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História Social da Criança e da Família O GEN Grupo Editorial Nacional reún História Social da Criança e da Família SEGUNDA EDIÇÃO Philippe Ariès Philippe Ariès O autor e a editora empenharamse para citar adequadamente e dar o devido crédito a todos os detentores dos direitos autorais de qualquer material utilizado neste livro dispondose a possíveis acertos caso inadvertidamente a identificação de algum deles tenha sido omitida Não é responsabilidade da editora nem do autor a ocorrência de eventuais perdas ou danos a pessoas ou bens que tenham origem no uso desta publicação Apesar dos melhores esforços do autor da tradutora do editor e dos revisores é inevitável que surjam erros no texto Assim são bemvindas as comunicações de usuários sobre correções ou sugestões referentes ao conteúdo ou ao nível pedagógico que auxiliem o aprimoramento de edições futuras Os comentários dos leitores podem ser encaminhados à LTC Livros Técnicos e Científicos Editora pelo email ltcgrupogencombr Título original LEnfant et la Vie familiale sous lAncien Régime Traduzido da terceira edição publicada em 1975 pela Editions du Seuil de Paris França na série Points Histoire dirigida por Michel Winock Copyright 1973 by Editions du Seuil Edição para o Brasil Não pode circular em outros países Primeira edição brasileira 1978 Direitos exclusivos para a língua portuguesa Copyright 1981 by LTC Livros Técnicos e Científicos Editora Ltda Uma editora integrante do GEN Grupo Editorial Nacional Reservados todos os direitos É proibida a duplicação ou reprodução deste volume no todo ou em parte sob quaisquer formas ou por quaisquer meios eletrônico mecânico gravação fotocópia distribuição na internet ou outros sem permissão expressa da editora Travessa do Ouvidor 11 Rio de Janeiro RJ CEP 20040040 Tels 2135430770 1150800770 Fax 2135430896 ltcgrupogencombr 5 wwwltceditoracombr Produção Digital Geethik CIPBRASIL CATALOGAÇÃONAFONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS RJ A746h 2ed Ariès Philippe 19141984 História social da criança e da família Philippe Ariès tradução de Dora Flaksman 2ed Reimpr Rio de Janeiro LTC 2014 Tradução de Lenfant et la vie familiale sous 1Ancien Régime 3ed ISBN 9788521626619 1 Crianças França 2 Família França I Título 053893 CDD 39213 CDU 3923 6 A meus pais A meus sogros 7 NOTA A edição brasileira de História Social da Criança e da Família foi traduzida da edição de LEnfant et la vie familiale sous lAncien Régime das Editions du Seuil Collection Points Série Histoire 1973 Esta edição francesa é uma versão abreviada do texto original de Philippe Ariès publicado em 1960 pelas Editions Plons e reeditado integralmente pelas Editions du Seuil na coleção Univers historique em 1973 acrescido de um prefácio em que o autor examinava a historiografia de seu tema Na atual versão portanto as partes I e III foram integralmente reproduzidas Da parte II porém foi conservado apenas o essencial ou seja as conclusões completas de sete capítulos O capítulo intitulado Do Externato ao Internato foi totalmente suprimido 8 1 2 3 4 5 1 2 3 4 5 6 7 Prefácio 1 O Sentimento da Infância As Idades da Vida A Descoberta da Infância O Traje das Crianças Pequena Contribuição à História dos Jogos e das Brincadeiras Do Despudor à Inocência Conclusão Os Dois Sentimentos da Infância 2 A Vida Escolástica Jovens e Velhos Escolares da Idade Média Uma Instituição Nova O Colégio Origens das Classes Escolares As Idades dos Alunos Os Progressos da Disciplina As Pequenas Escolas A Rudeza da Infância Escolar Conclusão A Escola e a Duração da Infância 3 A Família 9 1 2 As Imagens da Família Da Família Medieval à Família Moderna Conclusão Família e Sociabilidade Conclusão 10 Costumase dizer que a árvore impede a visão da floresta mas o tempo maravilhoso da pesquisa é sempre aquele em que o historiador mal começa a imaginar a visão de conjunto enquanto a bruma que encobre os horizontes longínquos ainda não se dissipou totalmente enquanto ele ainda não tomou muita distância do detalhe dos documentos brutos e estes ainda conservam todo o seu frescor Seu maior mérito talvez seja menos defender uma tese do que comunicar aos leitores a alegria de sua descoberta tornálos sensíveis como ele próprio o foi às cores e aos odores das coisas desconhecidas Mas ele também tem a ambição de organizar todos esses detalhes concretos numa estrutura abstrata e é sempre difícil para ele felizmente desprenderse do emaranhado das impressões que o solicitaram em sua busca aventurosa é sempre difícil conformálas imediatamente à álgebra no entanto necessária de uma teoria Anos depois no momento da reedição o tempo passou levando consigo a emoção desse primeiro contato mas trazendo por outro lado uma compensação podese ver melhor a floresta Hoje após os debates contemporâneos sobre a criança a família a juventude e após o uso que foi feito de meu livro vejo melhor ou seja de uma forma mais nítida e mais simplificada as teses que me foram inspiradas por um longo diálogo com as coisas Procurarei resumilas aqui reduzindoas a duas A primeira referese inicialmente à nossa velha sociedade tradicional Afirmei que essa sociedade via mal a criança e pior ainda o adolescente A duração da infância era reduzida a seu período mais frágil enquanto o filhote do homem ainda não conseguia bastarse a criança então mal adquiria algum desembaraço físico era logo misturada aos adultos e partilhava de seus trabalhos e jogos De criancinha pequena ela se transformava imediatamente em homem jovem sem passar pelas etapas da juventude que talvez fossem praticadas antes da Idade Média e que se tornaram aspectos essenciais das sociedades evoluídas de hoje A transmissão dos valores e dos conhecimentos e de modo mais geral a 11 socialização da criança não eram portanto nem asseguradas nem controladas pela família A criança se afastava logo de seus pais e podese dizer que durante séculos a educação foi garantida pela aprendizagem graças à convivência da criança ou do jovem com os adultos A criança aprendia as coisas que devia saber ajudando os adultos a fazêlas A passagem da criança pela família e pela sociedade era muito breve e muito insignificante para que tivesse tempo ou razão de forçar a memória e tocar a sensibilidade Contudo um sentimento superficial da criança a que chamei paparicação era reservado à criancinha em seus primeiros anos de vida enquanto ela ainda era uma coisinha engraçadinha As pessoas se divertiam com a criança pequena como com um animalzinho um macaquinho impudico Se ela morresse então como muitas vezes acontecia alguns podiam ficar desolados mas a regra geral era não fazer muito caso pois uma outra criança logo a substituiria A criança não chegava a sair de uma espécie de anonimato Quando ela conseguia superar os primeiros perigos e sobreviver ao tempo da paparicação era comum que passasse a viver em outra casa que não a de sua família Essa família se compunha do casal e das crianças que ficavam em casa não acredito que a