidade da nova ordem63 Mesmo assim o regime passou por uma fase tumultuada durante o Primeiro Reinado em virtude dos choques entre os interesses dos grupos mais poderosos do país e o autoritarismo de D Pedro eventualmente levando à sua abdicação64 Em suma não havia a menor condição da população brasileira de 61 A intenção do movimento era clara uma vez que o Nordeste permanecia subordinado ao Sudeste e ao poder central um novo país deveria ser criado independente do Brasil e formado pelas províncias nordestinas com a adoção provisória da Constituição da Colômbia A repressão por parte do governo central foi extremamente severa com centenas de prisões espancamentos enforcamentos e fuzila mentos como foi o caso do Frei Caneca Os horizontes identitários que não se conformavam à nova ordem deveriam ser subordinados à força Essa situação evidencia o caráter do período do Primeiro Reinado Em essência tratouse de uma história de violência por parte das forças conservadoras que prenderam baniram e condenaram a morte os opositores configurando um período marcado por devassas por delito de opinião censura à imprensa suspensão de garantias individuais e instalação de comissões militares Richard Graham refere que O frei Caneca líder intelectual do movimento disse que o Brasil havia se tornado independente não apenas como um todo mas em cada uma de suas partes ou províncias e estas independentes uma das outras Uma província não tem o direito de forçar qualquer outra província a fazer nada Roderick J Barman Brazil The Forging of a Nation 17981852 Stanford Stanford University Press 1988 p121 APUD GRAHAM Richard Construindo a nação no Brasil do século XIX visões novas e antigas sobre classe cultura e estado In Diá logos Maringá v 5 2001 Disponível em httpwwwdhiuembrpublicacoesdhidialogosvolume01 vol5mesa1html 62 O embaixador britânico Henry Chamberlain em carta para George Canning Rio de Janeiro 22 de abril de 1826 acreditava numa provável fragmentação do Brasil uma vez que grande parte da popu lação daquelas províncias distantes do Pará e do Maranhão e até mesmo de Pernambuco e da Bahia estão contra o governo imperial e inclinadas a separarse dos estados do sul Ibidem Disponível em httpwwwdhiuembrpublicacoesdhidialogosvolume01vol5mesa1html 63 Para Odalia a independência nada mais é do que um pacto e um consenso em que se achavam envolvidos tão somente os senhores de terra e de escravos e que visava preservar o que lhes inte ressava basicamente a saber um modo de produção escravista e a propriedade da terra Assim os regionalismos se acomodam momentaneamente e os grupos sociais limitados e pouco numerosos que manifestavam idéias revolucionárias puderam ser facilmente dominados a interpretação mais próxima dos fatos é a de ver o movimento da independência como um movimento não traumático cuja característica maior é o de ser conduzido por uma cúpula dirigente que em nenhum momento abriu mão de suas próprias prerrogativas esvaziandose assim as possibilidades de uma independência armada e revolucionária ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historio gráfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p2728 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 64 O contínuo desprestígio de D Pedro com as elites em virtude de seu autoritarismo vide a Cons Horizontes Identitários 44 então imaginarse como uma comunidade nacional mesmo em um âmbito reduzido restrito às elites O máximo que ocorria era uma espécie de deslocamento para D Pedro e seus aliados do antagonismo em relação aos portugueses configurado durante o processo de independência O que representou afinal a independência do Brasil por si só Maxwell aponta que a emancipação política do Brasil é portanto um longo e cumulativo processo que manteve sua continuidade ao longo do caminho 1808 1816 sic 1822 e até 1831 são todos momentos importantes na afirmação dessa gradual separação e na definição da nacionalidade65 Para Maxwell do ponto de vista administrativo o país não foi nacionalizado até o fim do curto reinado de DPedro em 183166 Portanto é a partir desse momento que pode começar a ser cogitada a ideia do país ter de fato um Estado Nacional É importante rever a cronologia dos acontecimentos em um primeiro momento a colônia passou a ter o Estado materializado em seu território em um segundo momento deixou de ser colônia e assumiu o Estado como seu em um terceiro momento alcançou a independência política ainda que o poder efetivamente só passasse às mãos das elites com a abdicação configurando finalmente um Estado nacional ainda que a monarquia e o príncipe herdeiro demonstrassem uma continuidade com Portugal Nenhum desses momentos se confunde com o surgimento da nação que ainda tituição outorgada e uma série de equívocos levaram a sua abdicação A invasão e anexação da província Cisplatina ainda durante a presença de D João VI no Brasil resultou em desastre pois a partir de 1825 teve início uma luta pela libertação do jugo brasileiro que envolveu a Argentina e aca bou estabelecendo o Uruguai como país independente em 1828 com apoio da Inglaterra Em 1829 os sucessivos empréstimos junto a banqueiros ingleses em parte para custear a guerra fracassada levaram o Banco do Brasil à falência O autoritarismo de D Pedro bem como envolvimento com a sucessão lusa desagradava profundamente às mesmas elites que ainda presas a uma identidade por tuguesa entretanto não cogitavam a hipótese de sofrerem o revés econômico que uma reintegração política poderia acarretar Isso demonstra claramente o quanto havia de identidade nacional no país seja ela portuguesa ou brasileira D Pedro havia se isolado de tal forma que os próprios latifundiários que o apoiaram no passado deixavam certo espaço para os radicais agir e as massas urbanas foram incluídas no processo de confrontação com o imperador vide a noite das garrafadas lhe restando pouco espaço de manobra Acuado frente à multidão às elites aos políticos e até mesmo face às tro pas que outrora lhe foram leais não restou outra alternativa ao imperador que não fosse a abdicação 65 MAXWELL Kenneth Por que o Brasil foi diferente O contexto da independência In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 p193 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0 PWYCpgPA177dqPorqueoBrasilfoidiferente3FOcontextodaindependC3AAnci avonepageqPor20que20o20Brasil20foi20diferente3F20O20contexto20da20 independC3AAnciaffalse 66 Ibid p194 Salah H Khaled Jr 45 precisava ser inventada Quais seriam as consequências do afastamento de D Pedro Em primeiro lugar com o término do Primeiro Reinado as elites locais obtiveram pela primeira vez o controle político do Brasil A perspectiva era de estabilidade e solidificação do país independente No entanto os vários regentes encontraram problemas enormes em afirmar a legitimidade de suas administrações e o país se viu sacudido por uma série de revoltas Nesse sentido percebese que a Monarquia ainda que sui generis no contexto das Américas era um talvez o único ou no mínimo o mais forte fator de coesão que havia no Brasil Se na Monarquia já havia tensão e revolta na Regência esse clima político foi elevado ao limite extremo A Monarquia oferecia um elemento de estabilidade o que foi demonstrado pelo caos ocorrido na ausência de uma identificação clara da figura do governante Daí a necessidade de retomar esse elemento com a maioridade A Regência foi a fase mais tumultuada da história do país na qual face a um quadro de desagregação iminente a ordem somente foi imposta através da força pois nada parecia unir um todo tão heterogêneo como o Brasil Desse modo se fazia imprescindível para o projeto conservador em curso no final da Regência dar cabo de tanta diversidade e fazer com que os habitantes do país assumissem uma identidade um sentido de todo justamente para evitar a desintegração do território brasileiro A opção pelo retorno em termos práticos da Monarquia é um reflexo dessa preocupação em manter a união territorial Tal preocupação não era em vão pois como é observado por inúmeros teóricos do nacionalismo de acordo com os critérios do século XIX a extensão do território era um dos definidores da legitimidade de uma nação independente Daí a obsessão em manter a antiga América portuguesa unida A construção da nação era necessária quase que uma obrigatoriedade histórica Sua invenção estava ligada a necessidades claras e identificáveis das elites do centro do país e do projeto que defendiam Para Wehling a contextualização do período referente a 18381854 tem como eixo a questão da unidade nacional conforme solucionada pela política conservadora desencadeada a partir da política do regresso ao final das Regências67 Em sentido semelhante Odalia afirma que 67 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p32 Horizontes Identitários 46 a sobrevivência do país independente se confunde pois com a capacidade política de suas classes dirigentes realizarem com sucesso a missão política fundamental do século XIX estruturar e tornar efetivo um projeto de nação68 Em 1838 antes mesmo do término da Regência um passo importante para a realização desse objetivo foi dado com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro A ele coube desempenhar papel instrumental nessa missão sagrada de constituir a nação como será observado a seguir 12 O IHGB e sua missão sagrada a invenção da narrativa nacional A fundação do Instituto veio pois darnos grande valor para a empresa desde que o augusto Chefe de Estado resolveu colocarse a frente dele apreciando altamente os trabalhos acerca da história pátria pelos auxílios que podem prestar independentemente dos que proporcionam à erudição e à literatura ao estadista ao jurisconsulto ao publicista ao administrador ao diplomata ao estratégico ao naturalista ao financeiro e aos vários artistas e talvez prevendo que com serviço nenhum melhor do que os que tivessem relação com a história e geografia e aqui cabem todos os produtos naturais poderiam os seus súditos ser úteis ao saber humano em geral entrando na grande comunhão científicoliterária européia de que por outro lado tantos auxílios recebemos por meio da oferta de novos dados que inclusive venham a ser aí debatidos em proveito da ilustração do país Francisco Adolfo de Varnhagen 121 Por que é preciso inventar a nação A elaboração de uma narrativa nacional se tornou condição sine qua non para legitimar a Monarquia e satisfazer as pretensões de alçar o Brasil à condição de país ordeiro integrado e desenvolvido na segunda metade dos oitocentos A missão de escrever a história do país também era uma missão de modernizálo e de garantir a sua sobrevivência69 Entretanto havia uma série de fatores desfavoráveis à constituição 68 ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p31 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbr downloadtextoup000007pdf 69 Como diz Cezar essa tarefa histórica essa espécie de dever cívico consistia também em civilizar a sociedade CEZAR Temístocles Presentismo memória e poesia Noções da escrita da história no Brasil oitocentista In PESAVENTO Sandra Jatahy org Escrita linguagem objetos leituras de história cultural Bauru SP EDUSC 2004 p7980 Grifo nosso Salah H Khaled Jr 47 de uma nação em um país que atravessaria todo o século XIX marcado pelo atraso em relação ao padrão europeu que desejava alcançar70 Havia um verdadeiro descompasso entre um tempo marcado pela aceleração e transformação que era o caso da Europa no século XIX e o Brasil que ao contrário permanecia engessado pelo conservadorismo e alheio a um processo que em certa medida gostaria de se integrar Entretanto havia antes de tudo uma questão de prioridades ainda que o progresso fosse um objetivo caro às elites oitocentistas ele sempre cedeu espaço aos esforços pela manutenção da ordem e da hierarquia social O Estado Nacional Brasileiro estava comprometido com as necessidades de manutenção do território mas também do status quo no país Era necessário construir não somente a nação mas também a ordem entendida como respeito pela autoridade e pela hierarquização social Para os inventores da história nacional não bastava apenas coesão mas também a manutenção de um modelo excludente de sociedade que deveria ser legitimado a partir da narrativa nacional Tudo isso passava pela invenção da nação Desde a sua fundação em 1838 o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro fez da construção da nação brasileira o lugar central do discurso histórico oitocentista A fundação do instituto esteve longe de ser um fato isolado Pelo contrário integrava um movimento de refluxo conservador face às excessivas liberdades do período da Regência71 O IHGB estava inserido portanto em um impulso conservador cujo objetivo era garantir a integridade do território nacional e a afirmação do regime monárquico estando articulado a uma série de medidas promovidas pela elite de então72 Tratava se de uma solução conservadora marcada pelas ideias de centralização unidade nacional neutralização dos liberais isolamento dos jacobinos procrastinação do 70 Odalia afirma que a longínqua Europa era o paradigma a ser imitado Em suma a Europa com tudo que significa em termos de cultura e civilização será eternamente o modelo a que se deve apegar a nova Nação ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p46 Disponível em httpwwwdominiopubli cogovbrdownloadtextoup000007pdf 71 Para Wehling o IHGB fazia parte do endurecimento e centralização conservadora em curso na segunda metade da década de 1830 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 72 Segundo Wehling a ação dessa elite política regressista demonstrouse em variados aspectos todos tendentes a reforçar a autoridade central e a garantir a monarquia constitucional reação às revol tas regionais Lei Interpretativa do Ato Adicional reforma do Código de Processo Criminal A fundação do Instituto inserese neste processo e por isso os textos são muito claros na defesa da Monarquia constitucional e sistema unitário como regime político ideal para o paísestá faltando abre aspas Ibid p36 Horizontes Identitários 48 problema escravo e afirmação diplomática do país73 A elaboração de uma narrativa nacional estava em conformidade com tais intenções Para que o esforço de centralização promovido por essa elite fosse bem sucedido era importante o estímulo ao sentimento nacional para garantir a integridade do território brasileiro então ameaçada pela instabilidade política do período Dessa forma o IHGB assumiu a tarefa de elaborar um passado em comum para a nação ou melhor dizendo a tarefa de construir a própria nação ao menos discursivamente sendo esse o sentido de sua própria fundação Vocação científica e vocação nacional somavamse na atividade do Instituto e na sua missão de construir discursivamente a nação74 Essa dimensão pragmática pode ser percebida a partir de alguns pontos fundamentais que estão presentes nos textos do IHGB75 Em suma inventavase a nação de acordo com intenções políticas bem definidas A ideia de invenção da nação ainda soa estranha fora dos círculos acadêmicos Entretanto já foi estabelecido que as nações são uma invenção da modernidade apesar de sua aparente antiguidade76 Esse é sem dúvida um dos consensos mais aceitos entre os teóricos do nacionalismo77 O próprio termo nação ao menos em 73 Wehling afirma que a conjuntura de 1838 a 1856 fundação do IHGB e publicação da História Geral do Brasil de Varnhagen respectivamente caracterizavase pela existência do que ele chama de um projeto que buscava a consolidação do Estado Imperial Para ele a elite política ali representada quase toda vinculada à burocracia monárquica central e ideologicamente identificada ao movimento do Regresso por sua vez centrado no eixo RioSão Paulo Minas Gerais encarou como tarefa indispensável à consolidação da unidade política o fortalecimento do sentimento nacional Ibid p111 Para Wehling o exemplo do IHGB é a mais concreta realização no plano cultural de um conjunto de objetivos conservadores em relação ao desenvolvimento do país Ibid p18 74 Guimarães aponta que O interesse pela história que marcaria a vida intelectual das diversas socie dades do século XIX articulavase na verdade a uma questão central para aquele século a problemá tica nacional A pesquisa histórica estava diretamente comprometida com a busca e fundamentação segundo acreditavam objetiva da nação GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado De Paris ao Rio de Janeiro a institucionalização da escrita da história In Acervo v04 n 01 p137 75 De acordo com Wehling destacamse a monarquia constitucional e a unidade do país uma estru tura política centralizada compatibilizada com a descentralização administrativa afirmação do Poder Moderador e do Conselho de Estado o abolicionismo gradual o sistema representativo a subordina ção da igualdade à liberdade aceitando desigualdades funcionais as liberdades concretas viabiliza das pelas instituições e o reforço do poder para assegurar liberdades contra o mandonismo local WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p3435 76 Benedict Anderson caracteriza o problema como a modernidade objetiva das nações aos olhos do historiador vs sua antiguidade subjetiva aos olhos dos nacionalistas ANDERSON Benedict Nação e consciência nacional São Paulo Ática 1989 p13 77 Hobsbawm diz que a característica básica da nação moderna e de tudo que está ligado a ela é a sua modernidade Isso agora é bem compreendido embora a suposição oposta a de que a identifi cação nacional seja tão natural fundamental e permanente a ponto de preceder a história ainda seja tão amplamente aceita HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990p27 Salah H Khaled Jr 49 seu significado atual é inclusive historicamente recente78 No sentido moderno a sua utilização vinculase a um Estado Nacional que promoveu de cima para baixo a invenção da nação pois foi o Estado que construiu a nação e não o contrário79 A força dessa vinculação é inegável pois o Estado era a máquina que tinha que ser manipulada se uma nacionalidade quisesse transformarse em uma nação ou mesmo se seu presente status tivesse que ser protegido contra a erosão histórica ou assimilação80 O Estado brasileiro assumiu dessa forma a gerência do processo de construção da nação81 Consequentemente como a narrativa nacional foi construída como parte integrante de um processo verticalizado de constituição da nação contempla viés decididamente estatal82 122 O IHGB e o poder A fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a sua trajetória nos oitocentos estiveram intimamente ligadas ao poder ao Estado O IHGB foi um instituto verdadeiramente oficial no conteúdo e na forma e essa característica se manifestou 78 Hobsbawm afirma que no século XIX houve um deslocamento de significado no qual o que repre sentava unidade étnica passou a significar independência e unidade política Diz ele que qualquer que seja o significado próprio e original ou qualquer outro do termo nação ele ainda é claramente diferente de seu significado moderno Podemos portanto sem ir mais além no assunto aceitar que em seu sentido moderno e basicamente político o conceito de nação é historicamente muito recente Ibid p30 Grifo nosso 79 Hobsbawm é taxativo em sua opinião não considero a nação como uma entidade social originária ou imutável A nação pertence exclusivamente a um período particular e historicamente recente Ela é uma entidade social apenas quando relacionada a certa forma de Estado territorial moderno o Estado nação e não faz sentido discutir nação e nacionalidade fora desta relação o nacionalismo vem an tes das nações As nações não formam os Estados e os nacionalismos mas sim o oposto Ibid p19 80 HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janei ro Paz e terra 1990 p116 81 Para Odalia assumindo o Estado a dimensão de um poder educador sua face mais odiosa a de força repressora camuflase e se torna mais poderosa pois sua ação é mais insidiosa Ele passa a ser confundido como o lugar privilegiado o manancial de onde emanam as condições políticas e intelectu ais para a constituição da Nação ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p111 Disponível em http wwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 82 Para Odalia Nação e Estado foram sempre concebidos como tarefa de uma minoria culta e escla recida que deveria reger os destinos de ambos orientando corrigindo pela educação pela força a massa considerada incapaz e incompetente de se reconhecer e de reconhecer no projeto idealizado pela camada dirigente seu destino Ibid p33 Horizontes Identitários 50 de maneira evidente na narrativa nacional por ele elaborada83 É importante destacar o sentido dessa relação O vínculo entre a ciência e o poder não é de exterioridade A história enquanto ciência enquanto área de saber em constituição não foi simplesmente apropriada ou usada no sentido de servir aos interesses de dominação e controle social Pelo contrário seu surgimento e desenvolvimento estavam profundamente associados a estratégias de poder que instrumentalizavam que potencializavam e que viabilizavam a sua ação a sua escrita Havia uma profunda articulação entre a elaboração da narrativa nacional e o poder na qual a ciência acabou por assumir uma função eminentemente pragmática84 Em sentido semelhante Cezar diz que a função mais evidente da constituição da história como disciplina era a de esboçar uma visão da nação brasileira85 Wehling afirma que cabia assim à intelectualidade promover por meio dos estudos históricos o desenvolvimento desta consciência tornandose um acelerador da história86 Para Odalia os historiadores atenderam ao apelo e procuraram atender a essa necessidade básica das nações que estavam em vias de formação87 Portanto em função dessa necessidade e de acordo com os objetivos do Estado o IHGB se propôs a elaborar um grande relato da nacionalidade que atribuiria sentido significado e unidade ao todo imperfeito e heterogêneo da nação garantindo a adesão e fidelidade dos cidadãos Tratavase de um esforço de homogeneização da sociedade no plano cultural de erradicação da diversidade regional88 A elaboração de uma narrativa nacional é um elemento central ao processo de constituição da nação fornecendo a um território delimitado geograficamente um passado comum e 83 Odalia afirma que Ao Estado deve incumbir preencher o vazio de idéias em que se processara a nossa independência pos esse vazio aparecia em toda a sua profundidade e em toda gama de conse qüências Erase tão apenas uma excolônia pobre de idéias e ainda mais pobre economicamente Ibid p41 84 Para Odalia a nação é a resultante natural tanto de uma ação pragmática como de uma interpreta ção pragmática da história Ibid p45 85 CEZAR Temístocles Presentismo memória e poesia Noções da escrita da história no Brasil oi tocentista In PESAVENTO Sandra Jatahy org Escrita linguagem objetos leituras de história cultural Bauru SP EDUSC 2004 p79 86 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999p112 87 ODALIA Op cit p34 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007 pdf 88 Como afirma OLIVEN o processo de unificação nacional que acompanha o Estado e que além de centralizar o poder temse mostrado historicamente contrário à manutenção de diversidades regionais e culturais OLIVEN Ruben George Mitologias da Nação In FÉLIX Loiva Otero e ELMIR Cláudio P org Mitos e heróis construção de imaginários Porto Alegre UFRGS 1998 p28 Salah H Khaled Jr 51 portanto uma cultura nacional procurando subordinar e erradicar a diferença89 A história científica sob a chancela institucional do Estado procurou estabelecer esse relato fundador de identidades de significados e de orientações90 Portanto a historiografia dos oitocentos através do IHGB assumiu a importante tarefa de constituir um passado para o país91 Um passado que legitimasse o ordenamento social vigente e colaborasse para a construção de uma nação e de uma identidade nacional brasileira através da constituição de algo fundamental uma dimensão de origem comum que apontasse para um futuro de glórias92 O grande relato da nacionalidade portanto ofereceria na verdade um sentido para o presente e o futuro pautado por um projeto de cunho político e pragmático93 Aos historiadores caberia a dupla função de definir e moldar a nação94 A partir dessa perspectiva a escrita da história seria por excelência 89 Stuart Hall define a cultura nacional como um discurso um modo de construir sentidos que influen cia e organiza tanto nossas ações como a concepção que temos de nós mesmos HALL Stuart A identidade cultural na pósmodernidade 4aed Rio de Janeiro DPA 2000 p5051 90 GUIMARÃES afirma que a associação entre História e Identidade sempre se fez presente no ofício de historiador num procedimento em que muitas das vezes estas identidades foram como que natu ralizadas e a História serviu de respaldo e legitimação para encontrar em tempos remotos as provas necessárias que sustentariam uma memória acerca de identidades de construção recente Uma iden tidade que parecia encontrar através da história seu porto seguro e sua plena justificação encobrindo o penoso processo de invenção desta mesma identidade que como parte da experiência humana só pode ter história GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado A cultura histórica oitocentista a constituição de uma memória disciplinar In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesqui sa Porto Alegre UFRGS 2003p14 91 Odalia afirma que dividemse naturalmente as funções ao homem político cabe a direção da práti ca política ao intelectual especialmente ao historiador incumbe suprir essa ação com os elementos te óricos e históricos necessários para a consecução dos ideais estabelecidos ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997p44 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007 pdf 92 De acordo com Reis A nação recémindependente precisava de um passado do qual pudesse se orgulhar e que lhe permitisse avançar com confiança para o futuro REIS José Carlos As identida des do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p25 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosre isvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLr B5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibo okresulvonepageqffalse 93 Guimarães afirma que O nascimento da história como disciplina científica não pode assim ser dis sociado de um projeto político em gestação quando paralelamente à definição de métodos de trabalho para a pesquisa histórica esperase obter por essa via um sentido de orientação para o futuro desven dandose dessa maneira um papel central para o trabalho do historiador GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado A cultura histórica oitocentista a constituição de uma memória disciplinar In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesquisa Porto Alegre UFRGS 2003p12 94 Como diz Odalia a atividade do historiador é portanto muito mais ampla e profunda do que à pri meira vista pode parecer O autor afirma que se num primeiro momento a ele cabe a criação de um passado uno que dá sentido à Nação num segundo a sua participação é muito mais vigorosa porque a ele também deve caber a tarefa de modelar o futuro ODALIA Op Cit p38 Disponível em http wwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf Horizontes Identitários 52 a escrita da nação95 Os membros do IHGB estavam conscientes da sua importante participação no processo de elaboração discursiva da narrativa nacional96 Estavam engajados sobretudo na tarefa de elaborar um projeto de nação em conformidade com os objetivos do Estado97 Esse enfoque privilegiava politicamente a manutenção da ordem e afirmação do poder do Estado e era indissociável de sua forma de fazer ciência98 Sendo assim a narrativa nacional por eles produzida não deixou de ser um reflexo de seu relacionamento com o poder o que senão comprometia inteiramente a sua cientificidade ao menos a colocava em permanente tensão Uma tensão que longe de ser exclusiva ao IHGB era condição inerente à construção discursiva da nação a partir do Estado nos oitocentos99 O resultado dessa associação entre o poder e o discurso científico da história é uma narrativa que de forma sutil e sugestionada busca induzir comportamentos a 95 Cezar comenta que se colocava dessa forma a nação em primeiro lugar como um préconceito que orientava a construção discursiva da história e assim no plano epistemológico a nação não é somente uma maneira de se pensar a política no quadro dos códigos científicos mas sobretudo uma maneira de se pensar a ciência em uma estrutura de poder nacional CEZAR Temístocles Américo Correa A geografia servia antes de tudo para unificar o Império escrita da história e saber geográfico no Brasil oitocentista In Ágora Santa Cruz do Sul Vol 11 n 1 janjun 2005 p88 96 Odalia afirma que os historiadores se admitiram como forjadores da nacionalidade Agiram premidos e impulsionados pela urgência e pela consciência da tarefa que tinham a realizar ODALIA Op Cit p34 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 97 Para Odalia um projeto é fruto tanto em sua elaboração quanto em sua execução de uma vontade e de uma consciência O projeto assim compreendido não se circunscreve ao âmbito de uma tarefa de cunho político administrativo Sua verdadeira face se revela quando o percebemos como a expressão de uma visão de mundo em que o fator político ganha relevo Ibid p44 98 Como assinala Cezar o Imperador participava das reuniões do IHGB e inclusive ocasionalmente as presidia fazendo sugestões como por exemplo de que fosse feita a história dos seus feitos e gestos CEZAR Temístocles Presentismo memória e poesia Noções da escrita da história no Brasil oitocentista In PESAVENTO Sandra Jatahy org Escrita linguagem objetos leituras de história cultural Bauru SP EDUSC 2004 p4647 Reis ressalta que O jovem imperador aliás precisava mui to da história e dos historiadores o imperador precisava de historiadores para se legitimar no poder REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p25 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23 lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortu guesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JI Om8Ab258VasaXoibookresulvonepageqffalse Como reflete Wehling os fundadores do Instituto objetivavam reconstituir a História pátria para con solidar o ideal nacional WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p36 99 Como afirma Guimarães Da associação entre interesses nacionais e projeto científico para a His tória nascera uma poderosa cultura histórica ainda a nos marcar coletivamente e que viria a afirmar e garantir a centralidade da História no processo de definição de sentidos para o homem contemporâ neo GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado A cultura histórica oitocentista a constituição de uma me mória disciplinar In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesquisa Porto Alegre UFRGS 2003 p11 Salah H Khaled Jr 53 partir de exemplos retirados dos aspectos sobre o passado que se veem privilegiados Afinal o passado composto pela história dos oitocentos não é o passado do todo é o passado de um grupo por excelência do colonizador português e porque não dizer até a memória desse grupo o que implica em um recorte específico em tais representações100 Tal recorte assumia uma característica de função de ordenamento do corpo social em conformidade com uma missão que a história encontravase incumbida de cumprir101 Dessa forma a história constituíase em uma verdadeira pedagogia política encarregada de nortear os posicionamentos dos brasileiros quanto a questões centrais à constituição da nação102 A utilização da história como forma de intervenção social era inteiramente justificada e inerente ao próprio espírito de formação desse campo de saber Não havia qualquer constrangimento construir a história a partir do interesse da nação era condição inerente a sua própria escrita A história portanto deveria ser verdadeiramente escrita a partir da nação103 mas não qualquer nação importava construir a nação a partir da égide da ordem centralizada através da Monarquia Eis a missão e a participação do IHGB no projeto conservador era necessário sobretudo inventar a nação e provêla de um passado que apontasse para esse fim imanente O termo invenção não deve entretanto induzir em equívocos Dizer que a nação foi inventada não significa dizer que ela foi criada pura e simplesmente do nada104 Os autores recorriam a fontes recorriam a elementos recolhidos da realidade concreta De fato havia uma preocupação em 100 Odalia afirma que ao historiador como expressão intelectual do grupo social a que pertence in cumbe diligenciar para traduzir os anseios que o revelam os objetivos que o caracterizam nos termos de nacionalidade inteligibilidade e plausibilidade ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p47 Dispo nível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 101 Odalia comenta que ao historiador cabe o trabalho delicado de cirurgião plástico extirpando sutu rando acrescentando os elementos esparsos de uma nacionalidade ainda em formação Todas as ope rações são realizadas sob o critério das expectativas que se tem a respeito da futura nação Ibid p45 102 Odalia refere que elaborar idealmente uma nação significa primeiramente a escolha de opções São valores que deverão ser escolhidos e atingidos são opções sociais étnicas políticas econômicas antropológicas etc que deverão ser feitas Uma nação não é um simples aglomerado de indivíduos não é somente uma presença territorial ou uma unidade e continuidade espaciais Ela é algo mais am plo e sofisticado Ibid p35 103 CEZAR Temístocles Américo Correa A geografia servia antes de tudo para unificar o Império escrita da história e saber geográfico no Brasil oitocentista In Ágora Santa Cruz do Sul v 11 n 1 janjun 2005 p88 104 Hobsbawm lembra que embora os governos estivessem plenamente engajados em uma engenha ria social ideológica consciente e deliberada seria um erro ver esses exercícios como pura manipula ção do alto De fato eles eram muito bem sucedidos quando podiam ser construídos sobre sentimentos nacionalistas nãooficiais já presentes HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p113 Horizontes Identitários 54 construir a nação por parte daqueles intelectuais de acordo com sua visão de mundo e de sociedade Mas o IHGB era sobretudo um lugar de ciência de acordo com os parâmetros da época os quais implicavam em uma associação íntima com o poder105 Portanto o IHGB ainda que de fato oficial não era um lugar de panfletagem política exclusivamente Era um lugar de ciência O que pode ser dito é que lugar de ciência ou não inegavelmente havia uma relação profunda entre a própria constituição do campo disciplinar e o desejo de concretização do BrasilNação A história fez parte de um projeto de afirmação de identidades nacionais ao longo do século XIX e esteve longe de ser imparcial ao fazêlo apesar da neutralidade científica ser tão cara aos cientistas da época O passado transposto para uma narrativa nacional através de tais pressupostos constituiuse assim em um recurso inestimável para as nações em construção nos oitocentos na medida em que configurava uma cultura nacional que em alguma medida contribuía para sua coesão interna Nesse sentido Hall afirma que embora exista toda uma intenção de uniformidade e homogeneidade cultural uma cultura nacional nunca foi um simples ponto de lealdade união e identificação simbólica106 Para o autor a cultura nacional também é uma estrutura de poder cultural Portanto a historiografia desempenhou papel preponderante no processo de afirmação da nação pois a ela coube não somente inventar a nação mas dessa forma atuar como legitimadora de um determinado projeto de sociedade com o qual estava em conformidade e assim estabelecer uma memória nacional107 Coesão unidade integração e força na união são expressões recorrentes no vocabulário do IHGB e que encontram ressonância no objetivo de construção de uma nação una e indivisa Hall afirma que 105 Odalia afirma que o homem político na prática diária deve evitar que se produzam o separatismo a desunião a fragmentação do território e dos homens o historiador se impõe como missão a tarefa de secundálo com razões e argumentos históricos oferecendo do passado os elementos que possam orientar e consolidar na prática política a consecução do ideal Daí ser um salto relativamente simples o fato de o historiador envolverse nas teias do oficialismo Nessa opção ele não vê nenhum mal e quando dele vem o reconhecimento ele se transforma na sua suprema realização ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vian na São Paulo UNESP 1997 p37 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtexto up000007pdf 106 HALL Stuart A identidade cultural na pósmodernidade 4a ed Rio de Janeiro DPA 2000 p59 107 Hobsbawm afirma que a história é a matériaprima para as ideologias nacionalistas ou étnicas ou fundamentalistas o passado é um elemento essencial talvez o elemento essencial nessas ideolo gias Se não há nenhum passado satisfatório sempre é possível inventálo O passado legitima O passado fornece um pano de fundo mais glorioso a um presente que não tem muito o que comemorar HOBSBAWM Eric Sobre história São Paulo Companhia das Letras 1998 p17 Salah H Khaled Jr 55 Em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas deveríamos pensálas como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade Elas são atravessadas por profundas divisões e diferenças internas sendo unificadas apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultural108 Para que essa unificação ocorresse segundo afirma Wehling era necessária a afirmação de uma cultura nacional por meio do culto e da criação de uma memória nacional o que era pressuposto para a consolidação do Estado Imperial109 O Brasil independente portanto precisava da história e dos historiadores para se oferecer um passado e abrirse um futuro110 Portanto é evidente que a historiografia do IHGB apesar de científica era também engajada111 Havia de fato um processo de configuração da fisionomia nacional para o qual a história era parte central112 A história cumpria assim uma função política associada como estava ao poder e colocandose inclusive como instância de legitimidade do mesmo113 123 O discurso fundador de Januário da Cunha Barboza e seu sentido exemplar Embora não existisse uma ideia inteiramente clara do papel da história e da sua delimitação enquanto campo de saber o discurso inaugural de Januário da 108 HALL Op Cit p6162 109 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p33 110 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p26 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosreis varnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB 5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibo okresulvonepageqffalse 111 Para Odalia o historiador obedecia a uma série de objetivos em seu trabalho em primeiro lugar colaborar na Administração do Estado por meio do levantamento histórico de dados que lhe possam ser úteis em segundo favorecer a unidade nacional e em terceiro complementando o segundo fo mentar e exaltar o patriotismo enobrecendo o espírito público ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p38 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 112 GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado De Paris ao Rio de Janeiro a institucionalização da escrita da história In Acervo v04 n 01 p141 113 É nesse sentido que Wehling reflete que o Instituto realizaria sua obra como apontaram Januário da Cunha Barboza o Visconde de São Leopoldo e Martius visando consolidar o sistema unitário e a forma de governo monárquicoinstitucional Segundo o autor a realização desse programa nas décadas seguintes cujo melhor exemplo foi a História Geral do Brasil de Varnhagen deu o tom da aliança entre a intelectualidade e o poder no Segundo Reinado WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p44 Grifo nosso Horizontes Identitários 56 Cunha Barboza primeiro secretário perpétuo do IHGB oferece vários elementos que demonstram as intenções do recém fundado Instituto ou seja seu plano de ação114 Barboza circunscreveu em seu discurso parâmetros que norteariam o ofício exercido pelos membros do IHGB Um ofício que implicaria em um verdadeiro esforço de invenção da nação de acordo com critérios políticos claros e critérios científicos não tão bem definidos115 A missão de escrever a narrativa nacional era de suma importância verdadeiramente imperativa face à iminente desagregação do território nacional A consolidação da nação exigia a realização dessa empresa científica116 Não restava dúvida quanto ao que deveria ser feito117 mas havia entretanto muito o que se pensar sobre como Ainda não haviam sido estabelecidos os parâmetros da escrita de uma narrativa nacional em um momento em que o IHGB vivia conjuntamente a busca de marcas de cientificidade e a pretensão de construção da nação através da representação histórica118 114 Sobre a questão ver GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado Uma História da História Nacional tex tos de fundação Disponível em httpwwwcoresmarcasefalasprobradmanexos11122008005626 pdf 115 Cezar considera que o discurso de Barboza evidencia que as razões para se estudar a história eram de ordem política e epistemológica CEZAR Temístocles Lição sobre a escrita da história Historiogra fia e nação no Brasil do século XIX In Diálogos DHIUEM v 8 n 1 p16 Disponível em httpwww dialogosuembrincludegetdocphpid436article142modepdf 116 Odalia aponta que O século XIX é o momento da nossa independência ele marca o início de um processo lento e de longa duração que busca forjar a nacionalidade e a Nação É um problema comum do século XIX como também do século XX países novos ou velhos antigas colônias que buscam encontrar em alguns casos ou reencontrar em outros sua identidade seu projeto de vida como uma Nação indivisível e independente ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamen to historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p 3435 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 117 Guimarães reflete que Caberia à história agora como disciplina submetida aos rigores do conhe cimento científico a tarefa de fundar no passado a origem da Nação produzindo para o século XIX as biografias sistematizadas das Nações como parte fundamental da nova pedagogia para o cidadão nacional Como parte deste novo currículo a História deveria contribuir para assentar em bases segu ras as demandas formuladas socialmente de fidelidade a este novo personagem histórico a nação GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado A cultura histórica oitocentista a constituição de uma memória disciplinar In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesquisa Porto Alegre UFRGS 2003 p18 Cezar afirma que desde a sua fundação o IHGB teve como principal tarefa a descrição da história da nação CEZAR Temístocles Américo Correa A geografia servia antes de tudo para unificar o Império escrita da história e saber geográfico no Brasil oitocentista In Ágora Santa Cruz do Sul v 11 n 1 janjun 2005 p79 118 Para CEZAR a meta era estabelecer um projeto historiográfico capaz de organizar os recursos e os procedimentos para se escrever a história da nação O problema é que assim como a nação estava sendo construída a história enquanto disciplina científica estava ainda dando seus primeiros passos Tal como para o projeto nacional também não era clara a identidade da história nem do historiador O que ele devia mesmo fazer E mais como fazer CEZAR Temístocles Lição sobre a escrita da história Historiografia e nação no Brasil do século XIX In Diálogos DHIUEM v 8 n 1 p12 Salah H Khaled Jr 57 A filiação intelectual do IHGB bem como do próprio Varnhagen é objeto de grande especulação O estabelecimento desse vínculo não é um dos objetivos da análise aqui proposta mas sim sobretudo investigar a construção de uma narrativa nacional pelo discurso histórico oitocentista De qualquer forma para não ignorar inteiramente a questão cumpre ressaltar que o assunto foi abordado por vários autores Cezar preocupouse com a vinculação entre os critérios do Instituto e os modelos postos pela historiografia clássica grega especialmente a ideia de uma historia magistra vitae119 Wehling aproximou Varnhagen do romantismo e do historicismo bem como de Vico Hegel e Hobbes120 Odalia percebeu em Varnhagen uma concepção pragmática da história vizinha à de Maquiavel121 Por outro lado o discurso fundador do Instituto proferido pelo seu primeiro secretário Januário da Cunha Barboza evoca alguns elementos que são típicos da modernidade como a noção de progresso e a noção de razão A razão do homem sempre vagarosa em sua marcha necessita de um guia esclarecido e seguro que accelere os seus passos122 Tratase de uma frase imbuída de ideais modernos aos quais a história buscaria corresponder De forma semelhante o programa histórico do instituto redigido pelo Visconde de São Leopoldo diz que o IHGB é o representante das idéas de illustração que em differentes epochas se manifestarão em nosso continente A própria ideia de uma história geral em si contempla uma ambição explicativa totalizante que é tipicamente moderna por definição No prólogo da segunda edição de sua História Geral do Brasil Varnhagen citou Tocqueville como justificativa para a importância do estudo da história nos tempos coloniais123 Portanto parece haver uma filiação híbrida não claramente identificável com uma única corrente de pensamento Varnhagen inclusive expressou o seu desejo de não aderir especificamente a qualquer modelo124 Disponível em httpwwwdialogosuembrincludegetdocphpid436article142modepdf 119 CEZAR Temístocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIX siècle essai sur une rhétorique de la nacionalité Le cas Varnhagen v1 e v2 manuscrito 2002 120 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 121 ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997p71 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbr downloadtextoup000007pdf 122 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 123 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927 pVII 124 Ibid pXI Horizontes Identitários 58 Independentemente da questão teórica e de suas implicações não havia grandes dúvidas quanto à missão a ser cumprida Ou seja a ciência poderia estar em definição mas a dimensão pragmática encontravase bem assentada Não se escrevia apenas história se escrevia para dizer algo que seria em última instância útil para intervir na realidade mesmo que de forma indireta Uma missão que longe de ser simples apresentava uma série de escolhas e definições de posições a tomar A começar pelo recorte O que deveria integrar a narrativa nacional No que devia constituir o passado que sinalizava de forma prefigurada a formação da nação A empreitada da qual o IHGB se encarregou era sobretudo para o instituto uma empreitada de resgate125 Barboza abre a sua fala dizendo que não se compadecia já com o gênio brasileiro sempre zeloso da glória da pátria deixar por mais tempo em esquecimento os factos notáveis da sua história acontecidos em diversos pontos do império sem dúvida ainda não bem consignados126 Sendo assim a história deveria tratar fundamentalmente de fatos notáveis Fatos que trariam glória à pátria e que haviam ocorrido em vários pontos do Império O que é notável e pode produzir a coesão desejada deve ser resgatado do esquecimento para o presente Evidente que a própria definição do que é notável ou não já inclui uma valoração inteiramente subjetiva que entretanto está de acordo com a dimensão pragmática da função de historiador Para Barboza O talento dos historiadores e dos geographos he só quem póde offerecernos essa galeria de factos que sendo bem ordenados por suas relações de tempo e lugar levãonos a conhecer na antiguidade a fonte de grandes acontecimentos que muitas vezes se desenvolverão em remoto futuro127 125 Odalia afirma que na tarefa de constituir a nação é delegado um papel essencial à história es quadrinhar o passado peneirálo resolvêlo buscar em suas cinzas ainda fumegantes entre as ma zelas da servidão e da desunião os desvãos camuflados as pequenas reentrâncias os minúsculos acontecimentos em que se inserem os primeiros gestos tímidos de identidade os primeiros acenos de união os primeiros sonhos de uma pátria livre ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p34 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 126 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p0918 127 Ibidem Salah H Khaled Jr 59 O passado seria constituído a partir de tais princípios como uma verdadeira prefiguração do presente no passado e inclusive sinalização do futuro128 Cezar reflete que apesar do cuidado dos brasileiros por sua pátria eles tinham até aquele momento pelo menos esquecido os fatos notáveis Era necessário então ressuscitá los129 Ressuscitálos através de uma narrativa nacional de um grande relato da nacionalidade Uma narrativa que por excelência teria como característica marcante sua vocação para unir e integrar inspirando e aspirando coesão dentro do todo da nação A história proposta por Barboza é uma história de conquista e defesa do território brasileiro e principalmente uma história geral o que até então não havia sido feito Ou seja segundo ele havia histórias particulares das províncias e não huma historia geral encadeados os seus acontecimentos com esclarecido criterio com deducção philosophica e com luz pura da verdade130 Uma história que uma vez configurada como grande relato da nacionalidade passaria a dar sentido e coesão contribuindo para produzir homogeneidade na qual havia heterogeneidade131 A narrativa nacional seria portanto produto de um esforço intelectual corretivo e integrador exercido por homens patriotas os sócios do IHGB Percebese nas diretrizes estabelecidas por Barboza a contemplação dos objetivos por trás da fundação do IHGB Seria uma história encarregada de englobar o todo do Império ocupandose de acontecimentos que teriam serventia por enaltecer a nação e suas instituições Tratavase sobretudo de reunir os elementos espalhados através das províncias através da superação de tal dificuldade por um esforço patriótico pois cabia ao patriota escrever a história do Brasil132 128 De acordo com Odalia Uma nação não é apenas o que ela foi em seu passado colonial esta é a matériaprima o ponto de partida para uma projeção em direção ao futuro em que deve se realizar o seu ideal de nação ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p38 Disponível em httpwwwdominiopu blicogovbrdownloadtextoup000007pdf 129 CEZAR Temístocles Lição sobre a escrita da história Historiografia e nação no Brasil do século XIX In Diálogos DHIUEM v 8 n 1 p13 Disponível em httpwwwdialogosuembrincludegetdoc phpid436article142modepdf 130 BARBOZA Op cit p0918 131 Quando isso ocorre com sucesso os homens querem estar politicamente unidos com todos aque les e apenas aqueles que partilham a sua cultura Então as organizações políticas estenderão as fronteiras até os limites das respectivas culturas para protegerem e imporem essas culturas até as fronteiras do seu poder A fusão da vontade da cultura e da organização política transformase na nor ma uma norma rara ou dificilmente desafiada GELLNER Ernest Nações e nacionalismo Lisboa Gradiva 1993 p88 132 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 Horizontes Identitários 60 Para a elaboração dessa narrativa nacional o passado era fundamental pois é por excelência fundador de sentidos133 Em última instância a narrativa nacional é um relato de legitimação da autoridade central que busca favorecer a estabilidade desejada pelas elites dirigentes do país e construtoras da nação Esse efeito é obtido a partir dos sentidos construídos pela narrativa nacional que implicam em lições de valor cívico e moral134 A intenção de quem elabora uma narrativa nacional é promover a unificação e logo anular e subordinar a diferença cultural135 Portanto a elaboração de uma narrativa nacional fornece um pano de fundo no qual se desenrola o drama da nação e o seu destino em que todos são partícipes e ninguém é relegado ao papel de mero coadjuvante ainda que aos heróis caiba adoração quase religiosa Para Hall há uma narrativa da nação tal como é contada e recontada nas histórias e nas literaturas nacionais na mídia e na cultura popular Essas fornecem uma série de estórias imagens panoramas cenários eventos históricos símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam as experiências partilhadas as perdas os triunfos e os desastres que dão sentido à nação Como membros de tal comunidade imaginada nos vemos no olho de nossa mente como compartilhando dessa narrativa Ela dá significado a nossas vidas cotidianas com um destino nacional que preexiste a nós e continua existindo após a nossa morte136 Dessa forma a existência humana tornase provida de significação por esse manancial de glórias passadas e de um futuro brilhante que é reservado para a nação dos quais se extraem lições para o presente Lições de devoção lealdade fidelidade e sacrifício em nome da glória da pátria O poder político de tal representação demonstrado pela sua capacidade de induzir um arrefecimento nas contradições internas é inegável Percebese dessa forma a utilidade de constituir um passado que era na verdade projeção daquele presente a partir dos sentidos que lhe eram 133 HALL afirma que as culturas nacionais ao produzir sentidos sobre a nação sentidos com os quais podemos nos identificar constroem identidades Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas HALL Stuart A identidade cultural na pósmodernidade 4a ed Rio de Janeiro DPA 2000p51 134 HALL identifica na cultura nacional uma fonte de significados culturais um foco de identificação e um sistema de representação Ibid p58 135 Ou seja não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe gênero ou raça uma cultura nacional busca unificálos numa identidade cultural para representálos todos como pertencendo a uma mesma e grande família nacional HALL Stuart A identidade cultural na pós modernidade 4a ed Rio de Janeiro DPA 2000 p59 136 Ibid p52 Salah H Khaled Jr 61 caros137 As ambições do presente eram em grande medida projetadas no passado nas quais se viam prefiguradas no grande relato da nação138 O IHGB enquanto instituição oficial foi o lugar privilegiado do discurso histórico no século XIX e portanto de constituição do passado e de fundação de tais sentidos139 A historiografia do Instituto nasceu comprometida com a questão da constituição da nação A fundação do IHGB e a missão a ele encarregada revestiamse portanto de forte conotação política Tal comprometimento político se refletia dessa forma no fato de que a construção nacional teria componentes valorizados desproporcionalmente ou então inventados para compor uma narrativa nacional O estudo do passado se tornava uma caça por referências úteis ao que se buscava dizer através da narrativa nacional no presente Por isso são importantes as figuras exemplares140 Os exemplos são necessários pois indicam o caminho a seguir e o modelo de comportamento a adotar A ideia de narrativa nacional se caracteriza por uma função exemplar pedagógica que constantemente remete ao passado um passado datado extraído de fontes mas romanceado e heroicizado O exemplo do passado é extraído para legitimar o presente e construir o futuro da nação Em suma procuravase no passado 137 GUIMARÃES afirma que Ao constituir o passado como projeção do presente e desejo de futuro posto que o lugar por excelência da plena existência daquilo apenas insinuado neste tempo presente a História é capaz de disciplinar este passado segundo os sentidos importantes para o presente em construção conjurando incertezas e dúvidas próprias de um mundo vivendo em meio a um turbilhão de mudanças GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado A cultura histórica oitocentista a constituição de uma memória disciplinar In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesquisa Porto Alegre UFRGS 2003 p17 138 Odalia considera que o que anima vivamente o historiador a trabalhar o passado é nele encontrar a matéria viva e incandescente que permite manipular experiências e elementos históricos para moldar o futuro da Nação O passado então aparece como o despertar da consciência da Nação e da nacionali dade para um certo tipo de Nação ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p38 Disponível em http wwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf Na definição de Guimarães uma cultura histórica atrela inevitavelmente ao passado presente e futuro remetendonos para o passado como lugar por excelência de definição de um sentido original razão explicativa da própria existência no presente Por este procedimento que veio a se consagrar após longa e acirrada disputa pela significação do passado o presente estaria de certa maneira contido no passado de forma prefigurada GUIMARÃES Op Cit p11 139 Como aponta Guimarães o Instituto sem sombra de dúvida lançou as bases da nossa historiogra fia GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado A invenção do passado In Nossa História v3 p24 140 Não é por acaso que Reis aponta que Era preciso encontrar no passado referências lusobrasilei ras os grandes vultos os varões preclaros as efemérides do país os filhos distintos pelo saber e pelas grandes qualidades enfim os lusobrasileiros exemplares cujas ações pudessem tornarse modelos para as futuras gerações REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p25 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid 9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColon izaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShc TbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookresulvonepageqffalse Horizontes Identitários 62 o que poderia ser útil no presente Tal processo não envolvia uma intenção maquiavélica mas sim um reflexo dos valores dos homens daquele tempo enquanto grupo e da tarefa que lhes cabia realizar inventar a nação A narrativa nacional é o mecanismo apropriado para essa finalidade pois borra a diferença e produz coesão dentro de uma determinada circunscrição territorial embora nunca seja inteiramente bem sucedida nessa finalidade No Brasil dos oitocentos essa coesão típica de uma comunidade imaginada141 era mais do que desejável era fundamental diante da instabilidade regional característica do período da Regência e do desejo de manutenção da integridade territorial do Brasil A desintegração da antiga América espanhola em uma série de territórios independentes entre si era uma constante lembrança do esforço necessário para viabilizar a integridade do território nacional Para que esse feito fosse realizado o país deveria se constituir como nação o quanto antes e logo se fazia necessária uma homogeneização que erradicasse as singularidades regionais dentro de seus limites políticos evitando dessa forma a ameaça de fragmentação142 Para atingir tais fins os heróis são muito úteis pois representam bastiões de sacrifício à nação Como diz Barboza aludindo ao literato patrício Alexandre de Gusmão a história é um fecundo seminário de heróis143 Tratavase de estabelecer um passado constitutivo da nação e para tanto os modelos exemplares de comportamento eram simplesmente indispensáveis O primeiro secretário do IHGB não hesita em dizer que a nossa historia abunda de modelos de virtudes mas hum grande numero de feitos gloriosos morrem ou dormem na obscuridade sem proveito das gerações subseqüentes144 Esse esforço de identificação e constituição de heróis 141 Para Anderson a nação é imaginada como uma comunidade porque sem considerar a desigual dade e a exploração que prevalecem em todas elas a nação é sempre concebida como um compa nheirismo profundo e horizontal Em última análise essa fraternidade é que torna possível no correr dos dúltimos séculos que tantos milhões de pessoas não só matem mas morram voluntariamente por imaginações tão limitadas Essas mortes lançamnos abruptamente cara a cara com o problema funda mental proposto pelo nacionalismo o que faz com que as minguadas imaginações da história recente pouco mais de dois séculos dêem origem a sacrifícios tão colossais ANDERSON Benedict Nação e consciência nacional São Paulo Ática 1989 p16 Grifo nosso 142 Odalia afirma que nesse estado de coisas a tarefa é unir o que está disperso assegurar os direitos adquiridos acomodar as divergências projetar para o futuro o que ainda não existe e erigir o Estado como mentor e arquiteto onipotente que presidirá como magistrado e educador a consecução dos trabalhos de tornar realidade o que projeta ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p64 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 143 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 144 Ibidem Salah H Khaled Jr 63 foi caracterizado por Odalia como tentativa de construção de um panteão nacional145 e por Guimarães de uma verdadeira cultura de heróis prometeicos formulada no século XIX146 Portanto parte central da missão do IHGB abertamente estipulada pelo seu primeiro secretário era a de elaborar verdadeiros monumentos nacionais147 O engajamento do IHGB no projeto de nação é demonstrado pela própria escolha de modelos a que Barboza se refere Ao citar os benefícios que advirão de um instituto que irá tratar da história o autor reportase a Cícero e a ideia de uma história testemunha dos tempos luz da verdade e escola da vida148 Justamente o que Cezar se refere como historia magistra vitae a história mestra da vida149 Barboza demonstra isso claramente ao afirmar que não duvidamos Srs que as melhores lições que os homens podem receber lhes são dadas pela historia150 Logo os heróis na verdade os homens constituídos como tais pelo tribunal da história são exemplares e cabe seguir os seus passos nos caminhos da honra e da gloria nacional151 Barboza considera que A fama dos grandes homens rompendo as trevas da antiguidade tem chegado a nós com os documentos de seus meritos acrisolados pela historia ela assim premia a virtude muitas vezes perseguida restituindo à veneração dos homens a memoria daquelles que della se fizeram dignos152 Os termos utilizados por Barboza assinalam a característica de verdadeira devoção ao altar da pátria que é sintomática ao esforço de construção nacional A narrativa construída a partir da historiografia do período buscava assumir um caráter de fundo emotivo cuja característica é de uma veneração a monumentos nacionais o 145 ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 146 GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado A cultura histórica oitocentista a constituição de uma me mória disciplinar In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesquisa Porto Alegre UFRGS 2003 p11 147 BARBOZA Op cit 148 Ibidem 149 Para Cezar a historia magistra vitae não é apenas um adágio erudito ela é também um princípio organizador que justifica e ao mesmo tempo orienta as investigações do IHGB Eternizar salvar os fatos são fórmulas que provêm desse princípio CEZAR Temístocles Lição sobre a escrita da história Historiografia e nação no Brasil do século XIX In Diálogos DHIUEM v 8 n 1 p14 Disponível em httpwwwdialogosuembrincludegetdocphpid436article142modepdf 150 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 151 Ibidem 152 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 Horizontes Identitários 64 que aproxima a questão da identidade nacional de um sentido religioso153 Os símbolos as bandeiras os hinos os heróis enfim tudo isso relaciona de tal forma o sentimento nacional à religião que o nacionalismo já foi inclusive definido como religião moderna154 A proximidade entre a definição do herói supostamente laico e o santo reside no fato de ambos assumirem papel de paradigma Ou seja é através da comparação dos atos meramente humanos com tais paradigmas que se obtém sentido propósito e valor O passado tornase objeto de veneração A ideia de culto aos ancestrais revela a proximidade com a religião que é inerente ao sentimento nacional e que expressa a motivação por trás da devoção em que o mesmo implica155 O nacionalismo que a narrativa nacional estimula em essência é um mecanismo capacitado e privilegiado para promover a lealdade cívica através de uma ligação de caráter emotivo156 Assim dentro de um espírito de lealdade cívica o IHGB seria uma instituição encarregada como em outras nações de eternisar pela historia os factos memoraveis da patria salvandoos da voragem dos tempos157 Logo Barboza explicita o sentido da afirmação do exemplo pois na vida dos grandes homens aprendese a conhecer as applicações da honra apreciar a gloria e a affrontar os perigos que muitas vezes 153 Gellner Baseandose em Durkheim diz que no culto religioso o que a sociedade adora é a sua própria imagem camuflada A proximidade é reveladora numa era nacionalista as sociedades ado ramse de forma aberta e descarada desprezando o disfarce Em Nuremberg a Alemanha nazi não adorava a si própria fingindo adorar Deus ou mesmo Wotan adoravase abertamente Sobre o assun to ainda refere Gellner que a autoidolatria social às vezes violenta e impetuosa e outras moderada e evasiva é agora uma autoidolatria coletiva abertamente declarada os nacionalismos tem idéias próprias e seleções que mesmo quando são rigorosamente laicas podem ser profundamente deforma doras e enganadoras GELLNER Ernest Nações e nacionalismo Lisboa Gradiva 1993 p 8990 154 Pode ser considerado ainda que com algumas reservas que o nacionalismo é a religião da mo dernidade Nesse sentido o relativo declínio das religiões sobrenaturais contribuiu para a emergência da religião civil Há uma sacralização de certos aspectos da vida em comunidade por meio de ritos públicos liturgias políticas ou civis e devoções populares elaborados para conferir poder e fortalecer a identidade e a ordem em sociedades heterogêneas GINER S La religion civil In Diálogo Filosófico setdez 1991 n21 p 359360 APUD GUIBERNAU Montserrat Nacionalismos o estado nacional e o nacionalismo do séc XX Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p 55 155 Em concordância Hobsbawm afirma que houve uma crescente identificação do nacionalismo com a religião e que os liames entre a consciência nacional e a religião podem ser estreitos Essa seme lhança não é surpreendente já que a religião é um antigo e experimentado método de estabelecer uma comunhão através de uma prática comum e de uma irmandade entre pessoas que de outro modo não teriam nada em comum Sendo assim exercia a mesma função que Stuart Hall atribui à narrativa nacional HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p 8283 156 Nesse sentido Hobsbawm afirma que mesmo que o Estado ainda não enfrentasse ameaças sérias à sua legitimidade e coesão nem forças poderosas reais de subversão o mero declínio dos liames sóciopolíticos tornava imperativo formular e inculcar novas formas de lealdade cívica uma religião cívica nas palavras de Rousseau visto que outras lealdades potenciais eram agora capazes de ex pressão política Pois que Estado poderia sentirse seguro na era das revoluções do liberalismo do nacionalismo da democratização e da ascensão dos movimentos operários Ibid p106 157 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 Salah H Khaled Jr 65 são causa de maior gloria158 O primeiro secretário do IHGB estava lançando a pedra fundamental de uma verdadeira missão de fé O culto à nação estava por ser instaurado159 Sua base estava em um modelo tradicional de historia magistra cujo trabalho dos historiadores devia antes de tudo servir à nação a partir da exibição ou ressurreição de figuras exemplares160 Barboza literalmente deplorava o que ele chamava de fria indifferença sobre os pontos de tanto interesse a gloria nacional161 Ele questiona se não terão apparecido neste fertil continente varões preclaros por diversas qualidades que mereção os cuidados do circunspecto historiador e que se possão offerecer às nascentes gerações como typos de grandes virtudes162 Parece haver um sentido sobretudo pedagógico na confecção desse passado pois Barboza entendia que história verídica do país ofereceria profícuas lições aos cidadãos brasileiros no exercício de seus deveres163 A história estava longe portanto de apenas narrar ou representar o passado pois introduzia um conjunto de estímulos à vocação cívica164 Barboza diz que Elles de certo farão o melhor uso dos seus estudos sobre a historia da patria expurgada de tantos erros enriquecendo os seus espiritos de conhecimentos interessantissimos que lhes sirvão nos empregos a que forem chamados pelos votos de seus concidadãos Da combinação dessas idéas assim adquiridas nascerão principios de que deduzão novos conhecimentos que illustrem a carreira de sua vida tornando mais proficuos os seus serviços em beneficio da patria165 158 Ibidem 159 De acordo com RENAN a nação assim como o indivíduo é o ponto culminante de uma série de eventos sacrifício e devoção Nesse sentido o autor afirma que de todos os cultos o dos ancestrais é o mais legítimo pois são eles que nos fizeram o que somos É através de um passado repleto de gló rias grandes homens e heróis que se constitui o capital social no qual se baseia a ideia nacional assim como na expectativa de um futuro em comum RENAN Ernest Que és una nación Madrid CEC 1982 Versão em inglês do texto disponível em httpwwwcoopereduhumanitiescorehss3erenan html 160 CEZAR afirma que Portadora de exempla todos positivos a biografia dos grandes homens é um projeto de ordem historiográfica muitas vezes provado anteriormente Não se trata de uma posição irrefletida mas de um sinônimo aproximado do movimento da história O mundo se transforma graças aos grandes homens CEZAR Temístocles Lição sobre a escrita da história Historiografia e nação no Brasil do século XIX In Diálogos DHIUEM v 8 n 1 p25 Disponível em httpwwwdialogos uembrincludegetdocphpid436article142modepdf 161 BARBOZA Op cit 162 Ibidem 163 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 164 Tratavase segundo Guimarães de consolidar um imaginário nacional capaz de fundamentar ações concretas GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado De Paris ao Rio de Janeiro a institucionalização da escrita da história In Acervo v04 n 01 p138 165 BARBOZA Op cit Horizontes Identitários 66 Essa história decididamente nacional de acordo com um viés específico tinha portanto vocação essencialmente formativa preparatória para o serviço público166 Ora evidente que se a história passava a ser a encarregada da pedagogia que constrói o sujeito desejado pelo EstadoNação ela devia fazer isso a partir da noção de exemplo O passado exercia portanto a partir de uma visão pragmática que o constituía verdadeira função exemplar e pedagógica sobre o presente Eis aí a fundação de sentidos que uma narrativa nacional permite167 Para constituir esse passado histórico munido de uma pretensão exemplar os diversos autores que colaboravam para a missão patriótica do IHGB recolheram uma série de elementos objetivos concretos e elementos extraídos da dimensão da memória que depois foram submetidos a uma reordenação de modo a oferecer um sentido à nacionalidade e através de uma narrativa nacional construir uma verdadeira memória nacional168 Ou seja o passado era investigado a partir de escolhas que implicavam em critérios de acordo com os objetivos do presente169 166 Nesse sentido Wehling ressaltou o aspecto verdadeiramente pragmático e até mesmo profético da atividade do historiador Januário da Cunha Barboza chega a afirmar que a interpretação da his tória brasileira permitiria a previsão do futuro do país o conhecimento histórico ademais devia ser aplicado ao aperfeiçoamento da realidade social os instrumentos para isso eram os próprios estudos monográficos sobre a história brasileira e as monografias biográficas que tinham declarada mente cunho pedagógico em especial para o exercício de funções públicas WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p43 167 Para Reis a narrativa do IHGB deveria eternizar os fatos memoráveis da pátria e salvar do esque cimento os nomes dos seus melhores filhos Para isso deveria coletar e publicar os documentos rele vantes para a história do Brasil incentivar os estudos históricos o IHGB será o lugar privilegiado da produção histórica durante o século XIX lugar que condicionará as reconstruções históricas as inter pretações as visões do Brasil e da questão nacional REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p26 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosreis varnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB 5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibo okresulvonepageqffalse 168 Em relação ao trabalho do IHGB e à obra de Varnhagen GUIMARÃES afirma que tratase de uma História submetida a uma memória que lê o passado segundo as construções e demandas do presen te Através deste procedimento de transformar as lembranças do passado em um relato organizado e coerente produzse sentido e significado para a vida coletiva pela via de valores como os de pertenci mento a um grupo legitimidade e autoridade da nova ordem em constituição assim como a confiança capaz de sedimentar os projetos para a vida coletiva no futuro quer no sentido de manutenção quer no sentido de transformação GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado A cultura histórica oitocentista a cons tituição de uma memória disciplinar In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesquisa Porto Alegre UFRGS 2003 p23 169 Odalia comenta que uma Nação para ser considerada como tal deve ter unidade Surpreendamos portanto essa unidade nos escaninhos em que se esconde remexamos todos os recantos em que ela pode se esconder e depois a revelemos ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997p49 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf Salah H Khaled Jr 67 Sendo assim ao comporse uma narrativa nacional é fundada a memória coletiva desse grupo particular que é a nação cuja característica é de profunda ligação com uma instituição específica o Estado Nacional Fundase assim o sentimento de identidade do indivíduo em torno dessa memória nacional a qual configura uma identidade nacional garantindo que o plebiscito diário170 seja continuamente favorável devido a uma memória de caráter afetivo que vincula e que une o que antes era disperso171 Sem dúvida o poder exercido pelos historiadores era verdadeiramente assombroso172 Um poder que se articulava fundamentalmente a ideia de construção da nação através da narrativa nacional que configurava uma memória nacional173 170 RENAN afirma que são dois os elementos que constituem o que ele chama de princípio espiritual definidor da nação de um lado o passado a posse de um rico legado de memórias de outro no pre sente o consentimento o desejo de viver em conjunto a vontade de perpetuar a herança recebida Conforme o autor uma nação é uma solidariedade em larga escala constituída pelo sentimento sobre os sacrifícios feitos no passado e aqueles que se está preparado para fazer no futuro Ela pressupõe um passado no entanto no presente se faz tangível por um fato o consentimento claramente expres sado no desejo de desfrutar de uma vida comum Para Renan a nacionalidade é algo sentimental e a nação uma alma um princípio espiritual Daí decorre a sua famosa definição a existência de uma nação é um plebiscito diário Sendo assim o autor afirma que uma grande congregação de homens de mente saudável e bom coração cria o tipo de consciência moral que chamamos de nação Desde que essa consciência moral dê prova de sua força pelos sacrifícios que exige do indivíduo em troca de benefícios para a comunidade ela é legítima Logo o que determina a existência de uma nação é a vontade de persistir como comunidade que uma população demonstra RENAN Ernest Que és una nación Madrid CEC 1982 p38 Versão em inglês do texto disponível em httpwwwcooperedu humanitiescorehss3erenanhtml 171 Por isso Guimarães pondera que sendo a história oitocentista narrativa por excelência da legitimi dade nacional deve ensinar de forma organizada o passado necessário para a produção de sujeitos nacionais que se acreditam parte de uma comunidade que tem em comum tradições culturais e um passado de realizações GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado A cultura histórica oitocentista a cons tituição de uma memória disciplinar In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesquisa Porto Alegre UFRGS 2003 p18 172 Nesse sentido Cezar afirma que Se a história faz os grandes homens então os historiadores que fazem a história que a purificam são os verdadeiros mestres do jogo Fazedores da história eles controlam os destinos dos grandes homens ou dito de outro modo os vivos controlam os mortos e os mortos servem aos vivos Eis uma variação da religião historiadora adotada no IHGB Resta saber se o grande homem é um herói acabado ou um candidato a herói Independente da resposta os historiado res do IHGB têm o poder de decidir Eles se colocam assim em uma posição quase divina Criam sua própria providência CEZAR Temístocles Lição sobre a escrita da história Historiografia e nação no Brasil do século XIX In Diálogos DHIUEM v 8 n 1 p18 Disponível em httpwwwdialogosuem brincludegetdocphpid436article142modepdf 173 Como diz OLIVEN a memória nacional referese a uma entidade mais ampla e genérica a nação aproximandose mais da ideologia e por conseguinte estendendose à sociedade como um todo e definindose como universal OLIVEN Ruben George Mitologias da Nação In FÉLIX Loiva Otero e ELMIR Cláudio P org Mitos e heróis construção de imaginários Porto Alegre UFRGS 1998 p30 Cezar afirma que Não há dúvida que o IHGB produziu uma memória nacional CEZAR Temístocles Presentismo memória e poesia Noções da escrita da história no Brasil oitocentista In PESAVENTO Sandra Jatahy org Escrita linguagem objetos leituras de história cultural Bauru SP EDUSC 2004 p55 Segundo Guimarães coube ao instituto portanto elaborar uma forma específica de lem brança própria das culturas ocidentais no momento da construção dos diferentes projetos nacionais GUIMARÃES Op cit p23 Horizontes Identitários 68 Como já foi afirmado anteriormente parte fundamental da constituição de uma nação é dotála de uma tradição de um passado comum e porque não dizer da promessa de um futuro brilhante174 Entretanto como lembra Oliven a construção de uma memória nacional e de uma identidade nacional longe de ser consensual está ligada aos grupos que são vistos como detendo poder e autoridade legítima para se erigirem nos guardiões da memória175 A narrativa nacional dessa forma gera uma memória manipulada que sacraliza que celebra e que comemora a nação Uma memória que forma e dirige a identidade nacional que transformase em tradição com significação quase religiosa176 Em outras palavras buscavase a instauração de um verdadeiro culto à memória nacional garantindo a consolidação da ordem pela elite imperial a partir de um pensamento conservador que organizava disciplinava e sistematizava a memória conferindo a ela o sentido que lhe interessava promover a ideia de adesão à nação177 Eis o sentido da narrativa nacional formar orientar e convencer através do seu sentido exemplar e assim incentivar fidelidade à nação178 O discurso da narrativa nacional objetiva o prazer do ouvinteleitor a sua sedução Pretende obter o seu comprometimento emocional e identificação pessoal Dessa forma a partir da 174 Como diz Anderson se é amplamente reconhecido que os EstadosNação são novos e históricos as nações a que eles dão expressão política assomam de um passado imemorial e ainda mais impor tante deslizam para um futuro ilimitado A mágica do nacionalismo consiste em transformar o acaso em destino ANDERSON Benedict Nação e consciência nacional São Paulo Ática 1989 p21 Stuart Hall também faz afirmação semelhante ao dizer que o discurso nacional constrói identidades que são colocadas de modo ambíguo entre o passado e o futuro Ele se equilibra entre a tentação por retornar a glórias passadas e o impulso por avançar ainda mais em direção à modernidade HALL Stuart A identidade cultural na pósmodernidade 4a ed Rio de Janeiro DPA 2000p 56 175 OLIVEN Ruben George Mitologias da Nação In FÉLIX Loiva Otero e ELMIR Cláudio P org Mitos e heróis construção de imaginários Porto Alegre UFRGS 1998 p30 176 Para obter essa significação de acordo com Cezar o principal é que a conversão de uma memória ou de um passado qualquer seja uma lembrança de glória CEZAR Temístocles Presentismo memó ria e poesia Noções da escrita da história no Brasil oitocentista In PESAVENTO Sandra Jatahy org Escrita linguagem objetos leituras de história cultural Bauru SP EDUSC 2004 p57 177 De acordo com Cezar se poderia dizer que o IHGB tentou organizar todos os traços dispersos da memória do Brasil e os representar à sua maneira isto é historicamente Como o autor lembra tratavase portanto mais do que uma preservação mas sim de uma construção Estabeleciase um recorte de acordo com o interesse maior da nação e a partir daí era escrita a história Cezar afirma que a própria historiografia do período colonial tal como ela foi concebida pelo IHGB foi marcada por um conjunto de esquecimentos ausências e supressões cujo resultado paradoxalmente conferiu um sentido histórico à história brasileira Cezar fala em disciplinarização e arquivamento da memória Ibid p56 178 Cezar salienta que a história era um campo disciplinar em formação Seu discurso era marcado por uma retórica da nacionalidade um discurso historiográfico e político extremamente persuasivo prati cado tanto no IHGB como fora dele tanto na história como em outros domínios CEZAR Temístocles Américo Correa A geografia servia antes de tudo para unificar o Império escrita da história e saber geográfico no Brasil oitocentista In Ágora Santa Cruz do Sul v 11 n 1 janjun 2005 p95 Salah H Khaled Jr 69 identificação a individualidade se diluí em um organismo maior unido por laços de filiação sentimental aos antepassados e compatriotas e parte integrante de um glorioso porvir Como já frisado anteriormente a significação é praticamente religiosa179 O IHGB revestiase assim de uma verdadeira missão de fé cabia a ele conforme o discurso fundador de Barboza salvar da indigna obscuridade em que jazião até hoje muitas memorias da patria e os nomes de seus melhores filhos180 Para Barboza essa missão sagrada atrairia inclusive vários contribuintes de renome que se juntariam aos esforços do instituto pela glória nacional181 Dessa forma organizavam se os esforços para a invenção de uma fundamentação histórica para existência do EstadoNação que passava a estar munido de um referencial que potencializava em certa medida a coesão inerente ao nacionalismo moderno O otimismo exaltado por Barboza é sem dúvida contagiante As forças reunidas dão resultados prodigiosos e quando os que se reunem em tão nobre associação apparecem possuidos do mais encendrado patriotismo eu não duvido preconisar hum honroso successo à fundação do nosso instituto historico e geographico182 Diante desta frase não há como deixar de constatar que a glorificação não era somente do passado mas também do presente183 124 A narrativa nacional escrita pelo sujeito nacional o brasileiro Escrever a narrativa nacional não significa apenas fundar a noção de uma nação internamente mas também obter reconhecimento junto ao mundo civilizado Tratase de um esforço de construção e justificação da nação perante si mesma e também perante o restante do mundo como demonstra o discurso de Barboza 179 Não é por acaso que Nora faz a seguinte afirmação História santa porque nação santa É pela nação que nossa memória se manteve no sagrado NORA Pierre Entre Memória e História a proble mática dos lugares In Projeto História São Paulo PUC n 10 p11 dezembro de 1993 Disponível em httpwwwpucspbrprojetohistoriadownloadsrevistaPHistoria10pdf 180 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 181 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 182 Ibidem 183 Cezar reflete que podese pensar que o próprio IHGB enquanto instituição encarne uma figura de herói um herói que seria um agente coletivo Seus gestos heróicos seriam sua fundação suas tarefas históricas consistiriam em salvar o passado nacional e em construir uma memória nacional Em resu mo fornecer à nação as luzes de que ela precisa CEZAR Temístocles Lição sobre a escrita da histó ria Historiografia e nação no Brasil do século XIX In Diálogos DHIUEM v 8 n 1 p23 Disponível em httpwwwdialogosuembrincludegetdocphpid436article142modepdf Horizontes Identitários 70 Eisnos hoje congregados para encetarmos os trabalhos do proposto Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e desta arte mostramos às nações cultas que também presamos a gloria da patria propondo nos a concentrar em huma litteraria associação os diversos factos da nossa historia e os esclarecimentos geographicos do nosso paiz para que possão ser offerecidos ao conhecimento do mundo purificados dos erros e inexactidões que os manchão em muitos impressos tanto nacionaes como estrangeiros184 A história portanto é vista pelo IHGB como objeto de estima por parte das nações cultas e o Brasil como aspirante a tal condição deve promover o seu conhecimento Percebese uma intenção de alçar o país ao progresso e o investimento na história faz parte de tal movimento no âmbito da intelectualidade Além disso a história do IHGB também exerce função corretiva De acordo com essa pretensão cabe ao IHGB estabelecer uma história purificada em conformidade com o projeto do BrasilNação em andamento o qual não se compatibiliza com as versões anteriores elaboradas por estrangeiros185 A necessidade de um esforço corretivo e de uma história verdadeiramente nacional no sentido pleno da palavra leva Barboza reiterar o assunto com pesar O nosso silencio reprehensivel de certo em materia que tanto affecta a honra da patria tem dado occasião a que os historiadores huns de outros se copiem propagandose por isso muitas inexactidões que deverião ser immediatamente corrigidas186 Para o autor os erros causavam inclusive que o coração do verdadeiro patriota se apertasse no peito187 Barboza não tinha dúvida que escrever a história do Brasil a história nacional devia ser uma missão encarregada aos brasileiros188 Afinal pondera 184 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 185 Cezar afirma que esse processo de purificação é o primeiro passo rumo à transformação daquilo que outrora era lido como história em fonte histórica com a meta de servir de base à escrita da história da pátria CEZAR Op cit p14 Grifo nosso Escrita esta que é considerada por Cezar uma invenção Para o autor As primeiras disposições epistemológicas que devem dirigir esse processo inventivo são a correção dos trabalhos já publicados a definição do que é uma fonte e a narração das ações históricas em um plano que apreenda o geral CEZAR Temístocles Lição sobre a escrita da história historiografia e nação no Brasil do século XIX In Diálogos DHIUEM v 8 n 1 p 1617 Disponível em httpwwwdialogosuembrincludegetdocphpid436article142modepdf 186 BARBOZA Opcit 187 Ibidem 188 Para CEZAR Porém e essa é a especificidade do caso brasileiro antes é preciso inventar a história dessa nação pois tudo o que existe até aquele momento são produções feitas sem as diretivas corretas CEZAR Op cit p 1617 Grifo nosso Disponível em httpwwwdialogosuembrinclude getdocphpid436article142modepdf Salah H Khaled Jr 71 ele deixaremos sempre ao genio especulador dos estrangeiros o escrever a nossa historia sem aquelle acerto que melhor póde conseguir hum escriptor nacional189 Cumpre ressaltar que não havia uma História do Brasil além da escrita pelo poeta inglês Robert Southey a qual contava uma história que não interessava às elites veicular e que com certeza não era propícia ao fomento da identidade nacional190 A história proposta por Barboza ao contrário é sobretudo brasileira ainda que não negue o vínculo com Portugal191 O diferencial necessário entre brasileiros e portugueses na proposta de Barboza revelase por exemplo a partir da seguinte reflexão Nos tempos da passada monarchia os escriptos brasileiros que assim então se publicavão punhão a gloria de seus autores em communhão com a dos Portuguezes e como por tantas difficuldades erão em muito menor numero ficavão absorvidos pelo credito litterario da metropole que bem pouco reflectia sobre o Brasil192 A relação com Portugal é um permanente ponto de tensão para a historiografia dos oitocentos como será visto posteriormente Se de um lado a ancestralidade portuguesa representa o vínculo com o mundo dito civilizado e o diferencial entre a elite e o restante dos habitantes do país de outro lado é necessária a distinção entre brasileiros e portugueses para produzir a diferença que caracterizaria o Brasil como a nação independente que se deseja construir Essa tensão fazia com que Portugal sempre fosse um ponto limítrofe na narrativa nacional exigindo grande cuidado especialmente em momentos em que se estabelecia o conflito entre a metrópole e a colônia193 189 BARBOZA Op cit 190 A História do Brasil de Robert Southey escrita sem que o autor jamais estivesse estado no país era repleta de críticas ao experimento português nas Américas Apesar de admirar a miscigenação racial e o que ele via como uma política de integração étnica no Reino Português censurava duramente os vícios da aristocracia escravocrata o poder dos potentados locais e a ausência de laços comunitários Viu com otimismo a chegada da Corte portuguesa cuja missão de acordo com ele seria civilizar o país para o comércio com a Inglaterra Ver o artigo CEZAR Temístocles O poeta e o historiador Southey e Varnhagen e a experiência historiográfica no Brasil do século XIX In História Unisinos 11 setembro dezembro de 2007 Disponível em httpwwwunisinosbrpublicacoescientificasimagesstoriesPubli cacoeshistv11n3306a312art02cezar5Brev5Dpdf 191 Cezar reflete que em uma nova fase de sua história na qual o Brasil é independente de Portugal o brasileiros estão finalmente capacitados a empreender a recuperação de seu passado CEZAR Op cit p18 Disponível em httpwwwunisinosbrpublicacoescientificasimagesstoriesPublicacoes histv11n3306a312art02cezar5Brev5Dpdf 192 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 193 Wehling ressalta a orientação moderada do IHGB criticando na colonização portuguesa as dis torções e abusos mais evidentes mas elogiando grande variedade de aspectos WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Horizontes Identitários 72 De qualquer forma em meio a essa e a tantas outras tensões os membros do IHGB se lançavam à missão sagrada definida por Cezar como sacerdotal do historiador erigir a nação a partir do seu passado de glórias Isso fica evidente nos trechos finais do discurso de Barboza pensado pelo autor como instrumento apto a despertar a vocação cívica a ser exercida pela escrita da história Ah o meu coração se dilata dentro no peito só à idéa de que este IHG se occupará desveladamente em erguer à gloria do Brasil hum monumento que lhe faltava e do qual emanará néao pequena honra aos que agora aqui reunidos se offerecem às vistas da nação como opifices do magesto edifico da nossa historia Desculpaime Srs se na fraca exposição das vantagens que podem emanar da fundação do nosso instituto eu mais tive em vista a gloria nacional que sempre me fez bater o coração em peito brasileiro do que a difficuldade das emprezas a que nos enderessamos Este magestoso edificio tem por fundamento o amor da patria e o amor das letras Sem trabalho sem persistencia nas grandes emprezas jamais se conseguirá a gloria que abrilhanta os nomes dos bons servidores da patria194 Como Cezar afirma a lição de Januário da Cunha Barboza mostra como a retórica da história pode ser útil pode servir Servir em primeiro lugar e acima de qualquer outra coisa à nação195 O IHGB dava assim os primeiros passos para o desenvolvimento de um saber que na verdade é muito mais caracterizado pela sua pretensão transformadora da realidade do que pela capacidade de efetivamente conhecer o objeto por ele investigado Faltava apenas delimitar melhor esse objeto os parâmetros da sua escrita e os norteadores em torno das quais as intenções pragmáticas do Instituto e do Império poderiam ser contempladas O artigo de Karl Friedrich Von Martius correspondeu a tais expectativas como será discutido a seguir 13 Martius como escrever a história do Brasil o texto de Martius é apreendido pelos historiadores brasileiros do século XIX como uma espécie de manual de introdução aos estudos históricos Temístocles Cezar Fronteira 1999 p41 194 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 195 CEZAR Temístocles Lição sobre a escrita da história Historiografia e nação no Brasil do século XIX In Diálogos DHIUEM v 8 n 1 p27 Disponível em httpwwwdialogosuembrincludegetdoc phpid436article142modepdf Salah H Khaled Jr 73 131 O marco fundador da nação O discurso de Januário da Cunha Barboza ainda que provido de valor fundacional e diretivo não constitui a rigor um guia para a elaboração da história da nação Sua vocação é quase que inspiradora uma missão de fé ou um chamado às armas Portanto uma lacuna devia ser preenchida Parte de uma pretensão científica implica na definição de um objeto e na sua delimitação Portanto havia necessidade de um marco fundador teórico para os encarregados de construir simbolicamente a nação Esse guia eventualmente veio a ser ofertado aos membros do Instituto e se constituiu de fato no parâmetro para a escrita da história nos oitocentos pois correspondeu a uma série de anseios que os sócios tinham Havia uma vontade de construir a nação Assim como na Europa dos oitocentos a história tinha papel importante e até mesmo fundamental a desempenhar na elaboração de uma narrativa nacional Entretanto a narrativa nacional brasileira teria que levar em conta uma série de particularidades locais tais como o passado colonial o regime monárquico em afirmação a existência da escravidão e de uma população mestiça196 Seria esse o pano de fundo no qual haveria de se desenrolar o enredo da narrativa nacional brasileira Dentro de um quadro que se apresentava problemático um dos pontos mais delicados era provavelmente a condição de ex colônia Condição esta que havia legado ao país um quadro identitário complexo e desfavorável à constituição de uma nação brasileira Portanto o projeto de constituir o BrasilNação em sintonia com o progresso em moldes europeus teria que lidar com obstáculos consideráveis o que não era ignorado pelas elites do país197 Em 14 de novembro de 1840 foi proposto um concurso acadêmico por Januário da Cunha Barboza Seu objetivo era escolher um plano para escrever a história do Brasil A existência de tal concurso demonstra o quanto os membros do Instituto se encontravam angustiados diante da imensa tarefa a realizar198 Fazer do Brasil uma 196 como Cezar afirma as relações entre as noções de história e nação não são homogêneas e variam de acordo com o país CEZAR Temístocles Presentismo memória e poesia Noções da escrita da história no Brasil oitocentista In PESAVENTO Sandra Jatahy org Escrita linguagem objetos leituras de história cultural Bauru SP EDUSC 2004 p 4344 197 Odalia afirma que a inteligência não a sabedoria dessas classes dominantes foi perceber ime diatamente que sua falta de vínculos por sua inércia e desinteresse com o país que herdavam de uma situação colonial lhes augurava um futuro difícil ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997p109 Dispo nível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 198 Odalia afirma que era um grande problema transformar a excolônia numa nação pois não seria por Horizontes Identitários 74 nação munidos da pretensão de atingir um modelo idealizado de civilização europeia estava longe de ser simples pois o país reunia uma série de condições problemáticas199 O sentido do concurso era o de definir um caminho um roteiro que permitisse a superação de tais obstáculos que contemplasse as diversas ambições por trás da escrita da história e também satisfizesse a sua ambição científica O naturalista bávaro Karl Friedrich Philippe Von Martius venceu a disputa em 1847 com o artigo intitulado Como se deve escrever a história do Brasil200 Considerouse que o artigo satisfazia plenamente os objetivos dos quais se encarregava o Instituto201 Originalmente publicado na revista do IHGB em 1844 o texto de Martius estabeleceu de fato as bases do que deveria ser uma história científica da nação brasileira projeto que coube posteriormente a Varnhagen executar O artigo de Martius já foi submetido a uma série de análises as quais são demasiado numerosas para que seja pertinente remontálas aqui202 Para Cezar já foi produzido um certo consenso epistemológico sobre o texto considerado o primeiro a teorizar sobre a forma de escrever a história do Brasil e pelo estabelecimento de um modelo que teria sido seguido por Varnhagen e seus sucessores203 Para Guimarães o texto de Martius forneceu as pistas que permitiram a elaboração de uma narrativa dotada de um enredo de uma fisionomia própria para a nação 204 Reis afirma que o um passe de mágica que se poderia converter uma colônia marcada por séculos de servidão e rapina gem em uma nação independente e soberana ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p16 199 Para Wehling A diferença estava na própria formação histórica brasileira passado colonial re cente instituições públicas escassas e em muitos aspectos inexistentes populações marginalizadas Homens livres pobres indígenas e escravos eram respectivamente cidadãos passivos habitantes nãocidadãos e habitantesobjeto de propriedade WEHLING Arno Estado história memória Var nhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999p88 200 O naturalista já havia estado no Brasil em missão científica tendo inclusive publicado uma obra chamada Viagem pelo Brasil conjuntamente com Johann Bapitst Von Spix que também havia inte grado a missão Apesar da formação e do interesse pelas ciências da natureza era herdeiro da tradição iluminista e sócio do IHGB desde os primórdios da instituição Ainda que um estrangeiro estava longe de ser um desconhecido CEZAR Temístocles Como deveria ser escrita a história do Brasil no século XIX Ensaio de história intelectual In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesquisa Porto Alegre UFRGS 2003 p176177 201 Ibid p 176 202 Cumpre mencionar entre outros Sílvio Romero José Honório Rodrigues Alice Canabrava Pedro Moacyr Campos e Manoel Luiz Lima Salgado Guimarães bastante referido nesta obra 203 CEZAR Temístocles Como deveria ser escrita a história do Brasil no século XIX Ensaio de história intelectual In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesquisa Porto Ale gre UFRGS 2003 204 GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado História e natureza em Von Martius esquadrinhando o Brasil para construir a Nação História Ciência e Saúde Manguinhos Rio de Janeiro v 7 n 2 2000 p 406 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS010459702000000300008 Salah H Khaled Jr 75 texto de Martius considera o que deverá fazer uma história da unidade brasileira A história do Brasil deverá ser centralizada no imperador Apesar da variedade de usos e costumes dos climas das atividades econômicas das raças e da extensão territorial o historiador deverá enfatizar a unidade205 Para efeito do recorte aqui proposto interessa verificar em que medida o artigo de Martius suscitou uma série de questões que posteriormente marcariam a narrativa nacional de Varnhagen a começar pela própria formação da população brasileira206 O desafio posto diante do IHGB era de consideráveis proporções Como elaborar uma narrativa nacional que permitisse a integração de um todo caracterizado por uma disparidade tão grande como era o caso do Brasil A magia da nação está na crença Está no fato de acreditar na sua civilização na sua história na sua cultura nacional É uma ligação de cunho afetivo que une que independentemente de sua natureza é forte e viva O Brasil estava muito longe disso Qual seria o laço a integrar um país que havia chegado perigosamente próximo da desintegração territorial durante a Regência e cujas identidades eram sobretudo regionais Um país que tinha uma composição étnica diversificada cujas questões indígena e negra afastavam do padrão que se desejava atingir Hall refere que na verdade as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos mas são formadas e transformadas no interior da representação Nós sabemos o que significa ser inglês devido ao modo como a inglesidade Englishness veio a ser representada como um conjunto de significados pela cultura nacional inglesa Seguese que uma nação não é apenas uma entidade política mas 205 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p27 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpg PA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3 oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6 jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookresul 206 Reis afirma que O problema político que os historiadores brasileiros enfrentavam teoricamen te nos anos 184050 era o da transformação da excolônia em uma nação A colônia tinha legado uma sociedade heterogênea incompatível social e etnicamente Parecia impossível estruturar uma nação a partir desse legado colonial Era preciso criar uma idéia de homem brasileiro de povo brasileiro no interior de um projeto de nação brasileira Ibid p31 Disponível parcialmente em http booksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnh agenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZ sigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookre sul Horizontes Identitários 76 algo que produz sentidos um sistema de representação cultural As pessoas não são apenas cidadãosãs legais de uma nação elas participam da idéia de nação tal como é representada em sua cultura nacional207 Para Odalia essa representação poderia ser melhor chamada de uma ficção o que entretanto não impede que seja percebida como a realidade de um consenso208 Mas qual seria a ideia de Brasil que poderia promover essa coesão dentro de uma narrativa nacional 132 As três matrizes e o assimilacionismo O artigo apresentado por Martius correspondeu em grande medida às expectativas dos membros do Instituto pois forneceu um mapa que contemplava boa parte das questões que os atormentavam Além de oferecer um guia para a narrativa nacional o texto deveria de alguma forma lidar com a tensão maior da sociedade brasileira a questão racial Martius fez desse tema a base e o problema inicial a ser atacado em seu plano para a escrita da narrativa nacional O autor estruturou seu pensamento sobre a história do Brasil a partir dos elementos que concorreram de acordo com ele para a formação do homem brasileiro Para Martius qualquer que se encarregar de escrever a História do Brasil país que tanto promete jamais deverá perder de vista quais os elementos que aí concorrerão para o desenvolvimento do homem209 Ele estava preocupado sobretudo com a questão da formação histórica Ao desenvolver seu raciocínio apresentou solução até então inédita210 para um dos problemas centrais da questão nacional brasileira 207 HALL Stuart A identidade cultural na pósmodernidade 4a ed Rio de Janeiro DPA 2000 p4849 208 Odalia afirma que a nação se apresenta como uma realidade concreta com que temos de nos haver continuamente pois dela decorre uma série de deveres e obrigações que dimanam aparentemente com uma força irresistível e não contestável de existirmos no interior da coletividade A nação apare ce pois como uma realidade com a qual mantemos uma relação direta e imediataODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 209 MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Como se deve escrever a história do Brasil In RIHGB 6 381403 1844 2ª ed p389411 210 Apesar de Southey ter anteriormente elogiado a política de integração étnica através da miscigena ção O poeta e o historiador Southey e Varnhagen e a experiência historiográfica no Brasil do século XIX In História Unisinos n11 setembrodezembro de 2007 Disponível em httpwwwunisinosbrpublicacoescientificasimagesstoriesPublicacoeshistv11n3306a312art02 cezar5Brev5Dpdf Salah H Khaled Jr 77 São porém estes elementos de natureza muito diversa tendo para a formação do homem convergido de um modo particular três raças a saber a de cor de cobre ou americana a branca ou Caucasiana e enfim a preta ou etiópica Do encontro da mescla das relações mútuas e mudanças dessas três raças formouse a atual população cuja história por isso mesmo tem um cunho muito particular211 A ênfase na ideia de uma história com cunho particular demonstra a tentativa de estabelecer o que há de propriamente nacional no Brasil Não é só a composição racial o problema mas a falta de uma identidade que seja brasileira especificamente do país212 O reconhecimento da formação peculiar do brasileiro serve a um propósito claro Estabelece uma distinção que revela a singularidade do brasileiro diante do português o que é importantíssimo para constituir uma nação brasileira213 Entretanto por outro lado o reconhecimento da contribuição negra e indígena é quase que instantaneamente relativizado pois a herança do colonizador deve ser valorizada o Português que como descobridor conquistador e Senhor poderosamente influiu naquele desenvolvimento o Português que deu as condições e garantias morais e físicas para um reino independente que o Português se apresenta como o mais poderoso e essencial motor Mas também de certo seria um grande erro para com todos os princípios da Historiografiapragmática se se desprezassem as forças dos indígenas e dos negros importados forças estas que igualmente concorreram para o desenvolvimento físico moral e civil da totalidade da população Tanto os indígenas como os negros reagiram sobre a raça predominante214 No mesmo instante que ocorre o reconhecimento por parte de Martius este afirma que há um predomínio do branco europeu ou seja do português Essa referência é necessária pois é a herança portuguesa que liga o país ao continente 211 MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Como se deve escrever a história do Brasil In RIHGB 6 381403 1844 2ª ed p389411 212 Odalia afirma que A história deve ser o espelho em que os homens de uma comunidade devem se olhar e se reconhecer Nela o que vão buscar são os traços comuns que permitem a cada indivíduo olhar o outro e reconhecerse nele são as peculiaridades que permitem ao grupo reconhecerse como grupo nacional e diferenciarse dos grupos não nacionais ODALIA Nilo As formas do mesmo en saios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p37 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 213 MARTIUS afirma que Nos pontos principais a história do Brasil será sempre a história de um ramo de Portugueses mas se ela aspirar a ser completa e merecer o nome de uma história pragmática jamais poderão ser excluídas as suas relações para com as raças Etiópica e Índia MARTIUS Op cit 214 Ibidem Horizontes Identitários 78 europeu local por excelência da civilização e parâmetro que o Brasil pretendia atingir215 A jovem nação não poderia abrir mão dessa ancestralidade pois era justamente ela que garantia o seu pedigree e logo a possibilidade de ingresso no mundo civilizado216 O Brasil Império entretanto não se contentaria em ser apenas uma extensão de Portugal O Brasil seria superior a Portugal até mesmo etnicamente Para Martius a mescla não é negativa ao contrário fortalece e engrandece a raça217 Assim a miscigenação seria um propósito arquitetado pela própria Providência Dessa forma Martius afirma que jamais nos será permitido duvidar que a vontade da Providência predestinou ao Brasil esta mescla218 Portanto não havia o que se envergonhar pois tratavase de desígnio divino219 Talvez o ponto mais importante no raciocínio desenvolvido por Martius é que eventualmente a mescla resultaria na eliminação das raças inferiores inteiramente absorvidas pela raça superior220 Portanto os brasileiros não deveriam se alarmar 215 Como diz Reis O Brasil independente queria portanto continuar a obra de Portugal pois a coloni zação portuguesa era vista como bemsucedida trouxera a civilização européia a religião cristã e tor nara produtiva uma região abandonada e desconhecida Portugal integrou o Brasil na rota da grande história REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p32 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUC pgPA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3 A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBRe ih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookresul 216 De forma semelhante Guimarães afirma que o Brasil queria continuar a história que os portugue ses fizeram na colônia A identidade da nova nação não se assentaria sobre a ruptura com a civilização portuguesa a ruptura seria somente política Os portugueses são os representantes da Europa das Luzes do progresso da razão da civilização do cristianismo O Brasil queria continuar a ter uma identidade portuguesa a jovem nação queria prosseguir na defesa desses valores APUD REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p31 Dis ponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA2 3dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortuguesa sourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab 258VasaXoibookresul 217 MARTIUS afirma que Tanto a história dos povos quanto a dos indivíduos nos mostram que o gênio da história do Mundo que conduz o gênero humano por caminhos cuja sabedoria sempre devemos reconhecer não poucas vezes lança mão de cruzar as raças para alcançar os mais sublimes fins na ordem do mundo Quem poderá negar que a nação Inglesa deve sua energia sua firmeza e perseve rança a essa mescla dos povos céltico dinamarquês romano anglosaxão e normando MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Como se deve escrever a história do Brasil In RIHGB 6 381403 1844 2ª ed p389411 218 Ibidem 219 MARTIUS diz crer que um autor filosófico penetrado das doutrinas da verdadeira humanidade e de um cristianismo esclarecido nada achará nessa opinião que possa ofender a susceptibilidade do Brasileiros Ibidem 220 É importante referir que Odalia equivocadamente atribuiu a Varnhagen a formulação original de uma teoria do branqueamento da população brasileira quando de fato que o fez primeiro foi Martius ODA LIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p96 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownload textoup000007pdf Salah H Khaled Jr 79 diante da composição étnica do país pois a síntese através da miscigenação viria efetivamente a erradicar a diferença221 Martius reconhece a existência de um problema na constituição da nação a diversidade racial e sinaliza para um futuro no qual esse obstáculo será removido Dessa forma resolve dois problemas inerentes à configuração de uma narrativa nacional brasileira com apenas um golpe através da lógica assimilacionista O sangue Português em um poderoso rio deverá absorver os pequenos confluentes das raças Índia e Etiópica Em a classe baixa tem lugar esta mescla e como em todos os países se formam as classes superiores dos elementos das inferiores e por meio delas se vivificam e fortalecem assim se prepara atualmente na última classe da população Brasileira essa mescla de raças que daí a séculos influirá poderosamente sobre as classes elevadas e lhes comunicará aquela atividade histórica para a qual o Império do Brasil é chamado222 Dessa forma Martius atribuiu sentido ao que parecia caótico o problema da miscigenação racial O modelo apresentado por Martius efetivamente reconhece para depois entretanto sinalizar a anulação da diferença A diferença precisava ser eventualmente anulada para que o brasileiro pudesse pensarse como ocidental como europeu único modelo civilizado Ao mesmo tempo que outro o Brasil aspirava à condição de mesmo Há uma inclusão das demais matrizes na narrativa nacional mas não um reconhecimento da diversidade pois esse reconhecimento implica na sua eventual eliminação por completo223 Mesmo assim em certa medida em Martius há o desenvolvimento de um modelo para o Brasil e não a mera implantação de um modelo alienígena e inadequado Portanto o texto fundador da narrativa nacional ofereceu uma explicação para uma situação inquietante às pretensões nacionais que agora era elevada à condição de sustentáculo às próprias ambições que o país 221 Odalia afirma que A etnia se purifica pela conquista que legitima Os senhores da terra são também os senhores que podem impor sua etnia A Nação assim se define por uma etnia a do grupo vencedor O grupo vencido participa da história pela única porta que se lhes deixa aberta a miscigenação Ibid p39 222 MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Como se deve escrever a história do Brasil In RIHGB 6 381403 1844 2ª ed p389411 223 Odalia afirma que A Nação se esboça portanto como a realização de uma etnia em que as outras serão lenta e deliberadamente absorvidas de maneira que o futuro da Nação se confunde com essa etnia e seus valores ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p39 Disponível em httpwwwdominiopu blicogovbrdownloadtextoup000007pdf Horizontes Identitários 80 tinha com conotação positiva pois implicava no aperfeiçoamento da raça224 Martius forneceu aos brasileiros uma nova forma de ver o Brasil e de se ver no Brasil Ao fazêlo Martius inaugurou uma longa tradição que posteriormente ficou conhecida como democracia racial e o estabeleceu de forma muito sólida Ao que parece foi o primeiro a fazer isso Varnhagen apesar de escrever em sintonia com as ideias de Martius sobre o tema dedicou pouco espaço ao assunto em sua obra e se limitou a reproduzir a esperança de eventual assimilação e desaparecimento das raças inferiores Se as raças inferiores deveriam ser integradas o mesmo deveria valer para a sua história De forma que Martius defendia a integração da história indígena à história nacional Para ele os índios a que se referia como raça cor de cobre e sua história faziam parte da história do Brasil225 Esse foi um ponto seguido com certa relutância por Varnhagen que somente tratou especificamente dos índios no oitavo capítulo da primeira edição de sua História Geral do Brasil e mesmo assim em outros termos226 Por outro lado a teoria desenvolvida por Martius de uma degeneração por ele referida como ruína dos povos foi devidamente incorporada por Varnhagen Essa ideia essencialmente articulase em torno do princípio de que os índios encontrados pelos portugueses seriam um resquício decadente de uma civilização outrora próspera que constituiria um grande e único povo227 Para Martius caberia ao IHGB desvendar essa história Varnhagen explorou essa hipótese a partir da audaciosa afirmação de que havia uma relação entre os tupis e os egípcios Entretanto Reis assinala que para 224 Odalia reflete que aos vencidos só resta uma participação passiva no projeto da nova Nação e apenas na medida em que se deixarem ou forem absorvidos e integrados racial e culturalmente pelo branco única fonte de legitimação pois dele decorrem os valores básicos da nova nacionalidade Ibid p47 225 MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Como se deve escrever a história do Brasil In RIHGB 6 381403 1844 2ª ed p389411 226 Certamente que essa afirmação não era fruto de mero acaso Para Reis o Brasil queria continuar a ser português e para isso não hesitará em recusar ou reprimir o seu lado brasileiro Esse Brasil portu guês será defendido e produzido pelas elites brancas pelo Estado pela Coroa O novo país será uma continuação da colônia A diferença é que a coroa não é mais exterior mas interior E é portuguesa ainda REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p32 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUC pgPA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3 A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBRe ih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookresul 227 Para Wehling há aqui uma crítica ao naturalismo de Rousseau em vez de caracterizar o índio como o homem primitivo foi visto como o final de um processo de degradação cultural WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p38 Salah H Khaled Jr 81 Varnhagen o passado indígena deveria ser sepultado ou lembrado com horror228 133 A exaltação dos feitos portugueses e a repulsa aos atos de rebeldia A exaltação da virtude dos portugueses das suas imensas capacidades e vocações heróicas encontra raiz no texto de Martius Quando fala nos portugueses o autor não poupa elogios a começar pelo relato do triunfo civilizatório frente à adversidade Martius diz que Quando os Portugueses descobriram o Brasil e nele se estabeleceram acharam os Indígenas proporcionalmente em tão diminuto número e profundo aviltamento que nas suas recém fundadas colônias podiam desenvolver e estenderse quase sem importarse dos autóctones Estes exerceram sobre os colonos uma influência negativa tão somente por quanto só os forçaram a acautelarse contra as suas invasões hostis e por isso criaram uma instituição singular de defesa o Sistema das Milícias229 A ideia de triunfo e feito heroico no processo de colonização do país é outra característica que presente em Martius foi explorada até a exaustão na obra de Varnhagen Martius vê a colonização como um feito heroico que era antes uma conseqüência das grandes descobertas e empresas comerciais dos Portugueses sobre a Costa Ocidental da África do Cabo Moçambique e Índia As mesmas razões gerais e poderosas que imprimiram a uma das nações mais pequenas da Europa um movimento tão poderoso que a impeliram para uma atividade que faz época na história universal induziramna igualmente à emigração para o Brasil230 Varnhagen não apreciava a associação que era feita entre a sua História Geral do Brasil e o artigo do naturalista alemão231 Entretanto o fato é que mesmo que Varnhagen 228 Segundo Reis Varnhagen pensa que Esse é o passado do Brasil que deverá ser esquecido ou que não deverá influenciar na construção do futuro da nação brasileira se preservado Deverá ser preservado como antimodelo como modelo daquilo que o Brasil não quer ser REIS Op cit p37 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgP A23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortugues asourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8 Ab258VasaXoibookresul 229 MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Como se deve escrever a história do Brasil In RIHGB 6 381403 1844 2ª ed pp389411 230 Ibidem 231 Segundo Wehling Sua própria disposição aliás era de não seguir servilmente nenhum mode Horizontes Identitários 82 detestasse a comparação ou melhor a relação direta que se fazia entre a sua obra e o artigo de Martius é inegável que a estrutura de seu texto reflete as estratégias que Martius estipulou232 Isso é facilmente demonstrado pela leitura e comparação de ambas as obras Por exemplo Martius discutiu as vantagens oferecidas pelo Sistema das Milícias como os sucessos das armas portuguesas contra diversos invasores os Franceses no Maranhão e Rio de Janeiro os Holandeses em uma grande parte da Costa Oriental233 e portanto exaltou o triunfo e o heroísmo dos conquistadores deparados com a ameaça representada pelo outro Estabelecidos os portugueses no litoral onde ao princípio se estabeleceu a civilização Européia mais e mais para o interior aonde ninguém reconheciam acima de si venciam os Índios à força de armas ou induziamnos com astúcia para servilos Assim vemos que a posição guerreira em que se colocou o colono Português para com o Índio contribuiu muito a rápida descoberta do interior do país como igualmente para a extensão do domínio Português234 O português é duplamente glorificado tanto pela sua astúcia quanto pela sua disposição para a guerra que inclusive explica a extensão territorial do país Entretanto para Martius essa autonomia e disposição favorecia o desenvolvimento de instituições municipais livres e de uma certa turbulência e até desenfreamento dos cidadãos capazes de pegar em armas em oposição às autoridades governativas e poderosas ordens religiosas235 A condenação dessa autonomia é indicativa dos intuitos pragmáticos e paradigmáticos do texto A partir de uma contraposição entre lo em matéria historiográfica lastimando que associassem sempre sua obra ao plano de Martius WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999p138 232 Varnhagen apenas citou de passagem Von Martius em dois trechos da História Geral do Brasil e mesmo assim como um naturalista e não como pesquisador interessado em história autor de um roteiro que ele Varnhagen ao menos em grande parte seguiu As interpretações sobre a influência variam desde as mais radicais que consideram a obra de Varnhagen uma verdadeira extensão do que foi delineado por Martius até as posições mais relativas como a de Wehling que considera que houve uma influência mas não tão determinante quanto já foi dito O próprio Varnhagen enfrentou pessoal mente uma certa polêmica a respeito afirmando uma coincidência de propósitos e não influência direta CEZAR Temístocles Como deveria ser escrita a história do Brasil no século XIX Ensaio de história intelectual In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesquisa Porto Alegre UFRGS 2003 p 179180181 233 MARTIUS Op cit 234 MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Como se deve escrever a história do Brasil In RIHGB 6 381403 1844 2ª ed p389411 235 Ibidem Salah H Khaled Jr 83 atos louváveis e censuráveis constróise um sentido de orientação cívica para os habitantes do país O exemplo funciona assim em dupla dimensão positiva e negativa Tratase de uma estratégia argumentativa desenvolvida em torno de um binômio extensivamente trabalhado por Varnhagen de um lado uma disposição para atos heroicos cobertos de glória e dignos de rememoração de outro lado a ameaça constante do perigo desagregador Quando a iniciativa não se posiciona em defesa do todo da nação projetado no passado mas sim em defesa de interesses regionais ela é condenada Se de um lado a iniciativa é louvada quando contribui para a argumentação de uma nação em construção desde a vinda portuguesa de outro lado é refutada com forte caráter pejorativo quando assume nuances semelhantes ao perigo de desagregação territorial que o país enfrentava em meio à invenção da nação no século XIX Dessa forma o plano não estipulava apenas diretrizes para a invenção da nação no passado mas também para a garantia do seu sucesso no presente e no futuro de acordo com os valores das elites encarregadas de assegurar a estabilidade política 134 O todo e a parte questãochave da problemática nacional Se há uma vinculação direta entre Martius e Varnhagen o plano apresentado por Martius se mostrou muito mais abrangente do que a sua execução posterior em que houve um privilégio do aspecto político Para Varnhagen o evento histórico era essencialmente político e estatal236 O recorte se encontra provavelmente ligado a uma questão de formação e não somente a preferências pessoais Martius era um naturalista enquanto Varnhagen era um historiador e nos oitocentos a história se notabilizou por ser um relato do passado da nação com ênfase no político Entretanto apesar de não ser um historiador em Martius já havia uma noção de história geral Sobre a forma que deve ter uma história do Brasil sejame permitido comunicar algumas observações As obras até o presente publicadas sobre as províncias em separado são de preço inestimável Elas abundam em fatos importantes esclarecem até com minuciosidade muitos acontecimentos contudo não satisfazem ainda às exigências da verdadeira historiografia porque se ressentem demais de certo espírito de crônicas237 236 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p62 237 MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Como se deve escrever a história do Brasil In RIHGB 6 Horizontes Identitários 84 Portanto no artigo de Martius já havia uma disposição para a seleção para o recolhimento dos detalhes pertinentes a uma história do todo nacional e portanto de um grande relato da nacionalidade deixando de lado o que não tivesse o padrão de relevância exigido para uma narrativa nacional Entretanto apesar de Martius já preconizar uma história geral a forma de história geral que ele propõe era muito diferente da que foi realizada posteriormente por Varnhagen Martius e Varnhagen lidam com a questão do geral e do particular de maneira bem diferente O maior diferencial entre ambos encontrase na importância reservada à parte no enredo do todo da nação Pois Martius ainda que defendendo a ideia de uma estratégia discursiva que englobasse o todo considerava que o historiador deveria dar atenção à parte Ele observava por exemplo um conflito entre o reconhecimento das particularidades locais e o risco desse reconhecimento resultar em uma série de histórias provinciais somadas Dessa forma Martius propõe que Para evitar este conflito parece necessário que em primeiro lugar seja em épocas judiciosamente determinadas representando o estado do país em geral conforme o que tenha de particular em suas relações com a Mãe Pátria e as mais partes do Mundo e que passando logo para aquelas partes do país que essencialmente diferem seja realçado em cada uma delas o que houver de verdadeiramente importante e significativo para a história238 Para Varnhagen em oposição tudo que ressalte o que Martius chamou de um tom local deveria até certo ponto ser erradicado Martius considerava o tom local como um elemento importante da narrativa pois a capacitava a atrair a atenção a seduzir o leitor Um elemento que certamente é essencial a uma narrativa nacional Entretanto valorizar a parte em detrimento do todo em um momento de possível desagregação do território nacional poderia ser perigoso239 Logo a história geral de Varnhagen como será demonstrado posteriormente é uma história que erradica a diferença por excelência Mesmo que a totalidade do Brasil não pudesse ser mais do 381403 1844 2ª ed p389411 238 MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Como se deve escrever a história do Brasil In RIHGB 6 381403 1844 2ª ed p389411 239 Para Odalia a heterogeneidade da sociedade colonial alimentada e incentivada pelo colonialismo português resultava num enfraquecimento inclusive daqueles que detinham formalmente o poder na colônia ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p16 Para Wehling entendiase que o destaque ao regionalismo poderia transformarse em arma contra o projeto de uni dade nacional do Império WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p180 Salah H Khaled Jr 85 que uma abstração discursiva face à sua imensa diversidade regional é assim que Varnhagen busca tratar do tema As partes regionais devem ser constituídas como pouco mais que representações parciais do grande todo240 Certos tipos de afirmações que Martius faz a respeito do assunto soariam inteiramente alienígenas no texto de Varnhagen Um bom exemplo se evidencia quando Martius afirma Quão diferente é o Pará de Minas Uma outra natureza outros homens outras precisões e paixões e por conseguinte outras conjunturas históricas241 Esse é o tipo de diferença que Varnhagen desconsidera ou intencionalmente elimina dependendo da circunstância Por exemplo Varnhagen lamentou que fosse cedido poder às capitanias enquanto na Europa ocorria a centralização do poder De fato Varnhagen operava uma projeção das dificuldades do unitarismo imperial no Brasil colonial luta entre poder local e central e logo era crítico do poder local e simpático a centralização do poder público242 Isso significa dizer que Varnhagen foi radical ao perseguir um objetivo que na verdade Martius já manifestava Ainda reinam muitos preconceitos entre as diversas Províncias estes devem ser aniquilados por meio de uma instrução judiciosa cada uma das partes do Império deve tornarse cara às outras deve procurar se provar que o Brasil país tão vasto e rico em fontes variadíssimas de ventura e prosperidade civil alcançará o seu mais favorável desenvolvimento se chegar firmes os seus habitantes na sustentação da Monarquia a estabelecer por uma sábia organização entre todas as Províncias relações recíprocas deve o historiador patriótico aproveitar toda e qualquer ocasião a fim de mostrar que todas as Províncias do Império por lei orgânica se pertencem mutuamente que seu propício adiantamento só pode ser garantido pela mais íntima união entre elas Justamente na vasta extensão do país na variedade de seus produtos ao mesmo tempo que os seus habitantes tem a mesma origem o mesmo fundo histórico e as mesmas esperanças para um futuro lisonjeiro achase fundado o poder e grandeza do país243 Martius não deixava de ser um teórico da história que somente via sentido em um todo enriquecido pelas suas partes Varnhagen por outro lado parecia não 240 Wehling constatou que Varnhagen praticamente não se refere aos tipos regionais nas suas diver sas obras Ibid p179 241 MARTIUS Op cit 242 WEHLING Op cit p181 243 MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Como se deve escrever a história do Brasil In RIHGB 6 381403 1844 2ª ed pp389411 Horizontes Identitários 86 tolerar a própria noção de parte e fez de tudo para suprimir a sua importância face à autoridade do poder central244 Dessa forma trabalhava constantemente pela união e supressão da diversidade245 Ainda que exista essa diferença no que se refere ao sentido que devia ser dado à história e a sua dimensão pragmática havia uma concordância Tanto Martius quanto Varnhagen seguiram tais princípios à risca Por fim devo ainda ajuntar uma observação sobre a posição do historiador do Brasil para com a sua pátria A história é uma mestra não somente do futuro como também do presente Ela pode difundir entre os contemporâneos sentimentos e pensamentos do mais nobre patriotismo Uma obra histórica sobre o Brasil deve segundo a minha opinião ter igualmente a tendência de despertar e reanimar em seus leitores Brasileiros amor da pátria coragem constância indústria fidelidade prudência em uma palavra todas as virtudes cívicas O Brasil está afeto em muitos membros de sua população de idéias políticas imaturas Ali vemos Republicanos de todas as cores Ideólogos de todas as qualidades É justamente entre estes que se acharão muitas pessoas que estudarão com interesse uma história de seu país natal para eles pois deverá ser calculado o livro para convencêlos por uma maneira destra da inexequibilidade de seus projetos utópicos da inconveniência de discussões licenciosas dos negócios públicos por uma imprensa desenfreada e da necessidade de uma Monarquia em um país onde há um tão grande número de escravos Só agora principia o Brasil a sentirse como um Todo Unido246 Há grande concordância com os objetivos do IHGB estabelecidos pelo discurso de Barboza A narrativa nacional deveria enfatizar uma concepção de identidade reforçada dentro de uma racionalidade de coesão valores de fidelidade lealdade e devoção à nação e à Monarquia A questão da identidade era sobretudo politizada Esse perfil de uma história nitidamente engajada politicamente não escapou aos comentadores do autor247 244 Para Odalia o processo de homogeneização na obra de Varnhagen é um recurso heurístico de que se vale para compor a imagem desejada do Estado e da Nação ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p67 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 245 Odalia pondera que em sua tarefa o historiador deve homogeneizar o passado para que as pecu liaridades sejam traços distintos de um povo e não no interior de um povo O passado deve ser retoma do reconstruído em razão do interesse maior já definido a Nação Ibid p37 246 MARTIUS Op cit 247 Cezar afirma que Martius propõe uma história calculada mensurada bem refletida para combater os oponentes do regime Esta história militante é o ponto máximo a que a história pragmática pode chegar CEZAR Temístocles Como deveria ser escrita a história do Brasil no século XIX Ensaio de história intelectual In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesquisa Porto Alegre UFRGS 2003 p 206 Reis pondera que de acordo com Martius um enfoque é esperado Salah H Khaled Jr 87 As ideias de integração e de pedagogia nacional através da história são extremamente fortes nos trechos finais do texto de Martius Uma integração e um fim político que Varnhagen perseguiria com verdadeira obsessão ao longo de sua extensa obra de acordo com os ensinamentos de Martius Nunca esqueça pois o historiador do Brasil que para prestar um verdadeiro serviço à sua pátria deverá escrever como autor MonárquicoConstitucional como unitário no mais puro sentido da palavra248 Com o marco fundador de Martius estava dado o passo inicial para a constituição através da historiografia de uma imagem do Brasil de uma representação do passado de uma narrativa nacional que conferisse sentido ao todo heterogêneo da nascente nação O projeto para a execução dessa narrativa já estava posto e legitimado pela chancela institucional do IHGB estando aberta a estrada para a invenção da nação Missão esta que caberia a Varnhagen desempenhar em função da negativa de Martius que considerou a empreitada além das suas forças e disposição recusando em suas palavras à glória de empresa tão árdua249 O próximo capítulo portanto passará a tratar de Varnhagen e da elaboração da narrativa da nação a História Geral do Brasil do historiador Seu texto deverá ser patriótico despertando o amor ao Brasil Em sua defesa do Brasil unido monárquico cristão precisará lutar contra a desconfiança entre as províncias contra a fragmen tação do território e a agitação republicana De acordo com Reis Eis a história de que o Brasil recém independente precisava ou seja de que as elites brasileiras precisavam para levar adiante a nova na ção nos anos 184060 Uma história que realizasse um elogio do Brasil dos seus heróis portugueses do passado distante e recente que expressasse uma confiança incondicional em seus descendentes Uma história que não falasse de tensões separações contradições exclusões conflitos rebeliões insatisfações pois uma história assim levaria o Brasil à fragmentação isto é abortaria o Brasil que lutava para se constituir em uma poderosa nação REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p28 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosreis varnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB 5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibo okresul 248 MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Como se deve escrever a história do Brasil In RIHGB 6 381403 1844 2ª ed pp389411 249 CEZAR Op cit p 208 Horizontes Identitários 88 2 O MONUMENTO VARNHAGEN E O ENREDO DA NAÇÃO A NARRATIVA NACIONAL Olhar a obra de Varnhagen com simpatia e compreensão é abrir se à sua contemporaneidade aceitar o diálogo com ele ouvilo com paciência apesar do desejo que se tem às vezes de fechar o volume como Capistrano afirma ter tido José Carlos Reis Neste capítulo a discussão é encaminhada para a construção da narrativa nacional por Varnhagen em sua obra a História Geral do Brasil Para tanto em um primeiro momento interessa o próprio Varnhagen ou seja sua trajetória e o que integra o seu sistema de pensamento para depois analisar dois aspectos importantes da sua narrativa a elaboração de uma história geral da nação brasileira e os sentidos exemplares presentes em seu texto 21 O que representou Varnhagen Francisco Adolpho de Varnhagen a quem coube executar o plano desenvolvido por Martius é considerado por muitos o Heródoto brasileiro250 João Francisco Lisboa outro historiador brasileiro do século XIX chamou Varnhagen de pai da nossa história251 Capistrano de Abreu que anotou a História Geral do Brasil chamou Varnhagen de 250 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p23 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpg PA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3 oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6 jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookresul 251 Biografia de Varnhagen no sítio da Academia Brasileira de Letras ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS Varnhagen Biografia Disponível em httpwwwacademiaorgbrablcgicgiluaexesys starthtminfoid796sid346 Salah H Khaled Jr 89 o historiador da pátria252 Afrânio Peixoto disse que o esforço de Varnhagen culminou numa História do Brasil ainda a melhor das nossas253 Oliveira Lima o chamou de criador da história pátria mas também de historiador pragmático254 José Honório Rodrigues o considera incomparável o maior historiador da sua época e mestre da história geral do Brasil cujo grande tema foi a colonização do Brasil pelos portugueses255 Nilo Odalia diz que sua obra foi um marco e que se transformou em um monumento histórico do século XIX porque constitui um dos seus mais importantes documentos256 Alice Canabrava afirma que Varnhagen foi um verdadeiro monumento da história brasileira do século XIX257 Para Reis Varnhagen foi o primeiro grande inventor do Brasil258 De acordo com ele Varnhagen tem valor de modelo pois é paradigmático259 Wehling afirma que Varnhagen deixou delimitado um terreno de construção da memória 252 Mesmo vendo problemas na sua obra como a resistência a movimentos populares e rebeliões Capistrano considera que é difícil exagerar os serviços prestados por Varnhagen a história nacional ABREU Capistrano de Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen Visconde de Porto Seguro 1878 In Ensaios e estudos crítica e história 1ª série Rio de Janeiro Civilização Brasileira Brasí lia INL 1975 p8191 Para conhecer a obra de Capistrano ver ABREU Capistrano de Capítulos de História Colonial Disponível em httpobjdigitalbnbrAcervoDigitallivroseletronicoscapitulosde historiacoloniapdf 253 Biografia de Varnhagen no sítio da Academia Brasileira de Letras ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS Varnhagen Biografia Disponível em httpwwwacademiaorgbrablcgicgiluaexesys starthtminfoid796sid346 254 Ibidem 255 Entretanto o autor também vê um verdadeiro oficialismo em Varnhagen Ou seja o Estado é prio ritário o povo é secundário RODRIGUES José Honório História e historiografia Rio de Janeiro Vozes 1970 p123 256 Segundo ele sua obra na época representava um fato novo demonstrado pela seriedade que im punha ao seu trabalho e a preocupação em fazer uma história apoiada na erudição A obra de Varnha gen abria perspectivas à jovem nação Para Odalia Varnhagen é um historiador típico do século XIX e é importante como testemunho valioso da sua época Todavia é um autor superado devido a suas limitações e pelo fato da História do Brasil ser outra hoje ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p1112 257 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p33 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpg PA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3 oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6 jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookresul 258 Ibid p28 Segundo Reis A sua História Geral do Brasil refletia uma preocupação nova no Brasil com a história com a documentação sobre o passado brasileiro que o recém fundado Instituto Histó rico e Geográfico Brasileiro representava A História Geral do Brasil foi possível porque as condições históricas do Brasil o processo da independência política e a constituição do Estado nacional amadu receram nos anos 1850 E foi no interior desse processo histórico que ocorreu outra condição favorável ao surgimento da obra de Varnhagen a institucionalização da reflexão e pesquisa históricas no IHGB A independência política consolidada e reprimidas as lutas internas geradas por ela o Brasil possuía um perfil do qual ainda não tinha conhecimento Nos anos 1850 Varnhagen desenhará o perfil do Brasil independente oferecerá à nova nação um passado a partir do qual elaborará um futuro Ibid p2324 259 Ibid p30 Entretanto Reis afirma que Varnhagen foi um historiador aristocrata e elitista pois sua história prioriza as ações dos heróis portugueses e brasileiros brancos Ibid p32 Horizontes Identitários 90 nacional e que emanava dele um culto à brasilidade260 Para Guimarães Varnhagen foi aquele que primeiro deu um passado à nação brasileira261 De acordo com Cezar Varnhagen foi historiador por excelência da nação262 Os juízos sobre Varnhagen são portanto dos mais diversos variando de comentador a comentador ainda que algumas características consensuais estejam presentes A proposta da parte inicial deste capítulo se limita a investigar a biografia de Varnhagen e suas convicções recolhendo uma série de subsídios que são importantes para a compreensão da sua obra Um juízo propriamente dito sobre Varnhagen e a narrativa por ele elaborada ficará reservado para o trecho final do último capítulo 211 Biografia Francisco Adolfo de Varnhagen nasceu em São João de Ipanema à época pertencente à Sorocaba no Estado de São Paulo em 17 de fevereiro de 1816 Foi diplomata militar e historiador filho de Friedrich Ludwig Wilhelm de Varnhagen e de Maria Flávia de Sá Magalhães Seu pai engenheiro alemão veio ao Brasil com o propósito de restaurar e ampliar a Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema em 1809 Com apenas seis anos em outubro de 1823 Varnhagen deixou o Brasil rumo a Portugal juntamente com a mãe portuguesa de nascimento Lá inclusive reencontrou o pai que havia deixado o Brasil um ano antes Varnhagen realizou os primeiros estudos no Real Colégio Militar da Luz de 1825 a 1832 Ainda em 1832 ingressou na Academia de Marinha na qual estudou matemática263 Também realizou estudos em áreas relacionadas com sua posterior atividade de historiador tais como diplomacia paleografia e economia política Iniciou a carreira militar à época das Guerras Liberais como voluntário nas tropas de Pedro IV de Portugal que lutavam contra Miguel I de Portugal Foi tenente de artilharia e aperfeiçoouse em assuntos de natureza militar e de engenharia 260 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p7374 261 GUIMARÃES Manoel Luiz Lima Salgado A invenção do passado In Nossa História v3 São Paulo 2005 p25 262 CEZAR Temístocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIX siècle essai sur une rhétorique de la nacionalité Le cas Varnhagen v2 manuscrito 2002 p388 263 ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p10 Salah H Khaled Jr 91 Sua carreira de historiador teve início com a admissão como sociocorrespondente da Academia de Ciências de Lisboa instituição que publicou seu primeiro trabalho científicoliterário Reflexões Críticas264 Escrito entre 1835 e 1838 tratase de um ensaio sobre o colono e cronista quinhentista Gabriel Soares de Sousa Varnhagen chegou a colaborar com O Panorama dirigido pelo historiador português Alexandre Herculano e divulgou como fruto das primeiras pesquisas sobre a época do descobrimento do Brasil o Diário de Navegação de Pero Lopes de Sousa A boa acolhida junto à Academia de Ciências de Lisboa certamente serviu de incentivo para suas futuras realizações como historiador Pesquisador aplicado e incansável embora nem sempre revelasse a procedência dos documentos encontrados coubelhe a descoberta do jazigo de Pedro Álvares Cabral no presbitério do Convento da Graça em Santarém Portugal em 1838 Formouse como engenheiro militar em 1839 na Real Academia de Fortificação Já licenciado do exército português Varnhagen tornouse sociocorrespondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 18 de julho de 1840 Ele inclusive confessa que ainda em 1838 sem saber da fundação do Instituto Histórico já tinha o pensamento atrevido de implementar a empresa de uma História Geral do Brasil265 Ainda em 1840 viajou ao Brasil e conheceu o Imperador que então tinha apenas 14 anos de idade marcando o início de um longo relacionamento266 Ao retornar a Portugal em junho de 1841 exigiu ser promovido e tendo a sua pretensão recusada demitiuse em outubro do mesmo ano267 Varnhagen tinha então 25 anos justamente a idade da maioridade civil na época Ele veio a obter a nacionalidade brasileira por decreto real em 24 de setembro de 1841 apesar da irregularidade de ter servido no exército de outro país268 Curiosamente Varnhagen afirmava ter feito uma opção em detrimento de uma brilhante carreira Sua opção pela nacionalidade brasileira era algo do qual ele se servia como argumento em seu favor pois escolheu ser brasileiro o 264 CEZAR Temístocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIXe siècle essai sur une rhétorique de la nacionalité Le cas Varnhagen v2 manuscrito 2002 p392 265 VARNHAGEN Francisco Adolfo de Historia geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927 pXIX 266 Segundo Guimarães D Pedro II foi um soberano que se interessava pela escrita da história nacio nal e que manteria ao longo de aproximadamente 25 anos uma correspondência ativa com Francisco Adolpho de Varnhagen GUIMARÃES Manoel Luiz Lima Salgado A invenção do passado In Nossa História v3 São Paulo 2005 p25 267 CEZAR Temístocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIX siècle essai sur une rhétorique de la nacionalité Le cas Varnhagen v2 manuscrito 2002 p393 268 Ibid p393394 Horizontes Identitários 92 que marcou toda sua vida e obra269 Após o reconhecimento da nacionalidade brasileira Varnhagen foi nomeado adido à delegação de Lisboa em 1841 ingressando no corpo diplomático brasileiro função que ocupou até a morte e fez com que percorresse boa parte do mundo270 Sem dúvida o ingresso de Varnhagen na diplomacia promoveu uma valorização dos seus sentimentos em relação ao Brasil Cidadão por decreto de certa forma tornouse um historiador por ato oficial cuja tarefa era pesquisar documentos que tratassem da história e da legislação do Brasil271 No princípio de sua carreira diplomática Varnhagen esteve em Portugal 18421847 e logo em seguida na Espanha O trabalho como diplomata facilitou suas pesquisas históricas272 Dessa forma consultou arquivos na Europa e América do Sul reunindo uma quantidade impressionante de documentos referentes à história do Brasil273 Pôde assim dedicarse à pesquisa histórica nos arquivos europeus o que lhe permitiu não só reunir informações detalhadas e originais a respeito da experiência colonizadora portuguesa na América mas também revelar muitos dos cronistas coloniais cujas obras permaneciam esquecidas ou desconhecidas e para as quais redigiu introduções274 As pesquisas de Varnhagen já evidenciavam desde então grande preocupação 269 Para Wehling A opção de Varnhagen pela nacionalidade brasileira simboliza a passagem para uma fase importante de sua vida quer como esteta quer como historiador a busca de uma consciência histórica brasileira WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da iden tidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p64 Odalia afirma que a sua opção pela nacio nalidade brasileira não pode ser interpretada como uma manifestação de patriotismo pois só viveu no país até os seis anos Para ele a opção parece se originar de uma necessidade vivencial e intelectual fruto de seu desenraizamento Para o autor a escolha de Varnhagen pela nacionalidade brasileira está muito relacionada com o clima mental da época marcado profundamente pelo romantismo Trata se de uma condição limite e de um modo de ser determinante de um intelectual Era uma época em que aflorava com toda a força a questão do nacionalismo e de pertencimento a um povo Assim Odalia conclui que para um jovem da época pertencer a uma dessas nações percorrer e participar de sua formação e de seu destino deveria surgir aos seus olhos deslumbrados como a possibilidade única de concretizar o desejo de pertencer à história e ao seu tempo Para o autor o patriotismo de Varhagen tem em sua razão de ser seu fundamento ter sido uma opção intelectual ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p89 270 Cezar inclusive o definiu como um historiador viajante CEZAR Op cit p395 271 CEZAR Temístocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIX siècle essai sur une rhétorique de la nacionalité Le cas Varnhagen v2 manuscrito 2002 p395 272 Joaquim Manuel de Macedo chegou a dizer que Varnhagen fez do santo ócio dos diplomatas do Império um labor santo dedicado às investigações históricas da pátria APUD CEZAR Op cit p396 273 CEZAR Op cit p398 274 No entender de Capistrano de Abreu os achados de Varnhagen foram consideráveis sobretudo para o primeiro século da nossa história Não diremos que renovou a fisionomia da época mas desco briu bastantes elementos para quem possa e queira fazer obra definitiva ABREU Capistrano de Ne crológio de Francisco Adolfo de Varnhagen Visconde de Porto Seguro 1878 In Ensaios e estudos crítica e história 1ª série Rio de Janeiro Civilização Brasileira Brasília INL 1975 p8191 Salah H Khaled Jr 93 com a definição dos limites territoriais do país especialmente no que se refere à demarcação em relação à Espanha275 Como ficcionista demonstrava uma tendência à projeção dos anseios do presente no passado como pode ser visto no drama Amador Bueno no qual projetou para os paulistas do século XVII sentimentos nacionalistas276 No Florilégio da poesia brasileira por sua vez afirmou a existência de uma literatura brasileira no século XVIII fruto da consciência nacional com motivações estéticas próprias e portanto distinta da literatura portuguesa277 Varnhagen foi sobretudo um historiador oficial voltado para os interesses do Estado e protegido pelo Imperador278 Ele inclusive reconhecia abertamente essa contribuição valorizando o alto e valioso apoio de D Pedro II na introdução de sua História Geral do Brasil279 De acordo com ele a própria realização da obra não seria possível sem a sua proteção280 Por outro lado o relacionamento de Varnhagen com o IHGB foi conturbado sendo motivo de constantes queixas ao Imperador sobre indiferença com que era tratado281 Como primeiro secretário do IHGB função que assumiu em 1851 quando veio da Europa para o Brasil promoveu a organização da biblioteca e arquivos a reforma dos estatutos e a profissionalização do Instituto Varnhagen também foi diretor da Revista do IHGB Entre 1854 e 1857 publicou a 275 CEZAR Op cit p397399 276 Ver VARNHAGEN Francisco Adolpho de Ensaio Histórico sobre as Letras no Brasil 1847 Disponível em httpobjdigitalbnbrAcervoDigitallivroseletronicosensaiohistoricopdf 277 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p6465 278 Para Reis o imperador foi o protetor de Varnhagen oferecendolhe os recursos para a sua obra REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p25 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23 lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortu guesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JI Om8Ab258VasaXoibookresul Wehling ressalta que Membro do Instituto Histórico diplomata e titular do Império a biografia de Var nhagen o situa sempre próximo ao poder como partícipe do estamento burocrático consolidado a partir da política regressista WEHLING Op cit p48 Rodrigues também afirma que o imperador foi o pro tetor de Varnhagen e que lhe assegurou os meios para realizar a obra RODRIGUES José Honório História e historiografia Rio de Janeiro Vozes 1970 p127 279 VARNHAGEN Francisco Adolfo de Historia geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927 pXVIII 280 Varnhagen afirma que todo o Instituto confessa cheio de reconhecimento que sem a proteção va liosa do SENHOR D PEDRO II ele teria deixado de existir e por sua parte este mínimo sócio declara que sem a correspondente cota que dessa proteção lhe coube o Brasil não teria hoje esta obra Ibid pXIX Grifo nosso 281 Wehling ressalta que Foram freqüentes e intensas embora não necessariamente cordiais as rela ções entre o grupo dirigente do IHGB e Varnhagen Ele próprio chegou a dirigir o museu da instituição e ser seu primeiro secretário WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p35 Horizontes Identitários 94 primeira edição de sua História Geral do Brasil concretizando o plano de Martius sendo portanto e por excelência o inventor do passado da nação Logo em seguida Varnhagen deixou o Brasil novamente retornando a Madri Em 1858 teve início a etapa latinoamericana de sua vida282 Seguiramse uma série de missões diplomáticas em vários países da América do Sul como Paraguai Venezuela Nova Granada atual Colômbia Equador Peru e Chile onde veio a conhecer Carmen Ovalle e Vicuña de uma família aristocrática chilena com quem se casou aos 48 anos em 1864 Durante esse período também fez algumas viagens ao Brasil pesquisando uma série de documentos Apaixonado pela tarefa de historiador aproveitava todas as viagens e permanências em países estrangeiros para enriquecer o seu acervo com documentos originais283 Varnhagen também esteve na Inglaterra nos Estados Unidos e em Cuba Ele jamais esteve satisfeito enquanto estava na América Latina Partiu do Paraguai seu primeiro destino sem sequer ter uma autorização oficial para tanto em 1860284 Alguns de seus posicionamentos em questões diplomáticas foram considerados inclusive bastante inconvenientes285 Varnhagen constantemente solicitava ao Imperador a sua transferência para a Europa e a associava como fundamental à realização de sua segunda edição da História Geral do Brasil Ele argumentava nas correspondências que não se tratava de um desejo pessoal mas sim de um serviço à nação286 Varnhagen estava ciente de que algo o diferenciava dos demais colegas diplomatas sua produção historiográfica da qual ele se valia como justificativa para o que pretendia obter através da suposta necessidade de empreender pesquisas287 A proximidade de Varnhagen com o Imperador era um recurso estratégico que ele utilizava sem pudores obtendo finalmente em 1868 a sua transferência para Viena Varnhagen publicou logo após a transferência História das Lutas com os Holandeses no Brasil em 1871 apesar de anunciada desde a primeira edição 282 Cezar se referiu a essa fase como os tristes trópicos de Varnhagen CEZAR Temístocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIXe siècle essai sur une rhétorique de la nacionalité Le cas Varnhagen v2 manuscrito 2002 p400 283 ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p10 284 CEZAR Temístocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIX siècle essai sur une rhétorique de la nacionalité Le cas Varnhagen v2 manuscrito 2002 p400 285 Ibidem 286 Ibid p416 287 Ibid p418 Salah H Khaled Jr 95 da História Geral do Brasil e continuou a trabalhar na segunda edição da HGB288 Apesar de ter seu desejo de transferência atendido ele considerava que não era suficientemente reconhecido por seus esforços em prol da nação289 Insatisfeito ou não Varnhagen foi agraciado pelo governo imperial com os títulos de barão e visconde de Porto Seguro 1874 Em 1877 finalmente publicou a segunda edição de sua HGB e percorreu o interior das províncias de São Paulo Goiás e Bahia A viagem originou uma discussão sobre a questão da localização da capital do Brasil intitulada A questão da capital marítima ou no interior Paralelamente Varnhagen continuou a desenvolver a Independência do Brasil que somente seria publicada postumamente em 1916 Varnhagen faleceu em Viena Áustria no dia 26 de junho de 1878 com 62 anos Seu corpo foi trasladado para o Chile terra natal de sua mulher onde seria sepultado No entanto o desejo de Varnhagen era ser enterrado em sua pátria de nascimento e opção mais especificamente em Sorocaba Além disso desejava que um monumento fosse erguido em sua homenagem290 Não é por acaso que Varnhagen exigia um monumento para a sua pessoa Para ele A Nação acata nos filhos e ainda nos netos os nomes e a sombra digamos assim dos indivíduos que lhe deram ilustração e glória como nós em sociedade veneramos até suas relíquias e não só o cadáver como a espada do herói que morreu pela independência a pena do escritor que a ilustrou pelas letras o anel do prelado que foi modelo de saber e virtudes291 288 Sobre a questão da luta com os holandeses verificar a polêmica entre Varnhagen e Pieter Marinus Netscher Les hollandais au Brésil un mot de réplique a M Varnhagen auteur de louvrage in titulé Historia das Lutas com os Hollandeses no Brazil desde 1624 a 1654 par le LieutColonel PM Netscher Disponível em httpwwwbrasilianauspbrbbdhandle191801218700 289 É evidente que Varnhagen desejava adoração algo que ele deixa transparecer em seu próprio texto Só o tempo poderá ir melhor descobrindo aos que se voltem aos estudos mais profundos da história pátria quanta perseverança pusemos neste empenho e quão inabalável foi nossa fé para suprir com aplicação aturada a escassez das próprias forças VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927pXI 290 É curioso observar que Varnhagen havia exigido em seu testamento que fosse erguido um mo numento em sua memória Para Cezar não se trata de um exercício de egocentrismo mas de uma espécie de atitude preventiva Afinal a pátria deveria reconhecer seus grandes homens Em 1882 de acordo com seus desejos o monumento se tornava realidade CEZAR Temístocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIX siècle essai sur une rhétorique de la nacionalité Le cas Var nhagen v2 manuscrito 2002 p430 291 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 181 Grifo nosso Horizontes Identitários 96 Como inventor da nação é evidente que Varnhagen considerava a si próprio em alta estima e como tal digno de rememoração Por ocasião do centenário de sua morte em 1978 a Fundação Ubaldino do Amaral o jornal Cruzeiro do Sul o Instituto Histórico Geográfico e Genealógico de Sorocaba e a Prefeitura Municipal realizaram uma série de esforços para trasladar seus restos mortais para Sorocaba cumprindo dessa forma sua vontade final Os restos mortais de Varnhagen tiveram como destino a Praça Francisco Adolfo de Varnhagen onde foram depositados num pedestal de granito sobre o qual foi assentado o busto do historiador Um fato pouco lembrado é que Varnhagen é o patrono da Cadeira nº 39 da Academia Brasileira de Letras 212 Convicções pessoais As convicções de Varnhagen eram ferrenhas e estão presentes de forma muito forte na sua obra que diz muito a respeito de sua personalidade292 Ao que tudo indica tratavase de uma questão de temperamento muito mais do que de ofício ou paradigma científico adotado o que o levava a entrar em conflitos e polêmicas com certa regularidade293 Varnhagen era de tal forma preocupado com críticas que inclusive se precavia previamente no prefácio da primeira edição da HGB de eventuais reparos à sua obra294 Além disso a correspondência de Varnhagen é extremamente significativa em demonstrar sua frustração diante do que considerava um reconhecimento insuficiente de suas realizações295 292 Para Odalia era um homem que sobretudo acreditava no que fazia ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p8 293 Odalia considera que Varnhagen era um homem que se aborrecia demais com as críticas e as transformava em casos pessoais violentos e apaixonados Tinha grande sensibilidade em relação a sua obra reagindo violentamente contra críticas que recebia e frustrado pela falta de reconhecimento diante grande historiador que julgava ser Ibidem Já para Capistrano de Abreu Varnhagen expunha complacentemente a