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54 EDUCAÇÃO ESCOLAR CURRÍCULO E SOCIEDADE o problema da Base Nacional Comum Curricular Dermeval Saviani1 RESUMO Este artigo trata das relações entre escola currículo e sociedade com foco no conteúdo específico da educação escolar tendo como objetivo subsidiar a discussão sobre a base nacional comum curricular Para tanto parte do próprio conceito de currículo situando o em suas determinações sociais para tratar em seguida dos saberes que direta ou indiretamente entram na composição dos currículos formativos destinados a preparar os educandos para se inserir de forma ativa e crítica na vida social Sobre essa base aborda a questão da base nacional comum curricular apresentando um delineamento do conteúdo curricular da educação básica visando superar os limites da proposta apresentada oficialmente no atual contexto Palavraschave Educação escolar brasileira Currículo e sociedade Base nacional comum curricular RESUMEN El artículo se ocupa de las relaciones entre la escuela el plan de estudios y la sociedad centrándose en el contenido específico de la educación escolar Su objetivo es subsidiar los debates sobre la base nacional común del plan de estudios en Brasil Por lo tanto analiza primeramente el concepto mismo de plan de estudios sus determinaciones sociales para no que sigue analizar los saberes que directo o indirectamente compone los planes de estudios de capacitación con el propósito de preparar a los estudiantes para una vida activa y crítica en la sociedad Con el fin de superar los límites de la propuesta presentada oficialmente en el contexto actual el artículo presenta un esbozo del contenido del plan de estudios en la educación básica Palabrasclave Educación escolar brasileira Plan de estudios y sociedad Base nacional común de planes de estudios 1 Professor Emérito da UNICAMP Pesquisador Emérito do CNPq Coordenador Geral do Grupo Nacional de Estudos e Pesquisas História Sociedade e Educação no Brasil HISTEDBR e Professor Titular Colaborador Pleno do Programa de PósGraduação e Educação da UNICAMP Email dermevalsaviani2013gmailcom 55 1 Sobre o conceito de currículo Currículo é entendido comumente como a relação das disciplinas que compõem um curso ou a relação dos assuntos que constituem uma disciplina no que ele coincide com o termo programa Entretanto no âmbito dos especialistas nessa matéria tem prevalecido a tendência a se considerar o currículo como sendo o conjunto das atividades incluído o material físico e humano a elas destinado que se cumprem com vistas a determinado fim Este pode ser considerado o conceito ampliado de currículo pois no que toca à escola abrange todos os elementos a ela relacionados Em síntese podese considerar que o currículo em ato de uma escola não é outra coisa senão essa própria escola em pleno funcionamento isto é mobilizando todos os seus recursos materiais e humanos na direção do objetivo que é a razão de ser de sua existência a educação das crianças e jovens Poderíamos dizer que assim como o método procura responder à pergunta como se deve fazer para atingir determinado objetivo o currículo procura responder à pergunta o que se deve fazer para atingir determinado objetivo Diz respeito pois ao conteúdo da educação e sua distribuição no tempo e espaço que lhe são destinados Se o currículo diz respeito ao conteúdo da educação para se saber o sentido do currículo escolar importa tentar responder à pergunta qual é o conteúdo da educação escolar A esse respeito parece não haver muitas dúvidas O conteúdo fundamental da escola se liga à questão do saber do conhecimento Mas não se trata de qualquer saber e sim do saber elaborado sistematizado O conhecimento de senso comum se desenvolve e é adquirido independentemente da escola Para o acesso ao saber sistematizado é que se torna necessária a escola Ora que implicações tem isso para a questão do currículo 56 Como já foi dito prevalece entre os especialistas a ideia de que currículo é o conjunto das atividades desenvolvidas pela escola Portanto currículo é tudo o que a escola faz assim não faria sentido falar em atividades extracurriculares Tal conceito representa sem dúvida um avanço em relação à noção corrente que identifica currículo com programa ou elenco de disciplinas Mas apresenta também alguns problemas Com efeito se tudo o que acontece na escola é currículo se se apaga a diferença entre curricular e extracurricular então tudo acaba adquirindo o mesmo peso e abrese o caminho para toda sorte de inversões e confusões que terminam por descaracterizar o trabalho escolar Com isso facilmente o secundário pode tomar o lugar daquilo que é principal deslocandose em consequência para o âmbito do acessório aquelas atividades que constituem a razão de ser da escola Não é demais lembrar que esse fenômeno pode ser facilmente observado no diaadia das escolas Dou apenas um exemplo tendo por base o calendário das escolas brasileiras o ano letivo começa em fevereiro e logo temos a semana do índio a semana santa o dia do trabalho a semana das mães dia internacional das famílias dia mundial do meio ambiente as festas juninas em agosto começa o segundo período letivo e logo chega o dia dos pais a semana do soldado semana do folclore depois a semana da pátria a semana da árvore os jogos da primavera semana da criança festa do professor do funcionário público semana da asa semana da República festa da bandeira e nesse momento já chegamos ao final de novembro O ano letivo se encerra e estamos diante da seguinte constatação fezse de tudo na escola encontrouse tempo para toda espécie de comemoração mas muito pouco tempo foi destinado ao processo de transmissãoassimilação de conhecimentos sistematizados Mas podese perguntar qual é o problema Se tudo é currículo se tudo o que a escola faz é importante se tudo concorre para o crescimento e aprendizagem dos alunos então tudo o que se fez é válido e a escola não deixou de cumprir sua função educativa No entanto o que se constata é que de semana em semana de comemoração em comemoração a verdade é que a escola perdeu 57 de vista a sua atividade nuclear que é a de propiciar aos alunos o ingresso na cultura letrada assegurandolhes a aquisição dos instrumentos de acesso ao saber elaborado Em suma o currículo incorporou as mais diversas atividades mas dedicou pouco tempo para o estudo da língua vernácula matemática ciências da natureza ciências da sociedade filosofia artes Para contornar esses problemas fui levado então a corrigir aquela definição de currículo acrescentandolhe o adjetivo nucleares Com essa retificação a definição passaria a ser a seguinte currículo é o conjunto das atividades nucleares desenvolvidas pela escola Fica assim claro que as atividades referentes às comemorações mencionadas são secundárias e não essenciais à escola Enquanto tais são extracurriculares e só têm sentido na medida em que possam enriquecer as atividades curriculares isto é aquelas próprias da escola não devendo em hipótese alguma prejudicálas ou substituílas Das considerações feitas resulta importante manter a diferença entre atividades curriculares e extracurriculares já que esta é uma maneira de não perdermos de vista a distinção entre o que é principal e o que é secundário Um currículo é portanto uma escola funcionando isto é uma escola desempenhando a função que lhe é própria No entanto é necessário também não perder de vista que os conhecimentos desenvolvidos no âmbito das