família extensa composta de várias gerações ou vários grupos colaterais jamais tenha existido a não ser na imaginação dos moralistas como Alberti na Florença do século XV ou como os sociólogos tradicionalistas franceses do século XIX e exceto em certas épocas de insegurança quando a linhagem devia substituir o poder público enfraquecido e em certas condições econômicojurídicas como por exemplo nas regiões mediterrânicas e talvez nos lugares onde o direito de beneficiar exclusivamente um dos filhos favorecia a coabitação Essa família antiga tinha por missão sentida por todos a conservação dos bens a prática comum de um ofício a ajuda mútua quotidiana num mundo em que um homem e mais ainda uma mulher isolados não podiam sobreviver e ainda nos casos de crise a proteção da honra e das vidas Ela não tinha função afetiva Isso não quer dizer que o amor estivesse sempre ausente ao contrário ele é muitas vezes reconhecível em alguns casos desde o noivado mais geralmente depois do casamento criado e alimentado pela vida em comum como na família do Duque de SaintSimon Mas e é isso o que importa o sentimento entre os cônjuges entre os pais e os filhos não era necessário à existência nem ao equilíbrio da família se ele existisse tanto melhor As trocas afetivas e as comunicações sociais eram realizadas portanto fora da família num meio muito denso e quente composto de vizinhos amigos amos 12 e criados crianças e velhos mulheres e homens em que a inclinação se podia manifestar mais livremente As famílias conjugais se diluíam nesse meio Os historiadores franceses chamariam hoje de sociabilidade essa propensão das comunidades tradicionais aos encontros às visitas às festas É assim que vejo nossas velhas sociedades diferentes ao mesmo tempo das que hoje nos descrevem os etnólogos e das nossas sociedades industriais Minha primeira tese é uma tentativa de interpretação das sociedades tradicionais A segunda pretende mostrar o novo lugar assumido pela criança e a família em nossas sociedades industriais A partir de um certo período o problema obcecante da origem ao qual voltarei mais tarde e em todo o caso de uma forma definitiva e imperativa a partir do fim do século XVII uma mudança considerável alterou o estado de coisas que acabo de analisar Podemos compreendêla a partir de duas abordagens distintas A escola substituiu a aprendizagem como meio de educação Isso quer dizer que a criança deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente através do contato com eles A despeito das muitas reticências e retardamentos a criança foi separada dos adultos e mantida a distância numa espécie de quarentena antes de ser solta no mundo Essa quarentena foi a escola o colégio Começou então um longo processo de enclausuramento das crianças como dos loucos dos pobres e das prostitutas que se estenderia até nossos dias e ao qual se dá o nome de escolarização Essa separação e essa chamada à razão das crianças deve ser interpretada como uma das faces do grande movimento de moralização dos homens promovido pelos reformadores católicos ou protestantes ligados à Igreja às leis ou ao Estado Mas ela não teria sido realmente possível sem a cumplicidade sentimental das famílias e esta é a segunda abordagem do fenômeno que eu gostaria de sublinhar A família tornouse o lugar de uma afeição necessária entre os cônjuges e entre pais e filhos algo que ela não era antes Essa afeição se exprimiu sobretudo através da importância que se passou a atribuir à educação Não se tratava mais apenas de estabelecer os filhos em função dos bens e da honra Tratavase de um sentimento inteiramente novo os pais se interessavam pelos estudos de seus filhos e os acompanhavam com uma solicitude habitual nos séculos XIX e XX mas outrora desconhecida Jean Racine escrevia a seu filho Louis a respeito de seus professores como o faria um pai de hoje ou de ontem um ontem muito próximo A família começou então a se organizar em torno da criança e a lhe dar uma tal importância que a criança saiu de seu antigo anonimato que se tornou 13 impossível perdêla ou substituíla sem uma enorme dor que ela não pôde mais ser reproduzida muitas vezes e que se tornou necessário limitar seu número para melhor cuidar dela Portanto não surpreende que essa revolução escolar e sentimental tenha sido seguida com o passar do tempo de um malthusianismo demográfico de uma redução voluntária da natalidade observável no século XVIII Tudo isso está ligado talvez até demais para os olhos desconfiados de um P Veyne A consequência disso tudo que ultrapassa o período estudado neste livro mas que desenvolvi em outro estudo foi a polarização da vida social no século XIX em torno da família e da profissão e o desaparecimento salvo raras exceções como a Provença de M Agulhon e M Vovelle da antiga sociabilidade Um livro tem sua vida própria e rapidamente escapa das mãos de seu autor para pertencer a um público nem sempre conforme ao que o autor previra O que aconteceu foi como se as duas teses que acabo de expor não se dirigissem exatamente ao mesmo público A segunda que parecia voltarse para a explicação imediata do presente foi imediatamente explorada por psicólogos e sociólogos especialmente nos EUA onde as ciências humanas se preocuparam mais cedo do que em qualquer outro lugar com as crises da juventude Essas crises tornavam evidente a dificuldade quando não a repugnância dos jovens em passar para o estado adulto Ora minhas análises sugeriam que essa situação podia ser a consequência do isolamento prolongado dos jovens na família e na escola Elas mostravam também que o sentimento da família e a escolarização intensa da juventude eram um mesmo fenômeno um fenômeno recente relativamente datável e que antes a família se distinguia mal dentro de um espaço social muito mais denso e quente Os sociólogos os psicólogos os próprios pediatras orientaram meu livro nesse sentido arrastandome em sua trilha nos EUA os jornalistas me chamavam de sociólogo francês e um dia eu me tornei segundo um grande jornal parisiense um sociólogo norteamericano Na época essa acolhida teve para mim um gosto paradoxal pois fora em nome da psicologia moderna que na França me haviam sido feitas algumas críticas negligência das curiosidades da psicologia moderna disse A Besançon concessões excessivas ao fixismo da psicologia tradicional afirmou J L Flandrin1 e é verdade que sempre me foi difícil evitar as velhas palavras equívocas e hoje tão fora de moda a ponto de se tornarem ridículas mas sempre tão vivas dentro da cultura moralista e humanista que foi a minha 14 Essas críticas antigas sobre o bom uso da psicologia merecem uma reflexão e eis o que eu gostaria de dizer hoje Uma pessoa pode tentar elaborar uma história do comportamento ou seja uma história psicológica sem ser ela própria psicóloga ou psicanalista mantendose a distância das teorias do vocabulário e mesmo dos métodos da psicologia moderna e ainda assim interessar esses mesmos psicólogos dentro de sua área Se um sujeito nasce historiador ele se torna psicólogo à sua