sua opinião em pontos em que ela não era necessária Era dos homens inteiriços que não apoiam sem quebrar não tocam sem ferir e matam moscas a pedradas ABREU Capistrano de Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen Visconde de Porto Seguro 1878 In Ensaios e estudos crítica e história 1ª série Rio de Janeiro Civilização Brasileira Brasília INL 1975 p8191 Clado Ribeiro de Lessa tido como maior estudioso da vida e obra de Varnhagen disse que ele era um terrível e ardoroso polemista Para Américo Jacobina Lacombe toda aquela exaltação ocultava um coração límpio e às vezes ingênuo ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS Varnhagen Biografia Disponível em httpwwwacademiaorgbrablcgicgiluaexesysstarthtminfoid796sid346 294 No prefácio da primeira edição da História Geral do Brasil Varnhagen afirmava que futuros his toriadores parciais munidos de novos documentos deverão apreciar com justiça o seu todo e que quase ousa dizer que quanto mais o estudem mais apreciarão o serviço preparatório que aqui lhes oferecemos VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927 pXX Grifo nosso 295 VARNHAGEN Francisco Adolfo de Correspondência ativa Rio de Janeiro Ministério da Educa Salah H Khaled Jr 97 Varnhagen é um autor muito presente no seu texto um narrador sempre disposto a intervir no fio da narrativa para manifestar suas convicções pessoais296 Para Varnhagen a noção de um autor que se anula de uma história escrita de lugar nenhum é algo impensável A narrativa nacional tem em Varnhagen um verdadeiro biógrafo da nação que não se furta de fazer comentários sempre que considera necessário Mais ainda seus pontos de vista condicionam orientam e em última instância definem a sua obra297 Há uma permanente tensão entre a objetividade do historiador e a subjetividade do patriota com a balança pendendo para o lado deste em função do pragmatismo que orientava a escrita da história Para Odalia muitas vezes Varnhagen tentou proceder como um mestreescola tentando corrigir os erros do passado e apontando o que se deveria fazer no futuro298 Wehling considera que o objetivo era ser útil o meio encontrado para atingilo era o de uma obra que aliava na intenção do autor autoridade científica e pedagogia social299 O pragmatismo acima de tudo orientava a ciência300 A definição de Varnhagen como historiador pragmático é apropriada pois o próprio Varnhagen afirma ter escrito um livro útil e próprio a estimular o trabalho ção e Cultura 1961 296 Cezar afirma que Varnhagen tinha uma imensa dificuldade em refrear seus sentimentos e logo con trolar a subjetividade de seus discursos CEZAR Temístocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIX siècle essai sur une rhétorique de la nacionalité Le cas Varnhagen v2 manuscrito 2002 p414 Dessa forma como salienta Rodrigues preconceitos políticos sociais religiosos se re velam sempre especialmente no julgamento das figuras e no tratamento de inconformismos RODRI GUES José Honório História e historiografia Rio de Janeiro Vozes 1970 p130 297 Rodrigues afirma que Pombalino partidário do absolutismo ilustrado adversário dos jesuítas e antipático à Inquisição Varnhagen jamais aceitaria que a História não fosse fruto apenas de persona lidades mais ou menos cultas nem deixaria de querer impor uma concepção histórica em que o Brasil é íntegro é uno é independente por obra e graça da Casa de Bragança Ibid p135 Para Rodrigues Varnhagen justificou com mãos de ferro o domínio colonial a submissão do povo e os direitos de uma minoria mais dominante que criadora Ibid p149 Wehling assinala que Varnhagen construía muito mais do que reconstituía o passado de acordo com o padrão desejável para a nova sociedade Devido a sua identificação com o projeto político regressista tal compromisso é evidente WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p55 298 ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p11 Odalia refere que Varnha gen vê o homem menos como uma realidade histórica determinada do que como uma realidade que pretende modificar e construir ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p90 Disponível em http wwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 299 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p58 O autor considera que a obra de Varnhagen esteve intima mente ligada à definição e defesa de um certo tipo de relações entre estado e sociedade Ibid p87 300 Wehling define a partir das ideias de história mestra da vida e conselheira dos príncipes uma noção de história pragmática embutida na ideia de aplicação dos conhecimentos obtidos às grandes ques tões públicas e sociais Ibid p126127 Horizontes Identitários 98 e a prática das boas ações301 Esse pragmatismo foi levado ao extremo quando o autor se encarregou do dever sagrado de elaborar uma História das Lutas com os Holandeses verdadeiro instrumento político e patriótico302 O comprometimento de Varnhagen com o Estado é comprovado pelas suas próprias frases a integridade do Brasil já representada majestosamente no Estado e no universo pela monarquia vai agora mui humildemente ser representada entre as histórias das nações por uma história nacional303 Varnhagen era efetivamente um intelectual a serviço do Estado304 Como intelectual a serviço do Estado orientado por uma concepção pragmática as intervenções pessoais de Varnhagen na narrativa por ele desenvolvida expressam suas crenças sobre uma diversidade de assuntos tais como o Estado a religião a democracia as leis a modernidade enfim Tais manifestações não são apenas inferidas no texto do autor Pelo contrário ele as explicita de forma clara ainda que nem sempre coerente305 A falta de coerência em Varnhagen é uma noção que uma leitura cuidadosa da História Geral do Brasil parece referendar Na obra de Varnhagen encontramse manifestações sobre problemas de natureza política e social mas não uma filosofia política306 Se por um lado pode não haver uma coerência exemplar por outro há sobretudo regularidade Rodrigues afirma que filosófica e politicamente Varnhagen foi 301 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927 pXII Por isso Wehling afirma que Varnhagen não perdeu oportunidades para projetar no passado conquanto respeitasse rigorosamente a documentação e distinguisse as informações de sua própria opinião as soluções que lhe pareciam melhores WEHLING Op cit p173 302 RODRIGUES José Honório História e historiografia Rio de Janeiro Vozes 1970 p138 Para Wehling Varnhagen propunhase chegando a oferecer seus préstimos ao Imperador em diferentes ocasiões a ser um dos ideólogos do regime WEHLING Op cit p48 Odalia afirma que o caráter oficial ou quase oficial que se atribuiu a Varnhagen e ainda se atribui não pode ser desmentido ODALIA Op cit p67 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 303 VARNHAGEN Op cit pXVIII 304 Para Odalia as relações Estado e intelectual são uma constante no pensamento de Varnhagen e por isso mesmo um elemento que não pode ser esquecido quando se pretende analisálas O intelectual e especificamente no caso de Varnhagen o historiador aparecem como uma espécie de decodificadores dos freqüentemente estranhos e recônditos caminhos palmilhados pelo Estado a fim de esclarecêlos e quando necessário justificálos Nessa tarefa de esclarecimento que se destina principalmente à nascente consciência nacional o objetivo essencial é realçar a presença do Estado ODALIA Op cit p69 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 305 Wehling ressalta que Varnhagen não era filósofo político nem construía um sistema de idéias WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999p119 Aliás para o autor Varnhagen não seria capaz de sustentar pro fundamente uma doutrina política de qualquer natureza além dos aspectos mais gerais Ibid p109 306 Ibid p121 Salah H Khaled Jr 99 sempre o mesmo retrato de um conservador intransigente e convicto307 A afirmativa é confirmada pelos posicionamentos e afirmações do próprio Varnhagen Para ele o que importava era a continuidade da tradição e o respeito por princípios de organização admitidos por todos os cidadãos pela poderosa sanção dos séculos308 Rodrigues considera que a formação militar do historiador em Portugal tenente desde 1837 modelou suas convicções ideológicas que nunca foram abaladas309 A afirmação de Rodrigues parece ser pertinente pois Varnhagen chegava a defender abertamente a guerra como um instrumento útil para promover a união de um povo e erguer um país do torpor310 Sob esse aspecto a inspiração de Varnhagen no pensamento hegeliano parece inegável311 Apesar de conservador Varnhagen estava entretanto longe de ser anacrônico pelo contrário312 Ele se adaptava às condições da realidade em que pretendia intervir a partir da narrativa nacional313 Para Rodrigues a opinião de Varnhagen não era isolada mas representativa da política colonial portuguesa dominante como da época que escrevia314 José Veríssimo afirmou que 307 RODRIGUES José Honório História e historiografia Rio de Janeiro Vozes 1970 p142143 308 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927 pVII Grifo nosso 309 RODRIGUES Op cit p142 310 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melho ramentos 1959 p162163 Wehling refere que Varnhagen defendia uma apologia da guerra como instrumento de purificação da sociedade de aproximação e civilização dos povos WEHLING Op cit p67 311 Hegel fazia uma verdadeira apologia do valor militar como ato supremo em que a liberdade se abstrai de todos os fins e promovia a exaltação da guerra como meio pelo qual a saúde moral dos po vos é assegurada FERRAJOLI Luigi Direito e razão teoria do garantismo penal São Paulo Revista dos Tribunais 2006 p819 312 A situação do Brasil era atípica em relação à Europa e Varnhagen adaptavase a ela Não havia anacronismo em buscar estabelecer para o país um Estado e uma sociedade no moldes do Antigo Regime Ainda que na Europa após as Revoluções de 1848 as discussões tenham se voltado para a disputa entre burgueses e socialistas isso não faz de Varnhagen um nostálgico pois é mais um entre os defensores de um modelo préliberal que entretanto amoldouse pragmaticamente como tantos outros conservadores às circunstâncias que determinaram a prevalência do modelo constitucional libe ral WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p105106 313 Rodrigues vê em Varnhagen um homem solidamente fortificado na sua ideologia conservadora e na sua política pragmática RODRIGUES José Honório História e historiografia Rio de Janeiro Vozes 1970 p129 314 Ibid p130 Horizontes Identitários 100 a filosofia da história de Varnhagen é a comum filosofia espiritualista cristã do seu tempo com o pensamento moral e político de sua educação portuguesa É em história um providencialista em política um homem da razão de Estado da ordem da autoridade e do fato consumado315 Wehling assinala que Varnhagen pertenceu a uma geração que compartilhava de um clima de desconfiança em relação às soluções políticas oriundas do racionalismo da revolução316 Isso pode explicar a sua profunda aversão ao liberalismo político à democracia e à demagogia jacobina termo que frequentemente usa O que naturalmente fazia com que ele fosse contrário à mudança e favorável à permanência e portanto defensor da aristocracia e da monarquia317 Para Varnhagen por mais que corram os séculos não há país embora blasone de mui republicano que não aprecie a sua aristocracia isto é a nobreza hereditária a experiência prova que as aristocracias sustentáculos dos tronos são ao mesmo tempo a mais segura barreira contra as invasões e despotismos do poder e contra os transbordamentos tirânicos e intolerantes das democracias318 O que há de mais coerente em Varnhagen é o seu conservadorismo Varnhagen defende acima de tudo o Estado o poder centralizado sob a forma monárquica legitima a colonização portuguesa e rebate com ferocidade tudo que ameace a tais princípios que lhe são extremamente caros319 Por outro lado parece haver elementos esparsos 315 VERÍSSIMO José História da literatura brasileira Disponível em httpwwwbibliocombrcon teudoJoseVerissimomhistbrashtm 316 WEHLING Op cit p44 317 Para Odalia Varnhagen via na aristocracia um termo médio de equilíbrio que era garantia de um Estado que se situava acima das vicissitudes e paixões humanas e portanto apto a realizar os destinos da Nação ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Var nhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997p78 Disponível em httpwwwdominiopublico govbrdownloadtextoup000007pdf Wehling afirma que Varnhagen era profundamente monarquista entendia que só esta forma de governo seria capaz de consolidar o Estado WEHLING Op cit p101 318 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 156 319 Para Wehling o nacionalismo o estatismo e a monarquia são ideias fundamentais a que Varnha gen permaneceu fiel durante a sua trajetória WEHLING Op cit Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p47 Para o Odalia Varnhagen revela a ideologia histórica que legitima o processo de dominação social inerente à jovem nação brasileira Segundo Odalia o patriotismo de Varnhagen é parcial e uni lateral e em sua obra os sujeitos da história são o homem branco e o Estado Imperial de forma que o passado colonial deve ser reconstruído como suporte de um Brasil branco e europeu Em suma ele defende o Brasil das elites brancas e da família Real Para ele Varnhagen foi um dos intérpretes mais qualificados do projeto político conservador que definiu o Estado Imperial e que se caracteriza por atribuir ao Estado um papel não só político mas de organização social constituir uma nação branca e europeia e criar um Estado forte e centralizado que por sua vez constituiria a nação ODALIA Nilo Salah H Khaled Jr 101 do pensamento ilustrado em sua obra especialmente no que se refere às noções de progresso e de finalidade320 Entretanto jamais em sentido propriamente político apesar de referirse a um Império independente e liberal321 Pelo contrário rejeita todos os movimentos mais exaltados taxandoos de anarquistas repele os princípios democráticos republicanos e condena todos os movimentos revolucionários322 Varnhagen articula sua visão de sociedade em torno de três eixos básicos O Estado enquanto autoridade máxima a submissão das vontades particulares ao império da lei e a religião enquanto fator de aglutinação323 Ele expressa tais pontos de vista ao longo de vários trechos da História Geral do Brasil como o seguinte Nestas poucas palavras se encerram os pontos capitais respectivos a qualquer sociedade constituída Vemos as colônias e as suas competentes autoridades vemos o reconhecimento das leis vemos as práticas assim do que respeita às consciências pelas cerimônias dos sacrifícios religiosos como ao estado social pela celebração dos matrimônios vemos garantida a segurança individual e a propriedade e sem valhacouto as tropelias e injúrias324 Aqui Varnhagen expressa suas crenças conservadoras mas ao mesmo tempo profere um discurso tipicamente liberal ao referirse à segurança individual e defesa da propriedade Entretanto é um liberalismo decididamente recortado325 Para ele o que importa ressaltar sempre é a supremacia incontestável do Estado assegurada pela obediência à lei O Estado é associado com a noção de lei e logo de ordem Uma lei imperativa inquestionável civilizadora e construtora da ordem Parece claro para Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p10 320 Odalia ressalta que há um racionalismo tecnocrático que perpassa pelas páginas da História Geral do Brasil de Varnhagen na sua ânsia de tudo consertar de tudo prever e projetar numa confiança ili mitada na capacidade do homem conduzir sua história ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p32 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 321 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927pVII 322 RODRIGUES José Honório História e historiografia Rio de Janeiro Vozes 1970 p143 323 Wehling ressalta o que ele chama de uma visão utilitária da lei e da religião como freios sociais WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p67 324 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 132 325 Wehling usa o termo ideologia do regresso e o aproxima às idéias liberais que circulavam na Eu ropa após a restauração um estado de laissez faire no plano econômico mas efetivamente gendarme no plano social e político isto é mantenedor do status quo institucional assegurado pelo controle do poder político pelos proprietários através do sufrágio censitário e indireto WEHLING Op cit p8788 Horizontes Identitários 102 Varnhagen que as leis a escrita e o Estado são os indicadores básicos da existência de uma sociedade civilizada326 Tudo que colabora para o fortalecimento da autoridade do Estado é visto com grande simpatia São vários os trechos nos quais Varnhagen manifesta tal ponto de vista327 Dessa forma por exemplo Varnhagen exalta as ações do governo geral que através de seu primeiro representante lançou as bases da futura nação Tomé de Souza havia cumprido a sua missão O Brasil ficava constituído a autoridade e a lei já haviam feito sentir suas forças benéficas ganhara muito a moral pública328 Nesse momento de acordo com Varnhagen o Brasil passava portanto a contar com a presença do Estado que é o elemento fundamental para que se constitua como nação na sua concepção Varnhagen estabelece lei ordem autoridade e religião como valores de uma civilização superior construindo uma articulação entre lei e religião como garantes da ordem e exalta ainda que indiretamente os brasileiros a respeitarem a primeira e louvarem a segunda329 Varnhagen comenta que durante a vida do primeiro donatário a colônia seguiu feliz Havia nela bons costumes faziase justiça a todos eram os habitantes tementes a Deus e observadores da religião sem a qual não há sociedade possível330 Evidentemente há um parâmetro europeu para o que Varnhagen considera uma sociedade viável respeitosa do poder centralizado e ciente da sua submissão em um 326 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p167 Wehling constata que o Estado pressupondo a lei e a ordem contra a força e a anarquia era sinônimo de civilização Ibid p110 327 WEHLING afirma que Preliminarmente deve ser observado que a construção da memória em Var nhagen passa pelo crivo de opções morais muito claramente conscientes e expressas em diferentes momentos da sua obra A partir de categorias morais são elaborados juízos destaques e esquecimen tos que não apenas pontuam a obra mas explicam a sua lógica interna Ibid p57 328 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 263 329 Wehling afirma que na obra de Varnhagen à religião caberia o papel aglutinador das consciências e o inculcar de sentimentos de tolerância e moderação WEHLING Op cit p110 Já Reis refere que para Varnhagen As leis tornam feliz o homem que se sujeita a elas O direito a justiça e a razão são melhores do que o instinto o apetite e o capricho REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p3637 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosreis varnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB 5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibo okresul 330 VARNHAGEN Op cit p 179 Salah H Khaled Jr 103 plano material e espiritual331 Portanto a religião e as leis são para Varnhagen os elementos essenciais à vida em sociedade eis que promovem a coesão tão desejada e o respeito à autoridade da Monarquia que ele desejava justificar Para ele a resposta a um quadro de crise compreende o recurso à dimensão religiosa verdadeira panaceia para todos os males Assim reflete que tudo mostrava a necessidade de acudir com pronto remédio à religião poderoso instrumento de civilização e de moral332 A religião era concebida por Varnhagen como um fundamento social e logo imprescindível à ordem mas subordinada à razão de Estado333 É importante que esse ponto seja ressaltado pois Varnhagen é extremamente severo com os Jesuítas e com a Inquisição quando estes interferem nos desígnios do Estado334 Sendo assim a religião e as leis cumprem um papel instrumental e pragmático na visão de sociedade expressada por Varnhagen cremos em Deus e em que vencido o inimigo houvera tudo remediado com o poder da lei um coração robusto que a soubesse fazer cumprir A existência de Licurgo pudera ser um mito fábula não é A observância da religião e o poder das boas leis podem melhorar os homens e as gerações e são efetivamente quem os melhora para Deus e a sociedade335 O bom cidadãosúdito é o obediente tanto à lei quanto à religião Há efetivamente um entendimento de que existe uma complementaridade entre essas duas esferas da vida pública que se dá a partir de uma avaliação inteiramente pragmática de seus efeitos O caminho para o Brasil desenvolvido se articula em torno da fidelidade à religião e da obediência à lei para Varnhagen Assim ele vai celebrar as ações que no passado estabeleceram esse tipo de exemplo e que podem auxiliar a nação a atingir 331 Para Wehling Varnhagem defendia Uma monarquia estamental à portuguesa patrimonialista e efetivamente mais bemsucedida em matéria de centralização do que suas congêneres norteeuro péias e na qual o rei poderia ou deveria assumir junto com a burocracia e seus intelectuais o papel de amálgama da nacionalidade WEHLING Op cit p119 332 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 246 333 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p167168 334 Odalia aponta que toda vez que a intervenção da Igreja possa de leve ferir ou sensibilizar a ação do Estado pondo em perigo a sua unidade eou seu poder Varnhagen não titubeia e assume vigo rosamente a defesa do Estado ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p80 Disponível em http wwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 335 VARNHAGEN Op cit p162163 Horizontes Identitários 104 o padrão da civilização europeia Nesse sentido ele exalta as virtudes de Pombal a começar pela escolha dos magistrados pois com magistrados e fiscais das leis corruptos ou covardes não há leis que valham nem povo que se melhore nem patriotismo que se acrisole nem a constituição mais bela do mundo felicitará jamais qualquer povo quando ele não esteja preparado por meio de virtudes domésticas para não sofismar seus mais sagrados dogmas336 O poder exercido por essas duas esferas de influência benéfica seria inclusive de proveito para os negros como Varnhagen manifesta nesta passagem E o certo é que passando à América ainda em cativeiro não só melhoraram de sorte como se melhoravam socialmente em contato com gente mais polida e com a civilização do cristianismo337 Varnhagen tem a religião em grande consideração Ao discutir as viagens de Colombo e seus resultados chega a expressar um ponto de vista que pode até parecer irônico para um observador desatento mas que de fato não é Deste modo tiveram notícia os geógrafos europeus de um continente antes a eles desconhecido e os zelosos propagadores da fé cristã encontraram novas ovelhas para agregar ao rebanho comum338 Essa agregação era evidentemente benéfica para os selvagens pois o bem aqueles canibais devia ser feito a força e apesar deles que por não conhecerem a caridade evangélica nem a piedosa filantropia não julgavam possível que outros homens se voltassem exclusivamente ao seu bem como nos diz a história do cristianismo que com a maior abnegação se têm votado tantos mártires muitos dos quais nos glorificamos em nosso calendário339 Portanto ele não faz nenhuma restrição às medidas implementadas para a conversão dos nativos inclusive à pregação na própria língua indígena340 Em 336 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p235 337 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 224 338 Ibid p63 339 Ibid p301 340 Segundo Varnhagen O p João de Aspilcueta Navarro aproveitandose do trato de tantos piás começou com assiduidade a estudar a língua a reduzila à gramática e por fim a pregar nela e para que os sermões produzissem mais efeito e não parecessem menos inspirados e persuasivos que as endemoninhadas práticas dos pajés tratou até de imitar os usos destes Com isto não fazia mais Salah H Khaled Jr 105 concordância com esse ponto de vista Varnhagen condena inteiramente a noção de nobre selvagem como Martius já havia feito À vista do esboço que traçamos sem nada carregar as cores não sabemos como haja ainda poetas e até filósofos que vejam no estado selvagem a maior felicidade do homem quando nesse estado sem auxílio mútuo da sociedade e sem terra se cultivar suficientemente há sempre numa ou outra época privações e fome e esta última aos mais civilizados converte em canibais como nos provam histórias de tantos sítios e naufrágios Desgraçadamente o estudo profundo da barbárie humana em todos os países prova que sem os vínculos das leis e da religião o triste mortal propende tanto à ferocidade que quase se metamorfoseia em uma fera as leis a que o homem quis voluntariamente sujeitarse depois de mui tristes sofrimentos do mesquinho gênero humano antes de as possuir não tem outro fim senão fazêlo mais livre e mais feliz do que seria sem elas341 Se por um lado Varnhagen rejeita Rousseau por outro lado se vale de Montesquieu para justificar a colonização portuguesa e afirmar a correção do exclusivo metropolitano o qual aliás ele jamais se refere em tais termos Uma colônia diz um publicista que se ocupou profissionalmente do assunto é o resultado da emigração de indivíduos de que a metrópole se priva com a esperança de poder indenizarse mais tarde dos sacrifícios que faz sem o que os estabelecimentos que fizesse só lhe causariam dano Pelo que o simples fato do estabelecimento de uma colônia por qualquer nação que a funda com seus filhos a defende com suas armas e a mantém por suas leis como diz Montesquieu reclama a compensação nas vantagens do seu comércio com a exclusão de todas as outras nações segundo o direito europeu ainda praticado em nossos dias por alguns342 Varnhagen parece ter uma visão pragmática da modernidade e do progresso pois utiliza tais noções quando favorecem seus pontos de vista e os compatibiliza com a sua defesa da lei e valor moral da religião na medida em que é necessário Desgraçadamente a experiência prova que os países menos povoados passam sempre por uma época com tendências feudais seja qualquer o nome que se dê aos suseranos que acabrunham os pequenos quando aliás na cabeça do Estado e nas cidades populosas a do que muito antes dele haviam feito na Europa os apóstolos do cristianismo que capitularam muitas vezes com o paganismo admitindo várias práticas bárbaras Ibid p244 341 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p5455 342 Ibid p147 Horizontes Identitários 106 administração da justiça corre com a maior regularidade Felizmente as estradas de ferro e os vapores acabarão com essas tendências estabelecendo a polícia mais rigorosa equilibrando a população e melhorandoa pelos dois grandes meios civilizadores a indústria que subministra ao homem os maiores cômodos da vida e a observância da religião que o beneficia moralmente343 O conservadorismo de Varnhagen se estende ao campo religioso como prova a sua posição face ao protestantismo e o que considera o cisma que havia provocado344 Para Varnhagen interessa sobretudo a coesão345 Não contente em condenar a religião protestante Varnhagen legitima a própria ocupação do território brasileiro a partir da benção do sumo pontífice e do tratado por ele sancionado346 Legitimidade esta que foi sacramentada pela realização da primeira missa no país e logo após no primeiro de maio seguinte e no meio da solenidade de outra missa se efetuou a cerimônia de tomada de posse da nova região para a Coroa de Portugal levantandose num morro vizinho uma grande cruz de madeira com divisa do venturoso D Manuel347 Para Varnhagen a conquista é de Portugal e da cristandade Portanto está duplamente legitimada a partir do Estado e da Igreja A superioridade não é só da civilização mas também da única e verdadeira religião pois ao se referir aos índios Varnhagen diz que 343 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IVSão Paulo Melhora mentos 1959 p250 344 Tal era a revolução que na Europa se operava nos ânimos no princípio do século décimo sexto e que não era mais que o prelúdio de agressões que se dirigiram a autoridade dos reis e dos governos e até como já então se viu com os anabaptistas da Alemanha do próprio direito de propriedade que nos estimula ao trabalho e deu origem a tantas grandes ações VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 163 345 Wehling afirma que Por isto dizia em correspondência pregou a unidade religiosa do Império como importante integrador da nacionalidade WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p103 346 Assim este legado que abrangia grande parte do território do atual Império do Brasil ainda desco nhecido aos europeus veio a pertencer a Portugal não em virtude do chamado direito de conquista ou do de descobrimento equivalente ao de primeiro ocupante mas sim em virtude de um trato solene feito com a nação que descobrira as Índias Ocidentais e sancionado pelo Sumo Pontífice que então perante as potências cristãs da Europa ainda não dissidentes por cismas ou heresias e formando to das como uma espécie de confederação de que era chefe o mesmo Pontífice tinha para as mesmas a força e prestígio de um direito a que elas próprias se haviam sujeitado Os que criticam a ingerência da Santa Sé neste negócio esquecemse de que não vivem no século em que ela teve lugar VAR NHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p67 347 Ibid p70 Salah H Khaled Jr 107 podemos dizer que a única crença forte e radicada que tinham era a da obrigação de se vingarem dos estranhos que ofendiam a qualquer da sua alcatéia Este espírito de vingança levada ao excesso constituía sua verdadeira fé348 Portanto para Varnhagen a experiência prova que sem a força não é possível repelir as agressões dos mais fortes e afastar suas represálias349 Para ele foi a experiência e não o arbítrio nem a tirania quem ensinou o verdadeiro modo de levar os bárbaros impondolhes à força a necessária tutela para aceitarem o cristianismo e adotarem hábitos civilizados começando pelos de alguma resignação e caridade fazendose moralmente melhores aproveitandose de mais bens incluindo os da tranqüilidade de espírito e da segurança individual à sombra de leis protetoras350 Sendo assim para ele o indígena deveria ser derrotado no campo de batalha e depois submetido à cultura do vencedor351 Varnhagen observava uma diferença qualitativa essencial entre as três matrizes Isso transparece quando ele afirma que realizou em sua obra uma verdadeira apreciação comparativa do grau de civilização dos colonizadores de barbárie dos colonos escravos trazidos impiamente da África e do de selvageria dos povos últimos invasores nômades que ocupavam o território que hoje chamamos Brasil352 Quando Varnhagen trata da escravidão indígena a considera plenamente justificada Afinal refutar a captura e escravização dos índios significaria questionar a própria colonização portuguesa 348 Ibid p43 349 Ibid p219 350 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 351 Odalia comenta que O indígena vencido pelo branco despojado de seus valores aniquilado como expressão de uma sociedade que se pretende extinguir deve ser recuperado antes pela força do que pela persuasão e novamente conquistado para os valores ocidentais e cristãos que mostraram no campo de batalha a sua superioridade Sua recuperação a partir desses valores legitima moralmente a conquista física ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997p57 Disponível em httpwwwdominiopu blicogovbrdownloadtextoup000007pdf 352 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927 pXXXXI Assim como afirma Odalia a vitória é prioritariamente a constatação da superioridade de uma cultura de uma civilização de um modo de vida e de pensamento sobre outras formas primitivas que acabam por ser interpretadas como um estado de barbárie ODALIA Op cit p45 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf Horizontes Identitários 108 E devemos confessar que esta prática fundada no chamado direito dos vencedores tinha tendências civilizadoras e em alguns pontos chegou a produzir o influxo benéfico de poupar muitas vidas fazendo que os mesmos vencedores guardassem para resgatar com os nossos os prisioneiros que segundo seus hábitos deviam matar353 Varnhagen afirma que fácil era de ver que os índios crianças pelo entendimento só podiam ser conduzidos à civilização tendo sobre eles os chefes a mesma autoridade e supremacia carinhosa sobre os filhos e pupilos concede a nossa legislação aos pais e tutores354 Segundo ele tratavase de civilizar os bárbaros355 Uma missão que entretanto estava longe de estar cumprida pois considera que quanto aos índios pouco ou nada se haviam melhorado Ou seguiam nos bosques matandose e comendose uns a outros ou a custa de esforços gastos e sacrifícios se chegavam por muito favor a aldear sem vantagens decididas para a sociedade356 Varnhagen inclusive relaciona a introdução dos negros no Brasil aos obstáculos colocados pela proibição da escravização indígena357 Como comentado anteriormente ele reproduz a tese desenvolvida por Martius do assimilacionismo ainda que não faça referência alguma ao autor 353 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 217 354 Ibid p 301 355 Ibid p 303 356 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p66 357 Para VARNHAGEN Se o uso e as leis tivessem continuado a permitir que a cobiça dos colonos bem encaminhada arrebanhasse os selvagens do Brasil sujeitandoos primeiro não se teria ido aquela exercitar além dos mares buscando nos porões dos navios e entre os ferros do mais atroz cativeiro colonos de nações igualmente bárbaras e mais supersticiosas essencialmente intolerantes inimigas de toda a liberdade e que como se ostentam a raia da separação com que se extremam dos índios e dos seus civilizadores Sem identidade de língua de usos e de religião entre si só a cor e o infortúnio Vieiram a unir estes infelizes comunicandose na língua do colono estrangeira a todos e por isso por eles cada vez mais estropiada em detrimento até da educação da mocidade que havendo por começado por aprender com eles a falar erradamente tinha depois mais trabalho para se desavezar de muitas locuções viciosas VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 221 Salah H Khaled Jr 109 Como a colonização africana distinta principalmente pela sua cor veio a ter tão grande entrada no Brasil que se pode considerar hoje como um dos três elementos de sua população julgamos do nosso dever consagrar algumas linhas neste lugar a tratar da origem desta gente a cujo vigoroso braço deve o Brasil principalmente os trabalhos do fabrico do açúcar e modernamente os da cultura do café mas fazemos votos que chegue um dia em que as cores de tal modo se combinem que venham a desaparecer totalmente no nosso povo os característicos da origem africana e por conseguinte a acusação da procedência de uma geração cujos troncos no Brasil vieram conduzidos em ferros do continente fronteiro e sofreram os grilhões da escravidão embora talvez com mais suavidade do que em nenhum outro país da América 358 Além de manifestar a sua esperança no eventual branqueamento da raça Varnhagen ainda insinua que a escravidão no Brasil teria sido mais suave Varnhagen se excede em relação aos seus próprios critérios extrapolando a plausibilidade ao atribuir o próprio desaparecimento dos indígenas a um processo de amalgamação Segundo ele os mencionados fatos confirmam o que já em outro lugar dissemos que a gente de origem européia posta em contato com a da terra não a exterminou absorveua amalgamouse com ela Tal é a verdadeira razão por que de nossas províncias desapareceu quase que absolutamente o tipo índio359 Ambos os argumentos constituemse em uma legitimação consciente da colonização portuguesa Por outro lado surpreendentemente Varnhagen manifestou um sentimento antiescravista em sua obra A insuficiência e ignorância do governo da metrópole nessa época descobrese em outras de suas providências se havia legislado para que os senhores fossem obrigados a dar o sábado livre aos escravos ou vestilos e a sustentálos bem como se as leis pudessem em tais assuntos obrigar mais os homens do que a religião e o individual interesse Acaso houvera sido a melhor época para em lugar destas leis promulgar uma pela qual se operasse nesta colônia a importante reforma da conversão da escravatura com as condições da grega e romana pagã na servidão de gleba fixa ao território garantindo a família e filha do Cristianismo como passo para a emancipação lenta Tristes deviam ser por certo as conseqüências de se embotar no coração do pobre escravo os sentimentos mais ternos de humanidade 358 Ibid p 223 359 Ibid p 246 Horizontes Identitários 110 separando com as vendas os pais dos filhos os maridos das mulheres o fiel servidor do menino que o acompanhara na infância e a quem velara na esperança de vir ele algum dia a encontrar nele um senhor amigo e grato Sem liberdade individual sem os gozos da família sem esperanças de associarse por si ou pelos filhos e netos à glória da pátria que não fixava um século para sua redenção social não havia que esperar do homem mui nobres sentimentos 360 Este é um trecho que sintetiza grande parte das convicções pessoais de Varnhagen e demonstra como elas se manifestam na sua narrativa De qualquer forma cumpre ressaltar como diz Wehling que mesmo realizando construção da memória nacional Varnhagen realizou obra científica pelos padrões da época a partir da qual contribuiu para um construto ideológico Não se trata apenas de engajamento sem mérito científico em que pese ter havido adesão a estratégias de construção da memória361 Todavia não há dúvida que sua preocupação fundamental era com os compromissos da consolidação nacional e da forma de governo362 Odalia ressalta que o que interessava a Varnhagen era demonstrar que a história colonial indica apenas um caminho para o país independente a absorção dos valores culturais europeus que são os fundamentos em que repousam e repousarão as possibilidades de nação brasileira363 Dessa forma Varnhagen mede por várias vezes o que é produzido no Brasil com o padrão europeu Assim ele afirma que a pintura que mais que as suas belas companheiras serve a comprovar o grau de civilização das nações já no Brasil se começava a apreciar ao menos nos templos cujos altares segundo o nosso rito se formam com as produções do engenho364 Em outro trecho diz que 360 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p265266 361 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p6869 362 Ibid p73 363 ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997p61 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbr downloadtextoup000007pdf 364 VARNHAGEN Op cit 1959 p 272 Salah H Khaled Jr 111 o aumento de riquezas o bem estar de muitas famílias permitia mandar à Europa prosseguir seus estudos geralmente em Coimbra muitos jovens brasileiros alguns dos quais haviam já figurado ou figuravam ainda nas letras tanto no Brasil como na Europa365 Entretanto Wehling lembra que embora afirmasse a singularidade da cultura brasileira produzida pelo povo não tinha nenhuma dúvida de que este se encontrava ainda distante do estágio plenamente civilizado europeu a que ele próprio Varnhagen aspirava conduzilo366 De acordo com Rodrigues Varnhagen tinha objetivos pragmáticos e oferecia uma lição através da história que servia à administração e ao Governo ideal que parece muito controvertido hoje367 Esse objetivo de Varnhagen transparece de forma clara em vários trechos de seu texto como por exemplo quando afirma que Gregório de Matos não soube ser útil a terra Acaso desconhecia que a missão de todo homem a quem Deus enobreceu com talentos e com gênio consiste em procurar melhorar o quanto possível a multidão368 O pragmatismo por trás de sua escrita é evidente restando apenas em aberto como a providência se encaixa em seu sistema de pensamento assunto para o ponto a seguir 213 A providência A utilização da providência na História Geral do Brasil por Varnhagen suscita questionamentos interessantes Ainda que Varnhagen se valesse de modelos dados pela historiografia clássica e fosse um conservador declarado não deixava de ter pretensão científica em conformidade com o que era posto pela modernidade Justamente aí reside uma aparente contradição Afinal considerando que boa parte do pensamento científico moderno estruturase em torno da negação da religião em prol da razão não deixa de haver uma certa surpresa na forma com que Varnhagen 365 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 270 366 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p63 367 RODRIGUES José Honório História e historiografia Rio de Janeiro Vozes 1970 p148 368 VARNHAGEN Op cit p270271 Horizontes Identitários 112 utiliza a providência para atribuir sentido a certos fatos Esse aspecto da obra de Varnhagen foi abordado por boa parte dos seus comentadores Reis por exemplo afirma que para Varnhagen com a chegada do cristianismo do rei da lei da razão da paz da cultura da civilização com a chegada dos europeus a este território o Brasil surgiu e integrouse no seio da providência369 Reis não chega a se aprofundar muito na questão mas associa a história no pensamento de Varnhagen a um sentido providencial Já para Wehling na obra de Varnhagen a obra humana e portanto a história era algo não só permitido como desejado por Deus e logo havia uma ação divina subjacente aos atos humanos aberta o suficiente para permitirlhes a liberdade de escolha em suas ações teleológicas370 Wehling especulou que Varnhagen pode ter lido Vico Vico introduziu a providência divina em sua ciência considerando que os homens fazem a história mas levando em conta no entanto uma providência geral porque na verdade acontecem muitas coisas na história que os homens não planejam371 A afirmativa parece caracterizar propriamente o sentido da providência uma interferência de ordem divina no mundo humano que no entanto não esvazia inteiramente de autonomia as ações do homem Sem dúvida a Providência Divina é algo recorrente na obra de Varnhagen e para Wehling chega às vezes quase às raias da intervenção milagrosa sobretudo quando estão em jogo valores e princípios caros ao autor como a defesa do que considera os interesses nacionais372 Os aspectos ressaltados por Wehling estão presentes em vários momentos da História Geral do Brasil Ao tratar das rivalidades entre tribos indígenas Varnhagen refere que 369 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p37 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpg PA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3 oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6 jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookresul 370 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p122123 Para Wehling quando se pensa na religiosidade de Varnhagen pensamos antes num vago espiritualismo mas dominado por uma preocupação pragmáti ca marcadamente política no sentido abrangente que tinha o conceito no século XIX Ibid p67 371 BAUMER Franklin L O pensamento europeu moderno v1 Lisboa Edições 70 p269 372 WEHLING Op cit p80 Salah H Khaled Jr 113 assim tais rixas perpetuariam neste abençoado solo a anarquia selvagem ou viriam a deixálo sem população se a Providência Divina não tivesse acudido a dispor que o cristianismo viesse a ter mão a tão triste e degradante estado373 O caráter é de intervenção e reorganização da realidade a partir da vontade divina vontade esta que pune ou premia de acordo com a circunstância Enquanto os brasileiros assim se hostilizavam e matavam uns aos outros velejava pelos mares de Pernambuco incólume e afoito o invasor DuguayTrouin que depois tomou o Rio de Janeiro segundo fica dito Nem que a Providência envie aos povos a guerra estranha para castigar sua falta de união374 Para Varnhagen parece haver uma espécie de ingerência divina sobre os acontecimentos sobre o próprio curso da história Há sobretudo um sentido teleológico providencial atribuído à história Os descobrimentos seriam inclusive eles próprios produtos de uma disposição providencial esses resultados havia Deus reservado conceder ao insígne genovês Cristovão Colombo o qual no modo como resistiu com a coragem de convicção aos obstáculos que se lhe levantaram e aos muitos desdéns com que foram escutados seus projetos nos deixou a prova do seu gênio375 Em outro trecho manifesta convicção semelhante quando afirma que no avistar terra junto à foz do Açu fora o mesmo Hojeda protegido pela Providência de um modo análogo como depois o foi Cabral376 Os comentários de Varnhagen indicam que a vinda do homem europeu estaria atrelada a um projeto providencial maior que veio a trazer a luz cristã a este continente Cezar também tratou da questão colocada pela utilização da providência por Varnhagen O autor destacou a ideia de uma explicação providencialista que se reporta reiteradamente à figura do Criador na História Geral do Brasil377 É esse 373 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p30 374 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 319 375 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p63 376 Ibid p 72 377 CEZAR Temístocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIX siècle essai sur Horizontes Identitários 114 o caso quando Varnhagen diz que não há viajante antigo ou moderno que não se extasie ante uma maravilha do Criador378 Em outro momento quando Varnhagen reflete sobre as possibilidades de vir a ser bem sucedida a colonização francesa afirma que mas melhor o tinha disposto a Providência em favor da futura unidade da atual nação brasileira que fala toda a mesma língua e professa Deus louvado a mesma religião379 As referências não são desprovidas de sentido Para Cezar a utilização da providência é importante para Varnhagen enquanto recurso explicativo pois faz parte da sua lógica interpretativa380 O trecho a seguir parece demonstrar bem essa hipótese Ao comentar os negros Varnhagen afirma que distinguemse sobretudo pela facilidade com que suportavam o trabalho no litoral do Brasil facilidade proveniente de sua força física da semelhança dos climas e não menos de seu gênio alegre talvez o maior dom com que a Providência os dotou para suportar a sorte que os esperava381 A Providência seria de certa forma um artifício narrativo utilizado por Varnhagen em sua escrita As explicações de Cezar e Wehling são pertinentes na medida em que de fato a providência parece manifestarse como uma intervenção do sagrado no profano à que Varnhagen atribui o sentido de um recurso explicativo São vários os trechos nos quais esse caráter é demonstrado na História Geral do Brasil A proposta de análise aqui levantada em relação a esse ponto é um tanto quanto diferente Embora a questão da vinculação de Varnhagen a um determinado modelo de ciência e de história já tenha sido discutida extensivamente por seus comentadores não parece que o mesmo possa ser dito da utilização da categoria providência A que Varnhagen efetivamente se reporta quando assim o faz E com quais intenções Franklin L Baumer em seu estudo intitulado O Pensamento Europeu Moderno oferece alguns elementos importantes para esta análise O autor demonstra como une rhétorique de la nacionalité Le cas Varnhagen v2 manuscrito 2002 p563 378 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 323 379 Ibid p286287 380 CEZAR Temístocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIX siècle essai sur une rhétorique de la nacionalité Le cas Varnhagen v2 manuscrito 2002 p563564 381 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 224 Salah H Khaled Jr 115 lenta e gradualmente a partir de um determinado momento da Idade Média um novo sistema de mundo conforme foi chamado por Galileu foi se impondo diante da então majoritária teoria gregocristã382 Tratase do rompimento de uma concepção de mundo que considerava a natureza como um fantoche cujos cordéis eram puxados por seu artífice o Criador No lugar de tal concepção a partir de astrônomos e cientistas físicos como Copérnico e Galileu e de filósofos como Descartes Bacon e Espinosa foi se impondo uma nova concepção de universo como máquina ou relógio No centro dessa nova concepção está a ideia de que criada a máquina esta se põe a funcionar sem necessidade de interferência por parte do Criador pois basta a si mesma Trata se de uma concepção de Deus do sétimo dia o qual se encontra em descanso e ausente após o ato da Criação Tal concepção difere radicalmente da percepção do mundo como teatro de marionetes a qual como parece evidente vinculase a ideia de providência e de condução permanente da história pelo Criador Na posição providencial há um Deus verdadeiramente onipresente e logo nada ausente Há uma grande diferença entre uma natureza que funciona teleologicamente de acordo com a condução de seu arquiteto e a ideia de natureza enquanto uma máquina que funciona de acordo com leis naturais invariáveis modelo que gradativamente vai se impondo como o padrão científico por excelência da modernidade Esse modelo triunfa na medida em que a ciência começa a delimitar que o conhecimento sobre o mundo material cabe a ela Dessa forma vai expulsando a teologia a qual cabe tratar da fé e assim afasta as explicações providencialistas É um processo de secularização que atingiu o seu ápice com o Iluminismo no século XVIII e se consolidou no século XIX O afastamento da teologia não é pelo menos inicialmente uma negação da existência de Deus Não é como se Bacon ou Descartes fossem ateus ao contrário não refutavam a ideia de criação do mundo por Deus Apenas consideravam que cabia a ciência e mais propriamente à filosofia explicálo Bacon inclusive expressamente condenou a mistura selvagem das coisas divinas com as humanas Para ele não devia ser dado à fé mais do que lhe pertencia o que retardava o desenvolvimento científico No seu sistema de pensamento ainda que a teologia conservasse parte do seu prestígio perdera a superioridade sobre a ciência Já Espinosa por exemplo era inflexível na rejeição da teleologia providencial Tratavase sobretudo de delimitar um 382 BAUMER Franklin L O pensamento europeu moderno v1 Lisboa Edições 70 Horizontes Identitários 116 campo de atuação humana e divina Descartes por sua vez reduziu a atividade divina no mundo embora não tenha a eliminado por completo Para ele Deus conservava o mundo ainda que não interferisse em seu funcionamento Tais desenvolvimentos estavam longe de ser unânimes e foram motivo de célebres polêmicas Newton foi atacado por Leibniz em função de ter mantido Deus nos bastidores como encarregado de limpar e reparar o relógio do mundo caso fosse necessário o que implicaria em providencialismo Para Leibniz o relógio havia sido feito de forma tão perfeita que seu funcionamento dispensava assistência divina Sendo assim desprezava inteiramente qualquer concepção que fizesse da máquina do mundo algo tão imperfeito que Deus fosse obrigado a limpála e remendála a todo tempo Para Leibniz embora Deus pudesse fazer milagres não os fazia Mesmo para pensadores profundamente cristãos a ciência implicava em uma laicização do conhecimento Locke preocupou se em provar a existência de Deus e a justeza do cristianismo Entretanto refutou completamente o direito divino dos reis A figura de Deus não havia sido inteiramente expulsa do mundo de imediato mas o mundo começava a aparecer menos como o cenário de peregrinação natural do homem e mais como campo para exercício do poder humano Havia um processo de secularização da história em curso Hobbes foi um dos críticos mais ferrenhos do providencialismo e até mesmo da crença religiosa A associação direta de Varnhagen ao pensamento de Hobbes por exemplo é questionável na medida em que Hobbes foi um dos poucos pensadores do seu tempo que ousou relacionar a religião ao medo e a ignorância pensando claramente que se tratava de superstição ou então um decreto do soberano no interesse da ordem pública Para Baumer com algumas exceções os filósofos naturais do século XVII queriam ter o melhor de dois mundos isto é manter Deus em alguma medida como criador e garantidor da certeza científica e ao mesmo tempo reduzir o seu providencialismo no interesse da capacidade preditiva da ciência383 Estabelecia se aos poucos uma dicotomia entre os que acreditavam em um Deus que havia criado o mundo mas não o governava e os que acreditavam em uma providência geral que conduzia a história perspectiva que cada vez mais estava cercada de descrédito No final do século XVII o Bispo Bossuet escrevia que temia uma nova era de intemperança do espírito a seguir a uma época de obediência a Deus e ao Rei 383 BAUMER Franklin L O pensamento europeu moderno v1 Lisboa Edições 70 p96 Salah H Khaled Jr 117 Ele observava uma grande batalha que estava a se preparar contra a religião O secularismo avançava na medida em que havia uma tendência a limitar cada vez mais a teologia a uma esfera comparativamente restrita da fé e da moral É nesse contexto que me parece interessante pensar a utilização constante da providência por Varnhagen em sintonia com o seu habitual pragmatismo Para Bossuet não se devia falar em fortuna ou sorte na História Antes disso a longa cadeia de causas particulares que fazem e desfazem impérios depende das ordens secretas da Divina Providência384 Em Varnhagen de forma muito semelhante a Providência de certa maneira ainda governa o mundo Para Baumer a revolução científica foi entre outras coisas um juízo sobre a história385 Varnhagen estava alheio a tal processo Como diz Wehling o ancien régime subsistia na concepção de Varnhagen sua idéia de monarquia aristocrática chocavase com os novos tempos de liberalismo e da monarquia constitucional386 O autor salienta em sua obra como Varnhagen na verdade aderia a um modelo de monarquia que se referia aos séculos XVI e XVII387 Para Varnhagen uma concepção providencialista de história era essencial e estava em seus próprios fundamentos políticos O fato é que em virtude de seu conservadorismo Varnhagen fez questão de refutar grande parte da virada de um pensamento sobrenaturalistamíticoautoritário para um tipo naturalistacientíficoindividualista característico da modernidade Assim como era intolerante e implacável com democratas e republicanos era adepto fervoroso do cristianismo o que implicava em uma visão providencialista da história e o afastava da modernidade Voltaire inventou o termo filosofia da história e o fez como a ideia de verdades úteis extraídas do passado que poderiam ser aplicadas no presente388 Entretanto deveriam ser utilizadas no combate contra a ignorância e o fanatismo uma conotação inteiramente diversa do sentido exemplar atribuído por Varnhagen à história O mesmo Voltaire tinha sérias dúvidas sobre a divina Providência em face de grandes acidentes físicos como o terremoto de Lisboa Não há dúvida 384 APUD BAUMER Franklin L O pensamento europeu moderno v1 Lisboa Edições 70 p142 385 BAUMER Op cit p152 386 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p99 387 Wehling afirma que Varnhagen era favorável a Uma monarquia estamental à portuguesa patrimo nialista e efetivamente mais bemsucedida em matéria de centralização do que suas congêneres norte européias e na qual o rei poderia ou deveria assumir junto com a burocracia e seusintelectuais o papel de amálgama da nacionalidade Ibid p119 388 BAUMER Op cit p266 Horizontes Identitários 118 que a interpretação providencialista da história encontravase em franca decadência no século XIX389 Rosseau defendeu a ideia de uma religião civil em oposição ao cristianismo para inculcar lealdade ao Estado e aos deveres da cidadania O iluminismo francês era em alguns momentos eminentemente antirreligioso ou anticristão Não é por acaso que Varnhagen tinha tantas resistências a ele e se valia da modernidade quase que exclusivamente em função de desenvolvimento e progresso de ordem material A lealdade que ele deseja incentivar é a outro modelo de sociedade para o qual o seu pragmatismo estava orientado a concretizar através da História Geral do Brasil Como comenta Hobsbawm alguns padrões que tradicionalmente haviam garantido a lealdade como a legitimidade dinástica a ordenação divina o direito histórico e a continuidade da dominação ou a coesão religiosa estavam seriamente enfraquecidos390 De forma que todas essas tradicionais legitimações da autoridade estatal estavam desde 1789 sob permanente desafio esse era claramente o caso da Monarquia391 A História de Varnhagen se propõe portanto a ser um novo guia sob a chancela da ciência justamente no momento em que a autoridade religiosa e monárquica se enfraquecia cada vez mais Nesse sentido era realmente providencial a sua intervenção na realidade concreta 22 As partes se tornam um todo a partir da narrativa nacional uma história geral da nação brasileira Unidade territorial e unidade racial se integram e se confundem na mística de que só uma nação unitária tem condições de sobreviver Não existem espaços para que se manifestem livremente os elementos heterogêneos raciais ou políticos sociais ou econômicos originários do período colonial A nação é compreendida como um bloco monolítico onde qualquer voz discordante é um perigo e uma ameaça a serem extirpados Nilo Odalia 389 Ibid p271 390 HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p105 391 Ibidem Salah H Khaled Jr 119 Não há dúvida que a História Geral do Brasil foi concebida para cumprir papel instrumental na consolidação da nação brasileira392 Conforme os critérios estabelecidos por Martius coube a Varnhagen a missão de elaborar a nação retrospectivamente projetando as ambições do Império Brasileiro sobre o Brasil colonial e dessa forma inventar uma nação brasileira393 Para isso ele teve que elaborar retrospectivamente um BrasilNação no passado394 Isso no entanto estava longe de ser algo simples Varnhagen tinha um imenso desafio pela frente Fazer do Brasil um todo o mais homogêneo possível a partir do seu passado Por isso a ideia de uma história geral Essa missão passava em primeiro lugar por conferir ao país um sentido uno que imprimisse a ideia de coesão Para tanto por excelência teria que reunir o que era disperso395 Assim desde o princípio da obra Varnhagen se refere ao Brasil como uma entidade conjunta e busca prefigurar a colônia como uma nação em pleno século XVI396 Os próprios títulos dos capítulos são quase sempre genéricos possibilitando a reunião de informações que não apresentam relação direta entre si A narrativa de Varnhagen começa com uma descrição geral do Brasil sendo este o título do primeiro capítulo Logo de início é explicada a origem por trás da nomenclatura do país que se faria célebre por muito tempo em livros escolares 392 Wehling afirma que É este o sentido que Varnhagen em correspondência ao imperador atribuiu à sua obra maior realizar uma história geral do país quando seria somente possível em sociedades com muito maior sedimentação histórica WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p112 393 Para Cezar Varnhagen foi o primeiro a inventar uma história geral do Brasil Invenção está sendo entendida como o processo criador que articula o conjunto das matérias selecionadas pelo historiador sejam elas de caráter metodológico ou teórico em sua escrita CEZAR Temístocles Varnhagen e os relatos de viagem do século XVI ensaio de recepção historiográfica In Anos 90 n11 Porto Alegre julho de 1999 p52 Disponível em httpwwwseerufrgsbrindexphpanos90articleview65413893 394 Hobsbawm comenta que obviamente o conceito e o vocabulário de nação política poderia oportu namente ser estendido para uma nação constituída presumivelmente pela massa dos habitantes de um país mas isso quase certamente aconteceu muito depois de sua formulação pela visão retroativa do nacionalismo HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p89 395 Wehling afirma que Assim Varnhagen concebeu a história políticoadministrativa colonial como ten são permanente entre o poder local e o poder central aquele duplamente negativo porque sacrificava os objetivos maiores da colonização portuguesa a interesses paroquiais e porque projetado para o fu turo comprometia o legado maior da Colônia justamente a unidade do país WEHLING Op citp183 396 Cezar afirma que Varnhagen pretendia encontrar o começo da nação brasileira que ele tem certeza está ali no século XVI em algum lugar CEZAR Temístocles Varnhagen e os relatos de viagem do século XVI ensaio de recepção historiográfica In Anos 90 n11 Porto Alegre julho de 1999 p51 Disponível em httpwwwseerufrgsbrindexphpanos90articleview65413893 Horizontes Identitários 120 TERRA DO BRASIL ou somente BRASIL foi o nome dado pelos Portugueses à parte mais oriental do novo continente em virtude de haverem aí encontrado em abundância certo lenho que subministrou ao comércio uma tinta vermelha análoga à que até então com esse nome a Europa importava da Ásia397 A utilização de letras maiúsculas por Varnhagen parece denotar o sentido de grandeza e imponência que ele busca atribuir à nação sendo a partir desse enfoque que ele procede sua descrição Evidentemente munido de um espírito pragmático como estava Varnhagen não se contentava em fazer meras descrições e em seguida já dá o tom de ufanismo que caracteriza sua obra exaltando as dimensões do Império do qual é cronista e ressaltando a sua coesão Mais tarde a denominação de BRASIL veio a fazerse extensiva ao conjunto de todas as colônias portuguesas neste continente as quais emancipandose vieram a constituir o atual império brasílico hoje em dia um dos Estados de maior extensão no globo de cuja superfície terrestre abrange proximamente a décima quinta parte398 O termo Brasil novamente com a utilização de letras maiúsculas configura a designação conjunta de todas as antigas posses portuguesas o que denota a coesão desejada Ele reforça o sentido de grandeza e união através de termos como conjunto império e extensão O destaque dado ao termo extensão por exemplo demonstra a preocupação com a manutenção da integridade do território nacional e de um império que legitimado pelas suas grandes dimensões territoriais busca lugar entre as mais prósperas nações Segundo ele desde os primórdios de sua existência o Brasil já estava configurado com a sua designação compreendendo o conjunto das colônias portuguesas Varnhagen procura estabelecer um Brasil do qual os brasileiros poderiam se orgulhar e assim busca estimular o sentimento nacional Essa perspectiva de exaltação se estende inclusive à natureza Varnhagen afirma que no Brasil a natureza é tão fecunda que permite conseguir talvez resultados iguais aos de outros países com a metade do trabalho399 Em outro trecho comenta toda a riqueza do seu solo e a magnificência de suas cenas naturais e a bondade dos seus portos 397 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p13 Grifo nosso 398 Ibidem Grifo nosso 399 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 223 Salah H Khaled Jr 121 tão prestantes ao comércio400 O tom é de elogio que entretanto não se estende a todos os aspectos da antiga colônia Uma descrição geográfica do Brasil em virtude de sua própria extensão territorial deveria implicar pelo menos a princípio em certo destaque à diversidade regional Não é o que ocorre Mesmo em meio a passagens mais descritivas e com pouca ou nenhuma conotação social e política são raríssimos os momentos em que Varnhagen menciona mesmo que rapidamente alguma característica regional Em um trecho no qual descreve a flora comenta que a mesma oferece ao país vários contrastes regionais401 Mas são exceções402 Sua preocupação é geral a ponto de borrar ou eliminar por completo o local Varnhagen está preocupado em fazer com que o leitor sintase como parte de um Brasil íntegro coeso uno e indiviso e para tanto deve suprimir tudo que não contribua para essa percepção O tom da obra é inequívoco e já ressalta aos olhos nas primeiras frases Ao final de um momento introdutório ao leitor há uma breve síntese do espírito da narrativa a qual abarca grande parte dos elementos mais marcantes do texto de Varnhagen Como e quando se inteirou Portugal da existência do legado a que com poucos anos de antecipação dera herdeiro o tratado testamentário de Tordesilhas como o descuidou a princípio e o beneficiou e aproveitou depois e finalmente como através de muitas vicissitudes incluindo acontecimentos e guerras por parte de gentes das quatro nações que além de Portugal mais se ocuparam de colônias do século dezesseis para cá isto é da Espanha França Inglaterra e Holanda veio a surgir na extensão de território que o mesmo legado abarcava um novo Império a figurar no Orbe entre as nações civilizadas regido por uma das primeiras dinastias de nossos tempos tal é o assunto da presente História403 Assim Varnhagen já estabelece de antemão o esforço de superação heroica feito pelos portugueses para conquistar essas terras as imensas dificuldades e os poucos erros cometidos os embates contra as nações inimigas a pretensão do Brasil de ser uma nação civilizada de acordo com o padrão Europeu a defesa da 400 Ibid p19 401 Ibidem 402 CEZAR afirma que assim a unificação imaginária do território precede portanto à unidade polí tica CEZAR Temístocles Américo Correa A geografia servia antes de tudo para unificar o Império escrita da história e saber geográfico no Brasil oitocentista In Ágora Santa Cruz do Sul v 11 n 1 janjun 2005 p80 403 VARNHAGEN Op cit p67 Grifo nosso Horizontes Identitários 122 dinastia de Bragança e assim por diante É quase que uma espécie de guia de leitura um norteador de forma que o leitor já fica a par do que irá encontrar na obra que se constitui em um desdobramento em ordem cronológica dos aspectos que Varnhagen privilegia na formação histórica brasileira de acordo com o sentido pragmático estipulado pelo IHGB e definido com maior precisão por Martius O lugar de onde Varnhagen fala de onde expressa a sua escrita é inteiramente presente na sua própria forma de compreensão e invenção de uma narrativa nacional O olhar de Varnhagen sobre o passado colonial é inteiramente teleológico nação civilização e progresso apresentamse como associações evidentes e demonstradas pela história De alguma forma todos os acontecimentos desde a chegada dos portugueses sinalizavam para a realização de um grande Império brasileiro que vem agora integrarse às grandes nações civilizadas A narrativa nacional de Varnhagen tem caráter de glorificação do feito português já prefigurado desde os tempos coloniais404 Nesse sentido é interessante demonstrar por exemplo como ele já projetava desde o descobrimento a possibilidade de estabelecerse um novo império na colônia pois já havia a idéia que no Brasil poderia vir a organizarse um grande império a metrópole aguardava acaso para isso a melhor ocasião405 Varnhagen enxerga no passado com a chegada dos portugueses a fundação das bases do que viria a ser o Brasil independente e delimita um espaço de continuidade entre aqueles esforços iniciais e a sua eventual consagração no século XIX Seu raciocínio é configurado a partir da projeção Sua escrita é determinada por esse fim a legitimação do presente Sendo assim a partir da organização de seis companhias e da posterior permanência de oitenta homens darmas Varnhagen vê a origem de um primeiro contingente de exército no Brasil406 Quanto ao descobrimento Varnhagen não tem dúvida que embora motivado 404 Para Reis o olhar de Varnhagen sobre a história do Brasil é o olhar do colonizador português ele reconstrói o Brasil sintetiza os seus diversos ritmos temporais submetendoos à lógica do desco bridor e do conquistador REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p33 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid 9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColon izaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShc TbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookresul 405 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 106 406 Ibidem p280 Salah H Khaled Jr 123 pelo comércio407 tratouse de um descobrimento casual desta região408 Tratase de uma explicação que predominou durante muito tempo o que demonstra o quanto foi forte a fundação de sentidos a partir da História Geral do Brasil Para Varnhagen é com a chegada dos portugueses que essa região passa efetivamente a ter uma história409 Isso não significa todavia que é a Portugal que Varnhagen confere louvor Como é peculiar em toda a obra esse novo império ainda que reconhecendo a dívida para com Portugal e a importância do seu legado seria evidentemente superior pois é o Brasil que deve ser enaltecido Do alto desse morro se descobria o mar fenecendo no horizonte e os que com o pensamento na pátria sobre a superfície das águas estendiam saudosos os olhos mal podiam imaginar a importância e grandeza da terra compreendida dentro da demarcação ajustada em Tordesilhas cuja existência iam revelar ao mundo civilizado E menos por certo imaginariam que nessa terra dentro de algumas gerações se havia de organizar uma nação mais rica e mais considerável do que a mãepátria410 Varnhagen enfatiza o valor da nova terra e novamente a sua grandeza Ele posiciona o Brasil acima de Portugal no presente e equipara o descobrimento ao efetivo ingresso da posse portuguesa na civilização Não há dúvida que ele constrói uma narrativa do passado a partir do presente prefigurandoo em seu relato nacional411 Seu ponto de vista é condicionado pelo projeto de nação que busca legitimar iniciativa em torno da qual não medirá esforços Varnhagen elabora uma memória nacional que pretende fundar sentidos sobre a nação fazer com que os brasileiros passem a 407 Varnhagen afirma que os interesses do comércio mais que a curiosidade natural ao homem e que a sede de conquistas tem sido em geral a causa da facilidade do trato e comunicação dos indivíduos da espécie humana entre si Foi ao da especiaria do Oriente que originariamente se deveu o grande acontecimento que denominamos Descobrimento do Novo Continente Ibid p59 408 Ibid p 70 409 Reis ressalta que para Varnhagen na verdade só então começava a história do Brasil Os capítu los anteriores eles só prepararam essa chegada descrevendo o cenário em que ela ocorreria REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p38 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgP A23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortugues asourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8 Ab258VasaXoibookresul 410 VARNHAGEN Op cit p70 Grifo nosso 411 GUIMARÃES afirma que O século XIX nada mais seria do que a realização de potencialidades inatas detectadas com o auxílio da pesquisa histórica Mas até que ponto podemos e devemos nos perguntar é um olhar do presente do século XIX que recorte e constrói esta linha de continuidade a partir de inúmeras determinações próprias e este século GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado De Paris ao Rio de Janeiro a institucionalização da escrita da história In Acervo v04 n 01 p137138 Horizontes Identitários 124 sentirse ligados ao Brasil e orgulhosos de sua história e por extensão conectados ao Império e à Monarquia Esse é o caráter do seu grande relato da nacionalidade Esse esforço narrativo de legitimação tem que lidar inevitavelmente com a questão indígena Afinal o ingresso no mundo civilizado implica em alguma medida em uma ruptura com um padrão social anteriormente estabelecido e essa ruptura deve ser apresentada como uma decorrência necessária e desejável nunca como o resultado de uma brutalidade violenta e de um processo de espoliação Para Varnhagen a tomada de posse dessas terras através da conquista apenas configura a efetivação de uma propriedade já legitimada pela chancela papal com o Tratado de Tordesilhas412 Mas e quanto aos nativos Ao passar para a descrição dos indígenas Varnhagen apresenta dados estatísticos de veracidade duvidosa para legitimar a colonização e como é de seu costume usa o presente como parâmetro para emitir juízos sobre o passado Varnhagen afirma que toda a extensão do Brasil está hoje oito ou dez vezes tanto mais povoada do que no tempo em que começou a colonização e que por conseguinte nem chegariam a um milhão os índios que percorriam nessa época este vasto território hostilizandose uns aos outros às vezes a cada duas léguas se a terra atraia por pingue mais alguma gente413 Como parte integrante de seu processo de construção de legitimidade da vinda dos portugueses Varnhagen desmerece as comunidades nativas tanto pelo seu caráter quanto pelo seu escasso número diante de um território tão vasto Além disso ao discutir a utilização do termo índio Varnhagen diz que afirmamos ser menos exata a expressão indígenas porque as gentes que possuíam ou antes percorriam o território eram apenas as últimas invasoras dele414 Assim quando ele fala dos índios 412 Reis afirma que Varnhagen Cabral em terra põe então retoricamente a questão da sua proprie dade pertenceria aos portugueses E responde pertencia sim desde 1494 isto é antes de ter sido descoberta pelo Tratado de Tordesilhas assinado por portugueses e espanhóis diante do papa REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p38 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgP A23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortugues asourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8 Ab258VasaXoibookresul 413 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p23 414 Ibid p 89 Grifo nosso Salah H Khaled Jr 125 do Brasil em geral os considera de pouco valor visto que além de pouco numerosos eram apenas os últimos invasores dessas terras descendentes dos egípcios415 Portanto se os índios eram eles mesmos invasores não há o que se questionar a respeito da ocupação portuguesa Tais invasores que haviam exterminado os supostamente pacíficos habitantes originais da região viriam a enfrentar um acerto de contas com o destino pois Varnhagen afirma que a seu turno devia chegarlhes o dia da expiação Veio a trazê lo o descobrimento e a colonização efetuados pela Europa Cristã416 A colonização que introduz a civilização na região passa a ser vista sob essa ótica como uma espécie de exercício de justiça divina um acerto de contas da Providência com os bárbaros O fato dos indígenas não estarem estabelecidos de acordo com os padrões esperados de uma sociedade civilizada também justifica a colonização pois é conhecido é o axioma de estatística que em qualquer país a povoação só toma o devido desenvolvimento quando os habitantes abandonam a vida errante ou nômade para se entregarem à cultura ou aproveitamento da terra com habitações fixas417 Em última instância a incapacidade dos índios medese pela sua inabilidade em estabelecer um Estado centralizado missão da qual os conquistadores irão se encarregar Uma vez que Varnhagen supera a questão indígena pode passar para o que realmente lhe interessa ou seja a transposição da civilização europeia para os trópicos processo que começa segundo ele de fato a partir de 1530 Ao comentar a fundação de vilas Varnhagen afirma que assim surgiu a primeira colônia regular européia no Brasil E dizemos a primeira porque não podemos chamar colônias regulares as pequenas feitorias provisórias fundadas antes nenhuma das quais vingou até chegar a ter as honras de povoação e de vila418 415 Para Varnhagen fazemnos crer que eram de raça aparentada com os Egípcios os ascendentes dos nossos Tupis É mui possível que o foco neste continente desta grande nação que chama remos indistintamente Tupi ou Carib Em todo o caso para nós não cabe a mínima dúvida que os Caribs ou Tupis haviam com inauditas crueldades invadido uma grande parte do lado oriental deste continente cujos anteriores habitantes bem que em maior atraso eram em geral mansos e timora tos VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p5556 416 Ibid p56 417 Ibid p24 418 Ibid p 129 Horizontes Identitários 126 Assim ele comemora o início da colonização propriamente dita na medida em que começava a ocorrer a ocupação do território Segundo Varnhagen a partir daí as bases da nação estavam em pleno processo de implantação e tinha início o processo de imposição da civilização sobre a barbárie De acordo com esse entendimento Varnhagen afirma que Martim Afonso não se limitou a fundar uma só vila assentou de reforçar esta contra qualquer tentativa de inimigo marítimo com outra povoação sertaneja que ao mesmo tempo servisse de guarda avançada para as futuras conquistas da civilização419 Para ele há uma associação íntima entre a colonização e um verdadeiro esforço civilizatório Ou melhor dizendo há uma equiparação Colonizar é civilizar Esta explicação é sobretudo útil Para que o aspecto pragmático seja contemplado desde o princípio da chegada dos portugueses é necessário um vínculo que faça com que o sentido da colônia aponte para a realização de um país civilizado de acordo com os moldes europeus Escusamos dizer que estas vilas foram fundadas sem diferença alguma do que se passaria tratandose da instalação de qualquer colônia em uma paragem menos povoada de Portugal Subentendeuse que em legislação e em tudo os novos moradores e os descendentes destes teriam em relação à metrópole os foros de naturais e seriam governados pelas mesmas leis vigentes 420 O Brasil é assim estabelecido por Varnhagen como uma reprodução de Portugal como um território que já nascia conforme os altos padrões da civilização europeia Quando ele passa para a questão das capitanias faz uma avaliação razoavelmente abrangente do sistema que as introduziu Compreendiamse nas doações as ilhas que se achassem até a distância de dez léguas da costa continental As raias entre capitania e capitania se fixaram por linhas geográficas tiradas de um lugar da mesma costa em direção a oeste Assim o território ficou verdadeiramente dividido em zonas paralelas porém umas mais largas que as outras Este meio de linhas retas divisórias imaginárias que ainda com os mais exatos instrumentos num terreno muito conhecido seriam quase impossíveis de traçar era o único que se podia lançar mão pelo quase 419 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 130 420 Ibid p 133 Salah H Khaled Jr 127 nenhum conhecimento corográfico que havia do país além do seu litoral Em algumas doações nem foi possível declarar o ponto em que principiavam ou acabavam Incluíase apenas a extensão da fronteira marítima e designavamse os nomes dos dois donatários limítrofes421 Aqui Varnhagen evidencia a tensão que marca a sua narrativa em relação a Portugal por um lado ele lamenta a concessão de poder aos donatários quando na Europa a tendência era a sua concentração mas por outro lado afirma que não há dúvida que por muito entraria no ânimo do soberano o pensamento de propagar o evangelho mas ele o faria faltando aos seus deveres se o executasse empobrecendo em gente e em recursos o povo que regia sem esperanças de retribuição422 Percebase que Varnhagen preocupase desde os primórdios da colonização em determinar que a autoridade sobre o país deve ser exercida pela Monarquia Se ela se encontrava então situada em Portugal é mero detalhe O que importa é legitimar a sua autoridade perante o leitor Varnhagen justifica a recompensa aos irmãos Souza na concessão com base nos serviços prestados ao Brasil Doze foram os donatários mas verdadeiramente quinze os quinhões visto que os dois irmãos Sousa tinham só para si cento e oitenta léguas distribuídas em cinco porções separadas e não em duas inteiriças Com razão deviam eles de ser pelos serviços importantes que acabavam de prestar no próprio Brasil os mais atendidos na partilha423 Aqui Varnhagen também demonstra outra característica de sua narrativa nacional o reconhecimento dos serviços prestados à nação Quando ele considera que houve injustiça e não reconhecimento na época trata ele mesmo de conferir a seu escolhido a glória para toda a posteridade através da história Em seguida Varnhagen procede uma descrição breve das capitanias e de seus donatários mas em compensação critica a extensão de território concedida e afirma que 421 Ibid p 141 422 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 147 423 Ibid p 141 Horizontes Identitários 128 com doações pequenas a colonização se teria feito com mais gente e naturalmente o Brasil estaria hoje mais povoado talvez do que os Estados Unidos sua povoação seria porventura homogênea e teriam entre si as províncias menos rivalidades que se ainda existem procedem em parte das tais grandes capitanias Pois é possível crer que esses poucos que competiam para ser donatários como diz o conde da Castanheira se não contentassem sem a idéia do domínio de muita terra embora inútil e sobre que nem sequer podiam saciar com os olhos mas só com a imaginação sua cobiça quando na maior parte eram de sertão onde não poderiam ir nem foram em sua vida O mal foi fazerse tudo às pressas424 Varnhagen escolhe cuidadosamente suas palavras É um ponto no qual ele ataca um problema concreto e evidente para a questão nacional a insubordinação provincial Assim ao sutilmente abordar o assunto através das capitanias Varnhagen atribui a existência de qualquer rivalidade no presente entre as várias províncias a um erro estratégico por parte da administração portuguesa o qual quase comprometeu e ainda representa um entrave ao desenvolvimento da nação O ensinamento é claro a divisão é um resto indesejável produto de um equívoco administrativo que deve ser superado pela coesão do todo nacional Varnhagen está aqui jogando com uma tensão que é inerente a toda sua obra o relacionamento entre o Brasil e Portugal Sua solução geralmente é a mesma critica moderadamente os equívocos mais evidentes sem entretanto deixar de justificar a empreitada portuguesa425 Todavia por vezes as conclusões a que ele chega são verdadeiramente surpreendentes e se deslocam da exemplaridade para um pragmatismo que parece exagerado Deste modo a coroa chegava a ceder em benefício dos donatários a maior parte dos direitos majestáticos e quase conservava sobre as novas capitanias brasílicas um protetorado com poderes mui limitados a troco de poucos tributos incluindo o do dízimo do qual tributo ela mesma pagava o culto público e a redízima aos senhores de terras Quase que podemos dizer que Portugal reconhecia a independência do Brasil antes de ele a colonizar426 424 Ibid p 146 Grifo nosso 425 Assim Varnhagen dirá que Em todo caso por meio do estabelecimento destas capitanias pensou o governo de D João III sem lesar diretamente o tesouro da nação não só assegurar esta grande extensão de terra que a fortuna lhe outorgara como com o tempo recolher por meio da cultura dela maiores vantagens VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 147 426 Ibid p 152 Salah H Khaled Jr 129 A afirmação é extremamente ousada Em um momento Varnhagen critica a autonomia das capitanias que relaciona com a rebeldia provincial Mas em outro momento não deixa de aproveitar essa própria autonomia agora configurada como do Brasil e assim por extensão nacional como um sinalizador da eventual independência Parece haver um excesso nesse trecho Todavia como Varnhagen está preocupado em justificar e legitimar um Brasil independente não deixa de ser coerente com seu ponto de vista pragmático Varnhagen inclusive enxerga nesses momentos iniciais os princípios de uma autonomia administrativa e financeira427 Para ele o Brasil do século XIX não é uma jovem nação ameaçada por tensões que colocam a fragmentação como uma ameaça concreta às suas pretensões pelo contrário ainda que a independência demorasse a se consolidar em sua plenitude a existência da nação brasileira já se encontra chancelada pela sanção dos séculos De qualquer forma um passo a mais no reconhecimento da independência a que Varnhagen se refere vem com o estabelecimento de uma autoridade centralizada no país com o governo geral428 Ele afirma que estava resolvido o governo da metrópole a delegar parte da sua autoridade em todo o Estado do Brasil num governador geral429 Para Varnhagen com a instalação do Governo Geral e portanto com a presença do Estado estariam reunidas condições para a consagração do Brasil nação em pleno século XVI430 Segundo ele o esforço civilizatório e fundacional estava em pleno curso e se via reforçado uma vez que a centralização administrativa propriamente dita era acompanhada dos negócios da Justiça e dos da Fazenda sujeitos aos cargos de 427 É o caso quando ele fala de São Vicente Quando passou a ter um engenho de açúcar moente e corrente permitiu que o país se pudesse reger e pagar seus funcionários sem sobrecarregar o tesouro da metrópole Ibid p 168 428 Varnhagen afirma que graças à presença na corte de Pêro de Góis e a sua ilustração e gênio ativo se assentou em fim do mencionado ano de 1548 no melhor partido qual o de criar no Brasil um centro de poder para acudir onde houvesse mais necessidade Foi também resolvido que se retirassem aos donatários algumas das prerrogativas de que não tinham sabido usar convenientemente como a al çada que no cível e no crime possuíam sobre os colonos devendo desde então entrar em suas terras corregedores e outras justiças e podendo eles ser suspensos das suas jurisdições VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 230 429 Ibid p 232 430 Segundo Odalia o erro de se pretender colonizar o Brasil sob uma forma feudal é reconhecido rapidamente pelo Estado que poucos anos depois convencido de que a solução adotada não era a mais conveniente para a preservação da colônia instala um governo central cujos objetivos seriam entre outros criar um centro de ordem e acudir à unidade que perigava pela existência das capitanias ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p72 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdo wnloadtextoup000007pdf Horizontes Identitários 130 ouvidorgeral e de provedormor que pela mesma ocasião se instituíram431 Varnhagen comemora o Brasil começava a ser moldado ao padrão da sociedade europeia e o Estado retomava o poder soberano após uma concessão de liberdade exagerada432 O processo de instalação de uma estrutura administrativa nos moldes europeus é festejado por Varnhagen pois a partir daí inicia em sua visão um processo de extensão dessa autoridade sobre o território que pouco a pouco vai se configurando como nacional Varnhagen relata que prosseguiu Mem de Sá viagem até entrar na Bahia e desde logo em harmonia com a idéia de fundar outra cidade real no sul do Brasil começou a insistir pela colonização do Rio de Janeiro a fim de que também no melhor porto do sul houvesse outra cidade salvadora destas paragens433 Varnhagen iguala colonização à salvação Iguala portanto soberania e estabele cimento de controle sobre o território a uma missão cujo caráter é cívico Ele celebra o expansionismo como algo incentivado e aprovado sempre que associado a uma ação de Estado o que reforça o sentido geral da sua narrativa Nesse sentido por exemplo é louvável a ideia de empreender e levar a cabo uma grande empresa da civilização a fundação da capitania de Sergipe Além das razões que deviam mover os dois governantes a cometer a ação piedosa de reduzir à cristandade a terra onde havia tido lugar o martírio do primeiro prelado do Brasil antecessor de um deles e do pai do outro militavam ademais outras de estado mui poderosas que aconselhavam a ocupação dessa paragem434 Percebese com facilidade a presença de uma antinomia entre civilização e barbárie A expansão do domínio português é efetivamente a promoção da ordem contra o caos do civilizado contra o bárbaro jogo de opostos característico da narrativa nacional de Varnhagen Esse é um esforço que implica no pagamento de um 431 VARNHAGEN Op cit p 232 432 Dessa forma segundo Odalia estamos já em presença do Estado tal como o entende Varnhagen um Estado centralizador e autoritário que assume desde o princípio os fios tênues de uma unidade continuamente ameaçada por inimigos internos originados da repartição do Brasil em capitanias e externos corsários e piratas estrangeiros ODALIA Op cit p73 Disponível em httpwwwdominio publicogovbrdownloadtextoup000007pdf 433 VARNHAGEN Op cit p 307 Grifo nosso 434 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 32 Grifo nosso Salah H Khaled Jr 131 preço alto mas justificado pois é feito em nome da nação brasileira Pouco a pouco ele vai definindo o imenso esforço realizado pelos colonos sacrificados para garantir o sucesso da nova nação Assim por exemplo a nova colônia de Piratininga tão exposta às agressões do gentio do sertão tudo sacrificou a boa gente para o bem da nova pátria comum Qual fênix que sucumbe por dar vida à sua prole assim a colônia mais antiga do Brasil se exaure agora de forças e não cura mesquinhamente se isso prejudicará ao seu futuro desenvolvimento e concorre quanto pode a dar existência a um empório mais poderoso435 Varnhagen não se constrange diante da ousadia inerente à afirmação de que poderia haver algo como uma nova pátria comum nos primórdios da colonização A prefiguração da nação é a regra na sua narrativa Além disso a utilização de termos como a fênix que renasce das cinzas também demonstra outra característica da narrativa nacional de Varnhagen Ele joga com as dificuldades constantemente sinalizando para a união em torno do bem comum como o caminho para o sucesso da pátria e sua elevação à condição de país desenvolvido Diante das dificuldades a união vai tomando lugar fazendo com que a dispersão provocada pela infeliz distribuição das capitanias vá lentamente dando lugar a um Brasil coeso que compartilha o sofrimento mas também a glória que aponta para a condição de nação civilizada e aqui nos cumpre notar que os esforços simultâneos que ora faziam não só esta como outras capitanias contra o inimigo comum eram novos elementos que iam estreitar pelos laços do coração a futura união brasileira que os holandeses contribuíram depois a fazer apertar muito e a Deus praza que para todo o sempre a fim de que esta nação possa continuar a ser a primeira deste grande continente antárctico e algum dia se chegue a contar entre as mais consideradas no universo o que sem muita união nunca poderá suceder436 Aqui novamente Varnhagen emprega cuidadosamente os termos de acordo com os efeitos que pretende despertar no seu leitor Assim ele enfatiza de um lado os esforços contra o inimigo comum a quem irá contrapor os nossos como será abordado no próximo trecho deste capítulo e de outro a ideia de união afetiva em torno da nação apertada pelos laços do coração Varnhagen pretende comover 435 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p313 Grifo nosso 436 Ibidem Horizontes Identitários 132 pretende produzir identificação Ele dificilmente poderia ser mais enfático na defesa de um Brasil íntegro Esse objetivo inclusive faz com que ele demonstre a sua insatisfação com tudo que afasta o país de tal ideal Como Varnhagen está interessado na união e coesão para evitar a desintegração territorial vê com ceticismo ou reprovação todas as iniciativas que de alguma forma possam no passado ter prejudicado a noção de todo que ele deseja incentivar inclusive as que partiram de Portugal437 Dessa forma vai considerar negativamente o que ela acusa como um desmembramento do Brasil visto que já o prefigurava em certa medida como uno e coeso Apesar da glória que nessas jornadas adquiriram os colonos do Sul como na do rio Real os do Norte a experiência fizera conhecer inconvenientes na desmembração do Brasil cujas forças com a divisão se enfraqueciam notavelmente de modo que se tornavam menos aptas para acudir juntas a um ponto onde se apresentasse o perigo438 Novamente Varnhagen reforça a união Face ao perigo as capitanias devem acudir juntas Afinal a ameaça a uma capitania é ameaça a todas pois o Brasil é por ele percebido como um todo A divisão pode apenas favorecer a vulnerabilidade e os ataques seja de selvagens ou de estrangeiros Varnhagen é muito cuidadoso com as atitudes que não são estimuladas pelo Estado pois podem implicar em uma autonomia que ele não deseja incentivar Entretanto tal cuidado contém exceções É o caso por exemplo dos bandeirantes Embora desprovida de um cunho precisamente estatal a obra dos bandeirantes foi por ele considerada exemplar para a constituição territorial do país439 É uma das situações na qual a iniciativa privada é bem vinda pois está de acordo com o projeto nacional Não há dúvida que o rótulo de historiador pragmático é adequado a Varnhagen como uma leitura cuidadosa do seu texto demonstra A preocupação do autor em fazer com que os habitantes do país se percebam como parte integrante de um todo uno coeso e integro é verdadeiramente obsessiva e a forma com que ele trabalha para inspirar essa união está longe de ser sutil como o parágrafo a seguir demonstra 437 Varnhagen relata que Men de Sá não teve por sucessor um governadorgeral teve dois Em fins de 1572 resolveu a coroa dividir o Brasil em dois Estados criando um novo nas capitanias do Sul com sede na cidade de São Sebastião Rio de Janeiro e continuando a cidade do Salvador Bahia como capital do Estado do Norte compreendendo os Ilhéus até o limite com Porto Seguro ficando esta última capitania ao governo do Sul Ibid 358 438 Ibid p 364 Grifo nosso 439 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999p188 Salah H Khaled Jr 133 Se da união nasce a força da desunião somente fraqueza resulta e o maior ascendente que em todos os países tem tido a civilização sobre a barbárie vem de que esta composta de elementos dissolventes não se une ao passo que a nação civilizada que com ela se põe em contato tem nas suas mesmas leis os laços de união440 Varnhagen vê em sintonia com ideais do século XIX o processo de formação territorial como um processo de expansão A sua história geral não é apenas geral por tratar de todo o Brasil é geral porque busca borrar a diferença eliminar o particular e afirmar a coesão Todas as particularidades devem ceder face a esse geral que é o todo da nação O Brasil da narrativa nacional de Varnhagen é um Brasil que efetivamente luta para permanecer unido São inúmeras as passagens nas quais Varnhagen louva as iniciativas que contribuem de alguma forma para a coesão Sendo oficiais melhor ainda Assim de acordo com a sua visão pragmática diz ele que cumpre declarar que para o melhor governo do Brasil veio a ser de grande auxílio a criação de um tribunal régio por conta do qual passaram a correr a maior parte dos assuntos do mesmo governo441 Em sentido semelhante também foi bem pensada a providência tomada pela metrópole para que os serviços prestados no Brasil viessem aqui mesmo a ser recompensados o que contribuiu a estabelecer certa unidade colonial que depois se aumentou com a guerra holandesa442 O que contribui para a unidade deve ser louvado de forma que os Juízes de fora serão vistos como instrumentais para a realização do futuro Brasil443 integrado e independente 440 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 386 Grifo nosso 441 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 67 442 Ibidem p 115 443 Odalia observou que Varnhagen via na organização judiciária uma fonte de unidade ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vian na São Paulo UNESP 1997 p51 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtexto up000007pdf Horizontes Identitários 134 esta instituição que só foi introduzida no Brasil em fins desse século contribuiu para cada vez se estreitar mais a unidade nacional obrigandose os indivíduos de umas províncias a servirem nas outras com o que se iam desterrando os excessos do pernicioso bairrismo444 Varnhagen efetivamente descreve o Brasil colônia de acordo com os melhores interesses do Brasil Império Para tanto erradica de seu grande relato da nacionalidade tudo que implique em um bairrismo ou mandonismo local e quando não o elimina por completo se vale de tais atitudes provincialistas como exemplo negativo a ser evitado a todo custo O pragmatismo com que Varnhagen enfoca a história nacional o leva muitas vezes a se exceder além do razoável mesmo para seus padrões Ao tratar do término da União Ibérica Varnhagen conforma um verdadeiro momento de júbilo nacional que abrange todo o território brasileiro construindo retrospectivamente a coesão desejada A aclamação de D João IV fezse com felicidade análoga por toda a extensão do Brasil não submetido aos holandeses No Rio de Janeiro parece haver hesitado Salvador Correia mas viuse obrigado pelos jesuítas a proclamála Em São Paulo seguiu o povo com igual bom senso graças segundo a tradição à abnegação de Amador Bueno O Grande acontecimento da restauração de Portugal prometia fazer mudar a situação do Brasil A guerra dos holandeses lhe proviera de ser parte da Espanha e a Portugal e à Holanda interessava o aliarem se para guerrear o inimigo comum445 Parece haver uma suposição no mínimo exagerada de que possa ter ocorrido uma aclamação em tal monta da qual certamente Varnhagen não detinha fontes para se assegurar Ainda mais aclamação por toda a extensão do Brasil o que implicaria em uma integração entre as províncias que se sabe ser inexistente nos primórdios dos tempos coloniais Mas isso não passa de um detalhe facilmente transposto por um exercício de flexibilização interpretativa que para Varnhagen se justifica inteiramente a partir de sua concepção de história enquanto instrumento de promoção do culto à nação Essa noção faz inclusive com que ele se valha extensivamente da noção de inimigo para definir o espírito público da nação e mais ainda implica muitas vezes em uma apologia da guerra para garantir o domínio português no Brasil Na medida em que 444 VARNHAGEN Op cit p 108 445 Ibidem p 320 Salah H Khaled Jr 135 a guerra promove o fim maior desejado por Varnhagen a coesão e o estreitamento de laços ela se justifica inteiramente A defesa da guerra como instrumento civilizatório é evidente na sua narrativa nacional Quanto a cultura do Brasil em geral não hesitamos em asseverar que ela havia ganho muito com a guerra holandesa E não só nas capitanias do Nordeste onde os povos estavam em contato com indivíduos de uma nação mais ativa e industriosa como até nas do Sul com as invasões contra os selvagens É um axioma comprovado pela história que às vezes estas são civilizadoras e que trazem energia e atividade a povos entorpecidos pela incúria a preguiça e o ilhamento Durante a guerra foram devassados acaso pela primeira vez por gente civilizada muitos matos e campos fundindose por vontade ou por força os próprios índios seus moradores nessa civilização guerreira digamos assim pos que o intuito era de guerrear os contrários e quando menos o pensavam se viam absorvidos pela civilização daqueles a cujo lado combatiam Muitos caminhos apenas trilhados eram aplanados para darem lugar à passagem de tropas alguns dos rios ficavam acessíveis à navegação às vezes pelo simples desvio de uns paus que entulhavam os seus leitos e todos sabem quanto a facilidade das comunicações civiliza os povos446 Dessa forma a guerra é vista por Varnhagen com algo dotado de função duplamente integradora no campo subjetivo e no campo objetivo Varnhagen estabelece a partir do conflito a integração do país sob o âmbito geográfico e o associa a uma perspectiva civilizatória que inclui o assimilacionismo dos ditos bárbaros O contingente dos que se posicionavam ao lado da nação contra os perigos que a ameaçavam via as suas fileiras sendo engrossadas na medida em que se estendia o domínio sobre o território e até mesmo pela imigração Essa perspectiva está presente em várias passagens Ao abordar o governo de D Pedro filho de D João IV ele fala que foi por várias circunstâncias uma quadra de expansão para ambos os Estados americanos dependentes de Portugal Durante ela as comunicações de um com o outro se estabeleceram de uma vez pelos próprios sertões em mais de uma paragem e principalmente pelo atrativo das minas rendosas a emigração espontânea para o Brasil especialmente chegou a ser tão prodigiosa que fez assustar a própria metrópole a qual tratou de dificultála e quase proibila por meio de atos legislativos447 446 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 98 447 Ibid p 226 Horizontes Identitários 136 Novamente o termo expansão é utilizado demonstrando a percepção de Varnhagen de uma nação que se afirmava apesar da divisão que para ele é em dois Estados Segundo Varnhagen a própria metrópole se espantava diante do esplêndido desenvolvimento e integração territorial que caracterizavam o Brasil e que fazia de acordo com ele que a própria divisão política estivesse sendo superada pela realidade concreta da colônia Para Varnhagen um grande processo de integração estava em curso processo este que inclusive caracterizavase por um salto qualitativo Assim Varnhagen comenta que depois da paz de Utrecht começa o Sul do Brasil a adquirir de dia em dia maior importância e a oferecer em geral os fatos históricos mais dignos de consideração do nosso passado colonial448 Varnhagen fala em prodigioso desenvolvimento do Brasil para o Sul e Ocidente449 O tom de Varnhagen é de integração expansão celebração e comemoração Para ele a abertura de caminhos rumo ao Sul representa uma verdadeira expansão da soberania nacional gastando na viagem perto de dois anos dois anos largos anos de emoções e de trabalhos mas afinal que satisfação e que glória Pelos campos atravessados encontraramse muitas cruzes naturalmente mandadas pôr pelos padres das missões para indicar a posse deles Entretanto os nossos não respeitaram tal posse e começaram a fazer entrar aí encavalhadas 450 Os trabalhos em prol da pátria prefigurada por Varnhagen não poderiam deixar de ser repletos de dificuldades que são entretanto recompensadas por sentimentos de satisfação e glória Varnhagen enfatiza e louva a disposição para o sacrifício em prol da nação Sua intenção é sobretudo inspirar Para ele os colonos construíam a ferro e fogo uma nova pátria uma nova nação diante de todas as adversidades locais Um Brasil Império uno e coeso estaria sendo forjado nos tempos coloniais marcados pela constante expansão de uma autoridade centralizada e resistência ao inimigo comum São ações sempre louvadas pois significam a extensão e defesa do poder centralizado e do território visto por Varnhagen como nacional A história não é geral somente porque fala do Brasil como um todo antes disso é geral porque atribui a este todo uma condição de unidade territorial e de sentimento que faz com que seus 448 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p13 449 Ibid p82 450 Ibid p16 Salah H Khaled Jr 137 habitantes movidos por essa condição se acudam mutuamente nos momentos de crise Varnhagen simplesmente inventa um passado no qual havia uma percepção de que a colônia era efetivamente una mesmo que pela força das circunstâncias que concorriam para tal união O Rio Grande viuse de tal modo a braços com os índios invasores do sertão que esteve a ponto de sucumbir ante as chusmas devastadoras que chegaram a assenhorearse do Açu A vizinhança do perigo despertou a atividade do Senado da Câmara de Natal o qual em vereação de 2 de dezembro de 1687 resolveu apelidar o povo todo à defensa dos seus lares ameaçados Porém esta heróica providência houvera sido ineficaz se não lhe acodem com socorros as vizinhas com a sua tropa e alguns africanos Do rio de São Francisco marchou um grupo de paulistas De Pernambuco partiu também um contingente das tropas que continham os Palmares Com tais reforços pode o capitãomor Agostinho César desassombrar a capitania do perigo porém só veio a ter a glória de pacificar de todo em 1697 o capitãomor Bernardo Viera de Melo Os índios se retiraram mas naturalmente foram os próprios que depois se apresentaram invadindo as fazendas do Meari e Itapicuru de modo que foi necessário ir para o Maranhão em 1699 um importante socorro da Bahia Parecia que os perigos iam nascendo para unir entre si as capitanias provando a todas como da união resulta a verdadeira força que faz respeitados os Estados451 Novamente Varnhagen não hesita em valerse de expressões que demarcam a união que ele deseja promover no presente Em alguns momentos a insistência com que Varnhagen enfatiza as ideias de união em torno de um Brasil indiviso e poderoso pelo somatório de suas forças chega a ser cansativa tamanha a reiteração Os argumentos de persuasão que ele constrói são exaustivamente explorados e reforçados ao longo da obra Não há sutileza na pedagogia nacional de Varnhagen ele vai tentar moldar a marteladas o seu leitor como um cidadão nacional Vai tentar fazer com que esse indivíduo sintase parte de um todo ao qual deve filiação e lealdade sendo que a inobservância de tais deveres significa uma verdadeira afronta contra um passado de superação de adversidades por parte da nação O seu grande relato da nacionalidade estruturase sobretudo a partir de mecanismos que conformam uma estratégia de convencimento do leitor Varnhagen enfatiza coesão em sua narrativa de todas as formas possíveis De acordo com ele a coesão persistia mesmo diante da fragmentação que ainda restava 451 VARNHAGEN Francisco Adolfo de Historia geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 257 Horizontes Identitários 138 do equívoco original das capitanias Felizmente para Varnhagen esse resto seria abolido de uma vez por todas caracterizando um momento chave de fortalecimento da coesão que vem no reinado de D José período de Pombal Começaremos por fazer menção da empresa talvez mais importante levada adiante nesse reinado a favor da nacionalidade brasileira a de haver incorporado de todo no Estado resgatandoas por meio de indenizações convencionadas com os interessados todas as capitanias que ainda tinham donatários e eram umas onze pelo menos 452 Os termos novamente são inequívocos Varnhagen considera a medida um verdadeiro favorecimento da nacionalidade brasileira o qual evidentemente e em sintonia com seu pragmatismo associase à soberania incontestável do Estado Para ele corrigiase portanto o equívoco que conspirava para fomentar a dissensão no território nacional abrindose assim as portas para a concretização de um ideal que ganhava cada vez mais força em função do sentimento de união que experimentavam seus habitantes É interessante como Varnhagen considera que o fortalecimento da autoridade central a partir da reafirmação do poder do Estado mesmo com um Brasil ainda atrelado a Portugal constituise em elemento importante de afirmação de uma nacionalidade brasileira Para ele essa lógica justificase facilmente pois está inserida dentro da sua condenação recorrente do que ele chama de um mandonismo local que deve ser superado em prol do bem da nação Varnhagen promovia a integração através de uma história geral que assumia caráter de grande relato da nacionalidade e logo reunia o Brasil como um desde os tempos coloniais O Brasil coeso era assim construído discursivamente em torno de três dimensões política com o reforço da autoridade do estado subjetiva pois encontrava o espírito nacional no esforço conjunto de resistência por parte das províncias e geográfica uma vez que colocava a união a partir da integração física do território e da imposição da autoridade estatal sobre o mesmo453 452 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p235236 453 Varnhagen afirma que Com as viagens as observações e as discussões dos comissários enge nheiros e astrônomos tanto se adiantou no conhecimento dos terrenos fronteiros que ainda hoje são talvez eles do Brasil o que há de mais conhecido e exatamente delineado nas cartas depois das costas e baías Por esse lado as duas tentativas de demarcação bem que as demarcações não se levassem avante produziram benefício real pois quanto ao mais no fim do século passado XVIII pela linha da fronteira havia nada menos que dez paragens disputadasIbid p273 Salah H Khaled Jr 139 A escrita é construída para que o leitor seja tomado por um sentimento inequívoco já havia um Brasil antes da Independência E mais ainda pouco havia de regional nesse Brasil e logo de heterogêneo Os elementos que importam realmente são configurados como nacionais como pertencentes a um Brasil uno que inclusive reage quando a sua soberania é ameaçada Como o bairrismo isto é a identidade regional é visto com conotação pejorativa é natural que não se encontrem na HGB referências aos chamados tipos regionais o que só acontece de forma raríssima Quando isso ocorre dá a impressão de ter escapado à Varnhagen como é o caso do espírito aventureiro dos paulistas que vieram a ser os verdadeiros descobridores das minas de Minas454 e que transparece também quando ele diz que Pernambuco era a capitania que exportava melhor açúcar455 Em alguns momentos em função da questão política Varnhagen é obrigado a pensar em dois Estados dizendo por exemplo que concluiremos com o Estado do Maranhão passando ao Estado do Brasil e começando pelo Norte456 Entretanto são raras exceções à regra por ele mesmo estipulada Por excelência tudo que é diverso deve ser erradicado tudo o que caracteriza uma singularidade dentro do que Varnhagen pretende retratar como homogêneo deve ser suprimido Sua obra busca o enfraquecimento da identidade regional pois como intelectual a serviço do Estado Varnhagen se comporta como inimigo ferrenho do provincialismo por ele visto como desagregador Esse é sobretudo o sentido da sua História Geral A História Geral do Brasil é por excelência uma história que assassina a diferença em nome da unidade da nação Dessa forma com os olhos voltados para o presente e para o futuro Varnhagen inventava segundo os parâmetros do IHGB e as pretensões do Império uma nação brasileira cuja existência era legitimada pela sua própria longevidade através da ciência No entanto os sentidos de identificação que ele propõe não se restringem ao âmbito da prefiguração Para promover a adesão ao todo da nação no presente em que escreve Varnhagen se vale de exemplos paradigmáticos de modelos de comportamento que buscam se constituir como verdadeira pedagogia social como 454 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 122 455 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p88 456 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 199 Horizontes Identitários 140 será visto a seguir 23 A tragédia o inimigo e o herói a função paradigmática da narrativa nacional Como temos dito varias vezes a escola histórica a que pertencemos é estranha a essa demasiado sentimental que pretendendo comover muito chega a afastarse da própria verdade Francisco Adolpho de Varnhagen Propondose a realizar uma história científica norteada por uma pretensão de verdade Varnhagen rejeitava abertamente a noção de uma narrativa de cunho emotivo Entretanto a leitura da obra revela que o seu pragmatismo o levou a elaborar uma narrativa nacional cujo caráter é de busca de identificação com o leitor de sentimentalismo e sim até mesmo de comoção457 A narrativa de Varnhagen caracterizase pelo uso extensivo de três recursos que exercem função central para o seu discurso nacional Esses recursos são a tragédia representada por um evento traumático ou contexto desfavorável458 a figura do inimigo contraponto que valoriza o esforço colonizador dos nossos e finalmente o herói personagem que é a expressão máxima do sentido exemplar da História Geral do Brasil A tragédia e o herói produzem identificação pela empatia O inimigo produz identificação pela oposição É em torno de tais elementos que Varnhagen organiza o seu grande relato da nacionalidade cujas funções exemplares são evidentes459 No sentido paradigmático do termo função é aqui entendida como o conjunto de repercussões no âmbito subjetivo que as intenções exemplares do texto pretendem suscitar no seu leitor objeto a ser constituído como um cidadão nacional É uma função que se caracteriza por se propor a agir diretamente sobre o leitor constituindo seus valores Há definitivamente uma intenção de persuasão no conjunto da obra a que as figuras da tragédia do inimigo e do herói irão corresponder como recursos 457 Varnhagen não escondia suas intenções afirmando que procurou sempre escrever antes um livro útil e próprio a estimular o trabalho e a prática das boas ações do que puramente ameno e destinado à simples distração VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927pXII 458 Destaco que o termo tragédia é aqui empregado sem qualquer conotação ou referência à tragédia em seu sentido grego 459 Para Odalia A história e o historiador nesse instante parecem superar suas limitações e não se confinando apenas ao passado se transfiguram no instrumento de ação no presente com os olhos voltados para o futuro ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p18 Salah H Khaled Jr 141 narrativos Tratase essencialmente de fomentar o respeito e inculcar a adesão ao projeto da nação una e indivisa Evidentemente o processo de fundação de uma identidade nacional nunca se dá de maneira plena de forma a erradicar completamente a diferença460 As narrativas nacionais sempre visam horizontes identitários a construir e sua construção mesmo na plenitude da afirmação da religião cívica nunca é inteiramente completa permanecendo demarcada por espaços de resistência É uma narrativa em perpétua necessidade de afirmação Isso não permite entretanto negar a amplitude imensa de seus efeitos A tragédia é um elemento que exerce função importante na narrativa nacional de Varnhagen Através desse recurso são demonstradas forças dotadas de grande poder destrutivo diante das quais se defrontaram os portugueses Na verdade o sentido por trás do recurso trágico é promover o enaltecimento do colonizador apresentado como contraponto à barbárie e portanto elevado à figura colossal de herói Ao colocar o leitor na posição de identificação com o português de outrora Varnhagen busca promover o sentimento de identidade nacional missão pragmática de sua obra461 Busca fazer com que ocorra uma sensação de orgulho pelo feito realizado pelos ancestrais e pela nação a que se pertence Nesse sentido o próprio Brasil será situado na condição de sujeito que se defronta contra inúmeras adversidades em sua luta para constituirse como nação civilizada O Brasil também é ele próprio um herói que por vezes se personifica na figura de um bravo exemplo de patriotismo do passado Para que haja o exemplo é necessário o confronto e daí a utilidade da categoria inimigo O recurso narrativo da tragédia adquire sentido pela forma com que é utilizado na obra É a constante ameaça de destruição que enaltece a criação São as trevas da selvageria que enobrecem a luz trazida da Europa462 É pela contraposição à barbárie 460 Hobsbawm lembra que as ideologias oficiais de Estados e movimentos não são orientações para aquilo que está na mente de seus seguidores e cidadãos mesmo dos mais leais entre eles não podemos presumir que para a maioria das pessoas a identificação nacional quando existe exclui ou é sempre superior ao restante do conjunto de identificações que constituem o ser social Na verdade a identificação nacional é sempre combinada com identificações de outro tipo mesmo quando possa ser sentida como superior às outras a identificação nacional e tudo o que se acredita nela implicado pode mudar e deslocarse no tempo mesmo em períodos muito curtos HOBSBAWM Eric Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p20 461 Varnhagen expressa a vocação inspiradora da obra abertamente Oxalá o nosso trabalho concor rera a fomentar ao menos entre as gerações do porvir o espírito de generosidade que guiou nossa pena em muitas ocasiões não sem que às vezes nos olhos borbulhassem piedosas lágrimas VAR NHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927pXXII 462 Por isso Varnhagen é enfático ao dizer que insistimos porém mais do que nenhum dos que nos precederam em trabalhos idênticos na verdadeira apreciação comparativa do grau de civilização dos Horizontes Identitários 142 e pelo triunfo diante da dificuldade que se legitima a civilização De acordo com esses parâmetros Varnhagen traça um quadro de constante ameaça de fracasso desagregação e ruína para engrandecer o trajeto da colonização portuguesa Essa tendência se faz presente desde os primeiros acontecimentos por ele relatados Ao tratar da passagem da expedição de Américo Vespúcio Varnhagen conta que dois jovens que então desembarcaram a tratar com os habitantes ficaram aí vítimas da barbaridade e antropofagia deles Assim por este lado a primeira ruptura e agressão entre os da terra e os futuros colonizadores não partiu destes os quais foram vítimas da traição e a deixaram absolutamente impune463 Assim Varnhagen já estabelece desde o princípio o perigo que um território hostil representava para os portugueses Além disso ele salienta que partiu dos bárbaros o ato que instituiu a violência que sinalizou o início das agressões demonstrando desde então a selvageria com que o português se defrontava Varnhagen busca transportar o leitor a esse quadro de constante ameaça e perigo mas ao mesmo tempo como um narrador que zela pelos valores que lhe são caros vai desde o princípio dizer Mas ânimo Que tudo doma a indústria humana Cumpre à civilização aproveitar e ainda aperfeiçoar o bom e prevenir ou destruir o mau464 Varnhagen constrói discursivamente a colonização como um processo de imposição heroica dos portugueses a uma natureza hostil465 Segundo essa ótica o destino da colonização é o inevitável triunfo sobre as dificuldades verdadeiramente garantido pelo esforço civilizatório a ser empreendido466 Varnhagen coloca o colonizadores do de barbárie dos colonos escravos trazidos impiamente da África e do de selvageria dos povos últimos invasores nômades que ocupavam em geral o território que hoje chamamos Brasil VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramen tos 1927pXXI 463 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 83 464 Ibid p19 465 Varnhagen não poupa na dramatização Quantos não desfaleceram nessa horrida luta para eles antes desconhecida e quanto vigor e quanta força de vontade não foi indispensável aos que não fi caram no caminho ou desfalecidos não regressaram à pátria VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927 pIX 466 Reis afirma que se o português venceu militarmente os seus adversários se conquistou seus ter ritórios e os escravizou e exterminou é porque é superior Eis o seu silogismo ou sofisma básico A vitória confirma uma superioridade presumida REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p33 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosreis varnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB 5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibo Salah H Khaled Jr 143 português diante de um misto de fascínio com a beleza das novas terras e temor diante de seus perigos467 Instaurase assim na sua narrativa desde os primórdios da presença portuguesa o início das hostilidades e das dificuldades que marcariam a colonização468 A intenção de Varnhagen consiste em deslocar o seu leitor para um mundo hostil e perigoso onde os portugueses teriam que se impor pela astúcia e força das armas diante da ameaça posta pela barbárie469 Como diz Wehling há uma valorização do espaço e das dificuldades para dominálo470 Os próprios títulos utilizados nos capítulos já demonstram tais intenções como é o caso de capitanias cuja primitiva colonização se malogrou Varnhagen se vale de uma argumentação de fundo emotivo tentando fazer com que seu leitor se identifique com o colonizador português de outrora e sofra junto com ele a dor diante das tragédias e dificuldades com que se depara É uma dor que o próprio Varnhagen diz sentir e que deseja que o leitor compartilhe Parece que a pena nos resiste a tratar do donatário da Bahia nem que movida pela dor que nos punge o coração ao considerar seu triste fim Não é matéria de que não nos podemos ocupar sem que se nos repasse a alma de mágoa que desejamos poupar de repetir se pela importância do assunto não fôramos a isso obrigados pela severa tarefa que nos impusemos desde que ousamos levantar o pensamento a ser fiel bem que humilde historiador da pátria471 Apesar de todos os lamentos de Varnhagen é justamente a ideia de um historiador da pátria que faz com que a tragédia do passado tornada objeto de okresul 467 Por isso Reis dirá que O português que vê tudo isso pela primeira vez esse o sentido da idéia de descoberta se enche de fascínio e ao mesmo tempo de receio e decepção Ibid p35 468 Para Odalia se o Brasil findo o período colonial pode apresentarse como um país de dimensões continentais e além disso íntegro tudo isso se deve ao fato de que sua posse se fez por meio de um processo em que o sangue foi um componente obrigatório ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p53 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 469 Assim ele pondera e que diremos da luta tantas vezes inevitável que tiveram de travar com os índios e na qual não poucos pereceram e foram devorados Inevitável dizemos porque no estado de fracionamento em pequenas cabildas hostis umas às outras em que os mesmos índios foram encon trados em todo território do Brasil ainda quando os colonos assim brancos como pretos conseguiam a amizade daqueles do lugar onde desembarcavam tinham logo por inimigos os inimigos desses novos aliados e se viam constrangidos a combater aos que destes eram contrários VARNHAGEN Francis co Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927pX 470 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p69 471 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 199200 Horizontes Identitários 144 culto aos ancestrais seja útil ao pragmatismo que o impulsiona A tragédia pode ser tanto um acontecimento quanto uma conduta reprovável que censurada por Varnhagen assume caráter pedagógico como exemplo negativo Nesse sentido Varnhagen condena retrospectivamente o pecado por nenhum outro motivo a não ser a expectativa de que não se repita mais no futuro É como se ele buscasse prevenir através de intimidação os futuros pecados agindo sobre as consciências dos eventuais pecadores que atentam contra a nação Dessa forma Varnhagen procura estimular o respeito à hierarquia Ao tratar dos confrontos com os índios e da dificuldade do donatário em fazerse obedecer para resistir a esse choque afirma que os que obedeceram não vendo como rudes que só nessa obediência podiam encontrar salvação gritavam contra o arbítrio e introduziam na colônia já desmoralizada a insubordinação e com a maior covardia chegavam a açular os bárbaros a agredir à maneira dos miseráveis anões políticos de todas as nações que desejavam às vezes a vitória dos inimigos da pátria pensando que com ela tomam vingança do partido a eles contrário que tem o poder472 Os sentidos exemplares contidos no ensinamento de Varnhagen são múltiplos mas sem dúvida destacase a necessidade de obediência à autoridade Da incompreensão fundamental da norma escrita ou moral que determina a sujeição às autoridades só pode resultar a tragédia como de fato resultou Isso não significa que a pedagogia nacional de Varnhagen é pessimista mas sim que se vale dos problemas para enfatizar e glorificar a sua eventual superação e dessa forma incentivar determinado tipo de comportamento473 A sua mensagem é sempre de triunfo sobre a adversidade e de utilização do revés como impulso ao sucesso no futuro de onde ele escreve tendo em vista um Brasil por ele tido como grande império Para que tal condição se concretizasse foi necessário muito sacrifício474 Sacrifício que não 472 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 202 473 Reis afirma que E se na luta colonial os brancos venceram a jovem nação quer ser também ven cedora e se identificar étnica social e culturalmente com o branco Foi este quem trouxe a civilização européia superior a lei o rei a fé a razão REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnha gen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p3334 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosreis varnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB 5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibo okresul 474 Varnhagen afirma que entre as nações da América o Brasil foi a que custou mais esforços e maiores trabalhos aos seus colonizadores antepassados em grande parte como fica dito dos atuais Salah H Khaled Jr 145 foi em vão e agora obtém reconhecimento na narrativa da nação que garante lugar na posteridade Primeiros mártires da civilização da terra baiana A grande obra que empreendestes e por que vos sacrificastes veio a realizarse O solo que regastes de vosso sangue é um dos mais populosos e mais produtivos do Império de Santa Cruz e os seus habitantes mais piedosos ainda se lembram de vós em suas orações ao Senhor dos justos que distribui a quem os mereceu galardões sempiternos475 Varnhagen não se contenta em apenas atribuir sentido e reordenar o passado efetivamente conversa com esse passado configurandoo como passado da nação e se lamenta pelo infortúnio que se abateu sobre aqueles a quem define como verdadeiros compatriotas Os atos de sacrifício empreendidos justificamse pela realização do bem em prol da pátria a qual triunfou apesar de todas as adversidades Dessa forma vai relatando uma série de perigos e entraves ao desenvolvimento da colônia como a insubordinação e irreligiosidade que iam lavrando em conseqüência dos degredados que choviam da mãepátria das expedições francesas cada vez mais ameaçadoras476 Varnhagen afirma que o cenário chegou a ser verdadeiramente catastrófico a religião e a moral primeiras colunas da humana felicidade estavam abaladas ou antes tombadas a honradez que deve presidir nos negócios públicos como nos particulares cedia passo ao cínico egoísmo e já quase começava a justiça eqüitativa e por conseguinte a boa fé e confiança a fugir desta terra477 Varnhagen aponta sinais de infortúnio que se abatiam sobre o Brasil a ausência de condições favoráveis para a aceitação da autoridade da observância da lei e da submissão à fé elementos que como visto anteriormente são centrais ao seu sistema de pensamento Para Varnhagen esses são os elementos estruturantes da vida civilizada A sua ausência ou fragilidade são indicativos de que a colonização não estava dando certo Varnhagen está escrevendo de um lugar que é seu seu lugar de cidadãos VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927pVIII 475 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 203 476 Ibid p 226 477 Ibid p 228 Horizontes Identitários 146 fala é o lugar de um conservador preocupado em legitimar a Monarquia e assegurar o cumprimento da ordem Como sempre o pragmatismo fala mais alto ou no mínimo em íntima associação com a ciência Dentro desse espírito para ele é de grande gravidade que as próprias autoridades inclusive não se entendiam umas com as outras478 Varnhagen sempre é muito cuidadoso ao tratar das dificuldades pois quer valerse delas enquanto fonte de valorização da colonização e não de forma alguma implicar em seu desprestígio Portanto ele precisa jogar com os obstáculos do passado pois o resultado do jogo deve implicar em uma lição que signifique honra para o presente e logo incentive a adesão ao todo da nação Por isso ao mesmo tempo em que descreve os problemas que envolveram os degradados uma gente de moral questionável diz que assim pensamos que ao narrar os fatos como se passaram em nada degradamos a atualidade os povos em geral não começam aristocraticamente e a estirpe dos nobres patrícios de Roma provinha dos estupros cometidos nas Sabinas pelos bandidos que as roubaram479 O parâmetro a que Varnhagen está relacionando a origem brasileira não é outro senão o do maior império que a antiguidade conheceu Ou seja o que poderia contar em desfavor acaba se tornando um argumento em certa medida favorável De qualquer forma além de valerse desse artifício Varnhagen afirma que um novo influxo de imigrantes viria a minimizar os malefícios provocados pelos degradados480 Uma das características mais marcantes da narrativa nacional elaborada por Varnhagen está na construção de uma sucessão de argumentos dotados de grande poder de sedução Tais argumentos jogam constantemente com a adversidade e a tragédia ainda que Varnhagen careça de méritos literários para tornar a sua leitura 478 Varnhagen comenta que o governo de D Duarte da Costa pode citarse para exemplo do mal que deve causar a um povo inteiro a desunião entre um chefe da administração e o da diocese e de quanto tal desunião é fácil de fomentarse quando homens tão elevados em vez de perdoarem reciprocamen te com caridade alguma leve falta ou indiscrição se tomam de ira e se deixam levar pelas mesquinhas intrigas de aduladores ainda mais mesquinhos que elas VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 274 479 Ibid p227228 480 Varnhagen aponta que Esses grandes grupos de famílias açorianas modestas moralizadas e trabalhadoras Vieiram contrabalançar o efeito dos muitos degredados que começaram a ser enviados da metrópole no ardor de ver aqui aumentarse rapidamente a povoação VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p 152 Salah H Khaled Jr 147 mais prazerosa481 Assim se por um lado o problema colocado pelos degradados recrudescia os índios entretanto se mostravam ameaçadores ainda mais com o surgimento dos Aimorés com os quais os colonos teriam que se defrontar Varnhagen carrega no drama ao descrevêlos havidos pelos bárbaros por mais que bárbaros e com uma língua inteiramente desconhecida e os usos estranhos a todo o mais gentio do Brasil eram antropófagos não por vingança e satisfação de ódios inveterados mas por gula Tudo induz a crer que eram da mesma nação representada pelos chamados agora Puris que também como este nome o diz são gulosos de carne humana e preferem como se conta dos tubarões da África à carne dos brancos a dos negros aos quais chamam de macacos do chão É horroroso escrevêlo e asseguramos que o ânimo quase nos soçobra ante tais fatos482 A carga dramática que Varnhagen atribui ao seu grande relato da nacionalidade não é exclusiva desse trecho Aqui ele intervém no texto lamentandose da sorte dos colonizadores que teriam que enfrentar um horror de tais proporções Em outro momento afirma que o Brasil chorava a morte de seu terceiro governador483 referindose a Men de Sá O apelo ao recurso trágico não é desprovido de sentido ou mera retórica sem conteúdo O que Varnhagen propõe é sobretudo a comoção e identificação no presente através da tragédia no passado Porém no caso em questão parece pouco provável para não dizer impossível que houvesse um Brasil com consciência de si mesmo no século XVI a lamentarse pela perda de seu governador geral Brasil no contexto da afirmativa de Varnhagen não passa de uma abstração discursiva para conferir significação a um acontecimento no passado Mas como é característico de sua obra Varnhagen faz do Brasil um indivíduo um verdadeiro sujeito dotado de vontade de tornarse um Império que inclusive chora pela morte de seus melhores e leais filhos 481 Entretanto Varnhagen afirmava que pelo brilho e ornato do estilo não levamos pois a menor pre tensão de campear a linguagem porém procuramos sempre que saísse puritana e de boa lei e neste sentido temos mais de uma vez ouvido com certo desvanecimento da própria boca de alguns escritores nossos políticos e literatos que a nossa obra havia tido grande parte a firmálos no manejo da língua vernácula VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927pXII Sobre a questão do estilo na obra de Varnhagen ver CEZAR Te místocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIX siècle essai sur une rhétorique de la nacionalité Le cas Varnhagen v2 manuscrito 2002 482 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p308309 483 Ibid p 347 Horizontes Identitários 148 A História Geral do Brasil se vale em grande medida dos índios e dos próprios problemas inerentes à colonização para demonstrar a grandiosidade do esforço empreendido484 Todavia é através do recurso ao invasor estrangeiro que Varnhagen realmente busca enaltecer o feito civilizatório Se o embate da civilização contra a barbárie apesar de sofrido resulta em inevitável triunfo o choque da colônia com os estrangeiros é o que verdadeiramente a define485 Varnhagen não se cansa de destacar que a colônia por si só teve de se defender das incursões das nações civilizadas europeias Justamente as nações que são o parâmetro em torno do qual a nação brasileira procura definirse no tempo em que a História Geral do Brasil é escrita486 Sendo assim o sentido identitário que Varnhagen imprime à sua obra é reforçado com o uso incisivo da categoria inimigo Inimigo que é entendido como outro em oposição ao mesmo que Varnhagen constitui em sua obra ou seja os nossos Essa é uma das chaves para a definição de uma nacionalidade na obra de Varnhagen a contraposição dos franceses e holandeses e em menor medida dos castelhanos atribui sentido e significado aos nossos os futuros brasileiros É a partir do choque com as nações civilizadas europeias que se obtém glória para os nossos487 Dessa forma Varnhagen estabelece a tragédia sob outro aspecto o da permanente ameaça que representa o inimigo estrangeiro para a consagração da nação brasileira que ele prefigura nos tempos coloniais É uma abordagem que esbarra em um maniqueísmo exacerbado Não há tons de cinza e não há matização 484 Para Odalia não sendo o assenhoramento da terra uma conquista fácil e pacífica os primeiros fundamentos da nacionalidade aí tomam forma e a terra regada pelo sangue dos conquistadores revestese da mística que lhe permite sublimarse no sentimento do solo pátrio ODALIA Nilo Introdu ção In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p20 485 Odalia comenta que se as guerras de conquista são o primeiro momento da constituição da nação e da nacionalidade as guerras de reconquista travadas contra estrangeiros franceses e holande ses principalmente contra estes últimos ganham dimensão especial pois é nelas que se fortifica e consolida o sentimento pátrio Dadas as condições em que foram travadas com pequeno auxílio da metrópole portuguesa ou espanhola essas guerras adquirem o caráter excepcional de uma luta de brasileiros contra estrangeiros Ibid p20 486 Para Odalia Na obra de Varnhagen os capítulos sobre as guerras holandesas adquirem importân cia porque é nelas que os coloniais vão revelar de maneira inconteste segundo seu raciocínio uma consciência nacional e a certeza de que já podem superar o complexo se assim podemos chamar de inferioridade ante os reinóis ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p56 Disponível em http wwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 487 São inúmeras as passagens nas quais Varnhagen trabalha a questão a partir deste enfoque como por exemplo quando os nossos tiveram ocasião de acometer e apresar com glória um galeão da França VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Me lhoramentos 1959 p 169 Salah H Khaled Jr 149 Para Varnhagen o choque é entre o bem e o mal Varnhagen lida com absolutos com preto e branco Considerandose a identidade que ele está fundando não poderia ser de outra forma488 Os portugueses não são invasores Estão legitimados pelo Tratado de Tordesilhas e pela cristandade Invasores são os outros principalmente franceses holandeses e castelhanos O sentido da utilização da categoria do inimigo enquanto dimensão de identificação nacional é evidente Como considera Hobsbawm não há nada como um povo imperial para tornar uma população consciente de sua existência coletiva como povo489 Varnhagen busca construir discursivamente em sua narrativa nacional justamente esse sentimento O problema gerado pelos invasores surge cedo na História Geral do Brasil Entretanto para Varnhagen na mesma medida que representam um problema são esses mesmos invasores que permitem definir o caráter de superação heroica da colonização Assim Varnhagen estrategicamente desloca o foco do conflito outro perigo crescente punha em maior risco toda a colônia e ameaçava a ruína e a perda do Brasil Eram as naus francesas490 Perigo que segundo ele se configurava como uma ameaça concreta e permanente de tragédia para o todo da nação491 Embora representassem uma ameaça concreta de certa forma é proveitoso para o grande relato da nacionalidade de Varnhagen que os franceses e os demais invasores não tenham sido expulsos de pronto ou seria escassa a matériaprima a que ele poderia recorrer para constituir homens em heróis e instituir exemplos492 488 Como afirma Hobsbawm se os nacionalistas tivessem uma sensibilidade tão apurada para os ma les praticados pela sua nação como têm para os que são cometidos contra ela a eficácia política do sentimento nacional saísse bastante diminuída HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p13 489 Ibid p4950 Nesse sentido o autor afirma que não há meio mais eficaz de unir as partes díspares de povos inquietos do que unilos contra forasteiros e que os governos tem um interesse doméstico considerável em mobilizar o nacionalismo de seus cidadãos nada estimula melhor o nacionalismo em ambos os lados que um conflito internacional Ibidem 490 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 228 491 Varnhagen alerta que Se nessa colônia tem desde o princípio reinado a necessária harmonia e se os colonos franceses já seguros dos bárbaros passam para o continente à chegada dos reforços es perados fazem algumas plantações e adquirem por meio destas o amor à terra que dá a prosperidade dela quando amanhada com o próprio suor talvez ninguém houvesse mais podido desalojálos e o Rio de Janeiro e seus contornos pelo menos pertenceriam hoje como Caiena à França ou formariam acaso uma nação independente da colonização francesa ou Deus sabe Quase africana como Haiti se é verdadeira a idéia que alguns têm de que os franceses com excesso amigos da sua França não são um povo colonizador Ibid p286287 492 Em sintonia com os parâmetros do IHGB Varnhagen afirma que muitos colonos nos legaram ações meritórias e de abnegação e desinteresse que não só por gratidão como até por conveniência nos cumpre comemorar pois como diz um nosso ilustre magistrado nada excita tanto o esforço do homem para o bem como a recordação das nobres ações de seus maiores o zelo de sufragar a virtude Horizontes Identitários 150 Os heróis são fundamentais na medida em que conformam um padrão de conduta que fomenta valores elementares para o sucesso da nação aos quais Varnhagen incentiva através de figuras exemplares493 Se a tragédia sinaliza com a punição ao pecador o exemplo do herói visa criar uma atitude de permanente reiteração do dever cívico O herói é o exemplo mais elevado de ser humano é alguém que afirma a sua própria vida como sacrifício no altar da pátria A realização de feitos heroicos por excelência exige uma disposição para transcender o comum o mundano o utilitário É um desapego em nome de algo maior Varnhagen busca criar uma verdadeira tradição de valor cívico e patriótico de sacrifício da parte em favor do todo já nos tempos coloniais Como afirma Hobsbawm muitas vezes tradições que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes quando não são inventadas494 Dessa forma quando o passado não oferece por si só os elementos necessários à composição da representação e raramente o faz inventamse tradições e ressaltamse elementos que poderiam ter sido restritos a um pequeno grupo com a intenção de exemplo495 Varnhagen é explícito quando diz que a história nos dá exemplos do caro que tem pago algumas nações o pretenderem renegar de todas as tradições do seu passado custando isso a umas o ser vítimas do jugo estrangeiro e a outras a perda de sua paz e tranqüilidade evolvendose em guerras civis e de raças intermináveis sem poderem mais encontrar o núcleo de cristalização que sirva de base a novos princípios de organização admitidos por todos os cidadãos pela poderosa sanção dos séculos496 dos pais é já nos filhos um princípio de virtude VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927pVIII 493 Odalia considera que Como forma de sedimentar a unidade territorial e espiritual da Nação nas cente Varnhagen lança mão do recurso altamente sensibilizante da criação de heróis ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vian na São Paulo UNESP 1997 p57 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtexto up000007pdf 494 HOBSBAWM Eric Introdução a invenção das tradições In HOBSBAWM Eric e RANGER Ter In HOBSBAWM Eric e RANGER Ter ence org A invenção das tradições 3ª ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2002 p9 495 De acordo com Hobsbawm Por tradição inventada entendese um conjunto de práticas normal mente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas tais práticas de natureza ritual ou simbólica visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição o que implica automa ticamente uma continuidade em relação ao passado Aliás sempre que possível tentase estabelecer continuidade com um passado historicamente apropriado Ibid p9 496 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927pVII Salah H Khaled Jr 151 É como se Varnhagen estivesse criando costumes através de um verdadeiro magistério pedagógico instituindo a adesão e fidelidade à nação Varnhagen está efetivamente fundando uma memória nacional através da sua narrativa Ele deixa transparecer a função paradigmática exercida pela figura do herói de forma clara em um trecho da História Geral do Brasil A História de Pita que ainda hoje se aprecia pelo seu colorido poético bem que omissa em fatos essenciais destituída de critério e alheia a intenções elevadas de formar ou de melhorar o espírito nacional fazendo avultar sem faltar à verdade os nobres exemplos dos antepassados serviu de muito por algumas de suas próprias exagerações para recomendar à metrópole o Brasil497 Cumpre lembrar também que Januário Barboza já havia sinalizado com a questão do herói no discurso fundador do IHGB não sendo portanto uma iniciativa propriamente de Varnhagen mas sim de acordo com a concepção de história e o pragmatismo que norteava as atividades do Instituto498 Entretanto o que interessa propriamente observar é a função que o herói exerce na narrativa Varnhagen procura no passado os exemplos de varões brasileiros que podem inspirar a devoção ao culto da nação no presente Não basta apenas ressaltar o triunfo Varnhagen precisa atribuir o caráter de herói a um sujeito do passado pois é isso que faz com que seja possível a identificação que em alguma medida supera a distância causada pela não contemporaneidade do relato Na verdade temse a impressão de que não é a grande ação individual que importa É a possibilidade de atribuir um sentido específico ao passado que interessa a Varnhagen e não a realização de uma história dos grandes homens499 Se isso acontece é como consequência do sentido pragmático e paradigmático de sua obra O que interessa é a função exercida na narrativa e não o homem em si500 O tripé estabelecido pela configuração heróiinimigotragédia 497 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p40 Grifo nosso 498 Barboza afirma que Por isso a virtude he sempre digna de veneração publica a gloria abrilhanta os honrados cidadãos ainda mesmo quando peração haver succumbido aos golpes da inveja e da intriga dos máos a justiça que a posteridade lhes faz salvando seus nomes e seus feitos de hum injusto es quecimento he forte estimulo para uma forte emulação BARBOZA Januário da cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p0918 499 Wehling considera que Varnhagen elegeu à luz dos fundamentos ideológicos filosóficos e cien tíficos de seu momento histórico alguns atores sociais privilegiados WEHLING Arno Estado his tória memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999p158 500 Para Wehling a escolha de quem se torna herói deve se entender pela expressão daqueles que Horizontes Identitários 152 funciona exemplarmente como a citação abaixo exemplifica Por fim a vitória se decidiu pelos nossos e a forte tranqueira foi assaltada Infelizmente recebeu na refrega uma flechada o bravo Estácio de Sá e da ferida veio a morrer um mês depois Assim perdeu a vida asseteado como o padroeiro cujo dia era o em que foi ferido da cidade que fundara e a que dera nome e da qual os símbolos do martírio do mesmo padroeiro vieram a ser as insígnias ou armas A cidade festejou por muito tempo esse triunfo com oito dias de luminárias e ainda hoje conserva um oitavário religioso dandose durante os três dias 17 18 e 19 de janeiro uma salva às oito da noite A sepultura do primeiro capitãomor do Rio é para o Brasil uma venerável relíquia que não só a piedade mas também a gratidão nos impõe o dever de acatar como de um herói mártir que sacrificou sua existência pelo país que hoje se deve gloriar em proclamálo seu cidadão adotivo501 Varnhagen está trabalhando fervorosamente para fundar uma memória e por extensão uma identificação uma identidade nacional Como assinala Hobsbawm tal identificação implica em um dever para com a organização política que abrange e representa a nação e supera todas as outras obrigações públicas e em casos extremos como a guerra todas as outras obrigações de qualquer tipo em essência isso distingue o nacionalismo de outras formas menos exigentes de organização grupal502 É esse sentido que Varnhagen pretende fundar Para ele morrer a serviço da nação significa assumir a condição de mártir da pátria e obter adoração por toda a eternidade Através da narrativa nacional os homens se erguem da condição humana e assumem a posição de objeto de culto de monumento que integra o panteão da nação Varnhagen constrói um contexto através do passado por ele inventado em que se espera dos indivíduos uma contribuição cívica para a nação uma verdadeira disposição para o sacrifício em nome do bem comum Esse é um sentimento que será estimulado por ele que afirma quantas vezes um só homem uma só idéia ou pensamento fecundo pode salvar de todo um país503 É como se Varnhagen convidasse os brasileiros a se erguer do torpor e se elevar para essa vocação messiânica que é colocarse a serviço da salvação melhor interpretaram as condições históricas parecenos um erro admitir que a sua intepretação gira apenas em torno do grande homem individual Ibid p90 501 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 329 Grifo nosso 502 HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p18 503 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 152 Salah H Khaled Jr 153 do país Tal disposição implicará inclusive em recompensa como Varnhagen gosta de demonstrar Ele destaca que aos valorosos indivíduos que cumprem o seu papel à nação concede honrarias e elevação de postos bem como a chance de atingir a honra maior tornandose exemplo para as gerações futuras como recompensas hereditárias aos que já se haviam distinguido como entre nós ainda se concedem pela nação pensões às viúvas e filhos pelo serviços dos maridos e pais mas sem prejuízo de elevar a estes às classes superiores quando prestassem tais serviços que viessem a dar glória à mesma nação e a proporcionar ainda depois de mortos estímulos vivos às sucessivas gerações Por esta razão os títulos que importavam glórias nacionais dignas de serem perpetuadas como os concedidos a Vasco da Gama eram com razão declarados hereditários504 As condutas que por excelência possuem essa vocação paradigmática devem ser resgatadas do passado Não há exagero em dizer que a galeria de heróis de Varnhagen é numerosa505 Entretanto essa característica se refere à necessidade de reiteração do valor das condutas em prol da nação Não se trata de um desejo de pura e simplesmente fazer uma história dos grandes homens o que Varnhagen efetivamente não parece fazer A história é sobretudo protagonizada por um personagem o Brasil uno e coeso o Brasil geral Os coadjuvantes são escolhidos e constituídos na medida em que reforçam os fins que atendem aos interesses do personagem principal da narrativa nacional O que suscita a lembrança são feitos dignos de rememoração e logo de comemoração algo que o próprio Varnhagen expressa deixando fundada essa feitoria passou Jaques a correr a costa até o Rio da Prata onde pouco tempo se demorou regressando outra vez para o Norte a cometer feitos que não tardaremos em comemorar506 Ao longo do desenvolvimento da sua narrativa os heróis da nação brasileira vão pouco a pouco surgindo e constituindo uma galeria de personagens dignos de adoração 504 Ibid p157158 Grifo nosso 505 Reis afirma que Vasco da Gama e Cabral são os primeiros heróis da numerosa galeria de Varnha gen REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p38 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpg PA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3 oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6 jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookresul 506 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 109 Horizontes Identitários 154 cujos atos devem inspirar imitação Algumas vezes os critérios de escolha dos eleitos são surpreendentes e demonstram a extensão do pragmatismo de Varnhagen Há uma certa regularidade na atribuição da condição de objeto de adoração e exemplo de comportamento no que se refere à condição social daqueles que são glorificados Entretanto essa classificação atende muito mais a um sentido utilitário de prestação de serviço à nação do que propriamente qualquer outro critério Prova disso é que Varnhagen irá também considerar em alguns casos índios e negros como heróis Consideraos assim por colocaremse a serviço da nação É o que ocorre com o Ilustre herói índio comendador professo na ordem de Cristo Dom Frei Antônio Filipe Camarão Associado à causa da civilização desde antes da fundação da capitania do Rio Grande do Norte o célebre varão índio não deixara de prestar de contínuo aos nossos mui importantes serviços já contra os selvagens já contra os holandeses em todas as capitanias do Norte Consta que esse chefe era muito bem inclinado comedido e cortês e no falar muito grave e formal e não falta quem acrescente que não só lia e escrevia bem mas que nem era estranho ao latim Ao vêlo tão bom cristão e tão diferente de seus antepassados não há que argumentar entre os homens com superioridade de geração mas sim deve abismarnos a magia da educação que ministrada embora à força opera tais transformações que de um bárbaro prejudicial à ordem social pode conseguir um cidadão útil a si e à pátria507 O pragmatismo de Varnhagen se estende inclusive a própria condição étnica demonstrando que o seu critério maior é o de fidelidade nacional508 Com Henrique Dias que será convertido em herói negro da nação o tom não é diferente Foi porém somente depois de morto que os seus serviços receberam no Brasil não sabemos em que data a mais gloriosa recompensa ordenandose que para perpétua memória se organizassem em várias das capitanias corpos de soldados e oficiais todos pretos com o nome de regimentos dos Henriques509 507 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 79 508 Para Varnhagen a condição de índio não representa obstáculo algum Ele inclusive discute o as sunto sem constrangimento pois pouco interessa a origem étnica O que importa é a possibilidade de materializar um sujeito ideal e projetar a partir daí um exemplo para o presente Assim dirá que a verdadeira naturalidade e a época do nascimento do herói Camarão tem sido até nossos dias objeto de discussões e dúvidas Pelo que respeita a primeira o fato incontestável de ser de nação potiguar Ibid p 79 509 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora Salah H Khaled Jr 155 As honrarias estão ao alcance até mesmo de negros e índios Basta que abram mão de sua identidade que assimilados deixem de ser um outro e passem a ser o mesmo assumindo a condição que se espera de um súdito leal Esse é sobretudo o sentido de um grande relato da nacionalidade que busca erradicar a heterogeneidade Se os exemplos de negros e índios heróis são poucos é apenas porque foram escassos os casos em que essa condição se efetivou Varnhagen trabalha a questão do herói por excelência em contraposição ao inimigo Dessa forma define como uma boa estreia o combate vitorioso de Martim Afonso com naus francesas na costa de Pernambuco510 Por essa boa estreia será recompensado postumamente com o reconhecimento de sua virtude através do relato de Varnhagen O poder da história oferece a alguns escolhidos a vida após a morte integrandoos como objeto de culto e fonte de ensinamento na narrativa nacional Enfim Martim Afonso não se descuidou da empresa confiada à sua solicitude e que mais nolo recomenda e o há de recomendar à posteridade que todos os outros seus feitos militares apesar de mui brilhantes de mais perecedoura memória praticados nesse Oriente por que tanto se afanava Enquanto no Brasil não dava ele nem um dia de féria a seu cuidado511 O critério por excelência que garante o ingresso na posteridade é a virtude de resistência ao invasor e a disposição para a luta em nome da pátria Varnhagen associa a colonização com a resistência às pretensões estrangeiras e assim define o Brasil como nação em processo civilizatório que se defronta com outras nações já civilizadas Há aqui um anacronismo embutido pois Varnhagen demonstra forte tendência de enxergar uma defesa da soberania brasileira na colônia Como afirma Wehling os nossos defendem a causa da integridade da posse portuguesa o que por sua vez garantirá no futuro a unidade territorial do país512 Nada poderia ser mais edificante do que essa capacidade para a resistência e superação mesmo diante de uma evidente disparidade Sendo assim não é surpreendente que os heróis sejam forjados a partir dessa configuração com raras exceções513 que também são mentos 1959 p 97l 510 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 125 511 Ibid p 132 512 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p69 513 A galeria de heróis constituídos por Varnhagen é extensa e começa com um exemplo um tanto Horizontes Identitários 156 exemplares para a pátria como o Padre Viera514 Bartolomeu Lourenço515 e D José516 Varnhagen de tal forma associa o desenvolvimento da nação ao confronto que para ele o processo de ocupação do território na forma de capitanias teve inclusive relação íntima com a ameaça representada pelos franceses 517 Para Varnhagen o próprio motivo por trás da ocupação efetiva do território configura uma espécie de defesa da soberania nacional Ele enfatiza entretanto que por ser mal feito não se expulsaram de nossos mares os navios franceses que era o resultado principal que se pretendia obter518 Em virtude da ameaça continuada que representavam os franceses Varnhagen obtém a matériaprima que necessita para o seu jogo com o perigo e com a possível e sempre iminente tragédia Dessa forma ele afirma que a frequência com que os navios franceses transitavam pelos mares brasileiros era preocupante e exigia constante vigília519 O desconforto diante do perigo então representado pelos franceses leva quanto inusitado embora Varnhagen diga que não pertence a esta História tratar de Colombo afirma ele que foi um grande homem que verdadeiramente pode se dizer que consumou a obra começada por Alexandre de por em comunicação recíproca o gênero humano VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p63 514 Que durante mais de um terço de século tamanho papel representa na história dos dois Estados brasílio e maranhense esse homem notável Bem que nascido em Portugal Vieira viveu a maior parte do tempo no Brasil e aqui morreu do mesmo modo que seus pais seu irmão e outros parentes Ele próprio dizia que pelo segundo nascimento devia ao Brasil as obrigações de pátria e certo é que as sociado ao seu brilhante nome ajudou no século XVII a fazer ressoar na Europa o desta então obscura colônia Foi um verdadeiro gênio VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhoramentos 1959 p 164 515 Discutindo a questão da navegação área e uma suposta injustiça Varnhagen afirma que à gloria de Bartolomeu Lourenço se fará a devida justiça e o Brasil exultará de ver bem que tarde tributada a devida homenagem a este filho da província pela nossa parte cumprenos lamentar que as aspi rações do verdadeiro gênio e do amor da pátria tantas vezes se encontrem póstumas e ainda assim tardias recompensas unicamente conferidas pela consciência da posteridade alheia às negras nuvens da inveja Ibid p 332 516 Possuía elrei D José grandes dotes para rei começando pelo amor do país da glória e da virtude Era benigno verdadeiro e probo De sua firmeza de caráter qualidade primeira nos que governam não necessitamos mais prova que a do modo como soube empatar tantas e tão diferentes intrigas que lhe armaram contra o seu ministro Pombal e isso apesar de que era por compleição um pouco timorato nada abalou o seu grande ânimo de conservar à frente da administração o homem que em meio de seus defeitos desejava a todo transe despertar a apatia da nação restaurando sua dignidade e in dependência ainda hoje estamos desfrutando dos benefícios que nos legou a ciência desse grande estadista VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhoramentos 1959 p235 517 Varnhagen conta que Foi pois resolvido que o Brasil se dividisse em grandes capitanias contando para cada uma sobre a costa cinqüenta ou mais léguas o que elrei participou logo a Martim Afonso na resposta das cartas que o mesmo Martim Afonso escrevera de Pernambuco dando conta da toma da das naus francesas VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 138 518 Ibid p 146 519 Varnhagen afirma que as notícias que haviam chegado à corte da costumada freqüência dos navios franceses máxime no porto do Rio de Janeiro haviam produzido uma ordem expressa para o fortificar Salah H Khaled Jr 157 Varnhagen a agradecer à Providência pela demora na descoberta do ouro no interior do país pois poderia resultar em catástrofe provocando a migração para o interior e a entrega do litoral a França520 Assim ele vai dizer que o território nacional o bem máximo a ser protegido encontravase sob forte ameaça assuntos mais graves que os de minas demandavam agora toda a atenção do governador Tratavase de nada menos do que da conservação e defesa do território O litoral viase cada vez mais ameaçado de corsários e piratas não só ingleses e holandeses como também franceses Estes últimos se achavam quase de posse de todos os portos do Rio Grande para o Norte contavam por aí com toda a indiada em seu favor e tinham sempre em cheque a Paraíba521 Os portuguesesbrasileiros se viam assim diante de um perigo muito maior do que o representado pelos bárbaros A presença constante dos franceses comprometia a própria continuidade do esforço colonial522 A ameaça funciona inclusive como uma forma de integração discursiva do território reforçando o sentido geral da história brasileira por ele escrita Assim Varnhagen afirma que havia uma clara idéia da freqüência com que visitavam os navios franceses estas paragens principalmente o Rio de Janeiro Tal freqüência dos navios franceses não era desconhecida na cidade de Salvador523 Era o Brasil que se via ameaçado pelos franceses e não regiões isoladas Uma outra nação ameaçava a soberania nacional A sensação que ele busca provocar é de inquietação no leitor pouco tempo depois chegava também a notícia de que ficavam muitos da mesma nação estabelecidos