relações sociais ao longo da história não são transpostos direta e mecanicamente para o interior das escolas na forma da composição curricular Isto significa que para existir a escola não basta a existência do saber sistematizado É necessário viabilizar as condições de sua transmissão e assimilação Isto implica dosálo e sequenciálo de modo que a criança passe gradativamente do seu não domínio ao seu domínio E o saber dosado e sequenciado para efeitos de sua transmissãoassimilação no espaço escolar ao longo de um tempo determinado é o que convencionamos chamar de saber escolar E é nessa condição que os conhecimentos sistematizados passam a integrar os currículos das escolas 58 Em suma pela mediação da escola dáse a passagem do saber espontâneo ao saber sistematizado da cultura popular à cultura erudita Mas se a escola se justifica em função da necessidade de assimilação do conhecimento elaborado isto não significa que este seja mais importante ou hierarquicamente superior Tratase na verdade de um movimento dialético isto é a ação escolar permite que se acrescentem novas determinações que enriquecem as anteriores e estas de forma alguma são excluídas Ao contrário o saber espontâneo baseado na experiência de vida a cultura popular portanto é a base que torna possível a elaboração do saber e em consequência a cultura erudita Isso significa que o acesso à cultura erudita possibilita a apropriação de novas formas pelas quais se podem expressar os próprios conteúdos do saber popular Mantémse portanto a primazia da cultura popular da qual deriva a cultura erudita que se manifesta como uma nova determinação que a ela se acrescenta Nessa condição a restrição do acesso à cultura erudita conferirá àqueles que dela se apropriam uma situação de privilégio uma vez que o aspecto popular não lhes é estranho A recíproca porém não é verdadeira os membros da população marginalizados da cultura letrada tenderão a encarála como uma potência estranha que os desarma e domina O papel da escola democrática será pois o de viabilizar a toda a população o acesso à cultura letrada consoante o princípio que enunciei em outro trabalho SAVIANI 2012a segundo o qual para se libertar da dominação os dominados necessitam dominar aquilo que os dominantes dominam Portanto de nada adiantaria democratizar a escola isto é expandila de modo a tornála acessível a toda a população se ao mesmo tempo isso fosse feito esvaziandose a escola de seu conteúdo específico isto é a cultura letrada o saber sistematizado Isto significaria segundo o dito popular dar com uma mão e tirar com a outra Com efeito como já foi lembrado para ter acesso ao saber espontâneo à cultura popular o povo não precisa da escola Esta é importante para ele na medida em que lhe permite o domínio do saber elaborado 59 2 Currículo e Sociedade Mas como se originou esse conteúdo fundamental da escola Como explicar a constituição desse vínculo entre escola e saber sistematizado Para responder a essas questões é necessário considerar a educação em sua estreita relação com a sociedade no processo de desenvolvimento histórico Com efeito a educação é inerente à sociedade originandose do mesmo processo que deu origem ao homem Desde que o homem é homem ele vive em sociedade e se desenvolve pela mediação da educação A humanidade se constituiu a partir do momento em que determinada espécie natural de seres vivos se destacou da natureza e em lugar de sobreviver adaptandose a ela necessita para continuar existindo adaptar a natureza a si Dessa forma o homem tem de se apropriar da natureza e transformála de acordo com suas necessidades sem o que ele perece Diferentemente portanto dos animais que têm a sua existência garantida pela natureza bastandolhes adaptarse a ela o homem necessita produzir sua própria existência Ora a produção da existência implica o desenvolvimento de formas e conteúdos cuja validade é estabelecida pela experiência o que configura um verdadeiro processo de aprendizagem Assim enquanto os elementos não validados pela experiência são afastados aqueles cuja eficácia a experiência corrobora necessitam ser preservados e transmitidos às novas gerações no interesse da continuidade da espécie Nas comunidades primitivas a educação coincide totalmente com o fenômeno acima descrito Os homens se apropriam coletivamente dos meios de produção da existência e nesse processo se educam e educam as novas gerações Nas sociedades antigas e medievais com a apropriação privada da terra então o principal meio de produção surge uma classe que vive do trabalho alheio e em consequência desenvolvese um tipo de educação diferenciada destinada aos grupos dominantes cuja função é preencher o tempo livre de forma digna otium cum dignitate Aí está a origem da palavra escola do grego skolé lazer tempo 60 livro ócio e por extensão ocupação dos homens que dispõem de lazer estudo assim como de ginásio que em grego significa local dos exercícios físicos local dos jogos Essa educação diferenciada desenvolvida de forma sistemática através de instituições específicas era portanto reservada à minoria à elite A maioria isto é aqueles que através do trabalho garantiam a produção da existência de si mesmos assim como de seus senhores continuava a ser educada de maneira assistemática pela experiência de vida cujo centro era o trabalho Nesse contexto a forma escolar de educação era uma forma secundária que se contrapunha como nãotrabalho à forma de educação dominante determinada pelo trabalho Na sociedade moderna ou capitalista ou burguesa a classe dominante burguesia detém a propriedade privada dos meios de produção condições e instrumentos de trabalho convertidos em capital obtida pela expropriação dos produtores Entretanto diferentemente dos senhores feudais nobreza a burguesia não pode ser considerada uma classe ociosa Ao contrário é uma classe empreendedora compelida a revolucionar constantemente as relações de produção portanto toda a sociedade Oriunda das atividades mercantis que permitiram um primeiro nível de acumulação de capital a burguesia tende a converter todos os produtos do trabalho em valordetroca cuja maisvalia é incorporada ao capital que se amplia insaciavelmente Nesse processo o campo é subordinado à cidade e a agricultura à indústria que realiza a conversão da ciência potência espiritual em potência material O predomínio da cidade e da indústria sobre o campo e a agricultura tende a se generalizar e a esse processo corresponde a exigência de generalização da escola Assim não é por acaso que a constituição da sociedade burguesa trouxe consigo a bandeira da escolarização universal e obrigatória Com efeito a vida urbana cuja base é a indústria se rege por normas que ultrapassam o direito natural sendo codificadas no chamado direito positivo que dado o seu caráter 61 convencional formalizado sistemático se expressa em termos escritos Daí a incorporação na vida da cidade da expressão escrita de tal modo que não se pode participar plenamente dela sem o domínio dessa forma de linguagem Por isso para ser cidadão isto é para participar ativamente da vida da cidade do mesmo modo que para ser trabalhador produtivo é necessário o ingresso na cultura letrada E sendo a cultura letrada um processo formalizado sistemático só pode ser atingida por meio de um processo educativo também sistemático E a escola é por sua vez a instituição que propicia de forma sistemática o acesso à cultura letrada reclamado pelos membros da sociedade