moda que não é certamente a mesma dos psicólogos modernos mas se junta a ela e a completa Nesse momento o historiador e o psicólogo se encontram nem sempre ao nível dos métodos que podem ser diferentes mas ao nível do assunto da maneira de colocar a questão ou como se diz hoje da problemática A abordagem inversa que vai da psicologia à história também é possível como o prova o êxito de A Besançon Esse itinerário contudo apresenta alguns perigos dos quais M Soriano nem sempre se esquivou apesar de tantas descobertas saborosas e comparações felizes Na crítica que me dirigiu A Besançon deixava claro que a criança não é apenas o traje as brincadeiras a escola nem mesmo o sentimento da infância ou seja modalidades históricas empiricamente perceptíveis ela é uma pessoa um processo uma história que os psicólogos tentam reconstituir ou seja um termo de comparação N Z Davis2 um excelente historiador do século XVI procurou esse termo de comparação no modelo construído por psicossociólogos com base em sua experiência do mundo contemporâneo Sem dúvida a tentação dos psicólogos de fugir para fora de seu mundo a fim de comprovar suas teorias é grande e certamente enriquecedora quer ela os conduza para nossas sociedades tradicionais para o lado de Lutero quer os leve até os últimos selvagens Se o método deu certo no caso dos etnólogos as sociedades tradicionais me parecem mais recalcitrantes Esse tipo de abordagem consegue traduzir para a linguagem moderna com excessiva facilidade as relações de Charles Perrault e seu filho como as relações de um pai exagerado e um filho mimado o que nada acrescenta à compreensão de nosso mundo de hoje pois não há dados novos nem ao entendimento do mundo antigo pois há um anacronismo e o anacronismo falseia a comparação Contudo a fobia do anacronismo o defeito dos historiadores não significa nem uma recusa à comparação nem uma indiferença pelo mundo contemporâneo bem sabemos que percebemos no passado primeiro as diferenças e só depois as semelhanças com o tempo em que vivemos Se minha segunda tese encontrou uma acolhida quase unânime a primeira a 15 ausência do sentimento da infância na Idade Média foi recebida com mais reserva pelos historiadores Entretanto hoje podese dizer que suas grandes linhas foram aceitas Os historiadoresdemógrafos reconheceram a indiferença que persistiu até muito tarde com relação às crianças e os historiadores das mentalidades perceberam a raridade das alusões às crianças e às suas mortes nos diários de família como o do catrabucheiro de Lille editado por A Lottin Ficaram impressionados como J Bouchard com a ausência de função socializadora da família3 Os trabalhos de M Agulhon sublinharam a importância da sociabilidade nas comunidades rurais e urbanas do Ancien Régime Mas as críticas são mais instrutivas do que as aprovações ou as concordâncias Falarei sobre duas delas uma de J L Flandrin e a outra de N Z Davis J L Flandrin4 criticou uma preocupação muito grande obsessiva de minha parte com o problema da origem que me leva a denunciar uma inovação absoluta onde haveria antes uma mudança de natureza A crítica é justa Este é um defeito que dificilmente pode ser evitado quando se procede por via regressiva como sempre faço em minhas pesquisas Ele introduz de uma forma demasiado ingênua o sentido da mudança que na realidade não é uma inovação absoluta e sim na maioria dos casos uma recodificação O exemplo dado por J L Flandrin é bom se a arte medieval representava a criança como um homem em escala reduzida isso se prendia diz ele não à existência mas à natureza do sentimento da infância A criança era portanto diferente do homem mas apenas no tamanho e na força enquanto as outras características permaneciam iguais Seria então interessante comparar a criança ao anão que ocupa um lugar importante na tipologia medieval A criança é um anão mas um anão seguro de que não permanecerá anão salvo em caso de feitiçaria O anão não seria em compensação uma criança condenada a não crescer e mesmo a se tornar imediatamente um velho encarquilhado A outra crítica é a de N Z Davis num notável estudo intitulado The Reasons of Misrule Youth Groups and Charivaris in Sixteenth Century France5 Seu argumento é mais ou menos o seguinte como pude eu sustentar que a sociedade tradicional confundia as crianças e os jovens com os adultos ignorando o conceito de juventude se a juventude desempenhava nas comunidades rurais e também urbanas um papel permanente de organização das festas e dos jogos de controle dos casamentos e das relações sexuais sancionados pelos charivaris M Agulhon por sua vez em seu belo livro sobre 16 os penitentes e os francomaçons consagrou um capítulo às sociedades da juventude que interessam cada vez mais aos historiadores de hoje na medida em que estes se sentem atraídos pelas culturas populares O problema colocado por N Z Davis não me escapou No presente livro confesso que preguiçosamente o coloquei de lado reduzindo à condição de vestígios hábitos folclóricos cuja extensão e importância foram demonstradas por N Z Davis M Agulhon e outros Na verdade eu não devia estar com a consciência tranquila pois voltei a este problema nas primeiras páginas de uma História da Educação na França6 Reconheci em épocas anteriores à Idade Média nas áreas de civilização rural e oral a existência de uma organização das comunidades em classes de idade com ritos de passagem segundo o modelo dos etnólogos Nessas sociedades cada idade teria sua função e a educação seria então transmitida pela iniciação e no interior da classe de idade pela participação nos serviços por ela assegurados Gostaria que me fosse permitido abrir um parêntese e mencionar a opinião de um jovem amigo arqueólogo Visitávamos as escavações de Malia em Creta e falávamos sem muita sequência sobre Janroy Homero Duby sobre as estruturas formadas por classes de idade dos etnólogos e seu reaparecimento na Alta Idade Média quando ele me disse mais ou menos o seguinte em nossas antigas civilizações jamais percebemos essas estruturas etnográficas em estado de imobilidade em sua plena maturidade e sim sempre em estado de sobrevivência quer seja na Grécia homérica ou na Idade Média das canções de gesta Ele tinha razão Não podemos negar nossa tendência a projetar com demasiada exatidão em nossas estruturas tradicionais as estruturas hoje percebidas pelos etnólogos entre os selvagens contemporâneos Mas fechemos o parêntese e aceitemos a hipótese de uma sociedadeorigem bem no início da Alta Idade Média que apresentaria as características etnográficas ou folclóricas comumente admitidas Uma grande mudança interveio então nessa sociedade talvez na época do feudalismo e do reforço dos antigos domínios Essa mudança afetou a educação ou seja a transmissão do saber e dos valores Daí em diante ou seja a partir da Idade Média a educação passou a ser assegurada pela aprendizagem Ora a prática da aprendizagem é incompatível com o sistema de classes de idade ou pelo menos tende a destruílo ao se generalizar Considero fundamental insistir