em uma ilha à boca da enseada do Rio de Janeiro524 e convinhalhe indagar se nas capitanias do Sul adquirira gente e meios para fazêlo pois ali da Bahia nada podia então dispensar VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 257 520 Sobre os rumores de existência de metais preciosos no país Varnhagen diz que mas Deus não ha via querido ordenar que elas se confirmassem antes de estar mais assegurado o Brasil As expedições que se empreenderam não tiveram êxito E felizmente que não o tiveram pois a descoberta de minas no sertão quando ainda existia tão pouca gente na costa a teria deixado deserta e dela se haveriam talvez apoderado os Franceses Ibid p 261 521 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 44 522 Assim compreensivamente Varnhagen dirá que Lamentando os tristes acontecimentos que tive ram lugar durante a administração de D Duarte apressemonos a dizer que alguns não se devem tanto atribuir a ela como à sua má fortuna Os Franceses apareciam no Brasil em maior força do que nunca e chegaram a estabelecerse no Rio de Janeiro VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 278 523 Ibid p 284 524 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 285 Horizontes Identitários 158 O cenário estabelecido por Varnhagen vai se tornando cada vez mais alarmante Sua intenção é justamente esta que o leitor se maravilhe diante do feito realizado pelos colonizadores Assim o número de gentios que estava em favor dos franceses orçava o governador em mais de mil525 Segundo ele a extensão das pretensões francesas quanto ao país pode ser medida pelo que se pensava na época Varnhagen demonstra isso dizendo que o cosmógrafo André Thevet pretendeu que o país se ficasse chamando França Antarctica e assim o designou já no próprio título do livro das coisas singulares do Brasil que publicou em 1558526 Varnhagen cria um cenário verdadeiramente alarmante os choques se elevavam cada vez mais chegando ao confronto aberto o qual exigia por parte dos nossos sacrifícios de grande monta para a defesa da pátria Onde porém os franceses se apresentavam em aberta hostilidade nesse ano foi na Paraíba Trezentos e cinqüenta homens desembarcados de treze navios cometeram o forte de Santa Catarina do Cabedelo apenas defendido por vinte homens e cinco pequenas peças de artilharia mas tal foi a resistência que apresentaram que os atacantes se viram obrigados a reembarcarse com grande perda O comandante do forte morreu nessa heróica defesa deixando ao sucessor João de Matos Cardoso um digno exemplo que ele soube imitar trinta e quatro anos depois contra os intrusos holandeses527 Eis aqui novamente as figuras da tragédia do inimigo e do herói operando de forma conjunta motivando a comoção do leitor Como não esperar no presente a preservação de tais feitos nobres realizados em nome da pátria São atos de grande sacrifício dos quais o país deve se orgulhar e logo buscar imitar Varnhagen inclusive destaca que a resistência aos invasores é um feito local de aparente desconhecimento por parte da Corte cabendo portanto à nova pátria celebrála528 Evidentemente o estabelecimento de um cenário inteiramente desfavorável culmina com um capítulo intitulado Men de Sá A expulsão dos franceses e a consagração do herói elevado 525 Ibid p 305 526 Ibid p 286 527 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 46 Grifo nosso 528 Sobre os preparativos para a incursão francesa no Brasil Varnhagen diz que Deviam essas notí cias chegar ao conhecimento da corte quer por via do próprio Brasil quer da França onde os prepa rativos se haviam feito sem grande segredo não se dizia ao menos por escrito uma palavra da ex pulsão dos franceses de cujas forças parece nem havia exata idéia VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p 141 Salah H Khaled Jr 159 a objeto de culto da nação Mas os franceses não são os mais célebres inimigos do esforço colonial em certa medida devido à escassez de fontes e nem os castelhanos a que Varnhagen geralmente se refere de forma passageira comentando por exemplo as reclamações contra os castelhanos de Assunção que entravam nas terras do Brasil com morte de muita gente529 O inimigo por excelência é o holandês até mesmo porque o choque foi extenso e houve no entender de Varnhagen perda de soberania Ele considera que apesar da união com a Espanha ter sido benéfica em função do alargamento das fronteiras trouxe uma série de novas ameaças diante das quais havia pouca condição de resistência530 Essa união colocou o Brasil em um estado de iminente calamidade Varnhagen traça um cenário de pânico crescente diante das iminentes invasões pois por todas as capitanias os receios de alguma invasão estrangeira eram como um sentimento público Temiamse franceses temiam se ingleses temiamse holandeses e até se chegava a temer mouros e turcos531 Não poderia ser diferente a sensação é retratada por ele como comum a todas as capitanias O panorama era de tamanha negatividade que Varnhagen chega a manifestar uma certa xenofobia o que não lhe é peculiar pois como as condições para assumir o papel de herói evidenciam seu nacionalismo é muito mais baseado na vontade do que na etnia532 Para ele em virtude dessa conjuntura de ameaça de invasão iminente os 529 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 259 530 Varnhagen reflete que E claro está que sendo a maior parte destes inimigos nações marítimas a própria vastidão quase imensa da nova monarquia a cujos destinos se havia associado a nascente colônia Brasília dificultava a sua defesa e a deixava vulnerável como uma das paragens a que menos lhe interessava atender E com efeito o Brasil onde ainda não haviam sido descobertas as minas de ouro e diamantes o Brasil com a sua escassa produção de açúcar e do pau que lhe dera nome não podia ser guardado pelos novos reis estrangeiros com o mesmo empenho com que tratavam de guar dar o México e o Peru domínios que com o enorme produto de inesgotáveis minas de ouro e prata os ajudavam em tantas guerras Ibid p 366367 531 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 161 532 Assim Varnhagen irá apontar o erro estratégico que era O freqüente uso até então seguido de preferirem os comerciantes de Lisboa o fretarem para o Brasil urcas flamengas mais bem construídas e artilhadas do que os barcos portugueses não só foi prejudicial à marinha de guerra que da mercante se alimenta como levou ao Brasil muitos estrangeiros que com o andar do tempo se converteram em espias e em inimigos declarados especialmente desde que com a sua união a demais Espanha os Países Baixos começaram a considerar como inimigos sempre que isso lhes convinha VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p 45 Horizontes Identitários 160 estrangeiros deixavam de ser de confiança533 É dentro desse cenário que Varnhagen tece uma de suas críticas mais contundentes e carrega no tom trágico e na indignação de quem escreve como historiador que inventa a nação Entretanto temos para nós que quando o inimigo nos ameaça há que prepararmonos para o receber à porta da casa e não dentro dela depois de nola haver saqueado para nos matar com nossas próprias armas se não lhe pagamos os tributos que nos impõe Ora tais preparativos mal se fizeram pois deviam consistir principalmente em ter não fortalezas fixas mas praças de guerra móveis uma respeitável marinha colonial Deixemos ao fatalismo embrutecedor o explicarnos como o Brasil bradava aos céus pelos seus costumes pervertidos pedindo uma invasão que chegou a ter dele separada da outra metade por tantos anos que mal se explica como veio a soldar se Apesar da nossa nímia tolerância que melhor avaliará o leitor para o adiante apesar de reconhecermos os bens que algumas províncias brasileiras devem hoje aos holandeses cremos que se cometeram faltas graves e que o governo não obrou nesse ponto como pedia o caso Dirão que havia chegado na Terra de Santa Cruz ao auge a corrupção o roubo e o escândalo534 Para ele portanto seria devido à omissão do governo e à degeneração dos costumes que os holandeses chegaram a se estabelecer no Brasil Isso viria a comprometer inclusive o que Varnhagen via como a própria soberania nacional causando a separação de parte do seu território O emprego da expressão mal explica como veio a soldarse indica o esforço realizado do qual ele se vale extensivamente para inventar um sentimento nacional então inexistente Esse sentimento surgirá principalmente pela contraposição dos nossos aos inimigos Varnhagen afirma que estando os holandeses devidamente incentivados pela ausência de represálias às suas incursões em território brasileiro deram início aos preparativos para um empreendimento muito mais ambicioso sua ocupação535 A partir 533 Varnhagen afirma que Além desses delinqüentes encontravamse de repente outros muitos dis seminados por todo o Brasil que só o eram em virtude das circunstâncias Tais foram todos os estran geiros e com especialidade os holandeses franceses e ingleses Muitos feitores de engenhos eram destas nacionalidades e se haviam durante anos conduzido honradamente mas em presença dos ataques de seus compatriotas e dos conluios provados com um ou outro difícil era seguir neles tendo confiança Ibid p 65 534 Ibid p162163 Grifo nosso 535 Varnhagen afirma que As faltas do governo haviam de tal modo engulosinado os holandeses com tantas presas feitas por eles de um modo impune que já não se duvidava de qual era o agressor mais iminente quando renasceu com vigor na Holanda o pensamento da organização de uma companhia de comércio ocidental análoga a que já existia para o Oriente Organizada a companhia holandesa aprovados os regulamentos e empreendidos já inclusivamente alguns primeiros ensaios o conselho dos dezenove decidiu tentar um ataque sobre o Brasil e para dar o golpe mais decisivo e seguro resol Salah H Khaled Jr 161 daí irrompeu a guerra Varnhagen relata que a guerra era mui legitima Concluída a trégua no dia 9 de abril desse ano 1621 havia o próprio rei ordenado por carta régia do dia 15 do dito mês que os holandeses fossem tratados como inimigos536 A partir daí ele passa a se referir não mais aos holandeses enquanto sujeitos dotados de uma identidade própria mas sucintamente utilizase da categoria de inimigo O inimigo vale enquanto antagonista por excelência do Brasil e da colonização portuguesa Isso por sua vez possibilita novamente a constituição de heróis modelos paradigmáticos de virtude537 Varnhagen comenta que a vulnerabilidade do país e a escassez de resistência praticamente convidou os holandeses a se aventurarem no Brasil Uma vez que essa intenção ficou clara finalmente tiveram início os preparativos para a defesa da nação brasileira538 Varnhagen tenta atribuir um certo tom épico ao conflito assim no dia 8 de maio de 1624 foram avistadas as velas inimigas na madruga do dia seguinte o inimigo com vento favorável enfiou a entrada passando longe do canhão dos fortes539 Uma narrativa que pretende seduzir exige o emprego de certos recursos Independentemente de Varnhagen ser bem sucedido na utilização de tais artifícios a categoria do inimigo se torna uma peça chave para suas pretensões exemplares O termo inimigo é utilizado constantemente a partir daí por Varnhagen como atribuição de sentido em oposição aos nossos como em o ataque foi rechaçado de forma que o inimigo sofreu grande perda540 Quem sofre a perda é o inimigo e não pura e simplesmente o holandês o que reforça o feito e a identidade dos nossos A palavra inimigo é empregada literalmente dezenas de vezes em algumas oportunidades veu acometer a cidadecapital a Bahia que era também conhecida dos holandeses VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p 163164 536 Ibid p 165 537 Varnhagen fala do capitão o fundador da colônia Martim Soares que resistindo por duas vezes às ameaças de duas naus holandesas veio já a prometer o que foi daí a trinta anos um dos campeões da restauração de Pernambuco Ibid p 156 538 Varnhagen conta que Quando chegou a notícia dos intentos hostis da expedição holandesa estava de governadorgeral na Bahia Diogo de Mendonça Furtado que havia recebido a tal respeito avisos diretos da metrópole com ordens mui antecipadas para fortificar especialmente as entradas dos portos da Bahia e do Recife Ibid p 187 539 Ibid p 188 540 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 246 Horizontes Identitários 162 até quatro vezes por página Ele raramente se refere ao inimigo como os holandeses como é o caso aqui foi para os holandeses uma vitória completa541 De certa forma Varnhagen está negando identidade ao seu adversário que não vale efetivamente como outro mas somente tem sentido como aquele que se contrapõe ao defensor da prefiguração de uma pátria brasileira O fato é que diante das imensas dificuldades os nossos eventualmente triunfam sempre sobre o inimigo até porque contam com grandes líderes com heróis o que não é o caso do adversário não foi por falta de munições nem de provisões nem de soldados que a praça se rendeu foi por falta de união e de disciplina foi por não ter um chefe superior de prestígio542 Em linha semelhante Varnhagen dirá que houve um certo desleixo dos novos sitiadores confiados excessivamente na superioridade do número lhes veio a custar bastante caro no dia 6 de abril acercouse da praça a esquadra libertadora desembarcado entretanto o inimigo travouse a peleja durante um quarto de hora e o holandês se viu obrigado a retirarse com alguma perda limitandose a nossa à morte de um soldado caíram em uma cilada que os nossos dirigidos pelo mesmo Salvador Correia lhes armaram nela foi abalroada a lancha principal ficando só dois com vida e as outras lanchas apenas puderam escaparse com grande perda Desenganados os holandeses na presença de tantas tentativas malogradas fizeramse de vela ao cabo de oito dias543 Varnhagen se regozija com os resultados infrutíferos da primeira empreitada holandesa e exaltado espera do leitor que compartilhe dessa comemoração544 Entretanto apesar dos sucessos alcançados o pior ainda estava por vir pois o saque do Recôncavo da Bahia alcançado com tanta vantagem por Piet Heyn seria por si só um grande estímulo para a Companhia Ocidental não desistir de novos ataques contra o Brasil545 No entanto Varnhagen afirma que de forma surpreendente mesmo com a 541 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 35 542 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 198 543 Ibid p 195196 544 Varnhagen comenta que Ficaram assim infrutuosos para os holandeses todos os gastos feitos com esta expedição de socorro e com mais razão ainda ficou sem ter efeito um édito ou proclamação aos povos do Brasil que no dia 26 de maio haviam promulgado os Estados Gerais prometendo tolerância religiosa liberdade de comércio segurança da propriedade e outras garantias aos que se submetes sem Ibid p 199 545 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora Salah H Khaled Jr 163 continuidade das incursões holandesas o Brasil parecia providencialmente destinado a prevalecer e resistir546 Para Varnhagen os nossos demonstravam uma capacidade para superação até então inimaginável a guerra efetivamente os enobrecia pois os colocava a serviço do mais nobre dos ideais a defesa da pátria Nesse sentido ele afirma que o êxito obtido nesta defesa aumentou o valor aos nossos e levada a notícia aos distritos vizinhos porventura apressou a marcha dos que se preparavam a acudir547 Novamente reforçase o sentido de todo em seu grande relato da nacionalidade A coesão é obtida a partir do contraponto do inimigo que valoriza o esforço dos nossos unidos em torno da causa comum Francisco Gomes de Melo apesar de ter sido capitão no Rio Grande e ser de jurisdição superior a Maciel Parente quis a bem do serviço dar exemplo de muita abnegação colocandose sob suas ordens Ajudados pela localidade conseguiram os nossos em dois redutos cada um com duas peças impedir o desembarque tentado por três vezes pelo inimigo com tão grande perda que teve de tornar de novo para Recife548 Em alguns casos Varnhagen se entusiasma e chega a extrapolar o bom senso ao dizer por exemplo que a defesa foi heróica e constitui entre nós uma lenda semelhante à do passo das Termópilas entre os gregos o inimigo respeitou tanto valor549 Varnhagen constrói discursivamente o heroísmo A narrativa nacional revela uma resistência que engrandecia os nossos que fazia com que buscassem o melhor de si mesmos e que os unia diante do inimigo comum Com esta vitória apesar dos novos reforços que de contínuo e quase em cada navio da Europa recebia o inimigo os nossos cobraram brios e começaram a empreender ataques de surpresa não tardaram até atacar formalmente os entrincheiramentos que o inimigo prosseguia na ilha de Santo Antônio acometeram os nossos com tal ímpeto que em menos de um quarto de hora haviam entrado na primeira e segunda trincheira mais de trezentos Aí se travou a peleja corpo a corpo Os nossos conseguiram a princípio maior vantagem depois já o chefe inimigo se viu obrigado a declarar de ofício que combatia com um povo valoroso e ágil550 mentos 1959 p 223 546 Ibidem 224 547 Ibid p 230 548 Ibid p 241 549 Ibid p 244 550 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora Horizontes Identitários 164 Varnhagen utilizase astutamente dos fatos e do que as fontes lhe oferecem para pouco a pouco ir constituindo o caráter de um povo valoroso patriótico que se presta ao sacrifício em nome da pátria que não esmorece diante da adversidade e que se cobre de glória ao triunfar551 Ele destaca ressaltando o sentido trágico que o próprio cenário internacional era inclusive desfavorável552 As vitórias são afirmações do quanto eram intrépidos e destemidos os nossos Barreto reconheceu por fim que devia retirarse ou acometer o inimigo e não hesitou em decidirse a tomar este último expediente apesar da notável inferioridade da posição que ocupava e também da das suas forças na manhã do dia seguinte que era o de Nossa Senhora dos Prazeres os nossos cantavam definitivamente a vitória553 Quinhões de glória são distribuídos de forma farta por Varnhagen como quando ele diz que este oficial a quem mais tarde novos méritos chegaram a coroar com os louros da vitória e adornar com a palma do civismo554 Em outro momento se vale do mesmo espírito ao tratar da província do Mato Grosso na qual se deram hostilidades as quais se bem não resultasse aumento de território redundaram em muita glória para as nossas armas555 Contra o ataque do forte de Coimbra pelo governador do Paraguai também há reconhecimento de que houve heroica resistência A resposta do comandante ao inimigo é transcrita por Varnhagen em todos os tempos a desigualdade de forças havia sido um estímulo que animara os portugueses e que ele e os seus se defenderiam até uma das duas extremidades ou a de repelir o inimigo ou a de sepultaremse debaixo das ruínas do forte556 mentos 1959 p 233 551 Por isso Wehling em sentido semelhante diz que Varnhagen não perdeu oportunidades para projetar no passado conquanto respeitasse rigorosamente a documentação e distinguisse as infor mações de sua própria opinião as soluções que lhe pareciam melhores WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p173 552 Varnhagen relata as dificuldades que os negociadores encontravam os holandeses não se deixa ram iludir e exigiram como penhor a imediata passagem a seu poder da ilha Terceira ou da Bahia E com mais razão se julgaram fortes desde que em Munster firmaram as pazes com a Espanha e esta nação lhes garantiu todos os lugares do Brasil tomados aos Estados pelos portugueses desde 1641 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhoramen tos 1959 p 52 553 Ibid p 55 554 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 270 555 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p30 556 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora Salah H Khaled Jr 165 Varnhagen fala em uma heroica resposta e explora ao máximo os confrontos de acordo com suas ambições pragmáticas Uma fragata portuguesa porém chamada Rosário sustentou contra duas inimigas Utrecht e Gissinlingh um aturado combate e quando estas julgavam a sua contendora perdida e a atracaram dandolhe a abordagem foram todas três a pique em virtude de explosão do paiol de pólvora da Rosário cuja tripulação preferiu ir ao fundo com seus vencedores a deixarse aprisionar destes De tão heróico feito apenas temos conhecimento por um ofício de Schkoppe em outra ocasião mal compreendido e sentimos que com a notícia dele nos não seja possível transmitir o nome do destemido e abnegado oficial que lançou fogo ao paiol e deixou nas águas do Brasil às gerações futuras um exemplo de tão nobre heroísmo557 Aqui ele chega a manifestar um certo pesar por ser incapaz de inscrever na posteridade o nome do valoroso oficial que havia se sacrificado em prol da honra nacional Varnhagen mal consegue se conter de satisfação com as vitórias que vê como brasileiras e logo afirmativas da nação que ele prefigura no passado o inimigo ficou de todo destroçado e a vitória foi para os nossos ainda mais completa que a do ano antecedente o inimigo reconheceu a sua derrota e a confessou oficialmente atribuindoa a covardia dos próprios soldados558 Ou em outro trecho no qual fala da heroicidade com que segundo vimos conseguiram rechaçar um ataque do inimigo holandês559 Segundo Varnhagen o valor dos nossos era de tal tamanho que reconhecido pelo inimigo o levava a redobrar os seus preparativos para o enfrentamento Este assalto não foi o único empreendido pelos nossos com mais audácia que fortuna e bom discernimento Em lugar de estudar quais eram os pontos importantes para guarnecer e entrincheirar abdicava em geral o chefe esse cuidado ao inimigo e apenas este os havia ocupado e se achava em estado de apresentar neles resistência era resolvido o ataque tendo neste o inimigo as vantagens da defensiva Os nossos atacaram logo no próprio dia 3 de fevereiro de 1631 e tiveram que se retirar ao cabo de duas horas com perda de treze mentos 1959 p30 557 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 80 558 Ibid p 83 559 Ibid p 140 Horizontes Identitários 166 mortos e vinte e um feridos Repetiuse ainda semelhante erro daí a perto de cinco meses quando o inimigo se lembrou de construir o forte do Buraco a que deu o nome de Madame Bruyn E se em semelhantes ataques o inimigo apreciava melhor o valor dos nossos era isso uma desvantagem porque melhor se prevenia e se deles resultava o iremse eles familiarizando mais com o fogo e fazendose aguerridos não há dúvida que idênticos fins se poderiam conseguir adquirindo a tempo vantagens decididas os que expunham tão heroicamente as vidas560 Para Varnhagen a resistência era tão valorosa que tornavase evidente para os próprios Holandeses que a manutenção de sua presença no Brasil lhes custaria mais caro do que esperavam originalmente561 Essa é uma consideração que Varnhagen várias vezes reitera Depois dela os inimigos se mostraram mais prudentes porventura com excesso Dois meses e meio depois em 9 de julho apesar de contarem ainda com um exército de seis mil e seiscentas e trinta praças incluindo quinhentos índios e quarenta e oito pretos dos quais podiam por mais da metade em campo mostravamse desanimados Escreviam para a pátria declarando que não haviam oferecido nova anistia por não esperarem disso colher nenhum resultado visto que a experiência de cada dia lhes ensinara que os nossos se haviam feito de tal modo à guerra que se achavam no caso de poder medir se com os mais exercitados soldados e que sabiam sofrer toda sorte de privações ao passo que os seus apenas serviam vendo a bolacha perto de si562 Um passado de glórias dos quais os brasileiros podem e devem se orgulhar está sendo constituído gradualmente em cada página da narrativa de Varnhagen em que se dão os confrontos em defesa da soberania por ele prefigurada Por outro lado a forma com que ele trata a adversidade e os revezes sofridos não pode ser descrita de outra forma que não o melodrama Por exemplo diz ele que os holandeses cantaram 560 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p234235 561 Varnhagen afirma que Se a primeira vitória dos Guararapes servira de alentar os estadistas de Por tugal para se oporem à cessão ou venda de Pernambuco esta segunda veio desalentar os estadistas e mercadores da Holanda demonstrandolhes evidentemente que só mediante grandes sacrifícios po deriam continuar mantendo esta conquista Entretanto a hora da final expulsão dos intrusos não tinha chegado e não veio a soar senão perto de cinco anos depois VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhoramentos 1959 p 84 562 Ibid p 56 Salah H Khaled Jr 167 vitória e com razão A nossa perda foi imensa563 Varnhagen praticamente convida o leitor a lamentarse com ele em uma das raras ocasiões em que utiliza o termo holandeses ao referirse ao inimigo Esse trecho ainda é suave O trecho a seguir carregado de requintes de crueldade dita o tom do confronto entre portugueses e holandeses valorizando e concedendo reconhecimento e glória aos valentes heróis da pátria diante da desumanidade do inimigo Procuraremos passar rapidamente pela descrição de tais cenas que se fossemos a pintar com as verdadeiras cores causariam não somente horror como até asco Limitarnoemos a referir que um Antonio Baracho amarrado nu a um posto foi morto cortandolhe os assassinos pouco a pouco dolorosamente cada uma das partes do corpo que Mateus Moreira lhe arrancaram pelas costas o coração e que com dois jovens Manuel Álvares Ilha e Antônio Fernandes não chegaram a usar de tanta barbaridade porque eles tinham consigo facas de ponta com as quais matando antes a vários dos algozes caíram logo mortos com mais glória para si e menos opróbrio para os inimigos tantas crueldades não só dos bárbaros como dos próprios holandeses que se bem que cristãos de nome mais bárbaros haviam se mostrado que os ignorantes índios564 A invasão resultou portanto sofrida e custosa para os habitantes do país Trata se de um esforço que deve ser valorizado Se os nossos lutaram e caíram no passado pelo Brasil uno e coeso como por tudo a perder agora e ignorar tais sacrifícios565 Um exemplo é a desastrosa morte que teve o governadorgeral Antônio Teles que tanto peito havia tomado a causa da restauração de Pernambuco e que depois de a deixar já quase triunfante veio quando se recolhia à pátria a perecer afogado nas águas de Buarcos566 Varnhagen sempre relaciona triunfo glória e pátria associando o serviço à nação com a recompensa que a posteridade assegura O tom pedagógico da tragédia é inequívoco 563 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 312 564 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 39 565 Varnhagen considera que o Brasil não é obra do acaso ou criado de repente É fruto da vida e do trabalho de muitas gerações VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927pVIII 566 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p8485 Horizontes Identitários 168 distinguindose então por seu valor o capitão pernambucano Estevão de Távora que ferido gravemente no peito morreu daí a poucos dias legando à pátria um nome heróico com a notável circunstância de lhe haver sido dado por sucessor no mando da companhia que lhe estava confiada o paraibano André Vidal cujos grandes serviços e dedicação iremos comemorando Nestas sortidas se distinguiram muito além do mesmo André Vidal os capitães Francisco Rebelo Rebelinho Ascenso da Silva e Sebastião do Souto o do ardil de Porto Calvo que pouco depois no grande ataque deste sítio acabou como Távora gloriosamente seus dias ferido de uma bala no peito567 Desde o discurso de Barboza já havia ficado estabelecido que os grandes feitos devem ser comemorados e por extensão os autores de tais feitos André Vidal foi o escolhido por Varnhagen para ser o represente máximo da virtude posta a serviço da nação e portanto comemorada Segundo ele em Vidal obravam não só os impulsos do patriotismo como também os da religião568 Varnhagen não se cansa de exaltar as virtudes tidas por ele como patrióticas que personificadas caracterizavam Vidal O êxito obtido na restauração do Maranhão não podia deixar de excitar os brios de André Vidal para se esforçar de novo em conseguir realizar a de Pernambuco e Paraíba por que tanto se havia empenhado propôse ele a patrioticamente voltar de novo a Pernambuco e ir até a Paraíba a fim de alentar os tíbios e de combinar um plano por meio do qual se pudessem conseguir resultados tão favoráveis como os que os maranhenses haviam obtido ao cabo de dez meses de luta569 O reconhecimento de Varnhagen a respeito das proezas de Vidal reafirma que a história se encarrega de garantir o triunfo da vida sobre a morte sendo este um dos mais evidentes aspectos de culto ao passado Poderia haver recompensa maior do que ser eternizado na memória nacional Ao referirse ao pai de André Vidal um senhor de engenho Varnhagen dirá que Francisco Vidal era do venerável ancião o nome cujo conhecimento uma piedosa tradição entre os gregos julgava essencial para que o filho conseguisse a imortalidade570 Tamanha é a grandeza que Varnhagen 567 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 296 568 Ibid p 326 569 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 13 570 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 14 Salah H Khaled Jr 169 atribui a Vidal que os próprios exemplos de bravura de outros valorosos defensores da pátria empalidecem diante dele Francisco Barreto era um grande cabo de guerra sobretudo quanto a dotes de circunspecção reserva e prudência estudando bem os fatos João Fernandes Viera não aparece decididamente tão grande como em detrimento dos camaradas nolo quiseram apresentar seus panegiristas André Vidal era homem tão superior que necessitaria de um Plutarco para apreciálo571 Há que se perguntar como Varnhagen consegue estabelecer critérios para fazer tais comparações que não parecem ser mais do que especulações suas572 Por definição o critério é ele próprio Varnhagen e o que considera de serventia para afirmação do ideal pragmático da nação em seu grande relato da nacionalidade Na narrativa nacional de Varnhagen o Brasil constituise como Império a partir de lutas aguerridas de um esforço nacional imenso por parte dos habitantes do país que foram capazes de resistir aos continuados ataques de franceses holandeses e castelhanos São perigos recorrentes e que se desenrolam alternadamente no enredo da nação Assim estando esgotada a questão holandesa Varnhagen passa novamente a tratar dos franceses e dos problemas que os envolvem visto que eles também representavam por sua vez outra forte ameaça à sobrevivência da pátria brasileira Segundo ele cumpre dizer que a França mal se podia conformar com o não gozar no Brasil de tantas prerrogativas como pelos tratados de paz haviam obtido a Inglaterra e a Holanda573 Embora privilegie o recorte nacional Varnhagen não ignora por inteiro suas repercussões internacionais Dessa forma em certas ocasiões ele se preocupa com as questões de além mar que implicam em reflexos sobre o Brasil engrossando as fileiras dos inimigos da nação574 Assim em alguns 571 Ibid p 94 572 Segundo Odalia Varnhagen escolheu Vidal e não Vieira como protótipo do herói branco na resistên cia contra o holandês por um motivo singelo Vieira era filho da Ilha da Madeira e Vidal filho da Paraíba Essa não é uma escolha indiferente ela ganha um sentido muito profundo pois na verdade a opção é feita em favor de um brasileiro isto é de um colono nascido e criado no Brasil que simboliza em si a própria luta de guerrilha que se estabelece contra os invasores ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p59 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 573 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 229 574 Varnhagen afirma que Em virtude da nova liga de Portugal em 1703 o Brasil passou a contar como inimigos a Espanha e a França e logo deveria esperar hostilidades da parte dessas duas nações Co meçaram elas na Colônia que pelas providências da metrópole seguia prosperando desde 1683 o governador Sebastião da Veiga Cabral depois de uma heróica defesa durante seis meses e meio por Horizontes Identitários 170 trechos ele demonstra a repercussão dos eventuais conflitos na Europa Durante o rompimento de relações com os franceses alguns empregados zelosos de Caiena por meio de argúcias mais ou menos inocentes provocaram novas dúvidas acerca das fronteiras do Oiapoc propagaramnas pelo mundo por meio da imprensa enquanto em Portugal nada se publicava e se formava assim a crença de que os limites do Brasil não iam ao Oiapoc575 Aqui a preocupação manifestada é de ordem territorial um assunto extremamente sensível para Varnhagen e do qual ele sempre trata de forma muito exaltada A ameaça à soberania nacional traz novamente à cena o fantasma da tragédia iminente Assim ao relatar o ataque francês ao Rio de Janeiro que resultou em capitulação e portanto vergonha para a pátria ele se posiciona da seguinte forma Valhanos ao menos tamanha lição e tamanha vergonha para o futuro se algum dia nos encontrarmos em situação análoga o que Deus não permita E a primeira lição que devemos colher é a de já em tempo de paz atendermos mais aos meios da resistência que deve oferecer este importante porto do qual permita Deus que seja quanto antes retirada a capital do império tão vulnerável aí na fronteira e tão exposta a ser ameaçada de um bombardeio e a sofrêlo com grande prejuízo dos seus proprietários por qualquer inimigo superior no mar que se proponha a arrancar do governo pela ameaça concessões em que não poderia pensar se o mesmo governo aí não se achasse576 Varnhagen se preocupou de tal forma com a vulnerabilidade da capital nacional que veio inclusive a propor a sua mudança para o interior dedicando inclusive como já referido uma obra posterior ao assunto577 O pragmatismo da história de Varnhagen revelase mais uma vez Ele escreve história inventa a nação e por vezes valese ordem da própria metrópole recebeu a largou retirandose com toda a guarnição ao Rio de Janeiro Por parte da Espanha à Colônia se limitaram por então as hostilidades na América Seis anos depois outras tiveram lugar no alto Amazonas Com a França as hostilidades tiveram caráter muito mais sério Ibid p 286287 575 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p23 576 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 298 577 Varnhagen vai considerar que a própria Providência concedeu ao Brasil uma paragem mais central mais segura mais sã e própria a ligar entre si os três grandes vales do Amazonas do Prata e do São Francisco nos elevados chapadões de ares puros de boas águas e até de abundantes mármores vizinhos ao triângulo formado pelas três lagoas Formosa Feia e Mestre d Armas das quais manam águas para o Amazonas para o São Francisco e para o Prata VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhoramentos 1959 p 298 Salah H Khaled Jr 171 do passado para justificar pontos de vista que são inteiramente pessoais em relação ao presente e ao futuro do país Ele inclusive demonstra pontos de vista sobre o presente a partir da forma com que vê a nação no passado Assim a deformação é de dupla via de um lado Varnhagen prefigura o passado a partir do presente narrandoo conforme o seu pragmatismo de outro lado se vale do passado para dizer algo no presente de acordo com suas convicções pessoais Essa percepção implica que o passado deva ser interpretado de acordo com o que o presente espera dele mas de outro lado que o passado pode ser utilizado como componente argumentativo face ao próprio presente Varnhagen estabelece de tal forma um padrão de conduta que espera que o mesmo seja verdadeiramente coercitivo O caráter da sua obra é o de uma pedagogia social A nação que Varnhagen prefigura é posta como um absoluto que exige do indivíduo o sacrifício como verdadeiro exemplo de devoção ao altar da pátria Infelizmente só depois de ajustada a capitulação veio de Minas com um reforço de seis mil homens o herói do Amazonas Antônio de Albuquerque que ainda assim chegou uns vinte dias antes que os franceses se fossem Pela mente lhe passou segundo parece a idéia de atacálos porém encontrouse falto de munições de balas especialmente mas sempre é para lastimar que com mais de doze mil homens de que dispunha não se tivesse coberto de glória intentando um ataque à arma branca578 Aqui Varnhagen reprova a falta de devoção e ousadia por parte de um comandante que ele mesmo classifica como herói A lealdade à nação deve ser continuamente reiterada e deve colocarse acima de qualquer outro dever É como se ele lamentasse a falta de iniciativa do comandante pois ao não promover um ataque que provavelmente redundaria em fracasso rouba de Varnhagen a oportunidade de valerse do fato como exemplar como é o caso do célebre combate entre a fragata portuguesa Andorinha e a francesa La Chiffone579 A História Geral do Brasil é sobretudo uma história de conflito e de afirmação da autoridade e soberania Nesse esforço intelectual as nações europeias exercem função significativa de fundação de sentidos Entretanto mesmo diante das ameaças estrangeiras o perigo representado pelos índios e pela desordem interna permanecia 578 Ibid p 300 579 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p31 Horizontes Identitários 172 constante Varnhagen afirma que as capitanias meridionais de São Vicente e Rio de Janeiro enquanto a guerra estrangeira lavrava nas do Norte não estiveram em perfeita paz Guerreavamse os índios ou por causa deles os moradores uns aos outros e às vezes até os próprios que deviam pregar a paz e contribuir para ela eram os que mais incitavam as desordens580 Como sempre a desordem entendida como falta de submissão a autoridade é apresentada de forma pejorativa com conotação pedagógica De acordo com ele o cenário era muito preocupante em algumas capitanias as outras capitanias imediatas até a Bahia decaíam de um modo espantoso e se conservavam em meio de tantos acontecimentos na quase nulidade em que ainda agora se acham de tal modo que por dizêlo assim dessas três capitanias do Brasil não há história e até hoje nenhum de seus filhos tem aparecido com memórias de acontecimentos extraídos das Câmaras as quais possam servir sequer para o historiador imparcial provar que não por esquecimento deixa de cuidar delas581 Varnhagen estabelece um contexto no qual forças desagregadoras pareciam conspirar para a falência da colonização Não contente com isso ele aponta o surgimento de um novo mal proveniente em parte da desmoralização e miséria pública Muitos dos pretos dos engenhos agora mais ociosos se haviam rebelado formando nos matos quilombos que assaltavam os proprietários e as fazendas582 O problema segundo ele se estendia a várias regiões exigindo medidas por parte dos colonizadores que felizmente encontraram o homem ideal583 para dar cabo da conquista de Palmares o maior dos quilombos 580 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 129 581 Ibid p140141 582 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 202 583 O paulista Domingos Jorge Velho muito conhecedor das artes e ardis da guerra do mato no Brasil pelas campanhas que fizera nos sertões em bandeiras contra os índios se apresentou em 1687 ao governador de Pernambuco com um projeto para terminar essa conquista ficando as vantagens dela para ele e seus sócios Ibid p 259 Salah H Khaled Jr 173 A conquista e sujeição dos Palmares foi obra de largos anos e de não poucos trabalhos e fadigas Quando na história do Brasil se menciona simplesmente uma sujeição de Palmares entendese serem os do sertão da atual província das Alagoas nas faldas da serra do Barriga onde nos tempos dos holandeses se haviam fugado muitos escravos a ponto de já então se acharem aí organizados em número de mais de onze mil em mocambos e quilombos independentes que iam adquirindo forças pelas vitórias que a princípio foram alcançando sobre as partidas primeiro dos holandeses depois dos pernambucanos pequenas e mal dirigidas que marchavam para sujeitálos como se isto fosse obra de ordens dadas de boca e não de muitos braços com pólvora e bala Que os mocambos e quilombos de Palmares vieram a constituir um ou mais estados no Estado não é possível por em dúvida entretanto temos que exageram os que amigos do maravilhoso os apresentam como organizados em república constituída com leis especiais e subordinados a um chefe que denominavam Zumbi expressão equivalente à com que na língua conguesa se designa a Deus584 Dessa forma Varnhagen retira de Palmares qualquer conotação nobre e ressalta a sua condição de ilegalidade de ilegitimidade como um ou mais de um estado constituído dentro do Estado Para ele infelizmente há que se lastimar a inexistência de fontes mais detalhadas para que fosse possível retratar com detalhe a conquista de Palmares585 Ou seja Palmares vale na sua narrativa enquanto proeza executada pelo colonizador e não por si só O cenário de tragédia é continuamente estabelecido Varnhagen ressalta que quando não eram os negros fugidos a causar desordens eram os índios Pernambuco lutava contra os mocambos dos Palmares na atual província de Alagoas os quais mantinhamse sempre em armas na Bahia não havia como em Pernambuco a combater quilombos que ameaçassem a propriedade mas em vez deles havia índios que batiam quase já quase às portas dos engenhos de Jequiriça e Jaguaribe586 584 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 258 585 Varnhagen afirma que Travouse uma encarniçada campanha da qual infelizmente não nos consta que houvesse um cronista que perpetuasse mais esses heróicos feitos dos paulistas Em 1695 tive ram lugar os mais sanguinolentos ataques porém só em 1697 os Palmares se puderam julgar de todo conquistados Ibid p 259 586 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 231 Horizontes Identitários 174 A lição é evidente diante de índios negros franceses holandeses enfim diante de tão vasto espectro de antagonistas não é de maravilharse que a colonização portuguesa tenha triunfado e tornado o Brasil um império Como não fazer jus à tão estupendo feito de nossos ancestrais Como se tudo isso não bastasse o descobrimento de ouro em Minas Gerais veio a tornar ainda mais tumultuado o cenário da colônia de acordo com Varnhagen pois fez com que o país fosse inundado por indivíduos de moral questionável587 A tragédia sempre rondava a colônia em permanente luta para firmarse enquanto marco da civilização A transmigração para as minas seguiu em tão grande número de gente que começaram as rivalidades entre paulistas primeiros descobridores e o taubateanos juntos aos forasteiros ou embuabas como se começou a chamar os europeus adotando essa expressão dos índios Das rivalidades se geraram ódios e estes trataram de satisfazerse vindo os partidos às mãos em uma guerra civil no ano de 1708 Assim no meio de terras sem fim a aproveitar e entre minas de ouro que nem durante séculos se poderiam exaurir começava uma briga porque não havia naquela gente espírito de tolerância e porque os homens sem medo das penas fazem logo sentir quanto a obediência à autoridade é indispensável para o seu próprio bem588 Novamente Varnhagen reforça a ideia de uma ordem que só pode ser mantida através da estrita observância da lei do medo da sanção A negação da autoridade só pode implicar no caos na desordem e Varnhagen está a sua maneira e através da forma com que constitui o passado da nação ele mesmo buscando estabelecer a ordem delimitando espaços de iniciativa que são louváveis e condutas que reprova com a autoridade em que se investe através da história No seu relato a tragédia é o preço que se paga pela não observância da conduta em prol da nação Os problemas de definição de fronteiras na região Sul também permitem a Varnhagen desenvolver a sua estratégia argumentativa de controle social e afirmação de regras de convivência É o caso da Colônia de Sacramento que veio a ser o pomo de discórdia que deu origem a tantas guerras a tantos cuidados a tantas intrigas 587 Para Varnhagen Espalhada a notícia do aparecimento de tantas minas por todo o Brasil e pelo Reino as transmigrações eram espantosas o governo tomava medidas para impedir essas trans migrações Não há diques que valham contra estas ondas de gente que vão com passaportes ou sem eles onde seu melhorestar os chama os próprios estrangeiros que não conseguiam passaportes de trânsito embarcavamse como parte das tripulações dos navios e dos portos fugiam para o sertão apenas chegando às suspiradas praias vizinhas do ouro VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhoramentos 1959 p99 588 Ibid p100 Salah H Khaled Jr 175 a tantas negociações feitas e desfeitas e a tantos gastos589 Varnhagen afirma que os conflitos de limites novamente colocaram em choque os nossos contra o inimigo agora em uma nova conjuntura de indefinição fronteiriça e de busca de ocupação daquele território590 Mesmo que exista uma discussão sobre o limite do território Varnhagen jamais cogita que o Brasil possa estar desprovido de razão em que pese o próprio Tratado de Tordesilhas que ele havia usado anteriormente para legitimar a posse portuguesa591 Varnhagen afirma que a situação eventualmente deteriora a ponto de gerar novo confronto Ele relata que no Sul Cevallos não se contentara com assenhorar se da Colônia Animado por essa primeira vitória tão barata marchou contra o Rio Grande592 Cevallos é um personagem que se constitui em fonte de grande desprezo para Varnhagen593 Porém ele assinala que felizmente a essa altura o Sul era o único ponto em que a soberania nacional era contestada pois no restante da fronteira podese dizer que não havia hostilidades594 Segundo ele o processo de afirmação da nação brasileira já estava bem encaminhado e amadurecido pronto a dar frutos Varnhagen faz inclusive uma curiosa afirmação diante das dificuldades em obter um reajuste de fronteiras no Sul dizendo que cabia à corte portuguesa se preparar a 589 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 238 590 Varnhagen afirma que Discutiuse muito escreveuse não menos e afina cada um ficou com suas opiniões e as dúvidas como antes É a sorte de quase todas as negociações de limites que não se deixam de tal modo definidos que os comissários devam constituirse árbitros nos casos duvidosos quase nunca se concluem Entretanto a Colônia foinos entregue em 1683 tomando dela posse Duarte Teixeira e se decidiu mandarse fortificar e povoar em grande escala todo aquele território o que se houvera realizado se não sobreviessem além da falta total de gente tantas calamidades como iremos contando VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhoramentos 1959 p 239 591 Varnhagen irá afirmar sobre o tratado de 1750 definidor de fronteiras que Depois da anulação do tratado de limites seguiram em Paris as conferências para o famoso pacto de família assinado em 15 de agosto de 1761 em virtude do qual as testas coroadas da casa de Bourbon isto é a França a Espanha e Nápoles se coligaram contra a GrãBretanha Portugal quis conservarse neutro mas cons trangido a decidirse declarouse por esta última nação levado como das outras vezes pelo instinto de conservação que não lhe descobre por aí risco da sua nacionalidade Desse modo Portugal com Espanha e por conseguinte também o Brasil com as províncias fronteiriças hispanoamericanas se encontraram em guerra VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhoramentos 1959 p180 592 Ibid p186 593 Varnhagen diz que Cevallos temendo que algum armistício celebrado na Europa não fosse de novo cedida a Colônia mandou minar com fornilhos as muralhas para as fazer saltar Igualmente se ocupou de mandar cegar o porto Prejudicial lhe foi o trabalho visto que a Colônia do Sacramento de pois das suas desgraçadas capitulações não voltou mais a pertencer ao Brasil Assim nesta resolução ao menos não foi Cevallos tão feliz e previdente como tem querido fazer em todas seus panegiristas começando pelos jesuítas Ibid p204 594 Ibid p187 Horizontes Identitários 176 seguir o único recurso que lhe restava lutar pela força na América já que na Europa era decididamente mais débil595 Assim mesmo que com certos reparos está sendo afirmado que o foco de força do Império português era maior no Brasil do que na própria Europa Com isso novamente Varnhagen está legitimando o poderio da nova nação Curiosamente nos conflitos com os castelhanos ele utiliza com frequência o termo contrários e não inimigo ainda que em oposição à os nossos como de costume596 Independentemente da mudança de categoria o sentido continua sendo o mesmo configurando a mesma articulação entre tragédia inimigo e herói Essa interpretação se justifica pela forma com que Varnhagen aborda um fato específico constituído por ele como uma tragédia de grande monta cuja responsabilidade se vincula à covardia de um comandante que não zelou pela pátria com a vocação para o sacrifício que se esperava dele Assim Varnhagen retrata a grande tragédia da Colônia de Sacramento Tinha apenas desembarcado e em começo as primeiras baterias de sítio de que ao todo haviam resultado na praça dezoito mortos quando no dia 29 desse mesmo mês o governador Vicente da Silva da Fonseca sem poder alegar falta de munições de guerra nem de boca sem ter havido assalto sem brecha aberta esquecido dos exemplos que tinha para imitar do seu bravo e heróico predecessor Antonio Pedro de Vasconcelos cometeu a covardia de entregar ao inimigo a praça que jurara ao rei defender até a última extremidade À sua memória se associará pois para sempre nos nossos anais um dos exemplos mais frisantes da desonra militar e do perjúrio e qualquer expressão de caridade por ela neste lugar fora repreensível e antipatriótica e tanto mais quando essa inqualificável rendição da mencionada praça além de outras perdas que trouxe ao Brasil foi a causa da morte do melhor governador e vicerei que teve o estado colonial Sim A notícia da perda da colônia chegou ao Rio de Janeiro em 6 de dezembro seguinte e o vicegovernador experimentou ao recebêla tão grande paixão que logo degenerou em um ataque maligno o qual se apresentou rebelde a todos os auxílios da medicina E entre delírios de dor pela perda da dita praça veio o conde de Bobadela a falecer 597 Dessa forma Varnhagen busca promover a adesão ao todo da pátria em função de uma dualidade identificação voluntária ou temor diante de um julgamento negativo 595 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 596 Ibid p197 597 Ibid p181 Salah H Khaled Jr 177 pela história poder que ele maneja598 A sua narrativa busca estimular comportamentos desejados e prevenir o acontecimento dos indesejados Varnhagen como construtor e sistematizador de uma memória nacional arbitrariamente atribui sentido e significado a fatos e condutas É ele Varnhagen quem define quem é honrado e quem não é quem deve ou não deve tomar assento na galeria de heróis da pátria e quem deve ser eternizado como exemplo negativo para vergonha dos seus descendentes e escárnio dos verdadeiros patriotas O vínculo estabelecido entre o fato e a morte de uma figura que é por Varnhagen elevada à condição de herói Bobadela é um recurso para comemorar um exemplo de patriotismo no passado que na verdade não é mais do que projeção A tragédia reforça a identificação nacional A morte de Bobadela é útil serve ao sentido pragmático da história de Varnhagen Não é Bobadela em si mas a função que ele exerce em uma narrativa nacional que pretende inspirar o leitor a seguir o exemplo de devoção ou evitar o pecado Varnhagen chega a extrapolar os limites do bom gosto neste caso específico Aqui permita o leitor que paremos um pouco e demos um desafogo ao coração pois sentimos as lágrimas arrasandonos os olhos entusiasmados com a presença de tanto brio de tanto zelo de tanta virtude de tanto patriotismo De tanto patriotismo sim que embora nascido na Europa Bobadela era todo do Brasil onde governara quase trinta anos A sua morte é o desfecho de um grande drama do qual ele fora protagonista ordenara o rei que o retrato desse virtuoso administrador se inaugurasse na sala do mesmo senado o retrato existe e não há muito se restaurou e se inaugurou de novo Mas hoje em dia esse testemunho de gratidão aliás louvável por parte de um município é insuficiente quando no decurso de um século o nome do herói tem crescido e o império brasileiro a flux cobre de bênçãos a sua memória Praza a Deus que venha um dia em que não só se levante uma estátua ao mesmo Bobadela v gr sobre o aqueduto 598 Gellner considera que o sentimento de adesão à nação se baseia em dois âmbitos por um lado a vontade a adesão voluntária e a identificação a lealdade e a solidariedade por outro lado o medo a coerção e o constrangimento Estas duas possibilidades constituem dois pólos ao longo de uma es pécie de espectro Serão raras as comunidades baseadas num ou noutro pólo de forma exclusiva ou predominante A maior parte dos grupos subsistentes baseiamse numa mistura de lealdade e identifi cação adesão voluntária e de incentivos externos positivos ou negativos em esperanças e medos GELLNER Ernest Nações e nacionalismo Lisboa Gradiva 1993 p8586 Varnhagen se aproxima muito do que afirma Gellner quando ao analisar a Revolução Pernambucana de 1817 diz que Assim não hesitamos em asseverar que foi o mesmo governador quem concorreu mais que ninguém para fazer triunfar a revolução pois com tal exemplo de covardia não era mais possível inspirar respeito nem temor e por conseguinte se fazer obedecer VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhoramentos 1959 p159160 Horizontes Identitários 178 da Carioca em seu tempo ultimado como seja pela gratidão nacional posto esse grande nome ao de alguma de suas povoações ou praças delas599 Eis a recompensa do patriota o reconhecimento da posteridade para o qual a história será fundamental O poder exercido pelo historiador é verdadeiramente assombroso A tragédia se faz tão presente na obra de Varnhagen quanto o ato heroico por um motivo singelo Como ele mesmo diz há vergonha na conduta desonrosa para com a pátria já constituída pela história no passado e portanto também há ensinamento na fatalidade E apresentadose Cevallos em 20 de fevereiro as guarnições dos fortes que estavam neles para os defender abandonaramnos e passaram para o continente a pretexto de que as forças atacantes eram muito superiores e de que teriam de capitular na ilha e pensando antes de retirarse para o Rio Grande Porém pouco depois capitularam na terra firme Dóinos ter que narrar estas verdades e quase nos vexamos tanto de tais misérias como se elas respeitassem a nossos próprios parentes Felizmente também os vexames podem servir de lição e geralmente mais aproveitam do que os muito bem conceituados preceitos filhos de maduro conselho600 Nessa frase Varnhagen sintetiza boa parte da sua concepção pragmática da história através de uma narrativa nacional que profundamente associada à noção de exemplo busca estabelecer modelos de comportamento O herói o inimigo e a tragédia são paradigmáticos impõem padrões de conduta São modelos por excelência e acima de tudo de fidelidade ao Estado e à Monarquia No próximo capítulo no qual a questão se desloca para o problema do EstadoNação como personagem central da narrativa nacional isso fica ainda mais claro O grande relato da nacionalidade era sobretudo útil oficial e pragmático 599 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p183 600 Ibid p203 Grifo nosso Salah H Khaled Jr 179 3 O ESTADONAÇÃO PROTAGONISTA DA NARRATIVA NACIONAL Neste capítulo o enfoque é deslocado para a questão central da narrativa nacional de Varnhagen o EstadoNação Dessa forma será demonstrado como o Brasil profundamente associado ao Estado e enquanto personagem principal da narrativa é retratado por Varnhagen face a uma série de situações tais como a sua relação com Portugal os jesuítas os movimentos rebeldes e a transferência do Estado português para o Brasil Finalmente o capítulo é encerrado com uma discussão sobre a concepção de nação em Varnhagen e o papel por ele exercido de acordo com a sua própria definição juiz do tribunal da história 31 A relação com Portugal na narrativa nacional Sobre a guerra da independência Varnhagen não a vê como uma verdadeira guerra Para ele o Brasil não se esquecerá jamais do seu tutor na infância e Portugal não esquecerá jamais dos socorros que o Brasil lhe prestou Nenhum deles é devedor do outro Ambos devem gratidão e louvores um ao outro Se a metrópole agiu às vezes com despotismo injustiça incoerência ignorância e governou mal não se deve condenála pois ela quis acertar sempre Não era o governo central que errava mas os governos locais com sua excessiva liberdade verdadeiros senhores feudais A metrópole agiu com rigor contra os homens que se voltaram contra ela e se foi muito rigorosa as razões do Estado justificam José Carlos Reis Uma vez que o personagem central do grande relato da nacionalidade de Varnhagen é o Brasil e mais especificamente um Brasil cujo motor é o Estado fica a pergunta de como esse personagem se relaciona com um coadjuvante de considerável importância que é Portugal Afinal como Varnhagen lida em sua narrativa com uma Horizontes Identitários 180 relação que por séculos foi de sujeição Como ele pôde configurar ou melhor prefigurar um Brasil nação no século XVI apesar da condição colonial e da subordinação a Portugal Varnhagen já apresenta no prólogo da 1ª edição da História Geral do Brasil o tom do tratamento que dará à antiga metrópole afirmando que em todo caso hoje nos lisonjeamos de poder com esta obra que preenche bem ou mal muitas lacunas na história dos feitos gloriosos dos antigos portugueses corresponder aos bons ofícios prestados pelo governo da metrópole tanto a nós pessoalmente como em geral a todos os brasileiros601 A resposta é portanto surpreendente A História Geral do Brasil mesmo que com as devidas proporções não é uma história somente de louvor ao Brasil Também é uma história de louvor a Portugal O tom é salvo raras e pontuais exceções de elogio enfático a Portugal e aos portugueses Entretanto mesmo que esse seja o tom a relação com a antiga metrópole representa em certa medida um problema para a narrativa da nação de Varnhagen Afinal o Brasil monárquico deseja manter seu vínculo com Portugal na medida em que é essa ancestralidade que lhe garante um possível lugar entre as nações europeias Logo a narrativa nacional precisa apresentar um ambiente de continuidade entre o Estado Português e o Brasileiro Não é possível abrir mão dessa herança em que pese a contraposição relativamente recente de interesses que resultou na Independência Varnhagen é um aspirante a conduzir o país à condição de nação desenvolvida segundo o padrão europeu É um intelectual a serviço do Estado monárquico e da dinastia de Bragança e logo não pode romper com Portugal não pode deixar de contemplar Portugal na narrativa nacional brasileira Por outro lado o próprio sentido de uma narrativa nacional relacionase à ideia de um Brasil que precisa pensarse como tal Um Brasil como Brasil e não apenas como mera continuidade de Portugal Um Brasil que precisa ter sentido próprio precisa ser percebido como nação como integrado como uno e indiviso agora e para todo o sempre Para que isso ocorra é necessária a invenção de um Brasil que tenha ao menos algumas características que lhe sejam próprias particulares suas E isso 601 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927pXI Salah H Khaled Jr 181 implica em diferenciação em relação a Portugal um outro personagem que estará constantemente presente no relato por definição do personagem maior que é o Brasil Como lidar com essa dualidade no campo de construção de uma memória nacional Varnhagen fez de certa forma através da sua narrativa nacional brasileira um elogio da colonização portuguesa Ele elogiou não somente a colonização portuguesa mas também Portugal especialmente na medida em que esses elogios poderiam de alguma forma se estender ao Brasil Isso pode ser demonstrado pela forma com que ele dá atenção a vários aspectos da cultura portuguesa em sua narrativa desde o primeiro tomo da História Geral do Brasil Assim Varnhagen reflete com evidente satisfação digamos agora duas palavras acerca do estado em que se achava a língua a literatura e a instrução no país em que se haviam criado os que vieram colonizar o nosso602 Para ele a língua portuguesa campeava já na virilidade603 Varnhagen não poupa elogios É a língua portuguesa disse um ilustre brasileiro poliglota e enciclopédico José Bonifácio bela rica e sonora menos dura e tarda que a alemã e a inglesa mais energética e variada ao ouvido que a italiana mais suave e natural que a castelhana e superior em tudo à francesa604 Não é por acaso que Varnhagen exalta a língua portuguesa605 Conforme Hobsbawm um dos critérios para a definição de uma nação nos oitocentos era o da existência de uma elite cultural longamente estabelecida que possuísse um vernáculo administrativo e literário escrito606 Exaltar a língua portuguesa também significa exaltar o Brasil e afirmar a sua viabilidade como nação Não se esgotam aí entretanto os elogios de Varnhagen aos portugueses Segundo ele a cultura intelectual de Portugal isto é o estado das letras e das ciências pode dizerse que andava então a par dos maiores países da Europa607 Um diferencial merece destaque especial 602 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 159 603 Ibidem 604 Ibid p 160 605 Para uma discussão sobre a importância atribuída por Varnhagen à língua nacional como elemento formador de uma consciência nacional ver WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 O autor aborda a questão a partir do trabalho de Varnhagen no âmbito da literatura em uma série de pequenos escritos esparsos 606 HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p49 607 VARNHAGEN Op cit p 160 Horizontes Identitários 182 a arte ou antes a ciência em que Portugal porém se avantajava a todas as nações era a marítima ciência característica da atividade do engenho de qualquer povo e que dá vida a uma arma árbitra do destino dos Estados e até dos continentes como a história nos ensina Enfim tudo concorria a nivelar este país com os outros mais adiantados nessa época em todos os ramos dos conhecimentos humanos608 Para Varnhagen há uma associação entre este desenvolvimento cultural e a expansão marítima O domínio da maior parte dos litorais da Ásia que segundo alguns concorrera à desmoralização dos portugueses produziu por lado nos ânimos tal energia que além da glória marítima e militar que a nação adquiriu e que será perdurável para sempre nos fastos da História universal e nos do progresso do espírito humano talvez que a essa energia deveu o grande desenvolvimento que tiveram então a sua literatura e língua609 No seu entender a valorização da antiga metrópole refletia muito bem sobre o Brasil e certamente agradava ao benemérito protetor do IHGB D Pedro II Percebe se na obra uma preocupação constante em preservar a imagem da antiga metrópole Essa preocupação manifestase por exemplo quando Varnhagen assegura a manutenção de uma relativa independência de Portugal durante a União Ibérica e também por extensão a inexistência de sujeição brasileira aos espanhóis610 Para ele apesar dos pesares essa união se demonstrou benéfica para o Brasil uma dádiva da Providência especialmente no que se refere a questões territoriais611 Como lhe é 608 Ibid p 160 609 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 22 610 Varnhagen afirma que A metrópole vencida pela astúcia de Filipe II e pelo apoio de uma nobreza egoísta e pouco patriótica sujeitouse a este rei apresentando mui pouca resistência e nas cortes de Tomar se resolveram as cláusulas de anexação Portugal aclamando o dito rei seguiria como estado independente governandose por suas próprias leis publicadas em português e usando nelas o sobe rano simplesmente do ditado dos reis portugueses No Reino e colônias serviriam os cargos do Estado unicamente os filhos delas e dele e só portugueses poderiam pela mesma forma ser delegados imedia tos do soberano quando não cometesse o cargo a príncipes ou princesas de sangue Assim o Brasil continuava e efetivamente continuou colônia de Portugal que sob o domínio castelhano conservou em geral como até ali o monopólio do nosso comércio em favor dos seus portos e produtos Mostrou se pois o Brasil absolutamente alheio à questão dinástica Não pode escapar o detalhe do quanto estranha soa a idéia de uma nobreza mais ou menos patriótica em pleno século XVI VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 366 611 Para ele Essa união devia parecer um dom providencial toda em seu benefício Por meio desapa receriam a dúvidas e questões que tarde ou cedo deveriam surgir de novo acerca da demarcação e traçado da sua raia segundo a linha reta designada pelo tratado de Tordesilhas ao passo que vassa los do mesmo príncipe que todos os demais Estados da América do Sul poderiam os povos do Brasil livremente comerciar com seus vizinhos Ibid p 168 Salah H Khaled Jr 183 peculiar Varnhagen aproveita a ocasião para louvar a nação brasileira mesmo em meio à adversidade afirmando que o Brasil se podia considerar a mais importante das possessões portuguesas que Filipe II havia agregado à sua coroa pois que as colônias da Ásia iam em manifesta decadência612 Porém se ele é generoso com os portugueses não poupa críticas aos espanhóis justamente para valorizar o diferencial brasileiro no continente613 Para Varnhagen é na inércia espanhola que se encontra a responsabilidade pelas dificuldades em manter o controle sobre o território brasileiro614 Os portugueses estão portanto praticamente isentos de culpa Assim pois enquanto em Portugal se consultavam os pareceres de tribunais e as sempre morosas juntas pouco adiantavam porque de ordinário não fazem mais que assinar o trabalho de um só que aliás o ativa e apura menos por isso que não recebe íntegras para si nem a responsabilidade nem a glória e enquanto os povos continuavam descontentes atribuindo como era razão a origem de tantas calamidades à sua união com a coroa de Espanha os holandeses se mostravam cada vez mais empenhados em que fosse protegida pelos Estados Gerais a nova conquista em Pernambuco615 Evidentemente essa interpretação é muito conveniente pois resguarda o prestígio da monarquia portuguesa o que nitidamente é a sua intenção Os reflexos negativos são inteiramente atribuídos à inércia burocrática e jurídica e sobretudo à indesejada união com os espanhóis Diante dessa condição Varnhagen chega a relatar com entusiasmo um plano que supostamente propunha o deslocamento da monarquia portuguesa para a América estabelecendo uma frente de resistência 612 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 22 613 Varnhagen é severo Fatal engano que dentro em pouco tinha de produzir cruéis decepções Aque le pequeno Reino bem que um tanto desorientado com a revolução social que nele haviam ocasionado as fortunas facilmente adquiridas na Ásia havia tido sempre o bom senso quanto à política do conti nente europeu de procurar aproveitarse da independência que lhe dava a sua situação dentro dele a fim de manter paz com todos enquanto pelo contrário os herdeiros de Isabel a Católica não contentes em estender suas conquistas pelos domínios que lhe oferecera o gênio perseverante de Colombo haviam sido levados pela ambição a sustentar guerras não só na Itália na França e na Alemanha e nos PaísesBaixos como até contra a Turquia VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 366 614 Para ele Se como seis anos antes em vez de socorros manda a corte ao Brasil uma poderosa armada de restauração os intrusos houveram agora sido expulsos e não teriam dominado ainda por vinte e três anos e sido causa de tantas perdas para o estado e de tantas calamidades para os par ticulares VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p 237 Grifo nosso 615 Ibid p 271 Horizontes Identitários 184 aos espanhóis616 Como não poderia deixar de ser ele acentua a contraposição de interesses e a existência de uma certa sujeição justamente para valorizar a eventual libertação Dessa forma quando se concretiza o rompimento da União Ibérica Varnhagen mal é capaz de conter seu entusiasmo quando veio a surpreendêlos em fevereiro desse mesmo ano de 1641 a notícia da revolução que se efetuara em Lisboa no 1º de dezembro de 1640 e comunicara como chama elétrica a todo o reino em virtude da qual ficava aclamado rei com título de D João IV o Duque de Bragança descendente dos reis avoengos portugueses e sucessor legítimo do afortunado D Manuel por sua avó a senhora D Catarina neta desse rei em cujo reinado o Brasil se patenteara no mundo civilizado617 A partir do rompimento com a Espanha Varnhagen trabalha com uma perspectiva de crescente associação entre interesses brasileiros e portugueses Nesse sentido os fatos ocorridos em Pernambuco onde se defrontam interesses brasileiros e holandeses são dignos de grande comemoração em Portugal A notícia da revolução e provavelmente já desta primeira vitória foi em Portugal recebida como era natural com grande satisfação e porventura contribuiu a que fosse promulgado o decreto de 27 de outubro 1645 dispondo que os primogênitos dos reis e herdeiros presuntivos da Coroa se intitulassem daí em diante Príncipes do Brasil618 616 Aqui Varnhagen demonstra rara razoabilidade afirmando que o plano em última instância redun daria em fracasso Parece que um D Pedro da Cunha a darmos crédito às palavras de seu des cendente fora de voto que ainda antes de se fazerem em Portugal esforços para resistência contra todo o poder de Filipe II se empregasse os poucos reforços disponíveis para armar uma expedição marítima em que os fiéis Penates do mitológico fundador de Ulisseia viessem preservar no Aquém mar o nome e a coroa de Portugal estabelecendose com toda a gente no Brasil onde porventura os amparariam as nações da Europa rivais da Espanha Este grande pensamento realizado logo e antes que os governadores do Brasil tivessem tempo de prestar juramento ao novo soberano estrangeiro e que este pudesse dar providências acerca de uma surpresa que se lhe fazia tão e em país a que tão pouca importância ligaria houvera no século XVI visto proclamarse uma monarquia independente na América Cumpre porém declarar que essa monarquia se bem que já a si o Estado se nutria de ren das próprias não teria ainda elementos suficientes para cuidar de sua prosperidade nem gente para tratar das coisas da governação e que posto como naturalmente se poria logo o novo Reino à mercê e dependência de alguma das rivais da Espanha concluiria por ser dela presa VARNHAGEN Fran cisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 367368 617 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 319 618 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 25 Salah H Khaled Jr 185 Príncipes do Brasil Evidentemente que o laço que unia o Brasil a Portugal era de irmandade e não de sujeição e subordinação Varnhagen está preocupado em definir a natureza desse vínculo como algo positivo afinal tinha em mente os interesses de seu patrono D Pedro II Entretanto apesar disso o cenário era preocupante em virtude da insistência dos holandeses Nessa questão Varnhagen não deixa de enfatizar que a resistência aos invasores se deveu principalmente à valentia dos colonizadores mesmo diante de um eventual esmorecimento da Corte portuguesa619 Afinal mesmo que Varnhagen elogie Portugal é a história da nação brasileira que ele está inventando e comemorando620 Ele inclusive ressalta que nos momentos mais delicados de afirmação da recém proclamada independência portuguesa o Brasil constituíase para muitos em uma alternativa viável de sobrevivência para a Corte621 Varnhagen assim argumenta que diante da demonstração de inviabilidade na Europa o Brasil já se apresentava séculos antes da transferência em função do Bloqueio Continental como porto seguro para a continuidade da dinastia portuguesa Dessa forma ele legitima o Brasil pela sua longevidade buscando promover o sentimento patriótico Finalmente com o envolvimento inglês a questão foi definitivamente resolvida Com a assinatura do tratado em Haia 1661 o interesse de outra nação veio por termo às questões com a Holanda622 E logo em seguida a mediação inglesa impôs pouco depois o reconhecimento da independência de Portugal pela Espanha623 Aqui não parece haver o mesmo entusiasmo diante do triunfo uma vez que o feito não foi protagonizado diretamente pelo Brasil ou por Portugal Varnhagen não se 619 Varnhagen afirma que se preocuparam alguns estadistas e com eles o Padre Antônio Vieira que chegou a opinar que não havia outro remédio mais que abrir mão da reconquista de Pernambuco em favor dos holandeses e sustentou valentemente semelhantes idéias em um parecer com data de 14 de março 1647 que hoje corre impresso Essas idéias Vieram até a ser aceitas pela corte que deu instru ções ao seu embaixador na Holanda e novas ordens para o Brasil onde foram recebidas com pasmo e felizmente não foram executadas sendo substituídas daí a pouco por outras em contrárioIbid p 50 620 Por isso ele ressalta Portugal desde que havia recebido circunstanciadas notícias da esplêndida vitória dos Guarapes notícias que tinham feito mudar inteiramente a opinião sem essa vitória é mais provável que parte do Brasil haveria sido entregue aos holandeses pela Corte nas aflições em que se via Ibid p 56 621 Varnhagen diz que Durante o mencionado bloqueio de Ruiter passara Portugal os instantes mais críticos da conservação da sua recémproclamada independência no ano de 1659 viuse o novo reino na paz dos Pirineus abandonado pela França cujo ministro em Portugal chegou a indicar o pensamento de ficarem daí em diante os duques de Bragança por vicereis perpétuos do Brasil com o título de reis VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhoramentos 1959 p 207 622 Ibid p 208 623 Ibid p 210 Horizontes Identitários 186 preocupa somente com resultados Ao contrário lhe interessa como são atingidas as circunstâncias favoráveis na medida em que as ações por excelência implicam nos exemplos de fidelidade o ao todo da nação que ele deseja suscitar É justamente pensando de acordo com os critérios da pedagogia nacional que Varnhagen quando trata do episódio Amador Bueno em São Paulo e da renuncia em ser rei o cobre de elogios pois considera louvável a não insurgência contra o Estado Português e sua coroa624 Não só é louvável como sobretudo exemplar A fundação de sentidos é evidente a hipótese de um Brasil que rompe com Portugal por completo é inteiramente inaceitável A separação quando finalmente ocorrer deve ocorrer sob o fio da continuidade e do respeito à autoridade monárquica Entretanto ainda que Varnhagen se preocupe em preservar Portugal isso não significa dizer que é inteiramente tolerante Sempre que considera que houve omissão descuido ou excesso por parte da metrópole não deixa de exercer juízo desfavorável Apenas reprova com o devido cuidado como este trecho evidencia fazemos estes reparos sem nenhumas prevenções nem tendências a censurar Os erros provinham de ignorância crassa não de intenção A si mesmo Portugal não se governava então melhor625 Este é em linhas gerais o tom que Varnhagen adota quando crítica É uma crítica complacente Porém quando se refere ao alvará de proibição de fábricas e manufaturas de ouro prata sedas e linho no Brasil no final do século XVIII é extremamente contundente Diz o alvará que desde alguns anos se tinham difundido em diferentes capitanias do Brasil grande número de fábricas e manufaturas Era talvez o ato mais arbitrário e opressivo da metrópole contra o Brasil desde o princípio do reinado anterior e houvera justificado qualquer oposição ou rebeldia que a ele apresentassem os povos Em vez desta que seria justíssima por sua origem outra se manifestou e tomou corpo chegando a converterse em uma tal ou qual conspiração626 624 Se acreditarmos na tradição que no século passado recolheu um monge beneditino filho da pro víncia houve até pensamento de independência ante o fato se realmente sucedeu da rejeição de uma coroa neste Estado ainda então nas faixas da infância não sabemos qual admirar mais se o juízo são do que descobriu que tal coroa não podia então ser perdurável e menos possuída por si num Estado que carecia de todos os elementos constitutivos da nacionalidade e que ainda não poderia apresentarse com dignidade ao lado dos outros povos do universo mantendo a alta categoria de na ção se abnegação do homem desambicioso que sacrificou sua elevação no altar da pátria evitando o fracionamento desta ou pelo menos poupandolhe uma sanguinolenta guerra civil Ibid p 131 625 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 269 626 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p288289 Salah H Khaled Jr 187 Aqui Varnhagen referese à Inconfidência Mineira sinalizando com um ponto de tensão que o põe em grande dificuldade pela necessidade de acomodar uma rebeldia com um caráter em alguma medida nacional contra a monarquia Essa mesma tensão se apresenta quando os interesses da metrópole e por extensão da coroa se veem confrontados pelos jesuítas movimentos autonomistas e rebeliões como será visto a seguir 32 O Estado dentro do Estado os jesuítas Por mais compromissado que possa estar com a religião como fator de civilização associado nessa tarefa com o Estado é um crítico implacável toda vez que a Igreja ou seus padres agem de maneira a pôr em perigo a presença do Estado Nilo Odalia Neste trecho é discutida a forma com que Varnhagen aborda a presença dos jesuítas no Brasil na medida em que essa questão evidencia o quanto ele é inflexível na defesa dos objetivos do Estado Isso não é por acaso Varnhagen inventa uma narrativa que é acima de tudo nacional mas em um sentido específico de adesão aos objetivos do Estado Para Varnhagen parece haver uma equivalência entre a ideia de narrativa nacional e a defesa dos parâmetros oficiais Logo na sua narrativa de acordo com seu enfoque pragmático não há espaço para contraposição à supremacia do EstadoNação A lição a ser extraída do seu texto é constantemente reiterada não pode haver oposição ao que ele configura como interesse maior da nação Se Varnhagen é tolerante com a monarquia portuguesa censurando somente seus equívocos mais evidentes o mesmo não pode ser dito a respeito dos jesuítas uma vez que ele é extremamente crítico dessa ordem religiosa Mesmo que reconheça um certo favorecimento à unidade colonial em virtude das contribuições da ordem na educação Varnhagen os associa à grande parte dos percalços da colonização e em especial à questão indígena Por exemplo ele censura implacavelmente as providências de mal entendida filantropia decretadas depois pela piedade dos reis e sustentadas pela política dos jesuítas que foram a causa de que os índios começassem pouco a pouco a ser chamados à Horizontes Identitários 188 civilização pelos demorados meios da catequese e que ainda restem tantos nos sertões devorandose uns aos outros vexando o país e degradando a humanidade627 Varnhagen considera que a ineficiência dos jesuítas em integrar os índios à civilização constituise em uma verdadeira vergonha nacional um resto bárbaro em meio ao padrão civilizatório europeu que ele deseja que triunfe por completo no país Além disso a questão indígena entendida como o fato dos jesuítas terem se tornado uma espécie de autoridade quanto ao assunto implicou segundo ele em uma série de problemas que advém da disputa pela sua posse Segundo Varnhagen o monopólio da ordem sobre os índios colocava os jesuítas em confronto direto com o povo628 Estranhamente o povo que praticamente sequer é mencionado na narrativa de Varnhagen ganha espaço enquanto elemento a ser contraposto aos jesuítas629 São muito raras as ocasiões em que Varnhagen utiliza o termo povo e praticamente todas elas são em oposição aos jesuítas o que não deixa de causar certa estranheza630 Por exemplo quando Varnhagen trata das disputas com os jesuítas em relação aos índios em São Paulo utiliza várias vezes o termo povo como em prejuízo do povo631 ou procuradores do povo632 e seguiramse graves questões entre o povo e o administrador eclesiástico633 Essa utilização de uma abordagem que estabelece campos dicotômicos em um confronto de caráter maniqueísta entre o bem e o mal 627 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 220 628 Para Varnhagen Os povos viram na pretendida filantropia e proteção dos índios uma verdadeira decepção contra eles quando os braços começavam a escassear para as primeiras necessidades da indústria A corte sem conhecimento do caráter dos índios e influída pelos mesmos jesuítas julgou a princípio dever libertar aqueles completamente Representou o povo em contra provando que os que os que pertenciam às aldeias ou missões da Companhia eram sim absolutamente imunes e prote gidos contra toda classe de tropel estranho mas que bem considerando o caso eram verdadeiros servos pois trabalhavam como tais não só nos colégios como nas terras chamadas dos índios que acabavam por ser fazendas e engenhos dos padres jesuítas VARNHAGEN Francisco Adolfo de His tória geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 333 629 Varnhagen assinala que os moradores apresentavam argumentos debalde pediam eles para o seu gentio do Brasil no Brasil as mesmas práticas e leis seguidas na África com o gentio da África Os jesuítas a tudo se opunham pela simples razão segundo seus inimigos que da África não pretendia eles o domínio não lhes agradava o clima Ibid p 342 630 Uma das raras exceções é quando ele diz que As mencionadas vitórias não faziam o governador nem seu filho mais populares Queixouse o povo que eles decidiam a guerra sem tomar acordo com os que em tais negócios deviam ser mais interessados o povo estava vexado VARNHAGEN Fran cisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p280281 631 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 132 632 Ibid p 136 633 Ibid p 202 Salah H Khaled Jr 189 não é novidade conforme visto anteriormente Assim povo e jesuítas acabam por exercer funções narrativas semelhantes àquelas exercidas pelas categorias dos nossos e do inimigo Isso sem sequer mencionar a que grupo efetivamente Varnhagen se refere quando utiliza o termo povo O fato é que mais uma vez ele se vale de uma situação na qual há choque de interesses para trabalhar com uma lógica exemplar Portanto novamente são impostos modelos de comportamento paradigmas da virtude nacional através da narrativa da nação Resta saber como isso funciona uma vez que o antagonismo entre jesuítas e povo não é tão evidente para o leitor como por exemplo entre holandeses e brasileirosportugueses Varnhagen trabalha o antagonismo a partir de uma outra perspectiva a qual dá destaque aos pontos em que há conflito de interesses enfocando um grupo que ele denomina povo que por excelência é prejudicado pela ordem Nessa questão mesmo que a disputa não tenha a princípio qualquer caráter nacional Varnhagen não suaviza em nada a contraposição de interesses como faz entre a metrópole e a colônia Ao contrário chega ao ponto de referirse a uma luta propriamente dita entre a ordem e o povo634 e condena veementemente as disposições a respeito da tutela dos índios pelos jesuítas que considera como um favorecimento injustificável635 Varnhagen não se mostra nada parcimonioso com os jesuítas Seu tom é quase que invariavelmente de repreensão principalmente quanto à jurisdição sobre os índios Segundo ele os padres jesuítas não se conduziram sempre neste assunto melindroso com a prudência que as circunstâncias demandavam e que em outras épocas do Cristianismo fora seguida e aconselhada pela Igreja636 634 Varnhagen afirma que Eram ainda então os religiosos da Companhia os únicos que havia nas colô nias brasileiras assim como eles tinha exclusivamente de travarse a luta mui freqüente entre o povo e o clero quando este chega a alcançar grande preponderância ou aspira a uma espécie de supremacia nos negócios temporais VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p333334 635 Para ele Estas disposições foram tomadas com tanta latitude em favor dos jesuítas que come çaram os habitantes a queixarse de que os padres os vexavam com arbítrios e sofismas sempre que podiam mas o clamor foi geral quando a experiência mostrou os resultados delas que não eram outros senão privar de braços constituindose uma verdadeira associação industrial com a qual o lavrador pobre em favor da Companhia que desde logo começou a medrar e a ganhar consideravelmente na cultura de suas terras nenhum capitalista podia competir VARNHAGEN Francisco Adolfo de Histó ria geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 336 636 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 163 Horizontes Identitários 190 Nesse sentido ele ironiza as estipulações em favor dos jesuítas e chega a responsabilizálos indiretamente pela escravidão africana637 Para Varnhagen essas medidas trouxeram grande prejuízo ao país Além disso também culpa os jesuítas por levarem o povo a descumprir a lei em função da falta de mão de obra o que gerou focos de anarquia e rebelião pondo em risco a estabilidade Está claro que Varnhagen vê a ordem com grande censura devido ao fato da mesma constituirse em um foco de poder que por vezes se rivalizava com a autoridade do Estado Como assinala Wehling evocando Capistrano de Abreu Varnhagen não via um confronto entre liberdade e escravidão mas entre os jesuítas que manobravam os índios para atender a seus próprios desígnios e os patriotas que desejavam incorporálos à sociedade civil638 O confronto chega a ser delineado como uma disputa entre a nação e um corpo estranho nela estabelecido que como tal deve ser expurgado para o bem comum Dessa forma Varnhagen é duro com os jesuítas na medida em que eles interferiam com o desenvolvimento colonial ao privar o povo de braços para o trabalho e ao mesmo tempo não civilizavam os índios639 Se nesse ponto a crítica já é severa quando a intromissão se estende aos assuntos do Estado se torna ainda mais grave640 Para ele a interferência dos jesuítas em relação aos índios chegava ao ponto de alavancar impérios Aqui a questão começa a assumir contornos ainda mais preocupantes na medida em que ele considera que os jesuítas começavam a configurar uma ameaça à soberania nacional Varnhagen enxerga uma intenção 637 Para Varnhagen Daqui data verdadeiramente como em outro lugar dissemos o maior incremento da importação de escravos africanos Os moradores vexados pelas dúvidas que de contínuo nasciam sobre as provas que se lhes exigiam da legitimidade da posse dos índios começavam a preferir braços cuja legitimidade lhes fosse mais fácil justificar Para abonar os escravos pretos então que não havia africanos livres bastava a cor do rosto VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 336 638 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p9899 639 Ele comenta que Acerca do melhor meio de governar os índios já pelo que dito fica se sabe que o governador não votava pelas aldeias dos padres Pelo contrário era de opinião que religiosamente o índio pouco ganhava ao passo que as cidades perdiam população as terras braços próprios à cul tura e o gentio não adquiria hábitos de civilização polícia e pudor que só as grandes povoações pro porcionam VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p112113 640 Varnhagen afirma que No governo de Men de Sá haviam os padres adquirido no Brasil tal ascen dente que já para o fim tinham mais poder que o governador Por uma carta régia obtiveram eles a fim de fabricarem dois colégios o produto das condenações e penas pecuniárias impostos pelas magistra turas judicial e administrativa com direito de nomearem o recebedor VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 345 Salah H Khaled Jr 191 evidente dos jesuítas nesse sentido Afinal não é por acaso que eles propunham que tais abusos em relação aos nativos só poderiam acabar entregandose à Companhia de Jesus toda jurisdição temporal sobre os mesmos índios conforme a mesma companhia tanto aspirava no Sul do Brasil a exemplo do muito poder que outros dos seus companheiros já sobre eles exerciam no vizinho Paraguai onde chegaram a fundar um pequeno império independente exclusivamente em proveito da dita companhia641 Varnhagen não poderia expressar sua censura de modo mais claro do que utilizando o termo pequeno império independente Ele não esconde o desprezo que tem por essa petulância da ordem que pretendia se constituir como politicamente independente Como se isso não bastasse para Varnhagen a situação se agravou ainda mais em função das providências que vieram a ser convertidas em lei de 9 de abril de 1655 concedendo à Companhia toda a supremacia sobre os índios com exclusão de outra qualquer ordem ou poder sendo o próprio Padre Vieira declarado logo chefe ou superior com poderes quase ilimitados642 Para ele a audácia dos jesuítas revelavase em toda sua extensão Varnhagen não o diz explicitamente mas fica claro que considera que poderes ilimitados são uma atribuição exclusiva do rei Segundo ele a partir daí a situação se deteriorou em definitivo Varnhagen afirma que essa lei fez com que os conflitos entre o povo e os jesuítas se intensificassem ainda mais643 A forma com que o Padre Viera é retratado nessa questão permite elaborar um pouco mais a discussão anterior sobre a função exercida na narrativa pelos personagens escolhidos por Varnhagen O mesmo Varnhagen que em outros trechos saúda Viera como exemplo a ser seguido e imitado agora se volta contra ele para demonstrar a reprovação que deve ficar gravada na mente do leitor quando há um campo que se contrapõe aos interesses do que ele configura como sendo do todo Como já ressaltado anteriormente o exemplo a ser seguido ou evitado é o que 641 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 163 642 VARNHAGEN Francisco Adolfo de Historia geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959p 193 Grifo nosso 643 Sendo assim dirigiram pois aqueles ao padre Vieira 15 de janeiro de 1661 uma representação queixandose da falta de escravos falta que tinha feito diminuir as rendas públicas impossibilitando aos moradores de pagarem até a côngrua ao vigário da matriz e a esmola dos capuchos e obrigando os a fintarem o povo para poder sustentar a tropa Ibid p 195 Horizontes Identitários 192 propriamente conta e não os homens de acordo com os fins paradigmáticos da sua narrativa Varnhagen não se contém em suas críticas Para ele os jesuítas constituíamse em verdadeiros parasitas que prejudicavam os interesses do Estado644 De qualquer forma ele não deixa de reconhecer que apesar da ingerência nos assuntos estatais e nos interesses populares acabaram contribuindo indiretamente para a ampliação das fronteiras do país645 Obviamente que não por méritos seus pois rivalizavamse com a autoridade estatal Segundo Varnhagen lenta e gradualmente a verdadeira natureza dos padres foi sendo revelada tratavase de uma ameaça concreta a própria soberania nacional Essa revelação ocasionou a abolição da ordem primeiro na Espanha e depois em Portugal646 Na narrativa nacional de Varnhagen a presença de uma entidade com fins próprios contrários aos interesses do Estado certamente não poderia ser tolerada Por isso Wehling considera que os argumentos de Varnhagen contra os jesuítas são os de um adepto da razão de Estado contra as forças centrífugas que prejudiquem aqueles objetivos647 Em virtude disso Varnhagen não poderia deixar 644 Nesse sentido ele comenta que Acerca do estado do Brasil nesse período queixas dos povos e suas necessidades chegou até nós e se acha impressa uma curiosa representação na qual se ad verte a tendência devorista das ordens religiosas que não pagavam nenhum tributo e ameaçavam em poucos anos sorver a si o Brasil todo Ibid p 269 645 Varnhagen comenta que A questão mais espinhosa em São Paulo como em todo o Brasil não era a das minas que seguiamse lavrando pacificamente como ainda pouco rendosas era a dos índios aos quais os religiosos da Companhia tanto queriam amparar que chegava a ser impossível a nenhum morador exceto os mesmos religiosos o valerse do serviço deles ainda mediante contratos de paga de aluguel ou soldada E o pior era que os padres tinham também fazendas e engenhos e os seus gê neros competiam no mercado com os do povo que pagava mais caro os braços que necessitava para a sua indústria Os moradores de São Paulo julgandose oprimidos por arbítrios que classificavam de hipócritas e até de interesseiros e necessitados de braços para a agricultura e a lavra de minas em vez de fazer contratos com os que estavam sujeitos aos jesuítas ou de irem buscar negros além dos mares com bárbara crueldade nos porões do navios assentaramse de valerse de outro meio aliás menos vil que este último por isso mesmo que mediava uma luta na qual expunham suas vidas Organizaramse em bandeiras e começaram a ir prender índios bravos mui longe e fora da jurisdição dos padres Fi zeram bem Afirmálo fora tão pouco humano como defender menos nobremente qualquer escravidão O certo porém é que os interesses do Estado não estão em alguns casos temporariamente de acordo com os sentimentos da mais generosa filantropia que aliás desde séculos prega e proclama louvavel mente a Igreja É assunto melindroso sobre que mais vale discorrer menos Não se nos leve porém a mal se ousamos pedir que se deixe em paz a memória dos primeiros cristãos nascidos na terra em que foi embalado o nosso berço quando os audazes aventureiros a quem a nação brasileira deve a vastidão de suas fronteiras VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p5253 646 Dessa forma a ingerência dos padres das missões nessa rebeldia dos índios do Uruguai foi pa tenteada com documentos às duas cortes de Lisboa e Madrid por Gomes Freire e Valdelírios acres centemos desde já que dela e por conseguinte do tratado de 1750 veio a proceder a abolição da Companhia de Jesus porventura discutida em Madri antes de efetuarse em Portugal VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhoramentos 1959 p135 647 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p169 Salah H Khaled Jr 193 de comemorar a ação de Pombal por ele já louvado em função de outras iniciativas Se os padres jesuítas nas fronteiras do Sul se haviam apresentado como cúmplices de índios sublevados do lado do Norte apareceram eles igualmente acusados de promover hostilidades à execução do tratado informações que provavam que tudo era manejado por um plano concertado Então Pombal conheceu o imenso poder da Companhia de Jesus que constituía já no Estado outro Estado e resolveu coarctarlhe a influência 648 A expressão já no Estado outro Estado evidencia o quanto Varnhagen considera perniciosa a presença da ordem Sua análise claramente delimita esferas de poder649 Mesmo sendo ele um adepto convicto do cristianismo e defensor da religião como instrumento civilizador e difusor da moral não deixa de ver os jesuítas como ameaça na medida em que concorriam com a soberania estatal Isso não significa que ele não reconheça nenhum mérito na ordem mas que face ao que acabou por representar foi justamente abolida650 Novamente fica evidenciado o exemplo posto pelo castigo inevitável imposto para aqueles que se confrontam contra os desígnios do Estado Nesse sentido o fim da Companhia foi em seu entendimento inteiramente favorável ao país e até causa de júbilo pela remoção de um obstáculo ao seu desenvolvimento651 Enfim as suas considerações finais sobre os jesuítas são extremamente severas 648 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p137138Grifo nosso 649 Para ele O triunfo completo de Pombal se manifestou pela régia sanção dada à lei de 3 de setem bro de 1759 que aboliu nos seus reinos a ordem dos jesuítas Nada mais natural na órbita do seu po der e regalia Os jesuítas haviam sido admitidos protegidos e doados em Portugal e suas conquistas pelo chefe supremo da nação para que eles pudessem à mesma nação ser de proveito como efetiva mente foram Por isso mesmo ninguém era mais competente do que o mesmo chefe para lhes retirar a proteção e não os consentir mais no país apenas visse que sua permanência produzia contínuos conflitos de autoridade concorrendo a nivelar as barreiras que Cristo marcou entre Deus e César entre a Igreja e o Estado o espiritual e o temporal o sacerdócio e o império Ibid p140 650 Portanto Quanto a Companhia de Jesus respeitável por tantos títulos que deu ao mundo tantos talentos insignes e à igreja vários santos instituição que longe de ter infância começou logo varonil mente justo é confessar que prestou ao Brasil alguns serviços bem que por outro lado parcialismo ou demência fora negar quando os fatos o evidenciam que por vezes pela ambição e orgulho dos seus membros chegou a provocar no país não poucos distúrbios VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhoramentos 1959p141 651 Segundo ele a abolição da Companhia foi favorável aos povos pela desamortização dos seus bens que pelos preços baratos com que foram vendidos serviram como de indenizar a perda dos bra ços dos índios então de todo libertados bem como pouco depois fossem substituídos em maior escala com os dos africanos Ibid p142 Horizontes Identitários 194 Não defendemos os jesuítas como alguns dizendo que eles no Brasil eram contra os mandões e em favor dos povos quando a história nos prova o contrário que os mandões mais arbitrários os protegiam sempre e os povos sempre contra eles se levantavam e quando eles feito voto de pobreza eram a pretexto dos seus colégios tão ricos e manejavam tantos engenhos e terras e escravaria e até marinha de comércio o que justamente contribuía para que os povos por natural inveja os amassem menos 652 Dessa forma Varnhagen associa os jesuítas às células de poder local que ele enquanto inimigo declarado do provincialismo combate em nome da unidade nacional Assim a associação entre o provincialismo e ilegitimidade por excelência das pretensões dos jesuítas garante o desprestígio de ambos e um novo argumento para incentivar os modelos de conduta desejados A experiência com os jesuítas havia se mostrado infrutífera e prejudicial ao país à sua unidade ao seu desenvolvimento A partir daí tratase de reforçar cada vez mais a autoridade estatal e não admitir questionamento a sua soberania sobre o território nacional Sendo assim A supressão dos jesuítas não deu lugar à entrada de outra ordem religiosa no Brasil pois havia tempo que a corte reconhecera que não convinha favorecer demasiado o aumento dos religiosos neste principado653 Se Varnhagen já se mostra intolerante em relação aos Jesuítas fica a questão de que forma ele retrata as rebeliões ocorridas na colônia e que exemplos ele busca fundar a partir de tais movimentos 33 Revolta e ilegitimidade os movimentos e sua apreensão Varnhagen expressa as formas de pensamento ajustadas ao sistema colonial Ele vê o Brasil como o vêem os seus administradores e demais representantes da mentalidade oficial e os nãoinquietos Estes vêem qualquer idéia de revolução no Brasil no final do século XVIII como uma maldade um desrespeito ao rei José Carlos Reis Varnhagen privilegia o EstadoNação e portanto um Brasil de cunho oficial como elemento central da sua narrativa Sendo assim como intelectual a serviço de uma visão de Estado é evidente que Varnhagen censuraria os movimentos que se 652 Ibid p143 653 Ibid p144 Salah H Khaled Jr 195 posicionaram no passado contra os objetivos oficiais Essa posição conscientemente pragmática faz com que ele enxergue os fatos e atribua sentido a eles a partir desse ponto de vista marcado pela sua orientação conservadora Nesse sentido Varnhagen dá tratamento muito desigual em sua obra de um lado ao que ele vê como movimentos que expressam o surgimento de um ideal nacional e de outro movimentos que vão de encontro aos fins e à autoridade do Estado654 Na Guerra dos Mascates por exemplo Varnhagen enxerga uma contraposição entre interesses de brasileiros e portugueses mas há uma grande tolerância e até mesmo conivência Sabendo de quanto são capazes as paixões políticas e falto de provas convincentes cremos que nada ganharíamos em fazer a história concorrer ao estéril empenho de manchar a reputação dos avós de alguns cidadãos honestos Demais firmes na convicção de que toda guerra civil é uma desgraça nacional esforcarnosemos por mencionar nessa poucos nomes Digamos entretanto desde já que a insurreição se chamou geralmente dos Mascates expressão com que na Ásia se nomeavam os vendilhões e que na língua portuguesa veio a produzir o verbo mascatear aplicado aos que mercadejam a retalho655 Varnhagen manifestase imparcialmente em relação ao conflito posicionando se como um cientista à procura da verdade656 Para ele há no movimento uma guerra civil que embora deva ser entendida como uma verdadeira desgraça nacional não merece uma repreensão mais severa pois não houve posicionamento contra os interesses do Estado nem florescimento de uma identidade regional657 E o mais importante ambos os lados professavam lealdade ao rei658 O fato é que por se tratar 654 Para Odalia Sua preocupação constante com o Estado levao a fazer uma clara distinção entre os movimentos que podem ser vistos como a expressão de uma incipiente nacionalidade Sua admiração e preferência pelos olindenses contra os mascates ou suas palavras candentes de admiração por Be quimão líder fracassado da revolta do Maranhão parecem indicar uma contradição insanável em sua maneira de ver a Inconfidência Mineira e a Revolução de 1817 às quais não poupa palavras ácidas de crítica e desprezo ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p82 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 655 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p316317 Grifo nosso 656 Varnhagen expõe que Para a história dessa guerra civil quase podemos dizer que nos sobram documentos e as crônicas contemporâneas onde há que buscar a verdade estreme das paixões de partido VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Me lhoramentos 1959 p 317 657 Para Odalia toda sua simpatia recai sobre os olindenses porque estes representam a aristocracia da terra e são brasileiros enquanto os do Recife representam os estrangeiros os portugueses ODA LIA Op cit p85 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 658 Varnhagen considera que Já estava em campo a guerra civil Escusamos dizer que cada um dos Horizontes Identitários 196 de uma rivalidade local em que não havia questionamento à autoridade estatal não há necessidade de repreensão De qualquer forma Varnhagen não deixa mesmo nesse caso de manifestar a sua infelicidade diante da discórdia instalada e como lhe é peculiar de atribuir um caráter pejorativo a qualquer possibilidade revolucionária Segundo Varnhagen A maior parte dos chefes do partido aristocrático pernambucano se tirou devassa e foram ou seus parentes presos e declarados inconfidentes O bispo foi deportado para as bandas do Rio de São Francisco Os Camarões e Tundacumbes aproveitaram dessas perseguições para exercerem suas vinganças as quais unidas aos arbítrios dos delegados da justiça chegaram a criar um partido sinceramente revolucionário que se tivesse forças houvera levado avante sabe Deus que planos de desesperação e em tal extremo bem que afinal teriam que ceder extenuados e debilitados pudera a capitania chegar nada menos que a haver nadado em um mar de sangue Em caso tal deveram os homens importantes do país aconselhar ao povo resignação para pela revolução a que levasse o desespero não vir a sofrer maiores males Cremos poder resumir o triste estado de Pernambuco pior sem dúvida que na época mais despótica do domínio holandês 659 Já na Revolta de Bequimão quando o que está em jogo são os interesses da província do Maranhão prejudicados pelos jesuítas e pela Companhia de Comércio do Maranhão Varnhagen enxerga conotação positiva como havia feito em relação aos conflitos com os holandeses exaltando a declaração do chefe Manuel Bequimão de que pelo Maranhão dava satisfeito a vida e comemora as palavras solenes que eternamente encontrarão eco e simpatia não só entre os Maranhenses como em todos os corações bem formados660 Segundo Wehling a diferença significativa que explica a simpatia de Varnhagen pelo movimento se explica possivelmente pelo seu liberalismo econômico que o fazia refratário aos privilégios mercantilistas das companhias de comércio661 Além disso havia contrariedade com os jesuítas um dos alvos prediletos de Varnhagen dois partidos invocava o nome do rei e se inculcava com a razão e a justiça por sua parte apodando o contrário de rebelde e traidor Isto oficialmente A plebe desforravase segundo seu costume no dar as alcunhas mais ou menos aviltantes Os partidários dos olindenses começaram a chamar seus con trários do Recife Mascates aos do Sul Camarões e aos do Norte Sipós e Tundacumbes Os do Recife vingavamse denominado Pés rapados aos nobres olindenses VARNHAGEN Op cit p 318 659 Ibid p 322 660 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 248 661 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p184 Salah H Khaled Jr 197 A postura de simpatia em relação a tais movimentos não se estende de forma alguma à Inconfidência Mineira à Conjuração Baiana e posteriormente à Revolução Pernambucana de 1817662 Para Varnhagen a Inconfidência Mineira e a Revolução de 1817 são a negação do papel do Estado na constituição da Nação São movimentos que mal escondem regionalismos e provincialismos Como tais devem ser combatidos para efetivar a supressão da identidade regional um dos objetivos do pragmatismo por trás da narrativa nacional Não é por acaso que José Honório Rodrigues vê em Varnhagen um verdadeiro oficialismo manifesto em seu horror ao inconformismo Wehling em sentido semelhante aponta que não há dúvida que Varnhagen é favorável a tudo que represente o status quo entendido como equilíbrio do sistema colonial manutenção da unidade política e controle sobre a plebe desordeira e demagógica663 Entretanto por mais oficialista que Varnhagen possa ser isso não afasta o fato de que de alguma forma tais movimentos precisam ser contemplados pela narrativa nacional A Varnhagen cabe atribuir sentido e significado cabe cristalizar uma memória sobre essas revoltas garantindo que as mesmas não exerçam uma influência perniciosa sobre a consciência dos brasileiros Como movimentos que se posicionaram de forma contrária aos interesses do Estado é evidente que devem ser rigorosamente reprovados A questão é como promover esse desdobramento dentro da narrativa Essa problemática começa a aparecer quando Varnhagen trata dos chamados movimentos anticoloniais que implicam em uma série de novas circunstâncias as quais ele teve que de alguma forma se adaptar Se até então sua História Geral havia sido praticamente uma história conjunta do Brasil e Portugal as chamadas revoltas anticoloniais começam a fazer transparecer o tipo de tensão que eventualmente desembocaria na Independência O título do capítulo é deveras sugestivo Idéias e conluios pró independência em Minas Varnhagen tem enorme dificuldade em desfazer tal nó como pode ser percebido por constatações como esta ocupava o trono uma 662 Para Odalia Sua preocupação constante com o Estado levao a fazer uma clara distinção entre os movimentos que podem ser vistos como a expressão de uma incipiente nacionalidade Sua admiração e preferência pelos olindenses contra os mascates ou suas palavras candentes de admiração por Be quimão líder fracassado da revolta do Maranhão parecem indicar uma contradição insanável em sua maneira de ver a Inconfidência Mineira e a Revolução de 1817 às quais não poupa palavras ácidas de crítica e desprezo ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p82 Disponível em httpwwwdominiopu blicogovbrdownloadtextoup000007pdf 663 WEHLING Op cit p184 Horizontes Identitários 198 piedosa rainha que havia com o tempo prevenido contra a severidade do código criminal do país o livro quinto das Ordenações Filipinas664 O próprio entendimento de Varnhagen do movimento mudou inclusive com o passar do tempo da primeira para a segunda edição da HGB talvez porque tenha sido possível uma tolerância maior uma vez que a ordem no Brasil Império já havia sido construída de forma satisfatória De qualquer forma o fato é que foi somente na 2ª edição que Varnhagen resolveu suavizar suas críticas a respeito da Inconfidência Mineira visto que na 1ª edição foi de uma intolerância completa Varnhagen introduz o capítulo reportandose às facilidades da comunicação moderna que permitem a comunhão de sentimentos do povo de uma mesma nação e também fazem com que os ecos de uma grande revolução repercutam mundo afora Exemplo notório desse fato segundo ele foi a bem sucedida revolução feita pelas antigas colônias inglesas Varnhagen afirma que a emancipação foi uma verdadeira proclamação da nacionalidade o que teria incentivado os brasileiros a imitála665 A inspiração teria levado inclusive a contatos com Thomas Jefferson que entretanto teria afirmado que cabia aos próprios brasileiros proclamarem sua independência Segundo Varnhagen acreditavase que o Brasil dispunha dos recursos necessários para constituirse uma nação e esperavase o apoio norteamericano para tal Ao tratar do movimento propriamente dito Varnhagen inocentou Tomás Gonzaga de participação pois acreditava que ele somente teria conversado acerca da possibilidade de vir um dia o Brasil a separarse de Portugal o que certamente não seria um crime Nessa consideração Varnhagen mantém o respeito que caracteriza a sua narrativa quanto ao Estado e à Monarquia de Portugal A relação entretanto logo se torna mais tensa Varnhagen não denomina a Inconfidência de conjuração nem sequer de conspiração embora reconheça na figura de Tiradentes um conspirador Ele atribui a Tiradentes a proeminência do movimento e lhe confere uma conotação nada positiva Para ele no auge do entusiasmo obedecia o mesmo alferes não só aos impulsos do patriotismo como também aos da ambição666 Mas por que Varnhagen se preocupa em caracterizar Tiradentes diante do leitor como alguém movido ao 664 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p320 665 Ibid p306 666 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p312 Salah H Khaled Jr 199 menos parcialmente por objetivos pessoais Parece claro que para ele interessa desprestigiar um movimento que em alguma medida questionou a autoridade monárquica A exemplaridade que o seu pragmatismo exige não poderia deixar passar incólume tal tipo de conduta Assim ele diminui a importância do movimento e praticamente o restringe ao alferes667 Varnhagen afirma que de todos o que tomou o negócio mais a sério constituindose verdadeiro cabeça do motim foi ainda o Tiradentes que já não pensava em outra coisa Todavia já demonstrando uma certa contradição ele considera que Tiradentes teria obrado em favor da independência da pátria e cercadose de um número crescente de cúmplices sendo uns estimulados pelo amor da pátria ou por simples ambição e outros pelo desejo de se libertarem da derrama668 Em alguns momentos percebese como Varnhagen oscila em prol de reconhecer uma certa virtude no movimento mas é uma virtude que ele logo retira denunciando as ambições pessoais dos envolvidos Descoberto o plano e presos os inconfidentes Varnhagen trata de distribuir a culpa como bem lhe cabe inocentando Gonzaga e o honrado cônego Luis da Silva Para ele toda culpa se havia se reduzia a serem ambos muito ilustrados verem claro o que se passava no mundo e preverem os sucessos que segundo a ordem natural tinham de acontecer um dia669 Dessa forma ele não vê uma ação concreta por parte dos mesmos contra o Estado mas apenas uma preconização da liberdade e independência vindouras Logo não há necessidade de condenação Tiradentes todavia não gozou da mesma sorte nem por parte de Varnhagen nem por parte de seus contemporâneos tendo sido declarado como líder Assim Varnhagen relata que julgando os juízes necessário para o escarmento público algum exemplo votaram para que fosse ao patíbulo cumprindose inteiramente a seu respeito a dura e cruel sentença 670 Percebase que quem decide fazer de Tiradentes um exemplo são os juízes e não a Coroa Aqui novamente Varnhagen parece demonstrar contradições provavelmente porque não lhe é inteiramente possível 667 A utilização do termo povo nesse sentido por Varnhagen é digna de comentários Varnhagen referese que a perda de uma ocasião favorável para os conspiradores deixava estranha a eles a maioria do povo que teria mais dificuldade de moverse por motivos políticos que não compreendia do que pelo interesse imediato de ser aliviada por novos governantes de pagar tributos que com que não podia e aos quais pretendiam obrigar os mandantes de direito Ibid p316 668 Ibid p317318 669 Ibid p319 670 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p320321 Horizontes Identitários 200 desprestigiar de todo um movimento que de certa forma sinalizava em direção a um Brasil Independente Ele chega a manifestar certo pesar a respeito do destino final do alferes a quem poucas páginas atrás havia condenado como ambicioso A explicação para a forma de tratamento dada a Tiradentes só pode estar na função exercida por ele na narrativa Na mesma medida em que ele deve ser criticado por ter se colocado contra os interesses do Estado sua disposição para o sacrifício em nome da pátria é exemplar e como tal é uma lição que não pode ser desperdiçada Do alferes Silva Xavier sabemos que ouvira a sentença com toda a serenidade e que com a maior abnegação de si chegou a dizer quanto estimava vir a pagar as culpas daqueles que ele havia comprometido Por essa forma ele se adiantou a aceitar para si a responsabilidade desta nobre tentativa e as glórias do martírio que hoje lhe confere a posteridade671 O desenrolar do relato não é menos dramático Varnhagen conta que ao pedir ao carrasco o perdão quando lhe vestia a alva exclamou Tiradentes oh meu amigo Deixeme beijarlhe as mãos e os pés também o nosso redentor morreu por nós Em seguida marchou depois sereno ao suplício pediu por três vezes ao carrasco que abreviasse a execução e com os olhos pregados no Crucifixo subiu ao patíbulo 672 Para Varnhagen o martírio lhe conferiu a glória de toda semelhante aspiração prematura em favor da independência do Brasil673 Os sentimentos de Varnhagen em relação ao movimento são nitidamente conflitantes e não é difícil percebêlo Lamentando como devemos as vítimas que causou esta mal denominada conspiração que tantas simpatias inspira a todas as almas generosas cremos que o seu êxito ainda quando a revolução chegasse a realizarse não podia ser diferente do que foi e que portanto quase parece ter sido um bem que ela não estalasse para não comprometer muito mais gente e induzir a província em uma guerra civil que devastasse essas povoações que começavam a medrar674 Varnhagen perguntase afinal se teria sido bom que a revolução triunfasse e conclui previsivelmente que não 671 Ibid p321 672 Ibid p321 673 Ibid p322 674 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p322 Salah H Khaled Jr 201 curvemos a cabeça ao decreto da Providência que à custa do próprio sangue dos mártires do patriotismo veio a conduzirnos à única situação em que podemos sem novos ensaios procurar ser felizes e fazernos respeitar como nação675 Essa única situação referese à transferência da monarquia portuguesa e à fundação do Império Brasileiro que é vista por ele como ponto culminante de todo o esforço colonial A Inconfidência Mineira deve ser questionada sobretudo pela influência de um caráter republicano que para a narrativa de Varnhagen só pode ser visto como sinônimo de radicalismo e anarquia Mas se Varnhagen ainda demonstrou alguma condescendência para com a Inconfidência Mineira o mesmo não se verifica com a Conjuração Baiana Ele não deixou de perceber que havia uma penetração de ideais iluministas no país de forma clandestina e os relacionou com o furor revolucionário o qual via com grande censura676 Seus comentários sobre a Revolução Francesa sempre têm conotação pejorativa Nesse sentido o julgamento e condenação que ele faz da Conjuração Baiana é implacável as chamas incendiárias da revolução francesa não deixaram entretanto de saltar ao Brasil e chegaram quase a atear pelas suas labaredas na Bahia em Agosto de 1798 um incêndio que foi dias antes prevenido Se a aspiração de Minas tão patriótica em seus fins tão nobre por seus agentes e tão habilmente premeditada julgamos que foi um bem que se malograsse com muito mais razão agradecemos a Deus o havernos amparado a tempo contra a estoura com tendências mais socialistas que políticas como arremedo que era das cenas de horror em que a França e principalmente a bela ilha de São Domingos acabavam de presenciar sendo aliás embalada ao santo grito de liberdade igualdade e fraternidade não faltaram espíritos que de novo na Bahia o invocaram esquecendose de que quando em uma província com tanta escravatura a sua generosidade lograsse triunfo libertando a todos os escravos como prometiam depressa como se viu no Haiti seria vítimas destes desenfreados e em muitíssimo menor número Os conspiradores que se chegaram a 675 Ibid p323 676 Ele comenta que a leitura das obras dos filósofos e enciclopedistas do século se propagava em segredo com o próprio incentivo da proibição pelas principais cidades do Brasil cuja mocidade se quiosa de instrução se lançava aos livros modernos que clandestinamente lhe chegavam às mãos VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhoramen tos 1959 p2324 Horizontes Identitários 202 descobrir não subiam a quarenta nenhum deles homem de talento nem de consideração e quase todos libertos ou escravos pela maior parte pardos A pouca valia dos revolucionários se deduz do modo estranho como projectaram levar à execução seus planos677 Para Varnhagen o movimento deve ser desprestigiado em função da sua inspiração política e da condição social dos revoltosos o que inclusive é interessante de observar dadas as referências anteriores ao povo que se opunha aos jesuítas Ele parece entender que se trata de uma revolta que deve ser repreendida para que não se torne objeto de inspiração para as gerações vindouras Como parâmetros para a recusa ele tem as tendências socialistas francesas e o caso concreto do Haiti que o leva a ser contrário a libertação dos escravos Varnhagen não se limita apenas a condenar o movimento pelas suas intenções mas estende a sua crítica à própria execução dos seus planos Além disso submete ao escárnio os documentos emitidos pelos revolucionários considerandoos desprezíveis678 Ele considera tão pouco tal documento que sequer se presta a comentar seu conteúdo sendo inteiramente lacônico Assim Varnhagen comemora com entusiasmo o insucesso da rebeldia baiana e referese a uma carta de nomeação do vicerei do Rio de Janeiro na qual se recomenda vigilância contra os que propagassem doutrinas incendiárias A essa carta ele acrescenta sendo evidente que é muito mais acertado prevenir graves ruínas afastando da sociedade aqueles que podem as produzir do que tolerandoos ao princípio e exporse depois a proceder contra eles os mais rigorosos e severos castigos679 Varnhagen parece aqui perceber a necessidade de mecanismos de coerção social menos evidentes que desgastem menos a autoridade perante a população Não será exatamente nesse sentido parte ao menos de sua contribuição para a construção da nação estável e ordeira com a narrativa nacional Parece claro que sim O fato é que Varnhagen não pode deixar de censurar o que se posicionava 677 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p2425 678 Varnhagen transcreve um documento que afirma que no dia 22 um ofício ao governador concebido nos seguintes termos prescripção do povo Bahinense O Povo Illmo Exmo Senhor Povo Bahi nense e republicano na secção sic de 19 do presente mês houve por bem eleger e com efeito ordenar que seja VE invocado compativelmente como cidadão presidente do Supremo Tribunal da Democracia Bahinense para as funçõens sic da futura revolução que segundo o Plebiscito se dará princípio no dia 28 do presente pelas duas horas da manhã conforme o prescrito do Povo Espera o Povo que VE haja por bem exposto Vive et vale Bahia Republicana 20 de agosto de 1798 Anônimos repu blicanos Illmo e Exmo Senhor general segredo segredo segredo etc VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhoramentos 1959 p2526 679 Ibid p26 Salah H Khaled Jr 203 contra os objetivos do Estado português mesmo que de alguma forma sinalizasse para a independência do país A independência nacional somente poderia ser admitida enquanto ato promovido verticalmente de cima para baixo a partir de um interesse de Estado como o próximo ponto demonstra 34 Transferência e presença do estado português um Brasil independente em afirmação Em seu raciocínio ao Estado não se atribui uma nacionalidade pois o que dele se espera fluindo normalmente de sua natureza é a isenção e o desinteresse em relação aos interesses particularistas Assim o Estado português não se desindentifica do Estado brasileiro este aparece como seu sucessor direto sem descontinuidades daquele de maneira que a colonização se completa pela transmigração da família real portuguesa para as terras brasileiras Nilo Odalia Como observado anteriormente Varnhagen vê uma associação profunda entre os destinos do Brasil e de Portugal Ele subordina ao longo de todo o período colonial os interesses do Brasil aos objetivos designados pelo Estado português Resta saber portanto de que forma Varnhagen trata a transferência desse Estado para o Brasil e que significado atribui a essa mudança Qual é o sentido que ele deseja fundar sobre esse momento enquanto memória da nação A vinda da Família Real para o Brasil e a consequente transferência do Estado Português são para Varnhagen a culminância de todo um processo de prefiguração da nação nos tempos coloniais que finalmente se vê concretizado É quase como se isso estivesse predestinado a acontecer como se já fosse estipulado pela Providência e não pela força das circunstâncias face à ameaça representada pelos franceses Nesse sentido Varnhagen inclusive faz questão de mencionar um plano para a transferência da monarquia portuguesa ao Brasil anterior a qualquer problema em função de Napoleão680 680 Assim ele conta a respeito de Quatro patriotas grandes pensadores e a cuja memória nunca será excessivo todo o reconhecimento do Brasil Referimonos a José da Silva Lisboa ao bispo José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho a Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça e mais outro artista anônimo profundo e previdente que em 1798 assinandose misteriosamente O Ideiador escreveu um vasto plano para o aumento e a prosperidade do Brasil por meio da transferên cia a ele da corte portuguesa os verdadeiros mestres do que ao depois denominamos patriarcas da independência Cumpre pois reivindicar em favor dos quatro o alto lugar que na história da civilização Horizontes Identitários 204 Varnhagen aproveita o momento significativo que é a chegada da Família Real para reforçar o sentimento que busca estabelecer de união entre a Casa de Bragança e os destinos do Brasil Dessa forma diante da crise que envolveu o Bloqueio Continental napoleônico Varnhagen transcreve as manifestações de D João VI ao Brasil Fiéis vassalos habitantes do Brasil Desde o princípio da minha regência existiu inalterável em meu coração o mais ardente desejo de darvos reiteradas provas da minha estimação e paternal afecto tempos calamitosos porém não permitiram manifestarvos toda a sua extensão Nas vicissitudes políticas da Europa vós vos unistes sempre aos outros meus vassalos mostrando em todo sentido o zelo mais puro e concorrência a mais eficaz para a manutenção da monarquia portuguesa Em tão crítica conjuntura vos quero dar um testemunho do meu extremo afecto oferecendo à vossa tão antiga como experiente lealdade a ocasião de exercerdes com pessoa que me é sumamente cara e amada e para com quem estou certo me acompanharão os vossos ânimos e sentimentos de maior ternura Sendo do meu real não abandonar senão em último extremo vassalos descendentes como vós daqueles que pelo seu valor e à custa do próprio sangue restauraram o trono aos meus augustos predecessores vos confio o príncipe meu primogênito em que espero pelo decurso do tempo achareis a herança que já em seus ternos anos principiei a transmitir lhe da minha particular afeição para convosco Vós o deveis reconhecer com o título de Condestável do Brasil que houve por bem criar e conferirlhe a fim de aliar melhor os interesses da Coroa com os vossos próprios contribuindo deste modo para a prosperidade geral dessa vasta e preciosa região Fiéis vassalos habitantes do Brasil Eu prevejo com íntima satisfação quão dignamente sabereis avaliar tão querido e inestimável penhor guardaio defendeio com aquela honra e valor que vos é inato na qualidade de portugueses681 São raros os momentos em que Varnhagen transcreve falas pois as reserva para questões especialmente significativas como é o caso acima Para um país em que a Monarquia está ainda em consolidação uma fala direta do antigo soberano aos súditos de alémmar é fundadora de sentidos e de memória por excelência Varnhagen está ciente da importância e por isso efetivamente constrói discursivamente toda uma tradição de apreço de confiança e de reciprocidade que une o Brasil à dinastia de Bragança Ele elabora o que aparenta ser um elo indissolúvel que vincula o destino da do país deve caber a tais grandes patriotas pensadores VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhoramentos 1959 p17 681 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p33 Salah H Khaled Jr 205 nação à sua benemérita filiação nobre e portuguesa O vínculo é integrado à narrativa da nação como algo tão forte que implica em que o monarca confie parte de sua própria descendência ao seio da nação brasileira Embora Varnhagen não retrate a vinda como uma fuga não deixa de abordar a questão internacional ainda que com o enfoque privilegiado de narrador nacional que é Varnhagen é um historiador da nação brasileira e não o esconde Como tal demonstra indignação patriótica em relação aos eventuais inimigos que são retratados com o enfoque maniqueísta que lhe é peculiar em tais questões Ao referirse a um tratado estabelecido entre a França e a Espanha fala em uma pérfida usurpação nas disposições que preveem divisão das colônias portuguesas entre os dois países Diz ele ainda que pede a justiça que não esqueçamos de mencionar que o mesmo Brasil de cujos destinos no tratado se dispunha tão sem cerimônia havia ainda no ano anterior prestado em seus portos asilo a uma esquadra imperial e honras de príncipe ao chefe Jerónimo Bonaparte682 Para ele o conflito é literalmente entre o bem e o mal e Portugal compreendido como ligado ao Brasil tem sua filiação e simpatia estabelecendose a contraposição que Varnhagen tanto gosta de trabalhar nos conflitos Entretanto mesmo tratando da ocupação de Portugal Varnhagen demonstra o cuidado de não se deter propriamente à nação portuguesa pois ele está afinal escrevendo a narrativa da nação brasileira Não pertencem à história especial do Brasil os pormenores das injustiças e horrores e atentados contra todo direito praticados nessa aleivosa ocupação que bradou aos Céus pelo merecido castigo dos usurpadores Igualmente à história de Portugal pertence relatar as heroicidades que se praticaram primeiro na sublevação geral dos povos e logo na porfiada guerra que foi coroada com a vitória683 Portanto esse recorte é importante Portugal é relevante na medida em que contribui para o enriquecimento da história brasileira Todavia de forma surpreendente Varnhagen considera precipitada a decisão da corte de buscar sua salvação no Brasil o que não o impede de afirmar de forma entusiástica que tratase de uma nova era para o país 682 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p33 683 Ibid p34 Horizontes Identitários 206 em vez de colônia ou de principado honorário vai ser o verdadeiro centro da monarquia regida pela casa de Bragança e para nós daqui começa a época do reinado embora o decreto de elevação a reino só veio a ser lavrado em fins de 1815684 Varnhagen demonstra verdadeiro êxtase diante da vinda da família real uma ocasião que deve ser comemorada como motivo de júbilo deixamos o príncipe regente com toda a real família partindo do Tejo e amarandose pelo Atlântico rumo do Brasil e já nos tarda sairlhes a todos ao encontro e com os braços abertos se a ingenuidade da expressão não ofende a majestade685 A associação que Varnhagen constrói é tão forte que a chegada de D João é percebida como momento de afirmação nacional de constituição independente da nação brasileira a cidade da Bahia conserva ainda hoje a memória desta visita com que a honrou o príncipe do Brasil em um pequeno obelisco erigido no passeio público na encosta sobre as águas do porto E deve conservá lo como se fosse um grande monumento pois que nesse obelisco vê o Brasil todo o padrão que representa as providências tomadas pelo príncipe durante sua estada na Bahia começando pelo decreto de 28 de janeiro em que franqueou os seus portos ao comércio direto de todas as nações amigas e com isso emancipou de uma vez da condição de colônia e constituiu nação independente de Portugal que estava aliás então sujeito à França686 Eis que nessa passagem o benemérito D João dá cabo da restrição ao comércio conhecida como exclusivo metropolitano a qual Varnhagen cuidadosamente havia mantido à margem de sua narrativa para não caracterizar a submissão da colônia à metrópole Assim agora que a sua extinção pode ser utilizada como um argumento favorável eis que surge a questão de forma repentina Há uma equivalência ao que parece para Varnhagen entre a liberdade comercial e a condição de país independente de forma que rompida a restrição estaria encerrada a fase colonial Todavia em outro trecho Varnhagen manifesta conclusões inesperadas partindo do ato que instaurou a chamada Abertura às Nações Amigas 684 Ibidem 685 Ibid p89 686 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p8990 Salah H Khaled Jr 207 A emancipação do país do estado de colônia em virtude da franquia do comércio decretada pela carta régia de 28 de janeiro de 1808 não podia ser dom puramente gratuito Desde que Portugal estava no domínio estrangeiro a princípio e logo absorvido em uma guerra que mal poderia sustentar o Brasil que fazia então de metrópole e representava a nação devia bastarse a si mesmo a fim de por novos impostos manter o governo e o decoro nacional687 Aqui Varnhagen deixa transparecer mesmo dentro de seu impreciso uso do termo nação que ele efetivamente considera o Brasil como capacitado a representar a nação portuguesa uma vez que o Estado português para cá se deslocou A sua concepção de nação não poderia estar mais atrelada ao Estado mesmo que ele quisesse O EstadoNação é sobretudo o personagem central da narrativa nacional de Varnhagen Quando ele narrava anteriormente o episódio Amador Bueno e a falta de elementos constitutivos de uma nação era ao Estado que ele se referia Agora que esse Estado se faz presente no país revestido da autoridade e legitimidade que lhe é inerente em função da Casa de Bragança estão reunidas as condições para pensar se o Brasil como nação Concretizase assim um processo já prefigurado séculos atrás Nascia por completo o Império Brasileiro Varnhagen posteriormente faz pouco caso da condição de Reino Unido atribuída em 1815 pois para ele o Brasil já sem essa declaração era reino emancipado desde 1808 e assim o reputava a própria Europa688 Para Varnhagen não há dúvida que a Independência deve ser contada desde 1808 a fazemos proceder da carta régia sobre o franqueio dos portos e por conseguinte ao mês de janeiro de 1808 e portanto com mais glória para o Brasil que destarte remonta a sua emancipação colonial da Europa a uma época anterior a de todas as repúblicas continentais hispanoamericanas 689 Assim Varnhagen estabelece inclusive a anterioridade do Brasil como país independente em relação à antiga América Espanhola atribuindo essa condição à providencial vinda da Família Real Portuguesa Varnhagen não poupa elogios aos membros da dinastia de Bragança da qual descende seu patrono e protetor D Pedro 687 Ibid p102 Grifo nosso 688 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p119 689 Ibid p150151 Horizontes Identitários 208 II Ele faz questão de dizer que D João era naturalmente bom religioso e justo690 São qualidades que Varnhagen não costuma ressaltar Normalmente os adjetivos que ele utiliza se encontram ligados à vocação para o combate como bravo destemido e valente Aqui ele precisa destacar outro tipo de qualidade relacionado à figura de um governante que ele precisa exaltar e louvar como concretizador da nação brasileira De fato Varnhagen associa a fundação do Império Brasileiro a um ato de vontade de D João o que deve assinalar a dívida que o país tem para com a dinastia de Bragança E em verdade o senhor D João foi senão o primeiro imperador pelo menos o primeiro a proclamar a idéia de fundar no Brasil um novo império Ele próprio o deixou dito à posteridade no memorável manifesto de guerra à França do 1º de maio de 1808 quando declarou que o Brasil passava a criar um novo império691 Varnhagen não poupa elogios ao monarca e ao novo império O reino de novo criado pelo benéfico rei D João era nada menos que a cabeça de um grande império maior que os dois romanos692 Varnhagen recolhe todos os elementos que pode para louvar o antigo regente693 Todavia isso não significa dizer que ele poupe inteiramente críticas quando as julga convenientes Assim Varnhagen censura o que chama de transplante de uma série de instituições portuguesas para o país como se o Brasil fosse do tamanho de Portugal onde uma repartição análoga podia estender seu influxo a todo reino694 Para ele é óbvio que isso não poderia dar certo pois o Brasil é maior do que Portugal não somente pelas suas dimensões territoriais mas por seu imenso potencial até então inexplorado Enfatizando o Brasil em relação a Portugal Varnhagen está buscando que seu leitor se orgulhe do país Por outro lado ele compreende que não escapou por completo ao soberano o diferencial do Brasil e sendo assim interpretou a concessão da pasta da fazenda e interior negócios do Brasil ao Marques de Aguiar exgovernador da Bahia e exvicerei no Rio de Janeiro como uma evidência da 690 Ibid p91 691 Ibid p9091 692 Ibid p149 Grifo nosso 693 Assim o é com um comentário do pregador MonteAlverne a respeito de D João dizendo que como hábil político sabia que só à religião é dado sustentar os impérios e fortificar as instituições Ibid p9192 Por afortunada coincidência um comentário que coincide com as convicções do próprio Var nhagen 694 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p94 Salah H Khaled Jr 209 intenção do regente de ocuparse principalmente do Brasil como a sua prudência em querer mais conhecer o passado para corrigilo e melhorálo que impor ao país uma súbita importação de instituições estranhas a ele as quais de ordinário radicam mal se é que já em tempos anteriores não revele a própria história colonial que foram improficuamente ensaiadas695 Entretanto Varnhagen considera Aguiar um homem pouco instruído que nada tinha de grande pensador e portanto incapaz de ser o estadista da fundação do novo império696 Dessa forma Varnhagen procura isentar D João apontando que havia um limite para a extensão das reformas que extrapolava suas nobres intenções quanto ao novo Império Mesmo assim ele descreve em minúcias todas as melhorias introduzidas pela administração joanina novamente elogiando a vinda da Família Real e exaltando a sua presença no país Dentre as medidas adotadas dedica especial cuidado às iniciativas tomadas contra os quilombos o legislador admitiu a razoável teoria de não se deixarem impunes os quilombos de índios ao passo que contra os de pretos se mandam logo tropas para os sujeitar Ordenou contra os bárbaros a guerra ofensiva por estar provado que pela simples defensiva nada mais se faz que conceder a esses inimigos as vantagens de escolherem eles o momento e o lugar mais apropriado para as suas agressões697 Varnhagen relaciona portanto a própria presença do Estado com a tomada de medidas efetivas para garantir a soberania incontestável sobre o território eliminando os focos de rebelião e também reduzindo os efeitos perversos do mandonismo local em virtude do estabelecimento por completo da autoridade centralizada Essa autoridade agora presente diretamente no território do recém fundado Império se demonstra intolerante com a insurgência tomando a iniciativa do combate Eis aqui mais uma valiosa lição de Varnhagen endereçada aos componentes da máquina pública O que se espera é uma rápida e vigorosa atuação face ao que ameaça a autoridade estatal Retornando ao cenário europeu é com grande satisfação que Varnhagen verifica que o domínio francês sobre a metrópole foi de escassa duração Eis aí mais um motivo para comemoração O vínculo que une o Brasil à Europa é mais uma 695 Ibidem 696 Ibidem 697 Ibid p99 Horizontes Identitários 210 vez motivo de orgulho De acordo com ele os portugueses por conta própria foram capazes de sobrepujar o poderio de Napoleão cumprese saber que Portugal sofreu apenas alguns meses o jugo de Napoleão tratando o reino como verdadeira conquista em meados de 1808 se levantou o país em massa sacudindo o jugo francês698 A extensão desse repúdio às forças francesas logo é deslocada para o Brasil pois em seguida Varnhagen se vangloria da conquista brasileira da colônia francesa de Caiena a partir de uma expedição militar que se deslocou do Pará699 As conhecidas categorias do inimigo e dos nossos ressurgem assim na narrativa nacional em um contexto que historicamente se faz bem próximo e palpável da época em que Varnhagen escreve Se Varnhagen é generoso com o esforço militar se mostra pouco entusiasmado com a atuação diplomática no período censurando boa parte das disposições dos tratados de 1810 com a Inglaterra assim como a atuação no Congresso de Viena em 1815 e em 1817 a entrega da Caiena Há que se perguntar se o fato de Varnhagen ter atuado na área diplomática não implica em alguma medida que ele se mostre tão exigente com aqueles que exerceram a função a seu ver insatisfatoriamente700 Parece que o seu juízo de alguma forma se assemelha ao que faz dos demais estudiosos da história brasileira701 Varnhagen se mostra descontente em relação aos tratados com a Inglaterra Ele os condena parcialmente pelos seus termos entendendo que o negociador admitiu estipulações contrárias à dignidade nacional que tanto se deve zelar em tais documentos embora algumas delas fossem muito em favor do Brasil mas a esse respeito a nós Brasileiros cumpre nos em todo caso venerar a memória do amigo do Brasil que a todo transe queria assegurar o futuro deste país buscando até para isso o auxílio de outra nação para o caso em que pudesse faltar o da própria702 698 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p111 699 Ibid p112 700 Em relação às estipulações diplomáticas Varnhagen diz que Infelizmente não fazem elas em geral muita honra à diplomacia portuguesa dessa época como passamos a manifestar não sem grande má goa ao ver que os deveres da imparcialidade como historiador nos obrigam neste momento a por de parte afeições a indivíduos e reputações com que já por outro lado muito desejáramos não contender Gema pois o coração não a consciência pungida Ibid p115 701 Com os quais ele foi extremamente rígido conforme será visto no último trecho deste capítulo 702 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora Salah H Khaled Jr 211 Esse não é o grande momento de crítica entretanto pois se de um lado Varnhagen entendeu que o tratado não era inteiramente favorável ao mesmo tempo reconheceu o esforço e afinal o tratado não implicou para ele apesar do abalo na dignidade nacional em perdas concretas É a respeito da questão da Caiena e da perda da conquista realizada que ele não vai esconder a sua insatisfação afirmando que muito menos feliz esteve a diplomacia portuguesa no Congresso de Viena do qual absolutamente nenhuma indenização sacou em troco do muito sangue português derramado em tantos combates contra as armas da França estiveram submissamente pela entrega da Caiena à França que aliás com vinte Caienas não houvera indenizado os sacrifícios de Portugal 703 Os argumentos de Varnhagen não são os argumentos de um historiador imparcial e de um cientista São argumentos de um intelectual a serviço do Estado argumentos de um intelectual que se identifica com Portugal e o Brasil e busca promover esse sentimento de identificação Os brasileiros devem não somente reprovar a devolução do território conquistado mas também se indignar diante da falta de compensação pelo sacrifício de seus irmãos portugueses Varnhagen não vai se limitar apenas a reprovar a devolução demonstrando o quanto ela foi impensada Assim ele se vale de um relato de João Severiano governador da Caiena conquistada para afirmar que havia um geral contentamento dos habitantes daquela conquista que ainda hoje choram por um governo tão paternal704 Para reforçar ainda mais a questão ele transcreve o depoimento de um habitante local ilustrando a qualidade da administração portuguesa brasileira na Caiena a verdade nos obriga a reconhecer que seus interesses gerais nunca foram melhor apreciados É indibutavelmente custoso ter de fazer elogio a estrangeiros à própria custa mas pondo de parte o orgulho nacional705 O exemplo novamente é claro se os próprios estrangeiros reconhecem as virtudes do Estado nacional brasileiro como os brasileiros poderiam não fazêlo Como se sabe os conflitos no período não se restringem aos franceses Localmente o Império exerceu sua vocação para conquista anexando a província mentos 1959 p115116 703 Ibid p116 704 Ibid p117 705 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p118 Horizontes Identitários 212 Cisplatina A forma com que Varnhagen vai observar esse acontecimento lhe confere um certo caráter de ação preventiva Segundo ele a anarquia da Banda Oriental já de direito reconhecida por Buenos Aires nação independente e as violências praticadas de contínuo contra várias paragens da província do Rio Grande levaram a corte do Rio de Janeiro a resolver outra campanha para ocupar o mesmo Estado706 Dessa forma através de seu filtro de narrador da nação a iniciativa brasileira se vê justificada pois eram de contínuo invadidas as fronteiras do Brasil pelo que o seu governo se viu obrigado a romper o armstício e a mandar avançar as tropas para ocupar a Banda Oriental707 Esse conflito permite que Varnhagen novamente trabalhe as categorias dos nossos e do inimigo que lhe são tão caras devido à identificação que evocam Mesmo que não dedique tanto espaço ao conflito como dedicou aos confrontos com os holandeses ao descrever os combates não poupa elogios e oxalá encontre o futuro muitos que em casos idênticos imitem seu patriotismo e benevolência pela posteridade duas grandes vitórias que decidiriam já quase toda a sorte do território cisplatino708 Portanto Varnhagen torna a se referir ao adversário como inimigo Ele comemora a força moral advinda de tantas vitórias e celebra o tratado de 21 de julho de 1821 no qual a Banda Oriental se viu incorporada ao Brasil com o título de Província Cisplatina conservando porém as suas leis a sua língua e uma espécie de autonomia709 Aqui embora não o faça abertamente parece haver uma certa reticência um porém a ser destacado na medida em que a incorporação não teria se dado de forma completa Todavia o grande conflito por excelência que revela ainda mais que espécie de nação Varnhagen configura em sua narrativa e que inclusive lhe causa grande desconforto é a Revolução Pernambucana de 1817 Varnhagen literalmente expressa o seu pesar quanto ao movimento já nas primeiras linhas em que trata dele 706 Ibid p114 707 Ibid p120 708 Ibid p122 709 Ibid p126 Salah H Khaled Jr 213 Eis que uma revolução proclamando um governo absolutamente independente da sujeição à corte do Rio de Janeiro rebentou em Março de 1817 É um assunto para o nosso ânimo tão pouco simpático que se nos fora permitido passar sobre ele um véu o deixaríamos fora do quadro que nos propusemos traçar 710 Varnhagen de tal forma se sente desconfortável diante da revolta que gostaria de apagála esquecêla por completo O pragmatismo pesa nesse tema muito mais do que a vocação de historiador As motivações de Varnhagen para justificar o esquecimento são de ordem inteiramente política nem cremos que o Brasil perde em glórias deixando de catalogar como tais as da insurreição de Pernambuco em 1817 nós que fazemos votos pela integridade do império e que vimos no Sr D João VI outro imperador711 Carregando na dramaticidade ele vislumbra negras nuvens que então se viam no horizonte pernambucano712 Varnhagen considera que havia uma espécie de tradição revolucionária em Pernambuco que datava desde os tempos coloniais713 Ele relaciona a origem da revolução à maçonaria organização pela qual nutre grande desprezo714 Para Varnhagen a revolução foi feita por um grupo restrito e acabou se estendendo fazendo com que todos se submetessem a ela715 Não se trata portanto de um movimento provido de mérito mas sim de uma revolta que se originou a partir de um pequeno grupo conspirador Varnhagen se mostra ainda mais rígido do que havia sido com a Conjuração Baiana pois agora a revolta se dá a partir de um território que para ele está plenamente configurado como nação 710 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p149 711 Ibid p150 712 Ibidp158 713 Segundo ele Pernambuco era a capitania onde mais pronunciadas e enraizadas se encontravam especialmente desde a guerra dos Mascates as antigas rivalidades entre os colonos nascidos no Brasil e os nascidos em Portugal Essas rivalidades datavam já do primeiro século da conquista e se tinham transmitido de geração em geração Ibid p152 714 Ele afirma que Em virtude da existência de duas lojas maçônicas na capital uma delas desde 1801 segundo dizem o espírito de tais rivalidades havia passado a tendências de preparativos a uma futura proclamação de independência Ibid p155 A posição de Varnhagen quanto a maçonaria foi mais extensivamente desenvolvida em História da Independência do Brasil 715 Varnhagen relata que assim da insubordinação provocada resultara o motim do quartel que anima ra o tumulto popular e triunfante este porque o governador não cumpriu com seus deveres a revolu ção estava consumada podendose dizer dela que alguns a fizeram poucos a aplaudiram mas quase todos se foram submetendo Ibid p161 Horizontes Identitários 214 Em seu esforço discursivo de desmerecimento Varnhagen inclusive transcreve documentos dos revoltosos que são entretanto devidamente contextualizados716 Dessa forma ele se refere a uma proclamação como incongruente desconchavada e até certo ponto ridícula para logo depois criticar a autopromoção de patente realizada por um capitão afirmando que no momento que a pátria exigia do patriota os maiores sacrifícios ele ia dela arrancar soldo maior717 A missão destruidora de Varnhagen não cessa Assim ele não poupa os revolucionários por abolirem tributos afirmando que tratase de erro de quase todas as revoluções e sempre a elas fatal de abolir para adular o povo os tributos no momento em que deles mais se tem de carecer para governar718 Varnhagen se mostra verdadeiramente intransigente com o movimento Taxa os revoltosos de inconsequentes incompetentes egoístas e também de autoritários Talvez o pior de tudo foi que evocaram os excessos anarquistas e demagógicos da Revolução Francesa no país Nesse sentido ele refere que foi proibido o sairse da capitania e com todo o rigor o desviar dela quaisquer capitais Para remedarse a revolução francesa aboliu se também o tratamento de senhor nem que a liberdade e a própria democracia fossem incompatíveis com as atenções de cortesia719 Varnhagen como defensor que é do regime monárquico não pode deixar de condenar a Revolução Francesa associandoa com a revolta pernambucana O critério que Varnhagen utiliza para avaliar o movimento está de acordo com a sua concepção pragmática de ciência e de uma narrativa nacional cujo cunho é pedagógico Entretanto é surpreendente como ele é transparente na adoção de tal critério cabe desde já dizer que a revolução pernambucana de 1817 não se recomenda muito mais do que a da Bahia em 1798 pelas suas peças oficiais nem pelos seus atos e projetos Nada próprio a inspirar sentimentos de heroísmo e justiça a entusiasmar e engrandecer o povo720 716 Exemplo de transcrição a capital está em nosso poder a pátria está salva Ela vos chama vinde univos aos vossos irmãos Eles vos esperam com os braços abertos e ansiosos por vos apertar entre eles O céu abençoará o fim da nossa obra assim como tem abençoado o seu princípio Ele vos guarde como vos desejam vossos patrícios e amigos VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhoramentos 1959 p162 717 Ibid p163 718 Ibid p163 719 Ibid p164 720 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora Salah H Khaled Jr 215 Ou seja na medida em que o movimento não se conforma aos parâmetros de comportamento que devem ser estimulados pela pedagogia da nação deve ser censurado como algo pernicioso ou até mesmo como Varnhagen gostaria esquecido Não contente em desmerecer o movimento Varnhagen também procura desacreditar seus líderes e nem podia ser de outro modo em um movimento cujo principal chefe era um homem a quem faltavam tantos predicados como Domingos José Martins721 O poder da história é novamente exercido sinalizando para a eternização não no âmbito da glória a que todo membro da nação aspira mas sim da vergonha em função de ato falho Dessa forma Varnhagen busca desestimular a prática de tais atos no futuro O sentido preventivo da sua narrativa nacional é evidente Varnhagen se reporta com frequência ao Correio Braziliense para desmerecer ainda mais o movimento censurála como imprudente e como atrasadora do próprio desenvolvimento político do Brasil quereis vós matar ao vosso rei Quem então remediará vossos agravos722 Para Varnhagen a revolta contra o rei é injusta impensável e imponderada Vai contra os próprios princípios de uma nação e felizmente de acordo com ele foi mal vista no restante do território nacional Varnhagen relata que segundo uma testemunha insuspeita que então se encontrava no Rio o inglês Luccock todo o povo recebeu com indignação a notícia da sublevação de Pernambuco e por toda a parte se manifestava grande entusiasmo em favor da causa da ordem e do bom rei723 Ao dizer que o rei foi ovacionado por duas noites seguidas no teatro o inglês relata que apesar de estrangeiro esta manifestação do sentimento nacional me penetrou na alma724 Mesmo que Varnhagen esteja citando um observador parece claro que para ele o sentimento nacional implica em um sentimento de devoção e fidelidade para com o monarca Varnhagen também critica a revolta sob outros aspectos Se realmente era um movimento com vocação para a salvação da pátria da nação como então seus lideres não se mostraram dispostos a morrer em função de tais ideais mentos 1959 p165 721 Ibid p165 722 Ibid p168 723 Ibid p171 724 Ibid p171 Horizontes Identitários 216 Triste desengano para os pequenos que iludidos sacrificam à ambição de alguns corifeus que depois os abandonam covarde e ingratamente a tranqüilidade e a de suas famílias E vós chefes militares da revolução pernambucana Se a vossa causa era tão justa e tão santa como por amor dela não buscastes no campo em uma bala ou na ponta de uma baioneta o martírio que vos canonizasse na posteridade725 Varnhagen dessa forma debocha da iniciativa revoltosa negando a ela a condição heroica que atribuiu a tantas outras iniciativas que são pautadas exatamente por essa disposição para o sacrifício que ele assinala como característica da devoção à pátria Segundo Varnhagen mesmo diante da rebeldia injustificada D João mostrou se benemérito o que fez com que sua pessoa fosse ainda mais apreciada pelos brasileiros Nesse sentido a expedição do decreto que suspendia e concluía todas as devassas foi segundo Varnhagen recebida em Pernambuco com o devido entusiasmo e o senado agradeceu fervorosamente a elrei o haver assinalado o dia da sua coroação pelo ato do Perdão ato que mais que nenhum outro faz em verdade lembrar aos povos que os reis são a imagem do Deus da misericórdia Mais honra faz ainda à sua memória esse perdão aos que sabemos que elrei havia aprazado a sua coroação em virtude dos sucessos de Pernambuco declarando que não cingiria a coroa se não viesse em paz e boa harmonia todos os seus súditos726 O ato de rebeldia injustificada convertese dessa forma pela magia da narrativa nacional em motivo de exaltação da figura do monarca Entretanto para sua tristeza o que não alcançaram esses conspiradores vieram depois a conseguir outros na cidade do Porto onde no sentido das mesmas idéias veio a rebentar a revolução de 24 de julho de 1820 ponto de partida da nova fase em que entrou o Brasil e que é mais extensamente tratada em nossa História da Independência727 725 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p174 726 Ibid p176177 727 Ibid p178 História esta que entretanto somente seria publicada em 1916 Cumpre destacar entretanto que uma versão condensada e mais primitiva do texto fazia parte da 1ª edição da HGB versão esta que não foi a analisada neste estudo Salah H Khaled Jr 217 Varnhagen lamentase inclusive de fatos que extrapolam o recorte por ele definido para a narrativa nacional por um motivo simples não pode deixar de censurar o que se posiciona contra a Monarquia epicentro da nação O sentido pedagógico e paradigmático da obra proposta como narrativa nacional supera qualquer consideração inclusive as de ordem teórica Os pontos até agora abordados permitem portanto esboçar o que seria a compreensão de Varnhagen de nação buscando sistematizar o seu pensamento que aparece de forma dispersa ao longo da sua narrativa O que é afinal para Varnhagen uma nação Quais são os seus pressupostos e em torno de que se articula sua legitimidade para ser considerada como tal 35 Uma teoria da nação na obra de Varnhagen A história era pensada a partir da nação mesmo que não houvesse uma idéia clara do que a nação significava ou poderia significar Temístocles Cezar Varnhagen afirma no prefácio da 1ª edição da História Geral do Brasil ter escrito com o valoroso apoio de Pedro II uma conscienciosa história geral da civilização do nosso país padrão de cultura nacional que outras nações civilizadas só ao cabo de séculos de independência chegaram a possuir ou não possuem ainda728 A História Geral do Brasil seria de acordo com o próprio Varnhagen a história da nação brasileira Todavia encontrar uma definição de nação na obra de Varnhagen não é uma tarefa das mais simples A HGB pode ser entendida como uma narrativa nacional na medida em que efetivamente inventa uma nação brasileira Entretanto Varnhagen nunca se preocupou propriamente em definir no que consiste uma nação embora a prefigurasse nos tempos coloniais729 Seu uso do termo é vago e impreciso referindo 728 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927pXVIII 729 Odalia pergunta O que é uma Nação quando se admite como o faz Varnhagen que ela estava implícita desde o momento em que a terra que devia abrigála era descoberta pelos que a deveriam Horizontes Identitários 218 se ora a uma coisa ora a outra Essa constatação está de acordo com uma certa incoerência nas convicções políticas e referenciais teóricos do autor na qual há um ecletismo muito grande que também é típico do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro730 Apesar disso enquanto narrativa nacional dotada de uma dimensão pragmática evidente é lógico que a obra de Varnhagen busca fundar sentidos fundar uma memória sobre a nação que ele inventa mesmo que seu significado não esteja precisamente delimitado Isso levanta questões a partir da experiência de leitura que a obra proporciona como por exemplo qual o sentido da nação brasileira que ele está inventando Pode ser afirmado com uma boa margem de segurança que Varnhagen prioriza o Estado e o posiciona acima da nação como ponto elementar de existência de uma sociedade civilizada731 Como Odalia afirma para ele uma Nação um povo só existem em razão do papel que o Estado desempenha na sua formação732 É por isso que Varnhagen dirá que esta máxima é aplicável a todos os países porque destruído o governo quem há de remediar os males e abusos da nação733 Isso não é nada surpreendente pois está em conformidade com um tipo específico de memória que deve ser construído para a nascente nação734 Como considera Guimarães a partir formar ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnha gen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p43 Disponível em httpwwwdominiopublicogov brdownloadtextoup000007pdf 730 No prólogo da 2ª edição da História Geral do Brasil Varnhagen dá algumas pistas citando Tocque ville Os povos disse Tocqueville resentemse eternamente de sua origem As circunstâncias que os acompanharam ao nascer e que os ajudaram a desenvolverse influem sobre toda a sua existência Se fosse possível a todas as nações prossegue o mesmo publicista remontar a origem de sua história não duvido que aí poderíamos descobrir a causa primária das prevenções dos usos e paixões dominantes de tudo enfim quanto compõe o que se chama de caráter nacional VARNHAGEN Op cit pVII Entretanto apesar da referência Varnhagen não utiliza o termo caráter nacional em nenhum trecho da HGB 731 Wehling afirma que para Varnhagen o Estado apresentase como ponto culminante e questão central da organização da sociedade Há mesmo uma antinomia explícita o Estado representa a civilização a lei e a ordem Sua ausência a selvageria predomínio da força e desarticulação social WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999p86 Para Odalia No centro das preocupações de Varnhagen com a mística da unidade nacional se ergue majestoso o poder político monárquico centralizador com autoridade de um patriarca como um imã gigantesco capaz de manter sob sua influência todos os elementos físicos e espirituais da nação ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p23 732 ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p8283 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbr downloadtextoup000007pdf 733 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p168 734 Hobsbawm refere que de um modo ou de outro a vinculação a um Estado histórico ou real presente ou passado pode agir diretamente sobre a consciência de pessoas comuns para produzir um Salah H Khaled Jr 219 de 1850 tratavase fundamentalmente de ressaltar o perfil desse estado ilustrado como portador da civilização e motor do progresso735 Odalia afirma que o Estado deveria representar também o instrumento mais importante e decisivo no processo de realização do projeto político da nação736 Portanto quando se pensa em nação na concepção de Varnhagen esta encontrase vinculada ao Estado que por sua vez associase à ideia de uma monarquia centralizada e forte que garante a integridade do território nacional e mantém uma hierarquização rígida737 Esse é