moderna Nesse contexto a forma principal e dominante de educação passa a ser a educação escolarizada Frente a ela a educação difusa e assistemática embora não deixando de existir perde relevância e passa a ser aferida pela determinação da forma escolarizada A educação escolar representa pois em relação à educação extraescolar a forma mais desenvolvida mais avançada E como é a partir do mais desenvolvido que se pode compreender o menos desenvolvido e não o contrário é a partir da escola que é possível compreender a educação em geral e não o contrário De fato isso fica evidente na própria maneira como nos expressamos Com efeito a educação escolar é simplesmente entendida como a educação Já as outras modalidades são sempre definidas pela via negativa Referimonos a elas lançando mão de denominações como educação não escolar não formal informal extraescolar Portanto a referência de análise isto é o parâmetro para se considerar as outras modalidades de educação é a própria educação escolar Podese dizer à guisa de síntese que ao deslocamento do eixo do processo produtivo do campo para a cidade da agricultura para a indústria e ao deslocamento do eixo do processo cultural do saber espontâneo assistemático para o saber metódico sistemático científico correspondeu o deslocamento do eixo do processo educativo de formas difusas identificadas com o próprio processo de produção da existência para formas específicas e institucionalizadas identificadas com a escola E as necessidades postas por 62 essa nova forma de organização da sociedade conduziram a uma nova forma de estruturação do currículo isto é dos conteúdos do ensino Assim são as necessidades sociais que determinam o conteúdo isto é o currículo da educação escolar em todos os seus níveis e modalidades 3 Os saberes necessários à organização dos currículos formativos Já vimos que a origem da educação se confunde com as origens do próprio homem E porque a educação é um fenômeno específico dos seres humanos a compreensão de sua natureza passa pela compreensão da natureza humana E a natureza humana não é dada ao homem mas é por ele próprio produzida no mesmo ato em que ele produz sua existência ao transformar a natureza de acordo com suas necessidades Portanto se para sobreviver o homem necessita extrair da natureza ativa e intencionalmente os meios de sua subsistência ao fazer isso ele inicia o processo de transformação do mundo natural criando um mundo humano o mundo da cultura Esse processo implica primordialmente a garantia da subsistência material com a consequente produção em escalas cada vez mais amplas e complexas de bens materiais trabalho material Entretanto para produzir materialmente o homem necessita antecipar em ideias os objetivos da ação o que significa que ele representa mentalmente os objetivos reais Essa representação inclui o aspecto de conhecimento das propriedades do mundo real ciência de valorização ética e de simbolização arte Tratase aqui do trabalho não material isto é a produção de ideias conceitos valores símbolos hábitos atitudes habilidades Numa palavra trata se da produção do saber seja do saber sobre a natureza seja do saber sobre a cultura isto é o conjunto da produção humana Obviamente a educação se situa nessa categoria do trabalho não material 63 Cabe porém considerar que se a educação pertencendo ao âmbito da produção não material tem a ver com ideias conceitos valores símbolos hábitos atitudes habilidades tais elementos não lhe interessam em si mesmos como algo exterior ao homem Nessa forma isto é considerados em si mesmos como algo exterior ao homem esses elementos constituem o objeto de preocupação das chamadas ciências humanas em contraposição às ciências da natureza Diferentemente do ponto de vista da educação ou seja da perspectiva da pedagogia entendida como ciência da educação esses elementos interessam enquanto é necessário que os homens os assimilem tendo em vista a constituição de algo como uma segunda natureza Com efeito o que não é garantido pela natureza tem que ser produzido historicamente pelos homens e aí se incluem os próprios homens Podemos pois dizer que a natureza humana não é dada ao homem mas é por ele próprio produzida sobre a base da natureza biofísica Consequentemente o trabalho educativo é o ato de produzir direta e intencionalmente em cada indivíduo singular a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens SAVIANI 2013 p 13 Em suma os diferentes tipos de saber do ponto de vista da educação não interessam em si mesmos Eles interessam sim mas enquanto elementos que os indivíduos da espécie humana necessitam assimilar para que se tornem humanos isto é para que integrem o gênero humano Isto porque o homem não se faz homem naturalmente ele não nasce sabendo ser homem vale dizer ele não nasce sabendo sentir pensar avaliar agir Para saber pensar e sentir para saber querer agir ou avaliar é preciso aprender o que implica o trabalho educativo Em verdade deixado em condições puramente naturais afastado de todo e qualquer convívio humano o indivíduo não chega a ser homem Ou ele perece hipótese mais provável ou não ascenderá à condição humana o que está evidenciado no livro As crianças selvagens construído a partir da memória 64 e relatório de Jean Itard sobre Victor de LAveyron o menino selvagem MALSON 1967 que sobreviveu fora do convívio humano mas não atingiu a condição humana o que só veio a acontecer por meio do trabalho educativo realizado por Itard Consequentemente o saber que diretamente interessa à educação é aquele referido ao processo de aprendizagem voltado à produção do resultado do trabalho educativo Entretanto para chegar a esse resultado a educação tem que partir tem que tomar como referência como matériaprima de sua atividade o saber objetivo produzido historicamente O fenômeno educativo manifestase pois desde a origem do homem pelo desenvolvimento de processos educativos inicialmente coincidentes com o próprio ato de viver os quais foram se diferenciando progressivamente até atingir um caráter institucionalizado cuja forma mais conspícua se revela no surgimento da escola Esta aparece de início como manifestação secundária e derivada dos processos educativos mais gerais mas vai se transformando lentamente ao longo da história até erigirse na forma principal e dominante de educação Esta passagem da escola à forma dominante de educação coincide com a etapa histórica em que as relações sociais passaram a prevalecer sobre as relações naturais estabelecendose o primado do mundo da cultura o mundo produzido pelo homem sobre o mundo da natureza Em consequência o saber metódico sistemático científico elaborado passa a predominar sobre o saber espontâneo natural assistemático resultando daí que a especificidade da educação passa a ser determinada pela forma escolar A etapa histórica em referência que ainda não se esgotou corresponde ao surgimento e desenvolvimento da sociedade capitalista cujas contradições vão colocando de forma cada vez mais intensa a necessidade de sua superação Levando em conta os contornos assumidos pelo fenômeno educativo no contexto da sociedade atual tentemos identificar os principais tipos de saber nele implicados 65 4 O processo educativo os saberes que o configuram O processo educativo é um fenômeno complexo todos reconhecem Tentando apreendêlo na sua manifestação concreta na sociedade atual a observação imediata nos coloca diante de um universo empírico bastante heterogêneo seja quanto às