na importância que se deve atribuir à aprendizagem Ela força as crianças a viverem no meio dos adultos que assim lhes comunicam o savoirfaire e o savoir vivre A mistura de idades decorrente da aprendizagem pareceme ter sido um 17 dos traços dominantes de nossa sociedade de meados da Idade Média até o século XVIII Nessas condições as classificações tradicionais pela idade não podiam deixar de se embaçar e perder sua razão de ser Ora é certo porém que essas classificações persistiram no que se refere à vigilância sexual e à organização das festas e conhecemos a importância das festas na vida quotidiana de nossas antigas sociedades Como conciliar a persistência daquilo que certamente era muito mais do que um vestígio com a exportação precoce das crianças para o meio dos adultos Não nos estaríamos deixando enganar apesar de todos os argumentos contrários de N Z Davis pela ambiguidade da palavra juventude Mesmo o latim ainda tão próximo não facilitava a discriminação Nero tinha 25 anos quando Tácito disse a seu respeito certe finitam Neronis pueritian et robur juventae adesse Robur juventae era a força do homem jovem e não a adolescência Qual era a idade dos chefes das confrarias de jovens e de seus companheiros A idade de Nero na época da morte de Burro a idade de Condé em Rocroy a idade da guerra ou da simulação a idade da bravata De fato essas sociedades da juventude eram sociedades de solteiros em épocas em que nas classes populares as pessoas geralmente se casavam tarde7 A oposição portanto era entre o casado e o não casado entre aquele que tinha uma casa própria e aquele que não tinha que morava na casa de outrem entre o menos instável e o menos estável Portanto é preciso sem dúvida admitir a existência de sociedades de jovens mas no sentido de celibatários A juventude dos celibatários do Ancien Régime não implicava nem as características que tanto na Antiguidade como nas sociedades etnográficas distinguiam o efebo do homem maduro Aristogíton de Harmódio8 nem as que hoje opõem os adolescentes aos adultos Se tivesse de escrever este livro hoje eu me precaveria melhor contra a tentação da origem absoluta do ponto zero mas as grandes linhas continuariam as mesmas Levaria em conta apenas os dados novos e insistiria mais na Idade Média e em seu outono tão rico Em primeiro lugar eu chamaria a atenção para um fenômeno muito importante e que começa a ser mais conhecido a persistência até o fim do século XVII do infanticídio tolerado Não se tratava de uma prática aceita como a exposição em Roma O infanticídio era um crime severamente punido No entanto era praticado em segredo correntemente talvez camuflado sob a forma 18 de um acidente as crianças morriam asfixiadas naturalmente na cama dos pais onde dormiam Não se fazia nada para conserválas ou para salválas J L Flandrin analisou essa prática oculta numa conferência da Société du XVIIe siècle ciclo de 19721973 a sair na Revue du XVII siècle Ele mostrou como a diminuição da mortalidade infantil observada no século XVIII não pode ser explicada por questões médicas e higiênicas simplesmente as pessoas pararam de deixar morrer ou de ajudar a morrer as crianças que não queriam conservar Na mesma série de conferências da Société du XVIIe siècle o Pe Gy confirmou a interpretação de J L Flandrin citando trechos dos Rituais pós tridentinos em que os bispos proibiam com uma veemência que dá o que pensar que as crianças fossem postas para dormir na cama dos pais onde muitas vezes morriam asfixiadas O fato de ajudar a natureza a fazer desaparecer criaturas tão pouco dotadas de um ser suficiente não era confessado mas tampouco era considerado com vergonha Fazia parte das coisas moralmente neutras condenadas pela ética da Igreja e do Estado mas praticadas em segredo numa semiconsciência no limite da vontade do esquecimento e da falta de jeito A vida da criança era então considerada com a mesma ambiguidade com que hoje se considera a do feto com a diferença de que o infanticídio era abafado no silêncio enquanto o aborto é reivindicado em voz alta mas esta é toda a diferença entre uma civilização do segredo e uma civilização da exibição Chegaria um tempo no século XVII em que a sagefemme a parteira essa feiticeira branca recuperada pelos Poderes públicos teria a missão de proteger a criança e em que os pais mais bem informados pelos reformadores tornados mais sensíveis à morte se tornariam mais vigilantes e desejariam conservar seus filhos a qualquer preço É exatamente o inverso da evolução em direção à liberdade do aborto que se desenrola sob a nossa vista No século XVII de um infanticídio secretamente admitido passouse a um respeito cada vez mais exigente pela vida da criança Se a vida física da criança contava ainda tão pouco seria de esperar numa sociedade unanimemente cristã um maior cuidado com sua vida futura após a morte Eisnos portanto levados à apaixonante história do batismo da idade do batismo do modo de administração que sinto não ter abordado em meu livro Espero que esse assunto tente algum jovem pesquisador Ele permitia perceber a atitude diante da vida e da infância em épocas remotas pobres de documentos não para confirmar ou modificar a data do início de um ciclo mas para mostrar 19 como dentro de um polimorfismo contínuo as mentalidades antigas se transformaram aos solavancos através de uma série de pequenas mudanças A história do batismo me parece ser um bom exemplo desse tipo de evolução em espiral Proporei à reflexão dos pesquisadores a seguinte hipótese Numa sociedade unanimemente cristã como as sociedades medievais todo homem e toda mulher deviam ser batizados e de fato o eram mas quando e como Em meados da Idade Média temse a impressão a ser confirmada de que os adultos nem sempre manifestavam muito empenho em batizar logo as crianças e esqueciamse de fazêlo nos casos graves Numa sociedade unanimemente cristã eles se comportavam quase da mesma forma como os indiferentes de nossas sociedades leigas Imagino que as coisas se passassem da seguinte maneira os batismos eram ministrados em datas fixas duas vezes por ano na véspera da Páscoa e na véspera de Pentecostes Não havia ainda registros de catolicidade nem certidões nada forçava os indivíduos além de sua própria consciência a pressão da opinião pública e o medo de uma autoridade longínqua negligente e desarmada Batizavamse então as crianças quando bem se entendia e atrasos de vários anos podiam ser frequentes Os batistérios dos séculos XI e XII são aliás grandes cubas semelhantes a banheiras onde a criança que não devia mais ser muito pequena ainda era mergulhada cubas profundas em que os pintores de vitrais mergulhavam Clóvis para batizálo ou S João para torturálo pequenas banheiras retangulares em forma de sarcófago Se a criança morresse no intervalo dos batismos coletivos ninguém se comovia além da medida É certo que os pastores medievais se inquietaram com esse estado de espírito e multiplicaram os locais de culto a fim de permitir aos padres chegar mais depressa à cabeceira da mãe que