o sentido a ser fundado738 Portanto pode não haver uma definição clara do que é a nação mas não há dúvida quanto ao papel que o Estado exerce na sua formação739 É o Estado que constitui a nação e não o contrário740 O poder centralizado por si só também não basta devendo estar sob a forma monárquica741 Para Wehling em toda sua obra a consolidação estatal da nação é o escopo os fins do Estado são positivos sempre que visem à ampliação das fronteiras à sua defesa ou à eliminação de inimigos sejam quilombolas rebeldes ou indígenas742 Por excelência Varnhagen condena tudo que prejudica a unidade nacional centralizada que ele já preconiza como em protonacionalismo ou talvez algo até próximo do patriotismo moderno HOBSBAWM Eric Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p90 735 GUIMARÃES Manoel Luiz Lima Salgado A invenção do passado In Nossa História v3 São Paulo 2005 p26 736 ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p17 737 Ao comentar a implementação de certas medidas Varnhagen diz que tiveram o sentido de regula rizar melhor as recompensas dos altos feitos e dar à ordem hierárquica da nação certa disciplina de acordo com a centralização monárquica que triunfara de todo em Portugal VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 157 738 Segundo Odalia Toda a História Geral do Brasil se constrói de forma concêntrica tendo o Estado como centro impulsionador do esforço e dos processos históricos que devem terminar com a realização da Nação brasileira ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p17 739 Odalia comenta que Presente passado e futuro se confundem numa visão do mundo da política o que tem como centro a Nação entidade abstrata vazia de conteúdos que surgirão com o des velamento de seu passado como instrumento o Estado ser puro demiurgo alheio às condições sóciohistóricas das quais surge e que assume em relação à nação e ao povo o papel de um tutor imparcial onisciente e onipresente velando para que o seu desenvolvimento se processe de maneira regular e segura sem as naturais distorções de um organismo infantil ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p1819 740 Odalia entende que Pela ação do Estado não é uma colônia que se constitui mas o Brasil ainda que temporariamente apenas sob a forma de uma unidade territorial assegurada pela presença da autoridade e da lei ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p73 Disponível em httpwwwdominiopu blicogovbrdownloadtextoup000007pdf 741 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 131 742 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p90 Horizontes Identitários 220 formação no Brasil colonial743 O privilégio que Varnhagen dava ao Estado na sua narrativa não era sem razão de ser Como Hobsbawm afirma um dos critérios para que um povo fosse classificado como nação de acordo com o pensamento oitocentista era sua associação histórica com um Estado existente ou com um Estado de passado recente e razoavelmente durável744 Para o autor uma vez dada a identificação da nação com o Estado era natural que estrangeiros pressupusessem que o único povo em um país fosse pertencente ao povoEstado745 Odalia aponta que Varnhagen insiste repetidamente na busca de elos com o passado tentando de todas as maneiras construir uma continuidade que fundamentasse a unidade política e um autêntico sentimento de nacionalidade746 Explicase portanto a forma com que Varnhagen prefigura um Estado brasileiro nos primeiros tempos coloniais o que é anacrônico porém ao mesmo tempo pragmático747 Cumpre ressaltar novamente que na sua ótica de acordo com seus valores era somente a partir do Estado que poderia ser inventada e legitimada a nação748 743 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 173 744 HOBSBAWM Eric Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Ja neiro Paz e Terra 1990 p49 745 Ibid p49 746 ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p109 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbr downloadtextoup000007pdf 747 Para Guibernau O estado nacional é um fenômeno moderno caracterizado pela formação de um tipo de estado que possui o monopólio do que afirma ser o uso legítimo da força dentro de um território demarcado e que procura unir o povo submetido a seu governo por meio da homogeneização criando uma cultura símbolos e valores comuns revivendo tradições e mitos de origem ou às vezes inven tandoos As principais diferenças entre uma nação e um estado nacional quando estes não coincidem como quase sempre acontece são que enquanto os membros de uma nação têm consciência de for mar uma comunidade o estado nacional procura criar a nação e desenvolver o senso de comunidade dela proveniente Enquanto a nação compartilha de uma mesma cultura valores e símbolos o estado nacional tem como objetivo a criação de uma cultura símbolos e valores comuns Os membros de uma nação podem relembrar seu passado comum se os membros de um estado nacional fazem o mesmo podem defrontarse com um quadro em branco porque o estado nacional não existia no passado ou então fragmentado e diversificado por terem antes pertencido a diferentes nações étnicas Enquanto o povo que forma uma nação tem um senso de pátria e se sente ligado a um território o estado nacional pode ser o resultado de um tratado ou da vontade de políticos que decidiram onde traçar o limite entre estados GUIBERNAU Montserrat Nacionalismos o estado nacional e o nacionalismo do séc XX Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p5657 748 Esta não é uma especificidade brasileira Hobsbawm comenta que Só por um impulso forte para formar um povo é que os cidadãos de um país se tornaram uma espécie de comunidade embora uma comunidade imaginada e seus membros portanto passaram a procurar e consequentemente a achar coisas em comum lugares práticas personagens lembranças sinais e símbolo alterna tivamente a herança de partes regiões e localidades do que havia se tornado a nação poderia ser combinada em uma herança nacional de modo que até mesmo antigos conflitos Vieram a simbolizar Salah H Khaled Jr 221 Além disso ainda que Varnhagen não explicite propriamente essa posição em nenhum trecho sua defesa intransigente da unidade nacional leva a crer que ele associa a viabilidade da nação com a extensão do seu território Nesse sentido cumpre referir que o ponto central da compreensão liberal de nação na primeira etapa do século XIX parece ter sido uma questão de escala749 De acordo com esse critério a nação teria que ter tamanho suficiente para formar uma unidade viável de desenvolvimento Se caísse abaixo desse patamar não teria justificativa histórica Isso parecia muito óbvio para requerer argumentação e era raramente discutido750 Esta definição conformava o que Hobsbawm chama de princípio da nacionalidade em que um ponto crítico de escala determinava a viabilidade da nação Percebese assim que a manutenção da integridade nacional era vista como uma questão de sobrevivência política Embora esse estudo não tenha a pretensão de provar que os membros do IHGB tinham acesso e eram influenciados por tais ideias considerando se a penetração e posterior adaptação do liberalismo no país não parece nada improvável a suposição O Brasil nascia como país independente desprovido de um processo de industrialização o qual somente se tornaria realidade no século seguinte e munido de uma diminuta elite intelectual Além disso em certo sentido era carente de uma cultura nacional e até mesmo de um passado desvinculado de Portugal Portanto era lógico que as elites do centro do país se apegassem de tal forma a integridade do território nacional enquanto critério de viabilidade da nação a construir a partir de um viés estatal Fazer parte de um grande país inclusive em dimensões territoriais era sobretudo um mecanismo de adesão importante para a fundação de uma identidade nacional tarefa a que se propunha o Instituto Como já demonstrado no primeiro capítulo ao discutir o artigo de Martius no entendimento de Varnhagen a nação é una e portanto isso implica na anulação das partes pelo todo Essa concepção não admite exceção Varnhagen é sua reconciliação em um plano mais elevado e geral Os Estados e regimes tinham todas as razões para reforçar se pudessem o patriotismo estatal com os sentimentos e símbolos da comunidade imagi nária onde e como eles se originassem e concentrálos sobre si mesmos HOBSBAWM Eric Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p111 749 Nesse sentido Hobsbawm aponta que John Stuart Mill justificava o inegável nacionalismo dos irlandeses na base de que eles eram afinal e contas suficientemente numerosos para serem capazes de constituir uma nacionalidade respeitável Ibid p42 750 Ibidem Horizontes Identitários 222 verdadeiramente extremo na sua defesa da autoridade de um Estado centralizado e de uma nação una e indivisa e portanto negadora da identidade regional751 Esse é um ensinamento que deve ser literalmente reiterado até a exaustão e que se constitui por excelência em uma estratégia de fundação de memória Por outro lado sua definição de nação e nacionalismo é essencialmente política Para ele basta adesão aos valores oficiais em sintonia com a vontade soberana do Monarca e do Estado para que inclusive os bárbaros e escravos sejam integrados ao todo nacional752 Nesse sentido não há reconhecimento do outro mas sim exaltação da assimilação e da incorporação ao todo da nação que Varnhagen prefigura no passado Não passaremos adiante sem observar que nas capitanias do Norte a guerra estranha produziu resultados benéficos O perigo comum fez aproximar mais do escravo o senhor e o soldado europeu do brasileiro ou do índio amigo Com as honras e condecorações concedidas mediante o beneplácito da cúria romana ao Camarão e a Henrique Dias libertos aquele da barbárie este da escravidão se honraram todos os índios e todos os africanos na idéia de que certo desfavor em que se julgavam não provinha de suas cores mas sim da falta de méritos para serem melhor atendidos753 Assim astutamente Varnhagen transforma em vantagem a formação racial diversificada do brasileiro e por extensão enaltece a nação754 Há aqui uma dupla vitória sobre o inimigo e sobre a resistência nativa e negra e logo duplamente fundadora de nacionalidade e sentidos sobre a nação755 Em outro trecho ao tratar da miscigenação 751 Aqui Varnhagen comete um raro deslize deixando escapar uma identificação regional quando fala da expedição empreendida pelo capitão Souto e o ajudante André Vidal que chegaram até a Paraíba pátria deste último destruindo a ferro e fogo VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p 269 752 Para Wehling Tanto negros como índios aculturados isto é cristãos que falavam português e haviam aderido aos valores da sociedade portuguesa foram objeto de elogio em toda a obra historio gráfica de Varnhagen WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p166 753 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p9798 754 Odalia observa que as etnias dessemelhantes no início da luta se aproximam pela luta comum e pelo fato de que as barreiras que antes existiam entre elas começam a desabar para que possa surgir o homem brasileiro ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p56 Disponível em httpwwwdominiopu blicogovbrdownloadtextoup000007pdf 755 Para Reis O Brasil que ele vê integrarse nesse momento não é um Brasil popular mestiço índio e negro ele celebra o coroamento da dominação portuguesa e a colaboração da população nativa A vitória contra os holandeses confirmou e concluiu a vitória portuguesa contra indígenas e negros Este Salah H Khaled Jr 223 entre colonos e índias novamente transparece o ideal assimilacionista e de forma curiosa uma vez que ele diz que os resultados apesar de serem irreligiosos os meios não podiam deixar de ser em favor da fusão das duas nacionalidades756 A fusão é entendida como assimilação a uma nação em formação Passavamse nesses tempos primitivos nas colônias brasileiras nascentes análogas cenas às que haverão tido lugar em todos os países mais atrasados que começam a ceder passo à nacionalidade que nele se introduz com superioridade e encantos da civilização sobre a barbárie757 Essa ideia de uma nação em formação que se expande e incorpora a barbárie também contempla outro requisito da compreensão da nação nos oitocentos a de que a construção das nações foi inevitavelmente vista como um processo de expansão758 Afinal no entendimento então corrente a evolução histórica não poderia esperar menos759 Essa compreensão vinculava a afirmação das nações a uma lógica de expansionismo tanto territorial quanto étnico Para Hobsbawm na prática isso significava que se esperava que os movimentos nacionais fossem movimentos pela expansão ou unificação nacional760 Ou seja o princípio é legítimo quando tende a unir em um todo compacto grupos diversos e ilegítimo quando tende a dividir um Estado761 Havia uma perspectiva evolucionista relacionada ao nacionalismo como é é o ponto de vista de Varnhagen aqui não surgia o Brasilbrasileiro antiportuguês que outros verão depois mas o Brasilportuguês a consolidação de fato do que o Tratado de Tordesilhas garantia como um direito de Portugal REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p42 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid 9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColon izaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShc TbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookresul 756 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 215 757 Ibidem 758 HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p44 759 Hobsbawm refere que era aceito na teoria que a evolução social expandiria a escala de unidades sociais humanas da família e da tribo para o condado e o cantão do local para o regional para o nacional e ocasionalmente para o global Assim sendo as nações estavam afinadas com a evolução histórica na medida em que elas ampliassem a escala da sociedade humana Ibid p44 Ibid p45 760 HOBSBAWM Eric Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janei ro Paz e Terra 1990 p45 Grifo nosso 761 Hobsbawm afirma que tudo isso era evidentemente incompatível com definições de nações base adas na etnicidade língua ou história comum mas como vimos estes não eram critérios decisivos da formação liberal de nações Em qualquer caso ninguém chegou a negar nunca a real multinaciona lidade ou multilingualidade ou multietnicidade dos mais antigos e inquestionáveis Estadosnações ou Horizontes Identitários 224 típico do pensamento oitocentista Como refere Hobsbawm a questão do estabelecimento de um EstadoNação específico dependia de este mostrarse adequado ao progresso ou à evolução histórica avançada para além dos sentimentos subjetivos da nacionalidade envolvida ou das simpatias pessoais do observador762 Nesse sentido não pode ser esquecido o fato de que o próprio Brasil surgiu a partir da conquista e essa conquista era vista como prova de sua viabilidade Isso era inclusive justificado pela própria teoria do século XIX uma vez que evolucionismo nacionalista implicava em assimilação Esse processo de assimilação do outro deveria ser visto sob a ótica de Varnhagen como motivo de orgulho pois implicava no triunfo da civilização sobre a barbárie um triunfo do qual todos os brasileiros deveriam se orgulhar e logo com o qual deveriam se identificar No entanto se a evolução implicava em expansão e assimilação isso invariavelmente traz à tona a pergunta do que era feito dos grupos assimilados763 Para tais grupos o destino era a subordinação e assimilação em uma unidade maior historicamente viável em um sentido teleológico Todavia resta a questão de como resolver a mistura pois isso implicava em um questionamento sobre quais grupos deteriam o controle político Em suma a heterogeneidade dos EstadosNações foi aceita sobretudo porque parecia claro que as nacionalidades pequenas e especialmente as pequenas e atrasadas só tinham a ganhar fundindose em nações maiores e fazendo através destas sua contribuição para a humanidade764 Embora possa parecer um processo diabólico fazia sentido face ao discurso da época765 Tratase da lógica do assimilacionismo extremamente familiar ao horizonte de seja GrãBretanha França ou Espanha Ibid p45 762 Ibid p5253 763 Hobsbawm questiona portanto se o único nacionalismo historicamente justificável era aquele ajustado ao progresso isto é aquele que alargava e não restringia a escala da operação humana na economia na sociedade e na cultura qual podia ser a defesa dos povos pequenos das línguas me nores e das tradições menores na grande maioria dos casos a não ser uma expressão de resistência conservadora ao avanço inevitável da história Ibid p53 764 Ibid p46 765 Hobsbawm refere que assim na perspectiva da ideologia liberal a nação isto é a grande nação viável representava o estágio de evolução alcançado na metade do século XIX a outra face da moeda nação como progresso foi portanto e logicamente a assimilação de comunidades e povos menores aos maiores HOBSBAWM Eric Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e Salah H Khaled Jr 225 construção identitária brasileira o qual inclusive encontrava fundamentação teórica766 Essa fundamentação permite até mesmo considerar um aspecto que valorizava a ancestralidade portuguesa na construção da identidade brasileira pois o próprio país teria surgido através da expansão territorial e étnica no qual a virtude portuguesa havia sido instrumental e inclusive foi aprimorada em virtude do assimilacionismo767 Para Varnhagen a integração do outro ao todo da nação é uma integração ao modelo europeu parâmetro de civilização Essa união inclusive é o caminho para o progresso e para a expulsão dos eventuais invasores É uma inclusão inteiramente utilitária do outro768 Não é por acaso que Varnhagen afirma que essa também foi a opinião do inimigo pois Nieuhoff diz mui expressamente que a perda do Maranhão em 1644 para confessar a verdade foi devida à combinação dos portugueses com os habitantes do GrãoPará e os naturais da terra769 Quanto maior o somatório de forças sob a chancela dos objetivos oficiais maiores as condições de superação dos obstáculos Os sentidos exemplares novamente se insinuam de forma sedutora sobre o leitor a obsessão com uma união plena e absoluta da nação perpassa toda a obra Quando se pensa em nação se pensa em mecanismos de integração que façam com que seus habitantes se sintam pertencentes a ela que desenvolvam portanto uma identidade nacional Para Varnhagen a guerra evocando Hegel é vista como realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p5051 766 Como afirma Hobsbawm a experiência disse Mill articulando o consenso de observadores sensí veis prova que é possível para uma nacionalidade fundirse e ser absorvida por outra Para os inferio res e atrasados isso seria um ganho enorme Ibid p46 767 Odalia considera que Varnhagen interpreta a história colonial e portanto a formação da nação de maneira a aparecer claramente a superioridade de uma etnia de uma cultura de uma civilização de uma religião de um modo de vida e de pensamento a do branco vencedor que se impõe a outras for mas à dos índios inicialmente e à dos negros posteriormente sempre identificadas como bárbaras consumada a vitória do branco só resta aos vencidos índios e negros integraremse ao projeto de nação pela única porta que se lhes deixa aberta a assimilação racial ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p1920 768 É o que transparece quando Varnhagen diz que Voltemos porém a Men de Sá Com sujeitar por terra os gentios apenas havia ele cumprido uma parte da sua missão a respeito deles Restavalhe a mais importante a de ver como se deveriam governar de modo que pudessem ser mais úteis a si e ao Estado VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Me lhoramentos 1959 p 333 Quando não é o utilitarismo que prepondera é o pragmatismo no dia 15 de maio assinavam na Várzea do Capibaribe os dois chefes escolhidos João Fernandes Vieira e Antonio Cavalcanti em nome da liberdade divina e para vingar agressões e tiranias os diplomas conferindo os postos de capitães dos diferentes distritos da província com poderes para requisitarem dos povos mantimentos e dinheiro e para deitar bandos convocando a todos assim nacionais como estrangeiros judeus ou índios a tomarem as armas assegurandolhes perdão pelo passado VARNHAGEN Fran cisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhoramentos 1959 p1617 769 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 328 Horizontes Identitários 226 um instrumento apto e apropriado a promover a coesão dentro da nação reunindo inclusive os estrangeiros em torno de uma causa comum de um interesse nacional de um interesse que é enfim norteado pelo Estado por um critério de nacionalismo baseado em vontade e não em etnia770 É uma concepção abrangente o suficiente para unir toda a disparidade característica do país sob a orientação dos objetivos comuns estabelecidos pelo oficialismo que ele defendia Em função dessa perspectiva para Wehling pode ser percebida em Varnhagen uma concepção de nação com base na vontade nacional o que o aproxima da escola francesa do nacionalismo em oposição à escola germânica a qual teria como pressupostos a identidade da língua e da história771 Varnhagen certamente não era radical a ponto de abominar tudo que é estrangeiro Nesse sentido Varnhagen faz um pedido no prefácio da 1ª edição da HGB oxalá os leitores façam a devida justiça aos nossos princípios não por esta ou aquela passagem da obra mas pelo seu conjunto Oxalá descubram nela através da ostentação de uma tolerância civilizadora os sentimentos de patriotismo nobre e elevado que nos animaram não de outro lamentável patriotismo cifrado apenas na absurda ostentação de vil e rancoroso ódio a tudo quanto é estrangeiro772 De fato o que Varnhagen defendia era um tipo específico de colonização marcada pela centralização e autoridade estatal e não um nacionalismo português tanto que atribuiu o descobrimento aos espanhóis De forma semelhante reconheceu os méritos de Nassau dizendo que por todo o Brasil não houvera anteriormente obras tão consideráveis e tão habilmente executadas773 e que foi porém nas ciências que se fizeram mais recomendáveis os serviços prestados pela influência de Maurício de Nassau no Brasil774 Pragmático acima de tudo como de costume 770 O critério para Varnhagen é eminentemente baseado na vontade Como ele diz Enquanto a nova companhia holandesa se organizava não faltou quem lembrasse a formação de outra na Península hispana para lhe fazer face Eram autores da idéia vários judeus portugueses residentes na mesma Holanda e em cujo coração as injustiças e perseguições não haviam apagado o amor da pátria VAR NHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p 164 771 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p54 772 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927pXXII 773 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 288 774 Ibid p 289 Salah H Khaled Jr 227 Não se pense entretanto em função desse raciocínio que Varnhagen era favorável à diferença Ao contrário ainda que a tolerasse quando posta em prol da nação via a heterogeneidade com manifesta reprovação Por exemplo ao comentar o fracasso holandês Varnhagen afirma que Devemos porém declarar que geralmente os sitiantes não se recomendaram pela boa ordem disciplina e fiscalização nos fornecimentos e cada parcialidade procedia com demasiada independência o que pudera ter prejudicado muito se também entre os inimigos não houvesse falta de homogeneidade pois contavam em seus terços ou regimentos soldados flamengos alemães ingleses franceses e até polacos tudo gente adventícia e mercenária775 Ele é sobretudo inimigo da heterogeneidade Para Varnhagen interessa padronizar e uniformizar Em outro trecho isso fica novamente evidente Varnhagen advogava um sistema de colonização visando substituir a mão de obra africana em que recrutando os próprios nacionais pobres se evitam os perigos dessas chumas compactas de colonos estrangeiros e às vezes de religião diferente da que professa o país que podem vir a ser outro Estado no Estado e dar lugar a perturbações e guerras civis para não dizer o risco de perderse a anterior nacionalidade histórica776 Portanto se ele baseava seu critério de nação na vontade o fazia pela força das circunstâncias da evidente miscigenação em torno da qual se formou a população brasileira777 No Brasil afinal a nação não poderia ser pensada de outra forma em função de sua formação étnica extremamente diversificada778 O critério de vontade como base fica evidente na frase a seguir 775 Ibid p 198 776 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p129 777 Também pode se considerar como aponta Guimarães que se buscavam na França os parâmetros para a elaboração da escrita da nação Daí o possível vínculo com a escola francesa GUIMARÃES Manoel Luiz Lima Salgado De Paris ao Rio de Janeiro A institucionalização da escrita da História In Acervo v04 n01 1989 p136 778 Evidentemente como ressalta Hobsbawm todas as nações são inventadas e caracterizamse por uma população em larga medida miscigenada No Brasil entretanto em função da colonização e a forma com que ela se deu isso é sem dúvida mais evidente Horizontes Identitários 228 Não somos mercê de Deus fatalista na história Cremos sim que uma guerra de tempos a tempos pode erguer um país do seu torpor cremos que a estranha quando a costa brasílica acabava de ser ocupada na totalidade com as cidades de São Luis e de Belém no Maranhão e no Pará poderia estabelecer como estabeleceu mais união e fraternidade em toda família já brasileira cremos que se estreitam muito nas mesmas fileiras ao laço de que resultam glórias comuns e que não há vínculos mais firmes que os sancionados pelos sofrimentos e tanto que ao estrangeiro que peleja ao nosso lado e que derrama seu sangue pela nossa causa lhe conferimos pelo batismo do sangue a mais valiosa carta de naturalização 779 Odália destaca que em Varnhagen uma nação é também o produto de lutas em que o sangue corre generoso e heróico serve para amalgamar e sustentar o sentimento de nacionalidade780 Aqui além de estimular o sentimento de entrega e desprendimento de disposição para o sacrifício que é tão característico do nacionalismo Varnhagen também detecta uma outra coisa Ele está percebendo uma comunidade que na sua atribuição de sentido passa a imaginarse como nação para usar o conceito de Benedict Anderson Essa ideia de uma família brasileira que está sendo formada que cada vez mais é unida por laços de fraternidade aponta para uma noção que aparece com regularidade na obra de Varnhagen a noção de espírito público Essa noção está presente no prólogo da 2ª edição da HGB e é utilizada com certa frequência Uma nação diz outro talentoso escritor francês é um grupo mais ou menos considerável de famílias provindas às vezes de sangue mui diferente mas todas unidas pela identidade de espírito público tem no passado uma só história não duas e se dela se rompesse as tradições deixaria de apresentarse devidamente781 Para Varnhagen a nação está em plena formação nos tempos coloniais na medida em que ele vê ou projeta várias de suas características sobre o passado que passam a adquirir caráter de tradição782 A noção de espírito público na História 779 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p162163 780 ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p51 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbr downloadtextoup000007pdf 781 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927pVI 782 Guibernau define que Por nação refirome a um grupo humano consciente de formar uma comu Salah H Khaled Jr 229 Geral do Brasil parece equipararse de certa maneira a um sentimento nacional ao nacionalismo783 É um espírito público na medida em que implica em subordinação da parte ao todo de reconhecimento desse todo de coesão Por outro lado o perigo comum aumentou muito a tolerância dos povos de umas capitanias para as outras e estabeleceu maior fraternidade de modo que quase se pode assegurar que dessa guerra data o espírito público mais generalizado por todo o Brasil784 A noção de espírito público entendido como sentimento nacional é justamente utilizada para se contrapor ao provincialismo ao mandonismo local e à identidade regional É o que transparece no trecho a seguir no qual ele reúne vários elementos do seu sistema de pensamento para passar essa ideia ao comemorar o fracasso da Revolução Pernambucana de 1817 Assim ainda desta vez e não foi a última o braço da Providência bem que à custa de lamentáveis vítimas e sacrifícios amparou o Brasil provendo em favor da sua integridade está pronunciado o espírito público de todas as províncias e que finalmente tem bastante juízo crítico para apreciar o quanto é sofística a proposição dos que por suas ambições pessoais as pretendem iludir dizendo lhes que independentes estariam mais ricas 785 Pode ser considerado sem incorrer em exagero que a obra de Varnhagen se dedica justamente à promoção e fundação de tal espírito público cujas implicações resultam na adesão ao corpo da nação ao todo Nesse sentido Gellner ao assegurar que existe uma correspondência entre a unidade nacional e a unidade política afirma que o sentimento nacionalista é o estado de cólera causado pela violação desse nidade e de partilhar de uma cultura comum ligado a um território claramente demarcado tendo um passado e um projeto comuns e a exigência do direito de se governar Desse modo a nação inclui cinco dimensões psicológica consciência de formar um grupo cultural territorial política e histórica GUIBERNAU Montserrat Nacionalismos o estado nacional e o nacionalismo do séc XX Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p56 783 Guibernau afirma que por nacionalismo refirome ao sentimento de pertencer a uma comunidade cujos membros se identificam com um conjunto de símbolos crenças e estilos de vida e têm a vontade de decidir sobre seu destino político comum Ibidp56 Varnhagen parece utilizar a ideia de espírito público com essa conotação de vontade de decidir sobre um destino político que é comum 784 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p9798 785 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p177 Horizontes Identitários 230 princípio ou o estado de satisfação causado pela sua realização786 Para ele o próprio movimento nacionalista é iniciado a partir de um sentimento de tal natureza No pensamento de Varnhagen que projeta uma nação sobre o Brasil colônia era justamente esse espírito público de cólera que precisava ser desperto de uma certa letargia face ao domínio inimigo para que fosse restabelecida a unidade da nação787 Tratase de um despertar em que inclusive todo o sacrifício é justificado toda arbitrariedade relevada pois é em nome de um sentimento patriótico o que remete à ideia de satisfação788 O patriotismo no pensamento de Varnhagen se situa no espectro contrário do pernicioso provincialismo É um sentimento que ele se propõe a exaltar a despertar a exemplificar O caráter de pedagogia nacional da sua narrativa se evidencia por si só E todas as províncias também sabem que nos povos muito fáceis são as separações ao passo que muito custam a efetuarse as uniões ao provincialismo associamse apenas idéias de interesses provinciais quando principalmente as de glória andam anexas ao patriotismo sentimento tão sublime que faz até desaparecer no homem o egoísmo levandoo a expor a própria vida pela pátria ou pelo soberano que personifica o seu lustre e a sua glória789 As estratégias de persuasão utilizadas por Varnhagen se revestem de um caráter que vai muito além da mera insinuação A sua noção de espírito público evoca 786 GELLNER Ernest Nações e nacionalismo Lisboa Gradiva 1993 p11 787 Varnhagen coloca a questão rapidamente ao tratar da luta contra os holandeses Era porém chegada para os nossos a hora das represálias Os holandeses fiados na validade do pactuado em virtude das tarifações iam dormir o mesmo letargo de confiança em que os nossos haviam jazido fiados na honra de Nassau e da mesma sorte que eles tinham abusado da boa fé iam ser vítimas da sua confiança nela A eles que haviam ensinado o caminho cabe toda a responsabilidade E graças a Deus porque a não haverem procedido tão mal porventura o Norte do Brasil seria senão ainda co lônia deles como Batávia pelo menos mui provavelmente de nacionalidade diferente da do Sul Ainda assim tão amortecido se achava o espírito público ou tão pequenos eram os recursos que tinham os povos submetidos para sacudir o jugo que foi necessário ajudálos das capitanias vizinhas No Maranhão o jugo dos opressores era mais forte o espírito público por isso mesmo que esse jugo havia durado menos não estava tão amortecido e a conspiração teve a fortuna de encontrar à sua frente nobres caracteres como foram os senhores de engenho Antonio Barreiros e Antonio Teixeira de Melo VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramen tos 1959 p 326327 788 É assim que Varnhagen vai considerar que o esforço para resistir aos franceses justifica o sacrifício Diz ele que Para isso começou o governador como seu predecessor por fixar sua residência em Per nambuco a fim de se achar mais perto procedeu a todos os gastos chegando a tomar arbitrária mas patrioticamente uns cinco a seis mil cruzados que estavam em depósito da donataria de Itamaracá então em pleito Ibid p 141 789 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p177178 Grifo nosso Salah H Khaled Jr 231 o patriotismo790 utilizado com uma conotação definitivamente hegeliana Nos selvagens não existe o sublime desvelo que chamamos de patriotismo que não é tanto o apego a um pedaço de terra ou bairrismo que nem sequer eles como nômades tinham bairro seu como sentimento elevado que nos impele a sacrificar o bem estar e até a existência pelos compatriotas ou pela glória da pátria Nem poderiam possuir instintos de amor de pátria que como nômades a não tinham e que limitavam a tão curtos horizontes a idéia de sociabilidade que geralmente não a estendiam além dos da sua tribo ou maloca a qual não dominava mais no território do que os contornos do distrito que provisoriamente ocupavam Essas gentes vagabundas que guerreando sempre povoavam o terreno que hoje é o Brasil eram pela maior parte verdadeiras emanações de uma só raça ou grande nação isto é procediam de uma origem comum e falavam dialetos de uma mesma língua que os primeiros colonos do Brasil chamaram geral e era a mais espalhada das principais de todo este continente791 Neste trecho Varnhagen usa o termo nação com uma conotação anterior a que se tornou usual no século XIX É a ideia de nação entendida com sentido étnico e não como território nacional com fronteiras definidas habitado por um povo específico792 Ele o faz em vários trechos Em outro momento por exemplo Varnhagen referese à existência de nações negras ao afirmar que tão pouco temos por essencial dar um extenso catálogo das diferentes nações de raça preta a importação dos colonos pretos para o Brasil feita pelos traficantes teve lugar de todas as nações não só do litoral da África nessas nações a liberdade individual não estava assegurada793 Embora Varnhagen em alguns momentos reconheça uma certa unidade de raça e língua entre os índios o que poderia favorecer o surgimento de uma nação 790 Varnhagen usa poucas vezes este sentido propriamente patriótico moderno como em o ministro Pombal não hesitou como patriota superior a prevenções VARNHAGEN Francisco Adolfo de Histó ria geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhoramentos 1959 p237 791 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p24 792 Hobsbawm afirma que no século XIX houve um deslocamento de significado no qual o que repre sentava unidade étnica passou a significar independência e unidade política Diz ele que qualquer que seja o significado próprio e original ou qualquer outro do termo nação ele ainda é claramente diferente de seu significado moderno Podemos portanto sem ir mais além no assunto aceitar que em seu sentido moderno e basicamente político o conceito de nação é historicamente muito recente HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p30 793 VARNHAGEN Op cit p 224 Horizontes Identitários 232 considera que foram incapazes de se integrar mantendose fragmentados pois não havia uma autoridade centralizada na figura de um chefe Conforme pensa Varnhagen é importante que esse processo seja percebido dessa forma para que não haja questionamento moral à colonização Não há um processo de imposição mas sim de fundação da nação com a chegada dos portugueses Somente a partir daí é realmente possível pensarse em nação no sentido pleno e moderno do termo O próprio Varnhagen relativiza a afirmação anterior de existência de nação indígena afirmando que não constituíam uma nação nem mesmo pequenas nações na acepção em que mais geralmente em direito universal se toma hoje esta palavra Formavam antes muitas cabildas pela maior parte procedentes dos últimos invasores do território794 Ou seja não eram uma nação porque não se conformavam ao modelo europeu Mesmo que por vezes Varnhagen utilize o termo nação ou nacionalidade para referirse aos indígenas está claro que quando o faz é utilizado em outro sentido que não o de uma moderna nação europeia795 Consequentemente Varnhagen se recusa a atribuir aos indígenas qualquer importância enquanto base da nacionalidade brasileira796 Assim ele afirma por exemplo uma idéia de seu estado não podemos dizer de civilização mas de barbárie e de atraso De tais povos na infância não há história há só etnografia797 Não pode haver história da nação indígena porque ela é desagregada desunida destituída de um Estado centralizado de um espírito público de um sentimento nacional798 Enfim é destituída de tudo com que Varnhagen deseja 794 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p52 795 Este é o sentido que Varnhagen atribui propriamente a uma nação falando de um acordo entre Portugal e Espanha entre várias estipulações se combinou que se uma das duas nações viesse a ter guerra com outra estranha a que ficasse em paz guardaria neutralidade as duas nações se declararam guerra e se guerrearam principalmente na América VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhoramentos 1959 p270 796 Para Wehling Varnhagen recusava atribuir aos indígenas a base da nacionalidade como faziam os românticos Para ele eram no presente apenas populações geralmente refratárias e hostis que domi navam áreas extensas do território brasileiro e nos quais por conseqüência não se exercia a soberania nacional em sua plenitude WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p164 797 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p30 798 Odalia indica que Não se pode deixar de mencionar que para Varnhagen no processo de con quista se defrontam dois sistemas de vida duas sociedades mas jamais duas nações ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vian na São Paulo UNESP 1997 p54 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtexto Salah H Khaled Jr 233 que seu leitor se identifique E a história para ele é por excelência um relato da nação uma narrativa nacional a partir de uma perspectiva de estado que orienta as ações dos indivíduos799 De qualquer forma Varnhagen elaborou um relato que é por excelência fundador de sentidos sobre a nação fundador de uma memória nacional Como afirma Wehling a preocupação de Varnhagen com o enfraquecimento da unidade nacional foi uma constante em sua obra800 A essa preocupação ele buscou corresponder através da projeção de uma nação forte e unida já no Brasilcolônia É uma nação por ele construída por ele inventada e prefigurada desde os tempos coloniais como destinada a juntarse à mesa das grandes nações europeias Seu entendimento de nação ainda que impreciso apontava para os modelos europeus de desenvolvimento a que ele desejava conduzir o país Em suma como diz Wehling o Estado forte maior do que a sociedade criador da nação e aperfeiçoador pedagógico e étnico do povo eis o ideal de Varnhagen801 Ou seja ele não se preocupou muito com uma definição rigorosa de nação porque na verdade interessavalhe afirmar a primazia do Estado e fazer com que seu leitor experimentasse a história do Brasil como tal Já abordados os elementos mais característicos do pensamento de Varnhagen e a forma com que eles se expressam em uma narrativa nacional dotada de fundo exemplar resta definir o próprio Varnhagen em função de tal escrita Colocandose como juiz do tribunal da história Varnhagen sentencia condena absolve e redime Mas afinal que espécie de juiz é esse que elaborou o relato da nação up000007pdf O que determina o caráter de nação é o padrão europeu Isso fica evidente em outra passagem quan do Varnhagen na introdução ao tratar de eventuais abusos dos colonos diz que não é também certo que à custa das lágrimas do exílio nos legaram eles a nós seus herdeiros as casas fabricadas as fazendas criadas as vilas e cidades fundadas a vida a religião o comércio a riqueza a civilização a pátria enfim VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927 pX 799 Wehling entende que para Varnhagen O fato histórico é um produto não exclusivo mas prepon derantemente estatal Estado escrita religião são os indicadores mais precisos da passagem para formas superiores de cultura civilizadas WEHLING Op cit p130 800 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p88 801 Ibid p91 Horizontes Identitários 234 36 Varnhagen advogado do estado e juiz inquisidor do tribunal da história Os crimes posto que seguidos de hum successo apparentemente feliz não deixão de ser detestáveis no tribunal da história se a imparcial penna de sábios os descreve em sua verdadeira luz O circunspecto gênio do historiador sentandose sobre a tumba do homem que ahi termina suas fadigas despreza argumentos de partido e conselhos de lisonja portandose seus juizos como austero sacerdote da verdade Januário da Cunha Barboza O discurso fundador do IHGB sinaliza com uma concepção de história que implica em uma profunda associação entre o ofício do historiador e o ofício do juiz bem como uma compreensão de busca da verdade como autêntico sacerdócio Tal entendimento por excelência aponta para uma primazia da imparcialidade sobre as paixões pessoais Entretanto uma história pragmática e engajada como a oitocentista ainda que científica de acordo com os parâmetros da época poderia ser tudo menos imparcial Todavia é isso que se espera dentro do possível de um juiz da justiça e de um tribunal Essa concepção quase jurídica de fazer história pautou as ações dos membros do IHGB no século XIX Parecia haver de fato um entendimento de que cabia ao historiador julgar o passado emitindo juízos com conotação jurídica Varnhagen não foi exceção sendo a sua obra o produto mais notável de uma prática historiográfica de acordo com esses referenciais e portanto caracterizada pelo uso extensivo de metáforas de ordem jurídica Termos como tribunal da história juiz veredicto e acareação são utilizados com grande frequência nos momentos em que Varnhagen intervém na narrativa para expressar seus juízos Varnhagen efetivamente julga e o faz munido da autoridade que a história mestra da vida lhe dá assim como da imparcialidade que afirma ser o seu norteador Vários comentadores de Varnhagen já se debruçaram sobre a questão do julgamento em sua obra Arno Wehling por exemplo enxerga nele uma concepção de juízo histórico como julgamento802 Para ele há nessa perspectiva a ideia de que O julgamento dos fatos históricos é não só dever mas a tarefa principal do historiador 802 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p134 Salah H Khaled Jr 235 pois através dele fala a história a inflexível história803 Dessa forma o historiador supostamente se torna um juiz verdadeiramente neutro e imparcial804 Já para José Carlos Reis Varnhagen era um historiador engajado militante apesar de pretender produzir uma história imparcial e objetiva Julgava sempre tudo e todos e justificou a dominação colonial a submissão do povo os direitos das elites805 Temístocles Cezar por sua vez afirmou que a providência não é compreensível O quadro histórico é uma pintura humana que representa as vias traçadas pelos deveres dos homens Em conseqüência não é a providência que julga as ações humanas mas a própria história806 A história entretanto não é escrita de lugar nenhum O ato de julgar implica em um juiz que no caso detém o controle sobre o passado a partir de sua escrita Escrita esta que confere ao seu narrador o poder de ditar o recorte de cristalizar uma determinada memória de condenar redimir ou absolver de acordo com seus próprios critérios pragmáticos Em suma tratase de um narrador que tem o poder de dizer a verdade sobre o passado através da autoridade que o discurso científico lhe confere807 Ainda que o assunto já tenha sido discutido em alguma medida por parte de seus comentadores a proposta aqui é abordálo a partir de um enfoque diverso que é aspecto de narrativa nacional enquanto dimensão de convencimento e adesão e não 803 Ibidem Grifo nosso 804 Wehling afirma que assim A capacidade de julgar no historiador depende de qualidades como convicções profundas e caráter firme além da coragem para combater os preconceitos vulgares e para recusar o aplauso fácil do público Alcançará desta forma a neutralidade isto é a imparcialida de para averiguar os fatos e narrálos WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p134 805 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p32 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgP A23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3o PortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jf Su64JIOm8Ab258VasaXoibookresul 806 CEZAR Temístocles Lição sobre a escrita da história historiografia e nação no Brasil do século XIX In Diálogos DHIUEM v 8 n 1 p22 Disponível em httpwwwdialogosuembrincludegetdoc phpid436article142modepdf 807 Wehling pergunta o que era a verdade histórica para Varnhagen E conclui que segundo a ten dência dominante de seu tempo ele a via como um esforço de reconstituição integral do fato passado a partir da mais absoluta fidelidade ao acontecido Para Wehling O historiador historista por estes supostos metodológicos arrola fatos e testemunhos e emite uma sentença O autor comenta que Às sentenças o historiador chega por meio de um processo praticamente judicial com a análise dos do cumentos das partes a participação de testemunhas sua acareação e a consideração das provas e contraprovas Essas sentenças não devem ser recriminações mas quando estas forem indispensáveis devem corresponder ao juízo dos próprios contemporâneos O autor trabalha a questão a partir da articulação que faz entre Varnhagen e o historismo de Ranke WEHLING Opcit p132135 Horizontes Identitários 236 de escola histórica Embora exista uma proximidade muito grande entre a constituição da história enquanto disciplina e a incorporação de métodos de ordem jurídica não é essa a abordagem aqui proposta O sentido da análise encaminhada neste trecho é o de voltar contra Varnhagen suas próprias metáforas Portanto interessa sobretudo verificar as análises de Varnhagen sob a perspectiva de um leitor leigo a quem ele deseja convencer Sob esse ponto de vista parece mais produtivo pensar as metáforas jurídicas de Varnhagen enquanto experiência de leitura e não como método de escrita da história Varnhagen se vale em várias oportunidades de julgamentos no sentido jurídico do termo e isso resulta em algumas implicações O fato de Varnhagen colocarse como juiz e apresentarse ao leitor como tal levanta dúvidas a respeito de que tipo de juiz é esse narrador e com base em que critérios ele julga Afinal se Varnhagen é um juiz resta saber que espécie de juiz qual a natureza do tribunal que preside e qual a verdade que obtém com sua investigação Varnhagen considerase sobretudo um juiz imparcial Entretanto seu discurso caracterizase por uma pretensão eminentemente sedutora Como fica o critério de verdade por ele estabelecido diante dessa aparente contradição Varnhagen afirma que Convencidos igualmente que a verdade é a alma da história que só ela pode oferecer harmonia eterna entre os fatos narrados que o verdadeiro critério da verdade histórica não se pode aquilatar senão pela concordância nos incidentes não nos poupamos a nenhum esforço a fim de remontar às fontes mais puras808 Em um primeiro momento parece haver uma relação entre verdade e fonte e portanto de veracidade e fidelidade às fontes A forma com que Varnhagen se utiliza da categoria verdade entretanto excede essa significação Varnhagen não se limita a deixar ou pelo menos tentar deixar que as fontes falem A sua subjetividade latente simplesmente não o permite superando a sua objetividade enquanto historiador ou sua suposta imparcialidade como juiz Ao contrário do que poderia se pensar seu critério de verdade também passa pelo âmbito do subjetivo através da opinião pessoal que ele considera plenamente justificada Segundo Varnhagen 808 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927 pX Salah H Khaled Jr 237 o historiador sofrerá maiores injustiças se dotado de convicções profundas e de caráter firme e independente em vez de adular vãos preconceitos vulgares teve o necessário valor para enunciar francamente o que pensava em contra destes809 Essa é uma postura que evidentemente se revela problemática para uma pretensão de verdade pois fica difícil delimitar a diferença entre opinião e fato na medida em que a primeira adiciona significado ao segundo que em si mesmo já comporta em alguma medida uma construção por parte do historiador De acordo com a sua própria definição em um sentido teórico Varnhagen trata do problema posto pela verdade de forma sucinta Para ele a verdade é simplesmente o inverso do erro810 A definição parece simples mas ele não se limita a ela pois professa um verdadeiro amor à verdade Também nos cumpre repetir aqui o que já outra vez dissemos que o amor à verdade nos obrigará mais de uma vez a combater certas crenças ou ilusões que já nos havíamos acostumado a respeitar Aos que lamentem ver dissipadas algumas dessas ilusões de apregoados heroísmos rogamos que creiam que os haveremos precedido nessas jeremiadas e pedimos se resignem diante da verdade dos fatos com tanta maior razão quando essa verdade neste mesmo livro lhes proporcionará em vez dessas ilusórias glórias outras mais incontestáveis sendo que não pequeno número de pontos em que havia dúvidas conseguimos deixar esclarecidos não por nossos fracos talentos mas pelos argumentos incontestáveis que resultam das provas que mediante aturado estudo conseguimos reunir811 Novamente a relação entre verdade e fonte verdade e prova associada a uma profissão de fé que estabelece segundo ele verdades incontestáveis Portanto se Varnhagen é um juiz ele é a princípio um juiz que se apresenta como infalível e logo que não pode ter seus juízos questionados812 A articulação entre fato e avaliação a partir dessa posição já se mostra problemática Parece interessante mencionar um outro trecho no qual Varnhagen deixa transparecer mais um elemento da sua concepção de verdade histórica ao comentar a obra do Frei Rafael de Jesus 809 Ibid pXVII 810 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927 pXII 811 Ibid pXIII 812 Não é por acaso que Varnhagen defendeu ferrenhamente sua obra de quaisquer críticas Ele tinha de fato plena convicção no que fazia Horizontes Identitários 238 comprazse em fazer gala de mui retórico pondo na boca dos cabos de guerra arengas e discursos por ele compostos sistema que em nosso fraco entender ainda quando bem desempenhado desvirtua a índole da história compôlos porém por sua conta um autor é faltar sem consciência à verdade e escrever romance histórico em vez de história formal813 A verdade para Varnhagen comportaria ainda uma quarta dimensão além do contrário do erro da fidelidade às fontes e de uma busca marcada por um amor obsessivo também seria a negação de um esforço criativo deliberado Quanto ao último critério Varnhagen realmente o satisfaz Não há invenção de falas Mas isso basta para tornálo imparcial e fazer da sua narrativa a expressão da verdade como ele gosta de salientar Cezar afirma que havia um conjunto de regras utilizadas para representar o passado em princípio pesquisas feitas a partir de fontes rigorosas e de um narrador objetivo814 Entretanto considerandose a subjetividade que determina a dinâmica da escrita de Varnhagen essa é uma atitude científica que se mostra problemática na medida em que ele ou o pragmatismo que ele defende acaba sendo o único ou pelo menos o principal critério de verdade O problema está no fato de Varnhagen não reconhecer a inevitável subjetividade que caracteriza seus juízos conservadores e pragmáticos enquanto esforços eles mesmos criativos externos aos fatos sobre os quais ele supostamente narra tais verdades815 Claro que isso pode ser dito em alguma medida sobre a ciência de uma forma geral A aproximação com o objeto é quase sempre uma aproximação violenta Entretanto em Varnhagen tal violência é exacerbada Suas opiniões não são apenas opiniões pois ele atribui sentido aos fatos segundo a conotação que lhe interessa fundar Apesar da evidente disparidade entre o ideal de objetividade e a sua realização Varnhagen colocase em uma posição privilegiada Ele atribui a si mesmo o papel de 813 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 101Grifo nosso 814 CEZAR Temístocles Presentismo memória e poesia Noções da escrita da história no Brasil oi tocentista In PESAVENTO Sandra Jatahy org Escrita linguagem objetos leituras de história cultural Bauru SP EDUSC 2004 p69 815 Reis é severo com Varnhagen nesta questão Varnhagen se excede nesses comentários os cilando entre a sincera ingenuidade e o cinismo REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p41 Disponível parcialmente em http booksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnh agenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZ sigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookre sul Salah H Khaled Jr 239 encarregado de trazer à tona a verdade embasada por provas por fontes Entretanto para além dessa preocupação logo transparece uma associação entre verdade e um raciocínio quase jurídico sobre o passado que ele reconstrói ou inventa com a narrativa nacional Isso pode ser percebido em momentos em que metáforas jurídicas afloram Bem longe estamos de acreditar que a verdade histórica se aquilate pelo número de autoridades não sendo estas aliás às vezes mais que reprodução ou plágio umas das outras e antes pelo contrário todos sabem que conforme o mais judicioso critério histórico casos há em que o depoimento de uma só testemunha presencial conscienciosa pode completamente destruir invenções e calúnias que se tiverem ido repetindo por um chorrilho de escritores de pouca autoridade chorrilho com razão comparável às armadilhas das cartas de jogar dobradas ao meio que servem de divertir as crianças quando a primeira que cai arrasta todas as demais Mas é também sem dúvida que o que sobra não prejudica e que é somente reunindo todas as testemunhas e acareandoas entre si e com certos fatos conhecidos que se atina com a verdade histórica816 A ideia de acareação implica em uma valoração Implica em afastar após um exame cuidadoso depoimentos falsos improcedentes e contraditórios Isso permite inclusive que ele venha a mudar de opinião conforme as circunstâncias se alterem Na primeira edição da História Geral do Brasil por exemplo foi extremamente duro com a Inconfidência Mineira Entretanto na segunda edição se propôs a rever o trecho dedicado à Inconfidência em função de uma série de críticas que recebera a primeira edição Valendose de seu método Varnhagen buscou avaliar e interpretar os depoimentos com o devido critério que segundo ele não se trata de uma pura e simples reunião de fatos mas sim de uma apreciação na qual se apura a verdade817 Varnhagen fala em uma análise com a devida imparcialidade ante a luz da crítica que não se deve guiar pelo dito de uma ou outra testemunha apaixonada ou interessada mas unicamente pela essência que ressumbra do conjunto dos depoimentos e de todos os fatos apurados818 816 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p 236 817 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p310 818 Ibid p310 Horizontes Identitários 240 O lugar de imparcialidade em que ele se põe considerandose que jamais se furta de tecer opiniões pessoais a respeito das mais variadas situações realmente é impressionante Assim ele pondera colocandose no papel de juiz quase que como em segunda instância recursal que da acareação por nós pausada e refletidamente feita de todos os depoimentos resulta que verdadeiramente entre os vários que se conluiaram só um chegou a entusiasmarse pela idéia de revolução 819 referindo se a Tiradentes Em outro ponto após relatar a prisão do alferes afirma que após uma negativa inicial revelou tudo o que sabia e que os seus depoimentos últimos merecem pois o conceito de um relato muito verdadeiro de quanto se passou820 Parece claro que o que define ou não a verdade dos fatos e das interpretações constantes da narrativa nacional não é outra coisa senão a valoração feita pelo próprio Varnhagen de acordo com o pragmatismo que lhe é inerente Além disso é importante ressaltar que Varnhagen detém todo o poder cabe a ele acolher recursos contra si próprio na medida em que julgar conveniente Como fica o juiz Varnhagen diante de tais considerações Ele pondera que Igualmente nos esforçamos para não ser pródigos nas narrações nem pretensiosos nos juízos e análise dos acontecimentos pondo o maior empenho em comemorar sempre com o possível laconismo e embora com menos elegância os fatos mais importantes e esmerando nos em os descrever com a maior exatidão e clareza Cada dia nos convencemos mais de que a história é um ramo da crítica não da eloqüência e que perante o tribunal dela o historiógrafo não é um advogado verboso e florido mas antes um verdadeiro juiz que depois de averiguar bem os fatos ouvindo as testemunhas com o devido critério deve feito o seu alegado com o possível laconismo sentenciar na conformidade das leis eqüitativas da sociedade e humana justiça821 Portanto de acordo com a concepção de Varnhagen o historiador sentencia Entretanto ao contrário do que afirma na maioria das vezes em que intervém diretamente na sua narrativa Varnhagen de fato advoga Mesmo que mantenha fidelidade às fontes seleciona e recorta conforme lhe interessa Toma posição e trabalha para o convencimento dos jurados de seu ponto de vista Há sobretudo 819 Ibid p311 820 Ibid p321 821 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927pXII Salah H Khaled Jr 241 uma vocação pedagógica no texto pautado por uma estratégia de convencimento Varnhagen busca construir opiniões e valores a partir de uma perspectiva de persuasão do leitor objeto a ser construído como súdito leal a partir da narrativa nacional É nesse sentido que Varnhagen advoga E o faz politicamente defendendo a causa do BrasilNação monarquista e conservador822 Sob esse enfoque é o convencimento e não a verdade que passa a ser o critério último do historiador pois o que ele escreve não é apenas história mas também um instrumento de convencimento da plateia de acordo com seus pontos de vista Isso não deixa de ser curioso considerando o ponto de vista que Varnhagen expressa a respeito de certos advogados Viuse então a Bahia como meio século antes se haviam visto muitas cidades de Portugal molestada pela demasia dos letrados os advogados rábulas eram um mal pela sua ignorância e seus enredos os doutores pela ascendência que tinham sobre os magistrados de quem haviam sido condiscípulos ou contemporâneos em Coimbra e em favor dos quais estavam os últimos prevenidos pela amizade ou se haviam feito estudos mais brilhantes que eles pela consideração e respeito a suas opiniões Não deixa de ter inconvenientes a prática de escolher os magistrados da mesma classe e até da mesma academia ou universidade que os advogados quando para a imparcialidade e justiça não só podem ser mui nocivas as amizades e simpatias da juventude como ao magistrado mui prejudicial o habito de haver exercido a advocacia ou simplesmente de se haver preparado para exercer esta profissão O advogado tem por principal dever de seu cargo defender a causa do cliente isto é deduzir razões e provarás em favor O magistrado pelo contrário deve ser um homem impassível por cuja mente nunca passasse uma idéia de injustiça o menor pensamento de sofismar coisa alguma neste mundo823 Qual a metáfora mais apropriada ao comportamento de Varnhagen de acordo com as suas próprias valorações Juiz ou advogado Não parece haver muito espaço para dúvida Aparentemente segundo seus próprios critérios Varnhagen parece comportarse como um advogado Certamente que narrando a partir de um ponto de vista específico como narra ele não pode ser esse juiz imparcial Voltando 822 HOBSBAWM diz que seria bastante irreal esperar que os estudiosos se abstenham de agir como advogados especialmente quando não apenas acreditam como é frequentemente o caso que se deva argumentar com base no patriotismo ou algum outro compromisso político mas que isso é real mente válido porém embora não haja dúvida que os acadêmicos continuarão a agir como advoga dos com maior ou menor convicção e embora um componente de advocacia seja inseparável de todo o debate é preciso ter bem clara a diferença entre a advocacia e a discussão científica conquanto engajada HOBSBAWM Eric J Sobre história São Paulo Companhia das Letras 1989 p145 823 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p107108 Horizontes Identitários 242 o argumento contra ele mesmo Varnhagen pode ser pensado como um advogado cujo cliente é o Estado monárquico perante o qual ele se vincula como verdadeiro procurador que defende interesses estatais O pragmatismo que caracteriza sua obra efetivamente o impulsiona nessa direção Há apenas um deslize nessa aparente função de historiadoradvogado da nação quando Varnhagen opta por advogar em causa própria dedicando um capítulo inteiro da História Geral do Brasil a seu pai deixando inteiramente de lado qualquer imparcialidade824 Entretanto não o faz sem certo constrangimento buscando justificar perante o leitor o deslocamento de enfoque825 O diálogo com o leitor assume dessa forma conotação diversa daquela a qual ele buscava a identificação e a comoção através da tragédia ou do ato de superação do herói Em alguns momentos ele chega a explicitar a ideia de que cabe ao leitor ou aos vindouros decidir a validade de sua exposição826 Essa perspectiva corrobora o ponto de vista de que Varnhagen advoga mais do que julga pelo menos nos momentos mais propositivos de seu texto Pensando em Varnhagen como um advogado poderia ser dito que sua 824 Varnhagen explicitamente tenta reabilitar a memória de seu pai afirmando que Os fatos singela mente documentados irão provando a nosso ver suficientemente que a glória de ser o executor dos projetos do Sr D João estava reservada a um engenheiro distinto ao qual não nos impedirão de render a merecida justiça os laços de sangue Tributar justiça devida a memória de quem tão bem serviu é dever do historiador e mal dele se os receios de passar por imodesto superam em tal momento aos nobres sentimentos de piedade filial Trate de provar quanto assevera que a tarefa é tão melindrosa e narrando só a verdade não se cubra de pejo nem de hipocrisia quando não fez profissão do voto de humildade E Deus que lê em todos os corações sabe quão longe estávamos quando concebemos a idéia desta obra de imaginar que deveríamos nela e até em seção exclusiva dela ter que consignar tais serviços VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhoramentos 1959 p186187 825 Assim ele dirá que Basta porém sobre este assunto E se nos alargamos demasiado se a pena não pode conterse a seguir os impulsos do coração se dissemos mais do Ipanema e de seu benemé rito engenheiro do que desejavam saber os leitores desculpa merece quem crê em consciência que cometeria uma grande injustiça e quase uma impiedade se tivesse tratado de ser menos extenso neste assunto que diz respeito ao seu progenitor e até ao lugar do seu nascimento Ibid p 199 Para outra visão sobre esta questão ver CEZAR Temístocles Em nome do pai mas não do patriarca ensaio sobre os limites da objetividade na obra de Varnhagen In História São Paulo v24 n2 p207240 2005 Disponível em httpwwwscielobrscielophppids010190742005000200009scriptsciart text 826 Quando Varnhagen discute a questão indígena afirma que Sabemos quanto cumpre na história não desculpar os erros e quanto os exemplos que nos levam a aborrecer o vício são quase de tanta instrução como os que nos fazem enamorar das ações virtuosas mas temos o hábito de esquadrinhar o lado desfavorável dos fatos para depois contar como verdade o que se maliciou é repreensível ten dência do ânimo que em vez de artifício inculca existência de peçonha Está porém reservada aos nossos vindouros a tarefa de condenar ou de justificar o proceder dos antepassados segundo por fim venham conduzirse com os índios que ainda temos VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 219 Salah H Khaled Jr 243 perspectiva faz com que olhe para o passado com a lente do presente buscando nele aquilo que possa justificar e legitimar a sua causa os interesses de seu cliente Ele está ciente do problema que o anacronismo representa mas isso não impede o exercício da projeção pois o pragmatismo fala mais alto827 Logo mesmo ciente isso não impede a projeção identificação de ideais nacionalistas na colônia nem tampouco o lamento pela não adoção de medidas que poderiam ter favorecido o país e adiantado a Independência Suas avaliações feitas a partir de um Brasil independente nos oitocentos interpretam os fatos em função do ideal de Brasil que ele tem para o presente e para o futuro de acordo com uma visão estatal Essa é portanto uma das faces de Varnhagen a de advogado que pode ser voltada contra ele a partir de seus próprios critérios do que consiste o ofício Isso pode ser inferido pela subjetividade de suas análises por considerar que qualquer sacrifício é justificável na medida em que favorece o seu cliente Em definitivo da invasão holandesa resultou algum proveito ao Brasil Grande responsabilidade que envolve a resposta quando ao pensar dála como que acometem os nossos ouvidos lamentos de tantas vítimas chorando a perda dos parentes dos seus bens e até algumas da própria honra Confessamos que o primeiro impulso do nosso coração é o deixar a pena e chorar com elas Infelizmente porém a civilização humana semelhase em tudo ao homem nasce chorando e chorando e sofrendo passa grande parte da infância até que se educa e robustece Se pois nos conformarmos com esta lei indeclinável reconheceremos que o Brasil pagava então grande parte do seu tributo E não há dúvida que passados esses choros e esses sofrimentos se apresentou mais crescido e mais respeitável havendo para isso concorrido poderosamente os grandes e continuados reforços de colonos ativos e vigorosos de vários terços ou regimentos que vieram da Europa e cujos indivíduos pela maior parte ficaram no Brasil o que perfez um número superior aos dos mortos nos campos de batalha828 827 Varnhagen várias vezes justifica determinadas ações devido ao que chama de ideias do tempo como é o caso das acusações de perseguição feitas a Pombal Ele considera as acusações de perse guição a inimigos políticos injustas Mas os que assim pensam pretendem que há mais de um século se pensasse como hoje e esquecemse de que deviam ser quase crimes de lesa majestade o haver primeiro revelado os projetos de casamento da herdeira e o último nada menos do que certos planos de elrei de fazer passar a sucessão da coroa a seu neto o príncipe D José VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhoramentos 1959 p247 828 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p9899 Horizontes Identitários 244 O pragmatismo que pauta sua avaliação é latente Não há imparcialidade e distanciamento O que importa sobretudo é legitimar o Brasil independente e monárquico a partir de um Brasil mítico que ele configura no passado gravando uma memória da nação conforme convém ao seu ponto de vista no presente Entretanto apesar de tudo isso Varnhagen não deixa de considerarse um juiz Um juiz inclusive imparcial Essa insistência na perspectiva jurídica permite relacionar Varnhagen a um terceiro papel que não é o de advogado verboso e florido e muito menos o de um juiz imparcial Não pode ser deixado de lado que Varnhagen não se apresenta sempre como juiz de fato Em vários trechos despersonaliza o juízo e muitas vezes se refere a um julgamento exercido pela história temível poder do qual ele Varnhagen está investido Nesses casos é como se a história julgasse e não ele Assim ao tratar do episódio da traição de Calabar que passou para o lado do inimigo Varnhagen diz que Desses pecados o TodoPoderoso lhe tomaria contas e com sua imensa misericórdia poderá têlos perdoado porém dos males que causou à pátria a história a inflexível história lhe chamará infiel desertor e traidor por todos os séculos dos séculos829 O tom da avaliação assume uma conotação diferenciada Aqui não se avalia não se propõe não se narra somente Sobretudo se condena Essa é a outra face jurídica de Varnhagen a condenação Aqui ele de fato age como juiz Mas que tipo de juiz Um juiz que entende que trair a pátria é um crime além de qualquer redenção um crime que não prescreve e cuja pretensão punitiva é exercida continuamente para todo o sempre pelo Tribunal da História Um juiz que entende que a traição à nação é uma dívida para com a pátria que jamais será saldada Ou seja um pecado para o qual não há expiação Em outro trecho ao tratar de Nassau Varnhagen novamente despersonaliza um julgamento que de fato é exercido por ele A história mestra da vida e conselheira dos povos e príncipes do porvir não pode deixar de reprovar tão feio proceder que veio a dar motivo para justas represálias830 A história segundo ele seria a instância última de julgamento dos homens Mas se a história é um tribunal como ela se associa com as noções de justiça 829 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 830 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 322 Grifo nosso Salah H Khaled Jr 245 e imparcialidade valores a que Varnhagen tanto se refere Qual é afinal o sentido do julgamento na narrativa nacional e mais ainda qual o sentido da condenação Há um segmento que permite uma reflexão interessante sob esse aspecto pois é referido por Varnhagen que Tanto é certo que também os tribunais e congressos podem algumas vezes ser despóticos e talvez bem estudada a história da humanidade se ache que mais vezes o hajam sido do que os reis com responsabilidade direta para Deus a própria consciência os povos as nações contemporâneas e a história831 Mas e quanto ao Tribunal da História dirigido por Varnhagen É ou não é despótico Será ele regido por um critério de verdade e imparcialidade absolutas como Varnhagen tanto reitera A primeira hipótese parece muito mais verossímil A função pedagógica exercida por Varnhagen através do poder em que é investido como historiador da nação faz com que ele reprove os atos censuráveis e os condene ao escárnio e desprezo eternos A história grava registra eterniza nomes em uma galeria de culpados verdadeiramente perene Varnhagen emite sentenças de acordo com critérios de ordem pragmáticoconservadora O mesmo juízo pragmático que constitui o herói como modelo de comportamento deve assim fazer com que os indivíduos que não agiram em conformidade com o que se esperava deles também assumam função modelar com a diferença de serem exemplos negativos Cumprenos dizer que logo depois que o Maranhão foi libertado pelo esforço de seus bravos habitantes e dos seus vizinhos do Pará e apenas disso se teve notícia o miserável donatário de Tapuitapera que nenhuma ajuda havia dado aos que assim combatiam por arrancar das mãos dos holandeses a sua capitania a estes subordinada em vez de enviar presentes e recompensas ao seu libertador Antônio Teixeira de Melo passou a acusálo ante os tribunais e o miserável donatário era nada menos que um desembargador cujo nome deve a história deixar gravado para memória e escarmento Chamavase Antônio Coelho de Carvalho832 Percebese em Varnhagen uma verdadeira intenção preventiva uma função quase simbólica do ato de julgar na medida em que condenações como esta servem 831 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 141 832 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 331Grifo nosso Horizontes Identitários 246 de desestímulo para a prática de atos semelhantes Entretanto isso não faz com que em momento algum Varnhagen deixe de se considerar um juiz justo e imparcial alusão por ele várias vezes referida Assim vai dizer e deixando que os louros da vitória ornem a frente dos principais caudilhos justo é que deles nos ocupemos dando a cada um com imparcialidade histórica o quinhão de justiça e de consideração que lhe caiba833 Todavia apesar de sua pretensa imparcialidade os exemplos extraídos de sua própria obra o desmentem Sua percepção da Revolução Pernambucana por exemplo é de uma intolerância extremada que revela um rigor inimaginável para quem se diz imparcial Sabemos que está de moda adular os anais pernambucanos com a proeza dessa revolução Que esteja havemos sempre de dizer a verdade segundo nola ditar a consciência e embora isso nos possa custar alguns dissabores nunca serão eles tão grandes como seriam os do espírito capitulando covardemente contra as próprias convicções Vão decorridos já quarenta anos depois desta insurreição e os sucessos narrados com pouco exame a vão convertendo em um mito heróico de patriotismo não brasileiro mas provincial sem fundamento algum A verdade é só uma e há de triunfar em vista dos documentos que aparecendo e dos protestos dos homens comprometidos mas probos e ilustrados e mais prudente é não elevar tantos altares para depois se derrubarem e profanarem A missão do historiador não é lisonjear nem adular a ninguém e menos aos vivos no país ou antes neste a meia dúzia de gritadores apaixonados e parciais O historiador que esquadrinha os fatos e que depois de os combinar e meditar sobre eles os ajuíza com boa crítica e narra sem temor nem prevenção não faz mais do que revelar ao vulgo verdades que ele naturalmente acabaria por revelar do mesmo modo sem os esforços do historiador dentro de um ou dois séculos834 Para Varnhagen o historiador antevê um juízo eminentemente verdadeiro e que acabaria por revelarse com a passagem do tempo Não adula não lisonjeia apenas se conforma a um critério de verdade Verdade enquanto inversa ao erro enquanto desprovida de subjetividade e estritamente produto da imparcialidade Logo inequívoca Inclusive Varnhagen se considerava um verdadeiro parâmetro de imparcialidade como a afirmativa a seguir demonstra 833 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 94 Grifo nosso 834 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p150 Salah H Khaled Jr 247 A latiníssima História dos oito anos de governo de Nassau por mais que corram os séculos será sempre um livro importante e digno de consultarse Barlaeus Para ser porém considerado como historiador imparcial desse período faltoulhe obedecer ao preceito audietur altera pars835 Em outro trecho lamenta a falta de dados em relação a certas capitanias as quais possam servir sequer para o historiador imparcial provar que não por esquecimento deixa de cuidar delas836 No entanto apesar de tais pretensões a fragilidade em que se estrutura a imparcialidade de Varnhagen demonstrase de forma aguda quando ele volta suas críticas a obras alheias críticas que com imensa facilidade podem de fato ser voltadas contra ele mesmo Ao analisar a obra do Padre Mestre Fr Manuel Calado que trata da restauração pernambucana de 1646 Como testemunha de vista deve esse autor ser consultado mas sempre com o possível tento e critério Ministro de uma religião toda de paz e tolerância mostrase de ânimo pequeníssimo contra os que não eram seus amigos partidário de Fernandes Viera comprometeo com seu pouco tino quando mais o pretende exaltar e prestase até a denegrir aos da parcialidade rival acusandoos de assassinos Além disso falta muitas vezes à dignidade histórica dedica páginas inteiras a muitos contos sem importância e crê ou finge crer em todos os boatos que para exaltar o povo miúdo contra os holandeses se faziam correr nos acampamentos Nem é mais feliz nem muito mais elevado nos cantos épicos em oitava rimada que em favor do seu herói estresssacha em vários lugares do seu livro 837 São críticas que revelam uma incapacidade do próprio Varnhagen em censurarse uma vez que o mesmo poderia ser dito de muitos trechos da História Geral do Brasil No entanto não são poucas as ocasiões em que Varnhagen tece julgamentos semelhantes a outros autores838 Mesmo quando Varnhagen elogia suas 835 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 100Grifo nosso 836 Ibid p140141 Grifo nosso 837 Ibid p 101 Grifo nosso 838 Varnhagen afirma por exemplo ao falar de D Manuel que ele ocupase de competência e jurisdi ção entre as autoridades de nacionalidade diferente que tão pouco nos são hoje de nenhum interesse Leva páginas inteiras justificandose de um modo apaixonado de atos seus ou de outros não neces sários de mencionar Ibid p102103 Horizontes Identitários 248 fontes privilegiadas do Brasil Colonial no século XVI839 ou seja Gabriel Soares840 e Fernão Cardim841 não deixa de fazer reparos muitos deles extremamente severos Já em relação à obra de Alexandre Rodrigues Ferreira que fez uma expedição ao Amazonas Varnhagen afirma que hoje de pouca importância poderia ser a maior parte desses escritos atrasados em relação às ciências e mesquinhos pela forma com que estão redigidos por mais ostentoso que nos apresente seu largo catálogo842 Evidentemente ainda que Varnhagen se comporte como um advogado da nação que defende seu cliente na medida em que rotula condena e portanto exerce sanções em nome do Tribunal da História ele também se comporta como juiz Varnhagen efetivamente transita entre tais papéis Dessa forma o poder exercido pela escrita da narrativa da nação possibilita inclusive a Varnhagen enquanto juiz do Tribunal da História acolher recursos contra si mesmo e invalidar juízos feitos no passado reabilitando para a história quem ele considera merecedor Se com um e outro os homens estiveram demasiado rigorosos se curtas miras de vinganças por interesses ofendidos influíram na final sentença mais do que as razões de Estado e se eles eram bons e queriam o bem a justiça divina superior a todos e a tudo os terá por certo galardoado sempiternamente A história por sua parte não pode em todo o caso deixar de simpatizar com estas almas generosas tratadas tão cruelmente Manuel Bequimão subiu ao patíbulo como verdadeiro herói Com toda serenidade declarou nos últimos instantes 839 Para ele As obras de Gabriel Soares e de Fernão Cardim não só se devem considerar como gran des produções literárias de primeira ordem no século XVI mas também principalmente em relação ao nosso fim como verdadeiros monumentos históricos que nos ministram toda luz para avaliarmos o estado da colonização do nosso país na época em que escreveram o primeiro em 1584 e o segundo um ano antes VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p 11 840 Varnhagen diz que Seja embora rude primitivo e pouco castigado o estilo de Soares confessamos que ainda hoje nos encanta seu modo de dizer e ao comparar as descrições com a realidade quase nos abismamos ante a profunda observação que não cansava nem se distraia variando de assunto Ibid p 12 841 Aqui Varnhagen considera que A obra de Fernão Cardim que só viu a luz em Lisboa em 1847 com o título posto pelo editor o próprio autor desta história de Narrativa epistolar por constar verda deiramente de duas cartas que dirigiu ao provincial da Companhia de Portugal é seguramente mais insignificante e destituída de mérito científico que a precedente entretanto recomendase pelo estilo natural e fluente e pela verdade da pintura feita com os objetos à vista e as impressões ainda de fresco recebidas dos encantos virgens que regalavam os olhos de quem acabava de deixar a Europa nos fins do inverno Ibid p 13 842 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p275 Salah H Khaled Jr 249 que pelo Maranhão dava satisfeito a vida Palavras solenes que eternamente encontrarão eco e simpatia não só entre os maranhenses como em todos os corações bem formados843 Entretanto se Varnhagen é um juiz é um juiz extremamente severo e duro com aqueles que afrontam os princípios que lhe são caros que ofendem os seus valores Inclusive não se furta de desmerecer os demais juízes para engrandecer a si próprio Por vezes é extremamente irônico844 Varnhagen não admite contradição Ele é por excelência o detentor último da verdade Na medida em que busca matar a diferença erradicar a heterogeneidade e estabelecer um padrão de indivíduo através da narrativa da nação Varnhagen de fato se aproxima de um tipo específico de juiz o juiz inquisidor Aqui um raciocínio parece pertinente assim como o modelo de monarquia que Varnhagen defende é o de uma monarquia absolutista nos moldes do século XVI e sua concepção de história é providencial em função do mesmo conservadorismo seu entendimento da função de juiz e do ato de julgar também remete a outro parâmetro que não o da modernidade Quando pensadores como Beccaria começaram no século XVIII a questionar o autoritarismo e lenta e gradualmente foi se impondo a partir de pensadores como Montesquieu uma nova concepção de julgamento sua característica maior foi a de estabelecer a lei como limite Com a ideia de legalidade ninguém poderia mais ser condenado a não ser que praticasse uma conduta anteriormente tipificada pela lei enquanto crime cabendo ao juiz apenas aplicar a lei ou como dizia Montesquieu ser a boca da lei Essa concepção representou um grande avanço face ao autoritarismo dos modelos inquisitórios no quais os homens se viam indefesos diante do exercício do poder Varnhagen está alheio a essa concepção O seu pensar jurídico é um pensar que não conhece contradição e perante o qual não há limites Como juiz Varnhagen se coloca em posição única e privilegiada de atribuir o significado que bem entende aos fatos independentemente de quaisquer freios Varnhagen é um juiz que não está 843 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 252 844 Este é o caso quando ele comenta que Daí a mais de meio século quando pelos esforços dos intrépidos paulistas as minas rendosas começaram a ser descobertas e que os inúteis esbanjamentos de D Francisco estavam esquecidos lembrouse um seu herdeiro com proteção na corte de requerer pelos serviços do seu avô o título de Marquês das Minas o qual lhe foi conferido pelo rei Ignoramos se este título in partibus ainda existe em Portugal Se existe não é por culpa nossa que a história diz que ele está bem longe de significar uma glória nacional conforme para a honra das nações monárquicas convém que suceda aos títulos que se declaram hereditários VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p 121 Horizontes Identitários 250 ciente da necessária separação entre as funções de julgar e acusar característica do padrão moderno de prestação jurisdicional Como se isso não bastasse é como se Varnhagen não fosse apenas o juiz mas também o legislador pois é ele que determina as normas de conduta determina o que implica sanção ou não Dessa forma como é muitas vezes o caso na elaboração legislativa da lei Varnhagen atribui uma função simbólica uma função de controle social à sua narrativa na medida em que a condenação não é somente sobre o passado mas também ameaça de juízo desfavorável no presente o que configura o seu caráter preventivo Raramente esse juízo condenatório deixa de assumir requintes de crueldade845 Dessa forma novamente voltando às metáforas de Varnhagen contra ele próprio a abordagem adotada ao tratar da Inquisição permite elaborar um pouco mais a crítica às suas alusões jurídicas Diz ele que em Portugal a Inquisição seguia como antes cevando seu furor em algumas vítimas enviadas do Brasil846 A avaliação que ele faz da instituição é implacável até porque entende que a mesma se posicionava contra os objetivos do Estado assim como havia sido com os jesuítas847 Varnhagen tece críticas pesadas à forma com que eram realizados os processos848 Assim ele vai dizer que 845 Uma das raras exceções é o caso de Nassau Varnhagen demonstra rara tolerância dizendo que não podemos por em dúvida este fato da sua vida que nada o honra e que veio a fazer diminuir em nós o respeito e quase estima que tínhamos por esse chefe inimigo VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p 322 846 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p23 847 Varnhagen afirma que A primeira providência que acudia à mente do governo de Madrid foi uma ordem para que em Lisboa se fizessem preces e se castigassem os delitos inclusive pela repartição do Inquisidorgeral Não nos indignemos nem nos riamos Eram as idéias do tempo na metrópole e na corte e demonos por mui felizes de não termos vindo ao mundo no tempo em que a nossa terra estava sujeita a tais influências O próprio rei em meio de seus folquedos proverbiais era escravo submisso da inquisição VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p 235 848 Varnhagen relata que Os processos da justiça eram no estilo das sentenças tudo mistério cha mavase o réu e em vez de se lhe revelarem as culpas de que era acusado intimavaselhe que se confessasse que se expusesse tudo em desabono da religião que tinha dito ou ouvido ou praticado à primeira resistência seguiamse as algemas apertadas ao torniquete depois os tratos de polé de água fervente por fim o infeliz começava a delatar Tudo quanto revelava era logo escrito todos os cúmplices de que fazia menção eram imediatamente mandados buscar e recolher aos cárceres Mas o acusado tendo comprometido já muita gente ainda não havia acertado com a falta por que fora preso Voltava pois a ser perguntado sua memória não o ajudava ou sua língua titubeava receosa de comprometer mais amigos Era outra vez posto a tratos declarava que tinha mais revelações a fazer Novos desenganos e novos comprometidos Assim às vezes de uma povoação mais de metade tinha que ser ao menos chamada a delatar E aí do que entrava por aquelas horrendas portas Todos daí em diante o evitavam temerosos de adquirir nome suspeitoso VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhoramentos 1959 p25 Salah H Khaled Jr 251 Detenhamonos porém agora um pouco e discorramos que sociedade ou povo podia ser feliz pensar escrever discutir desenvolverse engrandecerse com uma tão monstruosa instituição só própria para escudar a maldade e a hipocrisia e para com os competentes abusos dos espias ou familiares satisfazer vinganças individuais e produzir a desconfiança e a estagnação nas relações de comércio e nas individuais também Nem os reis podiam domar a fúria do tribunal e não nos devemos admirar de que nesses tempos de superstição não pudessem muitos reis arrostar o fanatismo religioso quando em nossos dias alguns tiveram que deixarse dominar pelo fanatismo político849 De fato Varnhagen se mostra severo com a Inquisição e seriam muito poucos os que se defenderiam a instituição diante da intolerância que a mesma historicamente demonstrou850 Entretanto é exatamente aí que reside o problema pois a forma com que Varnhagen julga sem admitir contrariedade mostrandose inteiramente intolerante diante dos movimentos populares e de tudo que não se conforma ao padrão de homem e de sociedade que ele estabelece tudo isso aproxima Varnhagen enquanto juiz de um juiz inquisidor e o afasta inteiramente do ideal de imparcialidade que ele pretende seguir que é por excelência eminentemente moderno Além disso e talvez sobretudo há a questão da prefiguração e aqui parece pertinente a análise de Franco Cordero sobre o juiz inquisidor A solidão na qual os inquisidores trabalham jamais expostos ao contraditório fora dos grilhões da dialética pode ser que ajude no trabalho policial mas desenvolve quadros mentais paranóicos Chamemoos primado da hipótese sobre os fatos quem investiga segue uma delas às vezes com os olhos fechados nada a garante mais fundada em relação às alternativas possíveis nem esse mister estimula cautelarmente a autocrítica assim como todas as cartas do jogo estão na sua mão e é ele que as coloca sobre a mesa aponta na direção da sua hipótese Sabemos com quais meios persuasivos conta usandoa orienta o êxito para onde quer851 849 Ibid p25 850 Varnhagen relata o furor com que os esbirros da Inquisição começavam a perseguir o povo espe cialmente depois da chegada em 1702 do Bispo D Francisco de São Jerônimo que acabava de ser qualificador da Inquisição de Évora e aí tomara o gosto a tão sanguinolentas abominações que melhor pode prosseguir no Rio exercendo mais de uma vez interinamente o cargo de governador VARNHA GEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhoramentos 1959 p 324 851 CORDERO Franco Guida alla procedure penale Torino UTET 1986 p51 Horizontes Identitários 252 Assim como no caso dos juízes inquisidores a verdade está prefigurada aprioristicamente por Varnhagen de acordo com uma série de princípios que ele estabelece como dogmas que não admitem contradição e como tais implicam em pesadas sanções para o herege Eis aí o primado da hipótese sobre os fatos Varnhagen sabe que tem uma nação a inventar já sabe em que moldes e de acordo com o que tem que inventála a partir daí busca no passado as fontes que irão lhe permitir provar a sua hipótese Ele já tem o guia já tem o norteador dado pelo seu pragmatismo extensivamente discutido nos trechos anteriores Munido de tais verdades ele prefigura o passado julga condena e estabelece continuidade de forma arbitrária Trabalhando na solidão e abominando o contraditório o qual ele jamais admitiu em relação a sua obra e valendose de recursos persuasivos que produzem identificação com o todo da nação Varnhagen elabora uma narrativa da nação usando e abusando dos meios que tem à sua disposição Varnhagen não é apenas um juiz Varnhagen é o juiz inquisidor do tribunal da história autor do grande relato da nacionalidade destinado a eliminar a diferença e conformar mediante o estímulo aos bons atos e ameaça de condenação o cidadãosúdito ordeiro do Império Salah H Khaled Jr 253 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo da análise aqui desenvolvida foi observada a elaboração de uma narrativa nacional por parte da historiografia oitocentista sendo que o desenvolvimento deste grande relato da nacionalidade foi orientado por um horizonte pragmático que ditava a sua escrita Esse horizonte pragmático encontravase ligado à legitimação do Estado monárquico e da autoridade de D Pedro II a partir de um discurso construído por uma instituição verdadeiramente oficial o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro Com base em tais pressupostos de ordem política a construção de uma narrativa da nacionalidade procurava atribuir sentido e significado ao todo imperfeito e heterogêneo da nação visando à erradicação da diferença e a subordinação das partes ao Império e portanto à autoridade centralizada da Monarquia Buscavase dessa forma contribuir para a manutenção da integridade do território nacional A ideia de uma história que integra e une o que é disperso é o espírito por trás de uma história geral Por isso tratase de um discurso que elabora a unidade e que abrange todas as capitanias Entretanto é uma integração que nega seus aspectos regionais Nega portanto a diferença Essa opção se evidencia pela própria estrutura da obra caracterizada por capítulos com títulos genéricos que possibilitam a reunião de informações dispersas sem relação direta entre si Logo é uma narrativa que não reconhece a diversidade suprimindoa em nome de uma unificação de ordem arbitrária que busca construir um espaço homogêneo e uno no imaginário do leitor de forma que este perceba o país como um todo no qual não há lugar para a diferença sempre tratada de forma intolerante através de termos como pernicioso bairrismo ou mandonismo local Esse aspecto de negação da diversidade também transparece através do ideal assimilacionista do qual se espera que eventualmente o outro seja absorvido pela etnia do colonizador português configurando assim a unidade também sob o aspecto étnico além da sujeição no âmbito político Horizontes Identitários 254 Para que a narrativa desenvolvida a partir dos esforços do IHGB fosse bem sucedida nesse intuito deveria estar ligada sobretudo à ideia de nação Uma nação a ser inventada pela narrativa nacional mas que devido às especificidades brasileiras deveria conter um componente de prefiguração acentuado para ser percebida como legítima e ligada à autoridade do Estado desde os tempos coloniais A narrativa nacional é assim construída para produzir identificação para fazer com o que o leitor se reconheça no passado por ela sistematizado e mais ainda que se orgulhe desse passado A História Geral do Brasil é narrada como uma história de afirmação da nação brasileira sob a égide da monarquia e como um grande Império Todos os elementos da narrativa apontam para esse fim imanente predestinado a concretizar se como se concretizou nos oitocentos segundo o ponto de vista de seus autores Dessa forma Varnhagen procura desde o princípio de seu relato atrelar a nascente nação ao Estado associando o seu nascimento a uma colonização que contrapunha civilização e barbárie e estabelecendo como único modelo possível a reprodução do padrão europeu de sociedade Esse processo de imposição da civilização a uma natureza hostil é narrado por Varnhagen como uma verdadeira odisseia na qual são enaltecidos os feitos dos portugueses diante de um território dominado pela barbárie Evidentemente em meio a esse processo de ocupação e estabelecimento de soberania Varnhagen preserva o vínculo com Portugal pois a ancestralidade europeia deve ser valorizada bem como a legitimidade da autoridade do Imperador Além do seu horizonte identitário conservador a narrativa nacional desenvolvida por Varnhagen a partir dos referenciais do discurso de Barboza e do artigo de Martius tem como característica marcante a busca por agregar o que é disperso através de estratégias de convencimento Tratase de uma narrativa munida de um conjunto de efeitos de sedução orientados para produzir um sentimento de identificação com a nação O sentido paradigmático e exemplar do relato funciona a partir de um tripé argumentativo que é a estrutura tragédiainimigoherói A tragédia assume conotação exemplar na medida em que aponta as terríveis consequências que resultam dos atos que não estão em conformidade com o modelo de nação e ação cívica posto pelo Estado bem como para ressaltar através da empatia as dificuldades com que os ancestrais se depararam e logo a necessidade de fazer jus às suas façanhas Esperase que o leitor seja tomado de comoção e simpatia Salah H Khaled Jr 255 que compartilhe as dificuldades da colonização e se orgulhe do feito realizado pelos portugueses seus antepassados O binômio nossosinimigo possibilita uma outra espécie de identificação e logo é mais uma característica chave para a compreensão da narrativa nacional de Varnhagen É a partir dessa contraposição em que não são colocados face a face civilização e barbárie mas sim soberania nacional e invasor que Varnhagen trabalha especificamente a questão da identificação nacional O binômio nossosinimigo permite a fundação identitária em dois sentidos de um lado o reconhecimento de qualidades próprias dos nossos produz emancipação e logo identificação de outro lado o inimigo funda identidade através da contraposição ao outro diferente e dotado de outras qualidades geralmente pejorativas a quem se deve resistir e se possível derrotar Também é possível perceber que há uma diferença na utilização de um termo no plural e outro no singular Os nossos são um plural singularizado por um objetivo comum O inimigo é apenas singular Os nossos assumem um caráter de pluralidade que age conjuntamente em nome de fins comuns dados pelo todo pelo Estado nossos é assim empregado com caráter de coletividade e de subordinação da individualidade a ela já no caso do inimigo utilizado no singular é negada uma referência dessa espécie pois o termo vale somente como contraposição aos nossos e logo não há necessidade do plural Essa dupla dimensão de fundação identitária permite inclusive uma percepção melhor de como são retratados os negros e indígenas na narrativa nacional Diante desse binômio o não reconhecimento da qualidade de inimigo aos indígenas e negros e logo o não estabelecimento dessa contraposição tão acentuada na narrativa demonstra a indiferença nesse caso não há pretensão de vitória ou emancipação mas sim de assimilação A estes não se reconhece a condição de outro mas sim vislumbrase seu eventual desaparecimento Logo a integração é na realidade uma exclusão Entretanto o sistema comporta uma exceção na medida em que o indígena e negro abrem mão de sua identidade passam a estar incluídos a fazer parte da categoria dos nossos É o caso de Henrique Dias e Filipe Camarão Todavia a própria integração comporta uma dimensão de indiferença e logo também de exclusão na medida em que só há inclusão quando se abre mão da condição de diferente Finalmente o terceiro elemento o papel desempenhado pelo herói na narrativa da nação de Varnhagen Ao contrário do que já foi discutido por outros comentadores Horizontes Identitários 256 não parece que Varnhagen tenha elaborado uma história dos grandes homens e de seus feitos Em primeiro lugar porque ele sempre subordina a ação individual aos objetivos postos pelo Estado e sendo assim a glorificação de iniciativas privadas não é sequer compatível com a sua concepção de história estruturada em torno das ideias de providência e EstadoNação Parece claro que não sobra muito espaço de mobilidade para o indivíduo diante de tal concepção A impressão é a de que Varnhagen construiu um sistema de pensamento orientado por seus objetivos pragmáticos e convicções políticas e que de tal forma procurou no passado os exemplos que contribuíssem para a elaboração de tal sistema São exemplos que em larga medida ele constitui a partir de sua própria interpretação e subjetividade Portanto parece que acima de tudo o herói vale pela função que desempenha na narrativa Ele vale na medida em que é um exemplo que estimula um determinado tipo de comportamento que se conforma a um padrão de conduta que implica sacrifício em nome da nação justamente o que Varnhagen quer incentivar Ele próprio afirma várias vezes que sua intenção é escrever um livro útil e estabelecer paradigmas de comportamento Portanto não são os homens propriamente que importam mas sim o sentido que fundam a tradição que estabelecem a memória que permitem cristalizar Além disso ele deixa claro que o desprendimento em nome da nação é eventualmente contemplado pela incorporação na narrativa nacional e assim de certa forma sinaliza com a possibilidade de eternização de quem se sacrifica Nesse sentido sua narrativa constituise em uma verdadeira pedagogia social pois está revestida de uma lógica paradigmática inegável Embora toda narrativa que se valha de argumentos contenha elementos de persuasão no caso da narrativa nacional tais elementos não se limitam a apenas convencer o leitor da validade da exposição pelo contrário os argumentos e as estratégias de convencimento procuram verdadeiramente moldar o leitor conforme o padrão desejado pelo narrador A história de Varnhagen não é uma história dos grandes homens por um motivo simples não há espaço para uma pluralidade de protagonistas na sua narrativa nacional Ao contrário só há um protagonista por excelência o Brasil uno e homogêneo sob a autoridade do Estado e prefigurado como tal desde os tempos coloniais Quando Varnhagen se utiliza de um herói como exemplo a ser imitado é como se o Brasil por ele inventado se personificasse em alguém que age em um nível micro em função de seus objetivos oficiais Sempre que o Brasil idealizado por Varnhagen se vê diante Salah H Khaled Jr 257 de um outro personagem que de alguma forma se contrapõe a seus interesses a narrativa tem que encontrar formas de acomodálo É o caso de Portugal dos jesuítas e dos movimentos rebeldes Quando é possível a compatibilização não há problemas Entretanto uma vez que esta se mostra inviável Varnhagen é intolerante Essa perspectiva poderia se dizer utilitária de interpretar os fatos faz inclusive com que Varnhagen seja ambíguo em relação a certos personagens como o Padre Vieira e Tiradentes oscilando entre a condenação e o elogio conforme a situação apresentada Sob esse mesmo aspecto não é surpreendente que para ele exista uma equivalência entre a transferência do Estado português para o Brasil e a independência É essa mesma concepção pragmática que faz com que Varnhagen subordine sua concepção de nação ao Estado O Brasil de Varnhagen não é um BrasilNação mas sim um BrasilEstado Varnhagen considera a partir de uma perspectiva nitidamente hegeliana que o sacrifício em nome do Estado é uma espécie de dever universal e entende que esse Estado como uma realidade superior pode inclusive reivindicar a vida do indivíduo e exigir tal sacrifício Diante desse critério somado à acentuada diversidade étnica do país não é surpreendente que a sua concepção de nação aponte para a ideia de vontade e não de etnia pois basta conformidade com a vontade do Estado para obter o reconhecimento Nesse sentido de fato não há radicalismo no nacionalismo de Varnhagen como ele mesmo aponta O que ele chama de espírito público é essa capacidade de unirse em torno dos interesses oficiais postos pelo Estado atrelando a ele as noções de pátria e patriotismo O horizonte de realização pragmática de sua obra é o de formar um leitor nacionalista Nacionalista com essa conotação específica de sujeição ao interesse estatal É por isso que Varnhagen apesar de seu ponto de vista quanto aos advogados é um advogado do EstadoNação Não há qualquer imparcialidade em relação aos objetivos que ele defende Varnhagen efetivamente se põe a serviço do Estado como um intelectual comprometido com a realização de uma sociedade nos moldes que seu conservadorismo defende Nos momentos mais propositivos na prefiguração da nação e no conceito favorável emitido por quem se conforma ao padrão desejado não há dúvida que Varnhagen se comporta como advogado verdadeiro procurador do Estado monárquico Entretanto não é apenas essa face que as metáforas jurídicas do próprio Varnhagen permitem voltar contra ele pois a sua escrita conhece um outro lado o da condenação que assume caráter de sentença É sob esse aspecto que Varnhagen Horizontes Identitários 258 demonstra toda a sua intolerância e radicalismo diante daquilo que desafia suas convicções conservadoras O papel que Varnhagen desempenha é nesse sentido o de um juiz inquisidor Seu único critério de julgamento e de formação de convicção é a sua própria ideia do que é verdadeiro e sagrado e portanto dogmático A recusa em se conformar ao padrão estabelecido o desrespeito aos objetivos estatais a tentativa de dar vazão a iniciativas que não se enquadram ou desafiam as suas convicções só pode significar um pecado para o qual não há absolvição Detentor do poder máximo e inquestionável de juiz inquisidor do tribunal da história Varnhagen sentencia e julga sem admitir contradição elaborando discursivamente uma condenação já estabelecida a priori de acordo com seus próprios valores sua própria subjetividade A história dos oitocentos configurada como uma narrativa nacional como um grande relato da nacionalidade tinha vocação pragmática por excelência apesar de sua pretensão científica que inclusive permitia tal pragmatismo Sob esse aspecto pode ser dito que a partir de uma perspectiva utilitarista os fins justificavam os meios Ou seja apesar de todas as reservas que podem ser feitas ao conteúdo dessa narrativa ela é em larga medida coerente com aquilo a que se propõe fundar uma ideia de nação de acordo com os objetivos do Império e legitimando a monarquia centralizada enquanto instância máxima e inquestionável do poder O raciocínio pode entretanto ser invertido Se os fins justificam os meios o que pode então justificar os próprios fins A resposta é simples o caráter dos meios empregados Dessa forma a narrativa nacional elaborada nos oitocentos com sua veemente busca de erradicação da diferença de intolerância e recusa da heterogeneidade de recorte e seleção arbitrária de fatos bem como de prefiguração do passado de acordo com os objetivos de uma elite no presente nos diz tudo a respeito de tais fins Diznos tudo a respeito de uma realidade que não interessava somente apreender mas talvez acima de tudo moldar a partir de um padrão de um horizonte identitário imposto de forma verticalizada de cima para baixo Eis o caráter da construção da narrativa nacional brasileira tratase de um esforço discursivo de erradicação da heterogeneidade pela historiografia oitocentista através da elaboração de um grande relato da nacionalidade que buscava em última análise legitimar uma hierarquia excludente Salah H Khaled Jr 259 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU Capistrano de Capítulos de História Colonial Disponível em http objdigitalbnbrAcervoDigitallivroseletronicoscapitulosdehistoriacoloniapdf Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen Visconde de Porto Seguro 1878 In Ensaios e estudos crítica e história 1ª série Rio de Janeiro Civilização Brasileira Brasília INL 1975 ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS Varnhagen Biografia Disponível em 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independC3AAnciaffalse MELO Evaldo Cabral de Uma nova Lusitânia In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta A experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac1999 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrboo ksidfJsptN0PWYCpgPA48dqUmanovaLusitC3A2niavonepageqU ma20nova20LusitC3A2niaffalse Horizontes Identitários 262 MOTA Carlos Guilherme Idéias de Brasil formação e problemas In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta A experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 Disponível parcialmente em http booksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA207IA6dqIdC3A9ias deBrasilformaC3A7C3A3oeproblemasvonepageqffalse NORA Pierre Entre Memória e História a problemática dos lugares In Projeto História São Paulo PUC n 10 p9 dezembro de 1993 Disponível em httpwww pucspbrprojetohistoriadownloadsrevistaPHistoria10pdf ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 Disponível em http wwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 OLIVEN Ruben George Mitologias da Nação In FÉLIX Loiva Otero e ELMIR Cláudio P org Mitos e heróis construção de imaginários Porto Alegre UFRGS 1998 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC Rio de Janeiro FGV 1999 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9o O0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoO ElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB5U TZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258Va saXoibookresul RENAN Ernest Que és una nación Madrid CEC 1982 Versão em inglês do texto disponível em httpwwwcoopereduhumanitiescorehss3erenanhtml RODRIGUES José Honório História e historiografia Rio de Janeiro Vozes 1970 SCHWARTZ Stuart B Gente da terra braziliense da nasção Pensando o Brasil a construção de um povo In MOTA Carlos Guilerme org Viagem Incompleta A experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCp gPA103lpgPA103dqGentedaterrabraziliensedanasC3A7C3A3o sourceblots6yhETIYdcXsignA25vURQTJe3IBZ1GOCYgnU8t1IhlptBRei vpjfSouxOoul8Abp4NBlsaXoibookresultctresultresnum1ved0CAoQ SILVA Helenice Rodrigues A história Intelectual em questão In LOPES Marco Antônio org Grandes nomes da História Intelectual São Paulo Contexto 2003 Disponível em httpbooksgooglecombrbookshlptBRlridfCCwBcC oifndpgPA9dq22Lopes2222GrandesnomesdahistC3 B3riaintelectual22ots4EVkG2eFcqsigX4f7fySi9BDtEN93GMK V75F2svonepageq22Lopes222022Grandes20nomes20da20 histC3B3ria2 Salah H Khaled Jr 263 VARNHAGEN Francisco Adolpho de Ensaio Histórico sobre as Letras no Brasil 1847 Disponível em httpobjdigitalbnbrAcervoDigitallivroseletronicosensaio historicopdf VARNHAGEN Francisco Adolpho de e NETSCHER Pieter MARINUS Les hollandais au Brésil un mot de réplique a M Varnhagen auteur de louvrage intitulé Historia das Lutas com os Hollandeses no Brazil desde 1624 a 1654 par le LieutColonel PM Netscher Disponível em httpwwwbrasilianauspbrbbd handle191801218700 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927 História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhoramentos 1959 História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhoramentos 1959 História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhoramentos 1959 Correspondência ativa Rio de Janeiro Ministério da Educação e Cultura 1961 VERÍSSIMO José História da literatura brasileira Disponível em httpwww bibliocombrconteudoJoseVerissimomhistbrashtm VIOTTI Emília Da monarquia a república momentos decisivos 6ª ed São Paulo Brasiliense 1994 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid RaxGQlNxIo4CpgPA1dqVIOTTIEmC3ADliaDamonarquiaarepC3 BAblicamomentosdecisivosvonepageqffalse WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999
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Salah H Khaled Jr HORIZONTES IDENTITÁRIOS A construção da narrativa nacional brasileira pela historiografia do século XIX IMPRESSO EM 2023 Chanceler Dom Dadeus Grings Reitor Joaquim Clotet ViceReitor Evilázio Teixeira Conselho Editorial Ana Maria Lisboa de Mello Elaine Turk Faria Érico João Hammes Gilberto Keller de Andrade Helenita Rosa Franco Jane Rita Caetano da Silveira Jerônimo Carlos Santos Braga Jorge Campos da Costa Jorge Luis Nicolas Audy Presidente José Antônio Poli de Figueiredo Jurandir Malerba Lauro Kopper Filho Luciano Klöckner Maria Lúcia Tiellet Nunes Marília Costa Morosini Marlise Araújo dos Santos Renato Tetelbom Stein René Ernaini Gertz Ruth Maria Chittó Gauer EDIPUCRS Jerônimo Carlos Santos Braga Diretor Jorge Campos da Costa Editorchefe Salah H Khaled Jr HORIZONTES IDENTITÁRIOS A construção da narrativa nacional brasileira pela historiografia do século XIX Porto Alegre 2010 EDIPUCRS 2010 CAPA Deborah Cattani DIAGRAMAÇÃO Rodrigo Valls REVISÃO Rafael Saraiva Dados Internacionais de Catalogação na Publicação CIP Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Tratamento da Informação da BCPUCRS EDIPUCRS Editora Universitária da PUCRS Av Ipiranga 6681 Prédio 33 Caixa Postal 1429 CEP 90619900 Porto Alegre RS Brasil Fonefax 51 3320 3711 email edipucrspucrsbr wwwpucrsbredipucrs K45h Khaled Junior Salah H Horizontes identitários a construção da narrativa nacional brasileira pela historiografia do século XIX recur so eletrônico Salah H Khaled Jr Dados eletrônicos Porto Alegre EDIPUCRS 2010 263 p Sistema requerido Adobe Acrobat Reader Modo de Acesso World Wide Web httpwwwpucrsbrorgaosedipucrs ISBN 9788574309798 online 1 Historiografia Brasil Século XIX 2 Identidade Naci onal 3 Na cionalidade Brasil I Título CDD 981033 Para Aline de Almeida Motta Khaled meu amor para todo o sempre Salah H Khaled Jr Professor Assistente de Direito Penal e Criminologia da Universidade Federal do Rio Grande FURG Doutorando em Ciências Criminais PUCRS Mestre em Ciências Criminais PUCRS Mestre em História UFRGS Especialista em História do Brasil FAPA Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais PUCRS Licenciado em História FAPA Líder do Grupo de Pesquisa Hermenêutica e Ciên cias Criminais FURGCNPq AGRADECIMENTOS Agradeço à professora Cláudia Wasserman pela inestimável orientação Agradeço à professora e querida amiga Ruth Gauer pelo proveitoso aprendizado e por tudo que fez por mim nos últimos anos Agradeço aos professores Cezar Guazzelli e Regina Weber pelas contribuições prestadas no colóquio que uma vez internalizadas se mostraram fundamentais para o desenvolvimento desta pesquisa Agradeço aos meus antigos mestres e amigos Véra Barroso e Ricardo Fitz pela contribuição à minha formação e à professora Maria Emília Prado pela riqueza de sua arguição na defesa de minha dissertação assim como pela gentileza na aceitação do convite para prefaciar a presente obra Agradeço ao professor Aury Lopes Jr por ter me ajudado a encontrar novamente algo que eu julgava ter perdido Tratase de uma dívida impagável Agradeço aos colegas do curso de Ciências Jurídicas e Sociais em especial ao meu cunhado Felipe por terem me auxiliado a concluir a graduação em meio às responsabilidades com o mestrado em História Agradeço aos meus alunos e exalunos dos colégios Protásio Alves e Ernesto Dornelles pela compreensão diante da exaustão e pelas contribuições que emprestaram indiretamente ao meu trabalho Em especial agradeço por me tornarem mais humano e por me lembrarem constantemente o motivo pelo qual escolhi ser professor Finalmente agradeço a Deus que me deu forças para suportar a pesada carga de trabalho e a multiplicidade de compromissos e responsabilidades que assumi nos últimos anos SUMÁRIO PREFÁCIO 10 APRESENTAÇÃO 13 INTRODUÇÃO 15 1 ERGUENDO OS ALICERCES DA NARRATIVA NACIONAL FACE À HETERO GENEIDADE DA NAÇÃO O IHGB E VON MARTIUS22 11 O legado colonial fragmentação heterogeneidade e uma identidade portuguesa 22 111 O Brasil independente e o BrasilNação 36 12 O IHGB e sua missão inventar a narrativa nacional 46 121 Por que é preciso inventar a nação 46 122 O IHGB e o poder 49 123 O discurso fundador de Januário da Cunha Barboza 55 124 A narrativa nacional escrita pelo sujeito nacional o brasileiro 69 13 Martius como escrever a história do Brasil 72 131 O marco fundador da nação 73 132 As três matrizes e o assimilacionismo76 133 A exaltação dos feitos portugueses e a repulsa aos atos de rebeldia 81 134 O todo e a parte questãochave da problemática nacional 83 2 O MONUMENTO VARNHAGEN E O ENREDO DA NAÇÃO A NARRATIVA NACIONAL88 21 O que representou Varnhagen 88 211 Biografia 90 212 Convicções pessoais 96 213 A providência 111 22 As partes se tornam um todo a partir da narrativa nacional uma história geral da nação brasileira 118 23 A tragédia o inimigo e o herói a função paradigmática da narrativa nacional 140 3 O ESTADONAÇÃO PROTAGONISTA DA NARRATIVA NACIONAL 179 31 A relação com Portugal na narrativa nacional 179 32 O Estado dentro do Estado os jesuítas 188 33 Revolta e ilegitimidade os movimentos e sua apreensão 194 34 Transferência e presença do Estado português um Brasil independente em afirmação 203 35 Uma teoria da nação na obra de Varnhagen 217 36 Varnhagen advogado do estado e juiz inquisidor do tribunal da história 234 CONSIDERAÇÕES FINAIS 253 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 259 Horizontes Identitários 10 PREFÁCIO Claudia Wasserman UFRGS Orientadora Maria Emília Prado UERJ Banca de avaliação Na América Latina o processo de constituição do EstadoNação foi o resultado de uma complexa interface entre os fatores materiais objetivos tais como língua território e história comuns existência de um mercado interno criação de símbolos pátrios etc e a intervenção criativa dos intelectuais ligados ao Estado destinados a definir o aspecto subjetivo da identidade nacional O fator subjetivo referese ao nacionalismo ou seja à intenção explícita de construir e consolidar uma fraternidade que ultrapassasse os limites locais e regionais Os nacionalismos foram os veículos por meio dos quais se construíram as nações modernas eles elaboraram programas capazes de em sociedades tão desiguais como as nossas latinoamericanas por exemplo incorporar grande parte da população e fazer com que todos se sentissem partícipes dessa comunidade imaginada As primeiras discussões a respeito da identidade nacional do surgimento das nações e dos obstáculos para a sua constituição plena surgiram a partir das independências pautadas por uma preocupação política por parte dos protagonistas do processo Depois das independências os países da América Latina se transformaram em espaço de debates sobre a questão constitucional sobre o povoamento e acerca das medidas necessárias para implantação dos ordenamentos políticos e administrativos Essas discussões também foram realizadas por políticos e intelectuais que se propunham a fazer parte das administrações Somente mais tarde na segunda metade do século XIX apareceram os Salah H Khaled Jr 11 primeiros historiadores intelectuais ligados a academias de história ou centros e institutos sem caráter oficial mas cujos membros tiveram uma preocupação destacada com a investigação histórica e suas obras transformaramse em um legado de valor documental e analítico para futuros historiadores A dissertação de Mestrado de Salah H Khaled Jr intitulada A Construção da narrativa nacional brasileira a escrita da nação em Barboza Martius e Varnhagen defendida em julho de 2007 no Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS e agora publicada pela EDIPUCRS com o título de Horizontes identitários a construção da narrativa nacional brasileira pela historiografia do século XIX propõe a análise da elaboração de uma narrativa nacional por parte da historiografia oitocentista a partir de alguns dos mais destacados intelectuais da época Januário da Cunha Barboza Karl Friedrich Von Martius e Francisco Adolpho de Varnhagen Como fio condutor da análise Salah optou pela interpretação do amplo grau de pragmatismo presente nas obras dos autores brasileiros do século XIX que segundo sua ótica perseguiam o objetivo de construir uma narrativa fundadora da nacionalidade e da nação Sem prescindir dos teóricos contemporâneos a respeito da questão nacional e dos demais comentadores das obras analisadas Salah constrói um trabalho original e que contribui para compreensão do que ele mesmo chama de pedagogia social ou estratégias de convencimento A utilização adequada das fontes revela a escrita daqueles intelectuais do século XIX que pretendiam pautar condutas de comportamento e moldar o cidadão nacional A exegese dos textos permeada pelo contexto histórico propicia a emergência desse discurso que é segundo Salah sobretudo político Sendo assim Salah recupera o grau de inventividade sugerido por Ernest Gellner ao discurso da nacionalidade recuperando os episódios nacionais que se prestam aos objetivos dos pioneiros e militantes da questão nacional A preocupação com a pedagogia social e com as estratégias de convencimento resultou na tentativa de erradicação da diferença demonstrando a intolerância e recusa da heterogeneidade e revelou o recorte e seleção arbitrária de fatos bem como de prefiguração do passado de acordo com os objetivos de uma elite no presente realizada pelos autores estudados São estes os objetivos práticos que Salah descobre por trás de toda a narrativa Horizontes Identitários 12 fundadora do BrasilNação parecendo por vezes as intenções políticas se sobreporem a revelarem toda a insídia dos autores O resultado do esforço é um texto fluente bem escrito e que contribui para a historiografia brasileira e latinoamericana a respeito de um assunto sobre o qual os historiadores subcontinentais tiveram tanta responsabilidade para o bem e para o mal Salah H Khaled Jr 13 APRESENTAÇÃO A análise desenvolvida por Salah H Khaled Jr dá visibilidade ao pensamento histórico brasileiro do século XIX que buscava estabelecer um futuro promissor para o Império e simultaneamente preservar o vínculo com Portugal enfatizando a importância da ancestralidade europeia para o Brasil independente Salah realiza essa tarefa buscando nos nexos analíticos presentes nos textos de Barboza Martius e Varnhagen a forma com que o processo de uniformização do discurso histórico foi construído desde uma perspectiva de constituição de uma identidade nacional O autor relata como se articulou o enfoque da problemática da conformação do Brasil a um ideal de civilização nacionalidade brasileira apresentada e representada pela identidade nacional cuja ambiguidade retratada nos discursos é encoberta por diferentes estratégias de convencimento Partindo dessas premissas Salah detecta com objetividade o problema que o modelo de narrativa construído pela intelectualidade da época tentava solucionar o que era disperso precisava ser agregado discursivamente por uma estratégia de convencimento que pretendia superar a impossibilidade de utilização de um modelo eurocêntrico e homogêneo para explicar a brasilidade Ao se utilizarem de tal modelo os historiadores se defrontavam com o paradoxo da diversidade nacional problema este que foi enfrentado diretamente por Martius como explicar a unidade nacional a partir de tantas diferenças e dar a ela nacionalidade uma igualdade tal como pretendida pelo pensamento histórico da época Com esse enfoque a pesquisa desenvolvida por Salah revela que o problema de aplicação de um modelo que considerasse a diversidade logo foi deixado de lado sendo priorizado o modelo cientifico moderno homogêneo e igualitário o que pode ser nitidamente percebido na obra de Varnhagen O autor retrata que a inscrição da diversidade representou um problema que a intelectualidade da época tentou solucionar buscando uma estratégia de convencimento que ansiava pela assimilação Horizontes Identitários 14 e eventual anulação do outro índios e negros e que se valia de holandeses franceses e espanhóis propriamente reconhecidos narrativamente como outros condição negada a negros e índios para constituir o caráter heroico dos brasileiros unidos na defesa da pátria prefigurada argumentativamente nos tempos coloniais Salah propõe ainda no conjunto de sua dissertação uma difícil tarefa captar os postulados de construção do conhecimento histórico no contexto do século XIX comparandoos aos postulados do herói na narrativa de Varnhagen e como ele pensou o Brasil de forma global O autor consegue de forma exemplar demonstrar a especificidade da construção narrativa oitocentista revelando como Varnhagen subordina a ação individual aos objetivos colocados pelo Estado de forma a dificultar a mobilidade dos indivíduos frente à condução da história pela Providência A singularidade nacional é apresentada por Varnhagen como relato por excelência de um personagem o BrasilEstado Dessa forma a História Geral do Brasil configura uma narrativa nacional que assume caráter de grande relato da nacionalidade Um relato que tem nítida vocação pragmática apesar de sua pretensão científica propondose a fundar uma ideia de nação de acordo com as premissas do Império e assumindo assim caráter de verdadeira pedagogia social A análise desenvolvida enfatiza a originalidade com que essas ideias foram utilizadas pelos autores analisados em especial por Varnhagen que aborda diversas questões referentes ao que entendia ser um processo de domínio da civilização sobre a barbárie demonstrando a percepção do processo de colonização pelo pensamento dos historiadores brasileiros do século XIX A desconstrução da obra História Geral do Brasil de Varnhagen revela uma narrativa estruturada para produzir identificação subjetiva nos habitantes do país dentro de um contexto histórico no qual havia uma pretensão de fazer do Brasil um grande Império no século XIX A análise discursiva das simetrias e assimetrias brasileiras representa um olhar apurado podese dizer emblemático sobre uma etapa importante e significativa da história do pensamento brasileiro revelando um caráter unificador que desde os seus primórdios procurou erradicar a diferença expressando um conhecimento construído sob o signo do poder e de sua justificação Ruth Maria Chittó Gauer Salah H Khaled Jr 15 INTRODUÇÃO A proposta deste livro consiste em analisar a construção da narrativa nacional por Januário da Cunha Barboza Karl Friedrich Phillipe Von Martius e Francisco Adolpho de Varnhagen no século XIX durante a primeira etapa de constituição da nação brasileira A investigação desse processo de construção identitária a partir da escrita da história tem como base o estudo de três obras significativas para a sua compreensão O discurso fundador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro de Januário da Cunha Barboza o artigo Como se deve escrever a História do Brasil de Martius e a História Geral do Brasil de Varnhagen A opção pelo tratamento conjunto dos textos referidos relacionase à existência de um fio de continuidade entre o discurso fundador do IHGB o guia para escrita da história nacional de Martius e a concretização de tais ideais através do grande relato da nacionalidade de Varnhagen que é o produto mais elaborado do esforço discursivo de construção da nação brasileira nos oitocentos Dentro de tal proposta um horizonte de análise é privilegiado nos textos referidos a preocupação com a construção da nação e da identidade nacional a partir de uma narrativa enfatizando um recorte de natureza política Sendo assim é feita uma análise da narrativa nacional construída no século XIX buscando compreender o seu sentido propriamente identitário através de uma pesquisa pautada pelos critérios de procedimento da História Intelectual Uma vez que a abordagem do problema referese à construção de identidades nacionais se torna importante destacar que o recorte é sobretudo político e não historiográfico estando a discussão voltada para as questões chave da definição identitária brasileira nos autores referidos e nas suas respectivas obras Logo não se trata de uma investigação sobre método escrita paradigma ou utilização de fontes pelos autores embora tais questões possam ser incidentalmente abordadas O que interessa sobretudo é o conteúdo das respectivas falas A análise está centrada no caráter da narrativa nacional por eles proposta e na relação entre a realidade externa Horizontes Identitários 16 e o seu discurso que se dá a partir de um horizonte decididamente pragmático Esse é o enfoque proposto para a investigação realizada Portanto a intenção é de uma leitura das obras como integrantes de uma narrativa fundadora da nacionalidade e da nação e não como obras de história em sentido estrito motivo pelo qual as questões propostas extrapolam o âmbito de interesse específico dos historiadores O enfoque da obra é político pois se refere à invenção do BrasilNação pela historiografia oitocentista Sendo assim o componente privilegiado de análise é a identidade nacional e a nação na forma com que a narrativa nacional busca estabelecêlos Entretanto estes são elementos que não se evidenciam facilmente pois a obra de Varnhagen privilegia o Estado tendo inclusive sido taxada no passado de uma história administrativa do Império Português Todavia percebese de forma subjacente uma série de elementos que permitem ao observador inferir uma teoria da nação na obra do autor Além disso há uma tentativa deliberada de construção de sentidos ao longo da narrativa através do estabelecimento de uma pedagogia social que busca determinar condutas a partir de exemplos Para o enfoque proposto para essa análise é interessante observar a dinâmica dessa função exemplar inserida no discurso intelectual principalmente no que se refere à sua inserção na narrativa nacional Como a narrativa nacional desenvolvida nos oitocentos é o objeto analisado a partir do fio de continuidade anteriormente citado os referenciais teóricos oferecidos pelos vários elementos que compõem a teoria do nacionalismo bem como pelos comentadores de Barboza Martius e Varnhagen se mostram de grande valia Sendo assim como se espera do tema da identidade nacional a obra se vale de uma série de autores para fins de embasamento teórico As considerações de ordem teórica são aproveitadas como parâmetros que orientam e fundamentam a análise norteando a própria leitura do discurso intelectual sendo esse o sentido de sua utilização Dessa forma a intenção é pensar a partir dos teóricos da nação e dos comentadores sem no entanto se limitar a eles Esta é portanto uma obra que se vale exclusivamente de fontes de ordem bibliográfica para a formação dos elementos de convicção que lhe são pertinentes A contribuição que o presente estudo visa prestar encontrase ligada à construção de identidades nacionais através da narrativa nacional e em particular do modo como a historiografia buscou construir tais identidades Portanto a dimensão de Salah H Khaled Jr 17 análise em questão privilegia a forma com que a constituição de um passado histórico a partir de recortes específicos e exemplos delimitados trabalha para formar o tipo de consciência que é típico de uma identidade nacional Nesse sentido a intenção é descer ao nível do discurso e de suas estratégias de convencimento e dessa maneira contribuir para a discussão em torno da elaboração do BrasilNação nos oitocentos1 As avaliações sobre a obra de Varnhagen costumam se reportar aos mesmos pontos destacandose principalmente a questão da nação Nesse sentido o diferencial da análise aqui proposta está na forma de abordar o objeto ou seja no enfoque adotado para problematizar a narrativa nacional revelar a existência de um sistema de pensamento dotado de considerável sofisticação e alicerçado por um pragmatismo político cuja intenção é efetivamente moldar o cidadão nacional Em virtude dessa opção analítica a utilização de citações é abundante uma vez que é interessante permitir que os autores falem por si mesmos e na sua própria forma de se expressar Essa opção se deu inclusive em função da leitura de alguns comentadores dar a impressão de que eles por vezes se afastam demais dos autores que procuram analisar2 A intenção aqui ao contrário é permitir que o leitor conheça não apenas uma interpretação sobre os textos escolhidos mas que também efetivamente os conheça ainda que obviamente dentro de um recorte estabelecido pelas necessidades da análise em questão A intenção de revelar um sistema de pensamento referese a uma compreensão que diz respeito ao conteúdo e sentido do que é posto através da historiografia Não se trata de uma refutação factual ou de uma afirmação de superação de um modelo em tese defasado de historiografia até porque isso já foi feito mas sim da busca de um entendimento abrangente do que de fato se pretendia como se fazia e o que se realizava ao constituirse um passado para a nação brasileira no século XIX Em outras palavras uma tentativa de apreensão do sentido por trás da narrativa nacional inserida dentro de uma obra descritiva como a de Varnhagen Portanto o que move esta análise é uma reflexão crítica sobre os textos que encaminharam a narrativa nacional e a obra de Varnhagen que por fim a constituiu e dessa forma inventou legitimou e celebrou a nação É importante que esses questionamentos fiquem claros para que seja 1 Os demais estudiosos de Martius e Varnhagen trataram de outros aspectos de suas produções inte lectuais de forma que esta parece ser uma questão na qual ainda há espaço para discussão 2 É o caso por exemplo de Nilo Odalia José Carlos Reis e José Honório Rodrigues Horizontes Identitários 18 evidenciada a diferença deste estudo em relação ao trabalho realizado por outros comentadores de Varnhagen cujo enfoque é geralmente historiográfico Varnhagen é um autor que já foi observado por uma série de autores Dentre a extensa literatura podem ser citados os trabalhos de Arno Wehling Temístocles Cezar Nilo Odalia José Carlos Reis José Honório Rodrigues Manuel Salgado Guimarães e Capistrano de Abreu entre tantos outros São autores de renome Aqui não há qualquer pretensão de superálos Procurase apenas contribuir para essa extensa discussão a partir de uma análise que conta com um enfoque diferenciado em relação aos estudos até então realizados Tais autores são inclusive muito utilizados e citados no decorrer da presente obra Também é importante salientar que diferentemente dos autores acima referidos não existe aqui a pretensão de realizar um extenso levantamento da obra de Varnhagen mas sim em sintonia com o recorte previsto verificar os elementos importantes para o estudo da identidade nacional em sua História Geral do Brasil Além disso é interessante referir que enquanto objeto a HGB tem uma particularidade que é a existência de duas edições distintas sendo que há diferenças significativas de posicionamento do autor em ambas Quanto ao recorte aqui proposto embora em certa medida a primeira edição seja contemplada quando considerada relevante a opção foi pela segunda edição por entender que nela se encontram mais cristalizados os pontos de vista de Varnhagen sobre a questão nacional que é o aspecto que sobretudo interessa verificar Um outro ponto que deve ser destacado é a questão do contexto Para a análise aqui proposta e em busca de respostas para uma série de questões levantadas parece fundamental verificar de que forma uma série de fatores concorreram para a realização dessa historiografia dos oitocentos Nesse sentido a análise leva em consideração os elementos contextuais integrantes do processo histórico em que se deu a invenção da narrativa nacional além das obras dos autores A observação dos elementos materiais que compõem esse contexto não pode ser ignorada sob pena de incorrerse em um empobrecimento injustificado do objeto de pesquisa Logo uma vez que para essa análise o contexto é imprescindível o seu estabelecimento se dá através da utilização da historiografia contemporânea que se reporta às questões pertinentes para a investigação do objeto em questão bem como ao próprio período em que Varnhagen escreveu sua obra A importância do contexto está ligada ao Salah H Khaled Jr 19 entendimento de que sendo todo o texto por excelência datado não há possibilidade de compreensão proveitosa de uma obra sem que fique estabelecido o devido marco temporal e espacial em que se deu sua escrita3 Como se trata de uma pesquisa cujo elemento central é uma análise de discurso intelectual isso levanta questões de ordem metodológica Sendo assim pela natureza do objeto selecionado e pela forma de sua abordagem uma vez que se preocupa com a relação entre os intelectuais e o poder político esta pesquisa insere se dentro da metodologia da História Intelectual cujo projeto é pautado pela busca de uma elucidação das obras dos pensadores dentro de sua historicidade4 Em síntese a História Intelectual procura inscrever historicamente o discurso dos intelectuais tentando ultrapassar a alternativa entre explicações internas e externas5 Para que essa ambição analítica da História Intelectual seja bem sucedida se faz necessária a superação da dicotomia entre uma análise interna e externa observando as duas escalas de análise6 Portanto tanto o contexto histórico integra o seu enfoque como os paradigmas intelectuais os modelos dominantes que integram o pensamento científico da época ainda que a apreensão de tais modelos não seja tão simples7 Nesse sentido uma análise determinada por tais critérios leva em 3 Nesse sentido é relevante a afirmação de Hobsbawm que afirma que conceitos certamente não são parte de discursos filosóficos flutuantes mas são histórica social e localmente enraizados e por tanto devem ser explicados em termos destas realidades HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalis mo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p18 4 O historiador francês François Dosse afirma que a História Intelectual se estabeleceu em um espaço vazio entre a história clássica das ideias a história da filosofia a história das mentalidades e a história cultural Como afirma o autor esse novo espaço de investigação tende a adquirir autonomia pois a história intelectual tem como ambição a convergência em sua análise das obras seus autores e o con texto em que haviam nascido dentro de um processo que rechaça a alternativa empobrecedora entre de um lado uma leitura internalista das obras e de outro uma aproximação externalista que privilegia somente as redes de sociabilidade DOSSE François Regreso al país de la historia intelectual In Con trahistoiras La otra mirada de clio n 3 setembro de 2004fevereiro de 2005 p87 5 SILVA Helenice Rodrigues A história Intelectual em questão In LOPES Marco Antônio org Gran des nomes da História Intelectual São Paulo Contexto 2003 p15 Disponível em httpbooksgooglecombrbookshlptBRlridfCCwBmPjcCoifndpgPA9dq22Lop es2222GrandesnomesdahistC3B3riaintelectual22ots4EVkG2eFcqsigX4f7fy Si9BDtEN93GMKV75F2svonepageq22Lopes222022Grandes20nomes20da20 histC3B3ria2 6 A ideia é ir além de uma abordagem que privilegie a relação entre a análise externa dos acontecimen tos históricos sociais políticos e a análise interna da obra a hermenêutica ou a análise do discurso a História Intelectual deve levar em consideração simultaneamente a dimensão diacrônica história e sincrônica os aspectos diferentes de um mesmo conjunto em um mesmo momento de evolução falta fechar aspas Ibid p19 Para Dosse é a vontade de manter juntas estas dimensões que caracteriza o objeto da história intelectual DOSSE op cit p87 7 SILVA op cit p20 Disponível em httpbooksgooglecombrbookshlptBRlridfCCwB mPjcCoifndpgPA9dq22Lopes2222GrandesnomesdahistC3B3riaintelectual 22ots4EVkG2eFcqsigX4f7fySi9BDtEN93GMKV75F2svonepageq22Lopes2220 Horizontes Identitários 20 consideração a trajetória pessoal dos autores assim como o contexto histórico em que estão inseridos para efeito de análise de seu discurso e decifração de seus sistemas de pensamento bem como de sua relação com o poder e o poder que exercem através da ciência8 Esse entendimento parte da noção que aponta que uma análise de produção intelectual não pode ser realizada fora de um contexto social político econômico e cultural uma vez que nenhum fenômenoobjeto será compreendido se analisado de forma isolada e independente dos demais9 Evidente que tratase de um objeto dotado de complexidade imensa o que por sua vez conduz à insuficiência da análise que não se reveste aqui de qualquer pretensão de estabelecer uma verdade absoluta Esse é em linhas gerais o espírito de investigação através do qual o problema da narrativa nacional será abordado dentro do objeto e das fontes escolhidas Tendo como base tais norteadores para que a avaliação da trajetória e do caráter da construção da narrativa nacional brasileira no século XIX seja realizada com sucesso dentro do espírito aqui proposto se faz necessário que sejam percorridas algumas etapas que se refletem na estrutura da presente obra No primeiro capítulo a intenção é estabelecer as bases em torno das quais foi elaborada a narrativa nacional Dessa forma são abordadas questões como a condição política de excolônia o que havia de identificação com o país por que era necessário inventar a nação e finalmente qual o sentido da fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e como ele se articula com o poder A partir do estabelecimento desse contexto a análise de desloca para o discurso fundador de Januário da Cunha Barboza e como ele busca estabelecer os parâmetros de uma narrativa nacional Finalmente chegase ao artigo de Karl Friedrich Von Martius que efetivamente se constitui em um guia para a invenção discursiva da nação No segundo capítulo a análise enfoca Varnhagen Assim em um primeiro momento procurase discutir a trajetória do autor do grande relato da nacionalidade 22Grandes20nomes20da20histC3B3ria2 8 Helenice Rodrigues da Silva refere que a História Intelectual domínio pluridisciplinar por excelência como o dos contextos de produção de idéias o dos agentes socioprofissionais e o das correntes de pensamento ela parece visar dois pólos de análise de um lado o conjunto de funcionamento de uma sociedade intelectual o campo na versão de Pierre Bordieu isto é suas práticas seu modo de ser suas regras de legitimação suas estratégias seus habitus e de outro lado as características de um momento histórico e conjuntural que impõe formas de percepção e de apreciação ou seja modali dades específicas de pensar e de agir de uma comunidade intelectual Ibid p16 9 Ou seja para Silva em outras palavras a história intelectual teria por principal pressuposto res tituir do ponto de vista sociológico filosófico e histórico o contexto de produção de uma obra Ibidem Salah H Khaled Jr 21 oitocentista expondo sua biografia e avaliando suas convicções pessoais Em um segundo momento a análise é voltada para o discurso enfocando dois pontos marcantes da sua obra a ideia de uma história geral que por excelência nega a diferença e procura promover integração e a construção de sentidos exemplares paradigmáticos através das categorias da tragédia dos nossos e do inimigo No terceiro capítulo surge o personagem central da narrativa nacional de Varnhagen o EstadoNação Assim é possível observar como Varnhagen se posiciona diante de questões que envolvem tal personagem como o relacionamento com Portugal os jesuítas e a ideia de Estado dentro do Estado os movimentos rebeldes e finalmente a transferência do Estado português para o Brasil A partir de tais elementos é possível esboçar uma teoria da nação que transparece na obra de Varnhagen ainda que de forma difusa ou subjacente Finalmente no último trecho fica claro como o pragmatismo de Varnhagen acaba por lhe conferir dois papéis que ele mesmo repudiava o de advogado do EstadoNação e o de juiz inquisidor do tribunal da história Com base nos subsídios investigados ao longo dos três capítulos tornase possível uma apreciação analítica do caráter da narrativa nacional brasileira concebida pela historiografia oitocentista Boa leitura Horizontes Identitários 22 1 ERGUENDO OS ALICERCES DA NARRATIVA NACIONAL FACE À HETEROGENEIDADE DA NAÇÃO O IHGB E MARTIUS A proposta neste capítulo consiste em demonstrar o esforço necessário para inventar o BrasilNação no século XIX e as primeiras iniciativas nesse sentido com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o artigo de Karl Friedrich Von Martius A estruturação do capítulo desenvolvese em três etapas atendendo a essa proposta Em um primeiro momento é esboçado um quadro da problemática nacional que precede à fundação do IHGB utilizando as contribuições mais recentes da historiografia sobre a questão identitária brasileira Em um segundo momento a preocupação se desloca para o Instituto propriamente dito seu surgimento sua associação com o poder seus objetivos e seu discurso fundador nos quais já são delineados os parâmetros teóricos e políticos da escrita da história da nação Finalmente no terceiro trecho é analisado o artigo de Martius Como se deve escrever a história do Brasil o qual funciona como verdadeiro guia para a elaboração do produto mais acabado do esforço de invenção da nação a História Geral do Brasil de Varnhagen que passa a ser abordada no segundo capítulo 11 O Legado Colonial fragmentação heterogeneidade e uma identidade portuguesa A invenção da nação se tornou por excelência a missão da história como ciência no século XIX O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro se propôs a elaborar um passado para a nação a construir esse passado discursivamente e portanto a compor uma narrativa nacional Nesse sentido parece interessante verificar quais eram os elementos sobre os quais a nação poderia ser construída discursivamente e porque a invenção da nação se fazia tão necessária à viabilidade do país Qual era a Salah H Khaled Jr 23 situação do Brasil enquanto colônia e enquanto país recém independente e de que forma esse passado poderia ou não ser moldado para promover através de uma narrativa nacional um sentimento de identificação com o todo da nação Se antes dos oitocentos havia alguma identidade brasileira era somente de forma tímida e embrionária e mesmo assim era difícil separála de sua vinculação lusitana As elites do país preservavam sobretudo a sua origem branca e europeia e isso implicava em uma falta de identificação com a colônia Afinal era essa herança que os diferenciava de índios e negros e portanto não havia como abrir mão dessa vinculação De fato tudo indica que o Brasil pouco representava enquanto foco de identificação10 Além disso a própria percepção e sentido atribuídos à colônia pelos colonizadores não lhes era própria O Brasil não era reconhecido por suas características mas sim como uma extensão da cultura portuguesa localizada no alémmar11 Em essência pode ser dito que o Brasil era tido pelos portugueses como uma espécie de reprodução de Portugal12 Evidentemente essa não era realidade concreta da colônia ainda que os colonizadores pudessem ter tal compreensão13 Desde os primórdios de sua existência portanto o Brasil não foi instituído pelos portugueses para ser algo novo mas sim para existir em função das necessidades e dos modelos impostos pela metrópole14 Em função disso parece 10 De acordo com Evaldo Cabral de Melo o sentimento no primeiro século de colonização 15321630 não era de originalidade mas sim de orgulho pela lusitanidade da nova terra MELO Evaldo Cabral de Uma nova Lusitânia In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta A experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac1999 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA48dqUmanovaLusitC3A2niav onepageqUma20nova20LusitC3A2niaffalse 11 Jorge Couto em sentido semelhante observa que os visíveis progressos alcançados no final do século XVI levaram muitos a considerar a promissora província sulamericana como uma Nova Lu sitânia ou um Outro Portugal COUTO Jorge A gênese do Brasil In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta A experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 p48 Grifo nosso Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJspt N0PWYCpgPA45dqagC3 12 O jesuíta Fernão Cardim proclamava este Brasil já é outro Portugal MELO Op cit p73 Disponí vel parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA48dqUmanova LusitC3A2niav onepageqUma20nova20LusitC3A2niaffalse 13 Couto afirma que o Brasil tratase de um componente do Império português que possuía caracte rísticas bem vincadas e que apesar da prevalência sobretudo nas áreas urbanas de elementos da matriz cultural linguística e religiosa lusitana não poderia desde o início do processo de colonização ser automaticamente associada ao padrão metropolitano COUTO Op cit p65 Disponível parcial mente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA45dqagC3AAnesedo brasilv onepageqa20gC3AAnese20do20brasilffalse 14 É nesse sentido que Stuart Schwartz afirma que em termos sociais ou religiosos o Brasil foi cria do para reproduzir Portugal não para transformálo ou transcendêlo SCHWARTZ Stuart B APUD Horizontes Identitários 24 claro que o ambiente colonial não era nada propício ao surgimento de algo que mesmo remotamente lembrasse uma identidade nacional Pensando a partir da categoria de protonacionalismo15 de Hobsbawm percebese que mesmo que de forma embrionária não havia por parte dos portugueses uma ligação com o Brasil O que havia de identificação remetia à metrópole Além disso sequer havia um Estado propriamente dito e localizado em seu território em virtude da condição colonial Como um dos fatores para a promoção do sentimento nacional é o Estado percebese o quanto o Brasil estava distante de ter um sentido próprio para os seus habitantes Isso representa um problema com que a elaboração discursiva da nação teria que lidar pois um dos elementos que por excelência legitimam uma nação é a sua antiguidade o fato de sua existência já estar longamente solidificada pelo decurso do tempo Embora fosse desejável para a invenção da narrativa nacional que um sentimento de identificação com o Brasil já estivesse presente desde os primórdios da colonização o fato é que durante séculos a única perspectiva identitária realmente existente para as próprias elites era a portuguesa O sentimento de identidade nacional se é que pode ser entendido assim em pleno Brasil era luso ou inexistente Isso dificultava o surgimento de uma identidade brasileira uma vez que nada vinculava subjetivamente os portugueses mesmo os não reinóis ao Brasil A relação dos colonizadores era na realidade de espoliação O que se buscava era o enriquecimento individual e o retorno a Portugal16 Dentro dessa perspectiva a percepção dos índios e negros em relação à colônia pouco importava para as elites pois o Brasil era por excelência uma invenção do homem europeu e cabia a ele atribuir sua significação Somente no final do século XVIII começou a surgir ainda que de forma inicial MELO Evaldo Cabral de Uma nova Lusitânia In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta A experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac1999p73 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA48dqUmanovaLu sitC3A2niav onepageqUma20nova20LusitC3A2niaffalse 15 HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Ja neiro Paz e Terra 1990 p63 16 Como assinala Schwartz apesar do reconhecimento do potencial econômico do Brasil este era visto pela maioria dos portugueses como um lugar de exílio e perigo um lugar para enriquecer ou progredir na carreira mas um lugar a ser evitado a qualquer custo SCHWARTZ Stuart B Gente da terra braziliense da nasção Pensando o Brasil a construção de um povo In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta A experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Se nac 1999 p109 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCp gPA103lpgPA103dqGentedaterrabraziliensedanasC3A7C3A3osourceblots 6yhETIYdcXsignA25vURQTJe3IBZ1GOCYgnU8t1IhlptBReivpjfSouxOoul8Abp4NBlsaXo ibookresultctresultresnum1ved0CAoQvonepageqGente20da20terra20brazilien se20da20nasC383C2A7C383C2A3offalse Salah H Khaled Jr 25 uma espécie de identificação com o Brasil dentro de tais elites Para que isso ocorresse foi necessário que fosse operada uma inversão de significado em que o conquistador passasse a se enxergar como nativo um processo nada simples Essa constatação faz com que transpareça a imensidão da tarefa a ser realizada através da invenção da nação nos oitocentos Para os intelectuais que elaboravam a narrativa nacional no século XIX não bastava que o Brasil fosse uma nova nação Ele devia estar prefigurado desde os tempos coloniais pois esse passado podia se constituir em um cimento importante para um país que tinha a integridade do seu território ameaçada Fica portanto a pergunta como deixar de lado a identificação com Portugal fonte de orgulho e prestígio e assumir uma proximidade com um território satélite do império português que detinha pouca importância além de uma lógica de exportação de produtos tropicais O pouco que havia de identificação era sobretudo regional Justamente a identificação que teria que ser ferrenhamente combatida no século XIX para estimular o sentimento nacional Havia identidade local no Brasil colônia mas não nacional A identificação era sobretudo regional ou então com Portugal Jancsó e Pimenta por exemplo afirmam que os colonos de São Paulo ao mesmo tempo que reconheciamse como paulistas eram percebidos pelos espanhóis como portugueses e assim se sentiam ao confrontálos Paulista baiense ou pernambucano significava ser português ainda que uma forma diferenciada de sêlo mas não brasileiro17 Tais constatações dão uma boa amostra do quanto era limitado o sentido de Brasil para aqueles que passariam a ser considerados como brasileiros no futuro pela historiografia dos oitocentos O exemplo demonstra o quanto é difícil pensar o Brasil antes da independência e mesmo depois como uma nação a partir de critérios subjetivos a partir da ideia de vontade de adesão ao todo da nação A que fatores pode ser atribuída essa condição Por que era tão difícil a identificação com o Brasil Será que a manutenção de uma identidade portuguesa se 17 Para os autores o que interessa ressaltar é a concomitante emergência de três diferenças A primei ra é aquela que distinguia o português da América por exemplo um baiense de todos que não fossem portugueses holandeses franceses espanhóis A segunda simultânea com a anterior é a que lhe permitia distinguirse ao baiense de outros portugueses por exemplo do reinol do paulista Final mente uma terceira diferença é a que distingue entre os portugueses aqueles que são americanos dos que não partilham essa condição JANCSÓ István e PIMENTA João Paulo G Peças de um mosai co ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta A experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 p137 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJspt N0PWYCpgPA127dqPeC3A7asdeummosaico28ouapontamentosparaoestudo daemergC3AAnciadaidentidadenacionalbrasileira29vonepageqPeC3A7as20 de20um20mosaico20ou20apontamentos20para20o20esffalse Horizontes Identitários 26 restringia ao diferencial em relação a negros e índios A questão não parece limitar se a esse aspecto pois não abrange o florescimento de uma identidade regional estabelecida pela convergência de interesses locais Nesse sentido é importante salientar que antes que fruto do mero acaso a fragmentação era propositalmente engendrada os funcionários da Coroa referiamse a América portuguesa como Brasil mas jamais a seus habitantes como brasileiros Todo o cuidado era tomado para evitar o surgimento de uma identidade coletiva que ultrapassasse o âmbito regional18 Ou seja a própria metrópole tratou de dificultar o surgimento de uma identificação que fizesse com que os habitantes do Brasil se voltassem contra ela Isso significa que Portugal apesar de alémmar não deveria ser percebido de forma alguma como um outro Os outros deveriam ser os espanhóis e não os portugueses Tais constatações aprofundam o entendimento por trás da manutenção no campo subjetivo de uma identidade portuguesa Mas e quanto ao campo objetivo A extensão do que implicava a condição colonial para o surgimento de uma identificação nacional é bem demonstrada por impedimentos que são de ordem políticoadministrativa Além do âmbito subjetivo encontravase a própria questão do espaço colonial da disparidade de seu desenvolvimento e de sua delimitação política19 Enquanto na costa entre Pernambuco e Rio de Janeiro havia uma pretensão de constituir uma réplica da Europa no interior e nas periferias da colônia a composição da sociedade e a estrutura do governo eram muito afastadas desse padrão civilizatório São Paulo permaneceu uma região rústica até bem avançado o século XVIII20 O Estado do Maranhão era em essência uma colônia independente 16211777 e as capitanias do Sul eram tratadas como região separada embora as 18 Segundo Jancsó e Pimenta a força coesiva do conjunto lusoamericano era indiscutivelmente a Metrópole e o continente do Brasil representava para os coloniais pouco mais que uma abstração enquanto para a Metrópole se tratava de algo muito concreto unidade cujo manejo impunha esta per cepção É por isso que é correto afirmar que a apreensão de conjunto de partes que genericamente se chamou de Brasil estava no interior da burocracia estatal portuguesa Ibid p140 19 Como Schwartz afirma é preciso considerar também a dimensão geográfica desse processo O Brasil não era em realidade apenas um mas era constituído por uma série de colônias Os Ingleses tinham razão quando falavam nos séculos XVII e XVIII dos Brasis pois havia de fato mais de uma co lônia SCHWARTZ Stuart B Gente da terra braziliense da nasção Pensando o Brasil a construção de um povo In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta A experiência brasileira 1500 2000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 p112 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA103lpgPA103dqGentedaterrabr aziliensedanasC3A7C3A3osourceblots6yhETIYdcXsignA25vURQTJe3IBZ1GOCY gnU8t1IhlptBReivpjfSouxOoul8Abp4NBlsaXoibookresultctresultresnum1ved0CA oQvonepageqGente20da20terra20braziliense20da20nasC383C2A7C383 C2A3offalse 20 Ibid p112113 Salah H Khaled Jr 27 tentativas de criação de um governo à parte do Rio de Janeiro 15731578 1608 1612 tivessem fracassado Percebese que a coesão não era sequer política e a fragmentação era a regra21 A própria diversidade que depois com a independência teria de ser erradicada era antes de certa forma incentivada Esse processo se manteve em curso de forma eficaz durante séculos A própria heterogeneidade da colônia e as diferenças regionais implicavam em uma pluralidade de horizontes identitários e nesse sentido de expectativas não correspondidas que explodiriam com toda a força nas primeiras décadas após a Independência Em meio a tanta heterogeneidade o que havia de comum era o laço que prendia a colônia a Portugal22 Não por acaso esse aspecto foi enfatizado pelos inventores da narrativa nacional oitocentista pois promovia uma certa coesão Tais questionamentos dão uma boa dimensão do esforço necessário para inventar uma narrativa nacional no século XIX De alguma forma esse todo inteiramente disperso devia ser reunido Na medida em que a fragmentação se dava tanto no âmbito objetivo quanto na própria esfera subjetiva fica evidente o esforço monumental que teria que ser dado para tornar a antiga colônia uma nação no século XIX Não seria uma tarefa fácil superar a pluralidade que era intencionalmente incentivada com inegáveis êxitos como demonstra a fragmentação política o poder pulverizado localmente e a permanência de uma identificação com Portugal Além disso ainda restava o problema de toda uma população segregada socialmente a qual em maior ou menor grau deveria ser integrada de alguma forma ao projeto de nação que o horizonte identitário oitocentista gostaria de ver concretizado Essa tendência à fragmentação e à não identificação com o Brasil não se sustentou entretanto em virtude de uma série de circunstâncias que modificaram ao menos parcialmente a percepção dos habitantes da colônia em relação a ela e a si mesmos No século XVIII o surgimento de uma articulação comercial interna que se deveu principalmente ao ciclo do ouro fez com que várias províncias 21 O estado do Maranhão se reportava diretamente a Lisboa e não a Salvador Da mesma forma as capitanias do Sul embora não independentes tinham pouco controle por parte do governo na Bahia Em ambos os casos as populações de origem europeia eram bem pequenas e predominavam os mis sionários já desaparecidos das zonas de exportação Enquanto isso na costa entre Pernambuco e Rio de Janeiro predominavam os modelos culturais europeus 22 Odalia afirma que a unidade da colônia se perde no momento mesmo em que se desvincula do Im pério que a assegurava em vez dela o que se tem é a heterogeneidade a divisão a discriminação em todos os níveis ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p41 Disponível em httpwwwdominiopubli cogovbrdownloadtextoup000007pdf Horizontes Identitários 28 incrementassem a realização de trocas comerciais o que integrou por exemplo de forma mais pronunciada a região Sul à colônia Isso subverteu em certo sentido a lógica colonial ainda que o Estado luso tenha se feito mais presente no país a partir de então reforçando a sua autoridade administrativa em virtude da riqueza que o ouro representava Ironicamente foi justamente a partir do momento que Portugal intensificou sua ação na colônia que a integração regional mais se dinamizou Subitamente a presença do Estado português no território brasileiro