formas de organização e efetivação seja quanto às representações que dele fazem seus agentes Nesse contexto os saberes nele envolvidos também se revestem da aparência de um caos irredutível Procedendo analiticamente e procurando identificar certas características comuns que possam constituir as notas distintivas do fenômeno educativo chegamos a uma categorização dos saberes que com uma boa margem de consenso se entende que todo educador deve dominar e por consequência devem integrar o processo de sua formação São eles 41 O saber atitudinal Esta categoria compreende o domínio dos comportamentos e vivências consideradas adequadas ao trabalho educativo Abrange atitudes e posturas inerentes ao papel atribuído ao educador tais como disciplina pontualidade coerência clareza justiça e equidade diálogo respeito às pessoas dos educandos atenção às suas dificuldades etc Tratase de competências que se prendem à identidade e conformam a personalidade do educador mas que são objeto de formação tanto por processos espontâneos como deliberados e sistemáticos 42 O saber críticocontextual Tratase do saber relativo à compreensão das condições sócio históricas que determinam a tarefa educativa Entendese que os educandos devam ser preparados para integrar a vida da sociedade em que estão inseridos de modo a desempenhar nela determinados papéis de forma ativa e o quanto possível inovadora Esperase assim que o educador saiba compreender o movimento da sociedade identificando suas características básicas e as tendências de sua transformação de modo a detectar as necessidades presentes e futuras a serem atendidas pelo processo educativo sob sua responsabilidade A formação do educador envolverá 66 pois a exigência de compreensão do contexto a partir do qual e para o qual se desenvolve o trabalho educativo traduzida aqui na categoria do saber críticocontextual 43 Os saberes específicos Nesse âmbito incluemse os saberes correspondentes às disciplinas em que se recorta o conhecimento socialmente produzido e que integram os currículos escolares Tratase dos conhecimentos oriundos das ciências da natureza das ciências humanas das artes ou das técnicas obviamente considerados como se assinalou não em si mesmos mas enquanto elementos educativos isto é que precisam ser assimilados pelos educandos em situações específicas Sob esse ponto de vista não é lícito ao educador ignorar esses saberes os quais devem em consequência integrar o processo de sua formação 44 O saber pedagógico Aqui se incluem os conhecimentos produzidos pelas ciências da educação e sintetizados nas teorias educacionais visando a articular os fundamentos da educação com as orientações que se imprimem ao trabalho educativo Em verdade esse tipo de saber fornece a base de construção da perspectiva especificamente educativa a partir da qual se define a identidade do educador como um profissional distinto dos demais profissionais estejam eles ligados ou não ao campo educacional 45 O saber didáticocurricular Sob essa categoria compreendemse os conhecimentos relativos às formas de organização e realização da atividade educativa no âmbito da relação educadoreducando É em sentido mais específico o domínio do saber fazer Implica não apenas os procedimentos técnicometodológicos mas a dinâmica do trabalho pedagógico enquanto uma estrutura articulada de agentes conteúdos instrumentos e procedimentos que se movimentam no espaço e tempo pedagógicos visando atingir objetivos intencionalmente formulados Eis aí em suma o conjunto dos saberes que em princípio todo educador deve dominar e que por isso integrarão o processo de sua formação e orientarão a organização e funcionamento dos currículos escolares 67 5 As formas e os agentes do saber educativo Os saberes arrolados no item anterior foram categorizados pelo ângulo dos conteúdos de que são portadores Entretanto o eixo comum relativo às formas em que se constituem e se expressam esses saberes se manifesta na diferença entre sofia o saber decorrente da experiência de vida e episteme o saber decorrente de processos sistemáticos de construção de conhecimentos Como se sabe o vocábulo grego sofia significa a sabedoria fundada numa longa experiência de vida É nesse sentido que se diz que os velhos são sábios e que os jovens devem ouvir e seguir seus conselhos Já episteme significa ciência isto é o conhecimento metódico e sistematizado Consequentemente se do ponto de vista da sofia um velho é sempre mais sábio do que um jovem do ponto de vista da episteme um jovem pode ser mais sábio do que um velho Considerando a partir do ponto de vista da forma os saberes implicados na formação do educador é possível constatar que a forma sofia e também a forma episteme atravessam indistintamente os diferentes tipos de saber ainda que com ênfases diferenciadas Assim se no caso do saber atitudinal tende a predominar a experiência prática e nos casos dos saberes específicos e do saber pedagógico prevalecem os processos sistemáticos ficando em posição intermediária os saberes críticocontextual e didáticocurricular é certo que a forma episteme marca também o saber atitudinal assim como a forma sofia não está ausente do modo como o educador apreende os saberes específicos e o saber pedagógico Com efeito as atitudes à medida que se configuram como saber implicam necessariamente certo grau de sistematização assim como a experiência de vida tem um peso que não pode ser desconsiderado na forma como se constroem os saberes específicos e o saber pedagógico Observase mesmo que o grau de participação de cada uma dessas formas varia de acordo com a variação das teorias educacionais Assim a teoria da educação tradicional tende a situar o saber atitudinal no âmbito das condições 68 organizacionais do trabalho pedagógico trazendo para o centro dos processos sistemáticos os conteúdos de conhecimento e as formas de sua transmissão Já a pedagogia nova traz para o próprio núcleo do processo educativo a formação de atitudes buscando sistematizar a experiência dos educandos como elemento de reconstrução dos próprios conhecimentos socialmente elaborados Por sua vez a pedagogia tecnicista coloca no centro do trabalho educativo o saber didáticocurricular cuja operacionalização a mais detalhada possível é considerada garantia dos objetivos que se busca atingir Tendo em vista o exposto não nos pareceu pertinente em nossa categorização falar em saberes da experiência como um tipo de saber ao lado dos demais como o fizeram TARDIF LESSARD e LAHAYE 1991 p 219221 Isto porque a nosso ver não se trata aí de um conteúdo diferenciado dos demais mas de uma forma a forma sofia que pode estar referida indistintamente aos diferentes tipos de saber Outra determinação que cumpre assinalar diz respeito ao fato de que no tratamento dos diferentes tipos de saber cabe levar em conta não apenas o grau efetivo ou potencial de seu domínio por parte do educador mas também o domínio potencial assim como efetivo dos referidos saberes por parte do educando Com efeito ainda que integrem o trabalho educativo múltiplos agentes o núcleo fundamental constitutivo do ato educativo é dado na relação educadoreducando Já no ponto de partida da relação pedagógica os educandos se apresentam como portadores não apenas potenciais mas também reais de saberes relativos às atitudes à compreensão do contexto a conhecimentos específicos às teorias educacionais e às questões didático curriculares saberes esses que devem ser atentamente levados