dava à luz Uma pressão cada vez maior sobretudo da parte dos mendicantes se exerceu sobre as famílias para forçálas a ministrar o batismo o mais cedo possível após o nascimento Houve então uma renúncia aos batismos coletivos que impunham uma espera muito longa e a regra seguida pelo uso passou a ser o batismo da criancinha pequena A imersão foi abandonada em favor do rito atual de aspersão Teria havido um rito intermediário que combinava a imersão e a aspersão Enfim as parteiras foram incumbidas de batizar as crianças que não nasciam a termo usque in utero Mais tarde a partir do século XVI os registros de catolicidade permitiram o controle por parte dos visitantes diocesanos por exemplo da administração do 20 batismo controle este que não existia antes Mas nas sensibilidades a partida já devia estar ganha provavelmente desde o século XIV O século XIV me parece ter sido o momento mais forte dessa história Foi então que as crianças se tornaram mais numerosas no novo folclore dos Miracles NotreDame de que me utilizei do capítulo A Descoberta da Infância Nessa área do miraculoso é preciso fazer uma menção especial a um tipo de milagre que creio eu deve ter aparecido então ou um pouco mais tarde a ressurreição das crianças mortas sem batismo pelo tempo exato de receber esse sacramento J Toussaert9 conta um milagre desse gênero ocorrido em Poperinghe em 11 de março de 1479 Mas tratavase de um milagre original inesperado extraordinário como ainda não se conheciam muitos Nos séculos XVI e XVII esses milagres haviamse tornado banais e existiam santuários especializados nesse gênero de prodígios que não surpreendiam mais ninguém M Bernos analisou esse fenômeno com sutileza a propósito de um milagre ocorrido na igreja da Annonciade de AixenProvence no primeiro domingo da Quaresma de 1558 O milagre não era mais a ressurreição fenômeno comum nessa igreja onde era hábito colocar os pequenos cadáveres sobre o altar e esperar pelos sinais frequentes de uma reanimação para batizálos O que surpreendia e perturbava era o acendimento sobrenatural de uma vela durante a suspensão da morte este era o fato realmente extraordinário e não a reanimação10 Em 1479 o fato de as pessoas estarem acostumadas ainda não havia banido o assombro certamente ainda não se estava longe da origem da devoção Portanto foi como se as pessoas tivessem começado a descobrir a alma das crianças antes de seu corpo sob a pressão das tendências reformadoras da Igreja Mas quando a vontade dos litterati foi aceita ela foi imediatamente folclorizada e a criança começou sua carreira popular como heroína de um novo folclore religioso Outro fato cuja importância não foi suficientemente sublinhada em meu livro ainda nos deterá um pouco mais nesse século XIV Tratase dos túmulos É verdade que eu disse algumas palavras a esse respeito no capítulo A Descoberta da Infância Mas algumas pesquisas recentes sobre a atitude diante da morte permitemme ser hoje mais preciso Entre as inúmeras inscrições funerárias dos quatro primeiros séculos de nossa era que em toda a parte solicitam o visitante de Roma muitas falam de crianças e mesmo de criancinhas de poucos meses de idade fulano e fulana pais consternados erigiram este monumento à memória de seu filho bemamado 21 morto aos poucos meses ou anos de vida tantos anos tantos meses e tantos dias Em Roma na Gália e na Renânia numerosos túmulos esculpidos reuniam no mesmo monumento as imagens do casal e seus filhos Em seguida a partir dos séculos VVI aproximadamente a família e a criança desapareceram das representações e das inscrições funerárias Quando o uso do retrato retornou nos séculos XIXII os túmulos passaram a ser individuais com o marido e a mulher separados e é claro não havia túmulos esculpidos de crianças Em Fontevrault os túmulos dos dois reis Plantagenetas estão bem separados O hábito de reunir os dois e às vezes os três cônjuges o marido e suas duas mulheres sucessivas tornouse mais frequente no século XIV época em que apareceram também embora ainda raros os túmulos com figuras de criancinhas Essa coincidência não foi fortuita No capítulo A Descoberta da Infância citei as esculturas de 1378 dos pequenos príncipes de Amiens Mas nesse caso tratavase de crianças reais Na igreja de Taverny podemos ver duas lajes murais com figuras e inscrições que são túmulos de crianças da família Montmorency A mais bem conservada é a de Charles de Montmorency falecido em 1369 A criança foi representada enrolada em seus cueiros o que não era frequente na época Eis a inscrição bastante pretensiosa Hic Manet inclusus adolescens et puerulusde Montmorenci Karolus tomba jacet istaanno mille C ter paradisii sensiit iterac sexagesimo novem simul addas in illogaudeat in christo tempore perpetuo Charles tinha um meioirmão Jean morto em 1352 Seu túmulo subsiste mas os relevos de alabastro demasiado frágeis desapareceram de modo que não se sabe como a criança foi representada talvez também enrolada em seus cueiros Seu epitáfio em francês é mais simples Aqui jaz Jehan de Montmorency outrora filho do nobre e poderoso Charles senhor de Montmorency morto no ano da graça de mil trezentos e cinquenta e dois no dia 29 de julho Nos dois casos em que há uma representação esculpida das crianças o epitáfio diz o nome do pai e a data da morte mas não fornece nem o nome da mãe nem a idade da criança e sabemos que no século XIV a idade do defunto geralmente era especificada No século XV os túmulos de crianças e pais reunidos ou de crianças sozinhas tornaramse mais frequentes e no século XVI passaram a ser comuns como o demonstrei baseado no repertório de Gaignières Mas esses túmulos esculpidos ou gravados eram reservados a famílias de uma certa importância social embora as lajes planas se tivessem tornado objeto de uma fabricação artesanal em série Mais frequentes eram os pequenos quadros murais reduzidos a uma inscrição às vezes com uma pequena ilustração religiosa Ora alguns desses 22 epitáfios simples referiamse a crianças e seu estilo se inspirava diretamente na epigrafia latina antiga Retomarase portanto o tema da saudade dos pais da criança que partira muito cedo Eis um desses epitáfios datado de 1471 da igreja de Sta Maria in Campitelli em Roma11 Petro Albertonio adolescentulocujus annos ingenium excedebat a criança notável por sua precocidade o pequeno prodígio Gregorius et Alteria parentesunico et dulcissimo particularmente chorado porque era filho único e isso em 1471 posuere qui vixit annos iv M IIIobitt MCDLXXI Voltemos ao tema da criança enrolada em seus cueiros Foi somente no século XVII que os artistas começaram a representar a criança real na nudez do putto Antes ela aparecia enrolada em cueiros ou vestida Sabemos por outro lado que desde a Idade Média a alma era representada sob a forma de uma criança nua Ora existem alguns casos raros e curiosos em que a alma aparece também enrolada em cueiros Em Roma na igreja de Sta Maria in Trastevere uma assunção da Virgem do início do século XV mostra a alma da Virgem sob a forma de uma criança