se fez sentir de forma inédita e com ela uma dimensão de controle a que a colônia não estava habituada Dessa súbita contraposição mais acentuada de interesses começou a surgir uma compreensão de que as elites coloniais enquanto tais sendo dotadas de ambições diversas de suas contrapartes metropolitanas constituíamse em algo diverso Ou seja os portugueses de alémmar começavam a ser percebidos como um outro uma dimensão de alteridade fundamental para a ideia de nação Entretanto ainda que um componente importante a mera identificação do outro não bastava para a existência de um sentimento nacional Era ainda necessário que esse antagonismo se intensificasse ao limite do insuportável e que a identificação passasse a ser nacional e não regional em relação aos portugueses Isso em certa medida se verificou nas lutas pela Independência que todavia não se deram dentro de um clima de unanimidade mas sim de diversidade imensa de interesses e horizontes identitários O surgimento de uma identidade nacional sempre ocorre dentro de um processo truncado desconexo e descontínuo Existe uma tendência a enxergar uma evolução provida de linearidade e continuidade o que não é verdadeiro ainda que para um setor considerável da historiografia uma nação brasileira já estivesse prefigurada antes da independência23 Um primeiro indício para essa corrente da suposta continuidade 23 De acordo com Richard Graham essa vertente relacionase com a ideia de nativismo na qual se enxerga nos séculos que antecederam a emancipação política uma identidade brasileira e uma cons ciência nacional José Honório Rodrigues argumenta em Independência revolução e contrarevolução Rio de Janeiro Francisco Alves 1975 que a nação já existia há muito tempo De acordo com o autor D Pedro I descobriu que os brasileiros estavam animadamente preparados para endossar sua decla ração de independência do Brasil e que permaneceram unidos a partir de então por um sentimento nacional O autor referese a um sentido profundo da história nacional cuja unidade é o tema central a motivação permanente Dessa forma Rodrigues afirma que desde o princípio a unidade nacional foi uma aspiração partilhada por todos O sonho de um Brasil único e indivisível teria dominado todos os brasileiros evidenciando o orgulho nacional nascente Rodrigues segue a trilha aberta por Manuel de Oliveira Lima 1867 1928 o qual afirma que antes da separação de Portugal o Brasil já tinha seu objetivo aquilo que já passara a ser expressa ou latente sua aspiração comum a independência Ver O movimento da independência O Império brasileiro 1821 1889 2ª ed São Paulo Melhoramentos 196 1ª ed 1922 p 22 Essa visão é predominante nos primeiros trabalhos publicados pelo Instituto Salah H Khaled Jr 29 seria a Inconfidência Mineira em 1789 Nesse sentido Schwartz assinala que ainda que de maneira difusa no final do século XVIII vários membros da sociedade colonial começaram a reivindicar o lugar de filhos da terra e a constituir o povo do Brasil mas agora sob a influência da Revolução Francesa com um novo significado inclusivo24 Assim os jovens que participaram do movimento inconfidente fracassado no Rio de Janeiro em 1794 começavam a se considerar brasileiros e a conceber um Brasil de outro tipo25 Para Schwartz ainda que tais conspiradores pertencessem à elite colonial quatro anos depois na Bahia uma conspiração de artesãos escravos brancos pardos e negros manifestou preocupações semelhantes com uma nítida preocupação social que não estava evidente nos movimentos anteriores De acordo com Schwartz para eles e muitos brasileiros do século XIX não restava dúvida de Histórico e Geográfico Brasileiro como pode se observado em Manuel Luiz Lima Salgado Guimarães no artigo A Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e os temas de sua historiografia 1835 1857 fazendo a história nacional em Origens do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro idéias filosóficas e sociais e estrutura do poder no segundo reinado organizado por Arno Wehling Rio de Janeiro Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro 1989 p 2141 e também em Lilia KMoritz Schwarz Os guardiões da nossa história oficial os institutos históricos e geográficos brasileiros em História das Ciências Sociais n 9 São Paulo Instituto de Estudos Econômicos Sociais e Políticos de São Paulo IDESP 1989 p 732 Também é um ponto de vista que recorre em histórias intelectuais como a que E Bradford Burns escreveu sobre o nacionalismo brasileiro O crescimento da consciência nacional teve seu triunfo inevitável na proclamação da independência do Brasil o Brasil apareceu e cres ceu como uma nação unificada graças pelo menos em parte ao nativismo viril ou nacionalismo preco ce Esse sentimento nacional e sentimento de devoção à sua terra natal acrescenta Burns ajuda a explicar porque aquele gigantesco país diferente das outras enormes áreas administrativas da América Latina colonial não se fragmentou após a independência E Bradford Burns Nationalism in Brazil a historical survey Nova York Praeger 1968 p 28 A opinião comum dos brasileiros de hoje excluindo historiadores profissionais é refletida nas palavras de um crítico literário que escreveu Se existe um fenômeno verdadeiramente maravilhoso na história do Brasil este deve ser o sentimento nacional que se manifesta desde os primeiros dias coloniais e tem mantido a união das províncias estados Wil son Martins Brazilian Politics LusoBrazilian Review 12 Inverno de 1964 p 33 Rodrigues Oliveira Lima e Burns tomam como certa a unidade brasileira Eles precisam apenas estabelecer que alguns brasileiros nativos veem a si mesmos como diferentes e oprimidos por parte daqueles que nasceram em Portugal e pronto aí está a nação única e unida GRAHAM Richard Construindo a nação no Brasil do século XIX visões novas e antigas sobre classe cultura e estado In Diálogos Maringá v 5 2001 Disponível em httpwwwdhiuembrpublicacoesdhidialogosvolume01vol5mesa1html 24 SCHWARTZ Stuart B Gente da terra braziliense da nasção Pensando o Brasil a construção de um povo In MOTA Carlos Guilerme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 p123 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA103lpgPA103dqGentedaterrabr aziliensedanasC3A7C3A3osourceblots6yhETIYdcXsignA25vURQTJe3IBZ1GOCY gnU8t1IhlptBReivpjfSouxOoul8Abp4NBlsaXoibookresultctresultresnum1ved0CA oQvonepageqGente20da20terra20braziliense20da20nasC383C2A7C383 C2A3offalse 25 Ibidem Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA 103lpgPA103dqGentedaterrabraziliensedanasC3A7C3A3osourceblots6yh ETIYdcXsignA25vURQTJe3IBZ1GOCYgnU8t1IhlptBReivpjfSouxOoul8Abp4NBlsaXoi bookresultctresultresnum1ved0CAoQvonepageqGente20da20terra20brazilien se20da20nasC383C2A7C383C2A3offalse Horizontes Identitários 30 que o Brasil tinha um povo26 Todavia parece questionável atribuir a essa visão dos estratos inferiores uma perspectiva propriamente nacionalista ainda que dotada de alguns de seus indícios27 A interpretação de tais movimentos constituise sem dúvida em uma das maiores polêmicas da historiografia nacional Varnhagen por exemplo os condenou por motivos que serão discutidos posteriormente De qualquer forma para expor uma outra interpretação Jancsó e Pimenta não compartilham do entendimento de Schwartz pois afirmam que a Conjuração Baiana não pode ser considerada como um movimento de caráter nacional o que parece ser o entendimento mais acertado28 E sendo assim não há que se falar em uma identidade brasileira já existente pois os supostos movimentos precursores da independência no Brasil as conspirações tramadas em Minas Gerais e na Bahia tentaram libertar do domínio português somente aquelas áreas específicas e não visaram a independência de uma nação brasileira29 Portanto embora as considerações sobre os movimentos 26 Ibid p123124 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA103lpgPA103dqGentedaterrabr aziliensedanasC3A7C3A3osourceblots6yhETIYdcXsignA25vURQTJe3IBZ1GOCY gnU8t1IhlptBReivpjfSouxOoul8Abp4NBlsaXoibookresultctresultresnum1ved0CA oQvonepageqGente20da20terra20braziliense20da20nasC383C2A7C383 C2A3offalse Graham indica que Schwartz também expressa a visão de que os habitantes colo niais tinham uma identidade distinta de Portugal em The Formation of a Colonial Identity in Brazil In Colonial Identity in the Atlantic World 1500 1800 Nicholas Canny e Anthony Pagden org Princeton NJ Princeton University Press 1987p1550 GRAHAM Richard Construindo a nação no Brasil do século XIX visões novas e antigas sobre classe cultura e estado In Diálogos Maringá v 5 2001 Disponível em httpwwwdhiuembrpublicacoesdhidialogosvolume01vol5mesa1html 27 Claro que quem de fato fez a separação e deu início efetivo ao processo de constituição da nação foi a elite Mas isso está longe de ser uma especificidade do país Como diz Hobsbawm em muitos casos a nação política que originalmente formulou o vocabulário do que mais tarde tornouse o povonação compreendia uma pequena fração dos habitantes de um Estado a sua elite privilegiada ou a nobreza e a aristocracia HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p88 28 Os autores afirmam que é inútil procurar alguma ideologia nacionalista entre os sediciosos baianos de 1798 A nova ordem que propugnavam não buscava sua legitimidade em direitos históricos ou em ancestral trajetória comum típicos dos nacionalismos europeus emergentes no século XVIII O con fronto delineado em 1798 na Bahia colocava frente a frente a monarquia absoluta e uma comunidade que afirmava ter configuração específica o povo baiense instituidor potencial de um novo Estado que viria a ser nacional mediante um pacto de cidadãos o inimigo do povo não tinha uma configuração nacional a opressão não era percebida como a de uma nação estrangeira a privação de liberda de do povo baiense não advinha da sujeição à nação portuguesa mas ao trono JANCSÓ István e PIMENTA João Paulo G Peças de um mosaico ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 p147 grifos dos autores Dis ponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA127dqPeC 3A7asdeummosaico28ouapontamentosparaoestudodaemergC3AAnciadaiden tidadenacionalbrasileira29vonepageqPeC3A7as20de20um20mosaico20ou20 apontamentos20para20o20esffalse 29 Jancsó e Pimenta apontam através de jornais da época que nos termos dos pasquins o povo é baiense pelo que é inútil procurar o brasileiro Este é o povo que configura a comunidade imaginada a Salah H Khaled Jr 31 anticoloniais sejam relevantes parece haver um perigo inclusive apontado por Jancsó e Pimenta que é a tendência a enxergar uma continuidade entre o que costuma ser chamado de nativismo e a eventual Independência Partindo desse enfoque o regional é visto sob uma perspectiva nacional e portanto afirmase a existência de uma identidade brasileira ou consciência nacional nos séculos anteriores à Independência o que para Jancsó e Pimenta não passa de um mito ainda que enraizado na memória coletiva e na historiografia30 O processo certamente é muito mais complexo do que uma mera continuidade pode sugerir e de qualquer forma a divergência de interpretação entre autores de renome sinaliza a imensa problemática envolvida e inclusive indica que tais movimentos foram utilizados posteriormente de uma forma ou de outra com conotação nacional Se já existe tal percepção em relação aos movimentos anticoloniais evidentemente que a transferência do Estado português para o Brasil também seria vista por muitos como um indicativo que aponta para a afirmação da nacionalidade brasileira Afinal com a vinda da família real ao Brasil foi extinto o exclusivo metropolitano através da Abertura dos Portos Dessa forma praticamente chegava ao fim o Pacto Colonial pois o que configurava a própria ideia de Metrópole passou a estar presente no Brasil Esse detalhe permite uma percepção melhor do que representavam os próprios fundamentos do sistema Como a subordinação era ao monarca e não a Portugal não há nada de contraditório na medida pois uma vez que a sua pessoa se faz presente fisicamente no território o seu quinhão pode ser nação pensável opondose ou aliandose a outras nações conforme seus interesses JANCSÓ István e PIMENTA João Paulo G Peças de um mosaico ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 p144 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA127dqPeC3A7asdeumm osaico28ouapontamentosparaoestudodaemergC3AAnciadaidentidadenacionalbr asileira29vonepageqPeC3A7as20de20um20mosaico20ou20apontamentos20 para20o20esffalse Graham refere que ponto de vista semelhante pode ser encontrado em Kenneth R Maxwell A devassa da devassa a inconfidência mineira BrasilPortugal 17501808 3 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 1995 Luís Henrique Dias Tavares História da sedição intentada na Bahia em 1798 a conspiração dos alfaiates São Paulo Livraria Pioneira 1975 e István Jancsó Na Bahia contra o Império história do ensaio de sedição de 1798 São Paulo HUCITEC e Salvador EDUFBA 1995 GRAHAM Richard Construindo a nação no Brasil do século XIX visões novas e antigas sobre classe cultura e estado In Diálogos Maringá v 5 2001 Disponível em httpwwwdhiuembrpublicacoesdhidialogosvolu me01vol5mesa1html 30 JANCSÓ István e PIMENTA João Paulo G Op cit p133134 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA127dqPeC3A7asdeummosa ico28ouapontamentosparaoestudodaemergC3AAnciadaidentidadenacionalbras ileira29vonepageqPeC3A7as20de20um20mosaico20ou20apontamentos20 para20o20esffalse Horizontes Identitários 32 coletado diretamente Embora a separação política só tenha ocorrido em 1822 a principal característica da colonização o monopólio estava extinta31 Poderia ser e inclusive foi afirmado algumas vezes que a transferência do governo português para o Brasil representou a independência de fato senão de direito da colônia pois encerrou o monopólio comercial ultramarino elemento central da relação colonial A presença do Estado português no Brasil conferiu certa unidade administrativa ao país na medida em que passou a existir uma estrutura de poder organizado para controlar diretamente os pontos mais distantes da Colônia Quando chegou a hora de realizar a separação política em definitivo essa maquinaria de poder já estava posta e à disposição das elites motivo pelo qual se optou pela estratégia de romper o vínculo mas manter a Monarquia Mas será que isso equivale ao surgimento ou à libertação da nação brasileira A própria afirmativa de uma independência de fato a partir da Abertura dos Portos já carrega a pressuposição de que havia um BrasilNação que ansiava por essa liberdade o que não parece muito provável Embora realmente houvesse uma quantidade considerável de pessoas que se regozijavam com o término do controle exercido por Lisboa isso não implicava que necessariamente celebrassem uma autoridade centralizada no Rio de Janeiro e apreendessem esse momento como de afirmação nacional As consequências foram muito mais complexas do que esse raciocínio indica pois a instalação do Estado português no Brasil paradoxalmente reforçou os vestígios de identidade brasileira sob alguns aspectos e os negou sob outros De um lado em decorrência da presença do Estado português no Brasil foram encerradas formalmente as distinções entre portugueses nascidos de um e de outro lado do Atlântico borrando ainda mais a definição do que poderia representar ser brasileiro e também português Mas por outro lado a busca de favores diretamente através do governo que se encontrava instalado no Brasil levava a uma aportuguezação dos 31 D João VI também anulou o Alvará de 1785 de D Maria o qual proibia a fabricação de manufaturas na colônia Entretanto não pode escapar um detalhe a partir de 1810 com os Tratados de Comércio Navegação e Amizade instituíase um imposto alfandegário favorável à Inglaterra que era inclusive inferior ao que pagariam as próprias mercadorias portuguesas para entrar no país Dessa forma um novo ciclo de dominação econômica tinha início Assim sendo além do próprio entrave que represen tava a escravidão e a falta de tecnologia apropriada para uma industrialização as poucas metalúrgicas e manufaturas de tecidos foram incapazes de enfrentar a concorrência que os produtos ingleses repre sentavam a partir de tais tratados Uma incipiente modernização nacional viase assim rapidamente abortada pois se fazia evidente que o Brasil estava sendo atrelado a economia inglesa Por outro lado a criação do Banco do Brasil em 1808 também favorecia sob alguns aspectos uma ideia nacional embora seja uma mera suposição imaginar que sua existência pudesse ter esse efeito sobre os habi tantes do país Salah H Khaled Jr 33 brasileiros de elite Em um momento cujo horizonte identitário era de pragmatismo valorizavase a identidade e a descendência portuguesa De fato a materialização concreta do Estado no território da colônia representava ainda que simbolicamente maior unidade política o que em alguma medida poderia promover a coesão necessária à ideia de nação Entretanto com exceção da Abertura dos Portos as medidas tomadas por D João VI em pouco favoreciam um nacionalismo brasileiro como é o caso da criação da Imprensa Régia configurando o primeiro jornal impresso no país cujo caráter entretanto era de louvor a reis e princesas Uma série de instituições foram criadas por D João VI para dar ares europeus ao país32 Todavia havia um limite claro para as ações modernizadoras do monarca33 Apesar de tais restrições foi o término do exclusivo metropolitano que rompeu os laços que prendiam materialmente o país a Portugal possibilitando o florescimento de certa identidade e interesses comuns à boa parte das elites Essa condição se acentuou com a mudança de status da antiga colônia em 1815 que permitiu pela primeira vez em um sentido político começar a pensar na possibilidade de uma nação brasileira34 Afinal pode ser afirmado com certa margem de segurança que o 32 Como a Biblioteca real o Museu Nacional o Jardim Botânico a Academia Militar e a Escola de Medicina 33 Ao mesmo tempo que adotar em toda a extensão os princípios do liberalismo econômico significaria destruir as próprias bases sobre as quais se apoiava a Coroa manter o sistema intacto era impossível sob as novas condições e em alguns aspectos até inviável Daí as contradições da política econômica joanina um misto de liberalismo e mercantilismo no qual de um lado D João agradava os colonos com medidas que eles gostariam de ver ampliadas e de outro se via diante o desejo dos metropolitanos de restringilas Nesse sentido ele também tomou algumas medidas em favor dos portugueses como bai xar as tarifas alfandegárias para os vinhos reduzir a tarifa alfandegária para portugueses a 15 com o Alvará de 1818 bem como o monopólio de comércio com o Oriente VIOTTI Emília Da monarquia a república momentos decisivos 6ª ed São Paulo Brasiliense 1994 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidRaxGQlNxIo4CpgPA1dqVIOTTIEmC3ADliaDamo narquiaarepC3BAblicamomentosdecisivosvonepageqffalse Além disso Pernambuco exportador de açúcar e algodão continuava submetido ao monopólio dos comerciantes portugueses o que teve peso na revolta de 1817 34 Jancsó e Pimenta afirmam que O novo reino transformara ainda que apenas no plano simbólico um conglomerado de capitanias atadas pela subordinação ao poder de um mesmo príncipe numa entidade política dotada de precisa territorialidade e de um centro de gravidade que além de sêlo do novo reino erao também de todo o império Portanto mesmo que no tocante à trajetória das identidades políticas no universo americano as variantes anteriormente apontadas tenham se mantido seus significados tornaramse passíveis de alteração substantiva A partir de então a anterior identidade lusoamericana poderia tornarse brasileira e como tal se autonomizar somandose ao elenco de identidades políticas que já então coexistiam a portuguesa e as outras ancoradas em trajetórias instauradas pela colo nização cada qual expressando uma possibilidade de projeto de nação incompatível no limite com aquelas que as outras encerravam A partir daí a nação brasileira tornavase pensável se referida ao Estado o Reino do Brasil que definia seus contornos como uma comunidade politicamente imaginá vel retornando novamente aos termos de Benedict Anderson JANCSÓ István e PIMENTA João Paulo G Peças de um mosaico ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional bra sileira In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Horizontes Identitários 34 nacionalismo depende de um Estado Nacional para ser concretizado o que certamente era o caso do Brasil35 Ainda que a mudança de status da antiga colônia não implicasse diretamente na existência de um Estado Nacional em sentido estrito a relativa independência do país deixava de ter caráter transitório Não era apenas uma condição temporária mas sim uma realidade concreta o Brasil não estava mais subordinado politicamente a Portugal e isso não tinha relação com a presença do monarca no país mas sim com a própria condição de reino irmão assumida Todavia apesar de tais mudanças a configuração identitária permanecia sendo regional e não nacional Quando nacional o vínculo era Portugal Em 1815 um observador francês Horace Say em um sentido político concluiu que o Brasil era simplesmente a designação genérica das possessões portuguesas na América do Sul36 Um nacionalismo brasileiro praticamente inexistia no início do século XIX Se existia caracterizavase muito mais a partir do movimento pela independência por um sentimento antilusitano do que brasileiro e mesmo assim ambíguo Tal ambiguidade entre os dois sentimentos esteve presente no seio do movimento revolucionário pernambucano de 1817 reprimido em poucos meses por tropas leais ao governo Mesmo buscando a independência em um âmbito separatista e marcado por uma identidade regional manifestava preocupação com os riscos de abrir mão da identidade portuguesa37 Afinal isso significaria igualdade entre a elite branca e os Formação histórias São Paulo Senac 1999 p154155 grifos dos autores Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA127dqPeC3A7asdeumm osaico28ouapontamentosparaoestudodaemergC3AAnciadaidentidadenacionalbr asileira29vonepageqPeC3A7as20de20um20mosaico20ou20apontamentos20 para20o20esffalse 35 O que certamente não é uma característica exclusivamente sua Como afirma Hobsbawm Os EUA e a Austrália são exemplos evidentes de Estadosnações nos quais todas as características nacionais específicas e critérios de existência de nação foram estabelecidos desde o final do século XVIII e de fato poderiam não ter existido antes da fundação de seus respectivos Estados e países Todavia não precisamos lembrar que o mero estabelecimento de um Estado não é suficiente em si mesmo para criar uma nação HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e reali dade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p93 36 Holanda Sérgio Buarque de org História geral da civilização brasileira São Paulo Difusão Eu ropéia do Livro 1962 72 v3p16 APUD GRAHAM Richard Construindo a nação no Brasil do século XIX visões novas e antigas sobre classe cultura e Estado In Diálogos Maringá v 5 2001 Disponível em ttpwwwdhiuembrpublicacoesdhidialogosvolume01vol5mesa1html 37 Graham indica que a perspectiva regional do movimento é evidente em Carlos Guilherme Mota Nordeste 1817 estruturas e argumentos Estudos N 8 São Paulo Perspectiva 1972 e Glacyra La zzari Leite Pernambuco 1817 estrutura e comportamentos sociais Estudos e Pesquisas 52 Recife Fundação Joaquim Nabuco e Editora Massangana 1988 Um outro enfoque que afirma que o movi mento não era separatista mas buscava a independência republicana para todo o Brasil unido pode ser encontrado no poeta pernambucano Gonçalo Barros Carvalho e Mello Mourão em A revolução de Salah H Khaled Jr 35 homens negros e pardos que compunham a maioria da população do país O sentimento de identidade brasileira no período se torna ainda mais complexo de ser avaliado pois Kenneth Maxwell afirma que em virtude do Estado português estar presente no Brasil Portugal declarou sua independência do Brasil na Revolução do Porto fazendo queixas comuns às das declarações de independência coloniais no seu manifesto38 A ambiguidade do movimento era evidente poderia ser considerado liberal de um lado por buscar o fim do absolutismo português mas por outro lado era conservador uma vez que pretendia recolonizar o Brasil39 De certa forma a vinda da família real e a posterior extinção dos privilégios de alémmar pareciam ter gerado uma espécie de nacionalismo português Portanto a Revolução do Porto 1820 tornou ainda mais complexo o quadro identitário do momento Com a convocação da Assembleia Constituinte estava sendo derrubado o absolutismo pois a partir daí D João VI teria que se submeter à constituição elaborada pelas Cortes portuguesas o parlamento Quando foi exigido o retorno do rei a Portugal as províncias do Norte do Brasil aprovaram enquanto as do Sul protestaram insistindo para que ele ficasse Várias províncias inclusive passaram a vincular a suas lealdades ao Estado reformado e não mais ao rei40 D João acabou retornando e seu filho D Pedro permaneceu no Brasil como príncipe regente O processo de independência e rompimento se iniciava o que poria em conflito por definitivo os interesses portugueses e brasileiros 1817 e a história do Brasil um estudo diplomático Villa Rica Ibidem Disponível em httpwwwdhiuembrpublicacoesdhidialogosvolume01vol5mesa1html 38 Como afirma Maxwell o Manifesto da Nação Portuguesa aos soberanos e povos da Europa pro mulgado pelos rebeldes do Porto em 1820 soava como e continha muitas das queixas comumente encontradas nas declarações de independência das colônias Maxwell afirma que em 1820 Portugal declarou sua independência do Brasil e em 1822 o Brasil declarou sua independência de Por tugal MAXWELL Kenneth Por que o Brasil foi diferente O contexto da independência In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Formação his tórias São Paulo Senac 1999 p187188 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombr booksidfJsptN0PWYCpgPA177dqPorqueoBrasilfoidiferente3FOcontextodaind ependC3AAnciavonepageqPor20que20o20Brasil20foi20diferente3F20O20 contexto20da20independC3AAnciaffalse 39 Nesse sentido além da exigência do retorno do rei começaram a ser desmontados os órgãos da administração que D João VI havia trazido para o Brasil Foi decretado que as províncias teriam um governador de armas independente das juntas governativas O contingente de tropas portuguesas foi reforçado no Rio de Janeiro e Pernambuco e os impostos de importação dos produtos ingleses foram elevados para 30 40 Militares se revoltaram em Belém e Salvador formando governos provisórios as juntas governativas Dessa forma manifestavam que somente obedeceriam às cortes de Lisboa Os comerciantes e milita res portugueses imaginavam que a revolução reestabeleceria o monopólio colonial Por outro lado os fazendeiros e os comerciantes brasileiros assim como os altos funcionários da Coroa com interesses locais já estabelecidos esperavam que a Revolução acabaria de vez com os monopólios restantes e permitiria uma representatividade brasileira nas Cortes para defender seus interesses Entretanto dos 70 a 75 deputados previstos em universo de 200 apenas 49 acabaram indo para Lisboa Horizontes Identitários 36 trazendo consequências diretas para a questão da nação brasileira 111 O Brasil independente e o BrasilNação Tornase particularmente difícil definir a questão identitária em um quadro tão rico e contraditório como o que se formou durante o confronto direto estabelecido entre os interesses do Brasil e de Portugal Para que se tenha uma ideia da complexidade da questão a ida de representantes da excolônia a Portugal para participar do processo de elaboração de uma constituição liberal levou à identificação dos mesmos como brasileiros o que até então era inédito Todavia essa vinculação não era necessariamente ao Brasil mas sim apenas indicava que tinham nascido no alémmar41 No entanto à medida que os interesses conjuntos dos deputados das mais diversas províncias se viam confrontados pelas Cortes começavam a aproximarse uns dos outros pois tinham propósitos em comum dentre os quais a continuidade do sistema escravista era o mais evidente Agora sim o outro entendido como inimigo comum começava mesmo que indiretamente a promover coesão dentro da fragmentação que era típica do Brasil Esse princípio de espírito nacional pode ser claramente percebido na frase de um deputado o Brasil é um reino bem como Portugal ele é indivisível e desgraçados daqueles que atentarem contra a sua categoria e grandeza desmembrando suas províncias para aniquilálo42 Entretanto o fantasma da condição colonial e a descendência portuguesa tornavam esse quadro confuso De fato o sentimento de identidade brasileira ainda que embrionário começava a se afirmar em oposição aquele que surgia como outro o português No entanto a complexidade da questão não para por aí Dois deputados das províncias brasileiras em meio à elaboração da Constituição portuguesa consideravam por exemplo o Brasil como seu país mas afirmavam que 41 JANCSÓ István e PIMENTA João Paulo G Peças de um mosaico ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incom pleta a experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 p167 Dis ponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA127dqPeC 3A7asdeummosaico28ouapontamentosparaoestudodaemergC3AAnciadaiden tidadenacionalbrasileira29vonepageqPeC3A7as20de20um20mosaico20ou20 apontamentos20para20o20esffalse 42 Deputado Lino Coutinho sessão de 3 de jul de 1822 Ibid p167 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA127dqPeC3A7asdeummosa ico28ouapontamentosparaoestudodaemergC3AAnciadaidentidadenacionalbras ileira29vonepageqPeC3A7as20de20um20mosaico20ou20apontamentos20 para20o20esffalse Salah H Khaled Jr 37 a nação a que pertenciam era a portuguesa43 Uma carta publicada no Revérbero Constitucional Fluminense em 1822 em pleno processo de independência afirmava que a convocação de uma Constituinte no Brasil era a única forma de salvar a Nação em ambos os hemisférios e se referia aos que aclamavam o imperador na América como portugueses do Brasil44 Ou seja tratavase de uma manifestação de nacionalismo português em pleno Brasil Até as vésperas da proclamação da Independência as elites brasileiras ainda pensavam em manter uma Monarquia dual com o rei de Portugal sendo rei do Brasil e com o país sendo governado por um regente situação na qual seria mantida a autonomia e o livre comércio Entretanto uma vez que os interesses se mostraram irreconciliáveis esta solução acabou inviabilizada A insistência na recolonização com a busca de extinção da liberdade de comércio e autonomia administrativa conquistadas no período joanino estabelecia uma situação política complexa que por sua vez exigia posicionamento por parte dos habitantes da antiga colônia45 É inegável que havia de fato uma vontade de persistir como comunidade por parte das elites que comandaram o processo de independência Mas será que essa vontade pode ser entendida como pretensão a uma comunidade nacional Na realidade sequer havia essa consciência de pertencimento Havia uma vontade de persistir em um status quo alcançado a partir da Abertura dos Portos mas isso não equivale a uma consciência nacional e a uma vontade de pertencer à nação embora possa ser percebida dessa forma Parece evidente que as elites brasileiras foram empurradas para a Independência pela força das circunstâncias sendo muito questionável a ideia de que já havia uma nação imanente clamando pela realização de seu espírito nacional como país independente Ao que tudo indica o Brasil era tido em 1822 às vésperas da independência como um conjunto disperso um agregado de Províncias que são tantos outros reinos que não têm ligação uns com os outros 43 Ibid p130 44 Ibid p131 45 Em síntese os vários interesses se configuravam através de grupos políticos que apesar do nome não tinham a estrutura de partidos O Partido Português avesso à independência como o nome in dica reunia comerciantes interessados no retorno do Pacto Colonial e também militares portugueses e alguns funcionários da Coroa O Partido Brasileiro que incluía alguns portugueses reunia latifundi ários altos funcionários da burocracia estatal e comerciantes ligados ao comércio inglês ou francês bem como traficantes de escravos Desejava o fim das restrições coloniais mas certamente temia os excessos democráticos do liberalismo Seu líder era José Bonifácio de Andrada e Silva Finalmente os chamados radicais eram compostos por um grupo com influência nos setores médios urbanos pe quenos comerciantes advogados padres professores farmacêuticos funcionários públicos de baixo escalão enfim Para esse grupo o modelo era a Independência dos EUA ou a Revolução Francesa Horizontes Identitários 38 não conhecem necessidades gerais cada uma governandose por leis particulares de municipalidade46 O que havia de coesão era em torno de um Estado estabelecido e uma vez que o clima políticomoral se mostrou favorável a partir do conflito de interesses com os portugueses de alémmar se colocou uma relação em que as elites em essência o Partido Brasileiro se dirigiram ao Estado personificado na figura do príncipe regente vide o dia do Fico em janeiro de 1822 para através dele então encaminhar o país para a independência Logo em seguida foi nomeado um ministério que tinha a frente José Bonifácio e em fevereiro D Pedro convocava o Conselho de Procuradores Gerais das Províncias do Brasil Em essência a ideia era preparar a união de todas as províncias e evitar a fragmentação política A partir do cumprase os decretos das Cortes portuguesas só valeriam com a autorização do príncipe O caminho começava a tornarse irreversível como a convocação para uma Assembleia Constituinte demonstra47 Sendo assim a exigência do retorno de D Pedro a Portugal e a negativa melodramática independência ou morte formalizou o que já era evidente o Brasil era um país independente Com a Independência o Brasil havia conquistado sua autonomia política através de uma mudança conservadora que mantinha o vínculo com Portugal através de um governante português e da dinastia de Bragança48 Dentre os vários projetos a opção foi por aquele que garantiria a maior estabilidade e manutenção da ordem o que garantiu a exclusão dos radicais e do próprio povo Dessa forma o nacionalismo utilitário das elites se articulou através do Estado para conformar uma relação eminentemente pragmática na qual a nação era uma preocupação subsequente Portanto será que pode ser afirmado que o nascimento do Brasil independente coincide com o da nação 46 Palavras de Lino Coutinho na sessão de 6 de mar 1822 Extraído de JANCSÓ István e PIMENTA João Paulo G Peças de um mosaico ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 p167 Disponível parcialmente em http booksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA127dqPeC3A7asdeummosaico 28ouapontamentosparaoestudodaemergC3AAnciadaidentidadenacionalbrasileira 29vonepageqPeC3A7as20de20um20mosaico20ou20apontamentos20para20 o20esffalse 47 Onde a perspectiva do Partido Brasileiro preponderou pois foi estabelecido o voto indireto e censi tário 48 Dessa forma por mais estranha que pareça a afirmativa o Brasil não tinha um Estado Nacional bra sileiro mas sim um Estado português que ainda persistia após a independência O contexto histórico do período demonstra esse ponto de vista com certa segurança Salah H Khaled Jr 39 brasileira49 Embora a pergunta pareça simples sua resposta está longe de sêlo Com a proclamação da Independência os jornais afirmavam que o Brasil constituíase em uma nação separada de Portugal apesar de vários brasileiros ainda vincularem suas lealdades à nação portuguesa Percebese claramente que a questão identitária longe de estar assentada era multifacetada marcada por vários horizontes identitários50 Dentre os vários projetos a opção política foi por aquele que garantiria a maior estabilidade e manutenção da ordem ou seja a Monarquia51 O preço a pagar por essa manutenção era a continuidade a percepção de que no Brasil havia uma sociedade afinal portuguesa Um preço alto demais a pagar para alguns mas até mesmo desejado por outros pois implicava na continuidade de uma hierarquia excludente no âmbito interno e garantia um limite claro para o potencial revolucionário embutido na desvinculação com Portugal52 Dentro desse contexto o liberalismo se restringia a um desejo de acesso a mercados à proteção da propriedade e a garantia de que as dívidas seriam pagas Essa opção resultou em uma situação contraditória 49 No que se refere a esse momento de transição política Jancsó e Pimenta argumentam que a even tual relação de simultaneidade entre a emergência desse Estado e a nação em que ele foi instituído é uma das questões mais controversas da nossa historiografia e que a equação entre ambas as partes do problema certamente não é tão direta quanto pode parecer JANCSÓ István e PIMENTA João Pau lo G Peças de um mosaico ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional bra sileira In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 p133134 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA127dqPeC3A7asdeummosa ico28ouapontamentosparaoestudodaemergC3AAnciadaidentidadenacionalbras ileira29vonepageqPeC3A7as20de20um20mosaico20ou20apontamentos20 para20o20esffalse 50 Como afirmam Jancsó e Pimenta a instauração do Estado brasileiro se dá em meio à coexistência no interior do que fora anteriormente a América portuguesa de múltiplas identidades políticas cada qual expressado trajetórias coletivas que reconhecendose particulares balizam alternativas de seu futuro Ibid p132 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWY CpgPA127dqPeC3A7asdeummosaico28ouapontamentosparaoestudodaem ergC3AAnciadaidentidadenacionalbrasileira29vonepageqPeC3A7as20de20 um20mosaico20ou20apontamentos20para20o20esffalse 51 Para Maxwell O Brasil havia sido independente para todas as intenções e propósitos desde 1808 desde 16 de dezembro de 1815 o Brasil fazia parte de um reino unido em pé de igualdade com Portugal O que estava em jogo no início da década de 1820 era mais uma questão de monarquia estabilidade continuidade e integridade territorial do que de revolução colonial MAXWELL Kenneth Por que o Bra sil foi diferente O contexto da independência In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999p186 Disponí vel parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA177dqPorque oBrasilfoidiferente3FOcontextodaindependC3AAnciavonepageqPor20que20 o20Brasil20foi20diferente3F20O20contexto20da20independC3AAnciaffalse 52 Nesse sentido a ameaça a ser evitada era o que representavam os perigosos ideais revolucionários dos jacobinos franceses A Revolução Francesa havia assumido na memória coletiva das elites confor mação de perigo e exemplo negativo do potencial revolucionário Horizontes Identitários 40 em que o rompimento político se via acompanhado de uma continuidade no campo identitário Portanto a questão da contradição entre as identidades brasileira e lusa não foi resolvida após a proclamação da Independência A dimensão de significação identitária ainda se encontrava vinculada à ancestralidade portuguesa Havia um sentimento de nacionalidade mas incipiente mal resolvido Na verdade em virtude das alforrias e do crescente número de escravos livres muitos membros das elites se apegavam cada vez mais à sua identidade portuguesa53 As identidades regionais superavam qualquer identificação nacional com o Brasil A mera existência de um Estado nacional e de fronteiras definidas ainda que compondo dois dos critérios objetivos mais básicos do que consiste uma nação era insuficiente Para Carlos Guilherme Mota sem unidade constitucional ou cultural consolidada sem ter resolvido ou sequer equacionado alguns de seus problemas básicos posto que não era uma nação o Brasil emerge em 18221823 como entidade políticano cenário internacional54 Ainda que a Independência definitivamente não se misture com o nascimento da nação é inegável que foi um momento marcante de mudança da relação das elites com o território do país com o Brasil Passou a imprimir de forma mais contundente a necessidade de um conjunto de uma homogeneidade anseios que podiam ser atendidos plenamente pela criação de uma identidade como forma de garantir a integridade do território brasileiro o bem maior a ser buscado No entanto essa integração não era tão simples de ser obtida quanto parecia Tendências estabelecidas 53 Como consideram Jancsó e Pimenta Não era simples para as elites lusoamericanas despiremse de algo tão profundamente arraigado como a identidade portuguesa expressão sintética de sua dife rença e superioridade diante dos muitos para quem essa condição estava fora de alcance Saberemse portugueses constituía o cerne da memória que esclarecia a natureza das relações que mantinham com o restante do corpo social nas suas pátrias particulares aquela massa de gente de outras ori gens com a qual sobre a qual caberia organizar o novo corpo político JANCSÓ István e PIMENTA João Paulo G Peças de um mosaico ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 p173 Disponível parcialmente em http booksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA127dqPeC3A7asdeummosaico 28ouapontamentosparaoestudodaemergC3AAnciadaidentidadenacionalbrasileira 29vonepageqPeC3A7as20de20um20mosaico20ou20apontamentos20para20 o20esffalse 54 MOTA Carlos Guilherme Idéias de Brasil formação e problemas In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Se nac 1999 p199 Grifo nosso Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJspt N0PWYCpgPA207IA6dqIdC3A9iasdeBrasilformaC3A7C3A3oeproblemasv onepageqffalse Salah H Khaled Jr 41 por séculos conspiravam contra tais intenções Como visto anteriormente a metrópole sempre tomou todos os cuidados necessários para impedir a articulação de uma unidade colonial e o poder do governador geral e dos vicereis era geralmente limitado A própria elite colonial esteve durante muito tempo ligada a Europa porque era nascida lá ou porque estava vinculada por experiência ou interesse a Portugal A colônia cresceu e se formou sob esse espírito desagregador uma tendência que irrompeu com força enorme na primeira metade do século XIX Revertêla não era uma tarefa nada fácil Dessa forma o Brasil esteve longe de conhecer a estabilidade após a separação política55 Quando D Pedro I declarou a Independência do Brasil em 1822 a Bahia e a maior parte das províncias do Norte foram contra e permaneceram leais a Portugal e somente aderiram após empreendimentos militares Portanto como sustentar que havia uma vontade de persistir como nação se a convivência e a própria união política se deu ao menos parcialmente através do uso da força A resposta é simples não é possível sustentar essa posição satisfatoriamente Na verdade muito pouco unia o Brasil um novo país que parecia caminhar para a desagregação como havia sido o caso da antiga América espanhola Portanto a sobrevivência implicava sobretudo na eliminação da diferença na supressão da diversidade Nesse sentido José Bonifácio de Andrada e Silva dá uma boa dimensão da tarefa que devia ser realizada ao afirmar que é da maior necessidade ir acabando tanta heterogeneidade física e civil cuidemos pois desde já em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários e em amalgamar tantos metais diversos para que saia um Todo homogêneo e compacto que não se esfarele ao pequeno toque de qualquer convulsão política56 Reservas à parte é impressionante a visão demonstrada por Bonifácio no ideal exposto acima57 Todavia isso levanta questões sobre quem deveria amalgamar o 55 Como Odalia afirma a liberdade política traz uma série de problemas relacionados com a emer gência do país independente ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997p30 Disponível em http wwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 56 JANCSÓ István e PIMENTA João Paulo G Peças de um mosaico ou apontamentos para o es tudo da emergência da identidade nacional brasileira In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta A experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999p173 Grifos dos autores Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWY CpgPA127dqPeC3A7asdeummosaico28ouapontamentosparaoestudodaem ergC3AAnciadaidentidadenacionalbrasileira29vonepageqPeC3A7as20de20 um20mosaico20ou20apontamentos20para20o20esffalse 57 Kenneth Maxwell refere que Bonifácio também advertiu seus contemporâneos logo no início da in Horizontes Identitários 42 que e em que proporção As propostas de Bonifácio nesse sentido eram por demais ousadas e logo não foram executadas pois não condiziam com os reais objetivos dos protagonistas da separação política do país58 Como referem Jancsó e Pimenta não parece irrelevante destacar que a identidade nacional brasileira emergiu para expressar a adesão a uma nação que deliberadamente rejeitava identificarse com todo o corpo social do país e dotouse para tanto de um Estado para manter sob controle o inimigo interno59 Embora Bonifácio tivesse feito uma série de alertas de fato o objetivo imediato e primordial era a integração a manutenção do território nacional60 O sentido da identidade brasileira a ser criada era portanto justamente o de unir as elites nacionais em torno de uma mesma identidade que garantisse não somente a integridade do território nacional mas também a manutenção de uma estrutura social excludente Tratavase de um processo de homogeneização que deveria ser implantado o mais rápido possível para construir o EstadoNação de forma efetiva e superar as inúmeras dificuldades já relacionadas dependência nacional sobre os efeitos negativos de longo prazo que o fracasso em lidar com a questão da escravidão e da reforma agrária traria para o futuro do Brasil MAXWELL Kenneth Por que o Brasil foi diferente O contexto da independência In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999p185 Disponí vel parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA177dqPorque oBrasilfoidiferente3FOcontextodaindependC3AAnciavonepageqPor20que20 o20Brasil20foi20diferente3F20O20contexto20da20independC3AAnciaffalse 58 Richard Graham indica que José Honório Rodrigues chega a sustentar a tese de que a Independên cia deveria ter sido um processo revolucionário que daria início à construção da nacionalidade brasilei ra em bases popular e liberal O ato de demissão de Bonifácio por D Pedro teria abortado o processo revolucionário instaurando um movimento contrarrevolucionário mais contundente por meio do qual os interesses oligárquicos sobrepuseramse às aspirações populares RODRIGUES José Honório Independência revolução e contrarevolução Rio de Janeiro Francisco Alves 1975 APUD GRAHAM Richard Construindo a nação no Brasil do século XIX visões novas e antigas sobre classe cultura e estado In Diálogos Maringá v 5 2001 Disponível em httpwwwdhiuembrpublicacoesdhidialo gosvolume01vol5mesa1html 59 JANCSÓ István e PIMENTA Op cit p174 Curiosamente embora a frase tenha um certo sentido ambíguo Jancsó e Pimenta parecem ter se confundido nesse ponto pois a afirmação implica na exis tência de uma nação antes do Estado que é exatamente a posição oposta a que os autores defendem Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA127dqP eC3A7asdeummosaico28ouapontamentosparaoestudodaemergC3AAnciada identidadenacionalbrasileira29vonepageqPeC3A7as20de20um20mosaico20 ou20apontamentos20para20o20esffalse 60 Nesse sentido José Murilo de Carvalho aponta que a busca pela integração tratavase antes de tudo de garantir a sobrevivência da unidade política do país de organizar um governo que mantivesse a união das províncias e a ordem social O autor aponta que embora José Bonifácio já tivesse alertado para o problema de formação da nação mencionando particularmente as questões da escravidão e da diversidade racial tudo isso ficou em segundo plano pois a tarefa mais urgente a ser cumprida era a da sobrevivência pura e simples do país CARVALHO José Murilo de A formação das almas São Paulo Companhia das Letras 1990 p23 Salah H Khaled Jr 43 Entretanto a autoridade central encontrava problemas em se impor e as identidades regionais permaneciam problemáticas Pernambuco novamente se revoltou em 1824 e ao obter a adesão do Ceará Rio Grande do Norte e Paraíba formouse a Confederação do Equador que foi reprimida através do uso da força61 A autoridade continuava a buscar sua afirmação através da coerção e a fragmentação parecia iminente pois as províncias recusavam a sujeição ao poder central62 Um dos motivos para a manutenção da Monarquia no processo de independência foi devido ao fato de garantir a continuidade da estrutura social e afastar os perigosos ideais revolucionários franceses bem como reduzir os possíveis questionamentos sobre a legitimidade da nova ordem63 Mesmo assim o regime passou por uma fase tumultuada durante o Primeiro Reinado em virtude dos choques entre os interesses dos grupos mais poderosos do país e o autoritarismo de D Pedro eventualmente levando à sua abdicação64 Em suma não havia a menor condição da população brasileira de 61 A intenção do movimento era clara uma vez que o Nordeste permanecia subordinado ao Sudeste e ao poder central um novo país deveria ser criado independente do Brasil e formado pelas províncias nordestinas com a adoção provisória da Constituição da Colômbia A repressão por parte do governo central foi extremamente severa com centenas de prisões espancamentos enforcamentos e fuzila mentos como foi o caso do Frei Caneca Os horizontes identitários que não se conformavam à nova ordem deveriam ser subordinados à força Essa situação evidencia o caráter do período do Primeiro Reinado Em essência tratouse de uma história de violência por parte das forças conservadoras que prenderam baniram e condenaram a morte os opositores configurando um período marcado por devassas por delito de opinião censura à imprensa suspensão de garantias individuais e instalação de comissões militares Richard Graham refere que O frei Caneca líder intelectual do movimento disse que o Brasil havia se tornado independente não apenas como um todo mas em cada uma de suas partes ou províncias e estas independentes uma das outras Uma província não tem o direito de forçar qualquer outra província a fazer nada Roderick J Barman Brazil The Forging of a Nation 17981852 Stanford Stanford University Press 1988 p121 APUD GRAHAM Richard Construindo a nação no Brasil do século XIX visões novas e antigas sobre classe cultura e estado In Diá logos Maringá v 5 2001 Disponível em httpwwwdhiuembrpublicacoesdhidialogosvolume01 vol5mesa1html 62 O embaixador britânico Henry Chamberlain em carta para George Canning Rio de Janeiro 22 de abril de 1826 acreditava numa provável fragmentação do Brasil uma vez que grande parte da popu lação daquelas províncias distantes do Pará e do Maranhão e até mesmo de Pernambuco e da Bahia estão contra o governo imperial e inclinadas a separarse dos estados do sul Ibidem Disponível em httpwwwdhiuembrpublicacoesdhidialogosvolume01vol5mesa1html 63 Para Odalia a independência nada mais é do que um pacto e um consenso em que se achavam envolvidos tão somente os senhores de terra e de escravos e que visava preservar o que lhes inte ressava basicamente a saber um modo de produção escravista e a propriedade da terra Assim os regionalismos se acomodam momentaneamente e os grupos sociais limitados e pouco numerosos que manifestavam idéias revolucionárias puderam ser facilmente dominados a interpretação mais próxima dos fatos é a de ver o movimento da independência como um movimento não traumático cuja característica maior é o de ser conduzido por uma cúpula dirigente que em nenhum momento abriu mão de suas próprias prerrogativas esvaziandose assim as possibilidades de uma independência armada e revolucionária ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historio gráfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p2728 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 64 O contínuo desprestígio de D Pedro com as elites em virtude de seu autoritarismo vide a Cons Horizontes Identitários 44 então imaginarse como uma comunidade nacional mesmo em um âmbito reduzido restrito às elites O máximo que ocorria era uma espécie de deslocamento para D Pedro e seus aliados do antagonismo em relação aos portugueses configurado durante o processo de independência O que representou afinal a independência do Brasil por si só Maxwell aponta que a emancipação política do Brasil é portanto um longo e cumulativo processo que manteve sua continuidade ao longo do caminho 1808 1816 sic 1822 e até 1831 são todos momentos importantes na afirmação dessa gradual separação e na definição da nacionalidade65 Para Maxwell do ponto de vista administrativo o país não foi nacionalizado até o fim do curto reinado de DPedro em 183166 Portanto é a partir desse momento que pode começar a ser cogitada a ideia do país ter de fato um Estado Nacional É importante rever a cronologia dos acontecimentos em um primeiro momento a colônia passou a ter o Estado materializado em seu território em um segundo momento deixou de ser colônia e assumiu o Estado como seu em um terceiro momento alcançou a independência política ainda que o poder efetivamente só passasse às mãos das elites com a abdicação configurando finalmente um Estado nacional ainda que a monarquia e o príncipe herdeiro demonstrassem uma continuidade com Portugal Nenhum desses momentos se confunde com o surgimento da nação que ainda tituição outorgada e uma série de equívocos levaram a sua abdicação A invasão e anexação da província Cisplatina ainda durante a presença de D João VI no Brasil resultou em desastre pois a partir de 1825 teve início uma luta pela libertação do jugo brasileiro que envolveu a Argentina e aca bou estabelecendo o Uruguai como país independente em 1828 com apoio da Inglaterra Em 1829 os sucessivos empréstimos junto a banqueiros ingleses em parte para custear a guerra fracassada levaram o Banco do Brasil à falência O autoritarismo de D Pedro bem como envolvimento com a sucessão lusa desagradava profundamente às mesmas elites que ainda presas a uma identidade por tuguesa entretanto não cogitavam a hipótese de sofrerem o revés econômico que uma reintegração política poderia acarretar Isso demonstra claramente o quanto havia de identidade nacional no país seja ela portuguesa ou brasileira D Pedro havia se isolado de tal forma que os próprios latifundiários que o apoiaram no passado deixavam certo espaço para os radicais agir e as massas urbanas foram incluídas no processo de confrontação com o imperador vide a noite das garrafadas lhe restando pouco espaço de manobra Acuado frente à multidão às elites aos políticos e até mesmo face às tro pas que outrora lhe foram leais não restou outra alternativa ao imperador que não fosse a abdicação 65 MAXWELL Kenneth Por que o Brasil foi diferente O contexto da independência In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta a experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 p193 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0 PWYCpgPA177dqPorqueoBrasilfoidiferente3FOcontextodaindependC3AAnci avonepageqPor20que20o20Brasil20foi20diferente3F20O20contexto20da20 independC3AAnciaffalse 66 Ibid p194 Salah H Khaled Jr 45 precisava ser inventada Quais seriam as consequências do afastamento de D Pedro Em primeiro lugar com o término do Primeiro Reinado as elites locais obtiveram pela primeira vez o controle político do Brasil A perspectiva era de estabilidade e solidificação do país independente No entanto os vários regentes encontraram problemas enormes em afirmar a legitimidade de suas administrações e o país se viu sacudido por uma série de revoltas Nesse sentido percebese que a Monarquia ainda que sui generis no contexto das Américas era um talvez o único ou no mínimo o mais forte fator de coesão que havia no Brasil Se na Monarquia já havia tensão e revolta na Regência esse clima político foi elevado ao limite extremo A Monarquia oferecia um elemento de estabilidade o que foi demonstrado pelo caos ocorrido na ausência de uma identificação clara da figura do governante Daí a necessidade de retomar esse elemento com a maioridade A Regência foi a fase mais tumultuada da história do país na qual face a um quadro de desagregação iminente a ordem somente foi imposta através da força pois nada parecia unir um todo tão heterogêneo como o Brasil Desse modo se fazia imprescindível para o projeto conservador em curso no final da Regência dar cabo de tanta diversidade e fazer com que os habitantes do país assumissem uma identidade um sentido de todo justamente para evitar a desintegração do território brasileiro A opção pelo retorno em termos práticos da Monarquia é um reflexo dessa preocupação em manter a união territorial Tal preocupação não era em vão pois como é observado por inúmeros teóricos do nacionalismo de acordo com os critérios do século XIX a extensão do território era um dos definidores da legitimidade de uma nação independente Daí a obsessão em manter a antiga América portuguesa unida A construção da nação era necessária quase que uma obrigatoriedade histórica Sua invenção estava ligada a necessidades claras e identificáveis das elites do centro do país e do projeto que defendiam Para Wehling a contextualização do período referente a 18381854 tem como eixo a questão da unidade nacional conforme solucionada pela política conservadora desencadeada a partir da política do regresso ao final das Regências67 Em sentido semelhante Odalia afirma que 67 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p32 Horizontes Identitários 46 a sobrevivência do país independente se confunde pois com a capacidade política de suas classes dirigentes realizarem com sucesso a missão política fundamental do século XIX estruturar e tornar efetivo um projeto de nação68 Em 1838 antes mesmo do término da Regência um passo importante para a realização desse objetivo foi dado com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro A ele coube desempenhar papel instrumental nessa missão sagrada de constituir a nação como será observado a seguir 12 O IHGB e sua missão sagrada a invenção da narrativa nacional A fundação do Instituto veio pois darnos grande valor para a empresa desde que o augusto Chefe de Estado resolveu colocarse a frente dele apreciando altamente os trabalhos acerca da história pátria pelos auxílios que podem prestar independentemente dos que proporcionam à erudição e à literatura ao estadista ao jurisconsulto ao publicista ao administrador ao diplomata ao estratégico ao naturalista ao financeiro e aos vários artistas e talvez prevendo que com serviço nenhum melhor do que os que tivessem relação com a história e geografia e aqui cabem todos os produtos naturais poderiam os seus súditos ser úteis ao saber humano em geral entrando na grande comunhão científicoliterária européia de que por outro lado tantos auxílios recebemos por meio da oferta de novos dados que inclusive venham a ser aí debatidos em proveito da ilustração do país Francisco Adolfo de Varnhagen 121 Por que é preciso inventar a nação A elaboração de uma narrativa nacional se tornou condição sine qua non para legitimar a Monarquia e satisfazer as pretensões de alçar o Brasil à condição de país ordeiro integrado e desenvolvido na segunda metade dos oitocentos A missão de escrever a história do país também era uma missão de modernizálo e de garantir a sua sobrevivência69 Entretanto havia uma série de fatores desfavoráveis à constituição 68 ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p31 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbr downloadtextoup000007pdf 69 Como diz Cezar essa tarefa histórica essa espécie de dever cívico consistia também em civilizar a sociedade CEZAR Temístocles Presentismo memória e poesia Noções da escrita da história no Brasil oitocentista In PESAVENTO Sandra Jatahy org Escrita linguagem objetos leituras de história cultural Bauru SP EDUSC 2004 p7980 Grifo nosso Salah H Khaled Jr 47 de uma nação em um país que atravessaria todo o século XIX marcado pelo atraso em relação ao padrão europeu que desejava alcançar70 Havia um verdadeiro descompasso entre um tempo marcado pela aceleração e transformação que era o caso da Europa no século XIX e o Brasil que ao contrário permanecia engessado pelo conservadorismo e alheio a um processo que em certa medida gostaria de se integrar Entretanto havia antes de tudo uma questão de prioridades ainda que o progresso fosse um objetivo caro às elites oitocentistas ele sempre cedeu espaço aos esforços pela manutenção da ordem e da hierarquia social O Estado Nacional Brasileiro estava comprometido com as necessidades de manutenção do território mas também do status quo no país Era necessário construir não somente a nação mas também a ordem entendida como respeito pela autoridade e pela hierarquização social Para os inventores da história nacional não bastava apenas coesão mas também a manutenção de um modelo excludente de sociedade que deveria ser legitimado a partir da narrativa nacional Tudo isso passava pela invenção da nação Desde a sua fundação em 1838 o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro fez da construção da nação brasileira o lugar central do discurso histórico oitocentista A fundação do instituto esteve longe de ser um fato isolado Pelo contrário integrava um movimento de refluxo conservador face às excessivas liberdades do período da Regência71 O IHGB estava inserido portanto em um impulso conservador cujo objetivo era garantir a integridade do território nacional e a afirmação do regime monárquico estando articulado a uma série de medidas promovidas pela elite de então72 Tratava se de uma solução conservadora marcada pelas ideias de centralização unidade nacional neutralização dos liberais isolamento dos jacobinos procrastinação do 70 Odalia afirma que a longínqua Europa era o paradigma a ser imitado Em suma a Europa com tudo que significa em termos de cultura e civilização será eternamente o modelo a que se deve apegar a nova Nação ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p46 Disponível em httpwwwdominiopubli cogovbrdownloadtextoup000007pdf 71 Para Wehling o IHGB fazia parte do endurecimento e centralização conservadora em curso na segunda metade da década de 1830 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 72 Segundo Wehling a ação dessa elite política regressista demonstrouse em variados aspectos todos tendentes a reforçar a autoridade central e a garantir a monarquia constitucional reação às revol tas regionais Lei Interpretativa do Ato Adicional reforma do Código de Processo Criminal A fundação do Instituto inserese neste processo e por isso os textos são muito claros na defesa da Monarquia constitucional e sistema unitário como regime político ideal para o paísestá faltando abre aspas Ibid p36 Horizontes Identitários 48 problema escravo e afirmação diplomática do país73 A elaboração de uma narrativa nacional estava em conformidade com tais intenções Para que o esforço de centralização promovido por essa elite fosse bem sucedido era importante o estímulo ao sentimento nacional para garantir a integridade do território brasileiro então ameaçada pela instabilidade política do período Dessa forma o IHGB assumiu a tarefa de elaborar um passado em comum para a nação ou melhor dizendo a tarefa de construir a própria nação ao menos discursivamente sendo esse o sentido de sua própria fundação Vocação científica e vocação nacional somavamse na atividade do Instituto e na sua missão de construir discursivamente a nação74 Essa dimensão pragmática pode ser percebida a partir de alguns pontos fundamentais que estão presentes nos textos do IHGB75 Em suma inventavase a nação de acordo com intenções políticas bem definidas A ideia de invenção da nação ainda soa estranha fora dos círculos acadêmicos Entretanto já foi estabelecido que as nações são uma invenção da modernidade apesar de sua aparente antiguidade76 Esse é sem dúvida um dos consensos mais aceitos entre os teóricos do nacionalismo77 O próprio termo nação ao menos em 73 Wehling afirma que a conjuntura de 1838 a 1856 fundação do IHGB e publicação da História Geral do Brasil de Varnhagen respectivamente caracterizavase pela existência do que ele chama de um projeto que buscava a consolidação do Estado Imperial Para ele a elite política ali representada quase toda vinculada à burocracia monárquica central e ideologicamente identificada ao movimento do Regresso por sua vez centrado no eixo RioSão Paulo Minas Gerais encarou como tarefa indispensável à consolidação da unidade política o fortalecimento do sentimento nacional Ibid p111 Para Wehling o exemplo do IHGB é a mais concreta realização no plano cultural de um conjunto de objetivos conservadores em relação ao desenvolvimento do país Ibid p18 74 Guimarães aponta que O interesse pela história que marcaria a vida intelectual das diversas socie dades do século XIX articulavase na verdade a uma questão central para aquele século a problemá tica nacional A pesquisa histórica estava diretamente comprometida com a busca e fundamentação segundo acreditavam objetiva da nação GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado De Paris ao Rio de Janeiro a institucionalização da escrita da história In Acervo v04 n 01 p137 75 De acordo com Wehling destacamse a monarquia constitucional e a unidade do país uma estru tura política centralizada compatibilizada com a descentralização administrativa afirmação do Poder Moderador e do Conselho de Estado o abolicionismo gradual o sistema representativo a subordina ção da igualdade à liberdade aceitando desigualdades funcionais as liberdades concretas viabiliza das pelas instituições e o reforço do poder para assegurar liberdades contra o mandonismo local WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p3435 76 Benedict Anderson caracteriza o problema como a modernidade objetiva das nações aos olhos do historiador vs sua antiguidade subjetiva aos olhos dos nacionalistas ANDERSON Benedict Nação e consciência nacional São Paulo Ática 1989 p13 77 Hobsbawm diz que a característica básica da nação moderna e de tudo que está ligado a ela é a sua modernidade Isso agora é bem compreendido embora a suposição oposta a de que a identifi cação nacional seja tão natural fundamental e permanente a ponto de preceder a história ainda seja tão amplamente aceita HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990p27 Salah H Khaled Jr 49 seu significado atual é inclusive historicamente recente78 No sentido moderno a sua utilização vinculase a um Estado Nacional que promoveu de cima para baixo a invenção da nação pois foi o Estado que construiu a nação e não o contrário79 A força dessa vinculação é inegável pois o Estado era a máquina que tinha que ser manipulada se uma nacionalidade quisesse transformarse em uma nação ou mesmo se seu presente status tivesse que ser protegido contra a erosão histórica ou assimilação80 O Estado brasileiro assumiu dessa forma a gerência do processo de construção da nação81 Consequentemente como a narrativa nacional foi construída como parte integrante de um processo verticalizado de constituição da nação contempla viés decididamente estatal82 122 O IHGB e o poder A fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a sua trajetória nos oitocentos estiveram intimamente ligadas ao poder ao Estado O IHGB foi um instituto verdadeiramente oficial no conteúdo e na forma e essa característica se manifestou 78 Hobsbawm afirma que no século XIX houve um deslocamento de significado no qual o que repre sentava unidade étnica passou a significar independência e unidade política Diz ele que qualquer que seja o significado próprio e original ou qualquer outro do termo nação ele ainda é claramente diferente de seu significado moderno Podemos portanto sem ir mais além no assunto aceitar que em seu sentido moderno e basicamente político o conceito de nação é historicamente muito recente Ibid p30 Grifo nosso 79 Hobsbawm é taxativo em sua opinião não considero a nação como uma entidade social originária ou imutável A nação pertence exclusivamente a um período particular e historicamente recente Ela é uma entidade social apenas quando relacionada a certa forma de Estado territorial moderno o Estado nação e não faz sentido discutir nação e nacionalidade fora desta relação o nacionalismo vem an tes das nações As nações não formam os Estados e os nacionalismos mas sim o oposto Ibid p19 80 HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janei ro Paz e terra 1990 p116 81 Para Odalia assumindo o Estado a dimensão de um poder educador sua face mais odiosa a de força repressora camuflase e se torna mais poderosa pois sua ação é mais insidiosa Ele passa a ser confundido como o lugar privilegiado o manancial de onde emanam as condições políticas e intelectu ais para a constituição da Nação ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p111 Disponível em http wwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 82 Para Odalia Nação e Estado foram sempre concebidos como tarefa de uma minoria culta e escla recida que deveria reger os destinos de ambos orientando corrigindo pela educação pela força a massa considerada incapaz e incompetente de se reconhecer e de reconhecer no projeto idealizado pela camada dirigente seu destino Ibid p33 Horizontes Identitários 50 de maneira evidente na narrativa nacional por ele elaborada83 É importante destacar o sentido dessa relação O vínculo entre a ciência e o poder não é de exterioridade A história enquanto ciência enquanto área de saber em constituição não foi simplesmente apropriada ou usada no sentido de servir aos interesses de dominação e controle social Pelo contrário seu surgimento e desenvolvimento estavam profundamente associados a estratégias de poder que instrumentalizavam que potencializavam e que viabilizavam a sua ação a sua escrita Havia uma profunda articulação entre a elaboração da narrativa nacional e o poder na qual a ciência acabou por assumir uma função eminentemente pragmática84 Em sentido semelhante Cezar diz que a função mais evidente da constituição da história como disciplina era a de esboçar uma visão da nação brasileira85 Wehling afirma que cabia assim à intelectualidade promover por meio dos estudos históricos o desenvolvimento desta consciência tornandose um acelerador da história86 Para Odalia os historiadores atenderam ao apelo e procuraram atender a essa necessidade básica das nações que estavam em vias de formação87 Portanto em função dessa necessidade e de acordo com os objetivos do Estado o IHGB se propôs a elaborar um grande relato da nacionalidade que atribuiria sentido significado e unidade ao todo imperfeito e heterogêneo da nação garantindo a adesão e fidelidade dos cidadãos Tratavase de um esforço de homogeneização da sociedade no plano cultural de erradicação da diversidade regional88 A elaboração de uma narrativa nacional é um elemento central ao processo de constituição da nação fornecendo a um território delimitado geograficamente um passado comum e 83 Odalia afirma que Ao Estado deve incumbir preencher o vazio de idéias em que se processara a nossa independência pos esse vazio aparecia em toda a sua profundidade e em toda gama de conse qüências Erase tão apenas uma excolônia pobre de idéias e ainda mais pobre economicamente Ibid p41 84 Para Odalia a nação é a resultante natural tanto de uma ação pragmática como de uma interpreta ção pragmática da história Ibid p45 85 CEZAR Temístocles Presentismo memória e poesia Noções da escrita da história no Brasil oi tocentista In PESAVENTO Sandra Jatahy org Escrita linguagem objetos leituras de história cultural Bauru SP EDUSC 2004 p79 86 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999p112 87 ODALIA Op cit p34 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007 pdf 88 Como afirma OLIVEN o processo de unificação nacional que acompanha o Estado e que além de centralizar o poder temse mostrado historicamente contrário à manutenção de diversidades regionais e culturais OLIVEN Ruben George Mitologias da Nação In FÉLIX Loiva Otero e ELMIR Cláudio P org Mitos e heróis construção de imaginários Porto Alegre UFRGS 1998 p28 Salah H Khaled Jr 51 portanto uma cultura nacional procurando subordinar e erradicar a diferença89 A história científica sob a chancela institucional do Estado procurou estabelecer esse relato fundador de identidades de significados e de orientações90 Portanto a historiografia dos oitocentos através do IHGB assumiu a importante tarefa de constituir um passado para o país91 Um passado que legitimasse o ordenamento social vigente e colaborasse para a construção de uma nação e de uma identidade nacional brasileira através da constituição de algo fundamental uma dimensão de origem comum que apontasse para um futuro de glórias92 O grande relato da nacionalidade portanto ofereceria na verdade um sentido para o presente e o futuro pautado por um projeto de cunho político e pragmático93 Aos historiadores caberia a dupla função de definir e moldar a nação94 A partir dessa perspectiva a escrita da história seria por excelência 89 Stuart Hall define a cultura nacional como um discurso um modo de construir sentidos que influen cia e organiza tanto nossas ações como a concepção que temos de nós mesmos HALL Stuart A identidade cultural na pósmodernidade 4aed Rio de Janeiro DPA 2000 p5051 90 GUIMARÃES afirma que a associação entre História e Identidade sempre se fez presente no ofício de historiador num procedimento em que muitas das vezes estas identidades foram como que natu ralizadas e a História serviu de respaldo e legitimação para encontrar em tempos remotos as provas necessárias que sustentariam uma memória acerca de identidades de construção recente Uma iden tidade que parecia encontrar através da história seu porto seguro e sua plena justificação encobrindo o penoso processo de invenção desta mesma identidade que como parte da experiência humana só pode ter história GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado A cultura histórica oitocentista a constituição de uma memória disciplinar In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesqui sa Porto Alegre UFRGS 2003p14 91 Odalia afirma que dividemse naturalmente as funções ao homem político cabe a direção da práti ca política ao intelectual especialmente ao historiador incumbe suprir essa ação com os elementos te óricos e históricos necessários para a consecução dos ideais estabelecidos ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997p44 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007 pdf 92 De acordo com Reis A nação recémindependente precisava de um passado do qual pudesse se orgulhar e que lhe permitisse avançar com confiança para o futuro REIS José Carlos As identida des do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p25 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosre isvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLr B5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibo okresulvonepageqffalse 93 Guimarães afirma que O nascimento da história como disciplina científica não pode assim ser dis sociado de um projeto político em gestação quando paralelamente à definição de métodos de trabalho para a pesquisa histórica esperase obter por essa via um sentido de orientação para o futuro desven dandose dessa maneira um papel central para o trabalho do historiador GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado A cultura histórica oitocentista a constituição de uma memória disciplinar In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesquisa Porto Alegre UFRGS 2003p12 94 Como diz Odalia a atividade do historiador é portanto muito mais ampla e profunda do que à pri meira vista pode parecer O autor afirma que se num primeiro momento a ele cabe a criação de um passado uno que dá sentido à Nação num segundo a sua participação é muito mais vigorosa porque a ele também deve caber a tarefa de modelar o futuro ODALIA Op Cit p38 Disponível em http wwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf Horizontes Identitários 52 a escrita da nação95 Os membros do IHGB estavam conscientes da sua importante participação no processo de elaboração discursiva da narrativa nacional96 Estavam engajados sobretudo na tarefa de elaborar um projeto de nação em conformidade com os objetivos do Estado97 Esse enfoque privilegiava politicamente a manutenção da ordem e afirmação do poder do Estado e era indissociável de sua forma de fazer ciência98 Sendo assim a narrativa nacional por eles produzida não deixou de ser um reflexo de seu relacionamento com o poder o que senão comprometia inteiramente a sua cientificidade ao menos a colocava em permanente tensão Uma tensão que longe de ser exclusiva ao IHGB era condição inerente à construção discursiva da nação a partir do Estado nos oitocentos99 O resultado dessa associação entre o poder e o discurso científico da história é uma narrativa que de forma sutil e sugestionada busca induzir comportamentos a 95 Cezar comenta que se colocava dessa forma a nação em primeiro lugar como um préconceito que orientava a construção discursiva da história e assim no plano epistemológico a nação não é somente uma maneira de se pensar a política no quadro dos códigos científicos mas sobretudo uma maneira de se pensar a ciência em uma estrutura de poder nacional CEZAR Temístocles Américo Correa A geografia servia antes de tudo para unificar o Império escrita da história e saber geográfico no Brasil oitocentista In Ágora Santa Cruz do Sul Vol 11 n 1 janjun 2005 p88 96 Odalia afirma que os historiadores se admitiram como forjadores da nacionalidade Agiram premidos e impulsionados pela urgência e pela consciência da tarefa que tinham a realizar ODALIA Op Cit p34 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 97 Para Odalia um projeto é fruto tanto em sua elaboração quanto em sua execução de uma vontade e de uma consciência O projeto assim compreendido não se circunscreve ao âmbito de uma tarefa de cunho político administrativo Sua verdadeira face se revela quando o percebemos como a expressão de uma visão de mundo em que o fator político ganha relevo Ibid p44 98 Como assinala Cezar o Imperador participava das reuniões do IHGB e inclusive ocasionalmente as presidia fazendo sugestões como por exemplo de que fosse feita a história dos seus feitos e gestos CEZAR Temístocles Presentismo memória e poesia Noções da escrita da história no Brasil oitocentista In PESAVENTO Sandra Jatahy org Escrita linguagem objetos leituras de história cultural Bauru SP EDUSC 2004 p4647 Reis ressalta que O jovem imperador aliás precisava mui to da história e dos historiadores o imperador precisava de historiadores para se legitimar no poder REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p25 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23 lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortu guesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JI Om8Ab258VasaXoibookresulvonepageqffalse Como reflete Wehling os fundadores do Instituto objetivavam reconstituir a História pátria para con solidar o ideal nacional WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p36 99 Como afirma Guimarães Da associação entre interesses nacionais e projeto científico para a His tória nascera uma poderosa cultura histórica ainda a nos marcar coletivamente e que viria a afirmar e garantir a centralidade da História no processo de definição de sentidos para o homem contemporâ neo GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado A cultura histórica oitocentista a constituição de uma me mória disciplinar In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesquisa Porto Alegre UFRGS 2003 p11 Salah H Khaled Jr 53 partir de exemplos retirados dos aspectos sobre o passado que se veem privilegiados Afinal o passado composto pela história dos oitocentos não é o passado do todo é o passado de um grupo por excelência do colonizador português e porque não dizer até a memória desse grupo o que implica em um recorte específico em tais representações100 Tal recorte assumia uma característica de função de ordenamento do corpo social em conformidade com uma missão que a história encontravase incumbida de cumprir101 Dessa forma a história constituíase em uma verdadeira pedagogia política encarregada de nortear os posicionamentos dos brasileiros quanto a questões centrais à constituição da nação102 A utilização da história como forma de intervenção social era inteiramente justificada e inerente ao próprio espírito de formação desse campo de saber Não havia qualquer constrangimento construir a história a partir do interesse da nação era condição inerente a sua própria escrita A história portanto deveria ser verdadeiramente escrita a partir da nação103 mas não qualquer nação importava construir a nação a partir da égide da ordem centralizada através da Monarquia Eis a missão e a participação do IHGB no projeto conservador era necessário sobretudo inventar a nação e provêla de um passado que apontasse para esse fim imanente O termo invenção não deve entretanto induzir em equívocos Dizer que a nação foi inventada não significa dizer que ela foi criada pura e simplesmente do nada104 Os autores recorriam a fontes recorriam a elementos recolhidos da realidade concreta De fato havia uma preocupação em 100 Odalia afirma que ao historiador como expressão intelectual do grupo social a que pertence in cumbe diligenciar para traduzir os anseios que o revelam os objetivos que o caracterizam nos termos de nacionalidade inteligibilidade e plausibilidade ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p47 Dispo nível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 101 Odalia comenta que ao historiador cabe o trabalho delicado de cirurgião plástico extirpando sutu rando acrescentando os elementos esparsos de uma nacionalidade ainda em formação Todas as ope rações são realizadas sob o critério das expectativas que se tem a respeito da futura nação Ibid p45 102 Odalia refere que elaborar idealmente uma nação significa primeiramente a escolha de opções São valores que deverão ser escolhidos e atingidos são opções sociais étnicas políticas econômicas antropológicas etc que deverão ser feitas Uma nação não é um simples aglomerado de indivíduos não é somente uma presença territorial ou uma unidade e continuidade espaciais Ela é algo mais am plo e sofisticado Ibid p35 103 CEZAR Temístocles Américo Correa A geografia servia antes de tudo para unificar o Império escrita da história e saber geográfico no Brasil oitocentista In Ágora Santa Cruz do Sul v 11 n 1 janjun 2005 p88 104 Hobsbawm lembra que embora os governos estivessem plenamente engajados em uma engenha ria social ideológica consciente e deliberada seria um erro ver esses exercícios como pura manipula ção do alto De fato eles eram muito bem sucedidos quando podiam ser construídos sobre sentimentos nacionalistas nãooficiais já presentes HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p113 Horizontes Identitários 54 construir a nação por parte daqueles intelectuais de acordo com sua visão de mundo e de sociedade Mas o IHGB era sobretudo um lugar de ciência de acordo com os parâmetros da época os quais implicavam em uma associação íntima com o poder105 Portanto o IHGB ainda que de fato oficial não era um lugar de panfletagem política exclusivamente Era um lugar de ciência O que pode ser dito é que lugar de ciência ou não inegavelmente havia uma relação profunda entre a própria constituição do campo disciplinar e o desejo de concretização do BrasilNação A história fez parte de um projeto de afirmação de identidades nacionais ao longo do século XIX e esteve longe de ser imparcial ao fazêlo apesar da neutralidade científica ser tão cara aos cientistas da época O passado transposto para uma narrativa nacional através de tais pressupostos constituiuse assim em um recurso inestimável para as nações em construção nos oitocentos na medida em que configurava uma cultura nacional que em alguma medida contribuía para sua coesão interna Nesse sentido Hall afirma que embora exista toda uma intenção de uniformidade e homogeneidade cultural uma cultura nacional nunca foi um simples ponto de lealdade união e identificação simbólica106 Para o autor a cultura nacional também é uma estrutura de poder cultural Portanto a historiografia desempenhou papel preponderante no processo de afirmação da nação pois a ela coube não somente inventar a nação mas dessa forma atuar como legitimadora de um determinado projeto de sociedade com o qual estava em conformidade e assim estabelecer uma memória nacional107 Coesão unidade integração e força na união são expressões recorrentes no vocabulário do IHGB e que encontram ressonância no objetivo de construção de uma nação una e indivisa Hall afirma que 105 Odalia afirma que o homem político na prática diária deve evitar que se produzam o separatismo a desunião a fragmentação do território e dos homens o historiador se impõe como missão a tarefa de secundálo com razões e argumentos históricos oferecendo do passado os elementos que possam orientar e consolidar na prática política a consecução do ideal Daí ser um salto relativamente simples o fato de o historiador envolverse nas teias do oficialismo Nessa opção ele não vê nenhum mal e quando dele vem o reconhecimento ele se transforma na sua suprema realização ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vian na São Paulo UNESP 1997 p37 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtexto up000007pdf 106 HALL Stuart A identidade cultural na pósmodernidade 4a ed Rio de Janeiro DPA 2000 p59 107 Hobsbawm afirma que a história é a matériaprima para as ideologias nacionalistas ou étnicas ou fundamentalistas o passado é um elemento essencial talvez o elemento essencial nessas ideolo gias Se não há nenhum passado satisfatório sempre é possível inventálo O passado legitima O passado fornece um pano de fundo mais glorioso a um presente que não tem muito o que comemorar HOBSBAWM Eric Sobre história São Paulo Companhia das Letras 1998 p17 Salah H Khaled Jr 55 Em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas deveríamos pensálas como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade Elas são atravessadas por profundas divisões e diferenças internas sendo unificadas apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultural108 Para que essa unificação ocorresse segundo afirma Wehling era necessária a afirmação de uma cultura nacional por meio do culto e da criação de uma memória nacional o que era pressuposto para a consolidação do Estado Imperial109 O Brasil independente portanto precisava da história e dos historiadores para se oferecer um passado e abrirse um futuro110 Portanto é evidente que a historiografia do IHGB apesar de científica era também engajada111 Havia de fato um processo de configuração da fisionomia nacional para o qual a história era parte central112 A história cumpria assim uma função política associada como estava ao poder e colocandose inclusive como instância de legitimidade do mesmo113 123 O discurso fundador de Januário da Cunha Barboza e seu sentido exemplar Embora não existisse uma ideia inteiramente clara do papel da história e da sua delimitação enquanto campo de saber o discurso inaugural de Januário da 108 HALL Op Cit p6162 109 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p33 110 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p26 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosreis varnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB 5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibo okresulvonepageqffalse 111 Para Odalia o historiador obedecia a uma série de objetivos em seu trabalho em primeiro lugar colaborar na Administração do Estado por meio do levantamento histórico de dados que lhe possam ser úteis em segundo favorecer a unidade nacional e em terceiro complementando o segundo fo mentar e exaltar o patriotismo enobrecendo o espírito público ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p38 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 112 GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado De Paris ao Rio de Janeiro a institucionalização da escrita da história In Acervo v04 n 01 p141 113 É nesse sentido que Wehling reflete que o Instituto realizaria sua obra como apontaram Januário da Cunha Barboza o Visconde de São Leopoldo e Martius visando consolidar o sistema unitário e a forma de governo monárquicoinstitucional Segundo o autor a realização desse programa nas décadas seguintes cujo melhor exemplo foi a História Geral do Brasil de Varnhagen deu o tom da aliança entre a intelectualidade e o poder no Segundo Reinado WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p44 Grifo nosso Horizontes Identitários 56 Cunha Barboza primeiro secretário perpétuo do IHGB oferece vários elementos que demonstram as intenções do recém fundado Instituto ou seja seu plano de ação114 Barboza circunscreveu em seu discurso parâmetros que norteariam o ofício exercido pelos membros do IHGB Um ofício que implicaria em um verdadeiro esforço de invenção da nação de acordo com critérios políticos claros e critérios científicos não tão bem definidos115 A missão de escrever a narrativa nacional era de suma importância verdadeiramente imperativa face à iminente desagregação do território nacional A consolidação da nação exigia a realização dessa empresa científica116 Não restava dúvida quanto ao que deveria ser feito117 mas havia entretanto muito o que se pensar sobre como Ainda não haviam sido estabelecidos os parâmetros da escrita de uma narrativa nacional em um momento em que o IHGB vivia conjuntamente a busca de marcas de cientificidade e a pretensão de construção da nação através da representação histórica118 114 Sobre a questão ver GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado Uma História da História Nacional tex tos de fundação Disponível em httpwwwcoresmarcasefalasprobradmanexos11122008005626 pdf 115 Cezar considera que o discurso de Barboza evidencia que as razões para se estudar a história eram de ordem política e epistemológica CEZAR Temístocles Lição sobre a escrita da história Historiogra fia e nação no Brasil do século XIX In Diálogos DHIUEM v 8 n 1 p16 Disponível em httpwww dialogosuembrincludegetdocphpid436article142modepdf 116 Odalia aponta que O século XIX é o momento da nossa independência ele marca o início de um processo lento e de longa duração que busca forjar a nacionalidade e a Nação É um problema comum do século XIX como também do século XX países novos ou velhos antigas colônias que buscam encontrar em alguns casos ou reencontrar em outros sua identidade seu projeto de vida como uma Nação indivisível e independente ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamen to historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p 3435 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 117 Guimarães reflete que Caberia à história agora como disciplina submetida aos rigores do conhe cimento científico a tarefa de fundar no passado a origem da Nação produzindo para o século XIX as biografias sistematizadas das Nações como parte fundamental da nova pedagogia para o cidadão nacional Como parte deste novo currículo a História deveria contribuir para assentar em bases segu ras as demandas formuladas socialmente de fidelidade a este novo personagem histórico a nação GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado A cultura histórica oitocentista a constituição de uma memória disciplinar In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesquisa Porto Alegre UFRGS 2003 p18 Cezar afirma que desde a sua fundação o IHGB teve como principal tarefa a descrição da história da nação CEZAR Temístocles Américo Correa A geografia servia antes de tudo para unificar o Império escrita da história e saber geográfico no Brasil oitocentista In Ágora Santa Cruz do Sul v 11 n 1 janjun 2005 p79 118 Para CEZAR a meta era estabelecer um projeto historiográfico capaz de organizar os recursos e os procedimentos para se escrever a história da nação O problema é que assim como a nação estava sendo construída a história enquanto disciplina científica estava ainda dando seus primeiros passos Tal como para o projeto nacional também não era clara a identidade da história nem do historiador O que ele devia mesmo fazer E mais como fazer CEZAR Temístocles Lição sobre a escrita da história Historiografia e nação no Brasil do século XIX In Diálogos DHIUEM v 8 n 1 p12 Salah H Khaled Jr 57 A filiação intelectual do IHGB bem como do próprio Varnhagen é objeto de grande especulação O estabelecimento desse vínculo não é um dos objetivos da análise aqui proposta mas sim sobretudo investigar a construção de uma narrativa nacional pelo discurso histórico oitocentista De qualquer forma para não ignorar inteiramente a questão cumpre ressaltar que o assunto foi abordado por vários autores Cezar preocupouse com a vinculação entre os critérios do Instituto e os modelos postos pela historiografia clássica grega especialmente a ideia de uma historia magistra vitae119 Wehling aproximou Varnhagen do romantismo e do historicismo bem como de Vico Hegel e Hobbes120 Odalia percebeu em Varnhagen uma concepção pragmática da história vizinha à de Maquiavel121 Por outro lado o discurso fundador do Instituto proferido pelo seu primeiro secretário Januário da Cunha Barboza evoca alguns elementos que são típicos da modernidade como a noção de progresso e a noção de razão A razão do homem sempre vagarosa em sua marcha necessita de um guia esclarecido e seguro que accelere os seus passos122 Tratase de uma frase imbuída de ideais modernos aos quais a história buscaria corresponder De forma semelhante o programa histórico do instituto redigido pelo Visconde de São Leopoldo diz que o IHGB é o representante das idéas de illustração que em differentes epochas se manifestarão em nosso continente A própria ideia de uma história geral em si contempla uma ambição explicativa totalizante que é tipicamente moderna por definição No prólogo da segunda edição de sua História Geral do Brasil Varnhagen citou Tocqueville como justificativa para a importância do estudo da história nos tempos coloniais123 Portanto parece haver uma filiação híbrida não claramente identificável com uma única corrente de pensamento Varnhagen inclusive expressou o seu desejo de não aderir especificamente a qualquer modelo124 Disponível em httpwwwdialogosuembrincludegetdocphpid436article142modepdf 119 CEZAR Temístocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIX siècle essai sur une rhétorique de la nacionalité Le cas Varnhagen v1 e v2 manuscrito 2002 120 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 121 ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997p71 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbr downloadtextoup000007pdf 122 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 123 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927 pVII 124 Ibid pXI Horizontes Identitários 58 Independentemente da questão teórica e de suas implicações não havia grandes dúvidas quanto à missão a ser cumprida Ou seja a ciência poderia estar em definição mas a dimensão pragmática encontravase bem assentada Não se escrevia apenas história se escrevia para dizer algo que seria em última instância útil para intervir na realidade mesmo que de forma indireta Uma missão que longe de ser simples apresentava uma série de escolhas e definições de posições a tomar A começar pelo recorte O que deveria integrar a narrativa nacional No que devia constituir o passado que sinalizava de forma prefigurada a formação da nação A empreitada da qual o IHGB se encarregou era sobretudo para o instituto uma empreitada de resgate125 Barboza abre a sua fala dizendo que não se compadecia já com o gênio brasileiro sempre zeloso da glória da pátria deixar por mais tempo em esquecimento os factos notáveis da sua história acontecidos em diversos pontos do império sem dúvida ainda não bem consignados126 Sendo assim a história deveria tratar fundamentalmente de fatos notáveis Fatos que trariam glória à pátria e que haviam ocorrido em vários pontos do Império O que é notável e pode produzir a coesão desejada deve ser resgatado do esquecimento para o presente Evidente que a própria definição do que é notável ou não já inclui uma valoração inteiramente subjetiva que entretanto está de acordo com a dimensão pragmática da função de historiador Para Barboza O talento dos historiadores e dos geographos he só quem póde offerecernos essa galeria de factos que sendo bem ordenados por suas relações de tempo e lugar levãonos a conhecer na antiguidade a fonte de grandes acontecimentos que muitas vezes se desenvolverão em remoto futuro127 125 Odalia afirma que na tarefa de constituir a nação é delegado um papel essencial à história es quadrinhar o passado peneirálo resolvêlo buscar em suas cinzas ainda fumegantes entre as ma zelas da servidão e da desunião os desvãos camuflados as pequenas reentrâncias os minúsculos acontecimentos em que se inserem os primeiros gestos tímidos de identidade os primeiros acenos de união os primeiros sonhos de uma pátria livre ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p34 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 126 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p0918 127 Ibidem Salah H Khaled Jr 59 O passado seria constituído a partir de tais princípios como uma verdadeira prefiguração do presente no passado e inclusive sinalização do futuro128 Cezar reflete que apesar do cuidado dos brasileiros por sua pátria eles tinham até aquele momento pelo menos esquecido os fatos notáveis Era necessário então ressuscitá los129 Ressuscitálos através de uma narrativa nacional de um grande relato da nacionalidade Uma narrativa que por excelência teria como característica marcante sua vocação para unir e integrar inspirando e aspirando coesão dentro do todo da nação A história proposta por Barboza é uma história de conquista e defesa do território brasileiro e principalmente uma história geral o que até então não havia sido feito Ou seja segundo ele havia histórias particulares das províncias e não huma historia geral encadeados os seus acontecimentos com esclarecido criterio com deducção philosophica e com luz pura da verdade130 Uma história que uma vez configurada como grande relato da nacionalidade passaria a dar sentido e coesão contribuindo para produzir homogeneidade na qual havia heterogeneidade131 A narrativa nacional seria portanto produto de um esforço intelectual corretivo e integrador exercido por homens patriotas os sócios do IHGB Percebese nas diretrizes estabelecidas por Barboza a contemplação dos objetivos por trás da fundação do IHGB Seria uma história encarregada de englobar o todo do Império ocupandose de acontecimentos que teriam serventia por enaltecer a nação e suas instituições Tratavase sobretudo de reunir os elementos espalhados através das províncias através da superação de tal dificuldade por um esforço patriótico pois cabia ao patriota escrever a história do Brasil132 128 De acordo com Odalia Uma nação não é apenas o que ela foi em seu passado colonial esta é a matériaprima o ponto de partida para uma projeção em direção ao futuro em que deve se realizar o seu ideal de nação ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p38 Disponível em httpwwwdominiopu blicogovbrdownloadtextoup000007pdf 129 CEZAR Temístocles Lição sobre a escrita da história Historiografia e nação no Brasil do século XIX In Diálogos DHIUEM v 8 n 1 p13 Disponível em httpwwwdialogosuembrincludegetdoc phpid436article142modepdf 130 BARBOZA Op cit p0918 131 Quando isso ocorre com sucesso os homens querem estar politicamente unidos com todos aque les e apenas aqueles que partilham a sua cultura Então as organizações políticas estenderão as fronteiras até os limites das respectivas culturas para protegerem e imporem essas culturas até as fronteiras do seu poder A fusão da vontade da cultura e da organização política transformase na nor ma uma norma rara ou dificilmente desafiada GELLNER Ernest Nações e nacionalismo Lisboa Gradiva 1993 p88 132 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 Horizontes Identitários 60 Para a elaboração dessa narrativa nacional o passado era fundamental pois é por excelência fundador de sentidos133 Em última instância a narrativa nacional é um relato de legitimação da autoridade central que busca favorecer a estabilidade desejada pelas elites dirigentes do país e construtoras da nação Esse efeito é obtido a partir dos sentidos construídos pela narrativa nacional que implicam em lições de valor cívico e moral134 A intenção de quem elabora uma narrativa nacional é promover a unificação e logo anular e subordinar a diferença cultural135 Portanto a elaboração de uma narrativa nacional fornece um pano de fundo no qual se desenrola o drama da nação e o seu destino em que todos são partícipes e ninguém é relegado ao papel de mero coadjuvante ainda que aos heróis caiba adoração quase religiosa Para Hall há uma narrativa da nação tal como é contada e recontada nas histórias e nas literaturas nacionais na mídia e na cultura popular Essas fornecem uma série de estórias imagens panoramas cenários eventos históricos símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam as experiências partilhadas as perdas os triunfos e os desastres que dão sentido à nação Como membros de tal comunidade imaginada nos vemos no olho de nossa mente como compartilhando dessa narrativa Ela dá significado a nossas vidas cotidianas com um destino nacional que preexiste a nós e continua existindo após a nossa morte136 Dessa forma a existência humana tornase provida de significação por esse manancial de glórias passadas e de um futuro brilhante que é reservado para a nação dos quais se extraem lições para o presente Lições de devoção lealdade fidelidade e sacrifício em nome da glória da pátria O poder político de tal representação demonstrado pela sua capacidade de induzir um arrefecimento nas contradições internas é inegável Percebese dessa forma a utilidade de constituir um passado que era na verdade projeção daquele presente a partir dos sentidos que lhe eram 133 HALL afirma que as culturas nacionais ao produzir sentidos sobre a nação sentidos com os quais podemos nos identificar constroem identidades Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas HALL Stuart A identidade cultural na pósmodernidade 4a ed Rio de Janeiro DPA 2000p51 134 HALL identifica na cultura nacional uma fonte de significados culturais um foco de identificação e um sistema de representação Ibid p58 135 Ou seja não importa quão diferentes seus membros possam ser em termos de classe gênero ou raça uma cultura nacional busca unificálos numa identidade cultural para representálos todos como pertencendo a uma mesma e grande família nacional HALL Stuart A identidade cultural na pós modernidade 4a ed Rio de Janeiro DPA 2000 p59 136 Ibid p52 Salah H Khaled Jr 61 caros137 As ambições do presente eram em grande medida projetadas no passado nas quais se viam prefiguradas no grande relato da nação138 O IHGB enquanto instituição oficial foi o lugar privilegiado do discurso histórico no século XIX e portanto de constituição do passado e de fundação de tais sentidos139 A historiografia do Instituto nasceu comprometida com a questão da constituição da nação A fundação do IHGB e a missão a ele encarregada revestiamse portanto de forte conotação política Tal comprometimento político se refletia dessa forma no fato de que a construção nacional teria componentes valorizados desproporcionalmente ou então inventados para compor uma narrativa nacional O estudo do passado se tornava uma caça por referências úteis ao que se buscava dizer através da narrativa nacional no presente Por isso são importantes as figuras exemplares140 Os exemplos são necessários pois indicam o caminho a seguir e o modelo de comportamento a adotar A ideia de narrativa nacional se caracteriza por uma função exemplar pedagógica que constantemente remete ao passado um passado datado extraído de fontes mas romanceado e heroicizado O exemplo do passado é extraído para legitimar o presente e construir o futuro da nação Em suma procuravase no passado 137 GUIMARÃES afirma que Ao constituir o passado como projeção do presente e desejo de futuro posto que o lugar por excelência da plena existência daquilo apenas insinuado neste tempo presente a História é capaz de disciplinar este passado segundo os sentidos importantes para o presente em construção conjurando incertezas e dúvidas próprias de um mundo vivendo em meio a um turbilhão de mudanças GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado A cultura histórica oitocentista a constituição de uma memória disciplinar In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesquisa Porto Alegre UFRGS 2003 p17 138 Odalia considera que o que anima vivamente o historiador a trabalhar o passado é nele encontrar a matéria viva e incandescente que permite manipular experiências e elementos históricos para moldar o futuro da Nação O passado então aparece como o despertar da consciência da Nação e da nacionali dade para um certo tipo de Nação ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p38 Disponível em http wwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf Na definição de Guimarães uma cultura histórica atrela inevitavelmente ao passado presente e futuro remetendonos para o passado como lugar por excelência de definição de um sentido original razão explicativa da própria existência no presente Por este procedimento que veio a se consagrar após longa e acirrada disputa pela significação do passado o presente estaria de certa maneira contido no passado de forma prefigurada GUIMARÃES Op Cit p11 139 Como aponta Guimarães o Instituto sem sombra de dúvida lançou as bases da nossa historiogra fia GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado A invenção do passado In Nossa História v3 p24 140 Não é por acaso que Reis aponta que Era preciso encontrar no passado referências lusobrasilei ras os grandes vultos os varões preclaros as efemérides do país os filhos distintos pelo saber e pelas grandes qualidades enfim os lusobrasileiros exemplares cujas ações pudessem tornarse modelos para as futuras gerações REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p25 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid 9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColon izaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShc TbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookresulvonepageqffalse Horizontes Identitários 62 o que poderia ser útil no presente Tal processo não envolvia uma intenção maquiavélica mas sim um reflexo dos valores dos homens daquele tempo enquanto grupo e da tarefa que lhes cabia realizar inventar a nação A narrativa nacional é o mecanismo apropriado para essa finalidade pois borra a diferença e produz coesão dentro de uma determinada circunscrição territorial embora nunca seja inteiramente bem sucedida nessa finalidade No Brasil dos oitocentos essa coesão típica de uma comunidade imaginada141 era mais do que desejável era fundamental diante da instabilidade regional característica do período da Regência e do desejo de manutenção da integridade territorial do Brasil A desintegração da antiga América espanhola em uma série de territórios independentes entre si era uma constante lembrança do esforço necessário para viabilizar a integridade do território nacional Para que esse feito fosse realizado o país deveria se constituir como nação o quanto antes e logo se fazia necessária uma homogeneização que erradicasse as singularidades regionais dentro de seus limites políticos evitando dessa forma a ameaça de fragmentação142 Para atingir tais fins os heróis são muito úteis pois representam bastiões de sacrifício à nação Como diz Barboza aludindo ao literato patrício Alexandre de Gusmão a história é um fecundo seminário de heróis143 Tratavase de estabelecer um passado constitutivo da nação e para tanto os modelos exemplares de comportamento eram simplesmente indispensáveis O primeiro secretário do IHGB não hesita em dizer que a nossa historia abunda de modelos de virtudes mas hum grande numero de feitos gloriosos morrem ou dormem na obscuridade sem proveito das gerações subseqüentes144 Esse esforço de identificação e constituição de heróis 141 Para Anderson a nação é imaginada como uma comunidade porque sem considerar a desigual dade e a exploração que prevalecem em todas elas a nação é sempre concebida como um compa nheirismo profundo e horizontal Em última análise essa fraternidade é que torna possível no correr dos dúltimos séculos que tantos milhões de pessoas não só matem mas morram voluntariamente por imaginações tão limitadas Essas mortes lançamnos abruptamente cara a cara com o problema funda mental proposto pelo nacionalismo o que faz com que as minguadas imaginações da história recente pouco mais de dois séculos dêem origem a sacrifícios tão colossais ANDERSON Benedict Nação e consciência nacional São Paulo Ática 1989 p16 Grifo nosso 142 Odalia afirma que nesse estado de coisas a tarefa é unir o que está disperso assegurar os direitos adquiridos acomodar as divergências projetar para o futuro o que ainda não existe e erigir o Estado como mentor e arquiteto onipotente que presidirá como magistrado e educador a consecução dos trabalhos de tornar realidade o que projeta ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p64 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 143 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 144 Ibidem Salah H Khaled Jr 63 foi caracterizado por Odalia como tentativa de construção de um panteão nacional145 e por Guimarães de uma verdadeira cultura de heróis prometeicos formulada no século XIX146 Portanto parte central da missão do IHGB abertamente estipulada pelo seu primeiro secretário era a de elaborar verdadeiros monumentos nacionais147 O engajamento do IHGB no projeto de nação é demonstrado pela própria escolha de modelos a que Barboza se refere Ao citar os benefícios que advirão de um instituto que irá tratar da história o autor reportase a Cícero e a ideia de uma história testemunha dos tempos luz da verdade e escola da vida148 Justamente o que Cezar se refere como historia magistra vitae a história mestra da vida149 Barboza demonstra isso claramente ao afirmar que não duvidamos Srs que as melhores lições que os homens podem receber lhes são dadas pela historia150 Logo os heróis na verdade os homens constituídos como tais pelo tribunal da história são exemplares e cabe seguir os seus passos nos caminhos da honra e da gloria nacional151 Barboza considera que A fama dos grandes homens rompendo as trevas da antiguidade tem chegado a nós com os documentos de seus meritos acrisolados pela historia ela assim premia a virtude muitas vezes perseguida restituindo à veneração dos homens a memoria daquelles que della se fizeram dignos152 Os termos utilizados por Barboza assinalam a característica de verdadeira devoção ao altar da pátria que é sintomática ao esforço de construção nacional A narrativa construída a partir da historiografia do período buscava assumir um caráter de fundo emotivo cuja característica é de uma veneração a monumentos nacionais o 145 ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 146 GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado A cultura histórica oitocentista a constituição de uma me mória disciplinar In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesquisa Porto Alegre UFRGS 2003 p11 147 BARBOZA Op cit 148 Ibidem 149 Para Cezar a historia magistra vitae não é apenas um adágio erudito ela é também um princípio organizador que justifica e ao mesmo tempo orienta as investigações do IHGB Eternizar salvar os fatos são fórmulas que provêm desse princípio CEZAR Temístocles Lição sobre a escrita da história Historiografia e nação no Brasil do século XIX In Diálogos DHIUEM v 8 n 1 p14 Disponível em httpwwwdialogosuembrincludegetdocphpid436article142modepdf 150 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 151 Ibidem 152 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 Horizontes Identitários 64 que aproxima a questão da identidade nacional de um sentido religioso153 Os símbolos as bandeiras os hinos os heróis enfim tudo isso relaciona de tal forma o sentimento nacional à religião que o nacionalismo já foi inclusive definido como religião moderna154 A proximidade entre a definição do herói supostamente laico e o santo reside no fato de ambos assumirem papel de paradigma Ou seja é através da comparação dos atos meramente humanos com tais paradigmas que se obtém sentido propósito e valor O passado tornase objeto de veneração A ideia de culto aos ancestrais revela a proximidade com a religião que é inerente ao sentimento nacional e que expressa a motivação por trás da devoção em que o mesmo implica155 O nacionalismo que a narrativa nacional estimula em essência é um mecanismo capacitado e privilegiado para promover a lealdade cívica através de uma ligação de caráter emotivo156 Assim dentro de um espírito de lealdade cívica o IHGB seria uma instituição encarregada como em outras nações de eternisar pela historia os factos memoraveis da patria salvandoos da voragem dos tempos157 Logo Barboza explicita o sentido da afirmação do exemplo pois na vida dos grandes homens aprendese a conhecer as applicações da honra apreciar a gloria e a affrontar os perigos que muitas vezes 153 Gellner Baseandose em Durkheim diz que no culto religioso o que a sociedade adora é a sua própria imagem camuflada A proximidade é reveladora numa era nacionalista as sociedades ado ramse de forma aberta e descarada desprezando o disfarce Em Nuremberg a Alemanha nazi não adorava a si própria fingindo adorar Deus ou mesmo Wotan adoravase abertamente Sobre o assun to ainda refere Gellner que a autoidolatria social às vezes violenta e impetuosa e outras moderada e evasiva é agora uma autoidolatria coletiva abertamente declarada os nacionalismos tem idéias próprias e seleções que mesmo quando são rigorosamente laicas podem ser profundamente deforma doras e enganadoras GELLNER Ernest Nações e nacionalismo Lisboa Gradiva 1993 p 8990 154 Pode ser considerado ainda que com algumas reservas que o nacionalismo é a religião da mo dernidade Nesse sentido o relativo declínio das religiões sobrenaturais contribuiu para a emergência da religião civil Há uma sacralização de certos aspectos da vida em comunidade por meio de ritos públicos liturgias políticas ou civis e devoções populares elaborados para conferir poder e fortalecer a identidade e a ordem em sociedades heterogêneas GINER S La religion civil In Diálogo Filosófico setdez 1991 n21 p 359360 APUD GUIBERNAU Montserrat Nacionalismos o estado nacional e o nacionalismo do séc XX Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p 55 155 Em concordância Hobsbawm afirma que houve uma crescente identificação do nacionalismo com a religião e que os liames entre a consciência nacional e a religião podem ser estreitos Essa seme lhança não é surpreendente já que a religião é um antigo e experimentado método de estabelecer uma comunhão através de uma prática comum e de uma irmandade entre pessoas que de outro modo não teriam nada em comum Sendo assim exercia a mesma função que Stuart Hall atribui à narrativa nacional HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p 8283 156 Nesse sentido Hobsbawm afirma que mesmo que o Estado ainda não enfrentasse ameaças sérias à sua legitimidade e coesão nem forças poderosas reais de subversão o mero declínio dos liames sóciopolíticos tornava imperativo formular e inculcar novas formas de lealdade cívica uma religião cívica nas palavras de Rousseau visto que outras lealdades potenciais eram agora capazes de ex pressão política Pois que Estado poderia sentirse seguro na era das revoluções do liberalismo do nacionalismo da democratização e da ascensão dos movimentos operários Ibid p106 157 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 Salah H Khaled Jr 65 são causa de maior gloria158 O primeiro secretário do IHGB estava lançando a pedra fundamental de uma verdadeira missão de fé O culto à nação estava por ser instaurado159 Sua base estava em um modelo tradicional de historia magistra cujo trabalho dos historiadores devia antes de tudo servir à nação a partir da exibição ou ressurreição de figuras exemplares160 Barboza literalmente deplorava o que ele chamava de fria indifferença sobre os pontos de tanto interesse a gloria nacional161 Ele questiona se não terão apparecido neste fertil continente varões preclaros por diversas qualidades que mereção os cuidados do circunspecto historiador e que se possão offerecer às nascentes gerações como typos de grandes virtudes162 Parece haver um sentido sobretudo pedagógico na confecção desse passado pois Barboza entendia que história verídica do país ofereceria profícuas lições aos cidadãos brasileiros no exercício de seus deveres163 A história estava longe portanto de apenas narrar ou representar o passado pois introduzia um conjunto de estímulos à vocação cívica164 Barboza diz que Elles de certo farão o melhor uso dos seus estudos sobre a historia da patria expurgada de tantos erros enriquecendo os seus espiritos de conhecimentos interessantissimos que lhes sirvão nos empregos a que forem chamados pelos votos de seus concidadãos Da combinação dessas idéas assim adquiridas nascerão principios de que deduzão novos conhecimentos que illustrem a carreira de sua vida tornando mais proficuos os seus serviços em beneficio da patria165 158 Ibidem 159 De acordo com RENAN a nação assim como o indivíduo é o ponto culminante de uma série de eventos sacrifício e devoção Nesse sentido o autor afirma que de todos os cultos o dos ancestrais é o mais legítimo pois são eles que nos fizeram o que somos É através de um passado repleto de gló rias grandes homens e heróis que se constitui o capital social no qual se baseia a ideia nacional assim como na expectativa de um futuro em comum RENAN Ernest Que és una nación Madrid CEC 1982 Versão em inglês do texto disponível em httpwwwcoopereduhumanitiescorehss3erenan html 160 CEZAR afirma que Portadora de exempla todos positivos a biografia dos grandes homens é um projeto de ordem historiográfica muitas vezes provado anteriormente Não se trata de uma posição irrefletida mas de um sinônimo aproximado do movimento da história O mundo se transforma graças aos grandes homens CEZAR Temístocles Lição sobre a escrita da história Historiografia e nação no Brasil do século XIX In Diálogos DHIUEM v 8 n 1 p25 Disponível em httpwwwdialogos uembrincludegetdocphpid436article142modepdf 161 BARBOZA Op cit 162 Ibidem 163 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 164 Tratavase segundo Guimarães de consolidar um imaginário nacional capaz de fundamentar ações concretas GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado De Paris ao Rio de Janeiro a institucionalização da escrita da história In Acervo v04 n 01 p138 165 BARBOZA Op cit Horizontes Identitários 66 Essa história decididamente nacional de acordo com um viés específico tinha portanto vocação essencialmente formativa preparatória para o serviço público166 Ora evidente que se a história passava a ser a encarregada da pedagogia que constrói o sujeito desejado pelo EstadoNação ela devia fazer isso a partir da noção de exemplo O passado exercia portanto a partir de uma visão pragmática que o constituía verdadeira função exemplar e pedagógica sobre o presente Eis aí a fundação de sentidos que uma narrativa nacional permite167 Para constituir esse passado histórico munido de uma pretensão exemplar os diversos autores que colaboravam para a missão patriótica do IHGB recolheram uma série de elementos objetivos concretos e elementos extraídos da dimensão da memória que depois foram submetidos a uma reordenação de modo a oferecer um sentido à nacionalidade e através de uma narrativa nacional construir uma verdadeira memória nacional168 Ou seja o passado era investigado a partir de escolhas que implicavam em critérios de acordo com os objetivos do presente169 166 Nesse sentido Wehling ressaltou o aspecto verdadeiramente pragmático e até mesmo profético da atividade do historiador Januário da Cunha Barboza chega a afirmar que a interpretação da his tória brasileira permitiria a previsão do futuro do país o conhecimento histórico ademais devia ser aplicado ao aperfeiçoamento da realidade social os instrumentos para isso eram os próprios estudos monográficos sobre a história brasileira e as monografias biográficas que tinham declarada mente cunho pedagógico em especial para o exercício de funções públicas WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p43 167 Para Reis a narrativa do IHGB deveria eternizar os fatos memoráveis da pátria e salvar do esque cimento os nomes dos seus melhores filhos Para isso deveria coletar e publicar os documentos rele vantes para a história do Brasil incentivar os estudos históricos o IHGB será o lugar privilegiado da produção histórica durante o século XIX lugar que condicionará as reconstruções históricas as inter pretações as visões do Brasil e da questão nacional REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p26 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosreis varnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB 5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibo okresulvonepageqffalse 168 Em relação ao trabalho do IHGB e à obra de Varnhagen GUIMARÃES afirma que tratase de uma História submetida a uma memória que lê o passado segundo as construções e demandas do presen te Através deste procedimento de transformar as lembranças do passado em um relato organizado e coerente produzse sentido e significado para a vida coletiva pela via de valores como os de pertenci mento a um grupo legitimidade e autoridade da nova ordem em constituição assim como a confiança capaz de sedimentar os projetos para a vida coletiva no futuro quer no sentido de manutenção quer no sentido de transformação GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado A cultura histórica oitocentista a cons tituição de uma memória disciplinar In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesquisa Porto Alegre UFRGS 2003 p23 169 Odalia comenta que uma Nação para ser considerada como tal deve ter unidade Surpreendamos portanto essa unidade nos escaninhos em que se esconde remexamos todos os recantos em que ela pode se esconder e depois a revelemos ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997p49 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf Salah H Khaled Jr 67 Sendo assim ao comporse uma narrativa nacional é fundada a memória coletiva desse grupo particular que é a nação cuja característica é de profunda ligação com uma instituição específica o Estado Nacional Fundase assim o sentimento de identidade do indivíduo em torno dessa memória nacional a qual configura uma identidade nacional garantindo que o plebiscito diário170 seja continuamente favorável devido a uma memória de caráter afetivo que vincula e que une o que antes era disperso171 Sem dúvida o poder exercido pelos historiadores era verdadeiramente assombroso172 Um poder que se articulava fundamentalmente a ideia de construção da nação através da narrativa nacional que configurava uma memória nacional173 170 RENAN afirma que são dois os elementos que constituem o que ele chama de princípio espiritual definidor da nação de um lado o passado a posse de um rico legado de memórias de outro no pre sente o consentimento o desejo de viver em conjunto a vontade de perpetuar a herança recebida Conforme o autor uma nação é uma solidariedade em larga escala constituída pelo sentimento sobre os sacrifícios feitos no passado e aqueles que se está preparado para fazer no futuro Ela pressupõe um passado no entanto no presente se faz tangível por um fato o consentimento claramente expres sado no desejo de desfrutar de uma vida comum Para Renan a nacionalidade é algo sentimental e a nação uma alma um princípio espiritual Daí decorre a sua famosa definição a existência de uma nação é um plebiscito diário Sendo assim o autor afirma que uma grande congregação de homens de mente saudável e bom coração cria o tipo de consciência moral que chamamos de nação Desde que essa consciência moral dê prova de sua força pelos sacrifícios que exige do indivíduo em troca de benefícios para a comunidade ela é legítima Logo o que determina a existência de uma nação é a vontade de persistir como comunidade que uma população demonstra RENAN Ernest Que és una nación Madrid CEC 1982 p38 Versão em inglês do texto disponível em httpwwwcooperedu humanitiescorehss3erenanhtml 171 Por isso Guimarães pondera que sendo a história oitocentista narrativa por excelência da legitimi dade nacional deve ensinar de forma organizada o passado necessário para a produção de sujeitos nacionais que se acreditam parte de uma comunidade que tem em comum tradições culturais e um passado de realizações GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado A cultura histórica oitocentista a cons tituição de uma memória disciplinar In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesquisa Porto Alegre UFRGS 2003 p18 172 Nesse sentido Cezar afirma que Se a história faz os grandes homens então os historiadores que fazem a história que a purificam são os verdadeiros mestres do jogo Fazedores da história eles controlam os destinos dos grandes homens ou dito de outro modo os vivos controlam os mortos e os mortos servem aos vivos Eis uma variação da religião historiadora adotada no IHGB Resta saber se o grande homem é um herói acabado ou um candidato a herói Independente da resposta os historiado res do IHGB têm o poder de decidir Eles se colocam assim em uma posição quase divina Criam sua própria providência CEZAR Temístocles Lição sobre a escrita da história Historiografia e nação no Brasil do século XIX In Diálogos DHIUEM v 8 n 1 p18 Disponível em httpwwwdialogosuem brincludegetdocphpid436article142modepdf 173 Como diz OLIVEN a memória nacional referese a uma entidade mais ampla e genérica a nação aproximandose mais da ideologia e por conseguinte estendendose à sociedade como um todo e definindose como universal OLIVEN Ruben George Mitologias da Nação In FÉLIX Loiva Otero e ELMIR Cláudio P org Mitos e heróis construção de imaginários Porto Alegre UFRGS 1998 p30 Cezar afirma que Não há dúvida que o IHGB produziu uma memória nacional CEZAR Temístocles Presentismo memória e poesia Noções da escrita da história no Brasil oitocentista In PESAVENTO Sandra Jatahy org Escrita linguagem objetos leituras de história cultural Bauru SP EDUSC 2004 p55 Segundo Guimarães coube ao instituto portanto elaborar uma forma específica de lem brança própria das culturas ocidentais no momento da construção dos diferentes projetos nacionais GUIMARÃES Op cit p23 Horizontes Identitários 68 Como já foi afirmado anteriormente parte fundamental da constituição de uma nação é dotála de uma tradição de um passado comum e porque não dizer da promessa de um futuro brilhante174 Entretanto como lembra Oliven a construção de uma memória nacional e de uma identidade nacional longe de ser consensual está ligada aos grupos que são vistos como detendo poder e autoridade legítima para se erigirem nos guardiões da memória175 A narrativa nacional dessa forma gera uma memória manipulada que sacraliza que celebra e que comemora a nação Uma memória que forma e dirige a identidade nacional que transformase em tradição com significação quase religiosa176 Em outras palavras buscavase a instauração de um verdadeiro culto à memória nacional garantindo a consolidação da ordem pela elite imperial a partir de um pensamento conservador que organizava disciplinava e sistematizava a memória conferindo a ela o sentido que lhe interessava promover a ideia de adesão à nação177 Eis o sentido da narrativa nacional formar orientar e convencer através do seu sentido exemplar e assim incentivar fidelidade à nação178 O discurso da narrativa nacional objetiva o prazer do ouvinteleitor a sua sedução Pretende obter o seu comprometimento emocional e identificação pessoal Dessa forma a partir da 174 Como diz Anderson se é amplamente reconhecido que os EstadosNação são novos e históricos as nações a que eles dão expressão política assomam de um passado imemorial e ainda mais impor tante deslizam para um futuro ilimitado A mágica do nacionalismo consiste em transformar o acaso em destino ANDERSON Benedict Nação e consciência nacional São Paulo Ática 1989 p21 Stuart Hall também faz afirmação semelhante ao dizer que o discurso nacional constrói identidades que são colocadas de modo ambíguo entre o passado e o futuro Ele se equilibra entre a tentação por retornar a glórias passadas e o impulso por avançar ainda mais em direção à modernidade HALL Stuart A identidade cultural na pósmodernidade 4a ed Rio de Janeiro DPA 2000p 56 175 OLIVEN Ruben George Mitologias da Nação In FÉLIX Loiva Otero e ELMIR Cláudio P org Mitos e heróis construção de imaginários Porto Alegre UFRGS 1998 p30 176 Para obter essa significação de acordo com Cezar o principal é que a conversão de uma memória ou de um passado qualquer seja uma lembrança de glória CEZAR Temístocles Presentismo memó ria e poesia Noções da escrita da história no Brasil oitocentista In PESAVENTO Sandra Jatahy org Escrita linguagem objetos leituras de história cultural Bauru SP EDUSC 2004 p57 177 De acordo com Cezar se poderia dizer que o IHGB tentou organizar todos os traços dispersos da memória do Brasil e os representar à sua maneira isto é historicamente Como o autor lembra tratavase portanto mais do que uma preservação mas sim de uma construção Estabeleciase um recorte de acordo com o interesse maior da nação e a partir daí era escrita a história Cezar afirma que a própria historiografia do período colonial tal como ela foi concebida pelo IHGB foi marcada por um conjunto de esquecimentos ausências e supressões cujo resultado paradoxalmente conferiu um sentido histórico à história brasileira Cezar fala em disciplinarização e arquivamento da memória Ibid p56 178 Cezar salienta que a história era um campo disciplinar em formação Seu discurso era marcado por uma retórica da nacionalidade um discurso historiográfico e político extremamente persuasivo prati cado tanto no IHGB como fora dele tanto na história como em outros domínios CEZAR Temístocles Américo Correa A geografia servia antes de tudo para unificar o Império escrita da história e saber geográfico no Brasil oitocentista In Ágora Santa Cruz do Sul v 11 n 1 janjun 2005 p95 Salah H Khaled Jr 69 identificação a individualidade se diluí em um organismo maior unido por laços de filiação sentimental aos antepassados e compatriotas e parte integrante de um glorioso porvir Como já frisado anteriormente a significação é praticamente religiosa179 O IHGB revestiase assim de uma verdadeira missão de fé cabia a ele conforme o discurso fundador de Barboza salvar da indigna obscuridade em que jazião até hoje muitas memorias da patria e os nomes de seus melhores filhos180 Para Barboza essa missão sagrada atrairia inclusive vários contribuintes de renome que se juntariam aos esforços do instituto pela glória nacional181 Dessa forma organizavam se os esforços para a invenção de uma fundamentação histórica para existência do EstadoNação que passava a estar munido de um referencial que potencializava em certa medida a coesão inerente ao nacionalismo moderno O otimismo exaltado por Barboza é sem dúvida contagiante As forças reunidas dão resultados prodigiosos e quando os que se reunem em tão nobre associação apparecem possuidos do mais encendrado patriotismo eu não duvido preconisar hum honroso successo à fundação do nosso instituto historico e geographico182 Diante desta frase não há como deixar de constatar que a glorificação não era somente do passado mas também do presente183 124 A narrativa nacional escrita pelo sujeito nacional o brasileiro Escrever a narrativa nacional não significa apenas fundar a noção de uma nação internamente mas também obter reconhecimento junto ao mundo civilizado Tratase de um esforço de construção e justificação da nação perante si mesma e também perante o restante do mundo como demonstra o discurso de Barboza 179 Não é por acaso que Nora faz a seguinte afirmação História santa porque nação santa É pela nação que nossa memória se manteve no sagrado NORA Pierre Entre Memória e História a proble mática dos lugares In Projeto História São Paulo PUC n 10 p11 dezembro de 1993 Disponível em httpwwwpucspbrprojetohistoriadownloadsrevistaPHistoria10pdf 180 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 181 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 182 Ibidem 183 Cezar reflete que podese pensar que o próprio IHGB enquanto instituição encarne uma figura de herói um herói que seria um agente coletivo Seus gestos heróicos seriam sua fundação suas tarefas históricas consistiriam em salvar o passado nacional e em construir uma memória nacional Em resu mo fornecer à nação as luzes de que ela precisa CEZAR Temístocles Lição sobre a escrita da histó ria Historiografia e nação no Brasil do século XIX In Diálogos DHIUEM v 8 n 1 p23 Disponível em httpwwwdialogosuembrincludegetdocphpid436article142modepdf Horizontes Identitários 70 Eisnos hoje congregados para encetarmos os trabalhos do proposto Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e desta arte mostramos às nações cultas que também presamos a gloria da patria propondo nos a concentrar em huma litteraria associação os diversos factos da nossa historia e os esclarecimentos geographicos do nosso paiz para que possão ser offerecidos ao conhecimento do mundo purificados dos erros e inexactidões que os manchão em muitos impressos tanto nacionaes como estrangeiros184 A história portanto é vista pelo IHGB como objeto de estima por parte das nações cultas e o Brasil como aspirante a tal condição deve promover o seu conhecimento Percebese uma intenção de alçar o país ao progresso e o investimento na história faz parte de tal movimento no âmbito da intelectualidade Além disso a história do IHGB também exerce função corretiva De acordo com essa pretensão cabe ao IHGB estabelecer uma história purificada em conformidade com o projeto do BrasilNação em andamento o qual não se compatibiliza com as versões anteriores elaboradas por estrangeiros185 A necessidade de um esforço corretivo e de uma história verdadeiramente nacional no sentido pleno da palavra leva Barboza reiterar o assunto com pesar O nosso silencio reprehensivel de certo em materia que tanto affecta a honra da patria tem dado occasião a que os historiadores huns de outros se copiem propagandose por isso muitas inexactidões que deverião ser immediatamente corrigidas186 Para o autor os erros causavam inclusive que o coração do verdadeiro patriota se apertasse no peito187 Barboza não tinha dúvida que escrever a história do Brasil a história nacional devia ser uma missão encarregada aos brasileiros188 Afinal pondera 184 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 185 Cezar afirma que esse processo de purificação é o primeiro passo rumo à transformação daquilo que outrora era lido como história em fonte histórica com a meta de servir de base à escrita da história da pátria CEZAR Op cit p14 Grifo nosso Escrita esta que é considerada por Cezar uma invenção Para o autor As primeiras disposições epistemológicas que devem dirigir esse processo inventivo são a correção dos trabalhos já publicados a definição do que é uma fonte e a narração das ações históricas em um plano que apreenda o geral CEZAR Temístocles Lição sobre a escrita da história historiografia e nação no Brasil do século XIX In Diálogos DHIUEM v 8 n 1 p 1617 Disponível em httpwwwdialogosuembrincludegetdocphpid436article142modepdf 186 BARBOZA Opcit 187 Ibidem 188 Para CEZAR Porém e essa é a especificidade do caso brasileiro antes é preciso inventar a história dessa nação pois tudo o que existe até aquele momento são produções feitas sem as diretivas corretas CEZAR Op cit p 1617 Grifo nosso Disponível em httpwwwdialogosuembrinclude getdocphpid436article142modepdf Salah H Khaled Jr 71 ele deixaremos sempre ao genio especulador dos estrangeiros o escrever a nossa historia sem aquelle acerto que melhor póde conseguir hum escriptor nacional189 Cumpre ressaltar que não havia uma História do Brasil além da escrita pelo poeta inglês Robert Southey a qual contava uma história que não interessava às elites veicular e que com certeza não era propícia ao fomento da identidade nacional190 A história proposta por Barboza ao contrário é sobretudo brasileira ainda que não negue o vínculo com Portugal191 O diferencial necessário entre brasileiros e portugueses na proposta de Barboza revelase por exemplo a partir da seguinte reflexão Nos tempos da passada monarchia os escriptos brasileiros que assim então se publicavão punhão a gloria de seus autores em communhão com a dos Portuguezes e como por tantas difficuldades erão em muito menor numero ficavão absorvidos pelo credito litterario da metropole que bem pouco reflectia sobre o Brasil192 A relação com Portugal é um permanente ponto de tensão para a historiografia dos oitocentos como será visto posteriormente Se de um lado a ancestralidade portuguesa representa o vínculo com o mundo dito civilizado e o diferencial entre a elite e o restante dos habitantes do país de outro lado é necessária a distinção entre brasileiros e portugueses para produzir a diferença que caracterizaria o Brasil como a nação independente que se deseja construir Essa tensão fazia com que Portugal sempre fosse um ponto limítrofe na narrativa nacional exigindo grande cuidado especialmente em momentos em que se estabelecia o conflito entre a metrópole e a colônia193 189 BARBOZA Op cit 190 A História do Brasil de Robert Southey escrita sem que o autor jamais estivesse estado no país era repleta de críticas ao experimento português nas Américas Apesar de admirar a miscigenação racial e o que ele via como uma política de integração étnica no Reino Português censurava duramente os vícios da aristocracia escravocrata o poder dos potentados locais e a ausência de laços comunitários Viu com otimismo a chegada da Corte portuguesa cuja missão de acordo com ele seria civilizar o país para o comércio com a Inglaterra Ver o artigo CEZAR Temístocles O poeta e o historiador Southey e Varnhagen e a experiência historiográfica no Brasil do século XIX In História Unisinos 11 setembro dezembro de 2007 Disponível em httpwwwunisinosbrpublicacoescientificasimagesstoriesPubli cacoeshistv11n3306a312art02cezar5Brev5Dpdf 191 Cezar reflete que em uma nova fase de sua história na qual o Brasil é independente de Portugal o brasileiros estão finalmente capacitados a empreender a recuperação de seu passado CEZAR Op cit p18 Disponível em httpwwwunisinosbrpublicacoescientificasimagesstoriesPublicacoes histv11n3306a312art02cezar5Brev5Dpdf 192 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 193 Wehling ressalta a orientação moderada do IHGB criticando na colonização portuguesa as dis torções e abusos mais evidentes mas elogiando grande variedade de aspectos WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Horizontes Identitários 72 De qualquer forma em meio a essa e a tantas outras tensões os membros do IHGB se lançavam à missão sagrada definida por Cezar como sacerdotal do historiador erigir a nação a partir do seu passado de glórias Isso fica evidente nos trechos finais do discurso de Barboza pensado pelo autor como instrumento apto a despertar a vocação cívica a ser exercida pela escrita da história Ah o meu coração se dilata dentro no peito só à idéa de que este IHG se occupará desveladamente em erguer à gloria do Brasil hum monumento que lhe faltava e do qual emanará néao pequena honra aos que agora aqui reunidos se offerecem às vistas da nação como opifices do magesto edifico da nossa historia Desculpaime Srs se na fraca exposição das vantagens que podem emanar da fundação do nosso instituto eu mais tive em vista a gloria nacional que sempre me fez bater o coração em peito brasileiro do que a difficuldade das emprezas a que nos enderessamos Este magestoso edificio tem por fundamento o amor da patria e o amor das letras Sem trabalho sem persistencia nas grandes emprezas jamais se conseguirá a gloria que abrilhanta os nomes dos bons servidores da patria194 Como Cezar afirma a lição de Januário da Cunha Barboza mostra como a retórica da história pode ser útil pode servir Servir em primeiro lugar e acima de qualquer outra coisa à nação195 O IHGB dava assim os primeiros passos para o desenvolvimento de um saber que na verdade é muito mais caracterizado pela sua pretensão transformadora da realidade do que pela capacidade de efetivamente conhecer o objeto por ele investigado Faltava apenas delimitar melhor esse objeto os parâmetros da sua escrita e os norteadores em torno das quais as intenções pragmáticas do Instituto e do Império poderiam ser contempladas O artigo de Karl Friedrich Von Martius correspondeu a tais expectativas como será discutido a seguir 13 Martius como escrever a história do Brasil o texto de Martius é apreendido pelos historiadores brasileiros do século XIX como uma espécie de manual de introdução aos estudos históricos Temístocles Cezar Fronteira 1999 p41 194 BARBOZA Januário da Cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p 0918 195 CEZAR Temístocles Lição sobre a escrita da história Historiografia e nação no Brasil do século XIX In Diálogos DHIUEM v 8 n 1 p27 Disponível em httpwwwdialogosuembrincludegetdoc phpid436article142modepdf Salah H Khaled Jr 73 131 O marco fundador da nação O discurso de Januário da Cunha Barboza ainda que provido de valor fundacional e diretivo não constitui a rigor um guia para a elaboração da história da nação Sua vocação é quase que inspiradora uma missão de fé ou um chamado às armas Portanto uma lacuna devia ser preenchida Parte de uma pretensão científica implica na definição de um objeto e na sua delimitação Portanto havia necessidade de um marco fundador teórico para os encarregados de construir simbolicamente a nação Esse guia eventualmente veio a ser ofertado aos membros do Instituto e se constituiu de fato no parâmetro para a escrita da história nos oitocentos pois correspondeu a uma série de anseios que os sócios tinham Havia uma vontade de construir a nação Assim como na Europa dos oitocentos a história tinha papel importante e até mesmo fundamental a desempenhar na elaboração de uma narrativa nacional Entretanto a narrativa nacional brasileira teria que levar em conta uma série de particularidades locais tais como o passado colonial o regime monárquico em afirmação a existência da escravidão e de uma população mestiça196 Seria esse o pano de fundo no qual haveria de se desenrolar o enredo da narrativa nacional brasileira Dentro de um quadro que se apresentava problemático um dos pontos mais delicados era provavelmente a condição de ex colônia Condição esta que havia legado ao país um quadro identitário complexo e desfavorável à constituição de uma nação brasileira Portanto o projeto de constituir o BrasilNação em sintonia com o progresso em moldes europeus teria que lidar com obstáculos consideráveis o que não era ignorado pelas elites do país197 Em 14 de novembro de 1840 foi proposto um concurso acadêmico por Januário da Cunha Barboza Seu objetivo era escolher um plano para escrever a história do Brasil A existência de tal concurso demonstra o quanto os membros do Instituto se encontravam angustiados diante da imensa tarefa a realizar198 Fazer do Brasil uma 196 como Cezar afirma as relações entre as noções de história e nação não são homogêneas e variam de acordo com o país CEZAR Temístocles Presentismo memória e poesia Noções da escrita da história no Brasil oitocentista In PESAVENTO Sandra Jatahy org Escrita linguagem objetos leituras de história cultural Bauru SP EDUSC 2004 p 4344 197 Odalia afirma que a inteligência não a sabedoria dessas classes dominantes foi perceber ime diatamente que sua falta de vínculos por sua inércia e desinteresse com o país que herdavam de uma situação colonial lhes augurava um futuro difícil ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997p109 Dispo nível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 198 Odalia afirma que era um grande problema transformar a excolônia numa nação pois não seria por Horizontes Identitários 74 nação munidos da pretensão de atingir um modelo idealizado de civilização europeia estava longe de ser simples pois o país reunia uma série de condições problemáticas199 O sentido do concurso era o de definir um caminho um roteiro que permitisse a superação de tais obstáculos que contemplasse as diversas ambições por trás da escrita da história e também satisfizesse a sua ambição científica O naturalista bávaro Karl Friedrich Philippe Von Martius venceu a disputa em 1847 com o artigo intitulado Como se deve escrever a história do Brasil200 Considerouse que o artigo satisfazia plenamente os objetivos dos quais se encarregava o Instituto201 Originalmente publicado na revista do IHGB em 1844 o texto de Martius estabeleceu de fato as bases do que deveria ser uma história científica da nação brasileira projeto que coube posteriormente a Varnhagen executar O artigo de Martius já foi submetido a uma série de análises as quais são demasiado numerosas para que seja pertinente remontálas aqui202 Para Cezar já foi produzido um certo consenso epistemológico sobre o texto considerado o primeiro a teorizar sobre a forma de escrever a história do Brasil e pelo estabelecimento de um modelo que teria sido seguido por Varnhagen e seus sucessores203 Para Guimarães o texto de Martius forneceu as pistas que permitiram a elaboração de uma narrativa dotada de um enredo de uma fisionomia própria para a nação 204 Reis afirma que o um passe de mágica que se poderia converter uma colônia marcada por séculos de servidão e rapina gem em uma nação independente e soberana ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p16 199 Para Wehling A diferença estava na própria formação histórica brasileira passado colonial re cente instituições públicas escassas e em muitos aspectos inexistentes populações marginalizadas Homens livres pobres indígenas e escravos eram respectivamente cidadãos passivos habitantes nãocidadãos e habitantesobjeto de propriedade WEHLING Arno Estado história memória Var nhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999p88 200 O naturalista já havia estado no Brasil em missão científica tendo inclusive publicado uma obra chamada Viagem pelo Brasil conjuntamente com Johann Bapitst Von Spix que também havia inte grado a missão Apesar da formação e do interesse pelas ciências da natureza era herdeiro da tradição iluminista e sócio do IHGB desde os primórdios da instituição Ainda que um estrangeiro estava longe de ser um desconhecido CEZAR Temístocles Como deveria ser escrita a história do Brasil no século XIX Ensaio de história intelectual In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesquisa Porto Alegre UFRGS 2003 p176177 201 Ibid p 176 202 Cumpre mencionar entre outros Sílvio Romero José Honório Rodrigues Alice Canabrava Pedro Moacyr Campos e Manoel Luiz Lima Salgado Guimarães bastante referido nesta obra 203 CEZAR Temístocles Como deveria ser escrita a história do Brasil no século XIX Ensaio de história intelectual In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesquisa Porto Ale gre UFRGS 2003 204 GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado História e natureza em Von Martius esquadrinhando o Brasil para construir a Nação História Ciência e Saúde Manguinhos Rio de Janeiro v 7 n 2 2000 p 406 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS010459702000000300008 Salah H Khaled Jr 75 texto de Martius considera o que deverá fazer uma história da unidade brasileira A história do Brasil deverá ser centralizada no imperador Apesar da variedade de usos e costumes dos climas das atividades econômicas das raças e da extensão territorial o historiador deverá enfatizar a unidade205 Para efeito do recorte aqui proposto interessa verificar em que medida o artigo de Martius suscitou uma série de questões que posteriormente marcariam a narrativa nacional de Varnhagen a começar pela própria formação da população brasileira206 O desafio posto diante do IHGB era de consideráveis proporções Como elaborar uma narrativa nacional que permitisse a integração de um todo caracterizado por uma disparidade tão grande como era o caso do Brasil A magia da nação está na crença Está no fato de acreditar na sua civilização na sua história na sua cultura nacional É uma ligação de cunho afetivo que une que independentemente de sua natureza é forte e viva O Brasil estava muito longe disso Qual seria o laço a integrar um país que havia chegado perigosamente próximo da desintegração territorial durante a Regência e cujas identidades eram sobretudo regionais Um país que tinha uma composição étnica diversificada cujas questões indígena e negra afastavam do padrão que se desejava atingir Hall refere que na verdade as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos mas são formadas e transformadas no interior da representação Nós sabemos o que significa ser inglês devido ao modo como a inglesidade Englishness veio a ser representada como um conjunto de significados pela cultura nacional inglesa Seguese que uma nação não é apenas uma entidade política mas 205 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p27 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpg PA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3 oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6 jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookresul 206 Reis afirma que O problema político que os historiadores brasileiros enfrentavam teoricamen te nos anos 184050 era o da transformação da excolônia em uma nação A colônia tinha legado uma sociedade heterogênea incompatível social e etnicamente Parecia impossível estruturar uma nação a partir desse legado colonial Era preciso criar uma idéia de homem brasileiro de povo brasileiro no interior de um projeto de nação brasileira Ibid p31 Disponível parcialmente em http booksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnh agenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZ sigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookre sul Horizontes Identitários 76 algo que produz sentidos um sistema de representação cultural As pessoas não são apenas cidadãosãs legais de uma nação elas participam da idéia de nação tal como é representada em sua cultura nacional207 Para Odalia essa representação poderia ser melhor chamada de uma ficção o que entretanto não impede que seja percebida como a realidade de um consenso208 Mas qual seria a ideia de Brasil que poderia promover essa coesão dentro de uma narrativa nacional 132 As três matrizes e o assimilacionismo O artigo apresentado por Martius correspondeu em grande medida às expectativas dos membros do Instituto pois forneceu um mapa que contemplava boa parte das questões que os atormentavam Além de oferecer um guia para a narrativa nacional o texto deveria de alguma forma lidar com a tensão maior da sociedade brasileira a questão racial Martius fez desse tema a base e o problema inicial a ser atacado em seu plano para a escrita da narrativa nacional O autor estruturou seu pensamento sobre a história do Brasil a partir dos elementos que concorreram de acordo com ele para a formação do homem brasileiro Para Martius qualquer que se encarregar de escrever a História do Brasil país que tanto promete jamais deverá perder de vista quais os elementos que aí concorrerão para o desenvolvimento do homem209 Ele estava preocupado sobretudo com a questão da formação histórica Ao desenvolver seu raciocínio apresentou solução até então inédita210 para um dos problemas centrais da questão nacional brasileira 207 HALL Stuart A identidade cultural na pósmodernidade 4a ed Rio de Janeiro DPA 2000 p4849 208 Odalia afirma que a nação se apresenta como uma realidade concreta com que temos de nos haver continuamente pois dela decorre uma série de deveres e obrigações que dimanam aparentemente com uma força irresistível e não contestável de existirmos no interior da coletividade A nação apare ce pois como uma realidade com a qual mantemos uma relação direta e imediataODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 209 MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Como se deve escrever a história do Brasil In RIHGB 6 381403 1844 2ª ed p389411 210 Apesar de Southey ter anteriormente elogiado a política de integração étnica através da miscigena ção O poeta e o historiador Southey e Varnhagen e a experiência historiográfica no Brasil do século XIX In História Unisinos n11 setembrodezembro de 2007 Disponível em httpwwwunisinosbrpublicacoescientificasimagesstoriesPublicacoeshistv11n3306a312art02 cezar5Brev5Dpdf Salah H Khaled Jr 77 São porém estes elementos de natureza muito diversa tendo para a formação do homem convergido de um modo particular três raças a saber a de cor de cobre ou americana a branca ou Caucasiana e enfim a preta ou etiópica Do encontro da mescla das relações mútuas e mudanças dessas três raças formouse a atual população cuja história por isso mesmo tem um cunho muito particular211 A ênfase na ideia de uma história com cunho particular demonstra a tentativa de estabelecer o que há de propriamente nacional no Brasil Não é só a composição racial o problema mas a falta de uma identidade que seja brasileira especificamente do país212 O reconhecimento da formação peculiar do brasileiro serve a um propósito claro Estabelece uma distinção que revela a singularidade do brasileiro diante do português o que é importantíssimo para constituir uma nação brasileira213 Entretanto por outro lado o reconhecimento da contribuição negra e indígena é quase que instantaneamente relativizado pois a herança do colonizador deve ser valorizada o Português que como descobridor conquistador e Senhor poderosamente influiu naquele desenvolvimento o Português que deu as condições e garantias morais e físicas para um reino independente que o Português se apresenta como o mais poderoso e essencial motor Mas também de certo seria um grande erro para com todos os princípios da Historiografiapragmática se se desprezassem as forças dos indígenas e dos negros importados forças estas que igualmente concorreram para o desenvolvimento físico moral e civil da totalidade da população Tanto os indígenas como os negros reagiram sobre a raça predominante214 No mesmo instante que ocorre o reconhecimento por parte de Martius este afirma que há um predomínio do branco europeu ou seja do português Essa referência é necessária pois é a herança portuguesa que liga o país ao continente 211 MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Como se deve escrever a história do Brasil In RIHGB 6 381403 1844 2ª ed p389411 212 Odalia afirma que A história deve ser o espelho em que os homens de uma comunidade devem se olhar e se reconhecer Nela o que vão buscar são os traços comuns que permitem a cada indivíduo olhar o outro e reconhecerse nele são as peculiaridades que permitem ao grupo reconhecerse como grupo nacional e diferenciarse dos grupos não nacionais ODALIA Nilo As formas do mesmo en saios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p37 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 213 MARTIUS afirma que Nos pontos principais a história do Brasil será sempre a história de um ramo de Portugueses mas se ela aspirar a ser completa e merecer o nome de uma história pragmática jamais poderão ser excluídas as suas relações para com as raças Etiópica e Índia MARTIUS Op cit 214 Ibidem Horizontes Identitários 78 europeu local por excelência da civilização e parâmetro que o Brasil pretendia atingir215 A jovem nação não poderia abrir mão dessa ancestralidade pois era justamente ela que garantia o seu pedigree e logo a possibilidade de ingresso no mundo civilizado216 O Brasil Império entretanto não se contentaria em ser apenas uma extensão de Portugal O Brasil seria superior a Portugal até mesmo etnicamente Para Martius a mescla não é negativa ao contrário fortalece e engrandece a raça217 Assim a miscigenação seria um propósito arquitetado pela própria Providência Dessa forma Martius afirma que jamais nos será permitido duvidar que a vontade da Providência predestinou ao Brasil esta mescla218 Portanto não havia o que se envergonhar pois tratavase de desígnio divino219 Talvez o ponto mais importante no raciocínio desenvolvido por Martius é que eventualmente a mescla resultaria na eliminação das raças inferiores inteiramente absorvidas pela raça superior220 Portanto os brasileiros não deveriam se alarmar 215 Como diz Reis O Brasil independente queria portanto continuar a obra de Portugal pois a coloni zação portuguesa era vista como bemsucedida trouxera a civilização européia a religião cristã e tor nara produtiva uma região abandonada e desconhecida Portugal integrou o Brasil na rota da grande história REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p32 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUC pgPA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3 A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBRe ih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookresul 216 De forma semelhante Guimarães afirma que o Brasil queria continuar a história que os portugue ses fizeram na colônia A identidade da nova nação não se assentaria sobre a ruptura com a civilização portuguesa a ruptura seria somente política Os portugueses são os representantes da Europa das Luzes do progresso da razão da civilização do cristianismo O Brasil queria continuar a ter uma identidade portuguesa a jovem nação queria prosseguir na defesa desses valores APUD REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p31 Dis ponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA2 3dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortuguesa sourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab 258VasaXoibookresul 217 MARTIUS afirma que Tanto a história dos povos quanto a dos indivíduos nos mostram que o gênio da história do Mundo que conduz o gênero humano por caminhos cuja sabedoria sempre devemos reconhecer não poucas vezes lança mão de cruzar as raças para alcançar os mais sublimes fins na ordem do mundo Quem poderá negar que a nação Inglesa deve sua energia sua firmeza e perseve rança a essa mescla dos povos céltico dinamarquês romano anglosaxão e normando MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Como se deve escrever a história do Brasil In RIHGB 6 381403 1844 2ª ed p389411 218 Ibidem 219 MARTIUS diz crer que um autor filosófico penetrado das doutrinas da verdadeira humanidade e de um cristianismo esclarecido nada achará nessa opinião que possa ofender a susceptibilidade do Brasileiros Ibidem 220 É importante referir que Odalia equivocadamente atribuiu a Varnhagen a formulação