em conta pelo educador e portanto devem integrar a sua formação 6 A relação educativa como prática social mediadora da prática social global 69 Na consideração dos saberes envolvidos na educação cumpre levar em conta que eles implicam igualmente educadores e educandos os quais se põem numa relação prática determinada socialmente como momento da prática social global tendo nesta portanto o seu ponto de partida e seu ponto de chegada Como tal a prática educativa assume o caráter de mediação no seio da prática social não se justificando pois por si mesma mas pelos efeitos que produz no âmbito da prática social global por ela mediada Sua eficácia é aferida portanto pelas mudanças qualitativas que provoca na prática social Os agentes educativos são então antes como depois mas também durante o ato educativo agentes sociais cuja qualidade se modifica por efeito do trabalho pedagógico Essa peculiaridade da prática educativa põe em posições diferenciadas os dois polos da relação pedagógica o educador e o educando SAVIANI 2012a pp70 80 No ponto de partida o educador de um lado e o educando de outro se encontram em níveis diferentes de compreensão e portanto de inserção na prática social Enquanto o educador tem uma compreensão sintética ainda que precária a compreensão do educando é de caráter sincrético A compreensão do educador é sintética porque implica certa articulação dos saberes que detém relativamente à prática social o que lhe permite dispor a relação educativa como um processo cujo ponto de chegada é percebido com razoável clareza Tal síntese porém é precária uma vez que por mais articulados que sejam os saberes que domina a inserção de sua própria prática pedagógica como uma dimensão da prática social envolve uma antecipação do que lhe será possível fazer com educandos cujos níveis de compreensão ele não pode conhecer no ponto de partida senão de forma precária Por seu lado a compreensão do educando é sincrética uma vez que por mais saberes que detenha sua própria condição de educando implica uma impossibilidade no ponto de partida de articulação da experiência pedagógica com a prática social de que participa Considerando a relação educativa agora sob o ângulo do ponto de chegada que é a própria prática social verificase que neste ponto ao mesmo tempo em que 70 o educando ascende ao nível sintético onde por suposto já se encontrava o educador no ponto de partida reduzse a precariedade da síntese do educador cuja compreensão se torna mais orgânica Essa elevação do educando ao nível do educador é essencial para se compreender a especificidade da relação pedagógica É com efeito pela mediação analítica levada a cabo na relação educativa que se dá a passagem da síncrese à síntese Em consequência no ponto de chegada manifestase no educando a capacidade de expressar uma compreensão da prática em termos tão elaborados quanto era possível ao educador no ponto de partida Por meio do referido processo a compreensão da prática social passa por uma alteração qualitativa Por isso a prática social posta no ponto de partida e aquela do ponto de chegada são e não são a mesma Por um lado tratase da mesma prática uma vez que é a prática social que constitui ao mesmo tempo o suporte e o contexto o pressuposto e o alvo o fundamento e a finalidade da prática pedagógica Em suma tratase da própria prática social global em cujo interior se situa a educação Por outro lado não se trata da mesma prática se considerarmos que o modo de nos situarmos em seu interior se alterou qualitativamente pela mediação da ação pedagógica e já que somos enquanto agentes sociais elementos objetivamente constitutivos da prática social é lícito afirmar que a própria prática se alterou qualitativamente Por conseguinte é preciso ficar claro que os saberes mobilizados pelo educador se articulam em função do objetivo propriamente pedagógico isto é o desenvolvimento do educando que significa a transformação qualitativa de seu modo de inserção na prática social Eis porque se afirmou antes que os saberes historicamente produzidos do ponto de vista da educação não interessam por si mesmos mas enquanto elementos por meio dos quais cada indivíduo singular sintetiza em si próprio a humanidade que é produzida histórica e coletivamente 71 pelo conjunto dos homens 7 A determinação pela educação Se os conhecimentos produzidos socialmente no que se refere à educação não interessam por si mesmos e se o conjunto dos saberes mobilizados pelo educador se articulam em função do objetivo propriamente pedagógico que se liga ao desenvolvimento do educando então não são os saberes enquanto tais que determinam a construção dos currículos escolares Ao contrário disso são os objetivos educativos que determinam a seleção dos saberes que deverão compor a organização dos currículos No primeiro caso ou seja se se entender que são os conhecimentos socialmente produzidos que determinam a organização curricular nós teríamos os saberes já constituídos externamente à educação e por critérios também externos a ela saberes estes a partir dos quais se determinaria o conteúdo do ensino e portanto o currículo No segundo caso isto é considerandose os objetivos educacionais como determinantes do currículo nós partimos da situação educacional e por critérios dela derivados determinamse os conteúdos do trabalho educativo A partir daí cabe definir entre os saberes disponíveis socialmente os conhecimentos que devem integrar os currículos escolares selecionandose em consequência os aspectos considerados relevantes para a educação e estabelecendo a forma e o lugar que vão ocupar nos currículos em geral e especificamente nos cursos de formação dos professores A questão posta é análoga àquela relativa à pesquisa educacional que analisei em 1976 SAVIANI 2007 pp 113114 Aí eu me referia à relação entre as chamadas ciências da educação e a educação propriamente formando dois tipos de circuito ilustrados por meio do seguinte gráfico 72 Sociologia da Educação Psicologia da Educação Economia da Educação Etc EDUCAÇÃO Sociologia da Educação Psicologia da Educação Economia da Educação Etc EDUCAÇÃO A B O gráfico permite visualizar as duas situações Na situação A a educação é ponto de passagem ela está descentrada O ponto de partida e o ponto de chegada estão alhures Isto significa que as pesquisas e portanto os saberes produzidos no âmbito da sociologia da educação da psicologia da educação etc circunscrevem a educação como seu objeto encarandoa como um fenômeno sociológico psicológico etc o qual é visto consequentemente à luz das teorizações específicas a partir de cuja estrutura conceptual são mobilizadas as hipóteses explicativas do aludido fenômeno O processo educativo é encarado pois como campo de teste das hipóteses que uma vez verificadas redundarão no enriquecimento do acervo teórico das disciplinas específicas referidas A situação B representa a inversão do circuito A educação enquanto ponto de partida e de chegada tornase o centro das preocupações Notese que ocorre agora uma profunda mudança de projeto Em vez de se considerar a educação a partir de critérios psicológicos sociológicos econômicos etc são as contribuições das diferentes áreas que serão avaliadas a partir da problemática educacional O processo educativo erigese assim em critério o que significa dizer que a incorporação desse ou daquele aspecto do acervo teórico constituído pelos saberes socialmente disponíveis dependerá da natureza dos problemas enfrentados