enrolada em cueiros nos braços de Cristo No museu de Luxemburgo há um túmulo de 1590 em que uma criança de cueiros é levada para o céu por dois anjos Não é a imagem de uma criancinha morta A nota explicativa nos informa que o defunto é um homem de 19 anos e portanto a criança de cueiros representa sua alma Esse tipo de representação não é frequente mas conhecese ao menos um caso mais antigo e pode ser que houvesse uma tradição iconográfica nesse sentido O museu de Viena conserva um marfim bizantino do fim do século X em que a alma da Virgem também foi representada sob a forma de uma criança de cueiros Essa representação da alma bemaventurada sob a forma de uma criança na maioria dos casos idealizada e nua às vezes realista e enrolada em cueiros deve ser comparada ao que foi dito acima sobre o infanticídio e o batismo De fato para os espiritualistas medievais que estão na origem desse tipo de iconografia a alma do eleito possuía a mesma inocência invejável da criança batizada numa época em que entretanto na prática comum a criança era uma coisa divertida mas pouco importante É curioso constatar que a alma deixou de ser representada sob a forma de criança no século XVI quando a criança passou a ser representada por ela mesma e os retratos de crianças vivas e mortas se tornaram mais frequentes Um curioso monumento funerário conservado no museu arqueológico de 23 Senlis mostra como a situação se inverteu no fim do século XVII ele é consagrado à memória da mulher de Pierre Puget morta em Senlis em 1673 de uma cesariana A mulher aparece levada para o céu no meio de um monte de nuvens na pose da oração que é também a expressão da renúncia enquanto a criança que ela quis salvar aparece nua estendendolhe a palma do martírio com uma das mãos e com a outra agitando uma bandeirola com a inscrição Meruisti A criança aqui saiu do anonimato Haviase tornado muito personalizada para representar um modo de ser do além e por outro lado a alma estava muito ligada às características originais do indivíduo para ser evocada sob os traços impessoais de uma alegoria Daí em diante as relações entre os defuntos e os sobreviventes seriam tais que os últimos desejariam lembrar e conservar os primeiros em casa e não mais apenas na igreja ou no túmulo No museu Magnien de Dijon existe uma pintura atribuída a Hyacinthe Rigaud Ela mostra um menino e uma menina de aspecto vivo e a seu lado o retrato emoldurado por um medalhão de uma mulher madura de luto que parece morta Ora tudo leva a crer que a mulher do medalhão estava bem viva mas se considerava como uma morta cuja lembrança era conservada por um retrato semifunerário por outro lado ela mandara pintar seus filhos estes sim realmente mortos com todas as aparências da vida Foi no fim do século XVII e início do XVIII que situei partindo de fontes principalmente francesas o recolhimento da família longe da rua da praça da vida coletiva e sua retração dentro de uma casa mais bem defendida contra os intrusos e mais bem preparada para a intimidade Essa nova organização do espaço privado havia sido obtida através da independência dos cômodos que se comunicavam por meio de um corredor em lugar de se abrirem um para o outro e de sua especialização funcional sala de visitas sala de jantar quarto de dormir etc Um artigo muito interessante de R A Goldthwaite mostra que em Florença já no século XV podiase observar uma privatização da vida familiar bastante análoga a despeito de certas diferenças12 O autor apoia sua argumentação numa análise dos palácios florentinos de sua aparência exterior e do que é possível saber sobre sua organização interna Sua análise referese portanto a famílias patrícias O palácio florentino dos séculos XIIIXIV caracterizavase principalmente pela torre destinada à defesa e pela loggia que dava para a rua no andar térreo onde os parentes amigos e clientes se reuniam para assistir à vida pública do bairro e da cidade e dela participar Não havia então solução de continuidade 24 entre a vida pública e a vida familiar uma prolongava a outra exceto em caso de crise quando o grupo ameaçado se refugiava na torre A não ser pela torre e pela loggia o palácio mal se distinguia de sua vizinhança urbana No nível da rua o andar térreo das construções compunhase de arcadas que se prolongavam de uma casa a outra eram as entradas das lojas mas também o acesso dos palácios e de suas escadarias No interior tampouco havia unidade e o espaço não coincidia com o da família as peças atribuídas à família principal prolongavamse pela casa ao lado enquanto por outro lado alguns locatários ocupavam partes centrais No século XV o palácio florentino modificou sua planta seu aspecto e seu sentido Antes de mais nada o palácio tornouse uma unidade monumental um maciço solto da vizinhança As lojas desapareceram assim como os ocupantes estranhos O espaço assim separado foi reservado à família uma família pouco extensa As loggia que davam para a rua foram fechadas ou suprimidas Se o palácio passou a testemunhar melhor do que antes o poderio de uma família ele deixou também de se abrir para o exterior A vida quotidiana passou a concentrarse no interior de um quadrilátero rude a salvo dos barulhos e das indiscrições da rua O palácio escreve R Goldthwaite pertencia a um mundo novo de privacy reservado a um grupo relativamente pequeno De fato o número de cômodos não era elevado no palácio Strozzi apenas um andar era habitado e não havia mais do que uma dúzia de cômodos É verdade que todos esses cômodos eram enfileirados e não havia um corredor ou um espaço central de circulação o que não permitia portanto que os moradores se isolassem e fizessem respeitar uma verdadeira intimidade como a arquitetura do século XVIII tornaria possível Sabemos por outro lado que a família florentina do quattrocento não era numerosa13 O palácio florentino não abrigava o mundo de servidores e criados comuns nas grandes casas da França e da Inglaterra nos séculos XVXVI e também na Itália barroca do século XVII ele não abrigava mais do que dois ou três servidores que nem sempre eram conservados por muito tempo O modelo florentino é portanto diferente do que apresentei Poderia ser comparado ao do século XVIII francês pelo tamanho da família e a exclusão dos criados se sua privatização não se traduzisse num tipo de espaço ainda pouco compatível com a intimidade A originalidade florentina reside portanto numa mistura de intimidade com vastidão bem analisada por R Goldthwaite esses palácios eram evidentemente 25 concebidos para atribuir a uma família pequena um mundo privado um mundo próprio mas extraordinariamente vasto que se estendia muito além dos poucos cômodos onde as pessoas viviam Na realidade a melhor maneira de sublinhar a novidade desse palácio é descrevêlo como uma expansão do espaço privado a partir do núcleo constituído por um apartamento de dimensões médias É certo que não se conhece a destinação dos cômodos de habitação se é que já tinham Talvez o studiolo ancestral do gabinete francês tenha sido nessa sociedade