original de uma teoria do branqueamento da população brasileira quando de fato que o fez primeiro foi Martius ODA LIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p96 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownload textoup000007pdf Salah H Khaled Jr 79 diante da composição étnica do país pois a síntese através da miscigenação viria efetivamente a erradicar a diferença221 Martius reconhece a existência de um problema na constituição da nação a diversidade racial e sinaliza para um futuro no qual esse obstáculo será removido Dessa forma resolve dois problemas inerentes à configuração de uma narrativa nacional brasileira com apenas um golpe através da lógica assimilacionista O sangue Português em um poderoso rio deverá absorver os pequenos confluentes das raças Índia e Etiópica Em a classe baixa tem lugar esta mescla e como em todos os países se formam as classes superiores dos elementos das inferiores e por meio delas se vivificam e fortalecem assim se prepara atualmente na última classe da população Brasileira essa mescla de raças que daí a séculos influirá poderosamente sobre as classes elevadas e lhes comunicará aquela atividade histórica para a qual o Império do Brasil é chamado222 Dessa forma Martius atribuiu sentido ao que parecia caótico o problema da miscigenação racial O modelo apresentado por Martius efetivamente reconhece para depois entretanto sinalizar a anulação da diferença A diferença precisava ser eventualmente anulada para que o brasileiro pudesse pensarse como ocidental como europeu único modelo civilizado Ao mesmo tempo que outro o Brasil aspirava à condição de mesmo Há uma inclusão das demais matrizes na narrativa nacional mas não um reconhecimento da diversidade pois esse reconhecimento implica na sua eventual eliminação por completo223 Mesmo assim em certa medida em Martius há o desenvolvimento de um modelo para o Brasil e não a mera implantação de um modelo alienígena e inadequado Portanto o texto fundador da narrativa nacional ofereceu uma explicação para uma situação inquietante às pretensões nacionais que agora era elevada à condição de sustentáculo às próprias ambições que o país 221 Odalia afirma que A etnia se purifica pela conquista que legitima Os senhores da terra são também os senhores que podem impor sua etnia A Nação assim se define por uma etnia a do grupo vencedor O grupo vencido participa da história pela única porta que se lhes deixa aberta a miscigenação Ibid p39 222 MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Como se deve escrever a história do Brasil In RIHGB 6 381403 1844 2ª ed p389411 223 Odalia afirma que A Nação se esboça portanto como a realização de uma etnia em que as outras serão lenta e deliberadamente absorvidas de maneira que o futuro da Nação se confunde com essa etnia e seus valores ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p39 Disponível em httpwwwdominiopu blicogovbrdownloadtextoup000007pdf Horizontes Identitários 80 tinha com conotação positiva pois implicava no aperfeiçoamento da raça224 Martius forneceu aos brasileiros uma nova forma de ver o Brasil e de se ver no Brasil Ao fazêlo Martius inaugurou uma longa tradição que posteriormente ficou conhecida como democracia racial e o estabeleceu de forma muito sólida Ao que parece foi o primeiro a fazer isso Varnhagen apesar de escrever em sintonia com as ideias de Martius sobre o tema dedicou pouco espaço ao assunto em sua obra e se limitou a reproduzir a esperança de eventual assimilação e desaparecimento das raças inferiores Se as raças inferiores deveriam ser integradas o mesmo deveria valer para a sua história De forma que Martius defendia a integração da história indígena à história nacional Para ele os índios a que se referia como raça cor de cobre e sua história faziam parte da história do Brasil225 Esse foi um ponto seguido com certa relutância por Varnhagen que somente tratou especificamente dos índios no oitavo capítulo da primeira edição de sua História Geral do Brasil e mesmo assim em outros termos226 Por outro lado a teoria desenvolvida por Martius de uma degeneração por ele referida como ruína dos povos foi devidamente incorporada por Varnhagen Essa ideia essencialmente articulase em torno do princípio de que os índios encontrados pelos portugueses seriam um resquício decadente de uma civilização outrora próspera que constituiria um grande e único povo227 Para Martius caberia ao IHGB desvendar essa história Varnhagen explorou essa hipótese a partir da audaciosa afirmação de que havia uma relação entre os tupis e os egípcios Entretanto Reis assinala que para 224 Odalia reflete que aos vencidos só resta uma participação passiva no projeto da nova Nação e apenas na medida em que se deixarem ou forem absorvidos e integrados racial e culturalmente pelo branco única fonte de legitimação pois dele decorrem os valores básicos da nova nacionalidade Ibid p47 225 MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Como se deve escrever a história do Brasil In RIHGB 6 381403 1844 2ª ed p389411 226 Certamente que essa afirmação não era fruto de mero acaso Para Reis o Brasil queria continuar a ser português e para isso não hesitará em recusar ou reprimir o seu lado brasileiro Esse Brasil portu guês será defendido e produzido pelas elites brancas pelo Estado pela Coroa O novo país será uma continuação da colônia A diferença é que a coroa não é mais exterior mas interior E é portuguesa ainda REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p32 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUC pgPA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3 A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBRe ih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookresul 227 Para Wehling há aqui uma crítica ao naturalismo de Rousseau em vez de caracterizar o índio como o homem primitivo foi visto como o final de um processo de degradação cultural WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p38 Salah H Khaled Jr 81 Varnhagen o passado indígena deveria ser sepultado ou lembrado com horror228 133 A exaltação dos feitos portugueses e a repulsa aos atos de rebeldia A exaltação da virtude dos portugueses das suas imensas capacidades e vocações heróicas encontra raiz no texto de Martius Quando fala nos portugueses o autor não poupa elogios a começar pelo relato do triunfo civilizatório frente à adversidade Martius diz que Quando os Portugueses descobriram o Brasil e nele se estabeleceram acharam os Indígenas proporcionalmente em tão diminuto número e profundo aviltamento que nas suas recém fundadas colônias podiam desenvolver e estenderse quase sem importarse dos autóctones Estes exerceram sobre os colonos uma influência negativa tão somente por quanto só os forçaram a acautelarse contra as suas invasões hostis e por isso criaram uma instituição singular de defesa o Sistema das Milícias229 A ideia de triunfo e feito heroico no processo de colonização do país é outra característica que presente em Martius foi explorada até a exaustão na obra de Varnhagen Martius vê a colonização como um feito heroico que era antes uma conseqüência das grandes descobertas e empresas comerciais dos Portugueses sobre a Costa Ocidental da África do Cabo Moçambique e Índia As mesmas razões gerais e poderosas que imprimiram a uma das nações mais pequenas da Europa um movimento tão poderoso que a impeliram para uma atividade que faz época na história universal induziramna igualmente à emigração para o Brasil230 Varnhagen não apreciava a associação que era feita entre a sua História Geral do Brasil e o artigo do naturalista alemão231 Entretanto o fato é que mesmo que Varnhagen 228 Segundo Reis Varnhagen pensa que Esse é o passado do Brasil que deverá ser esquecido ou que não deverá influenciar na construção do futuro da nação brasileira se preservado Deverá ser preservado como antimodelo como modelo daquilo que o Brasil não quer ser REIS Op cit p37 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgP A23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortugues asourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8 Ab258VasaXoibookresul 229 MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Como se deve escrever a história do Brasil In RIHGB 6 381403 1844 2ª ed pp389411 230 Ibidem 231 Segundo Wehling Sua própria disposição aliás era de não seguir servilmente nenhum mode Horizontes Identitários 82 detestasse a comparação ou melhor a relação direta que se fazia entre a sua obra e o artigo de Martius é inegável que a estrutura de seu texto reflete as estratégias que Martius estipulou232 Isso é facilmente demonstrado pela leitura e comparação de ambas as obras Por exemplo Martius discutiu as vantagens oferecidas pelo Sistema das Milícias como os sucessos das armas portuguesas contra diversos invasores os Franceses no Maranhão e Rio de Janeiro os Holandeses em uma grande parte da Costa Oriental233 e portanto exaltou o triunfo e o heroísmo dos conquistadores deparados com a ameaça representada pelo outro Estabelecidos os portugueses no litoral onde ao princípio se estabeleceu a civilização Européia mais e mais para o interior aonde ninguém reconheciam acima de si venciam os Índios à força de armas ou induziamnos com astúcia para servilos Assim vemos que a posição guerreira em que se colocou o colono Português para com o Índio contribuiu muito a rápida descoberta do interior do país como igualmente para a extensão do domínio Português234 O português é duplamente glorificado tanto pela sua astúcia quanto pela sua disposição para a guerra que inclusive explica a extensão territorial do país Entretanto para Martius essa autonomia e disposição favorecia o desenvolvimento de instituições municipais livres e de uma certa turbulência e até desenfreamento dos cidadãos capazes de pegar em armas em oposição às autoridades governativas e poderosas ordens religiosas235 A condenação dessa autonomia é indicativa dos intuitos pragmáticos e paradigmáticos do texto A partir de uma contraposição entre lo em matéria historiográfica lastimando que associassem sempre sua obra ao plano de Martius WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999p138 232 Varnhagen apenas citou de passagem Von Martius em dois trechos da História Geral do Brasil e mesmo assim como um naturalista e não como pesquisador interessado em história autor de um roteiro que ele Varnhagen ao menos em grande parte seguiu As interpretações sobre a influência variam desde as mais radicais que consideram a obra de Varnhagen uma verdadeira extensão do que foi delineado por Martius até as posições mais relativas como a de Wehling que considera que houve uma influência mas não tão determinante quanto já foi dito O próprio Varnhagen enfrentou pessoal mente uma certa polêmica a respeito afirmando uma coincidência de propósitos e não influência direta CEZAR Temístocles Como deveria ser escrita a história do Brasil no século XIX Ensaio de história intelectual In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesquisa Porto Alegre UFRGS 2003 p 179180181 233 MARTIUS Op cit 234 MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Como se deve escrever a história do Brasil In RIHGB 6 381403 1844 2ª ed p389411 235 Ibidem Salah H Khaled Jr 83 atos louváveis e censuráveis constróise um sentido de orientação cívica para os habitantes do país O exemplo funciona assim em dupla dimensão positiva e negativa Tratase de uma estratégia argumentativa desenvolvida em torno de um binômio extensivamente trabalhado por Varnhagen de um lado uma disposição para atos heroicos cobertos de glória e dignos de rememoração de outro lado a ameaça constante do perigo desagregador Quando a iniciativa não se posiciona em defesa do todo da nação projetado no passado mas sim em defesa de interesses regionais ela é condenada Se de um lado a iniciativa é louvada quando contribui para a argumentação de uma nação em construção desde a vinda portuguesa de outro lado é refutada com forte caráter pejorativo quando assume nuances semelhantes ao perigo de desagregação territorial que o país enfrentava em meio à invenção da nação no século XIX Dessa forma o plano não estipulava apenas diretrizes para a invenção da nação no passado mas também para a garantia do seu sucesso no presente e no futuro de acordo com os valores das elites encarregadas de assegurar a estabilidade política 134 O todo e a parte questãochave da problemática nacional Se há uma vinculação direta entre Martius e Varnhagen o plano apresentado por Martius se mostrou muito mais abrangente do que a sua execução posterior em que houve um privilégio do aspecto político Para Varnhagen o evento histórico era essencialmente político e estatal236 O recorte se encontra provavelmente ligado a uma questão de formação e não somente a preferências pessoais Martius era um naturalista enquanto Varnhagen era um historiador e nos oitocentos a história se notabilizou por ser um relato do passado da nação com ênfase no político Entretanto apesar de não ser um historiador em Martius já havia uma noção de história geral Sobre a forma que deve ter uma história do Brasil sejame permitido comunicar algumas observações As obras até o presente publicadas sobre as províncias em separado são de preço inestimável Elas abundam em fatos importantes esclarecem até com minuciosidade muitos acontecimentos contudo não satisfazem ainda às exigências da verdadeira historiografia porque se ressentem demais de certo espírito de crônicas237 236 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p62 237 MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Como se deve escrever a história do Brasil In RIHGB 6 Horizontes Identitários 84 Portanto no artigo de Martius já havia uma disposição para a seleção para o recolhimento dos detalhes pertinentes a uma história do todo nacional e portanto de um grande relato da nacionalidade deixando de lado o que não tivesse o padrão de relevância exigido para uma narrativa nacional Entretanto apesar de Martius já preconizar uma história geral a forma de história geral que ele propõe era muito diferente da que foi realizada posteriormente por Varnhagen Martius e Varnhagen lidam com a questão do geral e do particular de maneira bem diferente O maior diferencial entre ambos encontrase na importância reservada à parte no enredo do todo da nação Pois Martius ainda que defendendo a ideia de uma estratégia discursiva que englobasse o todo considerava que o historiador deveria dar atenção à parte Ele observava por exemplo um conflito entre o reconhecimento das particularidades locais e o risco desse reconhecimento resultar em uma série de histórias provinciais somadas Dessa forma Martius propõe que Para evitar este conflito parece necessário que em primeiro lugar seja em épocas judiciosamente determinadas representando o estado do país em geral conforme o que tenha de particular em suas relações com a Mãe Pátria e as mais partes do Mundo e que passando logo para aquelas partes do país que essencialmente diferem seja realçado em cada uma delas o que houver de verdadeiramente importante e significativo para a história238 Para Varnhagen em oposição tudo que ressalte o que Martius chamou de um tom local deveria até certo ponto ser erradicado Martius considerava o tom local como um elemento importante da narrativa pois a capacitava a atrair a atenção a seduzir o leitor Um elemento que certamente é essencial a uma narrativa nacional Entretanto valorizar a parte em detrimento do todo em um momento de possível desagregação do território nacional poderia ser perigoso239 Logo a história geral de Varnhagen como será demonstrado posteriormente é uma história que erradica a diferença por excelência Mesmo que a totalidade do Brasil não pudesse ser mais do 381403 1844 2ª ed p389411 238 MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Como se deve escrever a história do Brasil In RIHGB 6 381403 1844 2ª ed p389411 239 Para Odalia a heterogeneidade da sociedade colonial alimentada e incentivada pelo colonialismo português resultava num enfraquecimento inclusive daqueles que detinham formalmente o poder na colônia ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p16 Para Wehling entendiase que o destaque ao regionalismo poderia transformarse em arma contra o projeto de uni dade nacional do Império WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p180 Salah H Khaled Jr 85 que uma abstração discursiva face à sua imensa diversidade regional é assim que Varnhagen busca tratar do tema As partes regionais devem ser constituídas como pouco mais que representações parciais do grande todo240 Certos tipos de afirmações que Martius faz a respeito do assunto soariam inteiramente alienígenas no texto de Varnhagen Um bom exemplo se evidencia quando Martius afirma Quão diferente é o Pará de Minas Uma outra natureza outros homens outras precisões e paixões e por conseguinte outras conjunturas históricas241 Esse é o tipo de diferença que Varnhagen desconsidera ou intencionalmente elimina dependendo da circunstância Por exemplo Varnhagen lamentou que fosse cedido poder às capitanias enquanto na Europa ocorria a centralização do poder De fato Varnhagen operava uma projeção das dificuldades do unitarismo imperial no Brasil colonial luta entre poder local e central e logo era crítico do poder local e simpático a centralização do poder público242 Isso significa dizer que Varnhagen foi radical ao perseguir um objetivo que na verdade Martius já manifestava Ainda reinam muitos preconceitos entre as diversas Províncias estes devem ser aniquilados por meio de uma instrução judiciosa cada uma das partes do Império deve tornarse cara às outras deve procurar se provar que o Brasil país tão vasto e rico em fontes variadíssimas de ventura e prosperidade civil alcançará o seu mais favorável desenvolvimento se chegar firmes os seus habitantes na sustentação da Monarquia a estabelecer por uma sábia organização entre todas as Províncias relações recíprocas deve o historiador patriótico aproveitar toda e qualquer ocasião a fim de mostrar que todas as Províncias do Império por lei orgânica se pertencem mutuamente que seu propício adiantamento só pode ser garantido pela mais íntima união entre elas Justamente na vasta extensão do país na variedade de seus produtos ao mesmo tempo que os seus habitantes tem a mesma origem o mesmo fundo histórico e as mesmas esperanças para um futuro lisonjeiro achase fundado o poder e grandeza do país243 Martius não deixava de ser um teórico da história que somente via sentido em um todo enriquecido pelas suas partes Varnhagen por outro lado parecia não 240 Wehling constatou que Varnhagen praticamente não se refere aos tipos regionais nas suas diver sas obras Ibid p179 241 MARTIUS Op cit 242 WEHLING Op cit p181 243 MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Como se deve escrever a história do Brasil In RIHGB 6 381403 1844 2ª ed pp389411 Horizontes Identitários 86 tolerar a própria noção de parte e fez de tudo para suprimir a sua importância face à autoridade do poder central244 Dessa forma trabalhava constantemente pela união e supressão da diversidade245 Ainda que exista essa diferença no que se refere ao sentido que devia ser dado à história e a sua dimensão pragmática havia uma concordância Tanto Martius quanto Varnhagen seguiram tais princípios à risca Por fim devo ainda ajuntar uma observação sobre a posição do historiador do Brasil para com a sua pátria A história é uma mestra não somente do futuro como também do presente Ela pode difundir entre os contemporâneos sentimentos e pensamentos do mais nobre patriotismo Uma obra histórica sobre o Brasil deve segundo a minha opinião ter igualmente a tendência de despertar e reanimar em seus leitores Brasileiros amor da pátria coragem constância indústria fidelidade prudência em uma palavra todas as virtudes cívicas O Brasil está afeto em muitos membros de sua população de idéias políticas imaturas Ali vemos Republicanos de todas as cores Ideólogos de todas as qualidades É justamente entre estes que se acharão muitas pessoas que estudarão com interesse uma história de seu país natal para eles pois deverá ser calculado o livro para convencêlos por uma maneira destra da inexequibilidade de seus projetos utópicos da inconveniência de discussões licenciosas dos negócios públicos por uma imprensa desenfreada e da necessidade de uma Monarquia em um país onde há um tão grande número de escravos Só agora principia o Brasil a sentirse como um Todo Unido246 Há grande concordância com os objetivos do IHGB estabelecidos pelo discurso de Barboza A narrativa nacional deveria enfatizar uma concepção de identidade reforçada dentro de uma racionalidade de coesão valores de fidelidade lealdade e devoção à nação e à Monarquia A questão da identidade era sobretudo politizada Esse perfil de uma história nitidamente engajada politicamente não escapou aos comentadores do autor247 244 Para Odalia o processo de homogeneização na obra de Varnhagen é um recurso heurístico de que se vale para compor a imagem desejada do Estado e da Nação ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p67 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 245 Odalia pondera que em sua tarefa o historiador deve homogeneizar o passado para que as pecu liaridades sejam traços distintos de um povo e não no interior de um povo O passado deve ser retoma do reconstruído em razão do interesse maior já definido a Nação Ibid p37 246 MARTIUS Op cit 247 Cezar afirma que Martius propõe uma história calculada mensurada bem refletida para combater os oponentes do regime Esta história militante é o ponto máximo a que a história pragmática pode chegar CEZAR Temístocles Como deveria ser escrita a história do Brasil no século XIX Ensaio de história intelectual In PESAVENTO Sandra Jatahy História Cultural experiências de pesquisa Porto Alegre UFRGS 2003 p 206 Reis pondera que de acordo com Martius um enfoque é esperado Salah H Khaled Jr 87 As ideias de integração e de pedagogia nacional através da história são extremamente fortes nos trechos finais do texto de Martius Uma integração e um fim político que Varnhagen perseguiria com verdadeira obsessão ao longo de sua extensa obra de acordo com os ensinamentos de Martius Nunca esqueça pois o historiador do Brasil que para prestar um verdadeiro serviço à sua pátria deverá escrever como autor MonárquicoConstitucional como unitário no mais puro sentido da palavra248 Com o marco fundador de Martius estava dado o passo inicial para a constituição através da historiografia de uma imagem do Brasil de uma representação do passado de uma narrativa nacional que conferisse sentido ao todo heterogêneo da nascente nação O projeto para a execução dessa narrativa já estava posto e legitimado pela chancela institucional do IHGB estando aberta a estrada para a invenção da nação Missão esta que caberia a Varnhagen desempenhar em função da negativa de Martius que considerou a empreitada além das suas forças e disposição recusando em suas palavras à glória de empresa tão árdua249 O próximo capítulo portanto passará a tratar de Varnhagen e da elaboração da narrativa da nação a História Geral do Brasil do historiador Seu texto deverá ser patriótico despertando o amor ao Brasil Em sua defesa do Brasil unido monárquico cristão precisará lutar contra a desconfiança entre as províncias contra a fragmen tação do território e a agitação republicana De acordo com Reis Eis a história de que o Brasil recém independente precisava ou seja de que as elites brasileiras precisavam para levar adiante a nova na ção nos anos 184060 Uma história que realizasse um elogio do Brasil dos seus heróis portugueses do passado distante e recente que expressasse uma confiança incondicional em seus descendentes Uma história que não falasse de tensões separações contradições exclusões conflitos rebeliões insatisfações pois uma história assim levaria o Brasil à fragmentação isto é abortaria o Brasil que lutava para se constituir em uma poderosa nação REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p28 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosreis varnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB 5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibo okresul 248 MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Como se deve escrever a história do Brasil In RIHGB 6 381403 1844 2ª ed pp389411 249 CEZAR Op cit p 208 Horizontes Identitários 88 2 O MONUMENTO VARNHAGEN E O ENREDO DA NAÇÃO A NARRATIVA NACIONAL Olhar a obra de Varnhagen com simpatia e compreensão é abrir se à sua contemporaneidade aceitar o diálogo com ele ouvilo com paciência apesar do desejo que se tem às vezes de fechar o volume como Capistrano afirma ter tido José Carlos Reis Neste capítulo a discussão é encaminhada para a construção da narrativa nacional por Varnhagen em sua obra a História Geral do Brasil Para tanto em um primeiro momento interessa o próprio Varnhagen ou seja sua trajetória e o que integra o seu sistema de pensamento para depois analisar dois aspectos importantes da sua narrativa a elaboração de uma história geral da nação brasileira e os sentidos exemplares presentes em seu texto 21 O que representou Varnhagen Francisco Adolpho de Varnhagen a quem coube executar o plano desenvolvido por Martius é considerado por muitos o Heródoto brasileiro250 João Francisco Lisboa outro historiador brasileiro do século XIX chamou Varnhagen de pai da nossa história251 Capistrano de Abreu que anotou a História Geral do Brasil chamou Varnhagen de 250 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p23 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpg PA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3 oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6 jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookresul 251 Biografia de Varnhagen no sítio da Academia Brasileira de Letras ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS Varnhagen Biografia Disponível em httpwwwacademiaorgbrablcgicgiluaexesys starthtminfoid796sid346 Salah H Khaled Jr 89 o historiador da pátria252 Afrânio Peixoto disse que o esforço de Varnhagen culminou numa História do Brasil ainda a melhor das nossas253 Oliveira Lima o chamou de criador da história pátria mas também de historiador pragmático254 José Honório Rodrigues o considera incomparável o maior historiador da sua época e mestre da história geral do Brasil cujo grande tema foi a colonização do Brasil pelos portugueses255 Nilo Odalia diz que sua obra foi um marco e que se transformou em um monumento histórico do século XIX porque constitui um dos seus mais importantes documentos256 Alice Canabrava afirma que Varnhagen foi um verdadeiro monumento da história brasileira do século XIX257 Para Reis Varnhagen foi o primeiro grande inventor do Brasil258 De acordo com ele Varnhagen tem valor de modelo pois é paradigmático259 Wehling afirma que Varnhagen deixou delimitado um terreno de construção da memória 252 Mesmo vendo problemas na sua obra como a resistência a movimentos populares e rebeliões Capistrano considera que é difícil exagerar os serviços prestados por Varnhagen a história nacional ABREU Capistrano de Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen Visconde de Porto Seguro 1878 In Ensaios e estudos crítica e história 1ª série Rio de Janeiro Civilização Brasileira Brasí lia INL 1975 p8191 Para conhecer a obra de Capistrano ver ABREU Capistrano de Capítulos de História Colonial Disponível em httpobjdigitalbnbrAcervoDigitallivroseletronicoscapitulosde historiacoloniapdf 253 Biografia de Varnhagen no sítio da Academia Brasileira de Letras ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS Varnhagen Biografia Disponível em httpwwwacademiaorgbrablcgicgiluaexesys starthtminfoid796sid346 254 Ibidem 255 Entretanto o autor também vê um verdadeiro oficialismo em Varnhagen Ou seja o Estado é prio ritário o povo é secundário RODRIGUES José Honório História e historiografia Rio de Janeiro Vozes 1970 p123 256 Segundo ele sua obra na época representava um fato novo demonstrado pela seriedade que im punha ao seu trabalho e a preocupação em fazer uma história apoiada na erudição A obra de Varnha gen abria perspectivas à jovem nação Para Odalia Varnhagen é um historiador típico do século XIX e é importante como testemunho valioso da sua época Todavia é um autor superado devido a suas limitações e pelo fato da História do Brasil ser outra hoje ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p1112 257 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p33 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpg PA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3 oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6 jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookresul 258 Ibid p28 Segundo Reis A sua História Geral do Brasil refletia uma preocupação nova no Brasil com a história com a documentação sobre o passado brasileiro que o recém fundado Instituto Histó rico e Geográfico Brasileiro representava A História Geral do Brasil foi possível porque as condições históricas do Brasil o processo da independência política e a constituição do Estado nacional amadu receram nos anos 1850 E foi no interior desse processo histórico que ocorreu outra condição favorável ao surgimento da obra de Varnhagen a institucionalização da reflexão e pesquisa históricas no IHGB A independência política consolidada e reprimidas as lutas internas geradas por ela o Brasil possuía um perfil do qual ainda não tinha conhecimento Nos anos 1850 Varnhagen desenhará o perfil do Brasil independente oferecerá à nova nação um passado a partir do qual elaborará um futuro Ibid p2324 259 Ibid p30 Entretanto Reis afirma que Varnhagen foi um historiador aristocrata e elitista pois sua história prioriza as ações dos heróis portugueses e brasileiros brancos Ibid p32 Horizontes Identitários 90 nacional e que emanava dele um culto à brasilidade260 Para Guimarães Varnhagen foi aquele que primeiro deu um passado à nação brasileira261 De acordo com Cezar Varnhagen foi historiador por excelência da nação262 Os juízos sobre Varnhagen são portanto dos mais diversos variando de comentador a comentador ainda que algumas características consensuais estejam presentes A proposta da parte inicial deste capítulo se limita a investigar a biografia de Varnhagen e suas convicções recolhendo uma série de subsídios que são importantes para a compreensão da sua obra Um juízo propriamente dito sobre Varnhagen e a narrativa por ele elaborada ficará reservado para o trecho final do último capítulo 211 Biografia Francisco Adolfo de Varnhagen nasceu em São João de Ipanema à época pertencente à Sorocaba no Estado de São Paulo em 17 de fevereiro de 1816 Foi diplomata militar e historiador filho de Friedrich Ludwig Wilhelm de Varnhagen e de Maria Flávia de Sá Magalhães Seu pai engenheiro alemão veio ao Brasil com o propósito de restaurar e ampliar a Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema em 1809 Com apenas seis anos em outubro de 1823 Varnhagen deixou o Brasil rumo a Portugal juntamente com a mãe portuguesa de nascimento Lá inclusive reencontrou o pai que havia deixado o Brasil um ano antes Varnhagen realizou os primeiros estudos no Real Colégio Militar da Luz de 1825 a 1832 Ainda em 1832 ingressou na Academia de Marinha na qual estudou matemática263 Também realizou estudos em áreas relacionadas com sua posterior atividade de historiador tais como diplomacia paleografia e economia política Iniciou a carreira militar à época das Guerras Liberais como voluntário nas tropas de Pedro IV de Portugal que lutavam contra Miguel I de Portugal Foi tenente de artilharia e aperfeiçoouse em assuntos de natureza militar e de engenharia 260 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p7374 261 GUIMARÃES Manoel Luiz Lima Salgado A invenção do passado In Nossa História v3 São Paulo 2005 p25 262 CEZAR Temístocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIX siècle essai sur une rhétorique de la nacionalité Le cas Varnhagen v2 manuscrito 2002 p388 263 ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p10 Salah H Khaled Jr 91 Sua carreira de historiador teve início com a admissão como sociocorrespondente da Academia de Ciências de Lisboa instituição que publicou seu primeiro trabalho científicoliterário Reflexões Críticas264 Escrito entre 1835 e 1838 tratase de um ensaio sobre o colono e cronista quinhentista Gabriel Soares de Sousa Varnhagen chegou a colaborar com O Panorama dirigido pelo historiador português Alexandre Herculano e divulgou como fruto das primeiras pesquisas sobre a época do descobrimento do Brasil o Diário de Navegação de Pero Lopes de Sousa A boa acolhida junto à Academia de Ciências de Lisboa certamente serviu de incentivo para suas futuras realizações como historiador Pesquisador aplicado e incansável embora nem sempre revelasse a procedência dos documentos encontrados coubelhe a descoberta do jazigo de Pedro Álvares Cabral no presbitério do Convento da Graça em Santarém Portugal em 1838 Formouse como engenheiro militar em 1839 na Real Academia de Fortificação Já licenciado do exército português Varnhagen tornouse sociocorrespondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 18 de julho de 1840 Ele inclusive confessa que ainda em 1838 sem saber da fundação do Instituto Histórico já tinha o pensamento atrevido de implementar a empresa de uma História Geral do Brasil265 Ainda em 1840 viajou ao Brasil e conheceu o Imperador que então tinha apenas 14 anos de idade marcando o início de um longo relacionamento266 Ao retornar a Portugal em junho de 1841 exigiu ser promovido e tendo a sua pretensão recusada demitiuse em outubro do mesmo ano267 Varnhagen tinha então 25 anos justamente a idade da maioridade civil na época Ele veio a obter a nacionalidade brasileira por decreto real em 24 de setembro de 1841 apesar da irregularidade de ter servido no exército de outro país268 Curiosamente Varnhagen afirmava ter feito uma opção em detrimento de uma brilhante carreira Sua opção pela nacionalidade brasileira era algo do qual ele se servia como argumento em seu favor pois escolheu ser brasileiro o 264 CEZAR Temístocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIXe siècle essai sur une rhétorique de la nacionalité Le cas Varnhagen v2 manuscrito 2002 p392 265 VARNHAGEN Francisco Adolfo de Historia geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927 pXIX 266 Segundo Guimarães D Pedro II foi um soberano que se interessava pela escrita da história nacio nal e que manteria ao longo de aproximadamente 25 anos uma correspondência ativa com Francisco Adolpho de Varnhagen GUIMARÃES Manoel Luiz Lima Salgado A invenção do passado In Nossa História v3 São Paulo 2005 p25 267 CEZAR Temístocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIX siècle essai sur une rhétorique de la nacionalité Le cas Varnhagen v2 manuscrito 2002 p393 268 Ibid p393394 Horizontes Identitários 92 que marcou toda sua vida e obra269 Após o reconhecimento da nacionalidade brasileira Varnhagen foi nomeado adido à delegação de Lisboa em 1841 ingressando no corpo diplomático brasileiro função que ocupou até a morte e fez com que percorresse boa parte do mundo270 Sem dúvida o ingresso de Varnhagen na diplomacia promoveu uma valorização dos seus sentimentos em relação ao Brasil Cidadão por decreto de certa forma tornouse um historiador por ato oficial cuja tarefa era pesquisar documentos que tratassem da história e da legislação do Brasil271 No princípio de sua carreira diplomática Varnhagen esteve em Portugal 18421847 e logo em seguida na Espanha O trabalho como diplomata facilitou suas pesquisas históricas272 Dessa forma consultou arquivos na Europa e América do Sul reunindo uma quantidade impressionante de documentos referentes à história do Brasil273 Pôde assim dedicarse à pesquisa histórica nos arquivos europeus o que lhe permitiu não só reunir informações detalhadas e originais a respeito da experiência colonizadora portuguesa na América mas também revelar muitos dos cronistas coloniais cujas obras permaneciam esquecidas ou desconhecidas e para as quais redigiu introduções274 As pesquisas de Varnhagen já evidenciavam desde então grande preocupação 269 Para Wehling A opção de Varnhagen pela nacionalidade brasileira simboliza a passagem para uma fase importante de sua vida quer como esteta quer como historiador a busca de uma consciência histórica brasileira WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da iden tidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p64 Odalia afirma que a sua opção pela nacio nalidade brasileira não pode ser interpretada como uma manifestação de patriotismo pois só viveu no país até os seis anos Para ele a opção parece se originar de uma necessidade vivencial e intelectual fruto de seu desenraizamento Para o autor a escolha de Varnhagen pela nacionalidade brasileira está muito relacionada com o clima mental da época marcado profundamente pelo romantismo Trata se de uma condição limite e de um modo de ser determinante de um intelectual Era uma época em que aflorava com toda a força a questão do nacionalismo e de pertencimento a um povo Assim Odalia conclui que para um jovem da época pertencer a uma dessas nações percorrer e participar de sua formação e de seu destino deveria surgir aos seus olhos deslumbrados como a possibilidade única de concretizar o desejo de pertencer à história e ao seu tempo Para o autor o patriotismo de Varhagen tem em sua razão de ser seu fundamento ter sido uma opção intelectual ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p89 270 Cezar inclusive o definiu como um historiador viajante CEZAR Op cit p395 271 CEZAR Temístocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIX siècle essai sur une rhétorique de la nacionalité Le cas Varnhagen v2 manuscrito 2002 p395 272 Joaquim Manuel de Macedo chegou a dizer que Varnhagen fez do santo ócio dos diplomatas do Império um labor santo dedicado às investigações históricas da pátria APUD CEZAR Op cit p396 273 CEZAR Op cit p398 274 No entender de Capistrano de Abreu os achados de Varnhagen foram consideráveis sobretudo para o primeiro século da nossa história Não diremos que renovou a fisionomia da época mas desco briu bastantes elementos para quem possa e queira fazer obra definitiva ABREU Capistrano de Ne crológio de Francisco Adolfo de Varnhagen Visconde de Porto Seguro 1878 In Ensaios e estudos crítica e história 1ª série Rio de Janeiro Civilização Brasileira Brasília INL 1975 p8191 Salah H Khaled Jr 93 com a definição dos limites territoriais do país especialmente no que se refere à demarcação em relação à Espanha275 Como ficcionista demonstrava uma tendência à projeção dos anseios do presente no passado como pode ser visto no drama Amador Bueno no qual projetou para os paulistas do século XVII sentimentos nacionalistas276 No Florilégio da poesia brasileira por sua vez afirmou a existência de uma literatura brasileira no século XVIII fruto da consciência nacional com motivações estéticas próprias e portanto distinta da literatura portuguesa277 Varnhagen foi sobretudo um historiador oficial voltado para os interesses do Estado e protegido pelo Imperador278 Ele inclusive reconhecia abertamente essa contribuição valorizando o alto e valioso apoio de D Pedro II na introdução de sua História Geral do Brasil279 De acordo com ele a própria realização da obra não seria possível sem a sua proteção280 Por outro lado o relacionamento de Varnhagen com o IHGB foi conturbado sendo motivo de constantes queixas ao Imperador sobre indiferença com que era tratado281 Como primeiro secretário do IHGB função que assumiu em 1851 quando veio da Europa para o Brasil promoveu a organização da biblioteca e arquivos a reforma dos estatutos e a profissionalização do Instituto Varnhagen também foi diretor da Revista do IHGB Entre 1854 e 1857 publicou a 275 CEZAR Op cit p397399 276 Ver VARNHAGEN Francisco Adolpho de Ensaio Histórico sobre as Letras no Brasil 1847 Disponível em httpobjdigitalbnbrAcervoDigitallivroseletronicosensaiohistoricopdf 277 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p6465 278 Para Reis o imperador foi o protetor de Varnhagen oferecendolhe os recursos para a sua obra REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p25 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23 lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortu guesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JI Om8Ab258VasaXoibookresul Wehling ressalta que Membro do Instituto Histórico diplomata e titular do Império a biografia de Var nhagen o situa sempre próximo ao poder como partícipe do estamento burocrático consolidado a partir da política regressista WEHLING Op cit p48 Rodrigues também afirma que o imperador foi o pro tetor de Varnhagen e que lhe assegurou os meios para realizar a obra RODRIGUES José Honório História e historiografia Rio de Janeiro Vozes 1970 p127 279 VARNHAGEN Francisco Adolfo de Historia geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927 pXVIII 280 Varnhagen afirma que todo o Instituto confessa cheio de reconhecimento que sem a proteção va liosa do SENHOR D PEDRO II ele teria deixado de existir e por sua parte este mínimo sócio declara que sem a correspondente cota que dessa proteção lhe coube o Brasil não teria hoje esta obra Ibid pXIX Grifo nosso 281 Wehling ressalta que Foram freqüentes e intensas embora não necessariamente cordiais as rela ções entre o grupo dirigente do IHGB e Varnhagen Ele próprio chegou a dirigir o museu da instituição e ser seu primeiro secretário WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p35 Horizontes Identitários 94 primeira edição de sua História Geral do Brasil concretizando o plano de Martius sendo portanto e por excelência o inventor do passado da nação Logo em seguida Varnhagen deixou o Brasil novamente retornando a Madri Em 1858 teve início a etapa latinoamericana de sua vida282 Seguiramse uma série de missões diplomáticas em vários países da América do Sul como Paraguai Venezuela Nova Granada atual Colômbia Equador Peru e Chile onde veio a conhecer Carmen Ovalle e Vicuña de uma família aristocrática chilena com quem se casou aos 48 anos em 1864 Durante esse período também fez algumas viagens ao Brasil pesquisando uma série de documentos Apaixonado pela tarefa de historiador aproveitava todas as viagens e permanências em países estrangeiros para enriquecer o seu acervo com documentos originais283 Varnhagen também esteve na Inglaterra nos Estados Unidos e em Cuba Ele jamais esteve satisfeito enquanto estava na América Latina Partiu do Paraguai seu primeiro destino sem sequer ter uma autorização oficial para tanto em 1860284 Alguns de seus posicionamentos em questões diplomáticas foram considerados inclusive bastante inconvenientes285 Varnhagen constantemente solicitava ao Imperador a sua transferência para a Europa e a associava como fundamental à realização de sua segunda edição da História Geral do Brasil Ele argumentava nas correspondências que não se tratava de um desejo pessoal mas sim de um serviço à nação286 Varnhagen estava ciente de que algo o diferenciava dos demais colegas diplomatas sua produção historiográfica da qual ele se valia como justificativa para o que pretendia obter através da suposta necessidade de empreender pesquisas287 A proximidade de Varnhagen com o Imperador era um recurso estratégico que ele utilizava sem pudores obtendo finalmente em 1868 a sua transferência para Viena Varnhagen publicou logo após a transferência História das Lutas com os Holandeses no Brasil em 1871 apesar de anunciada desde a primeira edição 282 Cezar se referiu a essa fase como os tristes trópicos de Varnhagen CEZAR Temístocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIXe siècle essai sur une rhétorique de la nacionalité Le cas Varnhagen v2 manuscrito 2002 p400 283 ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p10 284 CEZAR Temístocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIX siècle essai sur une rhétorique de la nacionalité Le cas Varnhagen v2 manuscrito 2002 p400 285 Ibidem 286 Ibid p416 287 Ibid p418 Salah H Khaled Jr 95 da História Geral do Brasil e continuou a trabalhar na segunda edição da HGB288 Apesar de ter seu desejo de transferência atendido ele considerava que não era suficientemente reconhecido por seus esforços em prol da nação289 Insatisfeito ou não Varnhagen foi agraciado pelo governo imperial com os títulos de barão e visconde de Porto Seguro 1874 Em 1877 finalmente publicou a segunda edição de sua HGB e percorreu o interior das províncias de São Paulo Goiás e Bahia A viagem originou uma discussão sobre a questão da localização da capital do Brasil intitulada A questão da capital marítima ou no interior Paralelamente Varnhagen continuou a desenvolver a Independência do Brasil que somente seria publicada postumamente em 1916 Varnhagen faleceu em Viena Áustria no dia 26 de junho de 1878 com 62 anos Seu corpo foi trasladado para o Chile terra natal de sua mulher onde seria sepultado No entanto o desejo de Varnhagen era ser enterrado em sua pátria de nascimento e opção mais especificamente em Sorocaba Além disso desejava que um monumento fosse erguido em sua homenagem290 Não é por acaso que Varnhagen exigia um monumento para a sua pessoa Para ele A Nação acata nos filhos e ainda nos netos os nomes e a sombra digamos assim dos indivíduos que lhe deram ilustração e glória como nós em sociedade veneramos até suas relíquias e não só o cadáver como a espada do herói que morreu pela independência a pena do escritor que a ilustrou pelas letras o anel do prelado que foi modelo de saber e virtudes291 288 Sobre a questão da luta com os holandeses verificar a polêmica entre Varnhagen e Pieter Marinus Netscher Les hollandais au Brésil un mot de réplique a M Varnhagen auteur de louvrage in titulé Historia das Lutas com os Hollandeses no Brazil desde 1624 a 1654 par le LieutColonel PM Netscher Disponível em httpwwwbrasilianauspbrbbdhandle191801218700 289 É evidente que Varnhagen desejava adoração algo que ele deixa transparecer em seu próprio texto Só o tempo poderá ir melhor descobrindo aos que se voltem aos estudos mais profundos da história pátria quanta perseverança pusemos neste empenho e quão inabalável foi nossa fé para suprir com aplicação aturada a escassez das próprias forças VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927pXI 290 É curioso observar que Varnhagen havia exigido em seu testamento que fosse erguido um mo numento em sua memória Para Cezar não se trata de um exercício de egocentrismo mas de uma espécie de atitude preventiva Afinal a pátria deveria reconhecer seus grandes homens Em 1882 de acordo com seus desejos o monumento se tornava realidade CEZAR Temístocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIX siècle essai sur une rhétorique de la nacionalité Le cas Var nhagen v2 manuscrito 2002 p430 291 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 181 Grifo nosso Horizontes Identitários 96 Como inventor da nação é evidente que Varnhagen considerava a si próprio em alta estima e como tal digno de rememoração Por ocasião do centenário de sua morte em 1978 a Fundação Ubaldino do Amaral o jornal Cruzeiro do Sul o Instituto Histórico Geográfico e Genealógico de Sorocaba e a Prefeitura Municipal realizaram uma série de esforços para trasladar seus restos mortais para Sorocaba cumprindo dessa forma sua vontade final Os restos mortais de Varnhagen tiveram como destino a Praça Francisco Adolfo de Varnhagen onde foram depositados num pedestal de granito sobre o qual foi assentado o busto do historiador Um fato pouco lembrado é que Varnhagen é o patrono da Cadeira nº 39 da Academia Brasileira de Letras 212 Convicções pessoais As convicções de Varnhagen eram ferrenhas e estão presentes de forma muito forte na sua obra que diz muito a respeito de sua personalidade292 Ao que tudo indica tratavase de uma questão de temperamento muito mais do que de ofício ou paradigma científico adotado o que o levava a entrar em conflitos e polêmicas com certa regularidade293 Varnhagen era de tal forma preocupado com críticas que inclusive se precavia previamente no prefácio da primeira edição da HGB de eventuais reparos à sua obra294 Além disso a correspondência de Varnhagen é extremamente significativa em demonstrar sua frustração diante do que considerava um reconhecimento insuficiente de suas realizações295 292 Para Odalia era um homem que sobretudo acreditava no que fazia ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p8 293 Odalia considera que Varnhagen era um homem que se aborrecia demais com as críticas e as transformava em casos pessoais violentos e apaixonados Tinha grande sensibilidade em relação a sua obra reagindo violentamente contra críticas que recebia e frustrado pela falta de reconhecimento diante grande historiador que julgava ser Ibidem Já para Capistrano de Abreu Varnhagen expunha complacentemente a sua opinião em pontos em que ela não era necessária Era dos homens inteiriços que não apoiam sem quebrar não tocam sem ferir e matam moscas a pedradas ABREU Capistrano de Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen Visconde de Porto Seguro 1878 In Ensaios e estudos crítica e história 1ª série Rio de Janeiro Civilização Brasileira Brasília INL 1975 p8191 Clado Ribeiro de Lessa tido como maior estudioso da vida e obra de Varnhagen disse que ele era um terrível e ardoroso polemista Para Américo Jacobina Lacombe toda aquela exaltação ocultava um coração límpio e às vezes ingênuo ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS Varnhagen Biografia Disponível em httpwwwacademiaorgbrablcgicgiluaexesysstarthtminfoid796sid346 294 No prefácio da primeira edição da História Geral do Brasil Varnhagen afirmava que futuros his toriadores parciais munidos de novos documentos deverão apreciar com justiça o seu todo e que quase ousa dizer que quanto mais o estudem mais apreciarão o serviço preparatório que aqui lhes oferecemos VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927 pXX Grifo nosso 295 VARNHAGEN Francisco Adolfo de Correspondência ativa Rio de Janeiro Ministério da Educa Salah H Khaled Jr 97 Varnhagen é um autor muito presente no seu texto um narrador sempre disposto a intervir no fio da narrativa para manifestar suas convicções pessoais296 Para Varnhagen a noção de um autor que se anula de uma história escrita de lugar nenhum é algo impensável A narrativa nacional tem em Varnhagen um verdadeiro biógrafo da nação que não se furta de fazer comentários sempre que considera necessário Mais ainda seus pontos de vista condicionam orientam e em última instância definem a sua obra297 Há uma permanente tensão entre a objetividade do historiador e a subjetividade do patriota com a balança pendendo para o lado deste em função do pragmatismo que orientava a escrita da história Para Odalia muitas vezes Varnhagen tentou proceder como um mestreescola tentando corrigir os erros do passado e apontando o que se deveria fazer no futuro298 Wehling considera que o objetivo era ser útil o meio encontrado para atingilo era o de uma obra que aliava na intenção do autor autoridade científica e pedagogia social299 O pragmatismo acima de tudo orientava a ciência300 A definição de Varnhagen como historiador pragmático é apropriada pois o próprio Varnhagen afirma ter escrito um livro útil e próprio a estimular o trabalho ção e Cultura 1961 296 Cezar afirma que Varnhagen tinha uma imensa dificuldade em refrear seus sentimentos e logo con trolar a subjetividade de seus discursos CEZAR Temístocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIX siècle essai sur une rhétorique de la nacionalité Le cas Varnhagen v2 manuscrito 2002 p414 Dessa forma como salienta Rodrigues preconceitos políticos sociais religiosos se re velam sempre especialmente no julgamento das figuras e no tratamento de inconformismos RODRI GUES José Honório História e historiografia Rio de Janeiro Vozes 1970 p130 297 Rodrigues afirma que Pombalino partidário do absolutismo ilustrado adversário dos jesuítas e antipático à Inquisição Varnhagen jamais aceitaria que a História não fosse fruto apenas de persona lidades mais ou menos cultas nem deixaria de querer impor uma concepção histórica em que o Brasil é íntegro é uno é independente por obra e graça da Casa de Bragança Ibid p135 Para Rodrigues Varnhagen justificou com mãos de ferro o domínio colonial a submissão do povo e os direitos de uma minoria mais dominante que criadora Ibid p149 Wehling assinala que Varnhagen construía muito mais do que reconstituía o passado de acordo com o padrão desejável para a nova sociedade Devido a sua identificação com o projeto político regressista tal compromisso é evidente WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p55 298 ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p11 Odalia refere que Varnha gen vê o homem menos como uma realidade histórica determinada do que como uma realidade que pretende modificar e construir ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p90 Disponível em http wwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 299 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p58 O autor considera que a obra de Varnhagen esteve intima mente ligada à definição e defesa de um certo tipo de relações entre estado e sociedade Ibid p87 300 Wehling define a partir das ideias de história mestra da vida e conselheira dos príncipes uma noção de história pragmática embutida na ideia de aplicação dos conhecimentos obtidos às grandes ques tões públicas e sociais Ibid p126127 Horizontes Identitários 98 e a prática das boas ações301 Esse pragmatismo foi levado ao extremo quando o autor se encarregou do dever sagrado de elaborar uma História das Lutas com os Holandeses verdadeiro instrumento político e patriótico302 O comprometimento de Varnhagen com o Estado é comprovado pelas suas próprias frases a integridade do Brasil já representada majestosamente no Estado e no universo pela monarquia vai agora mui humildemente ser representada entre as histórias das nações por uma história nacional303 Varnhagen era efetivamente um intelectual a serviço do Estado304 Como intelectual a serviço do Estado orientado por uma concepção pragmática as intervenções pessoais de Varnhagen na narrativa por ele desenvolvida expressam suas crenças sobre uma diversidade de assuntos tais como o Estado a religião a democracia as leis a modernidade enfim Tais manifestações não são apenas inferidas no texto do autor Pelo contrário ele as explicita de forma clara ainda que nem sempre coerente305 A falta de coerência em Varnhagen é uma noção que uma leitura cuidadosa da História Geral do Brasil parece referendar Na obra de Varnhagen encontramse manifestações sobre problemas de natureza política e social mas não uma filosofia política306 Se por um lado pode não haver uma coerência exemplar por outro há sobretudo regularidade Rodrigues afirma que filosófica e politicamente Varnhagen foi 301 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927 pXII Por isso Wehling afirma que Varnhagen não perdeu oportunidades para projetar no passado conquanto respeitasse rigorosamente a documentação e distinguisse as informações de sua própria opinião as soluções que lhe pareciam melhores WEHLING Op cit p173 302 RODRIGUES José Honório História e historiografia Rio de Janeiro Vozes 1970 p138 Para Wehling Varnhagen propunhase chegando a oferecer seus préstimos ao Imperador em diferentes ocasiões a ser um dos ideólogos do regime WEHLING Op cit p48 Odalia afirma que o caráter oficial ou quase oficial que se atribuiu a Varnhagen e ainda se atribui não pode ser desmentido ODALIA Op cit p67 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 303 VARNHAGEN Op cit pXVIII 304 Para Odalia as relações Estado e intelectual são uma constante no pensamento de Varnhagen e por isso mesmo um elemento que não pode ser esquecido quando se pretende analisálas O intelectual e especificamente no caso de Varnhagen o historiador aparecem como uma espécie de decodificadores dos freqüentemente estranhos e recônditos caminhos palmilhados pelo Estado a fim de esclarecêlos e quando necessário justificálos Nessa tarefa de esclarecimento que se destina principalmente à nascente consciência nacional o objetivo essencial é realçar a presença do Estado ODALIA Op cit p69 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 305 Wehling ressalta que Varnhagen não era filósofo político nem construía um sistema de idéias WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999p119 Aliás para o autor Varnhagen não seria capaz de sustentar pro fundamente uma doutrina política de qualquer natureza além dos aspectos mais gerais Ibid p109 306 Ibid p121 Salah H Khaled Jr 99 sempre o mesmo retrato de um conservador intransigente e convicto307 A afirmativa é confirmada pelos posicionamentos e afirmações do próprio Varnhagen Para ele o que importava era a continuidade da tradição e o respeito por princípios de organização admitidos por todos os cidadãos pela poderosa sanção dos séculos308 Rodrigues considera que a formação militar do historiador em Portugal tenente desde 1837 modelou suas convicções ideológicas que nunca foram abaladas309 A afirmação de Rodrigues parece ser pertinente pois Varnhagen chegava a defender abertamente a guerra como um instrumento útil para promover a união de um povo e erguer um país do torpor310 Sob esse aspecto a inspiração de Varnhagen no pensamento hegeliano parece inegável311 Apesar de conservador Varnhagen estava entretanto longe de ser anacrônico pelo contrário312 Ele se adaptava às condições da realidade em que pretendia intervir a partir da narrativa nacional313 Para Rodrigues a opinião de Varnhagen não era isolada mas representativa da política colonial portuguesa dominante como da época que escrevia314 José Veríssimo afirmou que 307 RODRIGUES José Honório História e historiografia Rio de Janeiro Vozes 1970 p142143 308 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927 pVII Grifo nosso 309 RODRIGUES Op cit p142 310 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melho ramentos 1959 p162163 Wehling refere que Varnhagen defendia uma apologia da guerra como instrumento de purificação da sociedade de aproximação e civilização dos povos WEHLING Op cit p67 311 Hegel fazia uma verdadeira apologia do valor militar como ato supremo em que a liberdade se abstrai de todos os fins e promovia a exaltação da guerra como meio pelo qual a saúde moral dos po vos é assegurada FERRAJOLI Luigi Direito e razão teoria do garantismo penal São Paulo Revista dos Tribunais 2006 p819 312 A situação do Brasil era atípica em relação à Europa e Varnhagen adaptavase a ela Não havia anacronismo em buscar estabelecer para o país um Estado e uma sociedade no moldes do Antigo Regime Ainda que na Europa após as Revoluções de 1848 as discussões tenham se voltado para a disputa entre burgueses e socialistas isso não faz de Varnhagen um nostálgico pois é mais um entre os defensores de um modelo préliberal que entretanto amoldouse pragmaticamente como tantos outros conservadores às circunstâncias que determinaram a prevalência do modelo constitucional libe ral WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p105106 313 Rodrigues vê em Varnhagen um homem solidamente fortificado na sua ideologia conservadora e na sua política pragmática RODRIGUES José Honório História e historiografia Rio de Janeiro Vozes 1970 p129 314 Ibid p130 Horizontes Identitários 100 a filosofia da história de Varnhagen é a comum filosofia espiritualista cristã do seu tempo com o pensamento moral e político de sua educação portuguesa É em história um providencialista em política um homem da razão de Estado da ordem da autoridade e do fato consumado315 Wehling assinala que Varnhagen pertenceu a uma geração que compartilhava de um clima de desconfiança em relação às soluções políticas oriundas do racionalismo da revolução316 Isso pode explicar a sua profunda aversão ao liberalismo político à democracia e à demagogia jacobina termo que frequentemente usa O que naturalmente fazia com que ele fosse contrário à mudança e favorável à permanência e portanto defensor da aristocracia e da monarquia317 Para Varnhagen por mais que corram os séculos não há país embora blasone de mui republicano que não aprecie a sua aristocracia isto é a nobreza hereditária a experiência prova que as aristocracias sustentáculos dos tronos são ao mesmo tempo a mais segura barreira contra as invasões e despotismos do poder e contra os transbordamentos tirânicos e intolerantes das democracias318 O que há de mais coerente em Varnhagen é o seu conservadorismo Varnhagen defende acima de tudo o Estado o poder centralizado sob a forma monárquica legitima a colonização portuguesa e rebate com ferocidade tudo que ameace a tais princípios que lhe são extremamente caros319 Por outro lado parece haver elementos esparsos 315 VERÍSSIMO José História da literatura brasileira Disponível em httpwwwbibliocombrcon teudoJoseVerissimomhistbrashtm 316 WEHLING Op cit p44 317 Para Odalia Varnhagen via na aristocracia um termo médio de equilíbrio que era garantia de um Estado que se situava acima das vicissitudes e paixões humanas e portanto apto a realizar os destinos da Nação ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Var nhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997p78 Disponível em httpwwwdominiopublico govbrdownloadtextoup000007pdf Wehling afirma que Varnhagen era profundamente monarquista entendia que só esta forma de governo seria capaz de consolidar o Estado WEHLING Op cit p101 318 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 156 319 Para Wehling o nacionalismo o estatismo e a monarquia são ideias fundamentais a que Varnha gen permaneceu fiel durante a sua trajetória WEHLING Op cit Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p47 Para o Odalia Varnhagen revela a ideologia histórica que legitima o processo de dominação social inerente à jovem nação brasileira Segundo Odalia o patriotismo de Varnhagen é parcial e uni lateral e em sua obra os sujeitos da história são o homem branco e o Estado Imperial de forma que o passado colonial deve ser reconstruído como suporte de um Brasil branco e europeu Em suma ele defende o Brasil das elites brancas e da família Real Para ele Varnhagen foi um dos intérpretes mais qualificados do projeto político conservador que definiu o Estado Imperial e que se caracteriza por atribuir ao Estado um papel não só político mas de organização social constituir uma nação branca e europeia e criar um Estado forte e centralizado que por sua vez constituiria a nação ODALIA Nilo Salah H Khaled Jr 101 do pensamento ilustrado em sua obra especialmente no que se refere às noções de progresso e de finalidade320 Entretanto jamais em sentido propriamente político apesar de referirse a um Império independente e liberal321 Pelo contrário rejeita todos os movimentos mais exaltados taxandoos de anarquistas repele os princípios democráticos republicanos e condena todos os movimentos revolucionários322 Varnhagen articula sua visão de sociedade em torno de três eixos básicos O Estado enquanto autoridade máxima a submissão das vontades particulares ao império da lei e a religião enquanto fator de aglutinação323 Ele expressa tais pontos de vista ao longo de vários trechos da História Geral do Brasil como o seguinte Nestas poucas palavras se encerram os pontos capitais respectivos a qualquer sociedade constituída Vemos as colônias e as suas competentes autoridades vemos o reconhecimento das leis vemos as práticas assim do que respeita às consciências pelas cerimônias dos sacrifícios religiosos como ao estado social pela celebração dos matrimônios vemos garantida a segurança individual e a propriedade e sem valhacouto as tropelias e injúrias324 Aqui Varnhagen expressa suas crenças conservadoras mas ao mesmo tempo profere um discurso tipicamente liberal ao referirse à segurança individual e defesa da propriedade Entretanto é um liberalismo decididamente recortado325 Para ele o que importa ressaltar sempre é a supremacia incontestável do Estado assegurada pela obediência à lei O Estado é associado com a noção de lei e logo de ordem Uma lei imperativa inquestionável civilizadora e construtora da ordem Parece claro para Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p10 320 Odalia ressalta que há um racionalismo tecnocrático que perpassa pelas páginas da História Geral do Brasil de Varnhagen na sua ânsia de tudo consertar de tudo prever e projetar numa confiança ili mitada na capacidade do homem conduzir sua história ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p32 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 321 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927pVII 322 RODRIGUES José Honório História e historiografia Rio de Janeiro Vozes 1970 p143 323 Wehling ressalta o que ele chama de uma visão utilitária da lei e da religião como freios sociais WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p67 324 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 132 325 Wehling usa o termo ideologia do regresso e o aproxima às idéias liberais que circulavam na Eu ropa após a restauração um estado de laissez faire no plano econômico mas efetivamente gendarme no plano social e político isto é mantenedor do status quo institucional assegurado pelo controle do poder político pelos proprietários através do sufrágio censitário e indireto WEHLING Op cit p8788 Horizontes Identitários 102 Varnhagen que as leis a escrita e o Estado são os indicadores básicos da existência de uma sociedade civilizada326 Tudo que colabora para o fortalecimento da autoridade do Estado é visto com grande simpatia São vários os trechos nos quais Varnhagen manifesta tal ponto de vista327 Dessa forma por exemplo Varnhagen exalta as ações do governo geral que através de seu primeiro representante lançou as bases da futura nação Tomé de Souza havia cumprido a sua missão O Brasil ficava constituído a autoridade e a lei já haviam feito sentir suas forças benéficas ganhara muito a moral pública328 Nesse momento de acordo com Varnhagen o Brasil passava portanto a contar com a presença do Estado que é o elemento fundamental para que se constitua como nação na sua concepção Varnhagen estabelece lei ordem autoridade e religião como valores de uma civilização superior construindo uma articulação entre lei e religião como garantes da ordem e exalta ainda que indiretamente os brasileiros a respeitarem a primeira e louvarem a segunda329 Varnhagen comenta que durante a vida do primeiro donatário a colônia seguiu feliz Havia nela bons costumes faziase justiça a todos eram os habitantes tementes a Deus e observadores da religião sem a qual não há sociedade possível330 Evidentemente há um parâmetro europeu para o que Varnhagen considera uma sociedade viável respeitosa do poder centralizado e ciente da sua submissão em um 326 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p167 Wehling constata que o Estado pressupondo a lei e a ordem contra a força e a anarquia era sinônimo de civilização Ibid p110 327 WEHLING afirma que Preliminarmente deve ser observado que a construção da memória em Var nhagen passa pelo crivo de opções morais muito claramente conscientes e expressas em diferentes momentos da sua obra A partir de categorias morais são elaborados juízos destaques e esquecimen tos que não apenas pontuam a obra mas explicam a sua lógica interna Ibid p57 328 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 263 329 Wehling afirma que na obra de Varnhagen à religião caberia o papel aglutinador das consciências e o inculcar de sentimentos de tolerância e moderação WEHLING Op cit p110 Já Reis refere que para Varnhagen As leis tornam feliz o homem que se sujeita a elas O direito a justiça e a razão são melhores do que o instinto o apetite e o capricho REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p3637 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosreis varnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB 5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibo okresul 330 VARNHAGEN Op cit p 179 Salah H Khaled Jr 103 plano material e espiritual331 Portanto a religião e as leis são para Varnhagen os elementos essenciais à vida em sociedade eis que promovem a coesão tão desejada e o respeito à autoridade da Monarquia que ele desejava justificar Para ele a resposta a um quadro de crise compreende o recurso à dimensão religiosa verdadeira panaceia para todos os males Assim reflete que tudo mostrava a necessidade de acudir com pronto remédio à religião poderoso instrumento de civilização e de moral332 A religião era concebida por Varnhagen como um fundamento social e logo imprescindível à ordem mas subordinada à razão de Estado333 É importante que esse ponto seja ressaltado pois Varnhagen é extremamente severo com os Jesuítas e com a Inquisição quando estes interferem nos desígnios do Estado334 Sendo assim a religião e as leis cumprem um papel instrumental e pragmático na visão de sociedade expressada por Varnhagen cremos em Deus e em que vencido o inimigo houvera tudo remediado com o poder da lei um coração robusto que a soubesse fazer cumprir A existência de Licurgo pudera ser um mito fábula não é A observância da religião e o poder das boas leis podem melhorar os homens e as gerações e são efetivamente quem os melhora para Deus e a sociedade335 O bom cidadãosúdito é o obediente tanto à lei quanto à religião Há efetivamente um entendimento de que existe uma complementaridade entre essas duas esferas da vida pública que se dá a partir de uma avaliação inteiramente pragmática de seus efeitos O caminho para o Brasil desenvolvido se articula em torno da fidelidade à religião e da obediência à lei para Varnhagen Assim ele vai celebrar as ações que no passado estabeleceram esse tipo de exemplo e que podem auxiliar a nação a atingir 331 Para Wehling Varnhagem defendia Uma monarquia estamental à portuguesa patrimonialista e efetivamente mais bemsucedida em matéria de centralização do que suas congêneres norteeuro péias e na qual o rei poderia ou deveria assumir junto com a burocracia e seus intelectuais o papel de amálgama da nacionalidade WEHLING Op cit p119 332 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 246 333 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p167168 334 Odalia aponta que toda vez que a intervenção da Igreja possa de leve ferir ou sensibilizar a ação do Estado pondo em perigo a sua unidade eou seu poder Varnhagen não titubeia e assume vigo rosamente a defesa do Estado ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p80 Disponível em http wwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 335 VARNHAGEN Op cit p162163 Horizontes Identitários 104 o padrão da civilização europeia Nesse sentido ele exalta as virtudes de Pombal a começar pela escolha dos magistrados pois com magistrados e fiscais das leis corruptos ou covardes não há leis que valham nem povo que se melhore nem patriotismo que se acrisole nem a constituição mais bela do mundo felicitará jamais qualquer povo quando ele não esteja preparado por meio de virtudes domésticas para não sofismar seus mais sagrados dogmas336 O poder exercido por essas duas esferas de influência benéfica seria inclusive de proveito para os negros como Varnhagen manifesta nesta passagem E o certo é que passando à América ainda em cativeiro não só melhoraram de sorte como se melhoravam socialmente em contato com gente mais polida e com a civilização do cristianismo337 Varnhagen tem a religião em grande consideração Ao discutir as viagens de Colombo e seus resultados chega a expressar um ponto de vista que pode até parecer irônico para um observador desatento mas que de fato não é Deste modo tiveram notícia os geógrafos europeus de um continente antes a eles desconhecido e os zelosos propagadores da fé cristã encontraram novas ovelhas para agregar ao rebanho comum338 Essa agregação era evidentemente benéfica para os selvagens pois o bem aqueles canibais devia ser feito a força e apesar deles que por não conhecerem a caridade evangélica nem a piedosa filantropia não julgavam possível que outros homens se voltassem exclusivamente ao seu bem como nos diz a história do cristianismo que com a maior abnegação se têm votado tantos mártires muitos dos quais nos glorificamos em nosso calendário339 Portanto ele não faz nenhuma restrição às medidas implementadas para a conversão dos nativos inclusive à pregação na própria língua indígena340 Em 336 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p235 337 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 224 338 Ibid p63 339 Ibid p301 340 Segundo Varnhagen O p João de Aspilcueta Navarro aproveitandose do trato de tantos piás começou com assiduidade a estudar a língua a reduzila à gramática e por fim a pregar nela e para que os sermões produzissem mais efeito e não parecessem menos inspirados e persuasivos que as endemoninhadas práticas dos pajés tratou até de imitar os usos destes Com isto não fazia mais Salah H Khaled Jr 105 concordância com esse ponto de vista Varnhagen condena inteiramente a noção de nobre selvagem como Martius já havia feito À vista do esboço que traçamos sem nada carregar as cores não sabemos como haja ainda poetas e até filósofos que vejam no estado selvagem a maior felicidade do homem quando nesse estado sem auxílio mútuo da sociedade e sem terra se cultivar suficientemente há sempre numa ou outra época privações e fome e esta última aos mais civilizados converte em canibais como nos provam histórias de tantos sítios e naufrágios Desgraçadamente o estudo profundo da barbárie humana em todos os países prova que sem os vínculos das leis e da religião o triste mortal propende tanto à ferocidade que quase se metamorfoseia em uma fera as leis a que o homem quis voluntariamente sujeitarse depois de mui tristes sofrimentos do mesquinho gênero humano antes de as possuir não tem outro fim senão fazêlo mais livre e mais feliz do que seria sem elas341 Se por um lado Varnhagen rejeita Rousseau por outro lado se vale de Montesquieu para justificar a colonização portuguesa e afirmar a correção do exclusivo metropolitano o qual aliás ele jamais se refere em tais termos Uma colônia diz um publicista que se ocupou profissionalmente do assunto é o resultado da emigração de indivíduos de que a metrópole se priva com a esperança de poder indenizarse mais tarde dos sacrifícios que faz sem o que os estabelecimentos que fizesse só lhe causariam dano Pelo que o simples fato do estabelecimento de uma colônia por qualquer nação que a funda com seus filhos a defende com suas armas e a mantém por suas leis como diz Montesquieu reclama a compensação nas vantagens do seu comércio com a exclusão de todas as outras nações segundo o direito europeu ainda praticado em nossos dias por alguns342 Varnhagen parece ter uma visão pragmática da modernidade e do progresso pois utiliza tais noções quando favorecem seus pontos de vista e os compatibiliza com a sua defesa da lei e valor moral da religião na medida em que é necessário Desgraçadamente a experiência prova que os países menos povoados passam sempre por uma época com tendências feudais seja qualquer o nome que se dê aos suseranos que acabrunham os pequenos quando aliás na cabeça do Estado e nas cidades populosas a do que muito antes dele haviam feito na Europa os apóstolos do cristianismo que capitularam muitas vezes com o paganismo admitindo várias práticas bárbaras Ibid p244 341 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p5455 342 Ibid p147 Horizontes Identitários 106 administração da justiça corre com a maior regularidade Felizmente as estradas de ferro e os vapores acabarão com essas tendências estabelecendo a polícia mais rigorosa equilibrando a população e melhorandoa pelos dois grandes meios civilizadores a indústria que subministra ao homem os maiores cômodos da vida e a observância da religião que o beneficia moralmente343 O conservadorismo de Varnhagen se estende ao campo religioso como prova a sua posição face ao protestantismo e o que considera o cisma que havia provocado344 Para Varnhagen interessa sobretudo a coesão345 Não contente em condenar a religião protestante Varnhagen legitima a própria ocupação do território brasileiro a partir da benção do sumo pontífice e do tratado por ele sancionado346 Legitimidade esta que foi sacramentada pela realização da primeira missa no país e logo após no primeiro de maio seguinte e no meio da solenidade de outra missa se efetuou a cerimônia de tomada de posse da nova região para a Coroa de Portugal levantandose num morro vizinho uma grande cruz de madeira com divisa do venturoso D Manuel347 Para Varnhagen a conquista é de Portugal e da cristandade Portanto está duplamente legitimada a partir do Estado e da Igreja A superioridade não é só da civilização mas também da única e verdadeira religião pois ao se referir aos índios Varnhagen diz que 343 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IVSão Paulo Melhora mentos 1959 p250 344 Tal era a revolução que na Europa se operava nos ânimos no princípio do século décimo sexto e que não era mais que o prelúdio de agressões que se dirigiram a autoridade dos reis e dos governos e até como já então se viu com os anabaptistas da Alemanha do próprio direito de propriedade que nos estimula ao trabalho e deu origem a tantas grandes ações VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 163 345 Wehling afirma que Por isto dizia em correspondência pregou a unidade religiosa do Império como importante integrador da nacionalidade WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p103 346 Assim este legado que abrangia grande parte do território do atual Império do Brasil ainda desco nhecido aos europeus veio a pertencer a Portugal não em virtude do chamado direito de conquista ou do de descobrimento equivalente ao de primeiro ocupante mas sim em virtude de um trato solene feito com a nação que descobrira as Índias Ocidentais e sancionado pelo Sumo Pontífice que então perante as potências cristãs da Europa ainda não dissidentes por cismas ou heresias e formando to das como uma espécie de confederação de que era chefe o mesmo Pontífice tinha para as mesmas a força e prestígio de um direito a que elas próprias se haviam sujeitado Os que criticam a ingerência da Santa Sé neste negócio esquecemse de que não vivem no século em que ela teve lugar VAR NHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p67 347 Ibid p70 Salah H Khaled Jr 107 podemos dizer que a única crença forte e radicada que tinham era a da obrigação de se vingarem dos estranhos que ofendiam a qualquer da sua alcatéia Este espírito de vingança levada ao excesso constituía sua verdadeira fé348 Portanto para Varnhagen a experiência prova que sem a força não é possível repelir as agressões dos mais fortes e afastar suas represálias349 Para ele foi a experiência e não o arbítrio nem a tirania quem ensinou o verdadeiro modo de levar os bárbaros impondolhes à força a necessária tutela para aceitarem o cristianismo e adotarem hábitos civilizados começando pelos de alguma resignação e caridade fazendose moralmente melhores aproveitandose de mais bens incluindo os da tranqüilidade de espírito e da segurança individual à sombra de leis protetoras350 Sendo assim para ele o indígena deveria ser derrotado no campo de batalha e depois submetido à cultura do vencedor351 Varnhagen observava uma diferença qualitativa essencial entre as três matrizes Isso transparece quando ele afirma que realizou em sua obra uma verdadeira apreciação comparativa do grau de civilização dos colonizadores de barbárie dos colonos escravos trazidos impiamente da África e do de selvageria dos povos últimos invasores nômades que ocupavam o território que hoje chamamos Brasil352 Quando Varnhagen trata da escravidão indígena a considera plenamente justificada Afinal refutar a captura e escravização dos índios significaria questionar a própria colonização portuguesa 348 Ibid p43 349 Ibid p219 350 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 351 Odalia comenta que O indígena vencido pelo branco despojado de seus valores aniquilado como expressão de uma sociedade que se pretende extinguir deve ser recuperado antes pela força do que pela persuasão e novamente conquistado para os valores ocidentais e cristãos que mostraram no campo de batalha a sua superioridade Sua recuperação a partir desses valores legitima moralmente a conquista física ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997p57 Disponível em httpwwwdominiopu blicogovbrdownloadtextoup000007pdf 352 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927 pXXXXI Assim como afirma Odalia a vitória é prioritariamente a constatação da superioridade de uma cultura de uma civilização de um modo de vida e de pensamento sobre outras formas primitivas que acabam por ser interpretadas como um estado de barbárie ODALIA Op cit p45 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf Horizontes Identitários 108 E devemos confessar que esta prática fundada no chamado direito dos vencedores tinha tendências civilizadoras e em alguns pontos chegou a produzir o influxo benéfico de poupar muitas vidas fazendo que os mesmos vencedores guardassem para resgatar com os nossos os prisioneiros que segundo seus hábitos deviam matar353 Varnhagen afirma que fácil era de ver que os índios crianças pelo entendimento só podiam ser conduzidos à civilização tendo sobre eles os chefes a mesma autoridade e supremacia carinhosa sobre os filhos e pupilos concede a nossa legislação aos pais e tutores354 Segundo ele tratavase de civilizar os bárbaros355 Uma missão que entretanto estava longe de estar cumprida pois considera que quanto aos índios pouco ou nada se haviam melhorado Ou seguiam nos bosques matandose e comendose uns a outros ou a custa de esforços gastos e sacrifícios se chegavam por muito favor a aldear sem vantagens decididas para a sociedade356 Varnhagen inclusive relaciona a introdução dos negros no Brasil aos obstáculos colocados pela proibição da escravização indígena357 Como comentado anteriormente ele reproduz a tese desenvolvida por Martius do assimilacionismo ainda que não faça referência alguma ao autor 353 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 217 354 Ibid p 301 355 Ibid p 303 356 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p66 357 Para VARNHAGEN Se o uso e as leis tivessem continuado a permitir que a cobiça dos colonos bem encaminhada arrebanhasse os selvagens do Brasil sujeitandoos primeiro não se teria ido aquela exercitar além dos mares buscando nos porões dos navios e entre os ferros do mais atroz cativeiro colonos de nações igualmente bárbaras e mais supersticiosas essencialmente intolerantes inimigas de toda a liberdade e que como se ostentam a raia da separação com que se extremam dos índios e dos seus civilizadores Sem identidade de língua de usos e de religião entre si só a cor e o infortúnio Vieiram a unir estes infelizes comunicandose na língua do colono estrangeira a todos e por isso por eles cada vez mais estropiada em detrimento até da educação da mocidade que havendo por começado por aprender com eles a falar erradamente tinha depois mais trabalho para se desavezar de muitas locuções viciosas VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 221 Salah H Khaled Jr 109 Como a colonização africana distinta principalmente pela sua cor veio a ter tão grande entrada no Brasil que se pode considerar hoje como um dos três elementos de sua população julgamos do nosso dever consagrar algumas linhas neste lugar a tratar da origem desta gente a cujo vigoroso braço deve o Brasil principalmente os trabalhos do fabrico do açúcar e modernamente os da cultura do café mas fazemos votos que chegue um dia em que as cores de tal modo se combinem que venham a desaparecer totalmente no nosso povo os característicos da origem africana e por conseguinte a acusação da procedência de uma geração cujos troncos no Brasil vieram conduzidos em ferros do continente fronteiro e sofreram os grilhões da escravidão embora talvez com mais suavidade do que em nenhum outro país da América 358 Além de manifestar a sua esperança no eventual branqueamento da raça Varnhagen ainda insinua que a escravidão no Brasil teria sido mais suave Varnhagen se excede em relação aos seus próprios critérios extrapolando a plausibilidade ao atribuir o próprio desaparecimento dos indígenas a um processo de amalgamação Segundo ele os mencionados fatos confirmam o que já em outro lugar dissemos que a gente de origem européia posta em contato com a da terra não a exterminou absorveua amalgamouse com ela Tal é a verdadeira razão por que de nossas províncias desapareceu quase que absolutamente o tipo índio359 Ambos os argumentos constituemse em uma legitimação consciente da colonização portuguesa Por outro lado surpreendentemente Varnhagen manifestou um sentimento antiescravista em sua obra A insuficiência e ignorância do governo da metrópole nessa época descobrese em outras de suas providências se havia legislado para que os senhores fossem obrigados a dar o sábado livre aos escravos ou vestilos e a sustentálos bem como se as leis pudessem em tais assuntos obrigar mais os homens do que a religião e o individual interesse Acaso houvera sido a melhor época para em lugar destas leis promulgar uma pela qual se operasse nesta colônia a importante reforma da conversão da escravatura com as condições da grega e romana pagã na servidão de gleba fixa ao território garantindo a família e filha do Cristianismo como passo para a emancipação lenta Tristes deviam ser por certo as conseqüências de se embotar no coração do pobre escravo os sentimentos mais ternos de humanidade 358 Ibid p 223 359 Ibid p 246 Horizontes Identitários 110 separando com as vendas os pais dos filhos os maridos das mulheres o fiel servidor do menino que o acompanhara na infância e a quem velara na esperança de vir ele algum dia a encontrar nele um senhor amigo e grato Sem liberdade individual sem os gozos da família sem esperanças de associarse por si ou pelos filhos e netos à glória da pátria que não fixava um século para sua redenção social não havia que esperar do homem mui nobres sentimentos 360 Este é um trecho que sintetiza grande parte das convicções pessoais de Varnhagen e demonstra como elas se manifestam na sua narrativa De qualquer forma cumpre ressaltar como diz Wehling que mesmo realizando construção da memória nacional Varnhagen realizou obra científica pelos padrões da época a partir da qual contribuiu para um construto ideológico Não se trata apenas de engajamento sem mérito científico em que pese ter havido adesão a estratégias de construção da memória361 Todavia não há dúvida que sua preocupação fundamental era com os compromissos da consolidação nacional e da forma de governo362 Odalia ressalta que o que interessava a Varnhagen era demonstrar que a história colonial indica apenas um caminho para o país independente a absorção dos valores culturais europeus que são os fundamentos em que repousam e repousarão as possibilidades de nação brasileira363 Dessa forma Varnhagen mede por várias vezes o que é produzido no Brasil com o padrão europeu Assim ele afirma que a pintura que mais que as suas belas companheiras serve a comprovar o grau de civilização das nações já no Brasil se começava a apreciar ao menos nos templos cujos altares segundo o nosso rito se formam com as produções do engenho364 Em outro trecho diz que 360 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p265266 361 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p6869 362 Ibid p73 363 ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997p61 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbr downloadtextoup000007pdf 364 VARNHAGEN Op cit 1959 p 272 Salah H Khaled Jr 111 o aumento de riquezas o bem estar de muitas famílias permitia mandar à Europa prosseguir seus estudos geralmente em Coimbra muitos jovens brasileiros alguns dos quais haviam já figurado ou figuravam ainda nas letras tanto no Brasil como na Europa365 Entretanto Wehling lembra que embora afirmasse a singularidade da cultura brasileira produzida pelo povo não tinha nenhuma dúvida de que este se encontrava ainda distante do estágio plenamente civilizado europeu a que ele próprio Varnhagen aspirava conduzilo366 De acordo com Rodrigues Varnhagen tinha objetivos pragmáticos e oferecia uma lição através da história que servia à administração e ao Governo ideal que parece muito controvertido hoje367 Esse objetivo de Varnhagen transparece de forma clara em vários trechos de seu texto como por exemplo quando afirma que Gregório de Matos não soube ser útil a terra Acaso desconhecia que a missão de todo homem a quem Deus enobreceu com talentos e com gênio consiste em procurar melhorar o quanto possível a multidão368 O pragmatismo por trás de sua escrita é evidente restando apenas em aberto como a providência se encaixa em seu sistema de pensamento assunto para o ponto a seguir 213 A providência A utilização da providência na História Geral do Brasil por Varnhagen suscita questionamentos interessantes Ainda que Varnhagen se valesse de modelos dados pela historiografia clássica e fosse um conservador declarado não deixava de ter pretensão científica em conformidade com o que era posto pela modernidade Justamente aí reside uma aparente contradição Afinal considerando que boa parte do pensamento científico moderno estruturase em torno da negação da religião em prol da razão não deixa de haver uma certa surpresa na forma com que Varnhagen 365 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 270 366 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p63 367 RODRIGUES José Honório História e historiografia Rio de Janeiro Vozes 1970 p148 368 VARNHAGEN Op cit p270271 Horizontes Identitários 112 utiliza a providência para atribuir sentido a certos fatos Esse aspecto da obra de Varnhagen foi abordado por boa parte dos seus comentadores Reis por exemplo afirma que para Varnhagen com a chegada do cristianismo do rei da lei da razão da paz da cultura da civilização com a chegada dos europeus a este território o Brasil surgiu e integrouse no seio da providência369 Reis não chega a se aprofundar muito na questão mas associa a história no pensamento de Varnhagen a um sentido providencial Já para Wehling na obra de Varnhagen a obra humana e portanto a história era algo não só permitido como desejado por Deus e logo havia uma ação divina subjacente aos atos humanos aberta o suficiente para permitirlhes a liberdade de escolha em suas ações teleológicas370 Wehling especulou que Varnhagen pode ter lido Vico Vico introduziu a providência divina em sua ciência considerando que os homens fazem a história mas levando em conta no entanto uma providência geral porque na verdade acontecem muitas coisas na história que os homens não planejam371 A afirmativa parece caracterizar propriamente o sentido da providência uma interferência de ordem divina no mundo humano que no entanto não esvazia inteiramente de autonomia as ações do homem Sem dúvida a Providência Divina é algo recorrente na obra de Varnhagen e para Wehling chega às vezes quase às raias da intervenção milagrosa sobretudo quando estão em jogo valores e princípios caros ao autor como a defesa do que considera os interesses nacionais372 Os aspectos ressaltados por Wehling estão presentes em vários momentos da História Geral do Brasil Ao tratar das rivalidades entre tribos indígenas Varnhagen refere que 369 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p37 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpg PA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3 oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6 jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookresul 370 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p122123 Para Wehling quando se pensa na religiosidade de Varnhagen pensamos antes num vago espiritualismo mas dominado por uma preocupação pragmáti ca marcadamente política no sentido abrangente que tinha o conceito no século XIX Ibid p67 371 BAUMER Franklin L O pensamento europeu moderno v1 Lisboa Edições 70 p269 372 WEHLING Op cit p80 Salah H Khaled Jr 113 assim tais rixas perpetuariam neste abençoado solo a anarquia selvagem ou viriam a deixálo sem população se a Providência Divina não tivesse acudido a dispor que o cristianismo viesse a ter mão a tão triste e degradante estado373 O caráter é de intervenção e reorganização da realidade a partir da vontade divina vontade esta que pune ou premia de acordo com a circunstância Enquanto os brasileiros assim se hostilizavam e matavam uns aos outros velejava pelos mares de Pernambuco incólume e afoito o invasor DuguayTrouin que depois tomou o Rio de Janeiro segundo fica dito Nem que a Providência envie aos povos a guerra estranha para castigar sua falta de união374 Para Varnhagen parece haver uma espécie de ingerência divina sobre os acontecimentos sobre o próprio curso da história Há sobretudo um sentido teleológico providencial atribuído à história Os descobrimentos seriam inclusive eles próprios produtos de uma disposição providencial esses resultados havia Deus reservado conceder ao insígne genovês Cristovão Colombo o qual no modo como resistiu com a coragem de convicção aos obstáculos que se lhe levantaram e aos muitos desdéns com que foram escutados seus projetos nos deixou a prova do seu gênio375 Em outro trecho manifesta convicção semelhante quando afirma que no avistar terra junto à foz do Açu fora o mesmo Hojeda protegido pela Providência de um modo análogo como depois o foi Cabral376 Os comentários de Varnhagen indicam que a vinda do homem europeu estaria atrelada a um projeto providencial maior que veio a trazer a luz cristã a este continente Cezar também tratou da questão colocada pela utilização da providência por Varnhagen O autor destacou a ideia de uma explicação providencialista que se reporta reiteradamente à figura do Criador na História Geral do Brasil377 É esse 373 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p30 374 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 319 375 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p63 376 Ibid p 72 377 CEZAR Temístocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIX siècle essai sur Horizontes Identitários 114 o caso quando Varnhagen diz que não há viajante antigo ou moderno que não se extasie ante uma maravilha do Criador378 Em outro momento quando Varnhagen reflete sobre as possibilidades de vir a ser bem sucedida a colonização francesa afirma que mas melhor o tinha disposto a Providência em favor da futura unidade da atual nação brasileira que fala toda a mesma língua e professa Deus louvado a mesma religião379 As referências não são desprovidas de sentido Para Cezar a utilização da providência é importante para Varnhagen enquanto recurso explicativo pois faz parte da sua lógica interpretativa380 O trecho a seguir parece demonstrar bem essa hipótese Ao comentar os negros Varnhagen afirma que distinguemse sobretudo pela facilidade com que suportavam o trabalho no litoral do Brasil facilidade proveniente de sua força física da semelhança dos climas e não menos de seu gênio alegre talvez o maior dom com que a Providência os dotou para suportar a sorte que os esperava381 A Providência seria de certa forma um artifício narrativo utilizado por Varnhagen em sua escrita As explicações de Cezar e Wehling são pertinentes na medida em que de fato a providência parece manifestarse como uma intervenção do sagrado no profano à que Varnhagen atribui o sentido de um recurso explicativo São vários os trechos nos quais esse caráter é demonstrado na História Geral do Brasil A proposta de análise aqui levantada em relação a esse ponto é um tanto quanto diferente Embora a questão da vinculação de Varnhagen a um determinado modelo de ciência e de história já tenha sido discutida extensivamente por seus comentadores não parece que o mesmo possa ser dito da utilização da categoria providência A que Varnhagen efetivamente se reporta quando assim o faz E com quais intenções Franklin L Baumer em seu estudo intitulado O Pensamento Europeu Moderno oferece alguns elementos importantes para esta análise O autor demonstra como une rhétorique de la nacionalité Le cas Varnhagen v2 manuscrito 2002 p563 378 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 323 379 Ibid p286287 380 CEZAR Temístocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIX siècle essai sur une rhétorique de la nacionalité Le cas Varnhagen v2 manuscrito 2002 p563564 381 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 224 Salah H Khaled Jr 115 lenta e gradualmente a partir de um determinado momento da Idade Média um novo sistema de mundo conforme foi chamado por Galileu foi se impondo diante da então majoritária teoria gregocristã382 Tratase do rompimento de uma concepção de mundo que considerava a natureza como um fantoche cujos cordéis eram puxados por seu artífice o Criador No lugar de tal concepção a partir de astrônomos e cientistas físicos como Copérnico e Galileu e de filósofos como Descartes Bacon e Espinosa foi se impondo uma nova concepção de universo como máquina ou relógio No centro dessa nova concepção está a ideia de que criada a máquina esta se põe a funcionar sem necessidade de interferência por parte do Criador pois basta a si mesma Trata se de uma concepção de Deus do sétimo dia o qual se encontra em descanso e ausente após o ato da Criação Tal concepção difere radicalmente da percepção do mundo como teatro de marionetes a qual como parece evidente vinculase a ideia de providência e de condução permanente da história pelo Criador Na posição providencial há um Deus verdadeiramente onipresente e logo nada ausente Há uma grande diferença entre uma natureza que funciona teleologicamente de acordo com a condução de seu arquiteto e a ideia de natureza enquanto uma máquina que funciona de acordo com leis naturais invariáveis modelo que gradativamente vai se impondo como o padrão científico por excelência da modernidade Esse modelo triunfa na medida em que a ciência começa a delimitar que o conhecimento sobre o mundo material cabe a ela Dessa forma vai expulsando a teologia a qual cabe tratar da fé e assim afasta as explicações providencialistas É um processo de secularização que atingiu o seu ápice com o Iluminismo no século XVIII e se consolidou no século XIX O afastamento da teologia não é pelo menos inicialmente uma negação da existência de Deus Não é como se Bacon ou Descartes fossem ateus ao contrário não refutavam a ideia de criação do mundo por Deus Apenas consideravam que cabia a ciência e mais propriamente à filosofia explicálo Bacon inclusive expressamente condenou a mistura selvagem das coisas divinas com as humanas Para ele não devia ser dado à fé mais do que lhe pertencia o que retardava o desenvolvimento científico No seu sistema de pensamento ainda que a teologia conservasse parte do seu prestígio perdera a superioridade sobre a ciência Já Espinosa por exemplo era inflexível na rejeição da teleologia providencial Tratavase sobretudo de delimitar um 382 BAUMER Franklin L O pensamento europeu moderno v1 Lisboa Edições 70 Horizontes Identitários 116 campo de atuação humana e divina Descartes por sua vez reduziu a atividade divina no mundo embora não tenha a eliminado por completo Para ele Deus conservava o mundo ainda que não interferisse em seu funcionamento Tais desenvolvimentos estavam longe de ser unânimes e foram motivo de célebres polêmicas Newton foi atacado por Leibniz em função de ter mantido Deus nos bastidores como encarregado de limpar e reparar o relógio do mundo caso fosse necessário o que implicaria em providencialismo Para Leibniz o relógio havia sido feito de forma tão perfeita que seu funcionamento dispensava assistência divina Sendo assim desprezava inteiramente qualquer concepção que fizesse da máquina do mundo algo tão imperfeito que Deus fosse obrigado a limpála e remendála a todo tempo Para Leibniz embora Deus pudesse fazer milagres não os fazia Mesmo para pensadores profundamente cristãos a ciência implicava em uma laicização do conhecimento Locke preocupou se em provar a existência de Deus e a justeza do cristianismo Entretanto refutou completamente o direito divino dos reis A figura de Deus não havia sido inteiramente expulsa do mundo de imediato mas o mundo começava a aparecer menos como o cenário de peregrinação natural do homem e mais como campo para exercício do poder humano Havia um processo de secularização da história em curso Hobbes foi um dos críticos mais ferrenhos do providencialismo e até mesmo da crença religiosa A associação direta de Varnhagen ao pensamento de Hobbes por exemplo é questionável na medida em que Hobbes foi um dos poucos pensadores do seu tempo que ousou relacionar a religião ao medo e a ignorância pensando claramente que se tratava de superstição ou então um decreto do soberano no interesse da ordem pública Para Baumer com algumas exceções os filósofos naturais do século XVII queriam ter o melhor de dois mundos isto é manter Deus em alguma medida como criador e garantidor da certeza científica e ao mesmo tempo reduzir o seu providencialismo no interesse da capacidade preditiva da ciência383 Estabelecia se aos poucos uma dicotomia entre os que acreditavam em um Deus que havia criado o mundo mas não o governava e os que acreditavam em uma providência geral que conduzia a história perspectiva que cada vez mais estava cercada de descrédito No final do século XVII o Bispo Bossuet escrevia que temia uma nova era de intemperança do espírito a seguir a uma época de obediência a Deus e ao Rei 383 BAUMER Franklin L O pensamento europeu moderno v1 Lisboa Edições 70 p96 Salah H Khaled Jr 117 Ele observava uma grande batalha que estava a se preparar contra a religião O secularismo avançava na medida em que havia uma tendência a limitar cada vez mais a teologia a uma esfera comparativamente restrita da fé e da moral É nesse contexto que me parece interessante pensar a utilização constante da providência por Varnhagen em sintonia com o seu habitual pragmatismo Para Bossuet não se devia falar em fortuna ou sorte na História Antes disso a longa cadeia de causas particulares que fazem e desfazem impérios depende das ordens secretas da Divina Providência384 Em Varnhagen de forma muito semelhante a Providência de certa maneira ainda governa o mundo Para Baumer a revolução científica foi entre outras coisas um juízo sobre a história385 Varnhagen estava alheio a tal processo Como diz Wehling o ancien régime subsistia na concepção de Varnhagen sua idéia de monarquia aristocrática chocavase com os novos tempos de liberalismo e da monarquia constitucional386 O autor salienta em sua obra como Varnhagen na verdade aderia a um modelo de monarquia que se referia aos séculos XVI e XVII387 Para Varnhagen uma concepção providencialista de história era essencial e estava em seus próprios fundamentos políticos O fato é que em virtude de seu conservadorismo Varnhagen fez questão de refutar grande parte da virada de um pensamento sobrenaturalistamíticoautoritário para um tipo naturalistacientíficoindividualista característico da modernidade Assim como era intolerante e implacável com democratas e republicanos era adepto fervoroso do cristianismo o que implicava em uma visão providencialista da história e o afastava da modernidade Voltaire inventou o termo filosofia da história e o fez como a ideia de verdades úteis extraídas do passado que poderiam ser aplicadas no presente388 Entretanto deveriam ser utilizadas no combate contra a ignorância e o fanatismo uma conotação inteiramente diversa do sentido exemplar atribuído por Varnhagen à história O mesmo Voltaire tinha sérias dúvidas sobre a divina Providência em face de grandes acidentes físicos como o terremoto de Lisboa Não há dúvida 384 APUD BAUMER Franklin L O pensamento europeu moderno v1 Lisboa Edições 70 p142 385 BAUMER Op cit p152 386 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p99 387 Wehling afirma que Varnhagen era favorável a Uma monarquia estamental à portuguesa patrimo nialista e efetivamente mais bemsucedida em matéria de centralização do que suas congêneres norte européias e na qual o rei poderia ou deveria assumir junto com a burocracia e seusintelectuais o papel de amálgama da nacionalidade Ibid p119 388 BAUMER Op cit p266 Horizontes Identitários 118 que a interpretação providencialista da história encontravase em franca decadência no século XIX389 Rosseau defendeu a ideia de uma religião civil em oposição ao cristianismo para inculcar lealdade ao Estado e aos deveres da cidadania O iluminismo francês era em alguns momentos eminentemente antirreligioso ou anticristão Não é por acaso que Varnhagen tinha tantas resistências a ele e se valia da modernidade quase que exclusivamente em função de desenvolvimento e progresso de ordem material A lealdade que ele deseja incentivar é a outro modelo de sociedade para o qual o seu pragmatismo estava orientado a concretizar através da História Geral do Brasil Como comenta Hobsbawm alguns padrões que tradicionalmente haviam garantido a lealdade como a legitimidade dinástica a ordenação divina o direito histórico e a continuidade da dominação ou a coesão religiosa estavam seriamente enfraquecidos390 De forma que todas essas tradicionais legitimações da autoridade estatal estavam desde 1789 sob permanente desafio esse era claramente o caso da Monarquia391 A História de Varnhagen se propõe portanto a ser um novo guia sob a chancela da ciência justamente no momento em que a autoridade religiosa e monárquica se enfraquecia cada vez mais Nesse sentido era realmente providencial a sua intervenção na realidade concreta 22 As partes se tornam um todo a partir da narrativa nacional uma história geral da nação brasileira Unidade territorial e unidade racial se integram e se confundem na mística de que só uma nação unitária tem condições de sobreviver Não existem espaços para que se manifestem livremente os elementos heterogêneos raciais ou políticos sociais ou econômicos originários do período colonial A nação é compreendida como um bloco monolítico onde qualquer voz discordante é um perigo e uma ameaça a serem extirpados Nilo Odalia 389 Ibid p271 390 HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p105 391 Ibidem Salah H Khaled Jr 119 Não há dúvida que a História Geral do Brasil foi concebida para cumprir papel instrumental na consolidação da nação brasileira392 Conforme os critérios estabelecidos por Martius coube a Varnhagen a missão de elaborar a nação retrospectivamente projetando as ambições do Império Brasileiro sobre o Brasil colonial e dessa forma inventar uma nação brasileira393 Para isso ele teve que elaborar retrospectivamente um BrasilNação no passado394 Isso no entanto estava longe de ser algo simples Varnhagen tinha um imenso desafio pela frente Fazer do Brasil um todo o mais homogêneo possível a partir do seu passado Por isso a ideia de uma história geral Essa missão passava em primeiro lugar por conferir ao país um sentido uno que imprimisse a ideia de coesão Para tanto por excelência teria que reunir o que era disperso395 Assim desde o princípio da obra Varnhagen se refere ao Brasil como uma entidade conjunta e busca prefigurar a colônia como uma nação em pleno século XVI396 Os próprios títulos dos capítulos são quase sempre genéricos possibilitando a reunião de informações que não apresentam relação direta entre si A narrativa de Varnhagen começa com uma descrição geral do Brasil sendo este o título do primeiro capítulo Logo de início é explicada a origem por trás da nomenclatura do país que se faria célebre por muito tempo em livros escolares 392 Wehling afirma que É este o sentido que Varnhagen em correspondência ao imperador atribuiu à sua obra maior realizar uma história geral do país quando seria somente possível em sociedades com muito maior sedimentação histórica WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p112 393 Para Cezar Varnhagen foi o primeiro a inventar uma história geral do Brasil Invenção está sendo entendida como o processo criador que articula o conjunto das matérias selecionadas pelo historiador sejam elas de caráter metodológico ou teórico em sua escrita CEZAR Temístocles Varnhagen e os relatos de viagem do século XVI ensaio de recepção historiográfica In Anos 90 n11 Porto Alegre julho de 1999 p52 Disponível em httpwwwseerufrgsbrindexphpanos90articleview65413893 394 Hobsbawm comenta que obviamente o conceito e o vocabulário de nação política poderia oportu namente ser estendido para uma nação constituída presumivelmente pela massa dos habitantes de um país mas isso quase certamente aconteceu muito depois de sua formulação pela visão retroativa do nacionalismo HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p89 395 Wehling afirma que Assim Varnhagen concebeu a história políticoadministrativa colonial como ten são permanente entre o poder local e o poder central aquele duplamente negativo porque sacrificava os objetivos maiores da colonização portuguesa a interesses paroquiais e porque projetado para o fu turo comprometia o legado maior da Colônia justamente a unidade do país WEHLING Op citp183 396 Cezar afirma que Varnhagen pretendia encontrar o começo da nação brasileira que ele tem certeza está ali no século XVI em algum lugar CEZAR Temístocles Varnhagen e os relatos de viagem do século XVI ensaio de recepção historiográfica In Anos 90 n11 Porto Alegre julho de 1999 p51 Disponível em httpwwwseerufrgsbrindexphpanos90articleview65413893 Horizontes Identitários 120 TERRA DO BRASIL ou somente BRASIL foi o nome dado pelos Portugueses à parte mais oriental do novo continente em virtude de haverem aí encontrado em abundância certo lenho que subministrou ao comércio uma tinta vermelha análoga à que até então com esse nome a Europa importava da Ásia397 A utilização de letras maiúsculas por Varnhagen parece denotar o sentido de grandeza e imponência que ele busca atribuir à nação sendo a partir desse enfoque que ele procede sua descrição Evidentemente munido de um espírito pragmático como estava Varnhagen não se contentava em fazer meras descrições e em seguida já dá o tom de ufanismo que caracteriza sua obra exaltando as dimensões do Império do qual é cronista e ressaltando a sua coesão Mais tarde a denominação de BRASIL veio a fazerse extensiva ao conjunto de todas as colônias portuguesas neste continente as quais emancipandose vieram a constituir o atual império brasílico hoje em dia um dos Estados de maior extensão no globo de cuja superfície terrestre abrange proximamente a décima quinta parte398 O termo Brasil novamente com a utilização de letras maiúsculas configura a designação conjunta de todas as antigas posses portuguesas o que denota a coesão desejada Ele reforça o sentido de grandeza e união através de termos como conjunto império e extensão O destaque dado ao termo extensão por exemplo demonstra a preocupação com a manutenção da integridade do território nacional e de um império que legitimado pelas suas grandes dimensões territoriais busca lugar entre as mais prósperas nações Segundo ele desde os primórdios de sua existência o Brasil já estava configurado com a sua designação compreendendo o conjunto das colônias portuguesas Varnhagen procura estabelecer um Brasil do qual os brasileiros poderiam se orgulhar e assim busca estimular o sentimento nacional Essa perspectiva de exaltação se estende inclusive à natureza Varnhagen afirma que no Brasil a natureza é tão fecunda que permite conseguir talvez resultados iguais aos de outros países com a metade do trabalho399 Em outro trecho comenta toda a riqueza do seu solo e a magnificência de suas cenas naturais e a bondade dos seus portos 397 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p13 Grifo nosso 398 Ibidem Grifo nosso 399 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 223 Salah H Khaled Jr 121 tão prestantes ao comércio400 O tom é de elogio que entretanto não se estende a todos os aspectos da antiga colônia Uma descrição geográfica do Brasil em virtude de sua própria extensão territorial deveria implicar pelo menos a princípio em certo destaque à diversidade regional Não é o que ocorre Mesmo em meio a passagens mais descritivas e com pouca ou nenhuma conotação social e política são raríssimos os momentos em que Varnhagen menciona mesmo que rapidamente alguma característica regional Em um trecho no qual descreve a flora comenta que a mesma oferece ao país vários contrastes regionais401 Mas são exceções402 Sua preocupação é geral a ponto de borrar ou eliminar por completo o local Varnhagen está preocupado em fazer com que o leitor sintase como parte de um Brasil íntegro coeso uno e indiviso e para tanto deve suprimir tudo que não contribua para essa percepção O tom da obra é inequívoco e já ressalta aos olhos nas primeiras frases Ao final de um momento introdutório ao leitor há uma breve síntese do espírito da narrativa a qual abarca grande parte dos elementos mais marcantes do texto de Varnhagen Como e quando se inteirou Portugal da existência do legado a que com poucos anos de antecipação dera herdeiro o tratado testamentário de Tordesilhas como o descuidou a princípio e o beneficiou e aproveitou depois e finalmente como através de muitas vicissitudes incluindo acontecimentos e guerras por parte de gentes das quatro nações que além de Portugal mais se ocuparam de colônias do século dezesseis para cá isto é da Espanha França Inglaterra e Holanda veio a surgir na extensão de território que o mesmo legado abarcava um novo Império a figurar no Orbe entre as nações civilizadas regido por uma das primeiras dinastias de nossos tempos tal é o assunto da presente História403 Assim Varnhagen já estabelece de antemão o esforço de superação heroica feito pelos portugueses para conquistar essas terras as imensas dificuldades e os poucos erros cometidos os embates contra as nações inimigas a pretensão do Brasil de ser uma nação civilizada de acordo com o padrão Europeu a defesa da 400 Ibid p19 401 Ibidem 402 CEZAR afirma que assim a unificação imaginária do território precede portanto à unidade polí tica CEZAR Temístocles Américo Correa A geografia servia antes de tudo para unificar o Império escrita da história e saber geográfico no Brasil oitocentista In Ágora Santa Cruz do Sul v 11 n 1 janjun 2005 p80 403 VARNHAGEN Op cit p67 Grifo nosso Horizontes Identitários 122 dinastia de Bragança e assim por diante É quase que uma espécie de guia de leitura um norteador de forma que o leitor já fica a par do que irá encontrar na obra que se constitui em um desdobramento em ordem cronológica dos aspectos que Varnhagen privilegia na formação histórica brasileira de acordo com o sentido pragmático estipulado pelo IHGB e definido com maior precisão por Martius O lugar de onde Varnhagen fala de onde expressa a sua escrita é inteiramente presente na sua própria forma de compreensão e invenção de uma narrativa nacional O olhar de Varnhagen sobre o passado colonial é inteiramente teleológico nação civilização e progresso apresentamse como associações evidentes e demonstradas pela história De alguma forma todos os acontecimentos desde a chegada dos portugueses sinalizavam para a realização de um grande Império brasileiro que vem agora integrarse às grandes nações civilizadas A narrativa nacional de Varnhagen tem caráter de glorificação do feito português já prefigurado desde os tempos coloniais404 Nesse sentido é interessante demonstrar por exemplo como ele já projetava desde o descobrimento a possibilidade de estabelecerse um novo império na colônia pois já havia a idéia que no Brasil poderia vir a organizarse um grande império a metrópole aguardava acaso para isso a melhor ocasião405 Varnhagen enxerga no passado com a chegada dos portugueses a fundação das bases do que viria a ser o Brasil independente e delimita um espaço de continuidade entre aqueles esforços iniciais e a sua eventual consagração no século XIX Seu raciocínio é configurado a partir da projeção Sua escrita é determinada por esse fim a legitimação do presente Sendo assim a partir da organização de seis companhias e da posterior permanência de oitenta homens darmas Varnhagen vê a origem de um primeiro contingente de exército no Brasil406 Quanto ao descobrimento Varnhagen não tem dúvida que embora motivado 404 Para Reis o olhar de Varnhagen sobre a história do Brasil é o olhar do colonizador português ele reconstrói o Brasil sintetiza os seus diversos ritmos temporais submetendoos à lógica do desco bridor e do conquistador REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p33 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid 9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColon izaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShc TbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookresul 405 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 106 406 Ibidem p280 Salah H Khaled Jr 123 pelo comércio407 tratouse de um descobrimento casual desta região408 Tratase de uma explicação que predominou durante muito tempo o que demonstra o quanto foi forte a fundação de sentidos a partir da História Geral do Brasil Para Varnhagen é com a chegada dos portugueses que essa região passa efetivamente a ter uma história409 Isso não significa todavia que é a Portugal que Varnhagen confere louvor Como é peculiar em toda a obra esse novo império ainda que reconhecendo a dívida para com Portugal e a importância do seu legado seria evidentemente superior pois é o Brasil que deve ser enaltecido Do alto desse morro se descobria o mar fenecendo no horizonte e os que com o pensamento na pátria sobre a superfície das águas estendiam saudosos os olhos mal podiam imaginar a importância e grandeza da terra compreendida dentro da demarcação ajustada em Tordesilhas cuja existência iam revelar ao mundo civilizado E menos por certo imaginariam que nessa terra dentro de algumas gerações se havia de organizar uma nação mais rica e mais considerável do que a mãepátria410 Varnhagen enfatiza o valor da nova terra e novamente a sua grandeza Ele posiciona o Brasil acima de Portugal no presente e equipara o descobrimento ao efetivo ingresso da posse portuguesa na civilização Não há dúvida que ele constrói uma narrativa do passado a partir do presente prefigurandoo em seu relato nacional411 Seu ponto de vista é condicionado pelo projeto de nação que busca legitimar iniciativa em torno da qual não medirá esforços Varnhagen elabora uma memória nacional que pretende fundar sentidos sobre a nação fazer com que os brasileiros passem a 407 Varnhagen afirma que os interesses do comércio mais que a curiosidade natural ao homem e que a sede de conquistas tem sido em geral a causa da facilidade do trato e comunicação dos indivíduos da espécie humana entre si Foi ao da especiaria do Oriente que originariamente se deveu o grande acontecimento que denominamos Descobrimento do Novo Continente Ibid p59 408 Ibid p 70 409 Reis ressalta que para Varnhagen na verdade só então começava a história do Brasil Os capítu los anteriores eles só prepararam essa chegada descrevendo o cenário em que ela ocorreria REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p38 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgP A23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortugues asourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8 Ab258VasaXoibookresul 410 VARNHAGEN Op cit p70 Grifo nosso 411 GUIMARÃES afirma que O século XIX nada mais seria do que a realização de potencialidades inatas detectadas com o auxílio da pesquisa histórica Mas até que ponto podemos e devemos nos perguntar é um olhar do presente do século XIX que recorte e constrói esta linha de continuidade a partir de inúmeras determinações próprias e este século GUIMARÃES Manoel Luiz Salgado De Paris ao Rio de Janeiro a institucionalização da escrita da história In Acervo v04 n 01 p137138 Horizontes Identitários 124 sentirse ligados ao Brasil e orgulhosos de sua história e por extensão conectados ao Império e à Monarquia Esse é o caráter do seu grande relato da nacionalidade Esse esforço narrativo de legitimação tem que lidar inevitavelmente com a questão indígena Afinal o ingresso no mundo civilizado implica em alguma medida em uma ruptura com um padrão social anteriormente estabelecido e essa ruptura deve ser apresentada como uma decorrência necessária e desejável nunca como o resultado de uma brutalidade violenta e de um processo de espoliação Para Varnhagen a tomada de posse dessas terras através da conquista apenas configura a efetivação de uma propriedade já legitimada pela chancela papal com o Tratado de Tordesilhas412 Mas e quanto aos nativos Ao passar para a descrição dos indígenas Varnhagen apresenta dados estatísticos de veracidade duvidosa para legitimar a colonização e como é de seu costume usa o presente como parâmetro para emitir juízos sobre o passado Varnhagen afirma que toda a extensão do Brasil está hoje oito ou dez vezes tanto mais povoada do que no tempo em que começou a colonização e que por conseguinte nem chegariam a um milhão os índios que percorriam nessa época este vasto território hostilizandose uns aos outros às vezes a cada duas léguas se a terra atraia por pingue mais alguma gente413 Como parte integrante de seu processo de construção de legitimidade da vinda dos portugueses Varnhagen desmerece as comunidades nativas tanto pelo seu caráter quanto pelo seu escasso número diante de um território tão vasto Além disso ao discutir a utilização do termo índio Varnhagen diz que afirmamos ser menos exata a expressão indígenas porque as gentes que possuíam ou antes percorriam o território eram apenas as últimas invasoras dele414 Assim quando ele fala dos índios 412 Reis afirma que Varnhagen Cabral em terra põe então retoricamente a questão da sua proprie dade pertenceria aos portugueses E responde pertencia sim desde 1494 isto é antes de ter sido descoberta pelo Tratado de Tordesilhas assinado por portugueses e espanhóis diante do papa REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p38 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgP A23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortugues asourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8 Ab258VasaXoibookresul 413 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p23 414 Ibid p 89 Grifo nosso Salah H Khaled Jr 125 do Brasil em geral os considera de pouco valor visto que além de pouco numerosos eram apenas os últimos invasores dessas terras descendentes dos egípcios415 Portanto se os índios eram eles mesmos invasores não há o que se questionar a respeito da ocupação portuguesa Tais invasores que haviam exterminado os supostamente pacíficos habitantes originais da região viriam a enfrentar um acerto de contas com o destino pois Varnhagen afirma que a seu turno devia chegarlhes o dia da expiação Veio a trazê lo o descobrimento e a colonização efetuados pela Europa Cristã416 A colonização que introduz a civilização na região passa a ser vista sob essa ótica como uma espécie de exercício de justiça divina um acerto de contas da Providência com os bárbaros O fato dos indígenas não estarem estabelecidos de acordo com os padrões esperados de uma sociedade civilizada também justifica a colonização pois é conhecido é o axioma de estatística que em qualquer país a povoação só toma o devido desenvolvimento quando os habitantes abandonam a vida errante ou nômade para se entregarem à cultura ou aproveitamento da terra com habitações fixas417 Em última instância a incapacidade dos índios medese pela sua inabilidade em estabelecer um Estado centralizado missão da qual os conquistadores irão se encarregar Uma vez que Varnhagen supera a questão indígena pode passar para o que realmente lhe interessa ou seja a transposição da civilização europeia para os trópicos processo que começa segundo ele de fato a partir de 1530 Ao comentar a fundação de vilas Varnhagen afirma que assim surgiu a primeira colônia regular européia no Brasil E dizemos a primeira porque não podemos chamar colônias regulares as pequenas feitorias provisórias fundadas antes nenhuma das quais vingou até chegar a ter as honras de povoação e de vila418 415 Para Varnhagen fazemnos crer que eram de raça aparentada com os Egípcios os ascendentes dos nossos Tupis É mui possível que o foco neste continente desta grande nação que chama remos indistintamente Tupi ou Carib Em todo o caso para nós não cabe a mínima dúvida que os Caribs ou Tupis haviam com inauditas crueldades invadido uma grande parte do lado oriental deste continente cujos anteriores habitantes bem que em maior atraso eram em geral mansos e timora tos VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p5556 416 Ibid p56 417 Ibid p24 418 Ibid p 129 Horizontes Identitários 126 Assim ele comemora o início da colonização propriamente dita na medida em que começava a ocorrer a ocupação do território Segundo Varnhagen a partir daí as bases da nação estavam em pleno processo de implantação e tinha início o processo de imposição da civilização sobre a barbárie De acordo com esse entendimento Varnhagen afirma que Martim Afonso não se limitou a fundar uma só vila assentou de reforçar esta contra qualquer tentativa de inimigo marítimo com outra povoação sertaneja que ao mesmo tempo servisse de guarda avançada para as futuras conquistas da civilização419 Para ele há uma associação íntima entre a colonização e um verdadeiro esforço civilizatório Ou melhor dizendo há uma equiparação Colonizar é civilizar Esta explicação é sobretudo útil Para que o aspecto pragmático seja contemplado desde o princípio da chegada dos portugueses é necessário um vínculo que faça com que o sentido da colônia aponte para a realização de um país civilizado de acordo com os moldes europeus Escusamos dizer que estas vilas foram fundadas sem diferença alguma do que se passaria tratandose da instalação de qualquer colônia em uma paragem menos povoada de Portugal Subentendeuse que em legislação e em tudo os novos moradores e os descendentes destes teriam em relação à metrópole os foros de naturais e seriam governados pelas mesmas leis vigentes 420 O Brasil é assim estabelecido por Varnhagen como uma reprodução de Portugal como um território que já nascia conforme os altos padrões da civilização europeia Quando ele passa para a questão das capitanias faz uma avaliação razoavelmente abrangente do sistema que as introduziu Compreendiamse nas doações as ilhas que se achassem até a distância de dez léguas da costa continental As raias entre capitania e capitania se fixaram por linhas geográficas tiradas de um lugar da mesma costa em direção a oeste Assim o território ficou verdadeiramente dividido em zonas paralelas porém umas mais largas que as outras Este meio de linhas retas divisórias imaginárias que ainda com os mais exatos instrumentos num terreno muito conhecido seriam quase impossíveis de traçar era o único que se podia lançar mão pelo quase 419 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 130 420 Ibid p 133 Salah H Khaled Jr 127 nenhum conhecimento corográfico que havia do país além do seu litoral Em algumas doações nem foi possível declarar o ponto em que principiavam ou acabavam Incluíase apenas a extensão da fronteira marítima e designavamse os nomes dos dois donatários limítrofes421 Aqui Varnhagen evidencia a tensão que marca a sua narrativa em relação a Portugal por um lado ele lamenta a concessão de poder aos donatários quando na Europa a tendência era a sua concentração mas por outro lado afirma que não há dúvida que por muito entraria no ânimo do soberano o pensamento de propagar o evangelho mas ele o faria faltando aos seus deveres se o executasse empobrecendo em gente e em recursos o povo que regia sem esperanças de retribuição422 Percebase que Varnhagen preocupase desde os primórdios da colonização em determinar que a autoridade sobre o país deve ser exercida pela Monarquia Se ela se encontrava então situada em Portugal é mero detalhe O que importa é legitimar a sua autoridade perante o leitor Varnhagen justifica a recompensa aos irmãos Souza na concessão com base nos serviços prestados ao Brasil Doze foram os donatários mas verdadeiramente quinze os quinhões visto que os dois irmãos Sousa tinham só para si cento e oitenta léguas distribuídas em cinco porções separadas e não em duas inteiriças Com razão deviam eles de ser pelos serviços importantes que acabavam de prestar no próprio Brasil os mais atendidos na partilha423 Aqui Varnhagen também demonstra outra característica de sua narrativa nacional o reconhecimento dos serviços prestados à nação Quando ele considera que houve injustiça e não reconhecimento na época trata ele mesmo de conferir a seu escolhido a glória para toda a posteridade através da história Em seguida Varnhagen procede uma descrição breve das capitanias e de seus donatários mas em compensação critica a extensão de território concedida e afirma que 421 Ibid p 141 422 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 147 423 Ibid p 141 Horizontes Identitários 128 com doações pequenas a colonização se teria feito com mais gente e naturalmente o Brasil estaria hoje mais povoado talvez do que os Estados Unidos sua povoação seria porventura homogênea e teriam entre si as províncias menos rivalidades que se ainda existem procedem em parte das tais grandes capitanias Pois é possível crer que esses poucos que competiam para ser donatários como diz o conde da Castanheira se não contentassem sem a idéia do domínio de muita terra embora inútil e sobre que nem sequer podiam saciar com os olhos mas só com a imaginação sua cobiça quando na maior parte eram de sertão onde não poderiam ir nem foram em sua vida O mal foi fazerse tudo às pressas424 Varnhagen escolhe cuidadosamente suas palavras É um ponto no qual ele ataca um problema concreto e evidente para a questão nacional a insubordinação provincial Assim ao sutilmente abordar o assunto através das capitanias Varnhagen atribui a existência de qualquer rivalidade no presente entre as várias províncias a um erro estratégico por parte da administração portuguesa o qual quase comprometeu e ainda representa um entrave ao desenvolvimento da nação O ensinamento é claro a divisão é um resto indesejável produto de um equívoco administrativo que deve ser superado pela coesão do todo nacional Varnhagen está aqui jogando com uma tensão que é inerente a toda sua obra o relacionamento entre o Brasil e Portugal Sua solução geralmente é a mesma critica moderadamente os equívocos mais evidentes sem entretanto deixar de justificar a empreitada portuguesa425 Todavia por vezes as conclusões a que ele chega são verdadeiramente surpreendentes e se deslocam da exemplaridade para um pragmatismo que parece exagerado Deste modo a coroa chegava a ceder em benefício dos donatários a maior parte dos direitos majestáticos e quase conservava sobre as novas capitanias brasílicas um protetorado com poderes mui limitados a troco de poucos tributos incluindo o do dízimo do qual tributo ela mesma pagava o culto público e a redízima aos senhores de terras Quase que podemos dizer que Portugal reconhecia a independência do Brasil antes de ele a colonizar426 424 Ibid p 146 Grifo nosso 425 Assim Varnhagen dirá que Em todo caso por meio do estabelecimento destas capitanias pensou o governo de D João III sem lesar diretamente o tesouro da nação não só assegurar esta grande extensão de terra que a fortuna lhe outorgara como com o tempo recolher por meio da cultura dela maiores vantagens VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 147 426 Ibid p 152 Salah H Khaled Jr 129 A afirmação é extremamente ousada Em um momento Varnhagen critica a autonomia das capitanias que relaciona com a rebeldia provincial Mas em outro momento não deixa de aproveitar essa própria autonomia agora configurada como do Brasil e assim por extensão nacional como um sinalizador da eventual independência Parece haver um excesso nesse trecho Todavia como Varnhagen está preocupado em justificar e legitimar um Brasil independente não deixa de ser coerente com seu ponto de vista pragmático Varnhagen inclusive enxerga nesses momentos iniciais os princípios de uma autonomia administrativa e financeira427 Para ele o Brasil do século XIX não é uma jovem nação ameaçada por tensões que colocam a fragmentação como uma ameaça concreta às suas pretensões pelo contrário ainda que a independência demorasse a se consolidar em sua plenitude a existência da nação brasileira já se encontra chancelada pela sanção dos séculos De qualquer forma um passo a mais no reconhecimento da independência a que Varnhagen se refere vem com o estabelecimento de uma autoridade centralizada no país com o governo geral428 Ele afirma que estava resolvido o governo da metrópole a delegar parte da sua autoridade em todo o Estado do Brasil num governador geral429 Para Varnhagen com a instalação do Governo Geral e portanto com a presença do Estado estariam reunidas condições para a consagração do Brasil nação em pleno século XVI430 Segundo ele o esforço civilizatório e fundacional estava em pleno curso e se via reforçado uma vez que a centralização administrativa propriamente dita era acompanhada dos negócios da Justiça e dos da Fazenda sujeitos aos cargos de 427 É o caso quando ele fala de São Vicente Quando passou a ter um engenho de açúcar moente e corrente permitiu que o país se pudesse reger e pagar seus funcionários sem sobrecarregar o tesouro da metrópole Ibid p 168 428 Varnhagen afirma que graças à presença na corte de Pêro de Góis e a sua ilustração e gênio ativo se assentou em fim do mencionado ano de 1548 no melhor partido qual o de criar no Brasil um centro de poder para acudir onde houvesse mais necessidade Foi também resolvido que se retirassem aos donatários algumas das prerrogativas de que não tinham sabido usar convenientemente como a al çada que no cível e no crime possuíam sobre os colonos devendo desde então entrar em suas terras corregedores e outras justiças e podendo eles ser suspensos das suas jurisdições VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 230 429 Ibid p 232 430 Segundo Odalia o erro de se pretender colonizar o Brasil sob uma forma feudal é reconhecido rapidamente pelo Estado que poucos anos depois convencido de que a solução adotada não era a mais conveniente para a preservação da colônia instala um governo central cujos objetivos seriam entre outros criar um centro de ordem e acudir à unidade que perigava pela existência das capitanias ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p72 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdo wnloadtextoup000007pdf Horizontes Identitários 130 ouvidorgeral e de provedormor que pela mesma ocasião se instituíram431 Varnhagen comemora o Brasil começava a ser moldado ao padrão da sociedade europeia e o Estado retomava o poder soberano após uma concessão de liberdade exagerada432 O processo de instalação de uma estrutura administrativa nos moldes europeus é festejado por Varnhagen pois a partir daí inicia em sua visão um processo de extensão dessa autoridade sobre o território que pouco a pouco vai se configurando como nacional Varnhagen relata que prosseguiu Mem de Sá viagem até entrar na Bahia e desde logo em harmonia com a idéia de fundar outra cidade real no sul do Brasil começou a insistir pela colonização do Rio de Janeiro a fim de que também no melhor porto do sul houvesse outra cidade salvadora destas paragens433 Varnhagen iguala colonização à salvação Iguala portanto soberania e estabele cimento de controle sobre o território a uma missão cujo caráter é cívico Ele celebra o expansionismo como algo incentivado e aprovado sempre que associado a uma ação de Estado o que reforça o sentido geral da sua narrativa Nesse sentido por exemplo é louvável a ideia de empreender e levar a cabo uma grande empresa da civilização a fundação da capitania de Sergipe Além das razões que deviam mover os dois governantes a cometer a ação piedosa de reduzir à cristandade a terra onde havia tido lugar o martírio do primeiro prelado do Brasil antecessor de um deles e do pai do outro militavam ademais outras de estado mui poderosas que aconselhavam a ocupação dessa paragem434 Percebese com facilidade a presença de uma antinomia entre civilização e barbárie A expansão do domínio português é efetivamente a promoção da ordem contra o caos do civilizado contra o bárbaro jogo de opostos característico da narrativa nacional de Varnhagen Esse é um esforço que implica no pagamento de um 431 VARNHAGEN Op cit p 232 432 Dessa forma segundo Odalia estamos já em presença do Estado tal como o entende Varnhagen um Estado centralizador e autoritário que assume desde o princípio os fios tênues de uma unidade continuamente ameaçada por inimigos internos originados da repartição do Brasil em capitanias e externos corsários e piratas estrangeiros ODALIA Op cit p73 Disponível em httpwwwdominio publicogovbrdownloadtextoup000007pdf 433 VARNHAGEN Op cit p 307 Grifo nosso 434 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 32 Grifo nosso Salah H Khaled Jr 131 preço alto mas justificado pois é feito em nome da nação brasileira Pouco a pouco ele vai definindo o imenso esforço realizado pelos colonos sacrificados para garantir o sucesso da nova nação Assim por exemplo a nova colônia de Piratininga tão exposta às agressões do gentio do sertão tudo sacrificou a boa gente para o bem da nova pátria comum Qual fênix que sucumbe por dar vida à sua prole assim a colônia mais antiga do Brasil se exaure agora de forças e não cura mesquinhamente se isso prejudicará ao seu futuro desenvolvimento e concorre quanto pode a dar existência a um empório mais poderoso435 Varnhagen não se constrange diante da ousadia inerente à afirmação de que poderia haver algo como uma nova pátria comum nos primórdios da colonização A prefiguração da nação é a regra na sua narrativa Além disso a utilização de termos como a fênix que renasce das cinzas também demonstra outra característica da narrativa nacional de Varnhagen Ele joga com as dificuldades constantemente sinalizando para a união em torno do bem comum como o caminho para o sucesso da pátria e sua elevação à condição de país desenvolvido Diante das dificuldades a união vai tomando lugar fazendo com que a dispersão provocada pela infeliz distribuição das capitanias vá lentamente dando lugar a um Brasil coeso que compartilha o sofrimento mas também a glória que aponta para a condição de nação civilizada e aqui nos cumpre notar que os esforços simultâneos que ora faziam não só esta como outras capitanias contra o inimigo comum eram novos elementos que iam estreitar pelos laços do coração a futura união brasileira que os holandeses contribuíram depois a fazer apertar muito e a Deus praza que para todo o sempre a fim de que esta nação possa continuar a ser a primeira deste grande continente antárctico e algum dia se chegue a contar entre as mais consideradas no universo o que sem muita união nunca poderá suceder436 Aqui novamente Varnhagen emprega cuidadosamente os termos de acordo com os efeitos que pretende despertar no seu leitor Assim ele enfatiza de um lado os esforços contra o inimigo comum a quem irá contrapor os nossos como será abordado no próximo trecho deste capítulo e de outro a ideia de união afetiva em torno da nação apertada pelos laços do coração Varnhagen pretende comover 435 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p313 Grifo nosso 436 Ibidem Horizontes Identitários 132 pretende produzir identificação Ele dificilmente poderia ser mais enfático na defesa de um Brasil íntegro Esse objetivo inclusive faz com que ele demonstre a sua insatisfação com tudo que afasta o país de tal ideal Como Varnhagen está interessado na união e coesão para evitar a desintegração territorial vê com ceticismo ou reprovação todas as iniciativas que de alguma forma possam no passado ter prejudicado a noção de todo que ele deseja incentivar inclusive as que partiram de Portugal437 Dessa forma vai considerar negativamente o que ela acusa como um desmembramento do Brasil visto que já o prefigurava em certa medida como uno e coeso Apesar da glória que nessas jornadas adquiriram os colonos do Sul como na do rio Real os do Norte a experiência fizera conhecer inconvenientes na desmembração do Brasil cujas forças com a divisão se enfraqueciam notavelmente de modo que se tornavam menos aptas para acudir juntas a um ponto onde se apresentasse o perigo438 Novamente Varnhagen reforça a união Face ao perigo as capitanias devem acudir juntas Afinal a ameaça a uma capitania é ameaça a todas pois o Brasil é por ele percebido como um todo A divisão pode apenas favorecer a vulnerabilidade e os ataques seja de selvagens ou de estrangeiros Varnhagen é muito cuidadoso com as atitudes que não são estimuladas pelo Estado pois podem implicar em uma autonomia que ele não deseja incentivar Entretanto tal cuidado contém exceções É o caso por exemplo dos bandeirantes Embora desprovida de um cunho precisamente estatal a obra dos bandeirantes foi por ele considerada exemplar para a constituição territorial do país439 É uma das situações na qual a iniciativa privada é bem vinda pois está de acordo com o projeto nacional Não há dúvida que o rótulo de historiador pragmático é adequado a Varnhagen como uma leitura cuidadosa do seu texto demonstra A preocupação do autor em fazer com que os habitantes do país se percebam como parte integrante de um todo uno coeso e integro é verdadeiramente obsessiva e a forma com que ele trabalha para inspirar essa união está longe de ser sutil como o parágrafo a seguir demonstra 437 Varnhagen relata que Men de Sá não teve por sucessor um governadorgeral teve dois Em fins de 1572 resolveu a coroa dividir o Brasil em dois Estados criando um novo nas capitanias do Sul com sede na cidade de São Sebastião Rio de Janeiro e continuando a cidade do Salvador Bahia como capital do Estado do Norte compreendendo os Ilhéus até o limite com Porto Seguro ficando esta última capitania ao governo do Sul Ibid 358 438 Ibid p 364 Grifo nosso 439 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999p188 Salah H Khaled Jr 133 Se da união nasce a força da desunião somente fraqueza resulta e o maior ascendente que em todos os países tem tido a civilização sobre a barbárie vem de que esta composta de elementos dissolventes não se une ao passo que a nação civilizada que com ela se põe em contato tem nas suas mesmas leis os laços de união440 Varnhagen vê em sintonia com ideais do século XIX o processo de formação territorial como um processo de expansão A sua história geral não é apenas geral por tratar de todo o Brasil é geral porque busca borrar a diferença eliminar o particular e afirmar a coesão Todas as particularidades devem ceder face a esse geral que é o todo da nação O Brasil da narrativa nacional de Varnhagen é um Brasil que efetivamente luta para permanecer unido São inúmeras as passagens nas quais Varnhagen louva as iniciativas que contribuem de alguma forma para a coesão Sendo oficiais melhor ainda Assim de acordo com a sua visão pragmática diz ele que cumpre declarar que para o melhor governo do Brasil veio a ser de grande auxílio a criação de um tribunal régio por conta do qual passaram a correr a maior parte dos assuntos do mesmo governo441 Em sentido semelhante também foi bem pensada a providência tomada pela metrópole para que os serviços prestados no Brasil viessem aqui mesmo a ser recompensados o que contribuiu a estabelecer certa unidade colonial que depois se aumentou com a guerra holandesa442 O que contribui para a unidade deve ser louvado de forma que os Juízes de fora serão vistos como instrumentais para a realização do futuro Brasil443 integrado e independente 440 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 386 Grifo nosso 441 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 67 442 Ibidem p 115 443 Odalia observou que Varnhagen via na organização judiciária uma fonte de unidade ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vian na São Paulo UNESP 1997 p51 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtexto up000007pdf Horizontes Identitários 134 esta instituição que só foi introduzida no Brasil em fins desse século contribuiu para cada vez se estreitar mais a unidade nacional obrigandose os indivíduos de umas províncias a servirem nas outras com o que se iam desterrando os excessos do pernicioso bairrismo444 Varnhagen efetivamente descreve o Brasil colônia de acordo com os melhores interesses do Brasil Império Para tanto erradica de seu grande relato da nacionalidade tudo que implique em um bairrismo ou mandonismo local e quando não o elimina por completo se vale de tais atitudes provincialistas como exemplo negativo a ser evitado a todo custo O pragmatismo com que Varnhagen enfoca a história nacional o leva muitas vezes a se exceder além do razoável mesmo para seus padrões Ao tratar do término da União Ibérica Varnhagen conforma um verdadeiro momento de júbilo nacional que abrange todo o território brasileiro construindo retrospectivamente a coesão desejada A aclamação de D João IV fezse com felicidade análoga por toda a extensão do Brasil não submetido aos holandeses No Rio de Janeiro parece haver hesitado Salvador Correia mas viuse obrigado pelos jesuítas a proclamála Em São Paulo seguiu o povo com igual bom senso graças segundo a tradição à abnegação de Amador Bueno O Grande acontecimento da restauração de Portugal prometia fazer mudar a situação do Brasil A guerra dos holandeses lhe proviera de ser parte da Espanha e a Portugal e à Holanda interessava o aliarem se para guerrear o inimigo comum445 Parece haver uma suposição no mínimo exagerada de que possa ter ocorrido uma aclamação em tal monta da qual certamente Varnhagen não detinha fontes para se assegurar Ainda mais aclamação por toda a extensão do Brasil o que implicaria em uma integração entre as províncias que se sabe ser inexistente nos primórdios dos tempos coloniais Mas isso não passa de um detalhe facilmente transposto por um exercício de flexibilização interpretativa que para Varnhagen se justifica inteiramente a partir de sua concepção de história enquanto instrumento de promoção do culto à nação Essa noção faz inclusive com que ele se valha extensivamente da noção de inimigo para definir o espírito público da nação e mais ainda implica muitas vezes em uma apologia da guerra para garantir o domínio português no Brasil Na medida em que 444 VARNHAGEN Op cit p 108 445 Ibidem p 320 Salah H Khaled Jr 135 a guerra promove o fim maior desejado por Varnhagen a coesão e o estreitamento de laços ela se justifica inteiramente A defesa da guerra como instrumento civilizatório é evidente na sua narrativa nacional Quanto a cultura do Brasil em geral não hesitamos em asseverar que ela havia ganho muito com a guerra holandesa E não só nas capitanias do Nordeste onde os povos estavam em contato com indivíduos de uma nação mais ativa e industriosa como até nas do Sul com as invasões contra os selvagens É um axioma comprovado pela história que às vezes estas são civilizadoras e que trazem energia e atividade a povos entorpecidos pela incúria a preguiça e o ilhamento Durante a guerra foram devassados acaso pela primeira vez por gente civilizada muitos matos e campos fundindose por vontade ou por força os próprios índios seus moradores nessa civilização guerreira digamos assim pos que o intuito era de guerrear os contrários e quando menos o pensavam se viam absorvidos pela civilização daqueles a cujo lado combatiam Muitos caminhos apenas trilhados eram aplanados para darem lugar à passagem de tropas alguns dos rios ficavam acessíveis à navegação às vezes pelo simples desvio de uns paus que entulhavam os seus leitos e todos sabem quanto a facilidade das comunicações civiliza os povos446 Dessa forma a guerra é vista por Varnhagen com algo dotado de função duplamente integradora no campo subjetivo e no campo objetivo Varnhagen estabelece a partir do conflito a integração do país sob o âmbito geográfico e o associa a uma perspectiva civilizatória que inclui o assimilacionismo dos ditos bárbaros O contingente dos que se posicionavam ao lado da nação contra os perigos que a ameaçavam via as suas fileiras sendo engrossadas na medida em que se estendia o domínio sobre o território e até mesmo pela imigração Essa perspectiva está presente em várias passagens Ao abordar o governo de D Pedro filho de D João IV ele fala que foi por várias circunstâncias uma quadra de expansão para ambos os Estados americanos dependentes de Portugal Durante ela as comunicações de um com o outro se estabeleceram de uma vez pelos próprios sertões em mais de uma paragem e principalmente pelo atrativo das minas rendosas a emigração espontânea para o Brasil especialmente chegou a ser tão prodigiosa que fez assustar a própria metrópole a qual tratou de dificultála e quase proibila por meio de atos legislativos447 446 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 98 447 Ibid p 226 Horizontes Identitários 136 Novamente o termo expansão é utilizado demonstrando a percepção de Varnhagen de uma nação que se afirmava apesar da divisão que para ele é em dois Estados Segundo Varnhagen a própria metrópole se espantava diante do esplêndido desenvolvimento e integração territorial que caracterizavam o Brasil e que fazia de acordo com ele que a própria divisão política estivesse sendo superada pela realidade concreta da colônia Para Varnhagen um grande processo de integração estava em curso processo este que inclusive caracterizavase por um salto qualitativo Assim Varnhagen comenta que depois da paz de Utrecht começa o Sul do Brasil a adquirir de dia em dia maior importância e a oferecer em geral os fatos históricos mais dignos de consideração do nosso passado colonial448 Varnhagen fala em prodigioso desenvolvimento do Brasil para o Sul e Ocidente449 O tom de Varnhagen é de integração expansão celebração e comemoração Para ele a abertura de caminhos rumo ao Sul representa uma verdadeira expansão da soberania nacional gastando na viagem perto de dois anos dois anos largos anos de emoções e de trabalhos mas afinal que satisfação e que glória Pelos campos atravessados encontraramse muitas cruzes naturalmente mandadas pôr pelos padres das missões para indicar a posse deles Entretanto os nossos não respeitaram tal posse e começaram a fazer entrar aí encavalhadas 450 Os trabalhos em prol da pátria prefigurada por Varnhagen não poderiam deixar de ser repletos de dificuldades que são entretanto recompensadas por sentimentos de satisfação e glória Varnhagen enfatiza e louva a disposição para o sacrifício em prol da nação Sua intenção é sobretudo inspirar Para ele os colonos construíam a ferro e fogo uma nova pátria uma nova nação diante de todas as adversidades locais Um Brasil Império uno e coeso estaria sendo forjado nos tempos coloniais marcados pela constante expansão de uma autoridade centralizada e resistência ao inimigo comum São ações sempre louvadas pois significam a extensão e defesa do poder centralizado e do território visto por Varnhagen como nacional A história não é geral somente porque fala do Brasil como um todo antes disso é geral porque atribui a este todo uma condição de unidade territorial e de sentimento que faz com que seus 448 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p13 449 Ibid p82 450 Ibid p16 Salah H Khaled Jr 137 habitantes movidos por essa condição se acudam mutuamente nos momentos de crise Varnhagen simplesmente inventa um passado no qual havia uma percepção de que a colônia era efetivamente una mesmo que pela força das circunstâncias que concorriam para tal união O Rio Grande viuse de tal modo a braços com os índios invasores do sertão que esteve a ponto de sucumbir ante as chusmas devastadoras que chegaram a assenhorearse do Açu A vizinhança do perigo despertou a atividade do Senado da Câmara de Natal o qual em vereação de 2 de dezembro de 1687 resolveu apelidar o povo todo à defensa dos seus lares ameaçados Porém esta heróica providência houvera sido ineficaz se não lhe acodem com socorros as vizinhas com a sua tropa e alguns africanos Do rio de São Francisco marchou um grupo de paulistas De Pernambuco partiu também um contingente das tropas que continham os Palmares Com tais reforços pode o capitãomor Agostinho César desassombrar a capitania do perigo porém só veio a ter a glória de pacificar de todo em 1697 o capitãomor Bernardo Viera de Melo Os índios se retiraram mas naturalmente foram os próprios que depois se apresentaram invadindo as fazendas do Meari e Itapicuru de modo que foi necessário ir para o Maranhão em 1699 um importante socorro da Bahia Parecia que os perigos iam nascendo para unir entre si as capitanias provando a todas como da união resulta a verdadeira força que faz respeitados os Estados451 Novamente Varnhagen não hesita em valerse de expressões que demarcam a união que ele deseja promover no presente Em alguns momentos a insistência com que Varnhagen enfatiza as ideias de união em torno de um Brasil indiviso e poderoso pelo somatório de suas forças chega a ser cansativa tamanha a reiteração Os argumentos de persuasão que ele constrói são exaustivamente explorados e reforçados ao longo da obra Não há sutileza na pedagogia nacional de Varnhagen ele vai tentar moldar a marteladas o seu leitor como um cidadão nacional Vai tentar fazer com que esse indivíduo sintase parte de um todo ao qual deve filiação e lealdade sendo que a inobservância de tais deveres significa uma verdadeira afronta contra um passado de superação de adversidades por parte da nação O seu grande relato da nacionalidade estruturase sobretudo a partir de mecanismos que conformam uma estratégia de convencimento do leitor Varnhagen enfatiza coesão em sua narrativa de todas as formas possíveis De acordo com ele a coesão persistia mesmo diante da fragmentação que ainda restava 451 VARNHAGEN Francisco Adolfo de Historia geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 257 Horizontes Identitários 138 do equívoco original das capitanias Felizmente para Varnhagen esse resto seria abolido de uma vez por todas caracterizando um momento chave de fortalecimento da coesão que vem no reinado de D José período de Pombal Começaremos por fazer menção da empresa talvez mais importante levada adiante nesse reinado a favor da nacionalidade brasileira a de haver incorporado de todo no Estado resgatandoas por meio de indenizações convencionadas com os interessados todas as capitanias que ainda tinham donatários e eram umas onze pelo menos 452 Os termos novamente são inequívocos Varnhagen considera a medida um verdadeiro favorecimento da nacionalidade brasileira o qual evidentemente e em sintonia com seu pragmatismo associase à soberania incontestável do Estado Para ele corrigiase portanto o equívoco que conspirava para fomentar a dissensão no território nacional abrindose assim as portas para a concretização de um ideal que ganhava cada vez mais força em função do sentimento de união que experimentavam seus habitantes É interessante como Varnhagen considera que o fortalecimento da autoridade central a partir da reafirmação do poder do Estado mesmo com um Brasil ainda atrelado a Portugal constituise em elemento importante de afirmação de uma nacionalidade brasileira Para ele essa lógica justificase facilmente pois está inserida dentro da sua condenação recorrente do que ele chama de um mandonismo local que deve ser superado em prol do bem da nação Varnhagen promovia a integração através de uma história geral que assumia caráter de grande relato da nacionalidade e logo reunia o Brasil como um desde os tempos coloniais O Brasil coeso era assim construído discursivamente em torno de três dimensões política com o reforço da autoridade do estado subjetiva pois encontrava o espírito nacional no esforço conjunto de resistência por parte das províncias e geográfica uma vez que colocava a união a partir da integração física do território e da imposição da autoridade estatal sobre o mesmo453 452 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p235236 453 Varnhagen afirma que Com as viagens as observações e as discussões dos comissários enge nheiros e astrônomos tanto se adiantou no conhecimento dos terrenos fronteiros que ainda hoje são talvez eles do Brasil o que há de mais conhecido e exatamente delineado nas cartas depois das costas e baías Por esse lado as duas tentativas de demarcação bem que as demarcações não se levassem avante produziram benefício real pois quanto ao mais no fim do século passado XVIII pela linha da fronteira havia nada menos que dez paragens disputadasIbid p273 Salah H Khaled Jr 139 A escrita é construída para que o leitor seja tomado por um sentimento inequívoco já havia um Brasil antes da Independência E mais ainda pouco havia de regional nesse Brasil e logo de heterogêneo Os elementos que importam realmente são configurados como nacionais como pertencentes a um Brasil uno que inclusive reage quando a sua soberania é ameaçada Como o bairrismo isto é a identidade regional é visto com conotação pejorativa é natural que não se encontrem na HGB referências aos chamados tipos regionais o que só acontece de forma raríssima Quando isso ocorre dá a impressão de ter escapado à Varnhagen como é o caso do espírito aventureiro dos paulistas que vieram a ser os verdadeiros descobridores das minas de Minas454 e que transparece também quando ele diz que Pernambuco era a capitania que exportava melhor açúcar455 Em alguns momentos em função da questão política Varnhagen é obrigado a pensar em dois Estados dizendo por exemplo que concluiremos com o Estado do Maranhão passando ao Estado do Brasil e começando pelo Norte456 Entretanto são raras exceções à regra por ele mesmo estipulada Por excelência tudo que é diverso deve ser erradicado tudo o que caracteriza uma singularidade dentro do que Varnhagen pretende retratar como homogêneo deve ser suprimido Sua obra busca o enfraquecimento da identidade regional pois como intelectual a serviço do Estado Varnhagen se comporta como inimigo ferrenho do provincialismo por ele visto como desagregador Esse é sobretudo o sentido da sua História Geral A História Geral do Brasil é por excelência uma história que assassina a diferença em nome da unidade da nação Dessa forma com os olhos voltados para o presente e para o futuro Varnhagen inventava segundo os parâmetros do IHGB e as pretensões do Império uma nação brasileira cuja existência era legitimada pela sua própria longevidade através da ciência No entanto os sentidos de identificação que ele propõe não se restringem ao âmbito da prefiguração Para promover a adesão ao todo da nação no presente em que escreve Varnhagen se vale de exemplos paradigmáticos de modelos de comportamento que buscam se constituir como verdadeira pedagogia social como 454 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 122 455 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p88 456 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 199 Horizontes Identitários 140 será visto a seguir 23 A tragédia o inimigo e o herói a função paradigmática da narrativa nacional Como temos dito varias vezes a escola histórica a que pertencemos é estranha a essa demasiado