pelos educadores 73 Aplicando essa reflexão ao tema da relação entre os saberes e a organização curricular vêse que na situação A são os saberes que determinam a organização curricular na situação B inversamente é o problema da educação com a respectiva organização curricular que determina os saberes ou mais precisamente é o problema da educação que determina a escolha dos saberes que entrarão na composição dos currículos formativos Enfim acreditase que tomando o processo educativo como ponto de partida e ponto de chegada será possível construir currículos que incorporem as contribuições correspondentes aos diferentes saberes em que se recorta o conhecimento socialmente produzido A problemática educativa será pois a referência para se determinar o conteúdo dos currículos tanto no que se refere à formação de educadores quanto no que diz respeito à organização do ensino nos diferentes níveis e modalidades educativas Dessa forma o trabalho educativo estará capacitado a responder adequadamente aos problemas postos pela prática social que se desenvolve na sociedade contemporânea 8 A base nacional comum curricular Dispostos os elementos que nos permitem compreender as relações entre educação escolar currículo e sociedade situando o problema dos saberes necessários à formação de indivíduos humanos desenvolvidos em sintonia com o máximo grau de desenvolvimento das objetivações humanas nas condições atuais estamos em condição de abordar o problema da base nacional comum curricular referente ao conjunto da educação básica A noção de uma base comum nacional emergiu como uma ideiaforça do movimento pela reformulação dos cursos de formação de educadores Esse movimento começou a se articular no final dos anos de 1970 materializandose na I Conferência Brasileira de Educação realizada em São Paulo nos dias 31 de 74 março 1º e 2 de abril de 1980 ocasião em que foi criado o Comitê Pró Participação na Reformulação dos Cursos de Pedagogia e Licenciatura que se transformou em 1983 na Comissão Nacional pela Reformulação dos Cursos de Formação de Educadores CONARCFE Esta por sua vez deu origem em 1990 à atual ANFOPE Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação Nos eventos realizados pelo referido movimento do campo educacional a ideia da base comum nacional foi sendo explicitada mais pela negação do que pela afirmação Assim foi se fixando o entendimento segundo o qual a referida ideia não coincide com a parte comum do currículo nem com o currículo mínimo sendo antes um princípio a inspirar e orientar a organização dos cursos de formação de educadores em todo o país Como tal seu conteúdo não poderia ser fixado por um órgão de governo por um intelectual de destaque e nem mesmo por uma assembleia de educadores mas deveria fluir das análises dos debates e das experiências encetadas possibilitando no médio prazo chegar a um consenso em torno dos aspectos fundamentais que devem basear a formação dos profissionais da educação Observese que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 20 de dezembro de 1996 incorporou essa ideia ao definir no Art 26 que os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum e no Art 64 que a formação dos profissionais da educação será feita em cursos de graduação em pedagogia ou em nível de pósgraduação a critério da instituição de ensino garantida nesta formação a base comum nacional sem entretanto explicitar o significado dessa expressão Contudo a sequência do artigo 26 ao afirmar que a base nacional comum deve ser complementada em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar por uma parte diversificada respalda a interpretação de que a base nacional comum coincide com a parte comum do currículo conforme a legislação anterior Com efeito a Lei 5692 de 11 de agosto de 1971 definiu no Art 4º que os currículos do ensino de 1º e 2º graus terão um núcleo comum obrigatório em âmbito nacional e uma parte diversificada 75 Ao que parece o encaminhamento da base comum nacional curricular nos termos da LDB foi equacionado por meio da elaboração e aprovação pelo Conselho Nacional de Educação das Diretrizes Curriculares Nacionais relativas aos vários níveis e modalidades de ensino É isso com efeito que flui do disposto no Inciso IV do Art 9º que atribui à União o encargo de estabelecer competências e diretrizes para a educação infantil o ensino fundamental e o ensino médio que nortearão currículos e seus conteúdos mínimos de modo a assegurar formação básica comum E o próprio documento elaborado pelo MEC sobre a base nacional comum curricular se reporta às Diretrizes Curriculares Nacionais definidas pelo Conselho Nacional de Educação que continuam em vigor Emerge então inevitavelmente a seguinte pergunta se a base comum já se encontra definida por meio das diretrizes curriculares nacionais que são mantidas qual o sentido desse empenho em torno da elaboração e aprovação de uma nova norma relativa à base nacional comum curricular Considerando a centralidade que assumiu a questão da avaliação aferida por meio de testes globais padronizados na organização da educação nacional e tendo em vista a menção a outros países com destaque para os Estados Unidos tomados como referência para essa iniciativa de elaborar a base comum nacional curricular no Brasil tudo indica que a função dessa nova norma é ajustar o funcionamento da educação brasileira aos parâmetros das avaliações gerais padronizadas Essa circunstância coloca em evidência as limitações dessa tentativa pois como já advertimos essa subordinação de toda a organização e funcionamento da educação nacional à referida concepção de avaliação implica numa grande distorção do ponto de vista pedagógico SAVIANI 2012 p 316317 entendimento que veio a ser reforçado pela ampla e contundente crítica efetuada por Diane Ravitch 2011 sobre o sistema americano que está sendo tomado como modelo pelo Brasil Diante das limitações apontadas apresento a seguir para subsidiar o debate sobre o tema da base nacional comum curricular outro encaminhamento da questão 76 Para identificar os conteúdos básicos que devem compor os currículos de toda a educação básica desde a educação infantil até o ensino médio proponho que se tome como referência o conceito do trabalho como princípio educativo De modo geral podemos considerar que esse conceito compreende três significados Num primeiro sentido o trabalho é princípio educativo na medida em que determina pelo grau de desenvolvimento social atingido historicamente o modo de ser da educação em seu conjunto Assim entendido aos modos de produção correspondem modos distintos de educar com uma correspondente forma dominante de educação Em um segundo sentido o trabalho é princípio educativo na medida em que coloca exigências específicas que o processo educativo deve preencher em vista da participação direta dos membros da sociedade no trabalho socialmente produtivo Finalmente o trabalho é princípio educativo num terceiro sentido à medida que determina a educação como modalidade específica e diferenciada de trabalho o trabalho pedagógico Para a definição da base curricular relativa à educação infantil devemos tomar como referência o aporte da Psicologia HistóricoCultural que indica como referência para a identificação do conteúdo e forma do desenvolvimento do ensino a atividadeguia própria de cada período da vida dos indivíduos Partindo da vida intrauterina com a transição pósnatal nós temos no primeiro ano de vida a atividade emocional