humanista a primeira forma de especialização do espaço privado E no entanto nessa mesma época começouse a ornamentar com pequenos objetos semelhantes aos bibelôs franceses esses cômodos sem função precisa mas destinados à vida privada Esse hábito nos dá a mesma impressão de gosto pelo bemestar privado que sentimos diante das pinturas representando o nascimento da Virgem quer sejam flamengas francesas alemãs ou italianas e diante de todas as representações de interiores do século XV em que o pintor se compraz em mostrar os objetos preciosos ou familiares É normal que num espaço tão privatizado tenha surgido um sentimento novo entre os membros da família e mais particularmente entre a mãe e a criança o sentimento de família essa cultura diz R Goldthwaite centralizavase nas mulheres e nas crianças com um interesse renovado pela educação das crianças e uma notável elevação do estatuto da mulher Como explicar de outra forma a fascinação a quase obsessão pelas crianças e pela relação mãecriança que talvez seja o único tema realmente essencial do Renascimento com seus putti suas crianças e seus adolescentes suas madonas secularizadas e seus retratos de mulheres Se o palácio do Renascimento era portanto a despeito de suas vastas dimensões reservado à família nuclear recolhida atrás de suas paredes maciças o palácio barroco como observa R Goldthwaite era mais aberto ao movimento da criadagem e da grande clientela e se aproximava mais do modelo da casa grande francesa castelo mansão hotel ou grande casa rural dos séculos XVI XVII antes da divisão em apartamentos independentes do século XVIII O episódio florentino do século XV é importante e sugestivo Eu já havia observado e comentado em meu livro a frequência desde o século XV e durante o XVI dos sinais de um reconhecimento da infância tanto na iconografia como na educação com o colégio Mas R Goldthwaite descobriu no palácio florentino uma relação muito precisa entre o início do sentimento da família e da criança e uma organização particular do espaço Somos levados a estender suas conclusões e a supor uma relação análoga entre a busca da intimidade familiar e pessoal e todas as representações de interiores desde a miniatura do século XIV até as 26 pinturas da escola holandesa O dossiê está longe de ser fechado A história da família está apenas se iniciando e mal começa a despertar o interesse da pesquisa Após um longo silêncio eila que se encaminha em várias direções Seus caminhos foram preparados pela história demográfica e só espero que ela não sofra a mesma inflação Hoje o período mais estudado vai do século XVI ao XVIII A escola de Cambridge com P Laslett e E A Wrigley empenhada em esclarecer de uma vez por todas a composição da família extensa ou conjugal14 provocou algumas reações na França aprovação no que concerne à França do Norte reservas no que concerne à França do Sul Os jovens historiadores franceses parecem mais preocupados com a formação J M Gouesse ou a dissolução A Lottin do casal Outros ainda como o historiador norteamericano E Shorter se interessam pelos sinais anunciadores no fim do século XVIII de uma maior liberdade de costumes A bibliografia começa a se alongar poderá ser encontrada bem como a situação atual dos problemas em três números dos Annales ESC15 Esperemos apenas que a história da família não fique abafada sob a abundância de publicações inspiradas por seu sucesso como aconteceu com sua jovem ancestral a história demográfica A multiplicação das pesquisas sobre o período do século XVII ao XVIII facilitada pela existência de uma documentação mais rica do que se imaginava confirmará ou invalidará algumas hipóteses Contudo em um futuro que já se anuncia corremos o risco de repetir ad nauseam os mesmos temas com pequenos progressos que justificariam mal a amplitude dos investimentos intelectuais e informáticos Ao contrário é do lado da Idade Média e da Antiguidade que deveriam vir as informações mais decisivas Esperamos com impaciência pelos primeiros resultados das pesquisas de M Manson sobre os brinquedos as bonecas em última análise as crianças durante a Antiguidade Seria preciso também interrogar melhor do que o que fiz as fontes medievais os inesgotáveis séculos XIV e XV tão importantes para o futuro de nossa civilização e antes deles a fronteira capital dos séculos XIXII e mais atrás ainda A história das mentalidades é sempre quer o admita ou não uma história comparativa e regressiva Partimos necessariamente do que sabemos sobre o comportamento do homem de hoje como de um modelo ao qual comparamos os dados do passado com a condição de a seguir considerar o modelo novo construído com o auxílio dos dados do passado como uma segunda origem e 27 descer novamente até o presente modificando a imagem ingênua que tínhamos no início No ponto em que estamos hoje as relações entre os séculos XVIIXVIII e os séculos XIXXX não estão esgotadas mas os progressos reais só serão obtidos com uma obstinação cansativa Por outro lado a decifração dos séculos e dos milênios que precederam o século XVI poderia nos trazer uma nova dimensão É daí que devemos esperar os progressos decisivos16 MaisonsLaffitte 1973 28 1 A Besançon Histoire et psychanalyse Annales ESC 19 1964 p 242 no 2 J L Flandrin Enfance et société Annales ESC 19 1964 pp 322329 2 N Z Davis The Reasons of Misrule Youth Groups and Charivaris on Sixteenth Century France Past and Present 50 fevereiro de 1971 pp 4175 3 J Bouchard Un village immobile 1972 4 J L Flandrin Enfance et société op cit 5 Op cit 6 Escrita entre 1967 e 1970 embora publicada em 1972 La France et les Français 1972 p 872 7 Um sobrinho de Mazarin Paolo Mancini tinha apenas 15 anos quando morreu bravamente assassinado junto aos muros de Paris no final da Fronda Cf G Dethant Mazarin et ses amis Paris 1968 8 Penso no famoso grupo do museu de Nápoles 9 J Toussaert Le Sentiment religieux en Flandre à la fin du Moyen Age Paris 1963 10 M Bernos Reflexion sur un miracle Annales du Midi 82 1970 11 Forcella XIII 788 12 Richard A Goldthwaite The Florentine Palace as Domestic Architecture Amer Hist Rev 77 outubro de 1972 pp 9771012 13 D Herlihy Vieillir à Florence au Quattrocento Annales ESC 24 novembrodezembro de 1969 p 1340 14 Colóquio de 1969 em Cambridge Household and Family in Past Time Completarei a bibliografia com as seguintes obras I Pinchbeck e M Hewitt Children in English Society vol I Londres Toronto 1969 K A Lokridge A New England Town Nova York 1970 J Demos A Little Commonwealth Nova York 1970 artigos dos Annales ESC citados adiante 15 Annales ESC 24 no 6 1969 pp 12751430 27 nos 45 1972 pp 7991233 27 no 6 1972 pp 13511388 16 Nestas poucas páginas limiteime aos temas da infância e da família deixando de lado os problemas particulares da educação e da escola Estes últimos a partir de 1960 tornaramse objeto de numerosos trabalhos como por exemplo P Riché Education et Culture dans lOccident barbare Paris 1962 G Snyders La Pédagogie en France aux XVII et XVIII siècles Paris 1963 H Derreal Un Missionaire de la ContreReforme