sentimental que pretendendo comover muito chega a afastarse da própria verdade Francisco Adolpho de Varnhagen Propondose a realizar uma história científica norteada por uma pretensão de verdade Varnhagen rejeitava abertamente a noção de uma narrativa de cunho emotivo Entretanto a leitura da obra revela que o seu pragmatismo o levou a elaborar uma narrativa nacional cujo caráter é de busca de identificação com o leitor de sentimentalismo e sim até mesmo de comoção457 A narrativa de Varnhagen caracterizase pelo uso extensivo de três recursos que exercem função central para o seu discurso nacional Esses recursos são a tragédia representada por um evento traumático ou contexto desfavorável458 a figura do inimigo contraponto que valoriza o esforço colonizador dos nossos e finalmente o herói personagem que é a expressão máxima do sentido exemplar da História Geral do Brasil A tragédia e o herói produzem identificação pela empatia O inimigo produz identificação pela oposição É em torno de tais elementos que Varnhagen organiza o seu grande relato da nacionalidade cujas funções exemplares são evidentes459 No sentido paradigmático do termo função é aqui entendida como o conjunto de repercussões no âmbito subjetivo que as intenções exemplares do texto pretendem suscitar no seu leitor objeto a ser constituído como um cidadão nacional É uma função que se caracteriza por se propor a agir diretamente sobre o leitor constituindo seus valores Há definitivamente uma intenção de persuasão no conjunto da obra a que as figuras da tragédia do inimigo e do herói irão corresponder como recursos 457 Varnhagen não escondia suas intenções afirmando que procurou sempre escrever antes um livro útil e próprio a estimular o trabalho e a prática das boas ações do que puramente ameno e destinado à simples distração VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927pXII 458 Destaco que o termo tragédia é aqui empregado sem qualquer conotação ou referência à tragédia em seu sentido grego 459 Para Odalia A história e o historiador nesse instante parecem superar suas limitações e não se confinando apenas ao passado se transfiguram no instrumento de ação no presente com os olhos voltados para o futuro ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p18 Salah H Khaled Jr 141 narrativos Tratase essencialmente de fomentar o respeito e inculcar a adesão ao projeto da nação una e indivisa Evidentemente o processo de fundação de uma identidade nacional nunca se dá de maneira plena de forma a erradicar completamente a diferença460 As narrativas nacionais sempre visam horizontes identitários a construir e sua construção mesmo na plenitude da afirmação da religião cívica nunca é inteiramente completa permanecendo demarcada por espaços de resistência É uma narrativa em perpétua necessidade de afirmação Isso não permite entretanto negar a amplitude imensa de seus efeitos A tragédia é um elemento que exerce função importante na narrativa nacional de Varnhagen Através desse recurso são demonstradas forças dotadas de grande poder destrutivo diante das quais se defrontaram os portugueses Na verdade o sentido por trás do recurso trágico é promover o enaltecimento do colonizador apresentado como contraponto à barbárie e portanto elevado à figura colossal de herói Ao colocar o leitor na posição de identificação com o português de outrora Varnhagen busca promover o sentimento de identidade nacional missão pragmática de sua obra461 Busca fazer com que ocorra uma sensação de orgulho pelo feito realizado pelos ancestrais e pela nação a que se pertence Nesse sentido o próprio Brasil será situado na condição de sujeito que se defronta contra inúmeras adversidades em sua luta para constituirse como nação civilizada O Brasil também é ele próprio um herói que por vezes se personifica na figura de um bravo exemplo de patriotismo do passado Para que haja o exemplo é necessário o confronto e daí a utilidade da categoria inimigo O recurso narrativo da tragédia adquire sentido pela forma com que é utilizado na obra É a constante ameaça de destruição que enaltece a criação São as trevas da selvageria que enobrecem a luz trazida da Europa462 É pela contraposição à barbárie 460 Hobsbawm lembra que as ideologias oficiais de Estados e movimentos não são orientações para aquilo que está na mente de seus seguidores e cidadãos mesmo dos mais leais entre eles não podemos presumir que para a maioria das pessoas a identificação nacional quando existe exclui ou é sempre superior ao restante do conjunto de identificações que constituem o ser social Na verdade a identificação nacional é sempre combinada com identificações de outro tipo mesmo quando possa ser sentida como superior às outras a identificação nacional e tudo o que se acredita nela implicado pode mudar e deslocarse no tempo mesmo em períodos muito curtos HOBSBAWM Eric Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p20 461 Varnhagen expressa a vocação inspiradora da obra abertamente Oxalá o nosso trabalho concor rera a fomentar ao menos entre as gerações do porvir o espírito de generosidade que guiou nossa pena em muitas ocasiões não sem que às vezes nos olhos borbulhassem piedosas lágrimas VAR NHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927pXXII 462 Por isso Varnhagen é enfático ao dizer que insistimos porém mais do que nenhum dos que nos precederam em trabalhos idênticos na verdadeira apreciação comparativa do grau de civilização dos Horizontes Identitários 142 e pelo triunfo diante da dificuldade que se legitima a civilização De acordo com esses parâmetros Varnhagen traça um quadro de constante ameaça de fracasso desagregação e ruína para engrandecer o trajeto da colonização portuguesa Essa tendência se faz presente desde os primeiros acontecimentos por ele relatados Ao tratar da passagem da expedição de Américo Vespúcio Varnhagen conta que dois jovens que então desembarcaram a tratar com os habitantes ficaram aí vítimas da barbaridade e antropofagia deles Assim por este lado a primeira ruptura e agressão entre os da terra e os futuros colonizadores não partiu destes os quais foram vítimas da traição e a deixaram absolutamente impune463 Assim Varnhagen já estabelece desde o princípio o perigo que um território hostil representava para os portugueses Além disso ele salienta que partiu dos bárbaros o ato que instituiu a violência que sinalizou o início das agressões demonstrando desde então a selvageria com que o português se defrontava Varnhagen busca transportar o leitor a esse quadro de constante ameaça e perigo mas ao mesmo tempo como um narrador que zela pelos valores que lhe são caros vai desde o princípio dizer Mas ânimo Que tudo doma a indústria humana Cumpre à civilização aproveitar e ainda aperfeiçoar o bom e prevenir ou destruir o mau464 Varnhagen constrói discursivamente a colonização como um processo de imposição heroica dos portugueses a uma natureza hostil465 Segundo essa ótica o destino da colonização é o inevitável triunfo sobre as dificuldades verdadeiramente garantido pelo esforço civilizatório a ser empreendido466 Varnhagen coloca o colonizadores do de barbárie dos colonos escravos trazidos impiamente da África e do de selvageria dos povos últimos invasores nômades que ocupavam em geral o território que hoje chamamos Brasil VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramen tos 1927pXXI 463 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 83 464 Ibid p19 465 Varnhagen não poupa na dramatização Quantos não desfaleceram nessa horrida luta para eles antes desconhecida e quanto vigor e quanta força de vontade não foi indispensável aos que não fi caram no caminho ou desfalecidos não regressaram à pátria VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927 pIX 466 Reis afirma que se o português venceu militarmente os seus adversários se conquistou seus ter ritórios e os escravizou e exterminou é porque é superior Eis o seu silogismo ou sofisma básico A vitória confirma uma superioridade presumida REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p33 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosreis varnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB 5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibo Salah H Khaled Jr 143 português diante de um misto de fascínio com a beleza das novas terras e temor diante de seus perigos467 Instaurase assim na sua narrativa desde os primórdios da presença portuguesa o início das hostilidades e das dificuldades que marcariam a colonização468 A intenção de Varnhagen consiste em deslocar o seu leitor para um mundo hostil e perigoso onde os portugueses teriam que se impor pela astúcia e força das armas diante da ameaça posta pela barbárie469 Como diz Wehling há uma valorização do espaço e das dificuldades para dominálo470 Os próprios títulos utilizados nos capítulos já demonstram tais intenções como é o caso de capitanias cuja primitiva colonização se malogrou Varnhagen se vale de uma argumentação de fundo emotivo tentando fazer com que seu leitor se identifique com o colonizador português de outrora e sofra junto com ele a dor diante das tragédias e dificuldades com que se depara É uma dor que o próprio Varnhagen diz sentir e que deseja que o leitor compartilhe Parece que a pena nos resiste a tratar do donatário da Bahia nem que movida pela dor que nos punge o coração ao considerar seu triste fim Não é matéria de que não nos podemos ocupar sem que se nos repasse a alma de mágoa que desejamos poupar de repetir se pela importância do assunto não fôramos a isso obrigados pela severa tarefa que nos impusemos desde que ousamos levantar o pensamento a ser fiel bem que humilde historiador da pátria471 Apesar de todos os lamentos de Varnhagen é justamente a ideia de um historiador da pátria que faz com que a tragédia do passado tornada objeto de okresul 467 Por isso Reis dirá que O português que vê tudo isso pela primeira vez esse o sentido da idéia de descoberta se enche de fascínio e ao mesmo tempo de receio e decepção Ibid p35 468 Para Odalia se o Brasil findo o período colonial pode apresentarse como um país de dimensões continentais e além disso íntegro tudo isso se deve ao fato de que sua posse se fez por meio de um processo em que o sangue foi um componente obrigatório ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p53 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 469 Assim ele pondera e que diremos da luta tantas vezes inevitável que tiveram de travar com os índios e na qual não poucos pereceram e foram devorados Inevitável dizemos porque no estado de fracionamento em pequenas cabildas hostis umas às outras em que os mesmos índios foram encon trados em todo território do Brasil ainda quando os colonos assim brancos como pretos conseguiam a amizade daqueles do lugar onde desembarcavam tinham logo por inimigos os inimigos desses novos aliados e se viam constrangidos a combater aos que destes eram contrários VARNHAGEN Francis co Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927pX 470 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p69 471 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 199200 Horizontes Identitários 144 culto aos ancestrais seja útil ao pragmatismo que o impulsiona A tragédia pode ser tanto um acontecimento quanto uma conduta reprovável que censurada por Varnhagen assume caráter pedagógico como exemplo negativo Nesse sentido Varnhagen condena retrospectivamente o pecado por nenhum outro motivo a não ser a expectativa de que não se repita mais no futuro É como se ele buscasse prevenir através de intimidação os futuros pecados agindo sobre as consciências dos eventuais pecadores que atentam contra a nação Dessa forma Varnhagen procura estimular o respeito à hierarquia Ao tratar dos confrontos com os índios e da dificuldade do donatário em fazerse obedecer para resistir a esse choque afirma que os que obedeceram não vendo como rudes que só nessa obediência podiam encontrar salvação gritavam contra o arbítrio e introduziam na colônia já desmoralizada a insubordinação e com a maior covardia chegavam a açular os bárbaros a agredir à maneira dos miseráveis anões políticos de todas as nações que desejavam às vezes a vitória dos inimigos da pátria pensando que com ela tomam vingança do partido a eles contrário que tem o poder472 Os sentidos exemplares contidos no ensinamento de Varnhagen são múltiplos mas sem dúvida destacase a necessidade de obediência à autoridade Da incompreensão fundamental da norma escrita ou moral que determina a sujeição às autoridades só pode resultar a tragédia como de fato resultou Isso não significa que a pedagogia nacional de Varnhagen é pessimista mas sim que se vale dos problemas para enfatizar e glorificar a sua eventual superação e dessa forma incentivar determinado tipo de comportamento473 A sua mensagem é sempre de triunfo sobre a adversidade e de utilização do revés como impulso ao sucesso no futuro de onde ele escreve tendo em vista um Brasil por ele tido como grande império Para que tal condição se concretizasse foi necessário muito sacrifício474 Sacrifício que não 472 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 202 473 Reis afirma que E se na luta colonial os brancos venceram a jovem nação quer ser também ven cedora e se identificar étnica social e culturalmente com o branco Foi este quem trouxe a civilização européia superior a lei o rei a fé a razão REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnha gen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p3334 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosreis varnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB 5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibo okresul 474 Varnhagen afirma que entre as nações da América o Brasil foi a que custou mais esforços e maiores trabalhos aos seus colonizadores antepassados em grande parte como fica dito dos atuais Salah H Khaled Jr 145 foi em vão e agora obtém reconhecimento na narrativa da nação que garante lugar na posteridade Primeiros mártires da civilização da terra baiana A grande obra que empreendestes e por que vos sacrificastes veio a realizarse O solo que regastes de vosso sangue é um dos mais populosos e mais produtivos do Império de Santa Cruz e os seus habitantes mais piedosos ainda se lembram de vós em suas orações ao Senhor dos justos que distribui a quem os mereceu galardões sempiternos475 Varnhagen não se contenta em apenas atribuir sentido e reordenar o passado efetivamente conversa com esse passado configurandoo como passado da nação e se lamenta pelo infortúnio que se abateu sobre aqueles a quem define como verdadeiros compatriotas Os atos de sacrifício empreendidos justificamse pela realização do bem em prol da pátria a qual triunfou apesar de todas as adversidades Dessa forma vai relatando uma série de perigos e entraves ao desenvolvimento da colônia como a insubordinação e irreligiosidade que iam lavrando em conseqüência dos degredados que choviam da mãepátria das expedições francesas cada vez mais ameaçadoras476 Varnhagen afirma que o cenário chegou a ser verdadeiramente catastrófico a religião e a moral primeiras colunas da humana felicidade estavam abaladas ou antes tombadas a honradez que deve presidir nos negócios públicos como nos particulares cedia passo ao cínico egoísmo e já quase começava a justiça eqüitativa e por conseguinte a boa fé e confiança a fugir desta terra477 Varnhagen aponta sinais de infortúnio que se abatiam sobre o Brasil a ausência de condições favoráveis para a aceitação da autoridade da observância da lei e da submissão à fé elementos que como visto anteriormente são centrais ao seu sistema de pensamento Para Varnhagen esses são os elementos estruturantes da vida civilizada A sua ausência ou fragilidade são indicativos de que a colonização não estava dando certo Varnhagen está escrevendo de um lugar que é seu seu lugar de cidadãos VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927pVIII 475 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 203 476 Ibid p 226 477 Ibid p 228 Horizontes Identitários 146 fala é o lugar de um conservador preocupado em legitimar a Monarquia e assegurar o cumprimento da ordem Como sempre o pragmatismo fala mais alto ou no mínimo em íntima associação com a ciência Dentro desse espírito para ele é de grande gravidade que as próprias autoridades inclusive não se entendiam umas com as outras478 Varnhagen sempre é muito cuidadoso ao tratar das dificuldades pois quer valerse delas enquanto fonte de valorização da colonização e não de forma alguma implicar em seu desprestígio Portanto ele precisa jogar com os obstáculos do passado pois o resultado do jogo deve implicar em uma lição que signifique honra para o presente e logo incentive a adesão ao todo da nação Por isso ao mesmo tempo em que descreve os problemas que envolveram os degradados uma gente de moral questionável diz que assim pensamos que ao narrar os fatos como se passaram em nada degradamos a atualidade os povos em geral não começam aristocraticamente e a estirpe dos nobres patrícios de Roma provinha dos estupros cometidos nas Sabinas pelos bandidos que as roubaram479 O parâmetro a que Varnhagen está relacionando a origem brasileira não é outro senão o do maior império que a antiguidade conheceu Ou seja o que poderia contar em desfavor acaba se tornando um argumento em certa medida favorável De qualquer forma além de valerse desse artifício Varnhagen afirma que um novo influxo de imigrantes viria a minimizar os malefícios provocados pelos degradados480 Uma das características mais marcantes da narrativa nacional elaborada por Varnhagen está na construção de uma sucessão de argumentos dotados de grande poder de sedução Tais argumentos jogam constantemente com a adversidade e a tragédia ainda que Varnhagen careça de méritos literários para tornar a sua leitura 478 Varnhagen comenta que o governo de D Duarte da Costa pode citarse para exemplo do mal que deve causar a um povo inteiro a desunião entre um chefe da administração e o da diocese e de quanto tal desunião é fácil de fomentarse quando homens tão elevados em vez de perdoarem reciprocamen te com caridade alguma leve falta ou indiscrição se tomam de ira e se deixam levar pelas mesquinhas intrigas de aduladores ainda mais mesquinhos que elas VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 274 479 Ibid p227228 480 Varnhagen aponta que Esses grandes grupos de famílias açorianas modestas moralizadas e trabalhadoras Vieiram contrabalançar o efeito dos muitos degredados que começaram a ser enviados da metrópole no ardor de ver aqui aumentarse rapidamente a povoação VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p 152 Salah H Khaled Jr 147 mais prazerosa481 Assim se por um lado o problema colocado pelos degradados recrudescia os índios entretanto se mostravam ameaçadores ainda mais com o surgimento dos Aimorés com os quais os colonos teriam que se defrontar Varnhagen carrega no drama ao descrevêlos havidos pelos bárbaros por mais que bárbaros e com uma língua inteiramente desconhecida e os usos estranhos a todo o mais gentio do Brasil eram antropófagos não por vingança e satisfação de ódios inveterados mas por gula Tudo induz a crer que eram da mesma nação representada pelos chamados agora Puris que também como este nome o diz são gulosos de carne humana e preferem como se conta dos tubarões da África à carne dos brancos a dos negros aos quais chamam de macacos do chão É horroroso escrevêlo e asseguramos que o ânimo quase nos soçobra ante tais fatos482 A carga dramática que Varnhagen atribui ao seu grande relato da nacionalidade não é exclusiva desse trecho Aqui ele intervém no texto lamentandose da sorte dos colonizadores que teriam que enfrentar um horror de tais proporções Em outro momento afirma que o Brasil chorava a morte de seu terceiro governador483 referindose a Men de Sá O apelo ao recurso trágico não é desprovido de sentido ou mera retórica sem conteúdo O que Varnhagen propõe é sobretudo a comoção e identificação no presente através da tragédia no passado Porém no caso em questão parece pouco provável para não dizer impossível que houvesse um Brasil com consciência de si mesmo no século XVI a lamentarse pela perda de seu governador geral Brasil no contexto da afirmativa de Varnhagen não passa de uma abstração discursiva para conferir significação a um acontecimento no passado Mas como é característico de sua obra Varnhagen faz do Brasil um indivíduo um verdadeiro sujeito dotado de vontade de tornarse um Império que inclusive chora pela morte de seus melhores e leais filhos 481 Entretanto Varnhagen afirmava que pelo brilho e ornato do estilo não levamos pois a menor pre tensão de campear a linguagem porém procuramos sempre que saísse puritana e de boa lei e neste sentido temos mais de uma vez ouvido com certo desvanecimento da própria boca de alguns escritores nossos políticos e literatos que a nossa obra havia tido grande parte a firmálos no manejo da língua vernácula VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927pXII Sobre a questão do estilo na obra de Varnhagen ver CEZAR Te místocles Américo Correa Lécriture de lhistoire au Brésil au XIX siècle essai sur une rhétorique de la nacionalité Le cas Varnhagen v2 manuscrito 2002 482 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p308309 483 Ibid p 347 Horizontes Identitários 148 A História Geral do Brasil se vale em grande medida dos índios e dos próprios problemas inerentes à colonização para demonstrar a grandiosidade do esforço empreendido484 Todavia é através do recurso ao invasor estrangeiro que Varnhagen realmente busca enaltecer o feito civilizatório Se o embate da civilização contra a barbárie apesar de sofrido resulta em inevitável triunfo o choque da colônia com os estrangeiros é o que verdadeiramente a define485 Varnhagen não se cansa de destacar que a colônia por si só teve de se defender das incursões das nações civilizadas europeias Justamente as nações que são o parâmetro em torno do qual a nação brasileira procura definirse no tempo em que a História Geral do Brasil é escrita486 Sendo assim o sentido identitário que Varnhagen imprime à sua obra é reforçado com o uso incisivo da categoria inimigo Inimigo que é entendido como outro em oposição ao mesmo que Varnhagen constitui em sua obra ou seja os nossos Essa é uma das chaves para a definição de uma nacionalidade na obra de Varnhagen a contraposição dos franceses e holandeses e em menor medida dos castelhanos atribui sentido e significado aos nossos os futuros brasileiros É a partir do choque com as nações civilizadas europeias que se obtém glória para os nossos487 Dessa forma Varnhagen estabelece a tragédia sob outro aspecto o da permanente ameaça que representa o inimigo estrangeiro para a consagração da nação brasileira que ele prefigura nos tempos coloniais É uma abordagem que esbarra em um maniqueísmo exacerbado Não há tons de cinza e não há matização 484 Para Odalia não sendo o assenhoramento da terra uma conquista fácil e pacífica os primeiros fundamentos da nacionalidade aí tomam forma e a terra regada pelo sangue dos conquistadores revestese da mística que lhe permite sublimarse no sentimento do solo pátrio ODALIA Nilo Introdu ção In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p20 485 Odalia comenta que se as guerras de conquista são o primeiro momento da constituição da nação e da nacionalidade as guerras de reconquista travadas contra estrangeiros franceses e holande ses principalmente contra estes últimos ganham dimensão especial pois é nelas que se fortifica e consolida o sentimento pátrio Dadas as condições em que foram travadas com pequeno auxílio da metrópole portuguesa ou espanhola essas guerras adquirem o caráter excepcional de uma luta de brasileiros contra estrangeiros Ibid p20 486 Para Odalia Na obra de Varnhagen os capítulos sobre as guerras holandesas adquirem importân cia porque é nelas que os coloniais vão revelar de maneira inconteste segundo seu raciocínio uma consciência nacional e a certeza de que já podem superar o complexo se assim podemos chamar de inferioridade ante os reinóis ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p56 Disponível em http wwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 487 São inúmeras as passagens nas quais Varnhagen trabalha a questão a partir deste enfoque como por exemplo quando os nossos tiveram ocasião de acometer e apresar com glória um galeão da França VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Me lhoramentos 1959 p 169 Salah H Khaled Jr 149 Para Varnhagen o choque é entre o bem e o mal Varnhagen lida com absolutos com preto e branco Considerandose a identidade que ele está fundando não poderia ser de outra forma488 Os portugueses não são invasores Estão legitimados pelo Tratado de Tordesilhas e pela cristandade Invasores são os outros principalmente franceses holandeses e castelhanos O sentido da utilização da categoria do inimigo enquanto dimensão de identificação nacional é evidente Como considera Hobsbawm não há nada como um povo imperial para tornar uma população consciente de sua existência coletiva como povo489 Varnhagen busca construir discursivamente em sua narrativa nacional justamente esse sentimento O problema gerado pelos invasores surge cedo na História Geral do Brasil Entretanto para Varnhagen na mesma medida que representam um problema são esses mesmos invasores que permitem definir o caráter de superação heroica da colonização Assim Varnhagen estrategicamente desloca o foco do conflito outro perigo crescente punha em maior risco toda a colônia e ameaçava a ruína e a perda do Brasil Eram as naus francesas490 Perigo que segundo ele se configurava como uma ameaça concreta e permanente de tragédia para o todo da nação491 Embora representassem uma ameaça concreta de certa forma é proveitoso para o grande relato da nacionalidade de Varnhagen que os franceses e os demais invasores não tenham sido expulsos de pronto ou seria escassa a matériaprima a que ele poderia recorrer para constituir homens em heróis e instituir exemplos492 488 Como afirma Hobsbawm se os nacionalistas tivessem uma sensibilidade tão apurada para os ma les praticados pela sua nação como têm para os que são cometidos contra ela a eficácia política do sentimento nacional saísse bastante diminuída HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p13 489 Ibid p4950 Nesse sentido o autor afirma que não há meio mais eficaz de unir as partes díspares de povos inquietos do que unilos contra forasteiros e que os governos tem um interesse doméstico considerável em mobilizar o nacionalismo de seus cidadãos nada estimula melhor o nacionalismo em ambos os lados que um conflito internacional Ibidem 490 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 228 491 Varnhagen alerta que Se nessa colônia tem desde o princípio reinado a necessária harmonia e se os colonos franceses já seguros dos bárbaros passam para o continente à chegada dos reforços es perados fazem algumas plantações e adquirem por meio destas o amor à terra que dá a prosperidade dela quando amanhada com o próprio suor talvez ninguém houvesse mais podido desalojálos e o Rio de Janeiro e seus contornos pelo menos pertenceriam hoje como Caiena à França ou formariam acaso uma nação independente da colonização francesa ou Deus sabe Quase africana como Haiti se é verdadeira a idéia que alguns têm de que os franceses com excesso amigos da sua França não são um povo colonizador Ibid p286287 492 Em sintonia com os parâmetros do IHGB Varnhagen afirma que muitos colonos nos legaram ações meritórias e de abnegação e desinteresse que não só por gratidão como até por conveniência nos cumpre comemorar pois como diz um nosso ilustre magistrado nada excita tanto o esforço do homem para o bem como a recordação das nobres ações de seus maiores o zelo de sufragar a virtude Horizontes Identitários 150 Os heróis são fundamentais na medida em que conformam um padrão de conduta que fomenta valores elementares para o sucesso da nação aos quais Varnhagen incentiva através de figuras exemplares493 Se a tragédia sinaliza com a punição ao pecador o exemplo do herói visa criar uma atitude de permanente reiteração do dever cívico O herói é o exemplo mais elevado de ser humano é alguém que afirma a sua própria vida como sacrifício no altar da pátria A realização de feitos heroicos por excelência exige uma disposição para transcender o comum o mundano o utilitário É um desapego em nome de algo maior Varnhagen busca criar uma verdadeira tradição de valor cívico e patriótico de sacrifício da parte em favor do todo já nos tempos coloniais Como afirma Hobsbawm muitas vezes tradições que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes quando não são inventadas494 Dessa forma quando o passado não oferece por si só os elementos necessários à composição da representação e raramente o faz inventamse tradições e ressaltamse elementos que poderiam ter sido restritos a um pequeno grupo com a intenção de exemplo495 Varnhagen é explícito quando diz que a história nos dá exemplos do caro que tem pago algumas nações o pretenderem renegar de todas as tradições do seu passado custando isso a umas o ser vítimas do jugo estrangeiro e a outras a perda de sua paz e tranqüilidade evolvendose em guerras civis e de raças intermináveis sem poderem mais encontrar o núcleo de cristalização que sirva de base a novos princípios de organização admitidos por todos os cidadãos pela poderosa sanção dos séculos496 dos pais é já nos filhos um princípio de virtude VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927pVIII 493 Odalia considera que Como forma de sedimentar a unidade territorial e espiritual da Nação nas cente Varnhagen lança mão do recurso altamente sensibilizante da criação de heróis ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vian na São Paulo UNESP 1997 p57 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtexto up000007pdf 494 HOBSBAWM Eric Introdução a invenção das tradições In HOBSBAWM Eric e RANGER Ter In HOBSBAWM Eric e RANGER Ter ence org A invenção das tradições 3ª ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2002 p9 495 De acordo com Hobsbawm Por tradição inventada entendese um conjunto de práticas normal mente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas tais práticas de natureza ritual ou simbólica visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição o que implica automa ticamente uma continuidade em relação ao passado Aliás sempre que possível tentase estabelecer continuidade com um passado historicamente apropriado Ibid p9 496 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927pVII Salah H Khaled Jr 151 É como se Varnhagen estivesse criando costumes através de um verdadeiro magistério pedagógico instituindo a adesão e fidelidade à nação Varnhagen está efetivamente fundando uma memória nacional através da sua narrativa Ele deixa transparecer a função paradigmática exercida pela figura do herói de forma clara em um trecho da História Geral do Brasil A História de Pita que ainda hoje se aprecia pelo seu colorido poético bem que omissa em fatos essenciais destituída de critério e alheia a intenções elevadas de formar ou de melhorar o espírito nacional fazendo avultar sem faltar à verdade os nobres exemplos dos antepassados serviu de muito por algumas de suas próprias exagerações para recomendar à metrópole o Brasil497 Cumpre lembrar também que Januário Barboza já havia sinalizado com a questão do herói no discurso fundador do IHGB não sendo portanto uma iniciativa propriamente de Varnhagen mas sim de acordo com a concepção de história e o pragmatismo que norteava as atividades do Instituto498 Entretanto o que interessa propriamente observar é a função que o herói exerce na narrativa Varnhagen procura no passado os exemplos de varões brasileiros que podem inspirar a devoção ao culto da nação no presente Não basta apenas ressaltar o triunfo Varnhagen precisa atribuir o caráter de herói a um sujeito do passado pois é isso que faz com que seja possível a identificação que em alguma medida supera a distância causada pela não contemporaneidade do relato Na verdade temse a impressão de que não é a grande ação individual que importa É a possibilidade de atribuir um sentido específico ao passado que interessa a Varnhagen e não a realização de uma história dos grandes homens499 Se isso acontece é como consequência do sentido pragmático e paradigmático de sua obra O que interessa é a função exercida na narrativa e não o homem em si500 O tripé estabelecido pela configuração heróiinimigotragédia 497 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p40 Grifo nosso 498 Barboza afirma que Por isso a virtude he sempre digna de veneração publica a gloria abrilhanta os honrados cidadãos ainda mesmo quando peração haver succumbido aos golpes da inveja e da intriga dos máos a justiça que a posteridade lhes faz salvando seus nomes e seus feitos de hum injusto es quecimento he forte estimulo para uma forte emulação BARBOZA Januário da cunha Discurso In Revista do IHGB T I v 1 1839 p0918 499 Wehling considera que Varnhagen elegeu à luz dos fundamentos ideológicos filosóficos e cien tíficos de seu momento histórico alguns atores sociais privilegiados WEHLING Arno Estado his tória memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999p158 500 Para Wehling a escolha de quem se torna herói deve se entender pela expressão daqueles que Horizontes Identitários 152 funciona exemplarmente como a citação abaixo exemplifica Por fim a vitória se decidiu pelos nossos e a forte tranqueira foi assaltada Infelizmente recebeu na refrega uma flechada o bravo Estácio de Sá e da ferida veio a morrer um mês depois Assim perdeu a vida asseteado como o padroeiro cujo dia era o em que foi ferido da cidade que fundara e a que dera nome e da qual os símbolos do martírio do mesmo padroeiro vieram a ser as insígnias ou armas A cidade festejou por muito tempo esse triunfo com oito dias de luminárias e ainda hoje conserva um oitavário religioso dandose durante os três dias 17 18 e 19 de janeiro uma salva às oito da noite A sepultura do primeiro capitãomor do Rio é para o Brasil uma venerável relíquia que não só a piedade mas também a gratidão nos impõe o dever de acatar como de um herói mártir que sacrificou sua existência pelo país que hoje se deve gloriar em proclamálo seu cidadão adotivo501 Varnhagen está trabalhando fervorosamente para fundar uma memória e por extensão uma identificação uma identidade nacional Como assinala Hobsbawm tal identificação implica em um dever para com a organização política que abrange e representa a nação e supera todas as outras obrigações públicas e em casos extremos como a guerra todas as outras obrigações de qualquer tipo em essência isso distingue o nacionalismo de outras formas menos exigentes de organização grupal502 É esse sentido que Varnhagen pretende fundar Para ele morrer a serviço da nação significa assumir a condição de mártir da pátria e obter adoração por toda a eternidade Através da narrativa nacional os homens se erguem da condição humana e assumem a posição de objeto de culto de monumento que integra o panteão da nação Varnhagen constrói um contexto através do passado por ele inventado em que se espera dos indivíduos uma contribuição cívica para a nação uma verdadeira disposição para o sacrifício em nome do bem comum Esse é um sentimento que será estimulado por ele que afirma quantas vezes um só homem uma só idéia ou pensamento fecundo pode salvar de todo um país503 É como se Varnhagen convidasse os brasileiros a se erguer do torpor e se elevar para essa vocação messiânica que é colocarse a serviço da salvação melhor interpretaram as condições históricas parecenos um erro admitir que a sua intepretação gira apenas em torno do grande homem individual Ibid p90 501 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 329 Grifo nosso 502 HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p18 503 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 152 Salah H Khaled Jr 153 do país Tal disposição implicará inclusive em recompensa como Varnhagen gosta de demonstrar Ele destaca que aos valorosos indivíduos que cumprem o seu papel à nação concede honrarias e elevação de postos bem como a chance de atingir a honra maior tornandose exemplo para as gerações futuras como recompensas hereditárias aos que já se haviam distinguido como entre nós ainda se concedem pela nação pensões às viúvas e filhos pelo serviços dos maridos e pais mas sem prejuízo de elevar a estes às classes superiores quando prestassem tais serviços que viessem a dar glória à mesma nação e a proporcionar ainda depois de mortos estímulos vivos às sucessivas gerações Por esta razão os títulos que importavam glórias nacionais dignas de serem perpetuadas como os concedidos a Vasco da Gama eram com razão declarados hereditários504 As condutas que por excelência possuem essa vocação paradigmática devem ser resgatadas do passado Não há exagero em dizer que a galeria de heróis de Varnhagen é numerosa505 Entretanto essa característica se refere à necessidade de reiteração do valor das condutas em prol da nação Não se trata de um desejo de pura e simplesmente fazer uma história dos grandes homens o que Varnhagen efetivamente não parece fazer A história é sobretudo protagonizada por um personagem o Brasil uno e coeso o Brasil geral Os coadjuvantes são escolhidos e constituídos na medida em que reforçam os fins que atendem aos interesses do personagem principal da narrativa nacional O que suscita a lembrança são feitos dignos de rememoração e logo de comemoração algo que o próprio Varnhagen expressa deixando fundada essa feitoria passou Jaques a correr a costa até o Rio da Prata onde pouco tempo se demorou regressando outra vez para o Norte a cometer feitos que não tardaremos em comemorar506 Ao longo do desenvolvimento da sua narrativa os heróis da nação brasileira vão pouco a pouco surgindo e constituindo uma galeria de personagens dignos de adoração 504 Ibid p157158 Grifo nosso 505 Reis afirma que Vasco da Gama e Cabral são os primeiros heróis da numerosa galeria de Varnha gen REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p38 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpg PA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3 oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6 jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookresul 506 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 109 Horizontes Identitários 154 cujos atos devem inspirar imitação Algumas vezes os critérios de escolha dos eleitos são surpreendentes e demonstram a extensão do pragmatismo de Varnhagen Há uma certa regularidade na atribuição da condição de objeto de adoração e exemplo de comportamento no que se refere à condição social daqueles que são glorificados Entretanto essa classificação atende muito mais a um sentido utilitário de prestação de serviço à nação do que propriamente qualquer outro critério Prova disso é que Varnhagen irá também considerar em alguns casos índios e negros como heróis Consideraos assim por colocaremse a serviço da nação É o que ocorre com o Ilustre herói índio comendador professo na ordem de Cristo Dom Frei Antônio Filipe Camarão Associado à causa da civilização desde antes da fundação da capitania do Rio Grande do Norte o célebre varão índio não deixara de prestar de contínuo aos nossos mui importantes serviços já contra os selvagens já contra os holandeses em todas as capitanias do Norte Consta que esse chefe era muito bem inclinado comedido e cortês e no falar muito grave e formal e não falta quem acrescente que não só lia e escrevia bem mas que nem era estranho ao latim Ao vêlo tão bom cristão e tão diferente de seus antepassados não há que argumentar entre os homens com superioridade de geração mas sim deve abismarnos a magia da educação que ministrada embora à força opera tais transformações que de um bárbaro prejudicial à ordem social pode conseguir um cidadão útil a si e à pátria507 O pragmatismo de Varnhagen se estende inclusive a própria condição étnica demonstrando que o seu critério maior é o de fidelidade nacional508 Com Henrique Dias que será convertido em herói negro da nação o tom não é diferente Foi porém somente depois de morto que os seus serviços receberam no Brasil não sabemos em que data a mais gloriosa recompensa ordenandose que para perpétua memória se organizassem em várias das capitanias corpos de soldados e oficiais todos pretos com o nome de regimentos dos Henriques509 507 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 79 508 Para Varnhagen a condição de índio não representa obstáculo algum Ele inclusive discute o as sunto sem constrangimento pois pouco interessa a origem étnica O que importa é a possibilidade de materializar um sujeito ideal e projetar a partir daí um exemplo para o presente Assim dirá que a verdadeira naturalidade e a época do nascimento do herói Camarão tem sido até nossos dias objeto de discussões e dúvidas Pelo que respeita a primeira o fato incontestável de ser de nação potiguar Ibid p 79 509 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora Salah H Khaled Jr 155 As honrarias estão ao alcance até mesmo de negros e índios Basta que abram mão de sua identidade que assimilados deixem de ser um outro e passem a ser o mesmo assumindo a condição que se espera de um súdito leal Esse é sobretudo o sentido de um grande relato da nacionalidade que busca erradicar a heterogeneidade Se os exemplos de negros e índios heróis são poucos é apenas porque foram escassos os casos em que essa condição se efetivou Varnhagen trabalha a questão do herói por excelência em contraposição ao inimigo Dessa forma define como uma boa estreia o combate vitorioso de Martim Afonso com naus francesas na costa de Pernambuco510 Por essa boa estreia será recompensado postumamente com o reconhecimento de sua virtude através do relato de Varnhagen O poder da história oferece a alguns escolhidos a vida após a morte integrandoos como objeto de culto e fonte de ensinamento na narrativa nacional Enfim Martim Afonso não se descuidou da empresa confiada à sua solicitude e que mais nolo recomenda e o há de recomendar à posteridade que todos os outros seus feitos militares apesar de mui brilhantes de mais perecedoura memória praticados nesse Oriente por que tanto se afanava Enquanto no Brasil não dava ele nem um dia de féria a seu cuidado511 O critério por excelência que garante o ingresso na posteridade é a virtude de resistência ao invasor e a disposição para a luta em nome da pátria Varnhagen associa a colonização com a resistência às pretensões estrangeiras e assim define o Brasil como nação em processo civilizatório que se defronta com outras nações já civilizadas Há aqui um anacronismo embutido pois Varnhagen demonstra forte tendência de enxergar uma defesa da soberania brasileira na colônia Como afirma Wehling os nossos defendem a causa da integridade da posse portuguesa o que por sua vez garantirá no futuro a unidade territorial do país512 Nada poderia ser mais edificante do que essa capacidade para a resistência e superação mesmo diante de uma evidente disparidade Sendo assim não é surpreendente que os heróis sejam forjados a partir dessa configuração com raras exceções513 que também são mentos 1959 p 97l 510 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 125 511 Ibid p 132 512 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p69 513 A galeria de heróis constituídos por Varnhagen é extensa e começa com um exemplo um tanto Horizontes Identitários 156 exemplares para a pátria como o Padre Viera514 Bartolomeu Lourenço515 e D José516 Varnhagen de tal forma associa o desenvolvimento da nação ao confronto que para ele o processo de ocupação do território na forma de capitanias teve inclusive relação íntima com a ameaça representada pelos franceses 517 Para Varnhagen o próprio motivo por trás da ocupação efetiva do território configura uma espécie de defesa da soberania nacional Ele enfatiza entretanto que por ser mal feito não se expulsaram de nossos mares os navios franceses que era o resultado principal que se pretendia obter518 Em virtude da ameaça continuada que representavam os franceses Varnhagen obtém a matériaprima que necessita para o seu jogo com o perigo e com a possível e sempre iminente tragédia Dessa forma ele afirma que a frequência com que os navios franceses transitavam pelos mares brasileiros era preocupante e exigia constante vigília519 O desconforto diante do perigo então representado pelos franceses leva quanto inusitado embora Varnhagen diga que não pertence a esta História tratar de Colombo afirma ele que foi um grande homem que verdadeiramente pode se dizer que consumou a obra começada por Alexandre de por em comunicação recíproca o gênero humano VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p63 514 Que durante mais de um terço de século tamanho papel representa na história dos dois Estados brasílio e maranhense esse homem notável Bem que nascido em Portugal Vieira viveu a maior parte do tempo no Brasil e aqui morreu do mesmo modo que seus pais seu irmão e outros parentes Ele próprio dizia que pelo segundo nascimento devia ao Brasil as obrigações de pátria e certo é que as sociado ao seu brilhante nome ajudou no século XVII a fazer ressoar na Europa o desta então obscura colônia Foi um verdadeiro gênio VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhoramentos 1959 p 164 515 Discutindo a questão da navegação área e uma suposta injustiça Varnhagen afirma que à gloria de Bartolomeu Lourenço se fará a devida justiça e o Brasil exultará de ver bem que tarde tributada a devida homenagem a este filho da província pela nossa parte cumprenos lamentar que as aspi rações do verdadeiro gênio e do amor da pátria tantas vezes se encontrem póstumas e ainda assim tardias recompensas unicamente conferidas pela consciência da posteridade alheia às negras nuvens da inveja Ibid p 332 516 Possuía elrei D José grandes dotes para rei começando pelo amor do país da glória e da virtude Era benigno verdadeiro e probo De sua firmeza de caráter qualidade primeira nos que governam não necessitamos mais prova que a do modo como soube empatar tantas e tão diferentes intrigas que lhe armaram contra o seu ministro Pombal e isso apesar de que era por compleição um pouco timorato nada abalou o seu grande ânimo de conservar à frente da administração o homem que em meio de seus defeitos desejava a todo transe despertar a apatia da nação restaurando sua dignidade e in dependência ainda hoje estamos desfrutando dos benefícios que nos legou a ciência desse grande estadista VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhoramentos 1959 p235 517 Varnhagen conta que Foi pois resolvido que o Brasil se dividisse em grandes capitanias contando para cada uma sobre a costa cinqüenta ou mais léguas o que elrei participou logo a Martim Afonso na resposta das cartas que o mesmo Martim Afonso escrevera de Pernambuco dando conta da toma da das naus francesas VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 138 518 Ibid p 146 519 Varnhagen afirma que as notícias que haviam chegado à corte da costumada freqüência dos navios franceses máxime no porto do Rio de Janeiro haviam produzido uma ordem expressa para o fortificar Salah H Khaled Jr 157 Varnhagen a agradecer à Providência pela demora na descoberta do ouro no interior do país pois poderia resultar em catástrofe provocando a migração para o interior e a entrega do litoral a França520 Assim ele vai dizer que o território nacional o bem máximo a ser protegido encontravase sob forte ameaça assuntos mais graves que os de minas demandavam agora toda a atenção do governador Tratavase de nada menos do que da conservação e defesa do território O litoral viase cada vez mais ameaçado de corsários e piratas não só ingleses e holandeses como também franceses Estes últimos se achavam quase de posse de todos os portos do Rio Grande para o Norte contavam por aí com toda a indiada em seu favor e tinham sempre em cheque a Paraíba521 Os portuguesesbrasileiros se viam assim diante de um perigo muito maior do que o representado pelos bárbaros A presença constante dos franceses comprometia a própria continuidade do esforço colonial522 A ameaça funciona inclusive como uma forma de integração discursiva do território reforçando o sentido geral da história brasileira por ele escrita Assim Varnhagen afirma que havia uma clara idéia da freqüência com que visitavam os navios franceses estas paragens principalmente o Rio de Janeiro Tal freqüência dos navios franceses não era desconhecida na cidade de Salvador523 Era o Brasil que se via ameaçado pelos franceses e não regiões isoladas Uma outra nação ameaçava a soberania nacional A sensação que ele busca provocar é de inquietação no leitor pouco tempo depois chegava também a notícia de que ficavam muitos da mesma nação estabelecidos em uma ilha à boca da enseada do Rio de Janeiro524 e convinhalhe indagar se nas capitanias do Sul adquirira gente e meios para fazêlo pois ali da Bahia nada podia então dispensar VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 257 520 Sobre os rumores de existência de metais preciosos no país Varnhagen diz que mas Deus não ha via querido ordenar que elas se confirmassem antes de estar mais assegurado o Brasil As expedições que se empreenderam não tiveram êxito E felizmente que não o tiveram pois a descoberta de minas no sertão quando ainda existia tão pouca gente na costa a teria deixado deserta e dela se haveriam talvez apoderado os Franceses Ibid p 261 521 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 44 522 Assim compreensivamente Varnhagen dirá que Lamentando os tristes acontecimentos que tive ram lugar durante a administração de D Duarte apressemonos a dizer que alguns não se devem tanto atribuir a ela como à sua má fortuna Os Franceses apareciam no Brasil em maior força do que nunca e chegaram a estabelecerse no Rio de Janeiro VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 278 523 Ibid p 284 524 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 285 Horizontes Identitários 158 O cenário estabelecido por Varnhagen vai se tornando cada vez mais alarmante Sua intenção é justamente esta que o leitor se maravilhe diante do feito realizado pelos colonizadores Assim o número de gentios que estava em favor dos franceses orçava o governador em mais de mil525 Segundo ele a extensão das pretensões francesas quanto ao país pode ser medida pelo que se pensava na época Varnhagen demonstra isso dizendo que o cosmógrafo André Thevet pretendeu que o país se ficasse chamando França Antarctica e assim o designou já no próprio título do livro das coisas singulares do Brasil que publicou em 1558526 Varnhagen cria um cenário verdadeiramente alarmante os choques se elevavam cada vez mais chegando ao confronto aberto o qual exigia por parte dos nossos sacrifícios de grande monta para a defesa da pátria Onde porém os franceses se apresentavam em aberta hostilidade nesse ano foi na Paraíba Trezentos e cinqüenta homens desembarcados de treze navios cometeram o forte de Santa Catarina do Cabedelo apenas defendido por vinte homens e cinco pequenas peças de artilharia mas tal foi a resistência que apresentaram que os atacantes se viram obrigados a reembarcarse com grande perda O comandante do forte morreu nessa heróica defesa deixando ao sucessor João de Matos Cardoso um digno exemplo que ele soube imitar trinta e quatro anos depois contra os intrusos holandeses527 Eis aqui novamente as figuras da tragédia do inimigo e do herói operando de forma conjunta motivando a comoção do leitor Como não esperar no presente a preservação de tais feitos nobres realizados em nome da pátria São atos de grande sacrifício dos quais o país deve se orgulhar e logo buscar imitar Varnhagen inclusive destaca que a resistência aos invasores é um feito local de aparente desconhecimento por parte da Corte cabendo portanto à nova pátria celebrála528 Evidentemente o estabelecimento de um cenário inteiramente desfavorável culmina com um capítulo intitulado Men de Sá A expulsão dos franceses e a consagração do herói elevado 525 Ibid p 305 526 Ibid p 286 527 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 46 Grifo nosso 528 Sobre os preparativos para a incursão francesa no Brasil Varnhagen diz que Deviam essas notí cias chegar ao conhecimento da corte quer por via do próprio Brasil quer da França onde os prepa rativos se haviam feito sem grande segredo não se dizia ao menos por escrito uma palavra da ex pulsão dos franceses de cujas forças parece nem havia exata idéia VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p 141 Salah H Khaled Jr 159 a objeto de culto da nação Mas os franceses não são os mais célebres inimigos do esforço colonial em certa medida devido à escassez de fontes e nem os castelhanos a que Varnhagen geralmente se refere de forma passageira comentando por exemplo as reclamações contra os castelhanos de Assunção que entravam nas terras do Brasil com morte de muita gente529 O inimigo por excelência é o holandês até mesmo porque o choque foi extenso e houve no entender de Varnhagen perda de soberania Ele considera que apesar da união com a Espanha ter sido benéfica em função do alargamento das fronteiras trouxe uma série de novas ameaças diante das quais havia pouca condição de resistência530 Essa união colocou o Brasil em um estado de iminente calamidade Varnhagen traça um cenário de pânico crescente diante das iminentes invasões pois por todas as capitanias os receios de alguma invasão estrangeira eram como um sentimento público Temiamse franceses temiam se ingleses temiamse holandeses e até se chegava a temer mouros e turcos531 Não poderia ser diferente a sensação é retratada por ele como comum a todas as capitanias O panorama era de tamanha negatividade que Varnhagen chega a manifestar uma certa xenofobia o que não lhe é peculiar pois como as condições para assumir o papel de herói evidenciam seu nacionalismo é muito mais baseado na vontade do que na etnia532 Para ele em virtude dessa conjuntura de ameaça de invasão iminente os 529 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 259 530 Varnhagen reflete que E claro está que sendo a maior parte destes inimigos nações marítimas a própria vastidão quase imensa da nova monarquia a cujos destinos se havia associado a nascente colônia Brasília dificultava a sua defesa e a deixava vulnerável como uma das paragens a que menos lhe interessava atender E com efeito o Brasil onde ainda não haviam sido descobertas as minas de ouro e diamantes o Brasil com a sua escassa produção de açúcar e do pau que lhe dera nome não podia ser guardado pelos novos reis estrangeiros com o mesmo empenho com que tratavam de guar dar o México e o Peru domínios que com o enorme produto de inesgotáveis minas de ouro e prata os ajudavam em tantas guerras Ibid p 366367 531 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 161 532 Assim Varnhagen irá apontar o erro estratégico que era O freqüente uso até então seguido de preferirem os comerciantes de Lisboa o fretarem para o Brasil urcas flamengas mais bem construídas e artilhadas do que os barcos portugueses não só foi prejudicial à marinha de guerra que da mercante se alimenta como levou ao Brasil muitos estrangeiros que com o andar do tempo se converteram em espias e em inimigos declarados especialmente desde que com a sua união a demais Espanha os Países Baixos começaram a considerar como inimigos sempre que isso lhes convinha VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p 45 Horizontes Identitários 160 estrangeiros deixavam de ser de confiança533 É dentro desse cenário que Varnhagen tece uma de suas críticas mais contundentes e carrega no tom trágico e na indignação de quem escreve como historiador que inventa a nação Entretanto temos para nós que quando o inimigo nos ameaça há que prepararmonos para o receber à porta da casa e não dentro dela depois de nola haver saqueado para nos matar com nossas próprias armas se não lhe pagamos os tributos que nos impõe Ora tais preparativos mal se fizeram pois deviam consistir principalmente em ter não fortalezas fixas mas praças de guerra móveis uma respeitável marinha colonial Deixemos ao fatalismo embrutecedor o explicarnos como o Brasil bradava aos céus pelos seus costumes pervertidos pedindo uma invasão que chegou a ter dele separada da outra metade por tantos anos que mal se explica como veio a soldar se Apesar da nossa nímia tolerância que melhor avaliará o leitor para o adiante apesar de reconhecermos os bens que algumas províncias brasileiras devem hoje aos holandeses cremos que se cometeram faltas graves e que o governo não obrou nesse ponto como pedia o caso Dirão que havia chegado na Terra de Santa Cruz ao auge a corrupção o roubo e o escândalo534 Para ele portanto seria devido à omissão do governo e à degeneração dos costumes que os holandeses chegaram a se estabelecer no Brasil Isso viria a comprometer inclusive o que Varnhagen via como a própria soberania nacional causando a separação de parte do seu território O emprego da expressão mal explica como veio a soldarse indica o esforço realizado do qual ele se vale extensivamente para inventar um sentimento nacional então inexistente Esse sentimento surgirá principalmente pela contraposição dos nossos aos inimigos Varnhagen afirma que estando os holandeses devidamente incentivados pela ausência de represálias às suas incursões em território brasileiro deram início aos preparativos para um empreendimento muito mais ambicioso sua ocupação535 A partir 533 Varnhagen afirma que Além desses delinqüentes encontravamse de repente outros muitos dis seminados por todo o Brasil que só o eram em virtude das circunstâncias Tais foram todos os estran geiros e com especialidade os holandeses franceses e ingleses Muitos feitores de engenhos eram destas nacionalidades e se haviam durante anos conduzido honradamente mas em presença dos ataques de seus compatriotas e dos conluios provados com um ou outro difícil era seguir neles tendo confiança Ibid p 65 534 Ibid p162163 Grifo nosso 535 Varnhagen afirma que As faltas do governo haviam de tal modo engulosinado os holandeses com tantas presas feitas por eles de um modo impune que já não se duvidava de qual era o agressor mais iminente quando renasceu com vigor na Holanda o pensamento da organização de uma companhia de comércio ocidental análoga a que já existia para o Oriente Organizada a companhia holandesa aprovados os regulamentos e empreendidos já inclusivamente alguns primeiros ensaios o conselho dos dezenove decidiu tentar um ataque sobre o Brasil e para dar o golpe mais decisivo e seguro resol Salah H Khaled Jr 161 daí irrompeu a guerra Varnhagen relata que a guerra era mui legitima Concluída a trégua no dia 9 de abril desse ano 1621 havia o próprio rei ordenado por carta régia do dia 15 do dito mês que os holandeses fossem tratados como inimigos536 A partir daí ele passa a se referir não mais aos holandeses enquanto sujeitos dotados de uma identidade própria mas sucintamente utilizase da categoria de inimigo O inimigo vale enquanto antagonista por excelência do Brasil e da colonização portuguesa Isso por sua vez possibilita novamente a constituição de heróis modelos paradigmáticos de virtude537 Varnhagen comenta que a vulnerabilidade do país e a escassez de resistência praticamente convidou os holandeses a se aventurarem no Brasil Uma vez que essa intenção ficou clara finalmente tiveram início os preparativos para a defesa da nação brasileira538 Varnhagen tenta atribuir um certo tom épico ao conflito assim no dia 8 de maio de 1624 foram avistadas as velas inimigas na madruga do dia seguinte o inimigo com vento favorável enfiou a entrada passando longe do canhão dos fortes539 Uma narrativa que pretende seduzir exige o emprego de certos recursos Independentemente de Varnhagen ser bem sucedido na utilização de tais artifícios a categoria do inimigo se torna uma peça chave para suas pretensões exemplares O termo inimigo é utilizado constantemente a partir daí por Varnhagen como atribuição de sentido em oposição aos nossos como em o ataque foi rechaçado de forma que o inimigo sofreu grande perda540 Quem sofre a perda é o inimigo e não pura e simplesmente o holandês o que reforça o feito e a identidade dos nossos A palavra inimigo é empregada literalmente dezenas de vezes em algumas oportunidades veu acometer a cidadecapital a Bahia que era também conhecida dos holandeses VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p 163164 536 Ibid p 165 537 Varnhagen fala do capitão o fundador da colônia Martim Soares que resistindo por duas vezes às ameaças de duas naus holandesas veio já a prometer o que foi daí a trinta anos um dos campeões da restauração de Pernambuco Ibid p 156 538 Varnhagen conta que Quando chegou a notícia dos intentos hostis da expedição holandesa estava de governadorgeral na Bahia Diogo de Mendonça Furtado que havia recebido a tal respeito avisos diretos da metrópole com ordens mui antecipadas para fortificar especialmente as entradas dos portos da Bahia e do Recife Ibid p 187 539 Ibid p 188 540 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 246 Horizontes Identitários 162 até quatro vezes por página Ele raramente se refere ao inimigo como os holandeses como é o caso aqui foi para os holandeses uma vitória completa541 De certa forma Varnhagen está negando identidade ao seu adversário que não vale efetivamente como outro mas somente tem sentido como aquele que se contrapõe ao defensor da prefiguração de uma pátria brasileira O fato é que diante das imensas dificuldades os nossos eventualmente triunfam sempre sobre o inimigo até porque contam com grandes líderes com heróis o que não é o caso do adversário não foi por falta de munições nem de provisões nem de soldados que a praça se rendeu foi por falta de união e de disciplina foi por não ter um chefe superior de prestígio542 Em linha semelhante Varnhagen dirá que houve um certo desleixo dos novos sitiadores confiados excessivamente na superioridade do número lhes veio a custar bastante caro no dia 6 de abril acercouse da praça a esquadra libertadora desembarcado entretanto o inimigo travouse a peleja durante um quarto de hora e o holandês se viu obrigado a retirarse com alguma perda limitandose a nossa à morte de um soldado caíram em uma cilada que os nossos dirigidos pelo mesmo Salvador Correia lhes armaram nela foi abalroada a lancha principal ficando só dois com vida e as outras lanchas apenas puderam escaparse com grande perda Desenganados os holandeses na presença de tantas tentativas malogradas fizeramse de vela ao cabo de oito dias543 Varnhagen se regozija com os resultados infrutíferos da primeira empreitada holandesa e exaltado espera do leitor que compartilhe dessa comemoração544 Entretanto apesar dos sucessos alcançados o pior ainda estava por vir pois o saque do Recôncavo da Bahia alcançado com tanta vantagem por Piet Heyn seria por si só um grande estímulo para a Companhia Ocidental não desistir de novos ataques contra o Brasil545 No entanto Varnhagen afirma que de forma surpreendente mesmo com a 541 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 35 542 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 198 543 Ibid p 195196 544 Varnhagen comenta que Ficaram assim infrutuosos para os holandeses todos os gastos feitos com esta expedição de socorro e com mais razão ainda ficou sem ter efeito um édito ou proclamação aos povos do Brasil que no dia 26 de maio haviam promulgado os Estados Gerais prometendo tolerância religiosa liberdade de comércio segurança da propriedade e outras garantias aos que se submetes sem Ibid p 199 545 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora Salah H Khaled Jr 163 continuidade das incursões holandesas o Brasil parecia providencialmente destinado a prevalecer e resistir546 Para Varnhagen os nossos demonstravam uma capacidade para superação até então inimaginável a guerra efetivamente os enobrecia pois os colocava a serviço do mais nobre dos ideais a defesa da pátria Nesse sentido ele afirma que o êxito obtido nesta defesa aumentou o valor aos nossos e levada a notícia aos distritos vizinhos porventura apressou a marcha dos que se preparavam a acudir547 Novamente reforçase o sentido de todo em seu grande relato da nacionalidade A coesão é obtida a partir do contraponto do inimigo que valoriza o esforço dos nossos unidos em torno da causa comum Francisco Gomes de Melo apesar de ter sido capitão no Rio Grande e ser de jurisdição superior a Maciel Parente quis a bem do serviço dar exemplo de muita abnegação colocandose sob suas ordens Ajudados pela localidade conseguiram os nossos em dois redutos cada um com duas peças impedir o desembarque tentado por três vezes pelo inimigo com tão grande perda que teve de tornar de novo para Recife548 Em alguns casos Varnhagen se entusiasma e chega a extrapolar o bom senso ao dizer por exemplo que a defesa foi heróica e constitui entre nós uma lenda semelhante à do passo das Termópilas entre os gregos o inimigo respeitou tanto valor549 Varnhagen constrói discursivamente o heroísmo A narrativa nacional revela uma resistência que engrandecia os nossos que fazia com que buscassem o melhor de si mesmos e que os unia diante do inimigo comum Com esta vitória apesar dos novos reforços que de contínuo e quase em cada navio da Europa recebia o inimigo os nossos cobraram brios e começaram a empreender ataques de surpresa não tardaram até atacar formalmente os entrincheiramentos que o inimigo prosseguia na ilha de Santo Antônio acometeram os nossos com tal ímpeto que em menos de um quarto de hora haviam entrado na primeira e segunda trincheira mais de trezentos Aí se travou a peleja corpo a corpo Os nossos conseguiram a princípio maior vantagem depois já o chefe inimigo se viu obrigado a declarar de ofício que combatia com um povo valoroso e ágil550 mentos 1959 p 223 546 Ibidem 224 547 Ibid p 230 548 Ibid p 241 549 Ibid p 244 550 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora Horizontes Identitários 164 Varnhagen utilizase astutamente dos fatos e do que as fontes lhe oferecem para pouco a pouco ir constituindo o caráter de um povo valoroso patriótico que se presta ao sacrifício em nome da pátria que não esmorece diante da adversidade e que se cobre de glória ao triunfar551 Ele destaca ressaltando o sentido trágico que o próprio cenário internacional era inclusive desfavorável552 As vitórias são afirmações do quanto eram intrépidos e destemidos os nossos Barreto reconheceu por fim que devia retirarse ou acometer o inimigo e não hesitou em decidirse a tomar este último expediente apesar da notável inferioridade da posição que ocupava e também da das suas forças na manhã do dia seguinte que era o de Nossa Senhora dos Prazeres os nossos cantavam definitivamente a vitória553 Quinhões de glória são distribuídos de forma farta por Varnhagen como quando ele diz que este oficial a quem mais tarde novos méritos chegaram a coroar com os louros da vitória e adornar com a palma do civismo554 Em outro momento se vale do mesmo espírito ao tratar da província do Mato Grosso na qual se deram hostilidades as quais se bem não resultasse aumento de território redundaram em muita glória para as nossas armas555 Contra o ataque do forte de Coimbra pelo governador do Paraguai também há reconhecimento de que houve heroica resistência A resposta do comandante ao inimigo é transcrita por Varnhagen em todos os tempos a desigualdade de forças havia sido um estímulo que animara os portugueses e que ele e os seus se defenderiam até uma das duas extremidades ou a de repelir o inimigo ou a de sepultaremse debaixo das ruínas do forte556 mentos 1959 p 233 551 Por isso Wehling em sentido semelhante diz que Varnhagen não perdeu oportunidades para projetar no passado conquanto respeitasse rigorosamente a documentação e distinguisse as infor mações de sua própria opinião as soluções que lhe pareciam melhores WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p173 552 Varnhagen relata as dificuldades que os negociadores encontravam os holandeses não se deixa ram iludir e exigiram como penhor a imediata passagem a seu poder da ilha Terceira ou da Bahia E com mais razão se julgaram fortes desde que em Munster firmaram as pazes com a Espanha e esta nação lhes garantiu todos os lugares do Brasil tomados aos Estados pelos portugueses desde 1641 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhoramen tos 1959 p 52 553 Ibid p 55 554 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 270 555 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p30 556 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora Salah H Khaled Jr 165 Varnhagen fala em uma heroica resposta e explora ao máximo os confrontos de acordo com suas ambições pragmáticas Uma fragata portuguesa porém chamada Rosário sustentou contra duas inimigas Utrecht e Gissinlingh um aturado combate e quando estas julgavam a sua contendora perdida e a atracaram dandolhe a abordagem foram todas três a pique em virtude de explosão do paiol de pólvora da Rosário cuja tripulação preferiu ir ao fundo com seus vencedores a deixarse aprisionar destes De tão heróico feito apenas temos conhecimento por um ofício de Schkoppe em outra ocasião mal compreendido e sentimos que com a notícia dele nos não seja possível transmitir o nome do destemido e abnegado oficial que lançou fogo ao paiol e deixou nas águas do Brasil às gerações futuras um exemplo de tão nobre heroísmo557 Aqui ele chega a manifestar um certo pesar por ser incapaz de inscrever na posteridade o nome do valoroso oficial que havia se sacrificado em prol da honra nacional Varnhagen mal consegue se conter de satisfação com as vitórias que vê como brasileiras e logo afirmativas da nação que ele prefigura no passado o inimigo ficou de todo destroçado e a vitória foi para os nossos ainda mais completa que a do ano antecedente o inimigo reconheceu a sua derrota e a confessou oficialmente atribuindoa a covardia dos próprios soldados558 Ou em outro trecho no qual fala da heroicidade com que segundo vimos conseguiram rechaçar um ataque do inimigo holandês559 Segundo Varnhagen o valor dos nossos era de tal tamanho que reconhecido pelo inimigo o levava a redobrar os seus preparativos para o enfrentamento Este assalto não foi o único empreendido pelos nossos com mais audácia que fortuna e bom discernimento Em lugar de estudar quais eram os pontos importantes para guarnecer e entrincheirar abdicava em geral o chefe esse cuidado ao inimigo e apenas este os havia ocupado e se achava em estado de apresentar neles resistência era resolvido o ataque tendo neste o inimigo as vantagens da defensiva Os nossos atacaram logo no próprio dia 3 de fevereiro de 1631 e tiveram que se retirar ao cabo de duas horas com perda de treze mentos 1959 p30 557 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 80 558 Ibid p 83 559 Ibid p 140 Horizontes Identitários 166 mortos e vinte e um feridos Repetiuse ainda semelhante erro daí a perto de cinco meses quando o inimigo se lembrou de construir o forte do Buraco a que deu o nome de Madame Bruyn E se em semelhantes ataques o inimigo apreciava melhor o valor dos nossos era isso uma desvantagem porque melhor se prevenia e se deles resultava o iremse eles familiarizando mais com o fogo e fazendose aguerridos não há dúvida que idênticos fins se poderiam conseguir adquirindo a tempo vantagens decididas os que expunham tão heroicamente as vidas560 Para Varnhagen a resistência era tão valorosa que tornavase evidente para os próprios Holandeses que a manutenção de sua presença no Brasil lhes custaria mais caro do que esperavam originalmente561 Essa é uma consideração que Varnhagen várias vezes reitera Depois dela os inimigos se mostraram mais prudentes porventura com excesso Dois meses e meio depois em 9 de julho apesar de contarem ainda com um exército de seis mil e seiscentas e trinta praças incluindo quinhentos índios e quarenta e oito pretos dos quais podiam por mais da metade em campo mostravamse desanimados Escreviam para a pátria declarando que não haviam oferecido nova anistia por não esperarem disso colher nenhum resultado visto que a experiência de cada dia lhes ensinara que os nossos se haviam feito de tal modo à guerra que se achavam no caso de poder medir se com os mais exercitados soldados e que sabiam sofrer toda sorte de privações ao passo que os seus apenas serviam vendo a bolacha perto de si562 Um passado de glórias dos quais os brasileiros podem e devem se orgulhar está sendo constituído gradualmente em cada página da narrativa de Varnhagen em que se dão os confrontos em defesa da soberania por ele prefigurada Por outro lado a forma com que ele trata a adversidade e os revezes sofridos não pode ser descrita de outra forma que não o melodrama Por exemplo diz ele que os holandeses cantaram 560 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p234235 561 Varnhagen afirma que Se a primeira vitória dos Guararapes servira de alentar os estadistas de Por tugal para se oporem à cessão ou venda de Pernambuco esta segunda veio desalentar os estadistas e mercadores da Holanda demonstrandolhes evidentemente que só mediante grandes sacrifícios po deriam continuar mantendo esta conquista Entretanto a hora da final expulsão dos intrusos não tinha chegado e não veio a soar senão perto de cinco anos depois VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhoramentos 1959 p 84 562 Ibid p 56 Salah H Khaled Jr 167 vitória e com razão A nossa perda foi imensa563 Varnhagen praticamente convida o leitor a lamentarse com ele em uma das raras ocasiões em que utiliza o termo holandeses ao referirse ao inimigo Esse trecho ainda é suave O trecho a seguir carregado de requintes de crueldade dita o tom do confronto entre portugueses e holandeses valorizando e concedendo reconhecimento e glória aos valentes heróis da pátria diante da desumanidade do inimigo Procuraremos passar rapidamente pela descrição de tais cenas que se fossemos a pintar com as verdadeiras cores causariam não somente horror como até asco Limitarnoemos a referir que um Antonio Baracho amarrado nu a um posto foi morto cortandolhe os assassinos pouco a pouco dolorosamente cada uma das partes do corpo que Mateus Moreira lhe arrancaram pelas costas o coração e que com dois jovens Manuel Álvares Ilha e Antônio Fernandes não chegaram a usar de tanta barbaridade porque eles tinham consigo facas de ponta com as quais matando antes a vários dos algozes caíram logo mortos com mais glória para si e menos opróbrio para os inimigos tantas crueldades não só dos bárbaros como dos próprios holandeses que se bem que cristãos de nome mais bárbaros haviam se mostrado que os ignorantes índios564 A invasão resultou portanto sofrida e custosa para os habitantes do país Trata se de um esforço que deve ser valorizado Se os nossos lutaram e caíram no passado pelo Brasil uno e coeso como por tudo a perder agora e ignorar tais sacrifícios565 Um exemplo é a desastrosa morte que teve o governadorgeral Antônio Teles que tanto peito havia tomado a causa da restauração de Pernambuco e que depois de a deixar já quase triunfante veio quando se recolhia à pátria a perecer afogado nas águas de Buarcos566 Varnhagen sempre relaciona triunfo glória e pátria associando o serviço à nação com a recompensa que a posteridade assegura O tom pedagógico da tragédia é inequívoco 563 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 312 564 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 39 565 Varnhagen considera que o Brasil não é obra do acaso ou criado de repente É fruto da vida e do trabalho de muitas gerações VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927pVIII 566 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p8485 Horizontes Identitários 168 distinguindose então por seu valor o capitão pernambucano Estevão de Távora que ferido gravemente no peito morreu daí a poucos dias legando à pátria um nome heróico com a notável circunstância de lhe haver sido dado por sucessor no mando da companhia que lhe estava confiada o paraibano André Vidal cujos grandes serviços e dedicação iremos comemorando Nestas sortidas se distinguiram muito além do mesmo André Vidal os capitães Francisco Rebelo Rebelinho Ascenso da Silva e Sebastião do Souto o do ardil de Porto Calvo que pouco depois no grande ataque deste sítio acabou como Távora gloriosamente seus dias ferido de uma bala no peito567 Desde o discurso de Barboza já havia ficado estabelecido que os grandes feitos devem ser comemorados e por extensão os autores de tais feitos André Vidal foi o escolhido por Varnhagen para ser o represente máximo da virtude posta a serviço da nação e portanto comemorada Segundo ele em Vidal obravam não só os impulsos do patriotismo como também os da religião568 Varnhagen não se cansa de exaltar as virtudes tidas por ele como patrióticas que personificadas caracterizavam Vidal O êxito obtido na restauração do Maranhão não podia deixar de excitar os brios de André Vidal para se esforçar de novo em conseguir realizar a de Pernambuco e Paraíba por que tanto se havia empenhado propôse ele a patrioticamente voltar de novo a Pernambuco e ir até a Paraíba a fim de alentar os tíbios e de combinar um plano por meio do qual se pudessem conseguir resultados tão favoráveis como os que os maranhenses haviam obtido ao cabo de dez meses de luta569 O reconhecimento de Varnhagen a respeito das proezas de Vidal reafirma que a história se encarrega de garantir o triunfo da vida sobre a morte sendo este um dos mais evidentes aspectos de culto ao passado Poderia haver recompensa maior do que ser eternizado na memória nacional Ao referirse ao pai de André Vidal um senhor de engenho Varnhagen dirá que Francisco Vidal era do venerável ancião o nome cujo conhecimento uma piedosa tradição entre os gregos julgava essencial para que o filho conseguisse a imortalidade570 Tamanha é a grandeza que Varnhagen 567 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 296 568 Ibid p 326 569 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 13 570 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 14 Salah H Khaled Jr 169 atribui a Vidal que os próprios exemplos de bravura de outros valorosos defensores da pátria empalidecem diante dele Francisco Barreto era um grande cabo de guerra sobretudo quanto a dotes de circunspecção reserva e prudência estudando bem os fatos João Fernandes Viera não aparece decididamente tão grande como em detrimento dos camaradas nolo quiseram apresentar seus panegiristas André Vidal era homem tão superior que necessitaria de um Plutarco para apreciálo571 Há que se perguntar como Varnhagen consegue estabelecer critérios para fazer tais comparações que não parecem ser mais do que especulações suas572 Por definição o critério é ele próprio Varnhagen e o que considera de serventia para afirmação do ideal pragmático da nação em seu grande relato da nacionalidade Na narrativa nacional de Varnhagen o Brasil constituise como Império a partir de lutas aguerridas de um esforço nacional imenso por parte dos habitantes do país que foram capazes de resistir aos continuados ataques de franceses holandeses e castelhanos São perigos recorrentes e que se desenrolam alternadamente no enredo da nação Assim estando esgotada a questão holandesa Varnhagen passa novamente a tratar dos franceses e dos problemas que os envolvem visto que eles também representavam por sua vez outra forte ameaça à sobrevivência da pátria brasileira Segundo ele cumpre dizer que a França mal se podia conformar com o não gozar no Brasil de tantas prerrogativas como pelos tratados de paz haviam obtido a Inglaterra e a Holanda573 Embora privilegie o recorte nacional Varnhagen não ignora por inteiro suas repercussões internacionais Dessa forma em certas ocasiões ele se preocupa com as questões de além mar que implicam em reflexos sobre o Brasil engrossando as fileiras dos inimigos da nação574 Assim em alguns 571 Ibid p 94 572 Segundo Odalia Varnhagen escolheu Vidal e não Vieira como protótipo do herói branco na resistên cia contra o holandês por um motivo singelo Vieira era filho da Ilha da Madeira e Vidal filho da Paraíba Essa não é uma escolha indiferente ela ganha um sentido muito profundo pois na verdade a opção é feita em favor de um brasileiro isto é de um colono nascido e criado no Brasil que simboliza em si a própria luta de guerrilha que se estabelece contra os invasores ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p59 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 573 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 229 574 Varnhagen afirma que Em virtude da nova liga de Portugal em 1703 o Brasil passou a contar como inimigos a Espanha e a França e logo deveria esperar hostilidades da parte dessas duas nações Co meçaram elas na Colônia que pelas providências da metrópole seguia prosperando desde 1683 o governador Sebastião da Veiga Cabral depois de uma heróica defesa durante seis meses e meio por Horizontes Identitários 170 trechos ele demonstra a repercussão dos eventuais conflitos na Europa Durante o rompimento de relações com os franceses alguns empregados zelosos de Caiena por meio de argúcias mais ou menos inocentes provocaram novas dúvidas acerca das fronteiras do Oiapoc propagaramnas pelo mundo por meio da imprensa enquanto em Portugal nada se publicava e se formava assim a crença de que os limites do Brasil não iam ao Oiapoc575 Aqui a preocupação manifestada é de ordem territorial um assunto extremamente sensível para Varnhagen e do qual ele sempre trata de forma muito exaltada A ameaça à soberania nacional traz novamente à cena o fantasma da tragédia iminente Assim ao relatar o ataque francês ao Rio de Janeiro que resultou em capitulação e portanto vergonha para a pátria ele se posiciona da seguinte forma Valhanos ao menos tamanha lição e tamanha vergonha para o futuro se algum dia nos encontrarmos em situação análoga o que Deus não permita E a primeira lição que devemos colher é a de já em tempo de paz atendermos mais aos meios da resistência que deve oferecer este importante porto do qual permita Deus que seja quanto antes retirada a capital do império tão vulnerável aí na fronteira e tão exposta a ser ameaçada de um bombardeio e a sofrêlo com grande prejuízo dos seus proprietários por qualquer inimigo superior no mar que se proponha a arrancar do governo pela ameaça concessões em que não poderia pensar se o mesmo governo aí não se achasse576 Varnhagen se preocupou de tal forma com a vulnerabilidade da capital nacional que veio inclusive a propor a sua mudança para o interior dedicando inclusive como já referido uma obra posterior ao assunto577 O pragmatismo da história de Varnhagen revelase mais uma vez Ele escreve história inventa a nação e por vezes valese ordem da própria metrópole recebeu a largou retirandose com toda a guarnição ao Rio de Janeiro Por parte da Espanha à Colônia se limitaram por então as hostilidades na América Seis anos depois outras tiveram lugar no alto Amazonas Com a França as hostilidades tiveram caráter muito mais sério Ibid p 286287 575 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p23 576 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 298 577 Varnhagen vai considerar que a própria Providência concedeu ao Brasil uma paragem mais central mais segura mais sã e própria a ligar entre si os três grandes vales do Amazonas do Prata e do São Francisco nos elevados chapadões de ares puros de boas águas e até de abundantes mármores vizinhos ao triângulo formado pelas três lagoas Formosa Feia e Mestre d Armas das quais manam águas para o Amazonas para o São Francisco e para o Prata VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhoramentos 1959 p 298 Salah H Khaled Jr 171 do passado para justificar pontos de vista que são inteiramente pessoais em relação ao presente e ao futuro do país Ele inclusive demonstra pontos de vista sobre o presente a partir da forma com que vê a nação no passado Assim a deformação é de dupla via de um lado Varnhagen prefigura o passado a partir do presente narrandoo conforme o seu pragmatismo de outro lado se vale do passado para dizer algo no presente de acordo com suas convicções pessoais Essa percepção implica que o passado deva ser interpretado de acordo com o que o presente espera dele mas de outro lado que o passado pode ser utilizado como componente argumentativo face ao próprio presente Varnhagen estabelece de tal forma um padrão de conduta que espera que o mesmo seja verdadeiramente coercitivo O caráter da sua obra é o de uma pedagogia social A nação que Varnhagen prefigura é posta como um absoluto que exige do indivíduo o sacrifício como verdadeiro exemplo de devoção ao altar da pátria Infelizmente só depois de ajustada a capitulação veio de Minas com um reforço de seis mil homens o herói do Amazonas Antônio de Albuquerque que ainda assim chegou uns vinte dias antes que os franceses se fossem Pela mente lhe passou segundo parece a idéia de atacálos porém encontrouse falto de munições de balas especialmente mas sempre é para lastimar que com mais de doze mil homens de que dispunha não se tivesse coberto de glória intentando um ataque à arma branca578 Aqui Varnhagen reprova a falta de devoção e ousadia por parte de um comandante que ele mesmo classifica como herói A lealdade à nação deve ser continuamente reiterada e deve colocarse acima de qualquer outro dever É como se ele lamentasse a falta de iniciativa do comandante pois ao não promover um ataque que provavelmente redundaria em fracasso rouba de Varnhagen a oportunidade de valerse do fato como exemplar como é o caso do célebre combate entre a fragata portuguesa Andorinha e a francesa La Chiffone579 A História Geral do Brasil é sobretudo uma história de conflito e de afirmação da autoridade e soberania Nesse esforço intelectual as nações europeias exercem função significativa de fundação de sentidos Entretanto mesmo diante das ameaças estrangeiras o perigo representado pelos índios e pela desordem interna permanecia 578 Ibid p 300 579 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p31 Horizontes Identitários 172 constante Varnhagen afirma que as capitanias meridionais de São Vicente e Rio de Janeiro enquanto a guerra estrangeira lavrava nas do Norte não estiveram em perfeita paz Guerreavamse os índios ou por causa deles os moradores uns aos outros e às vezes até os próprios que deviam pregar a paz e contribuir para ela eram os que mais incitavam as desordens580 Como sempre a desordem entendida como falta de submissão a autoridade é apresentada de forma pejorativa com conotação pedagógica De acordo com ele o cenário era muito preocupante em algumas capitanias as outras capitanias imediatas até a Bahia decaíam de um modo espantoso e se conservavam em meio de tantos acontecimentos na quase nulidade em que ainda agora se acham de tal modo que por dizêlo assim dessas três capitanias do Brasil não há história e até hoje nenhum de seus filhos tem aparecido com memórias de acontecimentos extraídos das Câmaras as quais possam servir sequer para o historiador imparcial provar que não por esquecimento deixa de cuidar delas581 Varnhagen estabelece um contexto no qual forças desagregadoras pareciam conspirar para a falência da colonização Não contente com isso ele aponta o surgimento de um novo mal proveniente em parte da desmoralização e miséria pública Muitos dos pretos dos engenhos agora mais ociosos se haviam rebelado formando nos matos quilombos que assaltavam os proprietários e as fazendas582 O problema segundo ele se estendia a várias regiões exigindo medidas por parte dos colonizadores que felizmente encontraram o homem ideal583 para dar cabo da conquista de Palmares o maior dos quilombos 580 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 129 581 Ibid p140141 582 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 202 583 O paulista Domingos Jorge Velho muito conhecedor das artes e ardis da guerra do mato no Brasil pelas campanhas que fizera nos sertões em bandeiras contra os índios se apresentou em 1687 ao governador de Pernambuco com um projeto para terminar essa conquista ficando as vantagens dela para ele e seus sócios Ibid p 259 Salah H Khaled Jr 173 A conquista e sujeição dos Palmares foi obra de largos anos e de não poucos trabalhos e fadigas Quando na história do Brasil se menciona simplesmente uma sujeição de Palmares entendese serem os do sertão da atual província das Alagoas nas faldas da serra do Barriga onde nos tempos dos holandeses se haviam fugado muitos escravos a ponto de já então se acharem aí organizados em número de mais de onze mil em mocambos e quilombos independentes que iam adquirindo forças pelas vitórias que a princípio foram alcançando sobre as partidas primeiro dos holandeses depois dos pernambucanos pequenas e mal dirigidas que marchavam para sujeitálos como se isto fosse obra de ordens dadas de boca e não de muitos braços com pólvora e bala Que os mocambos e quilombos de Palmares vieram a constituir um ou mais estados no Estado não é possível por em dúvida entretanto temos que exageram os que amigos do maravilhoso os apresentam como organizados em república constituída com leis especiais e subordinados a um chefe que denominavam Zumbi expressão equivalente à com que na língua conguesa se designa a Deus584 Dessa forma Varnhagen retira de Palmares qualquer conotação nobre e ressalta a sua condição de ilegalidade de ilegitimidade como um ou mais de um estado constituído dentro do Estado Para ele infelizmente há que se lastimar a inexistência de fontes mais detalhadas para que fosse possível retratar com detalhe a conquista de Palmares585 Ou seja Palmares vale na sua narrativa enquanto proeza executada pelo colonizador e não por si só O cenário de tragédia é continuamente estabelecido Varnhagen ressalta que quando não eram os negros fugidos a causar desordens eram os índios Pernambuco lutava contra os mocambos dos Palmares na atual província de Alagoas os quais mantinhamse sempre em armas na Bahia não havia como em Pernambuco a combater quilombos que ameaçassem a propriedade mas em vez deles havia índios que batiam quase já quase às portas dos engenhos de Jequiriça e Jaguaribe586 584 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 258 585 Varnhagen afirma que Travouse uma encarniçada campanha da qual infelizmente não nos consta que houvesse um cronista que perpetuasse mais esses heróicos feitos dos paulistas Em 1695 tive ram lugar os mais sanguinolentos ataques porém só em 1697 os Palmares se puderam julgar de todo conquistados Ibid p 259 586 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 231 Horizontes Identitários 174 A lição é evidente diante de índios negros franceses holandeses enfim diante de tão vasto espectro de antagonistas não é de maravilharse que a colonização portuguesa tenha triunfado e tornado o Brasil um império Como não fazer jus à tão estupendo feito de nossos ancestrais Como se tudo isso não bastasse o descobrimento de ouro em Minas Gerais veio a tornar ainda mais tumultuado o cenário da colônia de acordo com Varnhagen pois fez com que o país fosse inundado por indivíduos de moral questionável587 A tragédia sempre rondava a colônia em permanente luta para firmarse enquanto marco da civilização A transmigração para as minas seguiu em tão grande número de gente que começaram as rivalidades entre paulistas primeiros descobridores e o taubateanos juntos aos forasteiros ou embuabas como se começou a chamar os europeus adotando essa expressão dos índios Das rivalidades se geraram ódios e estes trataram de satisfazerse vindo os partidos às mãos em uma guerra civil no ano de 1708 Assim no meio de terras sem fim a aproveitar e entre minas de ouro que nem durante séculos se poderiam exaurir começava uma briga porque não havia naquela gente espírito de tolerância e porque os homens sem medo das penas fazem logo sentir quanto a obediência à autoridade é indispensável para o seu próprio bem588 Novamente Varnhagen reforça a ideia de uma ordem que só pode ser mantida através da estrita observância da lei do medo da sanção A negação da autoridade só pode implicar no caos na desordem e Varnhagen está a sua maneira e através da forma com que constitui o passado da nação ele mesmo buscando estabelecer a ordem delimitando espaços de iniciativa que são louváveis e condutas que reprova com a autoridade em que se investe através da história No seu relato a tragédia é o preço que se paga pela não observância da conduta em prol da nação Os problemas de definição de fronteiras na região Sul também permitem a Varnhagen desenvolver a sua estratégia argumentativa de controle social e afirmação de regras de convivência É o caso da Colônia de Sacramento que veio a ser o pomo de discórdia que deu origem a tantas guerras a tantos cuidados a tantas intrigas 587 Para Varnhagen Espalhada a notícia do aparecimento de tantas minas por todo o Brasil e pelo Reino as transmigrações eram espantosas o governo tomava medidas para impedir essas trans migrações Não há diques que valham contra estas ondas de gente que vão com passaportes ou sem eles onde seu melhorestar os chama os próprios estrangeiros que não conseguiam passaportes de trânsito embarcavamse como parte das tripulações dos navios e dos portos fugiam para o sertão apenas chegando às suspiradas praias vizinhas do ouro VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhoramentos 1959 p99 588 Ibid p100 Salah H Khaled Jr 175 a tantas negociações feitas e desfeitas e a tantos gastos589 Varnhagen afirma que os conflitos de limites novamente colocaram em choque os nossos contra o inimigo agora em uma nova conjuntura de indefinição fronteiriça e de busca de ocupação daquele território590 Mesmo que exista uma discussão sobre o limite do território Varnhagen jamais cogita que o Brasil possa estar desprovido de razão em que pese o próprio Tratado de Tordesilhas que ele havia usado anteriormente para legitimar a posse portuguesa591 Varnhagen afirma que a situação eventualmente deteriora a ponto de gerar novo confronto Ele relata que no Sul Cevallos não se contentara com assenhorar se da Colônia Animado por essa primeira vitória tão barata marchou contra o Rio Grande592 Cevallos é um personagem que se constitui em fonte de grande desprezo para Varnhagen593 Porém ele assinala que felizmente a essa altura o Sul era o único ponto em que a soberania nacional era contestada pois no restante da fronteira podese dizer que não havia hostilidades594 Segundo ele o processo de afirmação da nação brasileira já estava bem encaminhado e amadurecido pronto a dar frutos Varnhagen faz inclusive uma curiosa afirmação diante das dificuldades em obter um reajuste de fronteiras no Sul dizendo que cabia à corte portuguesa se preparar a 589 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 238 590 Varnhagen afirma que Discutiuse muito escreveuse não menos e afina cada um ficou com suas opiniões e as dúvidas como antes É a sorte de quase todas as negociações de limites que não se deixam de tal modo definidos que os comissários devam constituirse árbitros nos casos duvidosos quase nunca se concluem Entretanto a Colônia foinos entregue em 1683 tomando dela posse Duarte Teixeira e se decidiu mandarse fortificar e povoar em grande escala todo aquele território o que se houvera realizado se não sobreviessem além da falta total de gente tantas calamidades como iremos contando VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhoramentos 1959 p 239 591 Varnhagen irá afirmar sobre o tratado de 1750 definidor de fronteiras que Depois da anulação do tratado de limites seguiram em Paris as conferências para o famoso pacto de família assinado em 15 de agosto de 1761 em virtude do qual as testas coroadas da casa de Bourbon isto é a França a Espanha e Nápoles se coligaram contra a GrãBretanha Portugal quis conservarse neutro mas cons trangido a decidirse declarouse por esta última nação levado como das outras vezes pelo instinto de conservação que não lhe descobre por aí risco da sua nacionalidade Desse modo Portugal com Espanha e por conseguinte também o Brasil com as províncias fronteiriças hispanoamericanas se encontraram em guerra VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhoramentos 1959 p180 592 Ibid p186 593 Varnhagen diz que Cevallos temendo que algum armistício celebrado na Europa não fosse de novo cedida a Colônia mandou minar com fornilhos as muralhas para as fazer saltar Igualmente se ocupou de mandar cegar o porto Prejudicial lhe foi o trabalho visto que a Colônia do Sacramento de pois das suas desgraçadas capitulações não voltou mais a pertencer ao Brasil Assim nesta resolução ao menos não foi Cevallos tão feliz e previdente como tem querido fazer em todas seus panegiristas começando pelos jesuítas Ibid p204 594 Ibid p187 Horizontes Identitários 176 seguir o único recurso que lhe restava lutar pela força na América já que na Europa era decididamente mais débil595 Assim mesmo que com certos reparos está sendo afirmado que o foco de força do Império português era maior no Brasil do que na própria Europa Com isso novamente Varnhagen está legitimando o poderio da nova nação Curiosamente nos conflitos com os castelhanos ele utiliza com frequência o termo contrários e não inimigo ainda que em oposição à os nossos como de costume596 Independentemente da mudança de categoria o sentido continua sendo o mesmo configurando a mesma articulação entre tragédia inimigo e herói Essa interpretação se justifica pela forma com que Varnhagen aborda um fato específico constituído por ele como uma tragédia de grande monta cuja responsabilidade se vincula à covardia de um comandante que não zelou pela pátria com a vocação para o sacrifício que se esperava dele Assim Varnhagen retrata a grande tragédia da Colônia de Sacramento Tinha apenas desembarcado e em começo as primeiras baterias de sítio de que ao todo haviam resultado na praça dezoito mortos quando no dia 29 desse mesmo mês o governador Vicente da Silva da Fonseca sem poder alegar falta de munições de guerra nem de boca sem ter havido assalto sem brecha aberta esquecido dos exemplos que tinha para imitar do seu bravo e heróico predecessor Antonio Pedro de Vasconcelos cometeu a covardia de entregar ao inimigo a praça que jurara ao rei defender até a última extremidade À sua memória se associará pois para sempre nos nossos anais um dos exemplos mais frisantes da desonra militar e do perjúrio e qualquer expressão de caridade por ela neste lugar fora repreensível e antipatriótica e tanto mais quando essa inqualificável rendição da mencionada praça além de outras perdas que trouxe ao Brasil foi a causa da morte do melhor governador e vicerei que teve o estado colonial Sim A notícia da perda da colônia chegou ao Rio de Janeiro em 6 de dezembro seguinte e o vicegovernador experimentou ao recebêla tão grande paixão que logo degenerou em um ataque maligno o qual se apresentou rebelde a todos os auxílios da medicina E entre delírios de dor pela perda da dita praça veio o conde de Bobadela a falecer 597 Dessa forma Varnhagen busca promover a adesão ao todo da pátria em função de uma dualidade identificação voluntária ou temor diante de um julgamento negativo 595 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 596 Ibid p197 597 Ibid p181 Salah H Khaled Jr 177 pela história poder que ele maneja598 A sua narrativa busca estimular comportamentos desejados e prevenir o acontecimento dos indesejados Varnhagen como construtor e sistematizador de uma memória nacional arbitrariamente atribui sentido e significado a fatos e condutas É ele Varnhagen quem define quem é honrado e quem não é quem deve ou não deve tomar assento na galeria de heróis da pátria e quem deve ser eternizado como exemplo negativo para vergonha dos seus descendentes e escárnio dos verdadeiros patriotas O vínculo estabelecido entre o fato e a morte de uma figura que é por Varnhagen elevada à condição de herói Bobadela é um recurso para comemorar um exemplo de patriotismo no passado que na verdade não é mais do que projeção A tragédia reforça a identificação nacional A morte de Bobadela é útil serve ao sentido pragmático da história de Varnhagen Não é Bobadela em si mas a função que ele exerce em uma narrativa nacional que pretende inspirar o leitor a seguir o exemplo de devoção ou evitar o pecado Varnhagen chega a extrapolar os limites do bom gosto neste caso específico Aqui permita o leitor que paremos um pouco e demos um desafogo ao coração pois sentimos as lágrimas arrasandonos os olhos entusiasmados com a presença de tanto brio de tanto zelo de tanta virtude de tanto patriotismo De tanto patriotismo sim que embora nascido na Europa Bobadela era todo do Brasil onde governara quase trinta anos A sua morte é o desfecho de um grande drama do qual ele fora protagonista ordenara o rei que o retrato desse virtuoso administrador se inaugurasse na sala do mesmo senado o retrato existe e não há muito se restaurou e se inaugurou de novo Mas hoje em dia esse testemunho de gratidão aliás louvável por parte de um município é insuficiente quando no decurso de um século o nome do herói tem crescido e o império brasileiro a flux cobre de bênçãos a sua memória Praza a Deus que venha um dia em que não só se levante uma estátua ao mesmo Bobadela v gr sobre o aqueduto 598 Gellner considera que o sentimento de adesão à nação se baseia em dois âmbitos por um lado a vontade a adesão voluntária e a identificação a lealdade e a solidariedade por outro lado o medo a coerção e o constrangimento Estas duas possibilidades constituem dois pólos ao longo de uma es pécie de espectro Serão raras as comunidades baseadas num ou noutro pólo de forma exclusiva ou predominante A maior parte dos grupos subsistentes baseiamse numa mistura de lealdade e identifi cação adesão voluntária e de incentivos externos positivos ou negativos em esperanças e medos GELLNER Ernest Nações e nacionalismo Lisboa Gradiva 1993 p8586 Varnhagen se aproxima muito do que afirma Gellner quando ao analisar a Revolução Pernambucana de 1817 diz que Assim não hesitamos em asseverar que foi o mesmo governador quem concorreu mais que ninguém para fazer triunfar a revolução pois com tal exemplo de covardia não era mais possível inspirar respeito nem temor e por conseguinte se fazer obedecer VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhoramentos 1959 p159160 Horizontes Identitários 178 da Carioca em seu tempo ultimado como seja pela gratidão nacional posto esse grande nome ao de alguma de suas povoações ou praças delas599 Eis a recompensa do patriota o reconhecimento da posteridade para o qual a história será fundamental O poder exercido pelo historiador é verdadeiramente assombroso A tragédia se faz tão presente na obra de Varnhagen quanto o ato heroico por um motivo singelo Como ele mesmo diz há vergonha na conduta desonrosa para com a pátria já constituída pela história no passado e portanto também há ensinamento na fatalidade E apresentadose Cevallos em 20 de fevereiro as guarnições dos fortes que estavam neles para os defender abandonaramnos e passaram para o continente a pretexto de que as forças atacantes eram muito superiores e de que teriam de capitular na ilha e pensando antes de retirarse para o Rio Grande Porém pouco depois capitularam na terra firme Dóinos ter que narrar estas verdades e quase nos vexamos tanto de tais misérias como se elas respeitassem a nossos próprios parentes Felizmente também os vexames podem servir de lição e geralmente mais aproveitam do que os muito bem conceituados preceitos filhos de maduro conselho600 Nessa frase Varnhagen sintetiza boa parte da sua concepção pragmática da história através de uma narrativa nacional que profundamente associada à noção de exemplo busca estabelecer modelos de comportamento O herói o inimigo e a tragédia são paradigmáticos impõem padrões de conduta São modelos por excelência e acima de tudo de fidelidade ao Estado e à Monarquia No próximo capítulo no qual a questão se desloca para o problema do EstadoNação como personagem central da narrativa nacional isso fica ainda mais claro O grande relato da nacionalidade era sobretudo útil oficial e pragmático 599 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p183 600 Ibid p203 Grifo nosso Salah H Khaled Jr 179 3 O ESTADONAÇÃO PROTAGONISTA DA NARRATIVA NACIONAL Neste capítulo o enfoque é deslocado para a questão central da narrativa nacional de Varnhagen o EstadoNação Dessa forma será demonstrado como o Brasil profundamente associado ao Estado e enquanto personagem principal da narrativa é retratado por Varnhagen face a uma série de situações tais como a sua relação com Portugal os jesuítas os movimentos rebeldes e a transferência do Estado português para o Brasil Finalmente o capítulo é encerrado com uma discussão sobre a concepção de nação em Varnhagen e o papel por ele exercido de acordo com a sua própria definição juiz do tribunal da história 31 A relação com Portugal na narrativa nacional Sobre a guerra da independência Varnhagen não a vê como uma verdadeira guerra Para ele o Brasil não se esquecerá jamais do seu tutor na infância e Portugal não esquecerá jamais dos socorros que o Brasil lhe prestou Nenhum deles é devedor do outro Ambos devem gratidão e louvores um ao outro Se a metrópole agiu às vezes com despotismo injustiça incoerência ignorância e governou mal não se deve condenála pois ela quis acertar sempre Não era o governo central que errava mas os governos locais com sua excessiva liberdade verdadeiros senhores feudais A metrópole agiu com rigor contra os homens que se voltaram contra ela e se foi muito rigorosa as razões do Estado justificam José Carlos Reis Uma vez que o personagem central do grande relato da nacionalidade de Varnhagen é o Brasil e mais especificamente um Brasil cujo motor é o Estado fica a pergunta de como esse personagem se relaciona com um coadjuvante de considerável importância que é Portugal Afinal como Varnhagen lida em sua narrativa com uma Horizontes Identitários 180 relação que por séculos foi de sujeição Como ele pôde configurar ou melhor prefigurar um Brasil nação no século XVI apesar da condição colonial e da subordinação a Portugal Varnhagen já apresenta no prólogo da 1ª edição da História Geral do Brasil o tom do tratamento que dará à antiga metrópole afirmando que em todo caso hoje nos lisonjeamos de poder com esta obra que preenche bem ou mal muitas lacunas na história dos feitos gloriosos dos antigos portugueses corresponder aos bons ofícios prestados pelo governo da metrópole tanto a nós pessoalmente como em geral a todos os brasileiros601 A resposta é portanto surpreendente A História Geral do Brasil mesmo que com as devidas proporções não é uma história somente de louvor ao Brasil Também é uma história de louvor a Portugal O tom é salvo raras e pontuais exceções de elogio enfático a Portugal e aos portugueses Entretanto mesmo que esse seja o tom a relação com a antiga metrópole representa em certa medida um problema para a narrativa da nação de Varnhagen Afinal o Brasil monárquico deseja manter seu vínculo com Portugal na medida em que é essa ancestralidade que lhe garante um possível lugar entre as nações europeias Logo a narrativa nacional precisa apresentar um ambiente de continuidade entre o Estado Português e o Brasileiro Não é possível abrir mão dessa herança em que pese a contraposição relativamente recente de interesses que resultou na Independência Varnhagen é um aspirante a conduzir o país à condição de nação desenvolvida segundo o padrão europeu É um intelectual a serviço do Estado monárquico e da dinastia de Bragança e logo não pode romper com Portugal não pode deixar de contemplar Portugal na narrativa nacional brasileira Por outro lado o próprio sentido de uma narrativa nacional relacionase à ideia de um Brasil que precisa pensarse como tal Um Brasil como Brasil e não apenas como mera continuidade de Portugal Um Brasil que precisa ter sentido próprio precisa ser percebido como nação como integrado como uno e indiviso agora e para todo o sempre Para que isso ocorra é necessária a invenção de um Brasil que tenha ao menos algumas características que lhe sejam próprias particulares suas E isso 601 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927pXI Salah H Khaled Jr 181 implica em diferenciação em relação a Portugal um outro personagem que estará constantemente presente no relato por definição do personagem maior que é o Brasil Como lidar com essa dualidade no campo de construção de uma memória nacional Varnhagen fez de certa forma através da sua narrativa nacional brasileira um elogio da colonização portuguesa Ele elogiou não somente a colonização portuguesa mas também Portugal especialmente na medida em que esses elogios poderiam de alguma forma se estender ao Brasil Isso pode ser demonstrado pela forma com que ele dá atenção a vários aspectos da cultura portuguesa em sua narrativa desde o primeiro tomo da História Geral do Brasil Assim Varnhagen reflete com evidente satisfação digamos agora duas palavras acerca do estado em que se achava a língua a literatura e a instrução no país em que se haviam criado os que vieram colonizar o nosso602 Para ele a língua portuguesa campeava já na virilidade603 Varnhagen não poupa elogios É a língua portuguesa disse um ilustre brasileiro poliglota e enciclopédico José Bonifácio bela rica e sonora menos dura e tarda que a alemã e a inglesa mais energética e variada ao ouvido que a italiana mais suave e natural que a castelhana e superior em tudo à francesa604 Não é por acaso que Varnhagen exalta a língua portuguesa605 Conforme Hobsbawm um dos critérios para a definição de uma nação nos oitocentos era o da existência de uma elite cultural longamente estabelecida que possuísse um vernáculo administrativo e literário escrito606 Exaltar a língua portuguesa também significa exaltar o Brasil e afirmar a sua viabilidade como nação Não se esgotam aí entretanto os elogios de Varnhagen aos portugueses Segundo ele a cultura intelectual de Portugal isto é o estado das letras e das ciências pode dizerse que andava então a par dos maiores países da Europa607 Um diferencial merece destaque especial 602 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 159 603 Ibidem 604 Ibid p 160 605 Para uma discussão sobre a importância atribuída por Varnhagen à língua nacional como elemento formador de uma consciência nacional ver WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 O autor aborda a questão a partir do trabalho de Varnhagen no âmbito da literatura em uma série de pequenos escritos esparsos 606 HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p49 607 VARNHAGEN Op cit p 160 Horizontes Identitários 182 a arte ou antes a ciência em que Portugal porém se avantajava a todas as nações era a marítima ciência característica da atividade do engenho de qualquer povo e que dá vida a uma arma árbitra do destino dos Estados e até dos continentes como a história nos ensina Enfim tudo concorria a nivelar este país com os outros mais adiantados nessa época em todos os ramos dos conhecimentos humanos608 Para Varnhagen há uma associação entre este desenvolvimento cultural e a expansão marítima O domínio da maior parte dos litorais da Ásia que segundo alguns concorrera à desmoralização dos portugueses produziu por lado nos ânimos tal energia que além da glória marítima e militar que a nação adquiriu e que será perdurável para sempre nos fastos da História universal e nos do progresso do espírito humano talvez que a essa energia deveu o grande desenvolvimento que tiveram então a sua literatura e língua609 No seu entender a valorização da antiga metrópole refletia muito bem sobre o Brasil e certamente agradava ao benemérito protetor do IHGB D Pedro II Percebe se na obra uma preocupação constante em preservar a imagem da antiga metrópole Essa preocupação manifestase por exemplo quando Varnhagen assegura a manutenção de uma relativa independência de Portugal durante a União Ibérica e também por extensão a inexistência de sujeição brasileira aos espanhóis610 Para ele apesar dos pesares essa união se demonstrou benéfica para o Brasil uma dádiva da Providência especialmente no que se refere a questões territoriais611 Como lhe é 608 Ibid p 160 609 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 22 610 Varnhagen afirma que A metrópole vencida pela astúcia de Filipe II e pelo apoio de uma nobreza egoísta e pouco patriótica sujeitouse a este rei apresentando mui pouca resistência e nas cortes de Tomar se resolveram as cláusulas de anexação Portugal aclamando o dito rei seguiria como estado independente governandose por suas próprias leis publicadas em português e usando nelas o sobe rano simplesmente do ditado dos reis portugueses No Reino e colônias serviriam os cargos do Estado unicamente os filhos delas e dele e só portugueses poderiam pela mesma forma ser delegados imedia tos do soberano quando não cometesse o cargo a príncipes ou princesas de sangue Assim o Brasil continuava e efetivamente continuou colônia de Portugal que sob o domínio castelhano conservou em geral como até ali o monopólio do nosso comércio em favor dos seus portos e produtos Mostrou se pois o Brasil absolutamente alheio à questão dinástica Não pode escapar o detalhe do quanto estranha soa a idéia de uma nobreza mais ou menos patriótica em pleno século XVI VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 366 611 Para ele Essa união devia parecer um dom providencial toda em seu benefício Por meio desapa receriam a dúvidas e questões que tarde ou cedo deveriam surgir de novo acerca da demarcação e traçado da sua raia segundo a linha reta designada pelo tratado de Tordesilhas ao passo que vassa los do mesmo príncipe que todos os demais Estados da América do Sul poderiam os povos do Brasil livremente comerciar com seus vizinhos Ibid p 168 Salah H Khaled Jr 183 peculiar Varnhagen aproveita a ocasião para louvar a nação brasileira mesmo em meio à adversidade afirmando que o Brasil se podia considerar a mais importante das possessões portuguesas que Filipe II havia agregado à sua coroa pois que as colônias da Ásia iam em manifesta decadência612 Porém se ele é generoso com os portugueses não poupa críticas aos espanhóis justamente para valorizar o diferencial brasileiro no continente613 Para Varnhagen é na inércia espanhola que se encontra a responsabilidade pelas dificuldades em manter o controle sobre o território brasileiro614 Os portugueses estão portanto praticamente isentos de culpa Assim pois enquanto em Portugal se consultavam os pareceres de tribunais e as sempre morosas juntas pouco adiantavam porque de ordinário não fazem mais que assinar o trabalho de um só que aliás o ativa e apura menos por isso que não recebe íntegras para si nem a responsabilidade nem a glória e enquanto os povos continuavam descontentes atribuindo como era razão a origem de tantas calamidades à sua união com a coroa de Espanha os holandeses se mostravam cada vez mais empenhados em que fosse protegida pelos Estados Gerais a nova conquista em Pernambuco615 Evidentemente essa interpretação é muito conveniente pois resguarda o prestígio da monarquia portuguesa o que nitidamente é a sua intenção Os reflexos negativos são inteiramente atribuídos à inércia burocrática e jurídica e sobretudo à indesejada união com os espanhóis Diante dessa condição Varnhagen chega a relatar com entusiasmo um plano que supostamente propunha o deslocamento da monarquia portuguesa para a América estabelecendo uma frente de resistência 612 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 22 613 Varnhagen é severo Fatal engano que dentro em pouco tinha de produzir cruéis decepções Aque le pequeno Reino bem que um tanto desorientado com a revolução social que nele haviam ocasionado as fortunas facilmente adquiridas na Ásia havia tido sempre o bom senso quanto à política do conti nente europeu de procurar aproveitarse da independência que lhe dava a sua situação dentro dele a fim de manter paz com todos enquanto pelo contrário os herdeiros de Isabel a Católica não contentes em estender suas conquistas pelos domínios que lhe oferecera o gênio perseverante de Colombo haviam sido levados pela ambição a sustentar guerras não só na Itália na França e na Alemanha e nos PaísesBaixos como até contra a Turquia VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 366 614 Para ele Se como seis anos antes em vez de socorros manda a corte ao Brasil uma poderosa armada de restauração os intrusos houveram agora sido expulsos e não teriam dominado ainda por vinte e três anos e sido causa de tantas perdas para o estado e de tantas calamidades para os par ticulares VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p 237 Grifo nosso 615 Ibid p 271 Horizontes Identitários 184 aos espanhóis616 Como não poderia deixar de ser ele acentua a contraposição de interesses e a existência de uma certa sujeição justamente para valorizar a eventual libertação Dessa forma quando se concretiza o rompimento da União Ibérica Varnhagen mal é capaz de conter seu entusiasmo quando veio a surpreendêlos em fevereiro desse mesmo ano de 1641 a notícia da revolução que se efetuara em Lisboa no 1º de dezembro de 1640 e comunicara como chama elétrica a todo o reino em virtude da qual ficava aclamado rei com título de D João IV o Duque de Bragança descendente dos reis avoengos portugueses e sucessor legítimo do afortunado D Manuel por sua avó a senhora D Catarina neta desse rei em cujo reinado o Brasil se patenteara no mundo civilizado617 A partir do rompimento com a Espanha Varnhagen trabalha com uma perspectiva de crescente associação entre interesses brasileiros e portugueses Nesse sentido os fatos ocorridos em Pernambuco onde se defrontam interesses brasileiros e holandeses são dignos de grande comemoração em Portugal A notícia da revolução e provavelmente já desta primeira vitória foi em Portugal recebida como era natural com grande satisfação e porventura contribuiu a que fosse promulgado o decreto de 27 de outubro 1645 dispondo que os primogênitos dos reis e herdeiros presuntivos da Coroa se intitulassem daí em diante Príncipes do Brasil618 616 Aqui Varnhagen demonstra rara razoabilidade afirmando que o plano em última instância redun daria em fracasso Parece que um D Pedro da Cunha a darmos crédito às palavras de seu des cendente fora de voto que ainda antes de se fazerem em Portugal esforços para resistência contra todo o poder de Filipe II se empregasse os poucos reforços disponíveis para armar uma expedição marítima em que os fiéis Penates do mitológico fundador de Ulisseia viessem preservar no Aquém mar o nome e a coroa de Portugal estabelecendose com toda a gente no Brasil onde porventura os amparariam as nações da Europa rivais da Espanha Este grande pensamento realizado logo e antes que os governadores do Brasil tivessem tempo de prestar juramento ao novo soberano estrangeiro e que este pudesse dar providências acerca de uma surpresa que se lhe fazia tão e em país a que tão pouca importância ligaria houvera no século XVI visto proclamarse uma monarquia independente na América Cumpre porém declarar que essa monarquia se bem que já a si o Estado se nutria de ren das próprias não teria ainda elementos suficientes para cuidar de sua prosperidade nem gente para tratar das coisas da governação e que posto como naturalmente se poria logo o novo Reino à mercê e dependência de alguma das rivais da Espanha concluiria por ser dela presa VARNHAGEN Fran cisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 367368 617 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 319 618 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 25 Salah H Khaled Jr 185 Príncipes do Brasil Evidentemente que o laço que unia o Brasil a Portugal era de irmandade e não de sujeição e subordinação Varnhagen está preocupado em definir a natureza desse vínculo como algo positivo afinal tinha em mente os interesses de seu patrono D Pedro II Entretanto apesar disso o cenário era preocupante em virtude da insistência dos holandeses Nessa questão Varnhagen não deixa de enfatizar que a resistência aos invasores se deveu principalmente à valentia dos colonizadores mesmo diante de um eventual esmorecimento da Corte portuguesa619 Afinal mesmo que Varnhagen elogie Portugal é a história da nação brasileira que ele está inventando e comemorando620 Ele inclusive ressalta que nos momentos mais delicados de afirmação da recém proclamada independência portuguesa o Brasil constituíase para muitos em uma alternativa viável de sobrevivência para a Corte621 Varnhagen assim argumenta que diante da demonstração de inviabilidade na Europa o Brasil já se apresentava séculos antes da transferência em função do Bloqueio Continental como porto seguro para a continuidade da dinastia portuguesa Dessa forma ele legitima o Brasil pela sua longevidade buscando promover o sentimento patriótico Finalmente com o envolvimento inglês a questão foi definitivamente resolvida Com a assinatura do tratado em Haia 1661 o interesse de outra nação veio por termo às questões com a Holanda622 E logo em seguida a mediação inglesa impôs pouco depois o reconhecimento da independência de Portugal pela Espanha623 Aqui não parece haver o mesmo entusiasmo diante do triunfo uma vez que o feito não foi protagonizado diretamente pelo Brasil ou por Portugal Varnhagen não se 619 Varnhagen afirma que se preocuparam alguns estadistas e com eles o Padre Antônio Vieira que chegou a opinar que não havia outro remédio mais que abrir mão da reconquista de Pernambuco em favor dos holandeses e sustentou valentemente semelhantes idéias em um parecer com data de 14 de março 1647 que hoje corre impresso Essas idéias Vieram até a ser aceitas pela corte que deu instru ções ao seu embaixador na Holanda e novas ordens para o Brasil onde foram recebidas com pasmo e felizmente não foram executadas sendo substituídas daí a pouco por outras em contrárioIbid p 50 620 Por isso ele ressalta Portugal desde que havia recebido circunstanciadas notícias da esplêndida vitória dos Guarapes notícias que tinham feito mudar inteiramente a opinião sem essa vitória é mais provável que parte do Brasil haveria sido entregue aos holandeses pela Corte nas aflições em que se via Ibid p 56 621 Varnhagen diz que Durante o mencionado bloqueio de Ruiter passara Portugal os instantes mais críticos da conservação da sua recémproclamada independência no ano de 1659 viuse o novo reino na paz dos Pirineus abandonado pela França cujo ministro em Portugal chegou a indicar o pensamento de ficarem daí em diante os duques de Bragança por vicereis perpétuos do Brasil com o título de reis VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhoramentos 1959 p 207 622 Ibid p 208 623 Ibid p 210 Horizontes Identitários 186 preocupa somente com resultados Ao contrário lhe interessa como são atingidas as circunstâncias favoráveis na medida em que as ações por excelência implicam nos exemplos de fidelidade o ao todo da nação que ele deseja suscitar É justamente pensando de acordo com os critérios da pedagogia nacional que Varnhagen quando trata do episódio Amador Bueno em São Paulo e da renuncia em ser rei o cobre de elogios pois considera louvável a não insurgência contra o Estado Português e sua coroa624 Não só é louvável como sobretudo exemplar A fundação de sentidos é evidente a hipótese de um Brasil que rompe com Portugal por completo é inteiramente inaceitável A separação quando finalmente ocorrer deve ocorrer sob o fio da continuidade e do respeito à autoridade monárquica Entretanto ainda que Varnhagen se preocupe em preservar Portugal isso não significa dizer que é inteiramente tolerante Sempre que considera que houve omissão descuido ou excesso por parte da metrópole não deixa de exercer juízo desfavorável Apenas reprova com o devido cuidado como este trecho evidencia fazemos estes reparos sem nenhumas prevenções nem tendências a censurar Os erros provinham de ignorância crassa não de intenção A si mesmo Portugal não se governava então melhor625 Este é em linhas gerais o tom que Varnhagen adota quando crítica É uma crítica complacente Porém quando se refere ao alvará de proibição de fábricas e manufaturas de ouro prata sedas e linho no Brasil no final do século XVIII é extremamente contundente Diz o alvará que desde alguns anos se tinham difundido em diferentes capitanias do Brasil grande número de fábricas e manufaturas Era talvez o ato mais arbitrário e opressivo da metrópole contra o Brasil desde o princípio do reinado anterior e houvera justificado qualquer oposição ou rebeldia que a ele apresentassem os povos Em vez desta que seria justíssima por sua origem outra se manifestou e tomou corpo chegando a converterse em uma tal ou qual conspiração626 624 Se acreditarmos na tradição que no século passado recolheu um monge beneditino filho da pro víncia houve até pensamento de independência ante o fato se realmente sucedeu da rejeição de uma coroa neste Estado ainda então nas faixas da infância não sabemos qual admirar mais se o juízo são do que descobriu que tal coroa não podia então ser perdurável e menos possuída por si num Estado que carecia de todos os elementos constitutivos da nacionalidade e que ainda não poderia apresentarse com dignidade ao lado dos outros povos do universo mantendo a alta categoria de na ção se abnegação do homem desambicioso que sacrificou sua elevação no altar da pátria evitando o fracionamento desta ou pelo menos poupandolhe uma sanguinolenta guerra civil Ibid p 131 625 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 269 626 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p288289 Salah H Khaled Jr 187 Aqui Varnhagen referese à Inconfidência Mineira sinalizando com um ponto de tensão que o põe em grande dificuldade pela necessidade de acomodar uma rebeldia com um caráter em alguma medida nacional contra a monarquia Essa mesma tensão se apresenta quando os interesses da metrópole e por extensão da coroa se veem confrontados pelos jesuítas movimentos autonomistas e rebeliões como será visto a seguir 32 O Estado dentro do Estado os jesuítas Por mais compromissado que possa estar com a religião como fator de civilização associado nessa tarefa com o Estado é um crítico implacável toda vez que a Igreja ou seus padres agem de maneira a pôr em perigo a presença do Estado Nilo Odalia Neste trecho é discutida a forma com que Varnhagen aborda a presença dos jesuítas no Brasil na medida em que essa questão evidencia o quanto ele é inflexível na defesa dos objetivos do Estado Isso não é por acaso Varnhagen inventa uma narrativa que é acima de tudo nacional mas em um sentido específico de adesão aos objetivos do Estado Para Varnhagen parece haver uma equivalência entre a ideia de narrativa nacional e a defesa dos parâmetros oficiais Logo na sua narrativa de acordo com seu enfoque pragmático não há espaço para contraposição à supremacia do EstadoNação A lição a ser extraída do seu texto é constantemente reiterada não pode haver oposição ao que ele configura como interesse maior da nação Se Varnhagen é tolerante com a monarquia portuguesa censurando somente seus equívocos mais evidentes o mesmo não pode ser dito a respeito dos jesuítas uma vez que ele é extremamente crítico dessa ordem religiosa Mesmo que reconheça um certo favorecimento à unidade colonial em virtude das contribuições da ordem na educação Varnhagen os associa à grande parte dos percalços da colonização e em especial à questão indígena Por exemplo ele censura implacavelmente as providências de mal entendida filantropia decretadas depois pela piedade dos reis e sustentadas pela política dos jesuítas que foram a causa de que os índios começassem pouco a pouco a ser chamados à Horizontes Identitários 188 civilização pelos demorados meios da catequese e que ainda restem tantos nos sertões devorandose uns aos outros vexando o país e degradando a humanidade627 Varnhagen considera que a ineficiência dos jesuítas em integrar os índios à civilização constituise em uma verdadeira vergonha nacional um resto bárbaro em meio ao padrão civilizatório europeu que ele deseja que triunfe por completo no país Além disso a questão indígena entendida como o fato dos jesuítas terem se tornado uma espécie de autoridade quanto ao assunto implicou segundo ele em uma série de problemas que advém da disputa pela sua posse Segundo Varnhagen o monopólio da ordem sobre os índios colocava os jesuítas em confronto direto com o povo628 Estranhamente o povo que praticamente sequer é mencionado na narrativa de Varnhagen ganha espaço enquanto elemento a ser contraposto aos jesuítas629 São muito raras as ocasiões em que Varnhagen utiliza o termo povo e praticamente todas elas são em oposição aos jesuítas o que não deixa de causar certa estranheza630 Por exemplo quando Varnhagen trata das disputas com os jesuítas em relação aos índios em São Paulo utiliza várias vezes o termo povo como em prejuízo do povo631 ou procuradores do povo632 e seguiramse graves questões entre o povo e o administrador eclesiástico633 Essa utilização de uma abordagem que estabelece campos dicotômicos em um confronto de caráter maniqueísta entre o bem e o mal 627 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 220 628 Para Varnhagen Os povos viram na pretendida filantropia e proteção dos índios uma verdadeira decepção contra eles quando os braços começavam a escassear para as primeiras necessidades da indústria A corte sem conhecimento do caráter dos índios e influída pelos mesmos jesuítas julgou a princípio dever libertar aqueles completamente Representou o povo em contra provando que os que os que pertenciam às aldeias ou missões da Companhia eram sim absolutamente imunes e prote gidos contra toda classe de tropel estranho mas que bem considerando o caso eram verdadeiros servos pois trabalhavam como tais não só nos colégios como nas terras chamadas dos índios que acabavam por ser fazendas e engenhos dos padres jesuítas VARNHAGEN Francisco Adolfo de His tória geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 333 629 Varnhagen assinala que os moradores apresentavam argumentos debalde pediam eles para o seu gentio do Brasil no Brasil as mesmas práticas e leis seguidas na África com o gentio da África Os jesuítas a tudo se opunham pela simples razão segundo seus inimigos que da África não pretendia eles o domínio não lhes agradava o clima Ibid p 342 630 Uma das raras exceções é quando ele diz que As mencionadas vitórias não faziam o governador nem seu filho mais populares Queixouse o povo que eles decidiam a guerra sem tomar acordo com os que em tais negócios deviam ser mais interessados o povo estava vexado VARNHAGEN Fran cisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p280281 631 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 132 632 Ibid p 136 633 Ibid p 202 Salah H Khaled Jr 189 não é novidade conforme visto anteriormente Assim povo e jesuítas acabam por exercer funções narrativas semelhantes àquelas exercidas pelas categorias dos nossos e do inimigo Isso sem sequer mencionar a que grupo efetivamente Varnhagen se refere quando utiliza o termo povo O fato é que mais uma vez ele se vale de uma situação na qual há choque de interesses para trabalhar com uma lógica exemplar Portanto novamente são impostos modelos de comportamento paradigmas da virtude nacional através da narrativa da nação Resta saber como isso funciona uma vez que o antagonismo entre jesuítas e povo não é tão evidente para o leitor como por exemplo entre holandeses e brasileirosportugueses Varnhagen trabalha o antagonismo a partir de uma outra perspectiva a qual dá destaque aos pontos em que há conflito de interesses enfocando um grupo que ele denomina povo que por excelência é prejudicado pela ordem Nessa questão mesmo que a disputa não tenha a princípio qualquer caráter nacional Varnhagen não suaviza em nada a contraposição de interesses como faz entre a metrópole e a colônia Ao contrário chega ao ponto de referirse a uma luta propriamente dita entre a ordem e o povo634 e condena veementemente as disposições a respeito da tutela dos índios pelos jesuítas que considera como um favorecimento injustificável635 Varnhagen não se mostra nada parcimonioso com os jesuítas Seu tom é quase que invariavelmente de repreensão principalmente quanto à jurisdição sobre os índios Segundo ele os padres jesuítas não se conduziram sempre neste assunto melindroso com a prudência que as circunstâncias demandavam e que em outras épocas do Cristianismo fora seguida e aconselhada pela Igreja636 634 Varnhagen afirma que Eram ainda então os religiosos da Companhia os únicos que havia nas colô nias brasileiras assim como eles tinha exclusivamente de travarse a luta mui freqüente entre o povo e o clero quando este chega a alcançar grande preponderância ou aspira a uma espécie de supremacia nos negócios temporais VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p333334 635 Para ele Estas disposições foram tomadas com tanta latitude em favor dos jesuítas que come çaram os habitantes a queixarse de que os padres os vexavam com arbítrios e sofismas sempre que podiam mas o clamor foi geral quando a experiência mostrou os resultados delas que não eram outros senão privar de braços constituindose uma verdadeira associação industrial com a qual o lavrador pobre em favor da Companhia que desde logo começou a medrar e a ganhar consideravelmente na cultura de suas terras nenhum capitalista podia competir VARNHAGEN Francisco Adolfo de Histó ria geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 336 636 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 163 Horizontes Identitários 190 Nesse sentido ele ironiza as estipulações em favor dos jesuítas e chega a responsabilizálos indiretamente pela escravidão africana637 Para Varnhagen essas medidas trouxeram grande prejuízo ao país Além disso também culpa os jesuítas por levarem o povo a descumprir a lei em função da falta de mão de obra o que gerou focos de anarquia e rebelião pondo em risco a estabilidade Está claro que Varnhagen vê a ordem com grande censura devido ao fato da mesma constituirse em um foco de poder que por vezes se rivalizava com a autoridade do Estado Como assinala Wehling evocando Capistrano de Abreu Varnhagen não via um confronto entre liberdade e escravidão mas entre os jesuítas que manobravam os índios para atender a seus próprios desígnios e os patriotas que desejavam incorporálos à sociedade civil638 O confronto chega a ser delineado como uma disputa entre a nação e um corpo estranho nela estabelecido que como tal deve ser expurgado para o bem comum Dessa forma Varnhagen é duro com os jesuítas na medida em que eles interferiam com o desenvolvimento colonial ao privar o povo de braços para o trabalho e ao mesmo tempo não civilizavam os índios639 Se nesse ponto a crítica já é severa quando a intromissão se estende aos assuntos do Estado se torna ainda mais grave640 Para ele a interferência dos jesuítas em relação aos índios chegava ao ponto de alavancar impérios Aqui a questão começa a assumir contornos ainda mais preocupantes na medida em que ele considera que os jesuítas começavam a configurar uma ameaça à soberania nacional Varnhagen enxerga uma intenção 637 Para Varnhagen Daqui data verdadeiramente como em outro lugar dissemos o maior incremento da importação de escravos africanos Os moradores vexados pelas dúvidas que de contínuo nasciam sobre as provas que se lhes exigiam da legitimidade da posse dos índios começavam a preferir braços cuja legitimidade lhes fosse mais fácil justificar Para abonar os escravos pretos então que não havia africanos livres bastava a cor do rosto VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 336 638 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p9899 639 Ele comenta que Acerca do melhor meio de governar os índios já pelo que dito fica se sabe que o governador não votava pelas aldeias dos padres Pelo contrário era de opinião que religiosamente o índio pouco ganhava ao passo que as cidades perdiam população as terras braços próprios à cul tura e o gentio não adquiria hábitos de civilização polícia e pudor que só as grandes povoações pro porcionam VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p112113 640 Varnhagen afirma que No governo de Men de Sá haviam os padres adquirido no Brasil tal ascen dente que já para o fim tinham mais poder que o governador Por uma carta régia obtiveram eles a fim de fabricarem dois colégios o produto das condenações e penas pecuniárias impostos pelas magistra turas judicial e administrativa com direito de nomearem o recebedor VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 345 Salah H Khaled Jr 191 evidente dos jesuítas nesse sentido Afinal não é por acaso que eles propunham que tais abusos em relação aos nativos só poderiam acabar entregandose à Companhia de Jesus toda jurisdição temporal sobre os mesmos índios conforme a mesma companhia tanto aspirava no Sul do Brasil a exemplo do muito poder que outros dos seus companheiros já sobre eles exerciam no vizinho Paraguai onde chegaram a fundar um pequeno império independente exclusivamente em proveito da dita companhia641 Varnhagen não poderia expressar sua censura de modo mais claro do que utilizando o termo pequeno império independente Ele não esconde o desprezo que tem por essa petulância da ordem que pretendia se constituir como politicamente independente Como se isso não bastasse para Varnhagen a situação se agravou ainda mais em função das providências que vieram a ser convertidas em lei de 9 de abril de 1655 concedendo à Companhia toda a supremacia sobre os índios com exclusão de outra qualquer ordem ou poder sendo o próprio Padre Vieira declarado logo chefe ou superior com poderes quase ilimitados642 Para ele a audácia dos jesuítas revelavase em toda sua extensão Varnhagen não o diz explicitamente mas fica claro que considera que poderes ilimitados são uma atribuição exclusiva do rei Segundo ele a partir daí a situação se deteriorou em definitivo Varnhagen afirma que essa lei fez com que os conflitos entre o povo e os jesuítas se intensificassem ainda mais643 A forma com que o Padre Viera é retratado nessa questão permite elaborar um pouco mais a discussão anterior sobre a função exercida na narrativa pelos personagens escolhidos por Varnhagen O mesmo Varnhagen que em outros trechos saúda Viera como exemplo a ser seguido e imitado agora se volta contra ele para demonstrar a reprovação que deve ficar gravada na mente do leitor quando há um campo que se contrapõe aos interesses do que ele configura como sendo do todo Como já ressaltado anteriormente o exemplo a ser seguido ou evitado é o que 641 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 163 642 VARNHAGEN Francisco Adolfo de Historia geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959p 193 Grifo nosso 643 Sendo assim dirigiram pois aqueles ao padre Vieira 15 de janeiro de 1661 uma representação queixandose da falta de escravos falta que tinha feito diminuir as rendas públicas impossibilitando aos moradores de pagarem até a côngrua ao vigário da matriz e a esmola dos capuchos e obrigando os a fintarem o povo para poder sustentar a tropa Ibid p 195 Horizontes Identitários 192 propriamente conta e não os homens de acordo com os fins paradigmáticos da sua narrativa Varnhagen não se contém em suas críticas Para ele os jesuítas constituíamse em verdadeiros parasitas que prejudicavam os interesses do Estado644 De qualquer forma ele não deixa de reconhecer que apesar da ingerência nos assuntos estatais e nos interesses populares acabaram contribuindo indiretamente para a ampliação das fronteiras do país645 Obviamente que não por méritos seus pois rivalizavamse com a autoridade estatal Segundo Varnhagen lenta e gradualmente a verdadeira natureza dos padres foi sendo revelada tratavase de uma ameaça concreta a própria soberania nacional Essa revelação ocasionou a abolição da ordem primeiro na Espanha e depois em Portugal646 Na narrativa nacional de Varnhagen a presença de uma entidade com fins próprios contrários aos interesses do Estado certamente não poderia ser tolerada Por isso Wehling considera que os argumentos de Varnhagen contra os jesuítas são os de um adepto da razão de Estado contra as forças centrífugas que prejudiquem aqueles objetivos647 Em virtude disso Varnhagen não poderia deixar 644 Nesse sentido ele comenta que Acerca do estado do Brasil nesse período queixas dos povos e suas necessidades chegou até nós e se acha impressa uma curiosa representação na qual se ad verte a tendência devorista das ordens religiosas que não pagavam nenhum tributo e ameaçavam em poucos anos sorver a si o Brasil todo Ibid p 269 645 Varnhagen comenta que A questão mais espinhosa em São Paulo como em todo o Brasil não era a das minas que seguiamse lavrando pacificamente como ainda pouco rendosas era a dos índios aos quais os religiosos da Companhia tanto queriam amparar que chegava a ser impossível a nenhum morador exceto os mesmos religiosos o valerse do serviço deles ainda mediante contratos de paga de aluguel ou soldada E o pior era que os padres tinham também fazendas e engenhos e os seus gê neros competiam no mercado com os do povo que pagava mais caro os braços que necessitava para a sua indústria Os moradores de São Paulo julgandose oprimidos por arbítrios que classificavam de hipócritas e até de interesseiros e necessitados de braços para a agricultura e a lavra de minas em vez de fazer contratos com os que estavam sujeitos aos jesuítas ou de irem buscar negros além dos mares com bárbara crueldade nos porões do navios assentaramse de valerse de outro meio aliás menos vil que este último por isso mesmo que mediava uma luta na qual expunham suas vidas Organizaramse em bandeiras e começaram a ir prender índios bravos mui longe e fora da jurisdição dos padres Fi zeram bem Afirmálo fora tão pouco humano como defender menos nobremente qualquer escravidão O certo porém é que os interesses do Estado não estão em alguns casos temporariamente de acordo com os sentimentos da mais generosa filantropia que aliás desde séculos prega e proclama louvavel mente a Igreja É assunto melindroso sobre que mais vale discorrer menos Não se nos leve porém a mal se ousamos pedir que se deixe em paz a memória dos primeiros cristãos nascidos na terra em que foi embalado o nosso berço quando os audazes aventureiros a quem a nação brasileira deve a vastidão de suas fronteiras VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p5253 646 Dessa forma a ingerência dos padres das missões nessa rebeldia dos índios do Uruguai foi pa tenteada com documentos às duas cortes de Lisboa e Madrid por Gomes Freire e Valdelírios acres centemos desde já que dela e por conseguinte do tratado de 1750 veio a proceder a abolição da Companhia de Jesus porventura discutida em Madri antes de efetuarse em Portugal VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhoramentos 1959 p135 647 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p169 Salah H Khaled Jr 193 de comemorar a ação de Pombal por ele já louvado em função de outras iniciativas Se os padres jesuítas nas fronteiras do Sul se haviam apresentado como cúmplices de índios sublevados do lado do Norte apareceram eles igualmente acusados de promover hostilidades à execução do tratado informações que provavam que tudo era manejado por um plano concertado Então Pombal conheceu o imenso poder da Companhia de Jesus que constituía já no Estado outro Estado e resolveu coarctarlhe a influência 648 A expressão já no Estado outro Estado evidencia o quanto Varnhagen considera perniciosa a presença da ordem Sua análise claramente delimita esferas de poder649 Mesmo sendo ele um adepto convicto do cristianismo e defensor da religião como instrumento civilizador e difusor da moral não deixa de ver os jesuítas como ameaça na medida em que concorriam com a soberania estatal Isso não significa que ele não reconheça nenhum mérito na ordem mas que face ao que acabou por representar foi justamente abolida650 Novamente fica evidenciado o exemplo posto pelo castigo inevitável imposto para aqueles que se confrontam contra os desígnios do Estado Nesse sentido o fim da Companhia foi em seu entendimento inteiramente favorável ao país e até causa de júbilo pela remoção de um obstáculo ao seu desenvolvimento651 Enfim as suas considerações finais sobre os jesuítas são extremamente severas 648 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p137138Grifo nosso 649 Para ele O triunfo completo de Pombal se manifestou pela régia sanção dada à lei de 3 de setem bro de 1759 que aboliu nos seus reinos a ordem dos jesuítas Nada mais natural na órbita do seu po der e regalia Os jesuítas haviam sido admitidos protegidos e doados em Portugal e suas conquistas pelo chefe supremo da nação para que eles pudessem à mesma nação ser de proveito como efetiva mente foram Por isso mesmo ninguém era mais competente do que o mesmo chefe para lhes retirar a proteção e não os consentir mais no país apenas visse que sua permanência produzia contínuos conflitos de autoridade concorrendo a nivelar as barreiras que Cristo marcou entre Deus e César entre a Igreja e o Estado o espiritual e o temporal o sacerdócio e o império Ibid p140 650 Portanto Quanto a Companhia de Jesus respeitável por tantos títulos que deu ao mundo tantos talentos insignes e à igreja vários santos instituição que longe de ter infância começou logo varonil mente justo é confessar que prestou ao Brasil alguns serviços bem que por outro lado parcialismo ou demência fora negar quando os fatos o evidenciam que por vezes pela ambição e orgulho dos seus membros chegou a provocar no país não poucos distúrbios VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhoramentos 1959p141 651 Segundo ele a abolição da Companhia foi favorável aos povos pela desamortização dos seus bens que pelos preços baratos com que foram vendidos serviram como de indenizar a perda dos bra ços dos índios então de todo libertados bem como pouco depois fossem substituídos em maior escala com os dos africanos Ibid p142 Horizontes Identitários 194 Não defendemos os jesuítas como alguns dizendo que eles no Brasil eram contra os mandões e em favor dos povos quando a história nos prova o contrário que os mandões mais arbitrários os protegiam sempre e os povos sempre contra eles se levantavam e quando eles feito voto de pobreza eram a pretexto dos seus colégios tão ricos e manejavam tantos engenhos e terras e escravaria e até marinha de comércio o que justamente contribuía para que os povos por natural inveja os amassem menos 652 Dessa forma Varnhagen associa os jesuítas às células de poder local que ele enquanto inimigo declarado do provincialismo combate em nome da unidade nacional Assim a associação entre o provincialismo e ilegitimidade por excelência das pretensões dos jesuítas garante o desprestígio de ambos e um novo argumento para incentivar os modelos de conduta desejados A experiência com os jesuítas havia se mostrado infrutífera e prejudicial ao país à sua unidade ao seu desenvolvimento A partir daí tratase de reforçar cada vez mais a autoridade estatal e não admitir questionamento a sua soberania sobre o território nacional Sendo assim A supressão dos jesuítas não deu lugar à entrada de outra ordem religiosa no Brasil pois havia tempo que a corte reconhecera que não convinha favorecer demasiado o aumento dos religiosos neste principado653 Se Varnhagen já se mostra intolerante em relação aos Jesuítas fica a questão de que forma ele retrata as rebeliões ocorridas na colônia e que exemplos ele busca fundar a partir de tais movimentos 33 Revolta e ilegitimidade os movimentos e sua apreensão Varnhagen expressa as formas de pensamento ajustadas ao sistema colonial Ele vê o Brasil como o vêem os seus administradores e demais representantes da mentalidade oficial e os nãoinquietos Estes vêem qualquer idéia de revolução no Brasil no final do século XVIII como uma maldade um desrespeito ao rei José Carlos Reis Varnhagen privilegia o EstadoNação e portanto um Brasil de cunho oficial como elemento central da sua narrativa Sendo assim como intelectual a serviço de uma visão de Estado é evidente que Varnhagen censuraria os movimentos que se 652 Ibid p143 653 Ibid p144 Salah H Khaled Jr 195 posicionaram no passado contra os objetivos oficiais Essa posição conscientemente pragmática faz com que ele enxergue os fatos e atribua sentido a eles a partir desse ponto de vista marcado pela sua orientação conservadora Nesse sentido Varnhagen dá tratamento muito desigual em sua obra de um lado ao que ele vê como movimentos que expressam o surgimento de um ideal nacional e de outro movimentos que vão de encontro aos fins e à autoridade do Estado654 Na Guerra dos Mascates por exemplo Varnhagen enxerga uma contraposição entre interesses de brasileiros e portugueses mas há uma grande tolerância e até mesmo conivência Sabendo de quanto são capazes as paixões políticas e falto de provas convincentes cremos que nada ganharíamos em fazer a história concorrer ao estéril empenho de manchar a reputação dos avós de alguns cidadãos honestos Demais firmes na convicção de que toda guerra civil é uma desgraça nacional esforcarnosemos por mencionar nessa poucos nomes Digamos entretanto desde já que a insurreição se chamou geralmente dos Mascates expressão com que na Ásia se nomeavam os vendilhões e que na língua portuguesa veio a produzir o verbo mascatear aplicado aos que mercadejam a retalho655 Varnhagen manifestase imparcialmente em relação ao conflito posicionando se como um cientista à procura da verdade656 Para ele há no movimento uma guerra civil que embora deva ser entendida como uma verdadeira desgraça nacional não merece uma repreensão mais severa pois não houve posicionamento contra os interesses do Estado nem florescimento de uma identidade regional657 E o mais importante ambos os lados professavam lealdade ao rei658 O fato é que por se tratar 654 Para Odalia Sua preocupação constante com o Estado levao a fazer uma clara distinção entre os movimentos que podem ser vistos como a expressão de uma incipiente nacionalidade Sua admiração e preferência pelos olindenses contra os mascates ou suas palavras candentes de admiração por Be quimão líder fracassado da revolta do Maranhão parecem indicar uma contradição insanável em sua maneira de ver a Inconfidência Mineira e a Revolução de 1817 às quais não poupa palavras ácidas de crítica e desprezo ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p82 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 655 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p316317 Grifo nosso 656 Varnhagen expõe que Para a história dessa guerra civil quase podemos dizer que nos sobram documentos e as crônicas contemporâneas onde há que buscar a verdade estreme das paixões de partido VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Me lhoramentos 1959 p 317 657 Para Odalia toda sua simpatia recai sobre os olindenses porque estes representam a aristocracia da terra e são brasileiros enquanto os do Recife representam os estrangeiros os portugueses ODA LIA Op cit p85 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtextoup000007pdf 658 Varnhagen considera que Já estava em campo a guerra civil Escusamos dizer que cada um dos Horizontes Identitários 196 de uma rivalidade local em que não havia questionamento à autoridade estatal não há necessidade de repreensão De qualquer forma Varnhagen não deixa mesmo nesse caso de manifestar a sua infelicidade diante da discórdia instalada e como lhe é peculiar de atribuir um caráter pejorativo a qualquer possibilidade revolucionária Segundo Varnhagen A maior parte dos chefes do partido aristocrático pernambucano se tirou devassa e foram ou seus parentes presos e declarados inconfidentes O bispo foi deportado para as bandas do Rio de São Francisco Os Camarões e Tundacumbes aproveitaram dessas perseguições para exercerem suas vinganças as quais unidas aos arbítrios dos delegados da justiça chegaram a criar um partido sinceramente revolucionário que se tivesse forças houvera levado avante sabe Deus que planos de desesperação e em tal extremo bem que afinal teriam que ceder extenuados e debilitados pudera a capitania chegar nada menos que a haver nadado em um mar de sangue Em caso tal deveram os homens importantes do país aconselhar ao povo resignação para pela revolução a que levasse o desespero não vir a sofrer maiores males Cremos poder resumir o triste estado de Pernambuco pior sem dúvida que na época mais despótica do domínio holandês 659 Já na Revolta de Bequimão quando o que está em jogo são os interesses da província do Maranhão prejudicados pelos jesuítas e pela Companhia de Comércio do Maranhão Varnhagen enxerga conotação positiva como havia feito em relação aos conflitos com os holandeses exaltando a declaração do chefe Manuel Bequimão de que pelo Maranhão dava satisfeito a vida e comemora as palavras solenes que eternamente encontrarão eco e simpatia não só entre os Maranhenses como em todos os corações bem formados660 Segundo Wehling a diferença significativa que explica a simpatia de Varnhagen pelo movimento se explica possivelmente pelo seu liberalismo econômico que o fazia refratário aos privilégios mercantilistas das companhias de comércio661 Além disso havia contrariedade com os jesuítas um dos alvos prediletos de Varnhagen dois partidos invocava o nome do rei e se inculcava com a razão e a justiça por sua parte apodando o contrário de rebelde e traidor Isto oficialmente A plebe desforravase segundo seu costume no dar as alcunhas mais ou menos aviltantes Os partidários dos olindenses começaram a chamar seus con trários do Recife Mascates aos do Sul Camarões e aos do Norte Sipós e Tundacumbes Os do Recife vingavamse denominado Pés rapados aos nobres olindenses VARNHAGEN Op cit p 318 659 Ibid p 322 660 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 248 661 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p184 Salah H Khaled Jr 197 A postura de simpatia em relação a tais movimentos não se estende de forma alguma à Inconfidência Mineira à Conjuração Baiana e posteriormente à Revolução Pernambucana de 1817662 Para Varnhagen a Inconfidência Mineira e a Revolução de 1817 são a negação do papel do Estado na constituição da Nação São movimentos que mal escondem regionalismos e provincialismos Como tais devem ser combatidos para efetivar a supressão da identidade regional um dos objetivos do pragmatismo por trás da narrativa nacional Não é por acaso que José Honório Rodrigues vê em Varnhagen um verdadeiro oficialismo manifesto em seu horror ao inconformismo Wehling em sentido semelhante aponta que não há dúvida que Varnhagen é favorável a tudo que represente o status quo entendido como equilíbrio do sistema colonial manutenção da unidade política e controle sobre a plebe desordeira e demagógica663 Entretanto por mais oficialista que Varnhagen possa ser isso não afasta o fato de que de alguma forma tais movimentos precisam ser contemplados pela narrativa nacional A Varnhagen cabe atribuir sentido e significado cabe cristalizar uma memória sobre essas revoltas garantindo que as mesmas não exerçam uma influência perniciosa sobre a consciência dos brasileiros Como movimentos que se posicionaram de forma contrária aos interesses do Estado é evidente que devem ser rigorosamente reprovados A questão é como promover esse desdobramento dentro da narrativa Essa problemática começa a aparecer quando Varnhagen trata dos chamados movimentos anticoloniais que implicam em uma série de novas circunstâncias as quais ele teve que de alguma forma se adaptar Se até então sua História Geral havia sido praticamente uma história conjunta do Brasil e Portugal as chamadas revoltas anticoloniais começam a fazer transparecer o tipo de tensão que eventualmente desembocaria na Independência O título do capítulo é deveras sugestivo Idéias e conluios pró independência em Minas Varnhagen tem enorme dificuldade em desfazer tal nó como pode ser percebido por constatações como esta ocupava o trono uma 662 Para Odalia Sua preocupação constante com o Estado levao a fazer uma clara distinção entre os movimentos que podem ser vistos como a expressão de uma incipiente nacionalidade Sua admiração e preferência pelos olindenses contra os mascates ou suas palavras candentes de admiração por Be quimão líder fracassado da revolta do Maranhão parecem indicar uma contradição insanável em sua maneira de ver a Inconfidência Mineira e a Revolução de 1817 às quais não poupa palavras ácidas de crítica e desprezo ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p82 Disponível em httpwwwdominiopu blicogovbrdownloadtextoup000007pdf 663 WEHLING Op cit p184 Horizontes Identitários 198 piedosa rainha que havia com o tempo prevenido contra a severidade do código criminal do país o livro quinto das Ordenações Filipinas664 O próprio entendimento de Varnhagen do movimento mudou inclusive com o passar do tempo da primeira para a segunda edição da HGB talvez porque tenha sido possível uma tolerância maior uma vez que a ordem no Brasil Império já havia sido construída de forma satisfatória De qualquer forma o fato é que foi somente na 2ª edição que Varnhagen resolveu suavizar suas críticas a respeito da Inconfidência Mineira visto que na 1ª edição foi de uma intolerância completa Varnhagen introduz o capítulo reportandose às facilidades da comunicação moderna que permitem a comunhão de sentimentos do povo de uma mesma nação e também fazem com que os ecos de uma grande revolução repercutam mundo afora Exemplo notório desse fato segundo ele foi a bem sucedida revolução feita pelas antigas colônias inglesas Varnhagen afirma que a emancipação foi uma verdadeira proclamação da nacionalidade o que teria incentivado os brasileiros a imitála665 A inspiração teria levado inclusive a contatos com Thomas Jefferson que entretanto teria afirmado que cabia aos próprios brasileiros proclamarem sua independência Segundo Varnhagen acreditavase que o Brasil dispunha dos recursos necessários para constituirse uma nação e esperavase o apoio norteamericano para tal Ao tratar do movimento propriamente dito Varnhagen inocentou Tomás Gonzaga de participação pois acreditava que ele somente teria conversado acerca da possibilidade de vir um dia o Brasil a separarse de Portugal o que certamente não seria um crime Nessa consideração Varnhagen mantém o respeito que caracteriza a sua narrativa quanto ao Estado e à Monarquia de Portugal A relação entretanto logo se torna mais tensa Varnhagen não denomina a Inconfidência de conjuração nem sequer de conspiração embora reconheça na figura de Tiradentes um conspirador Ele atribui a Tiradentes a proeminência do movimento e lhe confere uma conotação nada positiva Para ele no auge do entusiasmo obedecia o mesmo alferes não só aos impulsos do patriotismo como também aos da ambição666 Mas por que Varnhagen se preocupa em caracterizar Tiradentes diante do leitor como alguém movido ao 664 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p320 665 Ibid p306 666 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p312 Salah H Khaled Jr 199 menos parcialmente por objetivos pessoais Parece claro que para ele interessa desprestigiar um movimento que em alguma medida questionou a autoridade monárquica A exemplaridade