direta com o adulto como atividadeguia Nesse momento o conteúdo da educação envolve a compreensão das características próprias da vida uterina e pósnatal em que a estabilidade da formação do bebê é diretamente dependente da comunicação emocional direta com o adulto mãepai cuidador Evidenciase assim a natureza tipicamente social do bebê e a determinação de seu desenvolvimento pelas condições educacionais em que o referido desenvolvimento ocorre Na etapa seguinte correspondente ao segundo e terceiro anos de vida a atividadeguia é a atividade objetal manipulatória Nessa fase já se trata de 77 organizar intencionalmente os conteúdos meios e procedimentos guiados pela atividade objetal manipulatória para assegurar um processo de ensino que viabilize a aprendizagem da criança nos seus primeiros anos de vida Passase em seguida à idade préescolar 4º e 5º anos na qual a atividade guia é a brincadeira de papeis sociais Aqui já se trata de organizar o ensino de maneira a possibilitar à criança a apropriação do acervo cultural da humanidade superandose as concepções naturalizantes do ato de brincar Dáse assim a transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental Neste a atividade guia é a atividade de estudo Tomando como referência as reflexões de Gramsci sobre o trabalho como princípio educativo da escola unitária esbocei em trabalho anterior SAVIANI 2014 p 6674 a conformação do sistema de ensino tendo em vista as condições da sociedade brasileira atual Levando em conta que o entendimento gramsciano da escola unitária corresponde à fase que hoje no Brasil é definida como a educação básica especificamente nos níveis fundamental e médio retomo agora com eventuais ajustes o referido esboço Considerando o primeiro sentido do trabalho como princípio educativo vemos que o modo como está organizada a sociedade atual é a referência para a organização do ensino fundamental O nível de desenvolvimento atingido pela sociedade contemporânea coloca a exigência de um acervo mínimo de conhecimentos sistemáticos sem o que não se pode ser cidadão isto é não se pode participar ativamente da vida da sociedade O acervo em referência inclui a linguagem escrita e a matemática já incorporadas na vida da sociedade atual as ciências da natureza cujos elementos básicos relativos ao conhecimento das leis que regem a natureza são necessários para se compreender as transformações operadas pela ação do homem sobre o meio ambiente e as ciências da sociedade pelas quais se pode compreender as relações entre os homens as formas como eles se organizam 78 as instituições que criam e as regras de convivência que estabelecem com a consequente definição de direitos e deveres O último componente ciências da sociedade corresponde na atual estrutura aos conteúdos de história e geografia Eis aí como se configura o currículo da escola elementar complementado pela Educação Artística e Educação Física A primeira em continuidade com as atividades já desenvolvidas na Educação Infantil permite às crianças não apenas a objetivação de sua expressão criativa mas sua iniciação e familiarização com as produções artísticas mais desenvolvidas da humanidade A segunda permitirá às crianças progressivamente assumirem plenamente sua corporeidade adquirindo controle do próprio corpo tanto em relação ao desenvolvimento pleno dos movimentos corporais como em sentido inverso desenvolvendo a capacidade de contenção do movimento físico exigida pela disciplina necessária à realização do trabalho intelectual A base em que se assenta a estrutura do ensino fundamental é o princípio educativo do trabalho O estudo das ciências naturais assinala Gramsci visa introduzir as crianças na societas rerum e pelas ciências sociais elas são introduzidas na societas hominum O conceito e o fato do trabalho da atividade teóricoprática é o princípio educativo imanente à escola elementar já que a ordem social e estatal direitos e deveres é introduzida e identificada na ordem natural pelo trabalho O conceito do equilíbrio entre ordem social e ordem natural sobre o fundamento do trabalho da atividade teóricoprática do homem cria os primeiros elementos de uma intuição do mundo liberta de toda magia ou bruxaria e fornece o ponto de partida para o posterior desenvolvimento de uma concepção históricodialética do mundo GRAMSCI 1975 vol III p 1541 na edição brasileira 1968 p 130 Uma vez que o princípio do trabalho é imanente à escola elementar isto significa que no ensino fundamental a relação entre trabalho e educação é implícita e indireta Ou seja o trabalho orienta e determina o caráter do currículo escolar em função da incorporação dessas exigências na vida da sociedade A escola elementar não precisa então fazer referência direta ao processo de trabalho Aprender a ler escrever e contar e dominar os rudimentos das ciências naturais e das ciências sociais constituem prérequisitos para 79 compreender o mundo em que se vive inclusive para entender a própria incorporação pelo trabalho dos conhecimentos científicos no âmbito da vida e da sociedade Se no ensino fundamental a relação é implícita e indireta no ensino médio a relação entre educação e trabalho entre o conhecimento e a atividade prática deverá ser tratada de maneira explícita e direta Intervém aqui pois o segundo sentido do conceito de trabalho como princípio educativo O papel fundamental da escola de nível médio será então o de recuperar essa relação entre o conhecimento e a prática do trabalho Assim no ensino médio já não basta dominar os elementos básicos e gerais do conhecimento que resultam e ao mesmo tempo contribuem para o processo de trabalho na sociedade Tratase agora de explicitar como o conhecimento objeto específico do processo de ensino isto é como a ciência potência espiritual se converte em potência material no processo de produção Tal explicitação deve envolver o domínio não apenas teórico mas também prático sobre o modo como o saber se articula com o processo produtivo Um exemplo de como a atividade prática manual pode contribuir para explicitar a relação entre ciência e produção é a transformação da madeira e do metal pelo trabalho humano Cf PISTRAK p 5556 O trabalho com a madeira e o metal tem imenso valor educativo pois envolve não apenas a produção da maioria dos objetos que compõem o processo produtivo moderno mas também a produção de instrumentos com os quais esses objetos são produzidos No trabalho prático com madeira e metal aplicando os fundamentos de diversificadas técnicas de produção podese compreender como a ciência é aplicada ao processo produtivo podese perceber como as leis da física e da química operam para vencer a resistência dos materiais e gerar novos produtos Fazse assim a articulação da prática com o conhecimento teórico 80 O ensino médio envolverá pois o recurso às oficinas nas quais os alunos manipulam os processos práticos básicos da produção mas não se trata de reproduzir na escola a especialização que ocorre no processo produtivo O horizonte que deve nortear a organização do ensino médio é o de propiciar aos alunos o domínio dos fundamentos das técnicas diversificadas utilizadas na produção e não o mero adestramento em técnicas produtivas Não a formação de técnicos especializados mas de politécnicos Politecnia significa aqui especialização como domínio dos fundamentos científicos das diferentes técnicas utilizadas na produção moderna Nessa perspectiva a educação de nível médio tratará de se concentrar nas modalidades