que o seu pragmatismo exige não poderia deixar passar incólume tal tipo de conduta Assim ele diminui a importância do movimento e praticamente o restringe ao alferes667 Varnhagen afirma que de todos o que tomou o negócio mais a sério constituindose verdadeiro cabeça do motim foi ainda o Tiradentes que já não pensava em outra coisa Todavia já demonstrando uma certa contradição ele considera que Tiradentes teria obrado em favor da independência da pátria e cercadose de um número crescente de cúmplices sendo uns estimulados pelo amor da pátria ou por simples ambição e outros pelo desejo de se libertarem da derrama668 Em alguns momentos percebese como Varnhagen oscila em prol de reconhecer uma certa virtude no movimento mas é uma virtude que ele logo retira denunciando as ambições pessoais dos envolvidos Descoberto o plano e presos os inconfidentes Varnhagen trata de distribuir a culpa como bem lhe cabe inocentando Gonzaga e o honrado cônego Luis da Silva Para ele toda culpa se havia se reduzia a serem ambos muito ilustrados verem claro o que se passava no mundo e preverem os sucessos que segundo a ordem natural tinham de acontecer um dia669 Dessa forma ele não vê uma ação concreta por parte dos mesmos contra o Estado mas apenas uma preconização da liberdade e independência vindouras Logo não há necessidade de condenação Tiradentes todavia não gozou da mesma sorte nem por parte de Varnhagen nem por parte de seus contemporâneos tendo sido declarado como líder Assim Varnhagen relata que julgando os juízes necessário para o escarmento público algum exemplo votaram para que fosse ao patíbulo cumprindose inteiramente a seu respeito a dura e cruel sentença 670 Percebase que quem decide fazer de Tiradentes um exemplo são os juízes e não a Coroa Aqui novamente Varnhagen parece demonstrar contradições provavelmente porque não lhe é inteiramente possível 667 A utilização do termo povo nesse sentido por Varnhagen é digna de comentários Varnhagen referese que a perda de uma ocasião favorável para os conspiradores deixava estranha a eles a maioria do povo que teria mais dificuldade de moverse por motivos políticos que não compreendia do que pelo interesse imediato de ser aliviada por novos governantes de pagar tributos que com que não podia e aos quais pretendiam obrigar os mandantes de direito Ibid p316 668 Ibid p317318 669 Ibid p319 670 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p320321 Horizontes Identitários 200 desprestigiar de todo um movimento que de certa forma sinalizava em direção a um Brasil Independente Ele chega a manifestar certo pesar a respeito do destino final do alferes a quem poucas páginas atrás havia condenado como ambicioso A explicação para a forma de tratamento dada a Tiradentes só pode estar na função exercida por ele na narrativa Na mesma medida em que ele deve ser criticado por ter se colocado contra os interesses do Estado sua disposição para o sacrifício em nome da pátria é exemplar e como tal é uma lição que não pode ser desperdiçada Do alferes Silva Xavier sabemos que ouvira a sentença com toda a serenidade e que com a maior abnegação de si chegou a dizer quanto estimava vir a pagar as culpas daqueles que ele havia comprometido Por essa forma ele se adiantou a aceitar para si a responsabilidade desta nobre tentativa e as glórias do martírio que hoje lhe confere a posteridade671 O desenrolar do relato não é menos dramático Varnhagen conta que ao pedir ao carrasco o perdão quando lhe vestia a alva exclamou Tiradentes oh meu amigo Deixeme beijarlhe as mãos e os pés também o nosso redentor morreu por nós Em seguida marchou depois sereno ao suplício pediu por três vezes ao carrasco que abreviasse a execução e com os olhos pregados no Crucifixo subiu ao patíbulo 672 Para Varnhagen o martírio lhe conferiu a glória de toda semelhante aspiração prematura em favor da independência do Brasil673 Os sentimentos de Varnhagen em relação ao movimento são nitidamente conflitantes e não é difícil percebêlo Lamentando como devemos as vítimas que causou esta mal denominada conspiração que tantas simpatias inspira a todas as almas generosas cremos que o seu êxito ainda quando a revolução chegasse a realizarse não podia ser diferente do que foi e que portanto quase parece ter sido um bem que ela não estalasse para não comprometer muito mais gente e induzir a província em uma guerra civil que devastasse essas povoações que começavam a medrar674 Varnhagen perguntase afinal se teria sido bom que a revolução triunfasse e conclui previsivelmente que não 671 Ibid p321 672 Ibid p321 673 Ibid p322 674 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p322 Salah H Khaled Jr 201 curvemos a cabeça ao decreto da Providência que à custa do próprio sangue dos mártires do patriotismo veio a conduzirnos à única situação em que podemos sem novos ensaios procurar ser felizes e fazernos respeitar como nação675 Essa única situação referese à transferência da monarquia portuguesa e à fundação do Império Brasileiro que é vista por ele como ponto culminante de todo o esforço colonial A Inconfidência Mineira deve ser questionada sobretudo pela influência de um caráter republicano que para a narrativa de Varnhagen só pode ser visto como sinônimo de radicalismo e anarquia Mas se Varnhagen ainda demonstrou alguma condescendência para com a Inconfidência Mineira o mesmo não se verifica com a Conjuração Baiana Ele não deixou de perceber que havia uma penetração de ideais iluministas no país de forma clandestina e os relacionou com o furor revolucionário o qual via com grande censura676 Seus comentários sobre a Revolução Francesa sempre têm conotação pejorativa Nesse sentido o julgamento e condenação que ele faz da Conjuração Baiana é implacável as chamas incendiárias da revolução francesa não deixaram entretanto de saltar ao Brasil e chegaram quase a atear pelas suas labaredas na Bahia em Agosto de 1798 um incêndio que foi dias antes prevenido Se a aspiração de Minas tão patriótica em seus fins tão nobre por seus agentes e tão habilmente premeditada julgamos que foi um bem que se malograsse com muito mais razão agradecemos a Deus o havernos amparado a tempo contra a estoura com tendências mais socialistas que políticas como arremedo que era das cenas de horror em que a França e principalmente a bela ilha de São Domingos acabavam de presenciar sendo aliás embalada ao santo grito de liberdade igualdade e fraternidade não faltaram espíritos que de novo na Bahia o invocaram esquecendose de que quando em uma província com tanta escravatura a sua generosidade lograsse triunfo libertando a todos os escravos como prometiam depressa como se viu no Haiti seria vítimas destes desenfreados e em muitíssimo menor número Os conspiradores que se chegaram a 675 Ibid p323 676 Ele comenta que a leitura das obras dos filósofos e enciclopedistas do século se propagava em segredo com o próprio incentivo da proibição pelas principais cidades do Brasil cuja mocidade se quiosa de instrução se lançava aos livros modernos que clandestinamente lhe chegavam às mãos VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhoramen tos 1959 p2324 Horizontes Identitários 202 descobrir não subiam a quarenta nenhum deles homem de talento nem de consideração e quase todos libertos ou escravos pela maior parte pardos A pouca valia dos revolucionários se deduz do modo estranho como projectaram levar à execução seus planos677 Para Varnhagen o movimento deve ser desprestigiado em função da sua inspiração política e da condição social dos revoltosos o que inclusive é interessante de observar dadas as referências anteriores ao povo que se opunha aos jesuítas Ele parece entender que se trata de uma revolta que deve ser repreendida para que não se torne objeto de inspiração para as gerações vindouras Como parâmetros para a recusa ele tem as tendências socialistas francesas e o caso concreto do Haiti que o leva a ser contrário a libertação dos escravos Varnhagen não se limita apenas a condenar o movimento pelas suas intenções mas estende a sua crítica à própria execução dos seus planos Além disso submete ao escárnio os documentos emitidos pelos revolucionários considerandoos desprezíveis678 Ele considera tão pouco tal documento que sequer se presta a comentar seu conteúdo sendo inteiramente lacônico Assim Varnhagen comemora com entusiasmo o insucesso da rebeldia baiana e referese a uma carta de nomeação do vicerei do Rio de Janeiro na qual se recomenda vigilância contra os que propagassem doutrinas incendiárias A essa carta ele acrescenta sendo evidente que é muito mais acertado prevenir graves ruínas afastando da sociedade aqueles que podem as produzir do que tolerandoos ao princípio e exporse depois a proceder contra eles os mais rigorosos e severos castigos679 Varnhagen parece aqui perceber a necessidade de mecanismos de coerção social menos evidentes que desgastem menos a autoridade perante a população Não será exatamente nesse sentido parte ao menos de sua contribuição para a construção da nação estável e ordeira com a narrativa nacional Parece claro que sim O fato é que Varnhagen não pode deixar de censurar o que se posicionava 677 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p2425 678 Varnhagen transcreve um documento que afirma que no dia 22 um ofício ao governador concebido nos seguintes termos prescripção do povo Bahinense O Povo Illmo Exmo Senhor Povo Bahi nense e republicano na secção sic de 19 do presente mês houve por bem eleger e com efeito ordenar que seja VE invocado compativelmente como cidadão presidente do Supremo Tribunal da Democracia Bahinense para as funçõens sic da futura revolução que segundo o Plebiscito se dará princípio no dia 28 do presente pelas duas horas da manhã conforme o prescrito do Povo Espera o Povo que VE haja por bem exposto Vive et vale Bahia Republicana 20 de agosto de 1798 Anônimos repu blicanos Illmo e Exmo Senhor general segredo segredo segredo etc VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhoramentos 1959 p2526 679 Ibid p26 Salah H Khaled Jr 203 contra os objetivos do Estado português mesmo que de alguma forma sinalizasse para a independência do país A independência nacional somente poderia ser admitida enquanto ato promovido verticalmente de cima para baixo a partir de um interesse de Estado como o próximo ponto demonstra 34 Transferência e presença do estado português um Brasil independente em afirmação Em seu raciocínio ao Estado não se atribui uma nacionalidade pois o que dele se espera fluindo normalmente de sua natureza é a isenção e o desinteresse em relação aos interesses particularistas Assim o Estado português não se desindentifica do Estado brasileiro este aparece como seu sucessor direto sem descontinuidades daquele de maneira que a colonização se completa pela transmigração da família real portuguesa para as terras brasileiras Nilo Odalia Como observado anteriormente Varnhagen vê uma associação profunda entre os destinos do Brasil e de Portugal Ele subordina ao longo de todo o período colonial os interesses do Brasil aos objetivos designados pelo Estado português Resta saber portanto de que forma Varnhagen trata a transferência desse Estado para o Brasil e que significado atribui a essa mudança Qual é o sentido que ele deseja fundar sobre esse momento enquanto memória da nação A vinda da Família Real para o Brasil e a consequente transferência do Estado Português são para Varnhagen a culminância de todo um processo de prefiguração da nação nos tempos coloniais que finalmente se vê concretizado É quase como se isso estivesse predestinado a acontecer como se já fosse estipulado pela Providência e não pela força das circunstâncias face à ameaça representada pelos franceses Nesse sentido Varnhagen inclusive faz questão de mencionar um plano para a transferência da monarquia portuguesa ao Brasil anterior a qualquer problema em função de Napoleão680 680 Assim ele conta a respeito de Quatro patriotas grandes pensadores e a cuja memória nunca será excessivo todo o reconhecimento do Brasil Referimonos a José da Silva Lisboa ao bispo José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho a Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça e mais outro artista anônimo profundo e previdente que em 1798 assinandose misteriosamente O Ideiador escreveu um vasto plano para o aumento e a prosperidade do Brasil por meio da transferên cia a ele da corte portuguesa os verdadeiros mestres do que ao depois denominamos patriarcas da independência Cumpre pois reivindicar em favor dos quatro o alto lugar que na história da civilização Horizontes Identitários 204 Varnhagen aproveita o momento significativo que é a chegada da Família Real para reforçar o sentimento que busca estabelecer de união entre a Casa de Bragança e os destinos do Brasil Dessa forma diante da crise que envolveu o Bloqueio Continental napoleônico Varnhagen transcreve as manifestações de D João VI ao Brasil Fiéis vassalos habitantes do Brasil Desde o princípio da minha regência existiu inalterável em meu coração o mais ardente desejo de darvos reiteradas provas da minha estimação e paternal afecto tempos calamitosos porém não permitiram manifestarvos toda a sua extensão Nas vicissitudes políticas da Europa vós vos unistes sempre aos outros meus vassalos mostrando em todo sentido o zelo mais puro e concorrência a mais eficaz para a manutenção da monarquia portuguesa Em tão crítica conjuntura vos quero dar um testemunho do meu extremo afecto oferecendo à vossa tão antiga como experiente lealdade a ocasião de exercerdes com pessoa que me é sumamente cara e amada e para com quem estou certo me acompanharão os vossos ânimos e sentimentos de maior ternura Sendo do meu real não abandonar senão em último extremo vassalos descendentes como vós daqueles que pelo seu valor e à custa do próprio sangue restauraram o trono aos meus augustos predecessores vos confio o príncipe meu primogênito em que espero pelo decurso do tempo achareis a herança que já em seus ternos anos principiei a transmitir lhe da minha particular afeição para convosco Vós o deveis reconhecer com o título de Condestável do Brasil que houve por bem criar e conferirlhe a fim de aliar melhor os interesses da Coroa com os vossos próprios contribuindo deste modo para a prosperidade geral dessa vasta e preciosa região Fiéis vassalos habitantes do Brasil Eu prevejo com íntima satisfação quão dignamente sabereis avaliar tão querido e inestimável penhor guardaio defendeio com aquela honra e valor que vos é inato na qualidade de portugueses681 São raros os momentos em que Varnhagen transcreve falas pois as reserva para questões especialmente significativas como é o caso acima Para um país em que a Monarquia está ainda em consolidação uma fala direta do antigo soberano aos súditos de alémmar é fundadora de sentidos e de memória por excelência Varnhagen está ciente da importância e por isso efetivamente constrói discursivamente toda uma tradição de apreço de confiança e de reciprocidade que une o Brasil à dinastia de Bragança Ele elabora o que aparenta ser um elo indissolúvel que vincula o destino da do país deve caber a tais grandes patriotas pensadores VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhoramentos 1959 p17 681 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p33 Salah H Khaled Jr 205 nação à sua benemérita filiação nobre e portuguesa O vínculo é integrado à narrativa da nação como algo tão forte que implica em que o monarca confie parte de sua própria descendência ao seio da nação brasileira Embora Varnhagen não retrate a vinda como uma fuga não deixa de abordar a questão internacional ainda que com o enfoque privilegiado de narrador nacional que é Varnhagen é um historiador da nação brasileira e não o esconde Como tal demonstra indignação patriótica em relação aos eventuais inimigos que são retratados com o enfoque maniqueísta que lhe é peculiar em tais questões Ao referirse a um tratado estabelecido entre a França e a Espanha fala em uma pérfida usurpação nas disposições que preveem divisão das colônias portuguesas entre os dois países Diz ele ainda que pede a justiça que não esqueçamos de mencionar que o mesmo Brasil de cujos destinos no tratado se dispunha tão sem cerimônia havia ainda no ano anterior prestado em seus portos asilo a uma esquadra imperial e honras de príncipe ao chefe Jerónimo Bonaparte682 Para ele o conflito é literalmente entre o bem e o mal e Portugal compreendido como ligado ao Brasil tem sua filiação e simpatia estabelecendose a contraposição que Varnhagen tanto gosta de trabalhar nos conflitos Entretanto mesmo tratando da ocupação de Portugal Varnhagen demonstra o cuidado de não se deter propriamente à nação portuguesa pois ele está afinal escrevendo a narrativa da nação brasileira Não pertencem à história especial do Brasil os pormenores das injustiças e horrores e atentados contra todo direito praticados nessa aleivosa ocupação que bradou aos Céus pelo merecido castigo dos usurpadores Igualmente à história de Portugal pertence relatar as heroicidades que se praticaram primeiro na sublevação geral dos povos e logo na porfiada guerra que foi coroada com a vitória683 Portanto esse recorte é importante Portugal é relevante na medida em que contribui para o enriquecimento da história brasileira Todavia de forma surpreendente Varnhagen considera precipitada a decisão da corte de buscar sua salvação no Brasil o que não o impede de afirmar de forma entusiástica que tratase de uma nova era para o país 682 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p33 683 Ibid p34 Horizontes Identitários 206 em vez de colônia ou de principado honorário vai ser o verdadeiro centro da monarquia regida pela casa de Bragança e para nós daqui começa a época do reinado embora o decreto de elevação a reino só veio a ser lavrado em fins de 1815684 Varnhagen demonstra verdadeiro êxtase diante da vinda da família real uma ocasião que deve ser comemorada como motivo de júbilo deixamos o príncipe regente com toda a real família partindo do Tejo e amarandose pelo Atlântico rumo do Brasil e já nos tarda sairlhes a todos ao encontro e com os braços abertos se a ingenuidade da expressão não ofende a majestade685 A associação que Varnhagen constrói é tão forte que a chegada de D João é percebida como momento de afirmação nacional de constituição independente da nação brasileira a cidade da Bahia conserva ainda hoje a memória desta visita com que a honrou o príncipe do Brasil em um pequeno obelisco erigido no passeio público na encosta sobre as águas do porto E deve conservá lo como se fosse um grande monumento pois que nesse obelisco vê o Brasil todo o padrão que representa as providências tomadas pelo príncipe durante sua estada na Bahia começando pelo decreto de 28 de janeiro em que franqueou os seus portos ao comércio direto de todas as nações amigas e com isso emancipou de uma vez da condição de colônia e constituiu nação independente de Portugal que estava aliás então sujeito à França686 Eis que nessa passagem o benemérito D João dá cabo da restrição ao comércio conhecida como exclusivo metropolitano a qual Varnhagen cuidadosamente havia mantido à margem de sua narrativa para não caracterizar a submissão da colônia à metrópole Assim agora que a sua extinção pode ser utilizada como um argumento favorável eis que surge a questão de forma repentina Há uma equivalência ao que parece para Varnhagen entre a liberdade comercial e a condição de país independente de forma que rompida a restrição estaria encerrada a fase colonial Todavia em outro trecho Varnhagen manifesta conclusões inesperadas partindo do ato que instaurou a chamada Abertura às Nações Amigas 684 Ibidem 685 Ibid p89 686 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p8990 Salah H Khaled Jr 207 A emancipação do país do estado de colônia em virtude da franquia do comércio decretada pela carta régia de 28 de janeiro de 1808 não podia ser dom puramente gratuito Desde que Portugal estava no domínio estrangeiro a princípio e logo absorvido em uma guerra que mal poderia sustentar o Brasil que fazia então de metrópole e representava a nação devia bastarse a si mesmo a fim de por novos impostos manter o governo e o decoro nacional687 Aqui Varnhagen deixa transparecer mesmo dentro de seu impreciso uso do termo nação que ele efetivamente considera o Brasil como capacitado a representar a nação portuguesa uma vez que o Estado português para cá se deslocou A sua concepção de nação não poderia estar mais atrelada ao Estado mesmo que ele quisesse O EstadoNação é sobretudo o personagem central da narrativa nacional de Varnhagen Quando ele narrava anteriormente o episódio Amador Bueno e a falta de elementos constitutivos de uma nação era ao Estado que ele se referia Agora que esse Estado se faz presente no país revestido da autoridade e legitimidade que lhe é inerente em função da Casa de Bragança estão reunidas as condições para pensar se o Brasil como nação Concretizase assim um processo já prefigurado séculos atrás Nascia por completo o Império Brasileiro Varnhagen posteriormente faz pouco caso da condição de Reino Unido atribuída em 1815 pois para ele o Brasil já sem essa declaração era reino emancipado desde 1808 e assim o reputava a própria Europa688 Para Varnhagen não há dúvida que a Independência deve ser contada desde 1808 a fazemos proceder da carta régia sobre o franqueio dos portos e por conseguinte ao mês de janeiro de 1808 e portanto com mais glória para o Brasil que destarte remonta a sua emancipação colonial da Europa a uma época anterior a de todas as repúblicas continentais hispanoamericanas 689 Assim Varnhagen estabelece inclusive a anterioridade do Brasil como país independente em relação à antiga América Espanhola atribuindo essa condição à providencial vinda da Família Real Portuguesa Varnhagen não poupa elogios aos membros da dinastia de Bragança da qual descende seu patrono e protetor D Pedro 687 Ibid p102 Grifo nosso 688 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p119 689 Ibid p150151 Horizontes Identitários 208 II Ele faz questão de dizer que D João era naturalmente bom religioso e justo690 São qualidades que Varnhagen não costuma ressaltar Normalmente os adjetivos que ele utiliza se encontram ligados à vocação para o combate como bravo destemido e valente Aqui ele precisa destacar outro tipo de qualidade relacionado à figura de um governante que ele precisa exaltar e louvar como concretizador da nação brasileira De fato Varnhagen associa a fundação do Império Brasileiro a um ato de vontade de D João o que deve assinalar a dívida que o país tem para com a dinastia de Bragança E em verdade o senhor D João foi senão o primeiro imperador pelo menos o primeiro a proclamar a idéia de fundar no Brasil um novo império Ele próprio o deixou dito à posteridade no memorável manifesto de guerra à França do 1º de maio de 1808 quando declarou que o Brasil passava a criar um novo império691 Varnhagen não poupa elogios ao monarca e ao novo império O reino de novo criado pelo benéfico rei D João era nada menos que a cabeça de um grande império maior que os dois romanos692 Varnhagen recolhe todos os elementos que pode para louvar o antigo regente693 Todavia isso não significa dizer que ele poupe inteiramente críticas quando as julga convenientes Assim Varnhagen censura o que chama de transplante de uma série de instituições portuguesas para o país como se o Brasil fosse do tamanho de Portugal onde uma repartição análoga podia estender seu influxo a todo reino694 Para ele é óbvio que isso não poderia dar certo pois o Brasil é maior do que Portugal não somente pelas suas dimensões territoriais mas por seu imenso potencial até então inexplorado Enfatizando o Brasil em relação a Portugal Varnhagen está buscando que seu leitor se orgulhe do país Por outro lado ele compreende que não escapou por completo ao soberano o diferencial do Brasil e sendo assim interpretou a concessão da pasta da fazenda e interior negócios do Brasil ao Marques de Aguiar exgovernador da Bahia e exvicerei no Rio de Janeiro como uma evidência da 690 Ibid p91 691 Ibid p9091 692 Ibid p149 Grifo nosso 693 Assim o é com um comentário do pregador MonteAlverne a respeito de D João dizendo que como hábil político sabia que só à religião é dado sustentar os impérios e fortificar as instituições Ibid p9192 Por afortunada coincidência um comentário que coincide com as convicções do próprio Var nhagen 694 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p94 Salah H Khaled Jr 209 intenção do regente de ocuparse principalmente do Brasil como a sua prudência em querer mais conhecer o passado para corrigilo e melhorálo que impor ao país uma súbita importação de instituições estranhas a ele as quais de ordinário radicam mal se é que já em tempos anteriores não revele a própria história colonial que foram improficuamente ensaiadas695 Entretanto Varnhagen considera Aguiar um homem pouco instruído que nada tinha de grande pensador e portanto incapaz de ser o estadista da fundação do novo império696 Dessa forma Varnhagen procura isentar D João apontando que havia um limite para a extensão das reformas que extrapolava suas nobres intenções quanto ao novo Império Mesmo assim ele descreve em minúcias todas as melhorias introduzidas pela administração joanina novamente elogiando a vinda da Família Real e exaltando a sua presença no país Dentre as medidas adotadas dedica especial cuidado às iniciativas tomadas contra os quilombos o legislador admitiu a razoável teoria de não se deixarem impunes os quilombos de índios ao passo que contra os de pretos se mandam logo tropas para os sujeitar Ordenou contra os bárbaros a guerra ofensiva por estar provado que pela simples defensiva nada mais se faz que conceder a esses inimigos as vantagens de escolherem eles o momento e o lugar mais apropriado para as suas agressões697 Varnhagen relaciona portanto a própria presença do Estado com a tomada de medidas efetivas para garantir a soberania incontestável sobre o território eliminando os focos de rebelião e também reduzindo os efeitos perversos do mandonismo local em virtude do estabelecimento por completo da autoridade centralizada Essa autoridade agora presente diretamente no território do recém fundado Império se demonstra intolerante com a insurgência tomando a iniciativa do combate Eis aqui mais uma valiosa lição de Varnhagen endereçada aos componentes da máquina pública O que se espera é uma rápida e vigorosa atuação face ao que ameaça a autoridade estatal Retornando ao cenário europeu é com grande satisfação que Varnhagen verifica que o domínio francês sobre a metrópole foi de escassa duração Eis aí mais um motivo para comemoração O vínculo que une o Brasil à Europa é mais uma 695 Ibidem 696 Ibidem 697 Ibid p99 Horizontes Identitários 210 vez motivo de orgulho De acordo com ele os portugueses por conta própria foram capazes de sobrepujar o poderio de Napoleão cumprese saber que Portugal sofreu apenas alguns meses o jugo de Napoleão tratando o reino como verdadeira conquista em meados de 1808 se levantou o país em massa sacudindo o jugo francês698 A extensão desse repúdio às forças francesas logo é deslocada para o Brasil pois em seguida Varnhagen se vangloria da conquista brasileira da colônia francesa de Caiena a partir de uma expedição militar que se deslocou do Pará699 As conhecidas categorias do inimigo e dos nossos ressurgem assim na narrativa nacional em um contexto que historicamente se faz bem próximo e palpável da época em que Varnhagen escreve Se Varnhagen é generoso com o esforço militar se mostra pouco entusiasmado com a atuação diplomática no período censurando boa parte das disposições dos tratados de 1810 com a Inglaterra assim como a atuação no Congresso de Viena em 1815 e em 1817 a entrega da Caiena Há que se perguntar se o fato de Varnhagen ter atuado na área diplomática não implica em alguma medida que ele se mostre tão exigente com aqueles que exerceram a função a seu ver insatisfatoriamente700 Parece que o seu juízo de alguma forma se assemelha ao que faz dos demais estudiosos da história brasileira701 Varnhagen se mostra descontente em relação aos tratados com a Inglaterra Ele os condena parcialmente pelos seus termos entendendo que o negociador admitiu estipulações contrárias à dignidade nacional que tanto se deve zelar em tais documentos embora algumas delas fossem muito em favor do Brasil mas a esse respeito a nós Brasileiros cumpre nos em todo caso venerar a memória do amigo do Brasil que a todo transe queria assegurar o futuro deste país buscando até para isso o auxílio de outra nação para o caso em que pudesse faltar o da própria702 698 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p111 699 Ibid p112 700 Em relação às estipulações diplomáticas Varnhagen diz que Infelizmente não fazem elas em geral muita honra à diplomacia portuguesa dessa época como passamos a manifestar não sem grande má goa ao ver que os deveres da imparcialidade como historiador nos obrigam neste momento a por de parte afeições a indivíduos e reputações com que já por outro lado muito desejáramos não contender Gema pois o coração não a consciência pungida Ibid p115 701 Com os quais ele foi extremamente rígido conforme será visto no último trecho deste capítulo 702 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora Salah H Khaled Jr 211 Esse não é o grande momento de crítica entretanto pois se de um lado Varnhagen entendeu que o tratado não era inteiramente favorável ao mesmo tempo reconheceu o esforço e afinal o tratado não implicou para ele apesar do abalo na dignidade nacional em perdas concretas É a respeito da questão da Caiena e da perda da conquista realizada que ele não vai esconder a sua insatisfação afirmando que muito menos feliz esteve a diplomacia portuguesa no Congresso de Viena do qual absolutamente nenhuma indenização sacou em troco do muito sangue português derramado em tantos combates contra as armas da França estiveram submissamente pela entrega da Caiena à França que aliás com vinte Caienas não houvera indenizado os sacrifícios de Portugal 703 Os argumentos de Varnhagen não são os argumentos de um historiador imparcial e de um cientista São argumentos de um intelectual a serviço do Estado argumentos de um intelectual que se identifica com Portugal e o Brasil e busca promover esse sentimento de identificação Os brasileiros devem não somente reprovar a devolução do território conquistado mas também se indignar diante da falta de compensação pelo sacrifício de seus irmãos portugueses Varnhagen não vai se limitar apenas a reprovar a devolução demonstrando o quanto ela foi impensada Assim ele se vale de um relato de João Severiano governador da Caiena conquistada para afirmar que havia um geral contentamento dos habitantes daquela conquista que ainda hoje choram por um governo tão paternal704 Para reforçar ainda mais a questão ele transcreve o depoimento de um habitante local ilustrando a qualidade da administração portuguesa brasileira na Caiena a verdade nos obriga a reconhecer que seus interesses gerais nunca foram melhor apreciados É indibutavelmente custoso ter de fazer elogio a estrangeiros à própria custa mas pondo de parte o orgulho nacional705 O exemplo novamente é claro se os próprios estrangeiros reconhecem as virtudes do Estado nacional brasileiro como os brasileiros poderiam não fazêlo Como se sabe os conflitos no período não se restringem aos franceses Localmente o Império exerceu sua vocação para conquista anexando a província mentos 1959 p115116 703 Ibid p116 704 Ibid p117 705 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p118 Horizontes Identitários 212 Cisplatina A forma com que Varnhagen vai observar esse acontecimento lhe confere um certo caráter de ação preventiva Segundo ele a anarquia da Banda Oriental já de direito reconhecida por Buenos Aires nação independente e as violências praticadas de contínuo contra várias paragens da província do Rio Grande levaram a corte do Rio de Janeiro a resolver outra campanha para ocupar o mesmo Estado706 Dessa forma através de seu filtro de narrador da nação a iniciativa brasileira se vê justificada pois eram de contínuo invadidas as fronteiras do Brasil pelo que o seu governo se viu obrigado a romper o armstício e a mandar avançar as tropas para ocupar a Banda Oriental707 Esse conflito permite que Varnhagen novamente trabalhe as categorias dos nossos e do inimigo que lhe são tão caras devido à identificação que evocam Mesmo que não dedique tanto espaço ao conflito como dedicou aos confrontos com os holandeses ao descrever os combates não poupa elogios e oxalá encontre o futuro muitos que em casos idênticos imitem seu patriotismo e benevolência pela posteridade duas grandes vitórias que decidiriam já quase toda a sorte do território cisplatino708 Portanto Varnhagen torna a se referir ao adversário como inimigo Ele comemora a força moral advinda de tantas vitórias e celebra o tratado de 21 de julho de 1821 no qual a Banda Oriental se viu incorporada ao Brasil com o título de Província Cisplatina conservando porém as suas leis a sua língua e uma espécie de autonomia709 Aqui embora não o faça abertamente parece haver uma certa reticência um porém a ser destacado na medida em que a incorporação não teria se dado de forma completa Todavia o grande conflito por excelência que revela ainda mais que espécie de nação Varnhagen configura em sua narrativa e que inclusive lhe causa grande desconforto é a Revolução Pernambucana de 1817 Varnhagen literalmente expressa o seu pesar quanto ao movimento já nas primeiras linhas em que trata dele 706 Ibid p114 707 Ibid p120 708 Ibid p122 709 Ibid p126 Salah H Khaled Jr 213 Eis que uma revolução proclamando um governo absolutamente independente da sujeição à corte do Rio de Janeiro rebentou em Março de 1817 É um assunto para o nosso ânimo tão pouco simpático que se nos fora permitido passar sobre ele um véu o deixaríamos fora do quadro que nos propusemos traçar 710 Varnhagen de tal forma se sente desconfortável diante da revolta que gostaria de apagála esquecêla por completo O pragmatismo pesa nesse tema muito mais do que a vocação de historiador As motivações de Varnhagen para justificar o esquecimento são de ordem inteiramente política nem cremos que o Brasil perde em glórias deixando de catalogar como tais as da insurreição de Pernambuco em 1817 nós que fazemos votos pela integridade do império e que vimos no Sr D João VI outro imperador711 Carregando na dramaticidade ele vislumbra negras nuvens que então se viam no horizonte pernambucano712 Varnhagen considera que havia uma espécie de tradição revolucionária em Pernambuco que datava desde os tempos coloniais713 Ele relaciona a origem da revolução à maçonaria organização pela qual nutre grande desprezo714 Para Varnhagen a revolução foi feita por um grupo restrito e acabou se estendendo fazendo com que todos se submetessem a ela715 Não se trata portanto de um movimento provido de mérito mas sim de uma revolta que se originou a partir de um pequeno grupo conspirador Varnhagen se mostra ainda mais rígido do que havia sido com a Conjuração Baiana pois agora a revolta se dá a partir de um território que para ele está plenamente configurado como nação 710 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p149 711 Ibid p150 712 Ibidp158 713 Segundo ele Pernambuco era a capitania onde mais pronunciadas e enraizadas se encontravam especialmente desde a guerra dos Mascates as antigas rivalidades entre os colonos nascidos no Brasil e os nascidos em Portugal Essas rivalidades datavam já do primeiro século da conquista e se tinham transmitido de geração em geração Ibid p152 714 Ele afirma que Em virtude da existência de duas lojas maçônicas na capital uma delas desde 1801 segundo dizem o espírito de tais rivalidades havia passado a tendências de preparativos a uma futura proclamação de independência Ibid p155 A posição de Varnhagen quanto a maçonaria foi mais extensivamente desenvolvida em História da Independência do Brasil 715 Varnhagen relata que assim da insubordinação provocada resultara o motim do quartel que anima ra o tumulto popular e triunfante este porque o governador não cumpriu com seus deveres a revolu ção estava consumada podendose dizer dela que alguns a fizeram poucos a aplaudiram mas quase todos se foram submetendo Ibid p161 Horizontes Identitários 214 Em seu esforço discursivo de desmerecimento Varnhagen inclusive transcreve documentos dos revoltosos que são entretanto devidamente contextualizados716 Dessa forma ele se refere a uma proclamação como incongruente desconchavada e até certo ponto ridícula para logo depois criticar a autopromoção de patente realizada por um capitão afirmando que no momento que a pátria exigia do patriota os maiores sacrifícios ele ia dela arrancar soldo maior717 A missão destruidora de Varnhagen não cessa Assim ele não poupa os revolucionários por abolirem tributos afirmando que tratase de erro de quase todas as revoluções e sempre a elas fatal de abolir para adular o povo os tributos no momento em que deles mais se tem de carecer para governar718 Varnhagen se mostra verdadeiramente intransigente com o movimento Taxa os revoltosos de inconsequentes incompetentes egoístas e também de autoritários Talvez o pior de tudo foi que evocaram os excessos anarquistas e demagógicos da Revolução Francesa no país Nesse sentido ele refere que foi proibido o sairse da capitania e com todo o rigor o desviar dela quaisquer capitais Para remedarse a revolução francesa aboliu se também o tratamento de senhor nem que a liberdade e a própria democracia fossem incompatíveis com as atenções de cortesia719 Varnhagen como defensor que é do regime monárquico não pode deixar de condenar a Revolução Francesa associandoa com a revolta pernambucana O critério que Varnhagen utiliza para avaliar o movimento está de acordo com a sua concepção pragmática de ciência e de uma narrativa nacional cujo cunho é pedagógico Entretanto é surpreendente como ele é transparente na adoção de tal critério cabe desde já dizer que a revolução pernambucana de 1817 não se recomenda muito mais do que a da Bahia em 1798 pelas suas peças oficiais nem pelos seus atos e projetos Nada próprio a inspirar sentimentos de heroísmo e justiça a entusiasmar e engrandecer o povo720 716 Exemplo de transcrição a capital está em nosso poder a pátria está salva Ela vos chama vinde univos aos vossos irmãos Eles vos esperam com os braços abertos e ansiosos por vos apertar entre eles O céu abençoará o fim da nossa obra assim como tem abençoado o seu princípio Ele vos guarde como vos desejam vossos patrícios e amigos VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhoramentos 1959 p162 717 Ibid p163 718 Ibid p163 719 Ibid p164 720 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora Salah H Khaled Jr 215 Ou seja na medida em que o movimento não se conforma aos parâmetros de comportamento que devem ser estimulados pela pedagogia da nação deve ser censurado como algo pernicioso ou até mesmo como Varnhagen gostaria esquecido Não contente em desmerecer o movimento Varnhagen também procura desacreditar seus líderes e nem podia ser de outro modo em um movimento cujo principal chefe era um homem a quem faltavam tantos predicados como Domingos José Martins721 O poder da história é novamente exercido sinalizando para a eternização não no âmbito da glória a que todo membro da nação aspira mas sim da vergonha em função de ato falho Dessa forma Varnhagen busca desestimular a prática de tais atos no futuro O sentido preventivo da sua narrativa nacional é evidente Varnhagen se reporta com frequência ao Correio Braziliense para desmerecer ainda mais o movimento censurála como imprudente e como atrasadora do próprio desenvolvimento político do Brasil quereis vós matar ao vosso rei Quem então remediará vossos agravos722 Para Varnhagen a revolta contra o rei é injusta impensável e imponderada Vai contra os próprios princípios de uma nação e felizmente de acordo com ele foi mal vista no restante do território nacional Varnhagen relata que segundo uma testemunha insuspeita que então se encontrava no Rio o inglês Luccock todo o povo recebeu com indignação a notícia da sublevação de Pernambuco e por toda a parte se manifestava grande entusiasmo em favor da causa da ordem e do bom rei723 Ao dizer que o rei foi ovacionado por duas noites seguidas no teatro o inglês relata que apesar de estrangeiro esta manifestação do sentimento nacional me penetrou na alma724 Mesmo que Varnhagen esteja citando um observador parece claro que para ele o sentimento nacional implica em um sentimento de devoção e fidelidade para com o monarca Varnhagen também critica a revolta sob outros aspectos Se realmente era um movimento com vocação para a salvação da pátria da nação como então seus lideres não se mostraram dispostos a morrer em função de tais ideais mentos 1959 p165 721 Ibid p165 722 Ibid p168 723 Ibid p171 724 Ibid p171 Horizontes Identitários 216 Triste desengano para os pequenos que iludidos sacrificam à ambição de alguns corifeus que depois os abandonam covarde e ingratamente a tranqüilidade e a de suas famílias E vós chefes militares da revolução pernambucana Se a vossa causa era tão justa e tão santa como por amor dela não buscastes no campo em uma bala ou na ponta de uma baioneta o martírio que vos canonizasse na posteridade725 Varnhagen dessa forma debocha da iniciativa revoltosa negando a ela a condição heroica que atribuiu a tantas outras iniciativas que são pautadas exatamente por essa disposição para o sacrifício que ele assinala como característica da devoção à pátria Segundo Varnhagen mesmo diante da rebeldia injustificada D João mostrou se benemérito o que fez com que sua pessoa fosse ainda mais apreciada pelos brasileiros Nesse sentido a expedição do decreto que suspendia e concluía todas as devassas foi segundo Varnhagen recebida em Pernambuco com o devido entusiasmo e o senado agradeceu fervorosamente a elrei o haver assinalado o dia da sua coroação pelo ato do Perdão ato que mais que nenhum outro faz em verdade lembrar aos povos que os reis são a imagem do Deus da misericórdia Mais honra faz ainda à sua memória esse perdão aos que sabemos que elrei havia aprazado a sua coroação em virtude dos sucessos de Pernambuco declarando que não cingiria a coroa se não viesse em paz e boa harmonia todos os seus súditos726 O ato de rebeldia injustificada convertese dessa forma pela magia da narrativa nacional em motivo de exaltação da figura do monarca Entretanto para sua tristeza o que não alcançaram esses conspiradores vieram depois a conseguir outros na cidade do Porto onde no sentido das mesmas idéias veio a rebentar a revolução de 24 de julho de 1820 ponto de partida da nova fase em que entrou o Brasil e que é mais extensamente tratada em nossa História da Independência727 725 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p174 726 Ibid p176177 727 Ibid p178 História esta que entretanto somente seria publicada em 1916 Cumpre destacar entretanto que uma versão condensada e mais primitiva do texto fazia parte da 1ª edição da HGB versão esta que não foi a analisada neste estudo Salah H Khaled Jr 217 Varnhagen lamentase inclusive de fatos que extrapolam o recorte por ele definido para a narrativa nacional por um motivo simples não pode deixar de censurar o que se posiciona contra a Monarquia epicentro da nação O sentido pedagógico e paradigmático da obra proposta como narrativa nacional supera qualquer consideração inclusive as de ordem teórica Os pontos até agora abordados permitem portanto esboçar o que seria a compreensão de Varnhagen de nação buscando sistematizar o seu pensamento que aparece de forma dispersa ao longo da sua narrativa O que é afinal para Varnhagen uma nação Quais são os seus pressupostos e em torno de que se articula sua legitimidade para ser considerada como tal 35 Uma teoria da nação na obra de Varnhagen A história era pensada a partir da nação mesmo que não houvesse uma idéia clara do que a nação significava ou poderia significar Temístocles Cezar Varnhagen afirma no prefácio da 1ª edição da História Geral do Brasil ter escrito com o valoroso apoio de Pedro II uma conscienciosa história geral da civilização do nosso país padrão de cultura nacional que outras nações civilizadas só ao cabo de séculos de independência chegaram a possuir ou não possuem ainda728 A História Geral do Brasil seria de acordo com o próprio Varnhagen a história da nação brasileira Todavia encontrar uma definição de nação na obra de Varnhagen não é uma tarefa das mais simples A HGB pode ser entendida como uma narrativa nacional na medida em que efetivamente inventa uma nação brasileira Entretanto Varnhagen nunca se preocupou propriamente em definir no que consiste uma nação embora a prefigurasse nos tempos coloniais729 Seu uso do termo é vago e impreciso referindo 728 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927pXVIII 729 Odalia pergunta O que é uma Nação quando se admite como o faz Varnhagen que ela estava implícita desde o momento em que a terra que devia abrigála era descoberta pelos que a deveriam Horizontes Identitários 218 se ora a uma coisa ora a outra Essa constatação está de acordo com uma certa incoerência nas convicções políticas e referenciais teóricos do autor na qual há um ecletismo muito grande que também é típico do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro730 Apesar disso enquanto narrativa nacional dotada de uma dimensão pragmática evidente é lógico que a obra de Varnhagen busca fundar sentidos fundar uma memória sobre a nação que ele inventa mesmo que seu significado não esteja precisamente delimitado Isso levanta questões a partir da experiência de leitura que a obra proporciona como por exemplo qual o sentido da nação brasileira que ele está inventando Pode ser afirmado com uma boa margem de segurança que Varnhagen prioriza o Estado e o posiciona acima da nação como ponto elementar de existência de uma sociedade civilizada731 Como Odalia afirma para ele uma Nação um povo só existem em razão do papel que o Estado desempenha na sua formação732 É por isso que Varnhagen dirá que esta máxima é aplicável a todos os países porque destruído o governo quem há de remediar os males e abusos da nação733 Isso não é nada surpreendente pois está em conformidade com um tipo específico de memória que deve ser construído para a nascente nação734 Como considera Guimarães a partir formar ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnha gen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p43 Disponível em httpwwwdominiopublicogov brdownloadtextoup000007pdf 730 No prólogo da 2ª edição da História Geral do Brasil Varnhagen dá algumas pistas citando Tocque ville Os povos disse Tocqueville resentemse eternamente de sua origem As circunstâncias que os acompanharam ao nascer e que os ajudaram a desenvolverse influem sobre toda a sua existência Se fosse possível a todas as nações prossegue o mesmo publicista remontar a origem de sua história não duvido que aí poderíamos descobrir a causa primária das prevenções dos usos e paixões dominantes de tudo enfim quanto compõe o que se chama de caráter nacional VARNHAGEN Op cit pVII Entretanto apesar da referência Varnhagen não utiliza o termo caráter nacional em nenhum trecho da HGB 731 Wehling afirma que para Varnhagen o Estado apresentase como ponto culminante e questão central da organização da sociedade Há mesmo uma antinomia explícita o Estado representa a civilização a lei e a ordem Sua ausência a selvageria predomínio da força e desarticulação social WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999p86 Para Odalia No centro das preocupações de Varnhagen com a mística da unidade nacional se ergue majestoso o poder político monárquico centralizador com autoridade de um patriarca como um imã gigantesco capaz de manter sob sua influência todos os elementos físicos e espirituais da nação ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p23 732 ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p8283 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbr downloadtextoup000007pdf 733 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p168 734 Hobsbawm refere que de um modo ou de outro a vinculação a um Estado histórico ou real presente ou passado pode agir diretamente sobre a consciência de pessoas comuns para produzir um Salah H Khaled Jr 219 de 1850 tratavase fundamentalmente de ressaltar o perfil desse estado ilustrado como portador da civilização e motor do progresso735 Odalia afirma que o Estado deveria representar também o instrumento mais importante e decisivo no processo de realização do projeto político da nação736 Portanto quando se pensa em nação na concepção de Varnhagen esta encontrase vinculada ao Estado que por sua vez associase à ideia de uma monarquia centralizada e forte que garante a integridade do território nacional e mantém uma hierarquização rígida737 Esse é o sentido a ser fundado738 Portanto pode não haver uma definição clara do que é a nação mas não há dúvida quanto ao papel que o Estado exerce na sua formação739 É o Estado que constitui a nação e não o contrário740 O poder centralizado por si só também não basta devendo estar sob a forma monárquica741 Para Wehling em toda sua obra a consolidação estatal da nação é o escopo os fins do Estado são positivos sempre que visem à ampliação das fronteiras à sua defesa ou à eliminação de inimigos sejam quilombolas rebeldes ou indígenas742 Por excelência Varnhagen condena tudo que prejudica a unidade nacional centralizada que ele já preconiza como em protonacionalismo ou talvez algo até próximo do patriotismo moderno HOBSBAWM Eric Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p90 735 GUIMARÃES Manoel Luiz Lima Salgado A invenção do passado In Nossa História v3 São Paulo 2005 p26 736 ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p17 737 Ao comentar a implementação de certas medidas Varnhagen diz que tiveram o sentido de regula rizar melhor as recompensas dos altos feitos e dar à ordem hierárquica da nação certa disciplina de acordo com a centralização monárquica que triunfara de todo em Portugal VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 157 738 Segundo Odalia Toda a História Geral do Brasil se constrói de forma concêntrica tendo o Estado como centro impulsionador do esforço e dos processos históricos que devem terminar com a realização da Nação brasileira ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p17 739 Odalia comenta que Presente passado e futuro se confundem numa visão do mundo da política o que tem como centro a Nação entidade abstrata vazia de conteúdos que surgirão com o des velamento de seu passado como instrumento o Estado ser puro demiurgo alheio às condições sóciohistóricas das quais surge e que assume em relação à nação e ao povo o papel de um tutor imparcial onisciente e onipresente velando para que o seu desenvolvimento se processe de maneira regular e segura sem as naturais distorções de um organismo infantil ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p1819 740 Odalia entende que Pela ação do Estado não é uma colônia que se constitui mas o Brasil ainda que temporariamente apenas sob a forma de uma unidade territorial assegurada pela presença da autoridade e da lei ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p73 Disponível em httpwwwdominiopu blicogovbrdownloadtextoup000007pdf 741 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 131 742 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p90 Horizontes Identitários 220 formação no Brasil colonial743 O privilégio que Varnhagen dava ao Estado na sua narrativa não era sem razão de ser Como Hobsbawm afirma um dos critérios para que um povo fosse classificado como nação de acordo com o pensamento oitocentista era sua associação histórica com um Estado existente ou com um Estado de passado recente e razoavelmente durável744 Para o autor uma vez dada a identificação da nação com o Estado era natural que estrangeiros pressupusessem que o único povo em um país fosse pertencente ao povoEstado745 Odalia aponta que Varnhagen insiste repetidamente na busca de elos com o passado tentando de todas as maneiras construir uma continuidade que fundamentasse a unidade política e um autêntico sentimento de nacionalidade746 Explicase portanto a forma com que Varnhagen prefigura um Estado brasileiro nos primeiros tempos coloniais o que é anacrônico porém ao mesmo tempo pragmático747 Cumpre ressaltar novamente que na sua ótica de acordo com seus valores era somente a partir do Estado que poderia ser inventada e legitimada a nação748 743 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 173 744 HOBSBAWM Eric Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Ja neiro Paz e Terra 1990 p49 745 Ibid p49 746 ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p109 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbr downloadtextoup000007pdf 747 Para Guibernau O estado nacional é um fenômeno moderno caracterizado pela formação de um tipo de estado que possui o monopólio do que afirma ser o uso legítimo da força dentro de um território demarcado e que procura unir o povo submetido a seu governo por meio da homogeneização criando uma cultura símbolos e valores comuns revivendo tradições e mitos de origem ou às vezes inven tandoos As principais diferenças entre uma nação e um estado nacional quando estes não coincidem como quase sempre acontece são que enquanto os membros de uma nação têm consciência de for mar uma comunidade o estado nacional procura criar a nação e desenvolver o senso de comunidade dela proveniente Enquanto a nação compartilha de uma mesma cultura valores e símbolos o estado nacional tem como objetivo a criação de uma cultura símbolos e valores comuns Os membros de uma nação podem relembrar seu passado comum se os membros de um estado nacional fazem o mesmo podem defrontarse com um quadro em branco porque o estado nacional não existia no passado ou então fragmentado e diversificado por terem antes pertencido a diferentes nações étnicas Enquanto o povo que forma uma nação tem um senso de pátria e se sente ligado a um território o estado nacional pode ser o resultado de um tratado ou da vontade de políticos que decidiram onde traçar o limite entre estados GUIBERNAU Montserrat Nacionalismos o estado nacional e o nacionalismo do séc XX Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p5657 748 Esta não é uma especificidade brasileira Hobsbawm comenta que Só por um impulso forte para formar um povo é que os cidadãos de um país se tornaram uma espécie de comunidade embora uma comunidade imaginada e seus membros portanto passaram a procurar e consequentemente a achar coisas em comum lugares práticas personagens lembranças sinais e símbolo alterna tivamente a herança de partes regiões e localidades do que havia se tornado a nação poderia ser combinada em uma herança nacional de modo que até mesmo antigos conflitos Vieram a simbolizar Salah H Khaled Jr 221 Além disso ainda que Varnhagen não explicite propriamente essa posição em nenhum trecho sua defesa intransigente da unidade nacional leva a crer que ele associa a viabilidade da nação com a extensão do seu território Nesse sentido cumpre referir que o ponto central da compreensão liberal de nação na primeira etapa do século XIX parece ter sido uma questão de escala749 De acordo com esse critério a nação teria que ter tamanho suficiente para formar uma unidade viável de desenvolvimento Se caísse abaixo desse patamar não teria justificativa histórica Isso parecia muito óbvio para requerer argumentação e era raramente discutido750 Esta definição conformava o que Hobsbawm chama de princípio da nacionalidade em que um ponto crítico de escala determinava a viabilidade da nação Percebese assim que a manutenção da integridade nacional era vista como uma questão de sobrevivência política Embora esse estudo não tenha a pretensão de provar que os membros do IHGB tinham acesso e eram influenciados por tais ideias considerando se a penetração e posterior adaptação do liberalismo no país não parece nada improvável a suposição O Brasil nascia como país independente desprovido de um processo de industrialização o qual somente se tornaria realidade no século seguinte e munido de uma diminuta elite intelectual Além disso em certo sentido era carente de uma cultura nacional e até mesmo de um passado desvinculado de Portugal Portanto era lógico que as elites do centro do país se apegassem de tal forma a integridade do território nacional enquanto critério de viabilidade da nação a construir a partir de um viés estatal Fazer parte de um grande país inclusive em dimensões territoriais era sobretudo um mecanismo de adesão importante para a fundação de uma identidade nacional tarefa a que se propunha o Instituto Como já demonstrado no primeiro capítulo ao discutir o artigo de Martius no entendimento de Varnhagen a nação é una e portanto isso implica na anulação das partes pelo todo Essa concepção não admite exceção Varnhagen é sua reconciliação em um plano mais elevado e geral Os Estados e regimes tinham todas as razões para reforçar se pudessem o patriotismo estatal com os sentimentos e símbolos da comunidade imagi nária onde e como eles se originassem e concentrálos sobre si mesmos HOBSBAWM Eric Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p111 749 Nesse sentido Hobsbawm aponta que John Stuart Mill justificava o inegável nacionalismo dos irlandeses na base de que eles eram afinal e contas suficientemente numerosos para serem capazes de constituir uma nacionalidade respeitável Ibid p42 750 Ibidem Horizontes Identitários 222 verdadeiramente extremo na sua defesa da autoridade de um Estado centralizado e de uma nação una e indivisa e portanto negadora da identidade regional751 Esse é um ensinamento que deve ser literalmente reiterado até a exaustão e que se constitui por excelência em uma estratégia de fundação de memória Por outro lado sua definição de nação e nacionalismo é essencialmente política Para ele basta adesão aos valores oficiais em sintonia com a vontade soberana do Monarca e do Estado para que inclusive os bárbaros e escravos sejam integrados ao todo nacional752 Nesse sentido não há reconhecimento do outro mas sim exaltação da assimilação e da incorporação ao todo da nação que Varnhagen prefigura no passado Não passaremos adiante sem observar que nas capitanias do Norte a guerra estranha produziu resultados benéficos O perigo comum fez aproximar mais do escravo o senhor e o soldado europeu do brasileiro ou do índio amigo Com as honras e condecorações concedidas mediante o beneplácito da cúria romana ao Camarão e a Henrique Dias libertos aquele da barbárie este da escravidão se honraram todos os índios e todos os africanos na idéia de que certo desfavor em que se julgavam não provinha de suas cores mas sim da falta de méritos para serem melhor atendidos753 Assim astutamente Varnhagen transforma em vantagem a formação racial diversificada do brasileiro e por extensão enaltece a nação754 Há aqui uma dupla vitória sobre o inimigo e sobre a resistência nativa e negra e logo duplamente fundadora de nacionalidade e sentidos sobre a nação755 Em outro trecho ao tratar da miscigenação 751 Aqui Varnhagen comete um raro deslize deixando escapar uma identificação regional quando fala da expedição empreendida pelo capitão Souto e o ajudante André Vidal que chegaram até a Paraíba pátria deste último destruindo a ferro e fogo VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p 269 752 Para Wehling Tanto negros como índios aculturados isto é cristãos que falavam português e haviam aderido aos valores da sociedade portuguesa foram objeto de elogio em toda a obra historio gráfica de Varnhagen WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p166 753 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p9798 754 Odalia observa que as etnias dessemelhantes no início da luta se aproximam pela luta comum e pelo fato de que as barreiras que antes existiam entre elas começam a desabar para que possa surgir o homem brasileiro ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p56 Disponível em httpwwwdominiopu blicogovbrdownloadtextoup000007pdf 755 Para Reis O Brasil que ele vê integrarse nesse momento não é um Brasil popular mestiço índio e negro ele celebra o coroamento da dominação portuguesa e a colaboração da população nativa A vitória contra os holandeses confirmou e concluiu a vitória portuguesa contra indígenas e negros Este Salah H Khaled Jr 223 entre colonos e índias novamente transparece o ideal assimilacionista e de forma curiosa uma vez que ele diz que os resultados apesar de serem irreligiosos os meios não podiam deixar de ser em favor da fusão das duas nacionalidades756 A fusão é entendida como assimilação a uma nação em formação Passavamse nesses tempos primitivos nas colônias brasileiras nascentes análogas cenas às que haverão tido lugar em todos os países mais atrasados que começam a ceder passo à nacionalidade que nele se introduz com superioridade e encantos da civilização sobre a barbárie757 Essa ideia de uma nação em formação que se expande e incorpora a barbárie também contempla outro requisito da compreensão da nação nos oitocentos a de que a construção das nações foi inevitavelmente vista como um processo de expansão758 Afinal no entendimento então corrente a evolução histórica não poderia esperar menos759 Essa compreensão vinculava a afirmação das nações a uma lógica de expansionismo tanto territorial quanto étnico Para Hobsbawm na prática isso significava que se esperava que os movimentos nacionais fossem movimentos pela expansão ou unificação nacional760 Ou seja o princípio é legítimo quando tende a unir em um todo compacto grupos diversos e ilegítimo quando tende a dividir um Estado761 Havia uma perspectiva evolucionista relacionada ao nacionalismo como é é o ponto de vista de Varnhagen aqui não surgia o Brasilbrasileiro antiportuguês que outros verão depois mas o Brasilportuguês a consolidação de fato do que o Tratado de Tordesilhas garantia como um direito de Portugal REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p42 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid 9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColon izaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShc TbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookresul 756 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p 215 757 Ibidem 758 HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p44 759 Hobsbawm refere que era aceito na teoria que a evolução social expandiria a escala de unidades sociais humanas da família e da tribo para o condado e o cantão do local para o regional para o nacional e ocasionalmente para o global Assim sendo as nações estavam afinadas com a evolução histórica na medida em que elas ampliassem a escala da sociedade humana Ibid p44 Ibid p45 760 HOBSBAWM Eric Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janei ro Paz e Terra 1990 p45 Grifo nosso 761 Hobsbawm afirma que tudo isso era evidentemente incompatível com definições de nações base adas na etnicidade língua ou história comum mas como vimos estes não eram critérios decisivos da formação liberal de nações Em qualquer caso ninguém chegou a negar nunca a real multinaciona lidade ou multilingualidade ou multietnicidade dos mais antigos e inquestionáveis Estadosnações ou Horizontes Identitários 224 típico do pensamento oitocentista Como refere Hobsbawm a questão do estabelecimento de um EstadoNação específico dependia de este mostrarse adequado ao progresso ou à evolução histórica avançada para além dos sentimentos subjetivos da nacionalidade envolvida ou das simpatias pessoais do observador762 Nesse sentido não pode ser esquecido o fato de que o próprio Brasil surgiu a partir da conquista e essa conquista era vista como prova de sua viabilidade Isso era inclusive justificado pela própria teoria do século XIX uma vez que evolucionismo nacionalista implicava em assimilação Esse processo de assimilação do outro deveria ser visto sob a ótica de Varnhagen como motivo de orgulho pois implicava no triunfo da civilização sobre a barbárie um triunfo do qual todos os brasileiros deveriam se orgulhar e logo com o qual deveriam se identificar No entanto se a evolução implicava em expansão e assimilação isso invariavelmente traz à tona a pergunta do que era feito dos grupos assimilados763 Para tais grupos o destino era a subordinação e assimilação em uma unidade maior historicamente viável em um sentido teleológico Todavia resta a questão de como resolver a mistura pois isso implicava em um questionamento sobre quais grupos deteriam o controle político Em suma a heterogeneidade dos EstadosNações foi aceita sobretudo porque parecia claro que as nacionalidades pequenas e especialmente as pequenas e atrasadas só tinham a ganhar fundindose em nações maiores e fazendo através destas sua contribuição para a humanidade764 Embora possa parecer um processo diabólico fazia sentido face ao discurso da época765 Tratase da lógica do assimilacionismo extremamente familiar ao horizonte de seja GrãBretanha França ou Espanha Ibid p45 762 Ibid p5253 763 Hobsbawm questiona portanto se o único nacionalismo historicamente justificável era aquele ajustado ao progresso isto é aquele que alargava e não restringia a escala da operação humana na economia na sociedade e na cultura qual podia ser a defesa dos povos pequenos das línguas me nores e das tradições menores na grande maioria dos casos a não ser uma expressão de resistência conservadora ao avanço inevitável da história Ibid p53 764 Ibid p46 765 Hobsbawm refere que assim na perspectiva da ideologia liberal a nação isto é a grande nação viável representava o estágio de evolução alcançado na metade do século XIX a outra face da moeda nação como progresso foi portanto e logicamente a assimilação de comunidades e povos menores aos maiores HOBSBAWM Eric Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e Salah H Khaled Jr 225 construção identitária brasileira o qual inclusive encontrava fundamentação teórica766 Essa fundamentação permite até mesmo considerar um aspecto que valorizava a ancestralidade portuguesa na construção da identidade brasileira pois o próprio país teria surgido através da expansão territorial e étnica no qual a virtude portuguesa havia sido instrumental e inclusive foi aprimorada em virtude do assimilacionismo767 Para Varnhagen a integração do outro ao todo da nação é uma integração ao modelo europeu parâmetro de civilização Essa união inclusive é o caminho para o progresso e para a expulsão dos eventuais invasores É uma inclusão inteiramente utilitária do outro768 Não é por acaso que Varnhagen afirma que essa também foi a opinião do inimigo pois Nieuhoff diz mui expressamente que a perda do Maranhão em 1644 para confessar a verdade foi devida à combinação dos portugueses com os habitantes do GrãoPará e os naturais da terra769 Quanto maior o somatório de forças sob a chancela dos objetivos oficiais maiores as condições de superação dos obstáculos Os sentidos exemplares novamente se insinuam de forma sedutora sobre o leitor a obsessão com uma união plena e absoluta da nação perpassa toda a obra Quando se pensa em nação se pensa em mecanismos de integração que façam com que seus habitantes se sintam pertencentes a ela que desenvolvam portanto uma identidade nacional Para Varnhagen a guerra evocando Hegel é vista como realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p5051 766 Como afirma Hobsbawm a experiência disse Mill articulando o consenso de observadores sensí veis prova que é possível para uma nacionalidade fundirse e ser absorvida por outra Para os inferio res e atrasados isso seria um ganho enorme Ibid p46 767 Odalia considera que Varnhagen interpreta a história colonial e portanto a formação da nação de maneira a aparecer claramente a superioridade de uma etnia de uma cultura de uma civilização de uma religião de um modo de vida e de pensamento a do branco vencedor que se impõe a outras for mas à dos índios inicialmente e à dos negros posteriormente sempre identificadas como bárbaras consumada a vitória do branco só resta aos vencidos índios e negros integraremse ao projeto de nação pela única porta que se lhes deixa aberta a assimilação racial ODALIA Nilo Introdução In Varnhagen São Paulo Ática 1979 p1920 768 É o que transparece quando Varnhagen diz que Voltemos porém a Men de Sá Com sujeitar por terra os gentios apenas havia ele cumprido uma parte da sua missão a respeito deles Restavalhe a mais importante a de ver como se deveriam governar de modo que pudessem ser mais úteis a si e ao Estado VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Me lhoramentos 1959 p 333 Quando não é o utilitarismo que prepondera é o pragmatismo no dia 15 de maio assinavam na Várzea do Capibaribe os dois chefes escolhidos João Fernandes Vieira e Antonio Cavalcanti em nome da liberdade divina e para vingar agressões e tiranias os diplomas conferindo os postos de capitães dos diferentes distritos da província com poderes para requisitarem dos povos mantimentos e dinheiro e para deitar bandos convocando a todos assim nacionais como estrangeiros judeus ou índios a tomarem as armas assegurandolhes perdão pelo passado VARNHAGEN Fran cisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhoramentos 1959 p1617 769 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 328 Horizontes Identitários 226 um instrumento apto e apropriado a promover a coesão dentro da nação reunindo inclusive os estrangeiros em torno de uma causa comum de um interesse nacional de um interesse que é enfim norteado pelo Estado por um critério de nacionalismo baseado em vontade e não em etnia770 É uma concepção abrangente o suficiente para unir toda a disparidade característica do país sob a orientação dos objetivos comuns estabelecidos pelo oficialismo que ele defendia Em função dessa perspectiva para Wehling pode ser percebida em Varnhagen uma concepção de nação com base na vontade nacional o que o aproxima da escola francesa do nacionalismo em oposição à escola germânica a qual teria como pressupostos a identidade da língua e da história771 Varnhagen certamente não era radical a ponto de abominar tudo que é estrangeiro Nesse sentido Varnhagen faz um pedido no prefácio da 1ª edição da HGB oxalá os leitores façam a devida justiça aos nossos princípios não por esta ou aquela passagem da obra mas pelo seu conjunto Oxalá descubram nela através da ostentação de uma tolerância civilizadora os sentimentos de patriotismo nobre e elevado que nos animaram não de outro lamentável patriotismo cifrado apenas na absurda ostentação de vil e rancoroso ódio a tudo quanto é estrangeiro772 De fato o que Varnhagen defendia era um tipo específico de colonização marcada pela centralização e autoridade estatal e não um nacionalismo português tanto que atribuiu o descobrimento aos espanhóis De forma semelhante reconheceu os méritos de Nassau dizendo que por todo o Brasil não houvera anteriormente obras tão consideráveis e tão habilmente executadas773 e que foi porém nas ciências que se fizeram mais recomendáveis os serviços prestados pela influência de Maurício de Nassau no Brasil774 Pragmático acima de tudo como de costume 770 O critério para Varnhagen é eminentemente baseado na vontade Como ele diz Enquanto a nova companhia holandesa se organizava não faltou quem lembrasse a formação de outra na Península hispana para lhe fazer face Eram autores da idéia vários judeus portugueses residentes na mesma Holanda e em cujo coração as injustiças e perseguições não haviam apagado o amor da pátria VAR NHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p 164 771 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p54 772 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927pXXII 773 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 288 774 Ibid p 289 Salah H Khaled Jr 227 Não se pense entretanto em função desse raciocínio que Varnhagen era favorável à diferença Ao contrário ainda que a tolerasse quando posta em prol da nação via a heterogeneidade com manifesta reprovação Por exemplo ao comentar o fracasso holandês Varnhagen afirma que Devemos porém declarar que geralmente os sitiantes não se recomendaram pela boa ordem disciplina e fiscalização nos fornecimentos e cada parcialidade procedia com demasiada independência o que pudera ter prejudicado muito se também entre os inimigos não houvesse falta de homogeneidade pois contavam em seus terços ou regimentos soldados flamengos alemães ingleses franceses e até polacos tudo gente adventícia e mercenária775 Ele é sobretudo inimigo da heterogeneidade Para Varnhagen interessa padronizar e uniformizar Em outro trecho isso fica novamente evidente Varnhagen advogava um sistema de colonização visando substituir a mão de obra africana em que recrutando os próprios nacionais pobres se evitam os perigos dessas chumas compactas de colonos estrangeiros e às vezes de religião diferente da que professa o país que podem vir a ser outro Estado no Estado e dar lugar a perturbações e guerras civis para não dizer o risco de perderse a anterior nacionalidade histórica776 Portanto se ele baseava seu critério de nação na vontade o fazia pela força das circunstâncias da evidente miscigenação em torno da qual se formou a população brasileira777 No Brasil afinal a nação não poderia ser pensada de outra forma em função de sua formação étnica extremamente diversificada778 O critério de vontade como base fica evidente na frase a seguir 775 Ibid p 198 776 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p129 777 Também pode se considerar como aponta Guimarães que se buscavam na França os parâmetros para a elaboração da escrita da nação Daí o possível vínculo com a escola francesa GUIMARÃES Manoel Luiz Lima Salgado De Paris ao Rio de Janeiro A institucionalização da escrita da História In Acervo v04 n01 1989 p136 778 Evidentemente como ressalta Hobsbawm todas as nações são inventadas e caracterizamse por uma população em larga medida miscigenada No Brasil entretanto em função da colonização e a forma com que ela se deu isso é sem dúvida mais evidente Horizontes Identitários 228 Não somos mercê de Deus fatalista na história Cremos sim que uma guerra de tempos a tempos pode erguer um país do seu torpor cremos que a estranha quando a costa brasílica acabava de ser ocupada na totalidade com as cidades de São Luis e de Belém no Maranhão e no Pará poderia estabelecer como estabeleceu mais união e fraternidade em toda família já brasileira cremos que se estreitam muito nas mesmas fileiras ao laço de que resultam glórias comuns e que não há vínculos mais firmes que os sancionados pelos sofrimentos e tanto que ao estrangeiro que peleja ao nosso lado e que derrama seu sangue pela nossa causa lhe conferimos pelo batismo do sangue a mais valiosa carta de naturalização 779 Odália destaca que em Varnhagen uma nação é também o produto de lutas em que o sangue corre generoso e heróico serve para amalgamar e sustentar o sentimento de nacionalidade780 Aqui além de estimular o sentimento de entrega e desprendimento de disposição para o sacrifício que é tão característico do nacionalismo Varnhagen também detecta uma outra coisa Ele está percebendo uma comunidade que na sua atribuição de sentido passa a imaginarse como nação para usar o conceito de Benedict Anderson Essa ideia de uma família brasileira que está sendo formada que cada vez mais é unida por laços de fraternidade aponta para uma noção que aparece com regularidade na obra de Varnhagen a noção de espírito público Essa noção está presente no prólogo da 2ª edição da HGB e é utilizada com certa frequência Uma nação diz outro talentoso escritor francês é um grupo mais ou menos considerável de famílias provindas às vezes de sangue mui diferente mas todas unidas pela identidade de espírito público tem no passado uma só história não duas e se dela se rompesse as tradições deixaria de apresentarse devidamente781 Para Varnhagen a nação está em plena formação nos tempos coloniais na medida em que ele vê ou projeta várias de suas características sobre o passado que passam a adquirir caráter de tradição782 A noção de espírito público na História 779 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p162163 780 ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 p51 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbr downloadtextoup000007pdf 781 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927pVI 782 Guibernau define que Por nação refirome a um grupo humano consciente de formar uma comu Salah H Khaled Jr 229 Geral do Brasil parece equipararse de certa maneira a um sentimento nacional ao nacionalismo783 É um espírito público na medida em que implica em subordinação da parte ao todo de reconhecimento desse todo de coesão Por outro lado o perigo comum aumentou muito a tolerância dos povos de umas capitanias para as outras e estabeleceu maior fraternidade de modo que quase se pode assegurar que dessa guerra data o espírito público mais generalizado por todo o Brasil784 A noção de espírito público entendido como sentimento nacional é justamente utilizada para se contrapor ao provincialismo ao mandonismo local e à identidade regional É o que transparece no trecho a seguir no qual ele reúne vários elementos do seu sistema de pensamento para passar essa ideia ao comemorar o fracasso da Revolução Pernambucana de 1817 Assim ainda desta vez e não foi a última o braço da Providência bem que à custa de lamentáveis vítimas e sacrifícios amparou o Brasil provendo em favor da sua integridade está pronunciado o espírito público de todas as províncias e que finalmente tem bastante juízo crítico para apreciar o quanto é sofística a proposição dos que por suas ambições pessoais as pretendem iludir dizendo lhes que independentes estariam mais ricas 785 Pode ser considerado sem incorrer em exagero que a obra de Varnhagen se dedica justamente à promoção e fundação de tal espírito público cujas implicações resultam na adesão ao corpo da nação ao todo Nesse sentido Gellner ao assegurar que existe uma correspondência entre a unidade nacional e a unidade política afirma que o sentimento nacionalista é o estado de cólera causado pela violação desse nidade e de partilhar de uma cultura comum ligado a um território claramente demarcado tendo um passado e um projeto comuns e a exigência do direito de se governar Desse modo a nação inclui cinco dimensões psicológica consciência de formar um grupo cultural territorial política e histórica GUIBERNAU Montserrat Nacionalismos o estado nacional e o nacionalismo do séc XX Rio de Janeiro Jorge Zahar 1997 p56 783 Guibernau afirma que por nacionalismo refirome ao sentimento de pertencer a uma comunidade cujos membros se identificam com um conjunto de símbolos crenças e estilos de vida e têm a vontade de decidir sobre seu destino político comum Ibidp56 Varnhagen parece utilizar a ideia de espírito público com essa conotação de vontade de decidir sobre um destino político que é comum 784 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p9798 785 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p177 Horizontes Identitários 230 princípio ou o estado de satisfação causado pela sua realização786 Para ele o próprio movimento nacionalista é iniciado a partir de um sentimento de tal natureza No pensamento de Varnhagen que projeta uma nação sobre o Brasil colônia era justamente esse espírito público de cólera que precisava ser desperto de uma certa letargia face ao domínio inimigo para que fosse restabelecida a unidade da nação787 Tratase de um despertar em que inclusive todo o sacrifício é justificado toda arbitrariedade relevada pois é em nome de um sentimento patriótico o que remete à ideia de satisfação788 O patriotismo no pensamento de Varnhagen se situa no espectro contrário do pernicioso provincialismo É um sentimento que ele se propõe a exaltar a despertar a exemplificar O caráter de pedagogia nacional da sua narrativa se evidencia por si só E todas as províncias também sabem que nos povos muito fáceis são as separações ao passo que muito custam a efetuarse as uniões ao provincialismo associamse apenas idéias de interesses provinciais quando principalmente as de glória andam anexas ao patriotismo sentimento tão sublime que faz até desaparecer no homem o egoísmo levandoo a expor a própria vida pela pátria ou pelo soberano que personifica o seu lustre e a sua glória789 As estratégias de persuasão utilizadas por Varnhagen se revestem de um caráter que vai muito além da mera insinuação A sua noção de espírito público evoca 786 GELLNER Ernest Nações e nacionalismo Lisboa Gradiva 1993 p11 787 Varnhagen coloca a questão rapidamente ao tratar da luta contra os holandeses Era porém chegada para os nossos a hora das represálias Os holandeses fiados na validade do pactuado em virtude das tarifações iam dormir o mesmo letargo de confiança em que os nossos haviam jazido fiados na honra de Nassau e da mesma sorte que eles tinham abusado da boa fé iam ser vítimas da sua confiança nela A eles que haviam ensinado o caminho cabe toda a responsabilidade E graças a Deus porque a não haverem procedido tão mal porventura o Norte do Brasil seria senão ainda co lônia deles como Batávia pelo menos mui provavelmente de nacionalidade diferente da do Sul Ainda assim tão amortecido se achava o espírito público ou tão pequenos eram os recursos que tinham os povos submetidos para sacudir o jugo que foi necessário ajudálos das capitanias vizinhas No Maranhão o jugo dos opressores era mais forte o espírito público por isso mesmo que esse jugo havia durado menos não estava tão amortecido e a conspiração teve a fortuna de encontrar à sua frente nobres caracteres como foram os senhores de engenho Antonio Barreiros e Antonio Teixeira de Melo VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramen tos 1959 p 326327 788 É assim que Varnhagen vai considerar que o esforço para resistir aos franceses justifica o sacrifício Diz ele que Para isso começou o governador como seu predecessor por fixar sua residência em Per nambuco a fim de se achar mais perto procedeu a todos os gastos chegando a tomar arbitrária mas patrioticamente uns cinco a seis mil cruzados que estavam em depósito da donataria de Itamaracá então em pleito Ibid p 141 789 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p177178 Grifo nosso Salah H Khaled Jr 231 o patriotismo790 utilizado com uma conotação definitivamente hegeliana Nos selvagens não existe o sublime desvelo que chamamos de patriotismo que não é tanto o apego a um pedaço de terra ou bairrismo que nem sequer eles como nômades tinham bairro seu como sentimento elevado que nos impele a sacrificar o bem estar e até a existência pelos compatriotas ou pela glória da pátria Nem poderiam possuir instintos de amor de pátria que como nômades a não tinham e que limitavam a tão curtos horizontes a idéia de sociabilidade que geralmente não a estendiam além dos da sua tribo ou maloca a qual não dominava mais no território do que os contornos do distrito que provisoriamente ocupavam Essas gentes vagabundas que guerreando sempre povoavam o terreno que hoje é o Brasil eram pela maior parte verdadeiras emanações de uma só raça ou grande nação isto é procediam de uma origem comum e falavam dialetos de uma mesma língua que os primeiros colonos do Brasil chamaram geral e era a mais espalhada das principais de todo este continente791 Neste trecho Varnhagen usa o termo nação com uma conotação anterior a que se tornou usual no século XIX É a ideia de nação entendida com sentido étnico e não como território nacional com fronteiras definidas habitado por um povo específico792 Ele o faz em vários trechos Em outro momento por exemplo Varnhagen referese à existência de nações negras ao afirmar que tão pouco temos por essencial dar um extenso catálogo das diferentes nações de raça preta a importação dos colonos pretos para o Brasil feita pelos traficantes teve lugar de todas as nações não só do litoral da África nessas nações a liberdade individual não estava assegurada793 Embora Varnhagen em alguns momentos reconheça uma certa unidade de raça e língua entre os índios o que poderia favorecer o surgimento de uma nação 790 Varnhagen usa poucas vezes este sentido propriamente patriótico moderno como em o ministro Pombal não hesitou como patriota superior a prevenções VARNHAGEN Francisco Adolfo de Histó ria geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhoramentos 1959 p237 791 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p24 792 Hobsbawm afirma que no século XIX houve um deslocamento de significado no qual o que repre sentava unidade étnica passou a significar independência e unidade política Diz ele que qualquer que seja o significado próprio e original ou qualquer outro do termo nação ele ainda é claramente diferente de seu significado moderno Podemos portanto sem ir mais além no assunto aceitar que em seu sentido moderno e basicamente político o conceito de nação é historicamente muito recente HOBSBAWM Eric J Nações e nacionalismo desde 1780 programa mito e realidade Rio de Janeiro Paz e Terra 1990 p30 793 VARNHAGEN Op cit p 224 Horizontes Identitários 232 considera que foram incapazes de se integrar mantendose fragmentados pois não havia uma autoridade centralizada na figura de um chefe Conforme pensa Varnhagen é importante que esse processo seja percebido dessa forma para que não haja questionamento moral à colonização Não há um processo de imposição mas sim de fundação da nação com a chegada dos portugueses Somente a partir daí é realmente possível pensarse em nação no sentido pleno e moderno do termo O próprio Varnhagen relativiza a afirmação anterior de existência de nação indígena afirmando que não constituíam uma nação nem mesmo pequenas nações na acepção em que mais geralmente em direito universal se toma hoje esta palavra Formavam antes muitas cabildas pela maior parte procedentes dos últimos invasores do território794 Ou seja não eram uma nação porque não se conformavam ao modelo europeu Mesmo que por vezes Varnhagen utilize o termo nação ou nacionalidade para referirse aos indígenas está claro que quando o faz é utilizado em outro sentido que não o de uma moderna nação europeia795 Consequentemente Varnhagen se recusa a atribuir aos indígenas qualquer importância enquanto base da nacionalidade brasileira796 Assim ele afirma por exemplo uma idéia de seu estado não podemos dizer de civilização mas de barbárie e de atraso De tais povos na infância não há história há só etnografia797 Não pode haver história da nação indígena porque ela é desagregada desunida destituída de um Estado centralizado de um espírito público de um sentimento nacional798 Enfim é destituída de tudo com que Varnhagen deseja 794 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p52 795 Este é o sentido que Varnhagen atribui propriamente a uma nação falando de um acordo entre Portugal e Espanha entre várias estipulações se combinou que se uma das duas nações viesse a ter guerra com outra estranha a que ficasse em paz guardaria neutralidade as duas nações se declararam guerra e se guerrearam principalmente na América VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhoramentos 1959 p270 796 Para Wehling Varnhagen recusava atribuir aos indígenas a base da nacionalidade como faziam os românticos Para ele eram no presente apenas populações geralmente refratárias e hostis que domi navam áreas extensas do território brasileiro e nos quais por conseqüência não se exercia a soberania nacional em sua plenitude WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p164 797 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1959 p30 798 Odalia indica que Não se pode deixar de mencionar que para Varnhagen no processo de con quista se defrontam dois sistemas de vida duas sociedades mas jamais duas nações ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vian na São Paulo UNESP 1997 p54 Disponível em httpwwwdominiopublicogovbrdownloadtexto Salah H Khaled Jr 233 que seu leitor se identifique E a história para ele é por excelência um relato da nação uma narrativa nacional a partir de uma perspectiva de estado que orienta as ações dos indivíduos799 De qualquer forma Varnhagen elaborou um relato que é por excelência fundador de sentidos sobre a nação fundador de uma memória nacional Como afirma Wehling a preocupação de Varnhagen com o enfraquecimento da unidade nacional foi uma constante em sua obra800 A essa preocupação ele buscou corresponder através da projeção de uma nação forte e unida já no Brasilcolônia É uma nação por ele construída por ele inventada e prefigurada desde os tempos coloniais como destinada a juntarse à mesa das grandes nações europeias Seu entendimento de nação ainda que impreciso apontava para os modelos europeus de desenvolvimento a que ele desejava conduzir o país Em suma como diz Wehling o Estado forte maior do que a sociedade criador da nação e aperfeiçoador pedagógico e étnico do povo eis o ideal de Varnhagen801 Ou seja ele não se preocupou muito com uma definição rigorosa de nação porque na verdade interessavalhe afirmar a primazia do Estado e fazer com que seu leitor experimentasse a história do Brasil como tal Já abordados os elementos mais característicos do pensamento de Varnhagen e a forma com que eles se expressam em uma narrativa nacional dotada de fundo exemplar resta definir o próprio Varnhagen em função de tal escrita Colocandose como juiz do tribunal da história Varnhagen sentencia condena absolve e redime Mas afinal que espécie de juiz é esse que elaborou o relato da nação up000007pdf O que determina o caráter de nação é o padrão europeu Isso fica evidente em outra passagem quan do Varnhagen na introdução ao tratar de eventuais abusos dos colonos diz que não é também certo que à custa das lágrimas do exílio nos legaram eles a nós seus herdeiros as casas fabricadas as fazendas criadas as vilas e cidades fundadas a vida a religião o comércio a riqueza a civilização a pátria enfim VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927 pX 799 Wehling entende que para Varnhagen O fato histórico é um produto não exclusivo mas prepon derantemente estatal Estado escrita religião são os indicadores mais precisos da passagem para formas superiores de cultura civilizadas WEHLING Op cit p130 800 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p88 801 Ibid p91 Horizontes Identitários 234 36 Varnhagen advogado do estado e juiz inquisidor do tribunal da história Os crimes posto que seguidos de hum successo apparentemente feliz não deixão de ser detestáveis no tribunal da história se a imparcial penna de sábios os descreve em sua verdadeira luz O circunspecto gênio do historiador sentandose sobre a tumba do homem que ahi termina suas fadigas despreza argumentos de partido e conselhos de lisonja portandose seus juizos como austero sacerdote da verdade Januário da Cunha Barboza O discurso fundador do IHGB sinaliza com uma concepção de história que implica em uma profunda associação entre o ofício do historiador e o ofício do juiz bem como uma compreensão de busca da verdade como autêntico sacerdócio Tal entendimento por excelência aponta para uma primazia da imparcialidade sobre as paixões pessoais Entretanto uma história pragmática e engajada como a oitocentista ainda que científica de acordo com os parâmetros da época poderia ser tudo menos imparcial Todavia é isso que se espera dentro do possível de um juiz da justiça e de um tribunal Essa concepção quase jurídica de fazer história pautou as ações dos membros do IHGB no século XIX Parecia haver de fato um entendimento de que cabia ao historiador julgar o passado emitindo juízos com conotação jurídica Varnhagen não foi exceção sendo a sua obra o produto mais notável de uma prática historiográfica de acordo com esses referenciais e portanto caracterizada pelo uso extensivo de metáforas de ordem jurídica Termos como tribunal da história juiz veredicto e acareação são utilizados com grande frequência nos momentos em que Varnhagen intervém na narrativa para expressar seus juízos Varnhagen efetivamente julga e o faz munido da autoridade que a história mestra da vida lhe dá assim como da imparcialidade que afirma ser o seu norteador Vários comentadores de Varnhagen já se debruçaram sobre a questão do julgamento em sua obra Arno Wehling por exemplo enxerga nele uma concepção de juízo histórico como julgamento802 Para ele há nessa perspectiva a ideia de que O julgamento dos fatos históricos é não só dever mas a tarefa principal do historiador 802 WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p134 Salah H Khaled Jr 235 pois através dele fala a história a inflexível história803 Dessa forma o historiador supostamente se torna um juiz verdadeiramente neutro e imparcial804 Já para José Carlos Reis Varnhagen era um historiador engajado militante apesar de pretender produzir uma história imparcial e objetiva Julgava sempre tudo e todos e justificou a dominação colonial a submissão do povo os direitos das elites805 Temístocles Cezar por sua vez afirmou que a providência não é compreensível O quadro histórico é uma pintura humana que representa as vias traçadas pelos deveres dos homens Em conseqüência não é a providência que julga as ações humanas mas a própria história806 A história entretanto não é escrita de lugar nenhum O ato de julgar implica em um juiz que no caso detém o controle sobre o passado a partir de sua escrita Escrita esta que confere ao seu narrador o poder de ditar o recorte de cristalizar uma determinada memória de condenar redimir ou absolver de acordo com seus próprios critérios pragmáticos Em suma tratase de um narrador que tem o poder de dizer a verdade sobre o passado através da autoridade que o discurso científico lhe confere807 Ainda que o assunto já tenha sido discutido em alguma medida por parte de seus comentadores a proposta aqui é abordálo a partir de um enfoque diverso que é aspecto de narrativa nacional enquanto dimensão de convencimento e adesão e não 803 Ibidem Grifo nosso 804 Wehling afirma que assim A capacidade de julgar no historiador depende de qualidades como convicções profundas e caráter firme além da coragem para combater os preconceitos vulgares e para recusar o aplauso fácil do público Alcançará desta forma a neutralidade isto é a imparcialida de para averiguar os fatos e narrálos WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999 p134 805 REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p32 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgP A23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnhagenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3o PortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZsigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jf Su64JIOm8Ab258VasaXoibookresul 806 CEZAR Temístocles Lição sobre a escrita da história historiografia e nação no Brasil do século XIX In Diálogos DHIUEM v 8 n 1 p22 Disponível em httpwwwdialogosuembrincludegetdoc phpid436article142modepdf 807 Wehling pergunta o que era a verdade histórica para Varnhagen E conclui que segundo a ten dência dominante de seu tempo ele a via como um esforço de reconstituição integral do fato passado a partir da mais absoluta fidelidade ao acontecido Para Wehling O historiador historista por estes supostos metodológicos arrola fatos e testemunhos e emite uma sentença O autor comenta que Às sentenças o historiador chega por meio de um processo praticamente judicial com a análise dos do cumentos das partes a participação de testemunhas sua acareação e a consideração das provas e contraprovas Essas sentenças não devem ser recriminações mas quando estas forem indispensáveis devem corresponder ao juízo dos próprios contemporâneos O autor trabalha a questão a partir da articulação que faz entre Varnhagen e o historismo de Ranke WEHLING Opcit p132135 Horizontes Identitários 236 de escola histórica Embora exista uma proximidade muito grande entre a constituição da história enquanto disciplina e a incorporação de métodos de ordem jurídica não é essa a abordagem aqui proposta O sentido da análise encaminhada neste trecho é o de voltar contra Varnhagen suas próprias metáforas Portanto interessa sobretudo verificar as análises de Varnhagen sob a perspectiva de um leitor leigo a quem ele deseja convencer Sob esse ponto de vista parece mais produtivo pensar as metáforas jurídicas de Varnhagen enquanto experiência de leitura e não como método de escrita da história Varnhagen se vale em várias oportunidades de julgamentos no sentido jurídico do termo e isso resulta em algumas implicações O fato de Varnhagen colocarse como juiz e apresentarse ao leitor como tal levanta dúvidas a respeito de que tipo de juiz é esse narrador e com base em que critérios ele julga Afinal se Varnhagen é um juiz resta saber que espécie de juiz qual a natureza do tribunal que preside e qual a verdade que obtém com sua investigação Varnhagen considerase sobretudo um juiz imparcial Entretanto seu discurso caracterizase por uma pretensão eminentemente sedutora Como fica o critério de verdade por ele estabelecido diante dessa aparente contradição Varnhagen afirma que Convencidos igualmente que a verdade é a alma da história que só ela pode oferecer harmonia eterna entre os fatos narrados que o verdadeiro critério da verdade histórica não se pode aquilatar senão pela concordância nos incidentes não nos poupamos a nenhum esforço a fim de remontar às fontes mais puras808 Em um primeiro momento parece haver uma relação entre verdade e fonte e portanto de veracidade e fidelidade às fontes A forma com que Varnhagen se utiliza da categoria verdade entretanto excede essa significação Varnhagen não se limita a deixar ou pelo menos tentar deixar que as fontes falem A sua subjetividade latente simplesmente não o permite superando a sua objetividade enquanto historiador ou sua suposta imparcialidade como juiz Ao contrário do que poderia se pensar seu critério de verdade também passa pelo âmbito do subjetivo através da opinião pessoal que ele considera plenamente justificada Segundo Varnhagen 808 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927 pX Salah H Khaled Jr 237 o historiador sofrerá maiores injustiças se dotado de convicções profundas e de caráter firme e independente em vez de adular vãos preconceitos vulgares teve o necessário valor para enunciar francamente o que pensava em contra destes809 Essa é uma postura que evidentemente se revela problemática para uma pretensão de verdade pois fica difícil delimitar a diferença entre opinião e fato na medida em que a primeira adiciona significado ao segundo que em si mesmo já comporta em alguma medida uma construção por parte do historiador De acordo com a sua própria definição em um sentido teórico Varnhagen trata do problema posto pela verdade de forma sucinta Para ele a verdade é simplesmente o inverso do erro810 A definição parece simples mas ele não se limita a ela pois professa um verdadeiro amor à verdade Também nos cumpre repetir aqui o que já outra vez dissemos que o amor à verdade nos obrigará mais de uma vez a combater certas crenças ou ilusões que já nos havíamos acostumado a respeitar Aos que lamentem ver dissipadas algumas dessas ilusões de apregoados heroísmos rogamos que creiam que os haveremos precedido nessas jeremiadas e pedimos se resignem diante da verdade dos fatos com tanta maior razão quando essa verdade neste mesmo livro lhes proporcionará em vez dessas ilusórias glórias outras mais incontestáveis sendo que não pequeno número de pontos em que havia dúvidas conseguimos deixar esclarecidos não por nossos fracos talentos mas pelos argumentos incontestáveis que resultam das provas que mediante aturado estudo conseguimos reunir811 Novamente a relação entre verdade e fonte verdade e prova associada a uma profissão de fé que estabelece segundo ele verdades incontestáveis Portanto se Varnhagen é um juiz ele é a princípio um juiz que se apresenta como infalível e logo que não pode ter seus juízos questionados812 A articulação entre fato e avaliação a partir dessa posição já se mostra problemática Parece interessante mencionar um outro trecho no qual Varnhagen deixa transparecer mais um elemento da sua concepção de verdade histórica ao comentar a obra do Frei Rafael de Jesus 809 Ibid pXVII 810 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927 pXII 811 Ibid pXIII 812 Não é por acaso que Varnhagen defendeu ferrenhamente sua obra de quaisquer críticas Ele tinha de fato plena convicção no que fazia Horizontes Identitários 238 comprazse em fazer gala de mui retórico pondo na boca dos cabos de guerra arengas e discursos por ele compostos sistema que em nosso fraco entender ainda quando bem desempenhado desvirtua a índole da história compôlos porém por sua conta um autor é faltar sem consciência à verdade e escrever romance histórico em vez de história formal813 A verdade para Varnhagen comportaria ainda uma quarta dimensão além do contrário do erro da fidelidade às fontes e de uma busca marcada por um amor obsessivo também seria a negação de um esforço criativo deliberado Quanto ao último critério Varnhagen realmente o satisfaz Não há invenção de falas Mas isso basta para tornálo imparcial e fazer da sua narrativa a expressão da verdade como ele gosta de salientar Cezar afirma que havia um conjunto de regras utilizadas para representar o passado em princípio pesquisas feitas a partir de fontes rigorosas e de um narrador objetivo814 Entretanto considerandose a subjetividade que determina a dinâmica da escrita de Varnhagen essa é uma atitude científica que se mostra problemática na medida em que ele ou o pragmatismo que ele defende acaba sendo o único ou pelo menos o principal critério de verdade O problema está no fato de Varnhagen não reconhecer a inevitável subjetividade que caracteriza seus juízos conservadores e pragmáticos enquanto esforços eles mesmos criativos externos aos fatos sobre os quais ele supostamente narra tais verdades815 Claro que isso pode ser dito em alguma medida sobre a ciência de uma forma geral A aproximação com o objeto é quase sempre uma aproximação violenta Entretanto em Varnhagen tal violência é exacerbada Suas opiniões não são apenas opiniões pois ele atribui sentido aos fatos segundo a conotação que lhe interessa fundar Apesar da evidente disparidade entre o ideal de objetividade e a sua realização Varnhagen colocase em uma posição privilegiada Ele atribui a si mesmo o papel de 813 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 101Grifo nosso 814 CEZAR Temístocles Presentismo memória e poesia Noções da escrita da história no Brasil oi tocentista In PESAVENTO Sandra Jatahy org Escrita linguagem objetos leituras de história cultural Bauru SP EDUSC 2004 p69 815 Reis é severo com Varnhagen nesta questão Varnhagen se excede nesses comentários os cilando entre a sincera ingenuidade e o cinismo REIS José Carlos As identidades do Brasil de Varnhagen a FHC 5ª ed Rio de Janeiro FGV 2002 p41 Disponível parcialmente em http booksgooglecombrbooksid9oO0HLYNETUCpgPA23lpgPA23dqjosecarlosreisvarnh agenartigoOElogiodaColonizaC3A7C3A3oPortuguesasourceblotsyfNLrB5UTZ sigSkD1PdXh1ysykBa5VJShcTbhkhlptBReih6jfSu64JIOm8Ab258VasaXoibookre sul Salah H Khaled Jr 239 encarregado de trazer à tona a verdade embasada por provas por fontes Entretanto para além dessa preocupação logo transparece uma associação entre verdade e um raciocínio quase jurídico sobre o passado que ele reconstrói ou inventa com a narrativa nacional Isso pode ser percebido em momentos em que metáforas jurídicas afloram Bem longe estamos de acreditar que a verdade histórica se aquilate pelo número de autoridades não sendo estas aliás às vezes mais que reprodução ou plágio umas das outras e antes pelo contrário todos sabem que conforme o mais judicioso critério histórico casos há em que o depoimento de uma só testemunha presencial conscienciosa pode completamente destruir invenções e calúnias que se tiverem ido repetindo por um chorrilho de escritores de pouca autoridade chorrilho com razão comparável às armadilhas das cartas de jogar dobradas ao meio que servem de divertir as crianças quando a primeira que cai arrasta todas as demais Mas é também sem dúvida que o que sobra não prejudica e que é somente reunindo todas as testemunhas e acareandoas entre si e com certos fatos conhecidos que se atina com a verdade histórica816 A ideia de acareação implica em uma valoração Implica em afastar após um exame cuidadoso depoimentos falsos improcedentes e contraditórios Isso permite inclusive que ele venha a mudar de opinião conforme as circunstâncias se alterem Na primeira edição da História Geral do Brasil por exemplo foi extremamente duro com a Inconfidência Mineira Entretanto na segunda edição se propôs a rever o trecho dedicado à Inconfidência em função de uma série de críticas que recebera a primeira edição Valendose de seu método Varnhagen buscou avaliar e interpretar os depoimentos com o devido critério que segundo ele não se trata de uma pura e simples reunião de fatos mas sim de uma apreciação na qual se apura a verdade817 Varnhagen fala em uma análise com a devida imparcialidade ante a luz da crítica que não se deve guiar pelo dito de uma ou outra testemunha apaixonada ou interessada mas unicamente pela essência que ressumbra do conjunto dos depoimentos e de todos os fatos apurados818 816 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p 236 817 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p310 818 Ibid p310 Horizontes Identitários 240 O lugar de imparcialidade em que ele se põe considerandose que jamais se furta de tecer opiniões pessoais a respeito das mais variadas situações realmente é impressionante Assim ele pondera colocandose no papel de juiz quase que como em segunda instância recursal que da acareação por nós pausada e refletidamente feita de todos os depoimentos resulta que verdadeiramente entre os vários que se conluiaram só um chegou a entusiasmarse pela idéia de revolução 819 referindo se a Tiradentes Em outro ponto após relatar a prisão do alferes afirma que após uma negativa inicial revelou tudo o que sabia e que os seus depoimentos últimos merecem pois o conceito de um relato muito verdadeiro de quanto se passou820 Parece claro que o que define ou não a verdade dos fatos e das interpretações constantes da narrativa nacional não é outra coisa senão a valoração feita pelo próprio Varnhagen de acordo com o pragmatismo que lhe é inerente Além disso é importante ressaltar que Varnhagen detém todo o poder cabe a ele acolher recursos contra si próprio na medida em que julgar conveniente Como fica o juiz Varnhagen diante de tais considerações Ele pondera que Igualmente nos esforçamos para não ser pródigos nas narrações nem pretensiosos nos juízos e análise dos acontecimentos pondo o maior empenho em comemorar sempre com o possível laconismo e embora com menos elegância os fatos mais importantes e esmerando nos em os descrever com a maior exatidão e clareza Cada dia nos convencemos mais de que a história é um ramo da crítica não da eloqüência e que perante o tribunal dela o historiógrafo não é um advogado verboso e florido mas antes um verdadeiro juiz que depois de averiguar bem os fatos ouvindo as testemunhas com o devido critério deve feito o seu alegado com o possível laconismo sentenciar na conformidade das leis eqüitativas da sociedade e humana justiça821 Portanto de acordo com a concepção de Varnhagen o historiador sentencia Entretanto ao contrário do que afirma na maioria das vezes em que intervém diretamente na sua narrativa Varnhagen de fato advoga Mesmo que mantenha fidelidade às fontes seleciona e recorta conforme lhe interessa Toma posição e trabalha para o convencimento dos jurados de seu ponto de vista Há sobretudo 819 Ibid p311 820 Ibid p321 821 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhora mentos 1927pXII Salah H Khaled Jr 241 uma vocação pedagógica no texto pautado por uma estratégia de convencimento Varnhagen busca construir opiniões e valores a partir de uma perspectiva de persuasão do leitor objeto a ser construído como súdito leal a partir da narrativa nacional É nesse sentido que Varnhagen advoga E o faz politicamente defendendo a causa do BrasilNação monarquista e conservador822 Sob esse enfoque é o convencimento e não a verdade que passa a ser o critério último do historiador pois o que ele escreve não é apenas história mas também um instrumento de convencimento da plateia de acordo com seus pontos de vista Isso não deixa de ser curioso considerando o ponto de vista que Varnhagen expressa a respeito de certos advogados Viuse então a Bahia como meio século antes se haviam visto muitas cidades de Portugal molestada pela demasia dos letrados os advogados rábulas eram um mal pela sua ignorância e seus enredos os doutores pela ascendência que tinham sobre os magistrados de quem haviam sido condiscípulos ou contemporâneos em Coimbra e em favor dos quais estavam os últimos prevenidos pela amizade ou se haviam feito estudos mais brilhantes que eles pela consideração e respeito a suas opiniões Não deixa de ter inconvenientes a prática de escolher os magistrados da mesma classe e até da mesma academia ou universidade que os advogados quando para a imparcialidade e justiça não só podem ser mui nocivas as amizades e simpatias da juventude como ao magistrado mui prejudicial o habito de haver exercido a advocacia ou simplesmente de se haver preparado para exercer esta profissão O advogado tem por principal dever de seu cargo defender a causa do cliente isto é deduzir razões e provarás em favor O magistrado pelo contrário deve ser um homem impassível por cuja mente nunca passasse uma idéia de injustiça o menor pensamento de sofismar coisa alguma neste mundo823 Qual a metáfora mais apropriada ao comportamento de Varnhagen de acordo com as suas próprias valorações Juiz ou advogado Não parece haver muito espaço para dúvida Aparentemente segundo seus próprios critérios Varnhagen parece comportarse como um advogado Certamente que narrando a partir de um ponto de vista específico como narra ele não pode ser esse juiz imparcial Voltando 822 HOBSBAWM diz que seria bastante irreal esperar que os estudiosos se abstenham de agir como advogados especialmente quando não apenas acreditam como é frequentemente o caso que se deva argumentar com base no patriotismo ou algum outro compromisso político mas que isso é real mente válido porém embora não haja dúvida que os acadêmicos continuarão a agir como advoga dos com maior ou menor convicção e embora um componente de advocacia seja inseparável de todo o debate é preciso ter bem clara a diferença entre a advocacia e a discussão científica conquanto engajada HOBSBAWM Eric J Sobre história São Paulo Companhia das Letras 1989 p145 823 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p107108 Horizontes Identitários 242 o argumento contra ele mesmo Varnhagen pode ser pensado como um advogado cujo cliente é o Estado monárquico perante o qual ele se vincula como verdadeiro procurador que defende interesses estatais O pragmatismo que caracteriza sua obra efetivamente o impulsiona nessa direção Há apenas um deslize nessa aparente função de historiadoradvogado da nação quando Varnhagen opta por advogar em causa própria dedicando um capítulo inteiro da História Geral do Brasil a seu pai deixando inteiramente de lado qualquer imparcialidade824 Entretanto não o faz sem certo constrangimento buscando justificar perante o leitor o deslocamento de enfoque825 O diálogo com o leitor assume dessa forma conotação diversa daquela a qual ele buscava a identificação e a comoção através da tragédia ou do ato de superação do herói Em alguns momentos ele chega a explicitar a ideia de que cabe ao leitor ou aos vindouros decidir a validade de sua exposição826 Essa perspectiva corrobora o ponto de vista de que Varnhagen advoga mais do que julga pelo menos nos momentos mais propositivos de seu texto Pensando em Varnhagen como um advogado poderia ser dito que sua 824 Varnhagen explicitamente tenta reabilitar a memória de seu pai afirmando que Os fatos singela mente documentados irão provando a nosso ver suficientemente que a glória de ser o executor dos projetos do Sr D João estava reservada a um engenheiro distinto ao qual não nos impedirão de render a merecida justiça os laços de sangue Tributar justiça devida a memória de quem tão bem serviu é dever do historiador e mal dele se os receios de passar por imodesto superam em tal momento aos nobres sentimentos de piedade filial Trate de provar quanto assevera que a tarefa é tão melindrosa e narrando só a verdade não se cubra de pejo nem de hipocrisia quando não fez profissão do voto de humildade E Deus que lê em todos os corações sabe quão longe estávamos quando concebemos a idéia desta obra de imaginar que deveríamos nela e até em seção exclusiva dela ter que consignar tais serviços VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhoramentos 1959 p186187 825 Assim ele dirá que Basta porém sobre este assunto E se nos alargamos demasiado se a pena não pode conterse a seguir os impulsos do coração se dissemos mais do Ipanema e de seu benemé rito engenheiro do que desejavam saber os leitores desculpa merece quem crê em consciência que cometeria uma grande injustiça e quase uma impiedade se tivesse tratado de ser menos extenso neste assunto que diz respeito ao seu progenitor e até ao lugar do seu nascimento Ibid p 199 Para outra visão sobre esta questão ver CEZAR Temístocles Em nome do pai mas não do patriarca ensaio sobre os limites da objetividade na obra de Varnhagen In História São Paulo v24 n2 p207240 2005 Disponível em httpwwwscielobrscielophppids010190742005000200009scriptsciart text 826 Quando Varnhagen discute a questão indígena afirma que Sabemos quanto cumpre na história não desculpar os erros e quanto os exemplos que nos levam a aborrecer o vício são quase de tanta instrução como os que nos fazem enamorar das ações virtuosas mas temos o hábito de esquadrinhar o lado desfavorável dos fatos para depois contar como verdade o que se maliciou é repreensível ten dência do ânimo que em vez de artifício inculca existência de peçonha Está porém reservada aos nossos vindouros a tarefa de condenar ou de justificar o proceder dos antepassados segundo por fim venham conduzirse com os índios que ainda temos VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 p 219 Salah H Khaled Jr 243 perspectiva faz com que olhe para o passado com a lente do presente buscando nele aquilo que possa justificar e legitimar a sua causa os interesses de seu cliente Ele está ciente do problema que o anacronismo representa mas isso não impede o exercício da projeção pois o pragmatismo fala mais alto827 Logo mesmo ciente isso não impede a projeção identificação de ideais nacionalistas na colônia nem tampouco o lamento pela não adoção de medidas que poderiam ter favorecido o país e adiantado a Independência Suas avaliações feitas a partir de um Brasil independente nos oitocentos interpretam os fatos em função do ideal de Brasil que ele tem para o presente e para o futuro de acordo com uma visão estatal Essa é portanto uma das faces de Varnhagen a de advogado que pode ser voltada contra ele a partir de seus próprios critérios do que consiste o ofício Isso pode ser inferido pela subjetividade de suas análises por considerar que qualquer sacrifício é justificável na medida em que favorece o seu cliente Em definitivo da invasão holandesa resultou algum proveito ao Brasil Grande responsabilidade que envolve a resposta quando ao pensar dála como que acometem os nossos ouvidos lamentos de tantas vítimas chorando a perda dos parentes dos seus bens e até algumas da própria honra Confessamos que o primeiro impulso do nosso coração é o deixar a pena e chorar com elas Infelizmente porém a civilização humana semelhase em tudo ao homem nasce chorando e chorando e sofrendo passa grande parte da infância até que se educa e robustece Se pois nos conformarmos com esta lei indeclinável reconheceremos que o Brasil pagava então grande parte do seu tributo E não há dúvida que passados esses choros e esses sofrimentos se apresentou mais crescido e mais respeitável havendo para isso concorrido poderosamente os grandes e continuados reforços de colonos ativos e vigorosos de vários terços ou regimentos que vieram da Europa e cujos indivíduos pela maior parte ficaram no Brasil o que perfez um número superior aos dos mortos nos campos de batalha828 827 Varnhagen várias vezes justifica determinadas ações devido ao que chama de ideias do tempo como é o caso das acusações de perseguição feitas a Pombal Ele considera as acusações de perse guição a inimigos políticos injustas Mas os que assim pensam pretendem que há mais de um século se pensasse como hoje e esquecemse de que deviam ser quase crimes de lesa majestade o haver primeiro revelado os projetos de casamento da herdeira e o último nada menos do que certos planos de elrei de fazer passar a sucessão da coroa a seu neto o príncipe D José VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhoramentos 1959 p247 828 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p9899 Horizontes Identitários 244 O pragmatismo que pauta sua avaliação é latente Não há imparcialidade e distanciamento O que importa sobretudo é legitimar o Brasil independente e monárquico a partir de um Brasil mítico que ele configura no passado gravando uma memória da nação conforme convém ao seu ponto de vista no presente Entretanto apesar de tudo isso Varnhagen não deixa de considerarse um juiz Um juiz inclusive imparcial Essa insistência na perspectiva jurídica permite relacionar Varnhagen a um terceiro papel que não é o de advogado verboso e florido e muito menos o de um juiz imparcial Não pode ser deixado de lado que Varnhagen não se apresenta sempre como juiz de fato Em vários trechos despersonaliza o juízo e muitas vezes se refere a um julgamento exercido pela história temível poder do qual ele Varnhagen está investido Nesses casos é como se a história julgasse e não ele Assim ao tratar do episódio da traição de Calabar que passou para o lado do inimigo Varnhagen diz que Desses pecados o TodoPoderoso lhe tomaria contas e com sua imensa misericórdia poderá têlos perdoado porém dos males que causou à pátria a história a inflexível história lhe chamará infiel desertor e traidor por todos os séculos dos séculos829 O tom da avaliação assume uma conotação diferenciada Aqui não se avalia não se propõe não se narra somente Sobretudo se condena Essa é a outra face jurídica de Varnhagen a condenação Aqui ele de fato age como juiz Mas que tipo de juiz Um juiz que entende que trair a pátria é um crime além de qualquer redenção um crime que não prescreve e cuja pretensão punitiva é exercida continuamente para todo o sempre pelo Tribunal da História Um juiz que entende que a traição à nação é uma dívida para com a pátria que jamais será saldada Ou seja um pecado para o qual não há expiação Em outro trecho ao tratar de Nassau Varnhagen novamente despersonaliza um julgamento que de fato é exercido por ele A história mestra da vida e conselheira dos povos e príncipes do porvir não pode deixar de reprovar tão feio proceder que veio a dar motivo para justas represálias830 A história segundo ele seria a instância última de julgamento dos homens Mas se a história é um tribunal como ela se associa com as noções de justiça 829 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 830 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 322 Grifo nosso Salah H Khaled Jr 245 e imparcialidade valores a que Varnhagen tanto se refere Qual é afinal o sentido do julgamento na narrativa nacional e mais ainda qual o sentido da condenação Há um segmento que permite uma reflexão interessante sob esse aspecto pois é referido por Varnhagen que Tanto é certo que também os tribunais e congressos podem algumas vezes ser despóticos e talvez bem estudada a história da humanidade se ache que mais vezes o hajam sido do que os reis com responsabilidade direta para Deus a própria consciência os povos as nações contemporâneas e a história831 Mas e quanto ao Tribunal da História dirigido por Varnhagen É ou não é despótico Será ele regido por um critério de verdade e imparcialidade absolutas como Varnhagen tanto reitera A primeira hipótese parece muito mais verossímil A função pedagógica exercida por Varnhagen através do poder em que é investido como historiador da nação faz com que ele reprove os atos censuráveis e os condene ao escárnio e desprezo eternos A história grava registra eterniza nomes em uma galeria de culpados verdadeiramente perene Varnhagen emite sentenças de acordo com critérios de ordem pragmáticoconservadora O mesmo juízo pragmático que constitui o herói como modelo de comportamento deve assim fazer com que os indivíduos que não agiram em conformidade com o que se esperava deles também assumam função modelar com a diferença de serem exemplos negativos Cumprenos dizer que logo depois que o Maranhão foi libertado pelo esforço de seus bravos habitantes e dos seus vizinhos do Pará e apenas disso se teve notícia o miserável donatário de Tapuitapera que nenhuma ajuda havia dado aos que assim combatiam por arrancar das mãos dos holandeses a sua capitania a estes subordinada em vez de enviar presentes e recompensas ao seu libertador Antônio Teixeira de Melo passou a acusálo ante os tribunais e o miserável donatário era nada menos que um desembargador cujo nome deve a história deixar gravado para memória e escarmento Chamavase Antônio Coelho de Carvalho832 Percebese em Varnhagen uma verdadeira intenção preventiva uma função quase simbólica do ato de julgar na medida em que condenações como esta servem 831 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 141 832 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhora mentos 1959 p 331Grifo nosso Horizontes Identitários 246 de desestímulo para a prática de atos semelhantes Entretanto isso não faz com que em momento algum Varnhagen deixe de se considerar um juiz justo e imparcial alusão por ele várias vezes referida Assim vai dizer e deixando que os louros da vitória ornem a frente dos principais caudilhos justo é que deles nos ocupemos dando a cada um com imparcialidade histórica o quinhão de justiça e de consideração que lhe caiba833 Todavia apesar de sua pretensa imparcialidade os exemplos extraídos de sua própria obra o desmentem Sua percepção da Revolução Pernambucana por exemplo é de uma intolerância extremada que revela um rigor inimaginável para quem se diz imparcial Sabemos que está de moda adular os anais pernambucanos com a proeza dessa revolução Que esteja havemos sempre de dizer a verdade segundo nola ditar a consciência e embora isso nos possa custar alguns dissabores nunca serão eles tão grandes como seriam os do espírito capitulando covardemente contra as próprias convicções Vão decorridos já quarenta anos depois desta insurreição e os sucessos narrados com pouco exame a vão convertendo em um mito heróico de patriotismo não brasileiro mas provincial sem fundamento algum A verdade é só uma e há de triunfar em vista dos documentos que aparecendo e dos protestos dos homens comprometidos mas probos e ilustrados e mais prudente é não elevar tantos altares para depois se derrubarem e profanarem A missão do historiador não é lisonjear nem adular a ninguém e menos aos vivos no país ou antes neste a meia dúzia de gritadores apaixonados e parciais O historiador que esquadrinha os fatos e que depois de os combinar e meditar sobre eles os ajuíza com boa crítica e narra sem temor nem prevenção não faz mais do que revelar ao vulgo verdades que ele naturalmente acabaria por revelar do mesmo modo sem os esforços do historiador dentro de um ou dois séculos834 Para Varnhagen o historiador antevê um juízo eminentemente verdadeiro e que acabaria por revelarse com a passagem do tempo Não adula não lisonjeia apenas se conforma a um critério de verdade Verdade enquanto inversa ao erro enquanto desprovida de subjetividade e estritamente produto da imparcialidade Logo inequívoca Inclusive Varnhagen se considerava um verdadeiro parâmetro de imparcialidade como a afirmativa a seguir demonstra 833 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 94 Grifo nosso 834 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhora mentos 1959 p150 Salah H Khaled Jr 247 A latiníssima História dos oito anos de governo de Nassau por mais que corram os séculos será sempre um livro importante e digno de consultarse Barlaeus Para ser porém considerado como historiador imparcial desse período faltoulhe obedecer ao preceito audietur altera pars835 Em outro trecho lamenta a falta de dados em relação a certas capitanias as quais possam servir sequer para o historiador imparcial provar que não por esquecimento deixa de cuidar delas836 No entanto apesar de tais pretensões a fragilidade em que se estrutura a imparcialidade de Varnhagen demonstrase de forma aguda quando ele volta suas críticas a obras alheias críticas que com imensa facilidade podem de fato ser voltadas contra ele mesmo Ao analisar a obra do Padre Mestre Fr Manuel Calado que trata da restauração pernambucana de 1646 Como testemunha de vista deve esse autor ser consultado mas sempre com o possível tento e critério Ministro de uma religião toda de paz e tolerância mostrase de ânimo pequeníssimo contra os que não eram seus amigos partidário de Fernandes Viera comprometeo com seu pouco tino quando mais o pretende exaltar e prestase até a denegrir aos da parcialidade rival acusandoos de assassinos Além disso falta muitas vezes à dignidade histórica dedica páginas inteiras a muitos contos sem importância e crê ou finge crer em todos os boatos que para exaltar o povo miúdo contra os holandeses se faziam correr nos acampamentos Nem é mais feliz nem muito mais elevado nos cantos épicos em oitava rimada que em favor do seu herói estresssacha em vários lugares do seu livro 837 São críticas que revelam uma incapacidade do próprio Varnhagen em censurarse uma vez que o mesmo poderia ser dito de muitos trechos da História Geral do Brasil No entanto não são poucas as ocasiões em que Varnhagen tece julgamentos semelhantes a outros autores838 Mesmo quando Varnhagen elogia suas 835 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 100Grifo nosso 836 Ibid p140141 Grifo nosso 837 Ibid p 101 Grifo nosso 838 Varnhagen afirma por exemplo ao falar de D Manuel que ele ocupase de competência e jurisdi ção entre as autoridades de nacionalidade diferente que tão pouco nos são hoje de nenhum interesse Leva páginas inteiras justificandose de um modo apaixonado de atos seus ou de outros não neces sários de mencionar Ibid p102103 Horizontes Identitários 248 fontes privilegiadas do Brasil Colonial no século XVI839 ou seja Gabriel Soares840 e Fernão Cardim841 não deixa de fazer reparos muitos deles extremamente severos Já em relação à obra de Alexandre Rodrigues Ferreira que fez uma expedição ao Amazonas Varnhagen afirma que hoje de pouca importância poderia ser a maior parte desses escritos atrasados em relação às ciências e mesquinhos pela forma com que estão redigidos por mais ostentoso que nos apresente seu largo catálogo842 Evidentemente ainda que Varnhagen se comporte como um advogado da nação que defende seu cliente na medida em que rotula condena e portanto exerce sanções em nome do Tribunal da História ele também se comporta como juiz Varnhagen efetivamente transita entre tais papéis Dessa forma o poder exercido pela escrita da narrativa da nação possibilita inclusive a Varnhagen enquanto juiz do Tribunal da História acolher recursos contra si mesmo e invalidar juízos feitos no passado reabilitando para a história quem ele considera merecedor Se com um e outro os homens estiveram demasiado rigorosos se curtas miras de vinganças por interesses ofendidos influíram na final sentença mais do que as razões de Estado e se eles eram bons e queriam o bem a justiça divina superior a todos e a tudo os terá por certo galardoado sempiternamente A história por sua parte não pode em todo o caso deixar de simpatizar com estas almas generosas tratadas tão cruelmente Manuel Bequimão subiu ao patíbulo como verdadeiro herói Com toda serenidade declarou nos últimos instantes 839 Para ele As obras de Gabriel Soares e de Fernão Cardim não só se devem considerar como gran des produções literárias de primeira ordem no século XVI mas também principalmente em relação ao nosso fim como verdadeiros monumentos históricos que nos ministram toda luz para avaliarmos o estado da colonização do nosso país na época em que escreveram o primeiro em 1584 e o segundo um ano antes VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p 11 840 Varnhagen diz que Seja embora rude primitivo e pouco castigado o estilo de Soares confessamos que ainda hoje nos encanta seu modo de dizer e ao comparar as descrições com a realidade quase nos abismamos ante a profunda observação que não cansava nem se distraia variando de assunto Ibid p 12 841 Aqui Varnhagen considera que A obra de Fernão Cardim que só viu a luz em Lisboa em 1847 com o título posto pelo editor o próprio autor desta história de Narrativa epistolar por constar verda deiramente de duas cartas que dirigiu ao provincial da Companhia de Portugal é seguramente mais insignificante e destituída de mérito científico que a precedente entretanto recomendase pelo estilo natural e fluente e pela verdade da pintura feita com os objetos à vista e as impressões ainda de fresco recebidas dos encantos virgens que regalavam os olhos de quem acabava de deixar a Europa nos fins do inverno Ibid p 13 842 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p275 Salah H Khaled Jr 249 que pelo Maranhão dava satisfeito a vida Palavras solenes que eternamente encontrarão eco e simpatia não só entre os maranhenses como em todos os corações bem formados843 Entretanto se Varnhagen é um juiz é um juiz extremamente severo e duro com aqueles que afrontam os princípios que lhe são caros que ofendem os seus valores Inclusive não se furta de desmerecer os demais juízes para engrandecer a si próprio Por vezes é extremamente irônico844 Varnhagen não admite contradição Ele é por excelência o detentor último da verdade Na medida em que busca matar a diferença erradicar a heterogeneidade e estabelecer um padrão de indivíduo através da narrativa da nação Varnhagen de fato se aproxima de um tipo específico de juiz o juiz inquisidor Aqui um raciocínio parece pertinente assim como o modelo de monarquia que Varnhagen defende é o de uma monarquia absolutista nos moldes do século XVI e sua concepção de história é providencial em função do mesmo conservadorismo seu entendimento da função de juiz e do ato de julgar também remete a outro parâmetro que não o da modernidade Quando pensadores como Beccaria começaram no século XVIII a questionar o autoritarismo e lenta e gradualmente foi se impondo a partir de pensadores como Montesquieu uma nova concepção de julgamento sua característica maior foi a de estabelecer a lei como limite Com a ideia de legalidade ninguém poderia mais ser condenado a não ser que praticasse uma conduta anteriormente tipificada pela lei enquanto crime cabendo ao juiz apenas aplicar a lei ou como dizia Montesquieu ser a boca da lei Essa concepção representou um grande avanço face ao autoritarismo dos modelos inquisitórios no quais os homens se viam indefesos diante do exercício do poder Varnhagen está alheio a essa concepção O seu pensar jurídico é um pensar que não conhece contradição e perante o qual não há limites Como juiz Varnhagen se coloca em posição única e privilegiada de atribuir o significado que bem entende aos fatos independentemente de quaisquer freios Varnhagen é um juiz que não está 843 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhora mentos 1959 p 252 844 Este é o caso quando ele comenta que Daí a mais de meio século quando pelos esforços dos intrépidos paulistas as minas rendosas começaram a ser descobertas e que os inúteis esbanjamentos de D Francisco estavam esquecidos lembrouse um seu herdeiro com proteção na corte de requerer pelos serviços do seu avô o título de Marquês das Minas o qual lhe foi conferido pelo rei Ignoramos se este título in partibus ainda existe em Portugal Se existe não é por culpa nossa que a história diz que ele está bem longe de significar uma glória nacional conforme para a honra das nações monárquicas convém que suceda aos títulos que se declaram hereditários VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p 121 Horizontes Identitários 250 ciente da necessária separação entre as funções de julgar e acusar característica do padrão moderno de prestação jurisdicional Como se isso não bastasse é como se Varnhagen não fosse apenas o juiz mas também o legislador pois é ele que determina as normas de conduta determina o que implica sanção ou não Dessa forma como é muitas vezes o caso na elaboração legislativa da lei Varnhagen atribui uma função simbólica uma função de controle social à sua narrativa na medida em que a condenação não é somente sobre o passado mas também ameaça de juízo desfavorável no presente o que configura o seu caráter preventivo Raramente esse juízo condenatório deixa de assumir requintes de crueldade845 Dessa forma novamente voltando às metáforas de Varnhagen contra ele próprio a abordagem adotada ao tratar da Inquisição permite elaborar um pouco mais a crítica às suas alusões jurídicas Diz ele que em Portugal a Inquisição seguia como antes cevando seu furor em algumas vítimas enviadas do Brasil846 A avaliação que ele faz da instituição é implacável até porque entende que a mesma se posicionava contra os objetivos do Estado assim como havia sido com os jesuítas847 Varnhagen tece críticas pesadas à forma com que eram realizados os processos848 Assim ele vai dizer que 845 Uma das raras exceções é o caso de Nassau Varnhagen demonstra rara tolerância dizendo que não podemos por em dúvida este fato da sua vida que nada o honra e que veio a fazer diminuir em nós o respeito e quase estima que tínhamos por esse chefe inimigo VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p 322 846 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhora mentos 1959 p23 847 Varnhagen afirma que A primeira providência que acudia à mente do governo de Madrid foi uma ordem para que em Lisboa se fizessem preces e se castigassem os delitos inclusive pela repartição do Inquisidorgeral Não nos indignemos nem nos riamos Eram as idéias do tempo na metrópole e na corte e demonos por mui felizes de não termos vindo ao mundo no tempo em que a nossa terra estava sujeita a tais influências O próprio rei em meio de seus folquedos proverbiais era escravo submisso da inquisição VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 p 235 848 Varnhagen relata que Os processos da justiça eram no estilo das sentenças tudo mistério cha mavase o réu e em vez de se lhe revelarem as culpas de que era acusado intimavaselhe que se confessasse que se expusesse tudo em desabono da religião que tinha dito ou ouvido ou praticado à primeira resistência seguiamse as algemas apertadas ao torniquete depois os tratos de polé de água fervente por fim o infeliz começava a delatar Tudo quanto revelava era logo escrito todos os cúmplices de que fazia menção eram imediatamente mandados buscar e recolher aos cárceres Mas o acusado tendo comprometido já muita gente ainda não havia acertado com a falta por que fora preso Voltava pois a ser perguntado sua memória não o ajudava ou sua língua titubeava receosa de comprometer mais amigos Era outra vez posto a tratos declarava que tinha mais revelações a fazer Novos desenganos e novos comprometidos Assim às vezes de uma povoação mais de metade tinha que ser ao menos chamada a delatar E aí do que entrava por aquelas horrendas portas Todos daí em diante o evitavam temerosos de adquirir nome suspeitoso VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhoramentos 1959 p25 Salah H Khaled Jr 251 Detenhamonos porém agora um pouco e discorramos que sociedade ou povo podia ser feliz pensar escrever discutir desenvolverse engrandecerse com uma tão monstruosa instituição só própria para escudar a maldade e a hipocrisia e para com os competentes abusos dos espias ou familiares satisfazer vinganças individuais e produzir a desconfiança e a estagnação nas relações de comércio e nas individuais também Nem os reis podiam domar a fúria do tribunal e não nos devemos admirar de que nesses tempos de superstição não pudessem muitos reis arrostar o fanatismo religioso quando em nossos dias alguns tiveram que deixarse dominar pelo fanatismo político849 De fato Varnhagen se mostra severo com a Inquisição e seriam muito poucos os que se defenderiam a instituição diante da intolerância que a mesma historicamente demonstrou850 Entretanto é exatamente aí que reside o problema pois a forma com que Varnhagen julga sem admitir contrariedade mostrandose inteiramente intolerante diante dos movimentos populares e de tudo que não se conforma ao padrão de homem e de sociedade que ele estabelece tudo isso aproxima Varnhagen enquanto juiz de um juiz inquisidor e o afasta inteiramente do ideal de imparcialidade que ele pretende seguir que é por excelência eminentemente moderno Além disso e talvez sobretudo há a questão da prefiguração e aqui parece pertinente a análise de Franco Cordero sobre o juiz inquisidor A solidão na qual os inquisidores trabalham jamais expostos ao contraditório fora dos grilhões da dialética pode ser que ajude no trabalho policial mas desenvolve quadros mentais paranóicos Chamemoos primado da hipótese sobre os fatos quem investiga segue uma delas às vezes com os olhos fechados nada a garante mais fundada em relação às alternativas possíveis nem esse mister estimula cautelarmente a autocrítica assim como todas as cartas do jogo estão na sua mão e é ele que as coloca sobre a mesa aponta na direção da sua hipótese Sabemos com quais meios persuasivos conta usandoa orienta o êxito para onde quer851 849 Ibid p25 850 Varnhagen relata o furor com que os esbirros da Inquisição começavam a perseguir o povo espe cialmente depois da chegada em 1702 do Bispo D Francisco de São Jerônimo que acabava de ser qualificador da Inquisição de Évora e aí tomara o gosto a tão sanguinolentas abominações que melhor pode prosseguir no Rio exercendo mais de uma vez interinamente o cargo de governador VARNHA GEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhoramentos 1959 p 324 851 CORDERO Franco Guida alla procedure penale Torino UTET 1986 p51 Horizontes Identitários 252 Assim como no caso dos juízes inquisidores a verdade está prefigurada aprioristicamente por Varnhagen de acordo com uma série de princípios que ele estabelece como dogmas que não admitem contradição e como tais implicam em pesadas sanções para o herege Eis aí o primado da hipótese sobre os fatos Varnhagen sabe que tem uma nação a inventar já sabe em que moldes e de acordo com o que tem que inventála a partir daí busca no passado as fontes que irão lhe permitir provar a sua hipótese Ele já tem o guia já tem o norteador dado pelo seu pragmatismo extensivamente discutido nos trechos anteriores Munido de tais verdades ele prefigura o passado julga condena e estabelece continuidade de forma arbitrária Trabalhando na solidão e abominando o contraditório o qual ele jamais admitiu em relação a sua obra e valendose de recursos persuasivos que produzem identificação com o todo da nação Varnhagen elabora uma narrativa da nação usando e abusando dos meios que tem à sua disposição Varnhagen não é apenas um juiz Varnhagen é o juiz inquisidor do tribunal da história autor do grande relato da nacionalidade destinado a eliminar a diferença e conformar mediante o estímulo aos bons atos e ameaça de condenação o cidadãosúdito ordeiro do Império Salah H Khaled Jr 253 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo da análise aqui desenvolvida foi observada a elaboração de uma narrativa nacional por parte da historiografia oitocentista sendo que o desenvolvimento deste grande relato da nacionalidade foi orientado por um horizonte pragmático que ditava a sua escrita Esse horizonte pragmático encontravase ligado à legitimação do Estado monárquico e da autoridade de D Pedro II a partir de um discurso construído por uma instituição verdadeiramente oficial o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro Com base em tais pressupostos de ordem política a construção de uma narrativa da nacionalidade procurava atribuir sentido e significado ao todo imperfeito e heterogêneo da nação visando à erradicação da diferença e a subordinação das partes ao Império e portanto à autoridade centralizada da Monarquia Buscavase dessa forma contribuir para a manutenção da integridade do território nacional A ideia de uma história que integra e une o que é disperso é o espírito por trás de uma história geral Por isso tratase de um discurso que elabora a unidade e que abrange todas as capitanias Entretanto é uma integração que nega seus aspectos regionais Nega portanto a diferença Essa opção se evidencia pela própria estrutura da obra caracterizada por capítulos com títulos genéricos que possibilitam a reunião de informações dispersas sem relação direta entre si Logo é uma narrativa que não reconhece a diversidade suprimindoa em nome de uma unificação de ordem arbitrária que busca construir um espaço homogêneo e uno no imaginário do leitor de forma que este perceba o país como um todo no qual não há lugar para a diferença sempre tratada de forma intolerante através de termos como pernicioso bairrismo ou mandonismo local Esse aspecto de negação da diversidade também transparece através do ideal assimilacionista do qual se espera que eventualmente o outro seja absorvido pela etnia do colonizador português configurando assim a unidade também sob o aspecto étnico além da sujeição no âmbito político Horizontes Identitários 254 Para que a narrativa desenvolvida a partir dos esforços do IHGB fosse bem sucedida nesse intuito deveria estar ligada sobretudo à ideia de nação Uma nação a ser inventada pela narrativa nacional mas que devido às especificidades brasileiras deveria conter um componente de prefiguração acentuado para ser percebida como legítima e ligada à autoridade do Estado desde os tempos coloniais A narrativa nacional é assim construída para produzir identificação para fazer com o que o leitor se reconheça no passado por ela sistematizado e mais ainda que se orgulhe desse passado A História Geral do Brasil é narrada como uma história de afirmação da nação brasileira sob a égide da monarquia e como um grande Império Todos os elementos da narrativa apontam para esse fim imanente predestinado a concretizar se como se concretizou nos oitocentos segundo o ponto de vista de seus autores Dessa forma Varnhagen procura desde o princípio de seu relato atrelar a nascente nação ao Estado associando o seu nascimento a uma colonização que contrapunha civilização e barbárie e estabelecendo como único modelo possível a reprodução do padrão europeu de sociedade Esse processo de imposição da civilização a uma natureza hostil é narrado por Varnhagen como uma verdadeira odisseia na qual são enaltecidos os feitos dos portugueses diante de um território dominado pela barbárie Evidentemente em meio a esse processo de ocupação e estabelecimento de soberania Varnhagen preserva o vínculo com Portugal pois a ancestralidade europeia deve ser valorizada bem como a legitimidade da autoridade do Imperador Além do seu horizonte identitário conservador a narrativa nacional desenvolvida por Varnhagen a partir dos referenciais do discurso de Barboza e do artigo de Martius tem como característica marcante a busca por agregar o que é disperso através de estratégias de convencimento Tratase de uma narrativa munida de um conjunto de efeitos de sedução orientados para produzir um sentimento de identificação com a nação O sentido paradigmático e exemplar do relato funciona a partir de um tripé argumentativo que é a estrutura tragédiainimigoherói A tragédia assume conotação exemplar na medida em que aponta as terríveis consequências que resultam dos atos que não estão em conformidade com o modelo de nação e ação cívica posto pelo Estado bem como para ressaltar através da empatia as dificuldades com que os ancestrais se depararam e logo a necessidade de fazer jus às suas façanhas Esperase que o leitor seja tomado de comoção e simpatia Salah H Khaled Jr 255 que compartilhe as dificuldades da colonização e se orgulhe do feito realizado pelos portugueses seus antepassados O binômio nossosinimigo possibilita uma outra espécie de identificação e logo é mais uma característica chave para a compreensão da narrativa nacional de Varnhagen É a partir dessa contraposição em que não são colocados face a face civilização e barbárie mas sim soberania nacional e invasor que Varnhagen trabalha especificamente a questão da identificação nacional O binômio nossosinimigo permite a fundação identitária em dois sentidos de um lado o reconhecimento de qualidades próprias dos nossos produz emancipação e logo identificação de outro lado o inimigo funda identidade através da contraposição ao outro diferente e dotado de outras qualidades geralmente pejorativas a quem se deve resistir e se possível derrotar Também é possível perceber que há uma diferença na utilização de um termo no plural e outro no singular Os nossos são um plural singularizado por um objetivo comum O inimigo é apenas singular Os nossos assumem um caráter de pluralidade que age conjuntamente em nome de fins comuns dados pelo todo pelo Estado nossos é assim empregado com caráter de coletividade e de subordinação da individualidade a ela já no caso do inimigo utilizado no singular é negada uma referência dessa espécie pois o termo vale somente como contraposição aos nossos e logo não há necessidade do plural Essa dupla dimensão de fundação identitária permite inclusive uma percepção melhor de como são retratados os negros e indígenas na narrativa nacional Diante desse binômio o não reconhecimento da qualidade de inimigo aos indígenas e negros e logo o não estabelecimento dessa contraposição tão acentuada na narrativa demonstra a indiferença nesse caso não há pretensão de vitória ou emancipação mas sim de assimilação A estes não se reconhece a condição de outro mas sim vislumbrase seu eventual desaparecimento Logo a integração é na realidade uma exclusão Entretanto o sistema comporta uma exceção na medida em que o indígena e negro abrem mão de sua identidade passam a estar incluídos a fazer parte da categoria dos nossos É o caso de Henrique Dias e Filipe Camarão Todavia a própria integração comporta uma dimensão de indiferença e logo também de exclusão na medida em que só há inclusão quando se abre mão da condição de diferente Finalmente o terceiro elemento o papel desempenhado pelo herói na narrativa da nação de Varnhagen Ao contrário do que já foi discutido por outros comentadores Horizontes Identitários 256 não parece que Varnhagen tenha elaborado uma história dos grandes homens e de seus feitos Em primeiro lugar porque ele sempre subordina a ação individual aos objetivos postos pelo Estado e sendo assim a glorificação de iniciativas privadas não é sequer compatível com a sua concepção de história estruturada em torno das ideias de providência e EstadoNação Parece claro que não sobra muito espaço de mobilidade para o indivíduo diante de tal concepção A impressão é a de que Varnhagen construiu um sistema de pensamento orientado por seus objetivos pragmáticos e convicções políticas e que de tal forma procurou no passado os exemplos que contribuíssem para a elaboração de tal sistema São exemplos que em larga medida ele constitui a partir de sua própria interpretação e subjetividade Portanto parece que acima de tudo o herói vale pela função que desempenha na narrativa Ele vale na medida em que é um exemplo que estimula um determinado tipo de comportamento que se conforma a um padrão de conduta que implica sacrifício em nome da nação justamente o que Varnhagen quer incentivar Ele próprio afirma várias vezes que sua intenção é escrever um livro útil e estabelecer paradigmas de comportamento Portanto não são os homens propriamente que importam mas sim o sentido que fundam a tradição que estabelecem a memória que permitem cristalizar Além disso ele deixa claro que o desprendimento em nome da nação é eventualmente contemplado pela incorporação na narrativa nacional e assim de certa forma sinaliza com a possibilidade de eternização de quem se sacrifica Nesse sentido sua narrativa constituise em uma verdadeira pedagogia social pois está revestida de uma lógica paradigmática inegável Embora toda narrativa que se valha de argumentos contenha elementos de persuasão no caso da narrativa nacional tais elementos não se limitam a apenas convencer o leitor da validade da exposição pelo contrário os argumentos e as estratégias de convencimento procuram verdadeiramente moldar o leitor conforme o padrão desejado pelo narrador A história de Varnhagen não é uma história dos grandes homens por um motivo simples não há espaço para uma pluralidade de protagonistas na sua narrativa nacional Ao contrário só há um protagonista por excelência o Brasil uno e homogêneo sob a autoridade do Estado e prefigurado como tal desde os tempos coloniais Quando Varnhagen se utiliza de um herói como exemplo a ser imitado é como se o Brasil por ele inventado se personificasse em alguém que age em um nível micro em função de seus objetivos oficiais Sempre que o Brasil idealizado por Varnhagen se vê diante Salah H Khaled Jr 257 de um outro personagem que de alguma forma se contrapõe a seus interesses a narrativa tem que encontrar formas de acomodálo É o caso de Portugal dos jesuítas e dos movimentos rebeldes Quando é possível a compatibilização não há problemas Entretanto uma vez que esta se mostra inviável Varnhagen é intolerante Essa perspectiva poderia se dizer utilitária de interpretar os fatos faz inclusive com que Varnhagen seja ambíguo em relação a certos personagens como o Padre Vieira e Tiradentes oscilando entre a condenação e o elogio conforme a situação apresentada Sob esse mesmo aspecto não é surpreendente que para ele exista uma equivalência entre a transferência do Estado português para o Brasil e a independência É essa mesma concepção pragmática que faz com que Varnhagen subordine sua concepção de nação ao Estado O Brasil de Varnhagen não é um BrasilNação mas sim um BrasilEstado Varnhagen considera a partir de uma perspectiva nitidamente hegeliana que o sacrifício em nome do Estado é uma espécie de dever universal e entende que esse Estado como uma realidade superior pode inclusive reivindicar a vida do indivíduo e exigir tal sacrifício Diante desse critério somado à acentuada diversidade étnica do país não é surpreendente que a sua concepção de nação aponte para a ideia de vontade e não de etnia pois basta conformidade com a vontade do Estado para obter o reconhecimento Nesse sentido de fato não há radicalismo no nacionalismo de Varnhagen como ele mesmo aponta O que ele chama de espírito público é essa capacidade de unirse em torno dos interesses oficiais postos pelo Estado atrelando a ele as noções de pátria e patriotismo O horizonte de realização pragmática de sua obra é o de formar um leitor nacionalista Nacionalista com essa conotação específica de sujeição ao interesse estatal É por isso que Varnhagen apesar de seu ponto de vista quanto aos advogados é um advogado do EstadoNação Não há qualquer imparcialidade em relação aos objetivos que ele defende Varnhagen efetivamente se põe a serviço do Estado como um intelectual comprometido com a realização de uma sociedade nos moldes que seu conservadorismo defende Nos momentos mais propositivos na prefiguração da nação e no conceito favorável emitido por quem se conforma ao padrão desejado não há dúvida que Varnhagen se comporta como advogado verdadeiro procurador do Estado monárquico Entretanto não é apenas essa face que as metáforas jurídicas do próprio Varnhagen permitem voltar contra ele pois a sua escrita conhece um outro lado o da condenação que assume caráter de sentença É sob esse aspecto que Varnhagen Horizontes Identitários 258 demonstra toda a sua intolerância e radicalismo diante daquilo que desafia suas convicções conservadoras O papel que Varnhagen desempenha é nesse sentido o de um juiz inquisidor Seu único critério de julgamento e de formação de convicção é a sua própria ideia do que é verdadeiro e sagrado e portanto dogmático A recusa em se conformar ao padrão estabelecido o desrespeito aos objetivos estatais a tentativa de dar vazão a iniciativas que não se enquadram ou desafiam as suas convicções só pode significar um pecado para o qual não há absolvição Detentor do poder máximo e inquestionável de juiz inquisidor do tribunal da história Varnhagen sentencia e julga sem admitir contradição elaborando discursivamente uma condenação já estabelecida a priori de acordo com seus próprios valores sua própria subjetividade A história dos oitocentos configurada como uma narrativa nacional como um grande relato da nacionalidade tinha vocação pragmática por excelência apesar de sua pretensão científica que inclusive permitia tal pragmatismo Sob esse aspecto pode ser dito que a partir de uma perspectiva utilitarista os fins justificavam os meios Ou seja apesar de todas as reservas que podem ser feitas ao conteúdo dessa narrativa ela é em larga medida coerente com aquilo a que se propõe fundar uma ideia de nação de acordo com os objetivos do Império e legitimando a monarquia centralizada enquanto instância máxima e inquestionável do poder O raciocínio pode entretanto ser invertido Se os fins justificam os meios o que pode então justificar os próprios fins A resposta é simples o caráter dos meios empregados Dessa forma a narrativa nacional elaborada nos oitocentos com sua veemente busca de erradicação da diferença de intolerância e recusa da heterogeneidade de recorte e seleção arbitrária de fatos bem como de prefiguração do passado de acordo com os objetivos de uma elite no presente nos diz tudo a respeito de tais fins Diznos tudo a respeito de uma realidade que não interessava somente apreender mas talvez acima de tudo moldar a partir de um padrão de um horizonte identitário imposto de forma verticalizada de cima para baixo Eis o caráter da construção da narrativa nacional brasileira tratase de um esforço discursivo de erradicação da heterogeneidade pela historiografia oitocentista através da elaboração de um grande relato da nacionalidade que buscava em última análise legitimar uma hierarquia excludente Salah H Khaled Jr 259 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU Capistrano de Capítulos de História Colonial Disponível em http objdigitalbnbrAcervoDigitallivroseletronicoscapitulosdehistoriacoloniapdf Necrológio de Francisco Adolfo de Varnhagen Visconde de Porto Seguro 1878 In Ensaios e estudos crítica e história 1ª série Rio de Janeiro Civilização Brasileira Brasília INL 1975 ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS Varnhagen Biografia Disponível em 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JANCSÓ István e PIMENTA João Paulo G Peças de um mosaico ou apontamen tos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta A experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 Disponível parcialmente em http booksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA127dqPeC3A7asde ummosaico28ouapontamentosparaoestudodaemergC3AAnciadai dentidadenacionalbrasileira29vonepageqPeC3A7as20de20um20 mosaico2028ou20apontamentos20para20o20es MARTIUS Karl Friederich Phillipe Von Como se deve escrever a história do Brasil In RIHGB 6 381403 1844 2ª ed MAXWELL Kenneth Por que o Brasil foi diferente O contexto da independência In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta A experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac1999 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA177dqPorque oBrasilfoidiferente3FOcontextodaindependC3AAnciavonepageq Por20que20o20Brasil20foi20diferente3F20O20contexto20da20 independC3AAnciaffalse MELO Evaldo Cabral de Uma nova Lusitânia In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta A experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac1999 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrboo ksidfJsptN0PWYCpgPA48dqUmanovaLusitC3A2niavonepageqU ma20nova20LusitC3A2niaffalse Horizontes Identitários 262 MOTA Carlos Guilherme Idéias de Brasil formação e problemas In MOTA Carlos Guilherme org Viagem Incompleta A experiência brasileira 15002000 Formação histórias São Paulo Senac 1999 Disponível parcialmente em http booksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCpgPA207IA6dqIdC3A9ias deBrasilformaC3A7C3A3oeproblemasvonepageqffalse NORA Pierre Entre Memória e História a problemática dos lugares In Projeto História São Paulo PUC n 10 p9 dezembro de 1993 Disponível em httpwww pucspbrprojetohistoriadownloadsrevistaPHistoria10pdf ODALIA Nilo As formas do mesmo ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna São Paulo UNESP 1997 Disponível em 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Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksidfJsptN0PWYCp gPA103lpgPA103dqGentedaterrabraziliensedanasC3A7C3A3o sourceblots6yhETIYdcXsignA25vURQTJe3IBZ1GOCYgnU8t1IhlptBRei vpjfSouxOoul8Abp4NBlsaXoibookresultctresultresnum1ved0CAoQ SILVA Helenice Rodrigues A história Intelectual em questão In LOPES Marco Antônio org Grandes nomes da História Intelectual São Paulo Contexto 2003 Disponível em httpbooksgooglecombrbookshlptBRlridfCCwBcC oifndpgPA9dq22Lopes2222GrandesnomesdahistC3 B3riaintelectual22ots4EVkG2eFcqsigX4f7fySi9BDtEN93GMK V75F2svonepageq22Lopes222022Grandes20nomes20da20 histC3B3ria2 Salah H Khaled Jr 263 VARNHAGEN Francisco Adolpho de Ensaio Histórico sobre as Letras no Brasil 1847 Disponível em httpobjdigitalbnbrAcervoDigitallivroseletronicosensaio historicopdf VARNHAGEN Francisco Adolpho de e NETSCHER Pieter MARINUS Les hollandais au Brésil un mot de réplique a M Varnhagen auteur de louvrage intitulé Historia das Lutas com os Hollandeses no Brazil desde 1624 a 1654 par le LieutColonel PM Netscher Disponível em httpwwwbrasilianauspbrbbd handle191801218700 VARNHAGEN Francisco Adolfo de História geral do Brasil 3ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1927 História geral do Brasil 6ª ed Tomo I São Paulo Melhoramentos 1959 História geral do Brasil 6ª ed Tomo II São Paulo Melhoramentos 1959 História geral do Brasil 6ª ed Tomo III São Paulo Melhoramentos 1959 História geral do Brasil 6ª ed Tomo IV São Paulo Melhoramentos 1959 História geral do Brasil 6ª ed Tomo V São Paulo Melhoramentos 1959 Correspondência ativa Rio de Janeiro Ministério da Educação e Cultura 1961 VERÍSSIMO José História da literatura brasileira Disponível em httpwww bibliocombrconteudoJoseVerissimomhistbrashtm VIOTTI Emília Da monarquia a república momentos decisivos 6ª ed São Paulo Brasiliense 1994 Disponível parcialmente em httpbooksgooglecombrbooksid RaxGQlNxIo4CpgPA1dqVIOTTIEmC3ADliaDamonarquiaarepC3 BAblicamomentosdecisivosvonepageqffalse WEHLING Arno Estado história memória Varnhagen e a construção da identidade nacional Rio de Janeiro Nova Fronteira 1999