fundamentais que dão base à multiplicidade de processos e técnicas de produção existentes Esta é uma concepção radicalmente diferente da que propõe um ensino médio profissionalizante caso em que a profissionalização é entendida como um adestramento em uma determinada habilidade sem o conhecimento dos fundamentos dessa habilidade e menos ainda da articulação dessa habilidade com o conjunto do processo produtivo A concepção politécnica implica a progressiva generalização do ensino médio como formação necessária para todos independentemente do tipo de ocupação que cada um venha a exercer na sociedade Sobre a base da relação explícita entre trabalho e educação se desenvolve portanto uma escola média de formação geral Nesse sentido tratase de uma escola de tipo desinteressado como propugnava Gramsci 1975 p 486487 na edição brasileira 1968 p 123 125 É assim que ele entendia a escola ativa e não na forma como essa expressão aparecia no movimento da Escola Nova isto é a escola única diferenciada preconizada pela burguesia E para ele o coroamento dessa escola ativa era a escola criativa entendida como o momento em que os educandos atingiam a autonomia Realizavase dessa forma o sentido 81 gramsciano da escola mediante a qual os educandos passariam da anomia à autonomia pela mediação da heteronomia Completase assim a organização curricular da Educação Básica que desde a Educação Infantil até o Ensino Médio tem o caráter de uma educação geral comum e universal destinada portanto a toda a população Da Escola Média passarseá à Educação Superior na qual além do Ensino Superior destinado a formar profissionais de nível universitário a imensa gama de profissionais liberais e de cientistas e tecnólogos de diferentes matizes formulase a exigência da organização da cultura superior com o objetivo de possibilitar a toda a população a difusão e discussão dos grandes problemas que afetam o homem contemporâneo 9 Conclusão Em suma na definição da Base Nacional Comum Curricular devese considerar com toda a atenção e cuidado o problema do conteúdo da educação a ser desenvolvido no âmbito de todo o sistema de ensino Está em causa aqui a questão do trabalho pedagógico em consonância com o terceiro sentido do conceito de trabalho como princípio educativo Conforme os documentos legais a começar pela Constituição Federal e LDB a educação tem por finalidade o pleno desenvolvimento da pessoa o preparo para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho Levandose em conta que esses objetivos se referem indistintamente a todos os membros da sociedade brasileira considerados individualmente podemos interpretar com Gramsci 1975 vol III p 1547 que o objetivo da educação é conduzir cada indivíduo até a condição de ser capaz de dirigir e controlar quem dirige Fica claro que tal objetivo não poderá ser atingido com currículos que pretendam conferir competências para a realização das tarefas de certo modo mecânicas e 82 corriqueiras demandadas pela estrutura ocupacional concentrandose na questão da qualificação profissional e secundarizando o pleno desenvolvimento da pessoa e o preparo para o exercício da cidadania tal como se evidencia na proposta divulgada pelo MEC sobre a base nacional comum curricular Diferentemente dessa tendência dominante a organização curricular dos vários níveis e modalidades de ensino no âmbito do sistema nacional de educação deverá tomar como referência a forma de organização da sociedade atual assegurando sua plena compreensão por parte de todos os educandos Isso significa que se deve promover a abertura da caixa preta da chamada sociedade do conhecimento A educação a ser ministrada deverá garantir a todos o acesso aos fundamentos e pressupostos que tornaram possível a revolução microeletrônica que está na base tanto dos mecanismos de automação que operam no processo produtivo como das tecnologias da informação que se movem nos ambientes virtuais da comunicação eletrônica Assim além de tornar acessíveis os computadores pela disseminação dos aparelhos e em vez de lançar a educação na esfera dos cursos a distância de forma açodada é preciso garantir não apenas o domínio técnicooperativo dessas tecnologias mas a compreensão dos princípios científicos e dos processos que as tornaram possíveis Se continuarmos pelos caminhos que estamos trilhando não parece exagerado considerar que estamos de fato realizando aquelas profecias dos textos de ficção científica que previram uma humanidade submetida ao jugo de suas próprias criaturas sendo dirigidas por máquinas engrenadas em processos automáticos Pois não deixa de ser verdade que cada vez mais nos relacionamos com as máquinas eletrônicas especificamente com os computadores considerandoos fetichisticamente como pessoas a cujos desígnios nós nos sujeitamos e sem conseguirmos compreendêlos atribuímos a eles determinadas características psicológicas traduzidas em expressões que os técnicos utilizam para nos explicar seu comportamento tais como ele o computador não reagiu bem ao seu 83 procedimento ele é assim mesmo às vezes aceita o que você propõe e às vezes não aceita etc Nas condições atuais não é mais suficiente alertar contra os perigos da racionalidade técnica advogandose uma formação centrada numa cultura de base humanística voltada para a filosofia literatura artes e ciências humanas à revelia do desenvolvimento das chamadas ciências duras É preciso operar um giro da formação na direção de uma cultura de base científica que articule de forma unificada num complexo compreensivo as ciências humanonaturais que estão modificando profundamente as formas de vida passandoas pelo crivo da reflexão filosófica e da expressão artística e literária É este o desafio que o sistema nacional de educação terá de enfrentar Somente assim será possível além de qualificar para o trabalho promover igualmente o pleno desenvolvimento da pessoa e o preparo para o exercício da cidadania Espero enfim ter indicado nos limites de um artigo que não pode ultrapassar 60000 caracteres a fundamentação teórica e o delineamento dos pontos que devem nortear a elaboração da base nacional comum curricular que permita assegurar a toda a população brasileira uma educação com o mesmo e elevado padrão de qualidade REFERÊNCIAS GRAMSCI Antonio 1968 Os intelectuais e a organização da cultura Rio de Janeiro Civilização Brasileira GRAMSCI Antonio 1975 Quaderni del carcere Torino Einaudi MALSON Lucien 1967 As crianças selvagens mito e realidade Porto Livraria Civilização PISTRAK Moisei 1981 Fundamentos da escola do trabalho São Paulo Brasiliense RAVITCH Diane 2011 Vida e morte do grande sistema escolar americano como os testes padronizados e o modelo de mercado ameaçam a educação Porto Alegre Sulina 84 SAVIANI Dermeval 2007 Educação do senso comum à consciência filosófica 17ª ed Campinas Autores Associados SAVIANI Dermeval 2012a Escola e Democracia 42ª ed Campinas Autores Associados SAVIANI Dermeval 2012b O Inep o diagnóstico da educação brasileira e a Rbep Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos Brasília v 93 n 234 número especial p 291322 maioago SAVIANI Dermeval 2013 Pedagogia HistóricoCrítica primeiras aproximações 11ª ed Campinas Autores Associados SAVIANI Dermeval 2014 Sistema Nacional de Educação e Plano Nacional de Educação Campinas Autores Associados TARDIF Maurice LESSARD Claude e LAHAYE Louise 1991 Os professores face ao saber esboço de uma problemática do saber docente Teoria e Educação n 4 p 215233