Saint Pierre Fourier Paris 1965 Ph Ariès Problèmes de léducation in La France et les Français enc La Pléiade 1972 pp 869961 Um panorama geral foi apresentado no Colóquio de Marselha organizado por R Duchene e publicado sob o título Le XVIIe siècle et léducation na revista Marseille no 88 fartas bibliografias 29 História Social da Criança e da Família 1 U 1 As Idades da Vida m homem do século XVI ou XVII ficaria espantado com as exigências de identidade civil a que nós nos submetemos com naturalidade Assim que nossas crianças começam a falar ensinamoslhes seu nome o nome de seus pais e sua idade Ficamos muito orgulhosos quando Paulinho ao ser perguntado sobre sua idade responde corretamente que tem dois anos e meio De fato sentimos que é importante que Paulinho não erre que seria dele se esquecesse sua idade Na savana africana a idade é ainda uma noção bastante obscura algo não tão importante a ponto de não poder ser esquecido Mas em nossas civilizações técnicas como poderíamos esquecer a data exata de nosso nascimento se a cada viagem temos de escrevêla na ficha de polícia do hotel se a cada candidatura a cada requerimento a cada formulário a ser preenchido e Deus sabe quantos há e quantos haverá no futuro é sempre preciso recordála Paulinho dará sua idade na escola e logo se tornará Paulo N da turma x Quando arranjar seu primeiro emprego junto com sua carteira de trabalho receberá um número de inscrição que passará a acompanhar seu nome Ao mesmo tempo e até mesmo mais do que Paulo N ele será um número que começará por seu sexo seu ano e mês de nascimento Um dia chegará em que todos os cidadãos terão seu número de registro esta é a meta dos serviços de identidade Nossa personalidade civil já se exprime com maior precisão através de nossas coordenadas de nascimento do que através de nosso sobrenome Este com o tempo poderia muito bem não desaparecer mas ficar reservado à vida particular enquanto um número de identidade em que a data de nascimento seria um dos elementos o substituiria para o uso civil Na Idade Média o primeiro nome já fora considerado uma designação muito imprecisa e foi necessário completálo por um sobrenome de família muitas vezes um nome de lugar Agora tornouse conveniente acrescentar uma nova precisão de caráter numérico a idade O nome pertence ao mundo da fantasia enquanto o sobrenome pertence ao mundo da tradição A idade quantidade legalmente mensurável com uma precisão quase de horas é produto de outro mundo o da exatidão e do número Hoje nossos hábitos 32 O Sentimento da Infância de identidade civil estão ligados ao mesmo tempo a esses três mundos Entretanto existem documentos que nos comprometem seriamente que nós mesmos redigimos mas cuja redação não exige a indicação da data de nascimento De gêneros bastante diferentes esses documentos podem ser títulos de comércio letras de câmbio ou cheques ou ainda testamentos Todos eles porém foram inventados em épocas muito remotas antes que o rigor da identidade moderna se introduzisse nos costumes A inscrição do nascimento nos registros paroquiais foi imposta aos párocos da França por Francisco I Para que fosse respeitada foi preciso que essa medida já prescrita pela autoridade dos concílios fosse aceita pelos costumes que durante muito tempo se mantiveram avessos ao rigor de uma contabilidade abstrata Acreditase que foi somente no século XVIII que os párocos passaram a manter seus registros com a exatidão ou a consciência de exatidão que um Estado moderno exige de seus funcionários de registro civil A importância pessoal da noção de idade deve terse afirmado à medida que os reformadores religiosos e civis a impuseram nos documentos começando pelas camadas mais instruídas da sociedade ou seja no século XVI aquelas camadas que passavam pelos colégios Nas memórias dos séculos XVI e XVII que consultei para reconstituir alguns exemplos de escolaridade1 não é raro encontrar no início da narrativa a idade ou a data e o lugar de nascimento do narrador Em certos casos a idade chega a tornarse objeto de uma atenção especial É inscrita nos retratos como um sinal suplementar de individualização de exatidão e de autenticidade Em numerosos retratos do século XVI encontramos inscrições do gênero Aetatis suae 29 o vigésimo nono ano de sua idade com a data da pintura ANDNI 1551o retrato de Jean Fernaguut por Pourbus Bruges2 Nos retratos de personagens ilustres nos retratos da corte essa referência em geral está ausente ela subsiste seja sobre a tela seja sobre a moldura antiga dos retratos de família ligada a um simbolismo familiar Um dos exemplos mais antigos talvez seja o admirável retrato de Margaretha Van Eyck no alto coniux meuss Johnhannes me com plevit anno 1439o 17 Junii quanta precisão meu marido me pintou em 17 de junho de 1439 e embaixo Aetas mea triginta trium annorum 33 anos Muitas vezes esses retratos do século XVI formam pares um representa a mulher e o outro o marido Os dois trazem a mesma data repetida portanto duas vezes ao lado da idade de cada um dos cônjuges as duas telas de Pourbus representando Jean Fernaguut e sua mulher Adrienne de Buc3 trazem a mesma indicação Anno Domini 1551 no retrato do homem lêse Aetatis suae 29 e no da mulher 19 Há casos também em que os retratos do marido e da mulher se acham reunidos na mesma tela como o retrato dos Van Gindertaelen atribuído a Pourbus em que o casal é representado junto com seus dois filhinhos O marido traz uma das mãos no 33 quadril e apoia a outra no ombro da mulher As duas crianças brincam a seus pés A data é 1559 Do lado do marido aparecem suas armas com a inscrição aetus an 27 e do lado da mulher as armas de sua família e a inscrição Aetatis mec 204 Esses dados de identidade civil assumem às vezes o papel de uma verdadeira fórmula epigráfica como no quadro de Martin de Voos datado de 1572 que representa Antoon Anselme um magistrado de Antuérpia sua mulher e seus dois filhos5 Os dois cônjuges estão sentados dos lados opostos de uma mesa um segurando o menino e o outro a menina Entre suas cabeças no alto e no meio da tela aparece uma bela faixa de pergaminho cuidadosamente ornamentada com a seguinte inscrição concordi ae antonii anselmi et johannae Hooftmans feliciq propagini Martino de Vos pictore DD natus est ille ann MDXXXVI die IX febr uxor ann MDLV D XVI decembr liberi ä Aegidius ann MDLXXV XXI Augusti Johanna ann MDLXVI XXVI septembr Essa inscrição sugere o motivo que inspirava essa epigrafia ela parece estar ligada ao sentimento da família e a seu desenvolvimento na época Esses retratos de família datados eram documentos de história familiar como o seriam três ou quatro séculos mais tarde os álbuns de fotografias Frutos desse mesmo espírito eram os diários de família onde eram anotados além das contas os acontecimentos domésticos os nascimentos e as mortes Nesses diários se uniam a preocupação com a precisão cronológica e o sentimento familiar Tratava se menos das coordenadas do indivíduo do que das dos membros da família as pessoas sentiam necessidade de dar à vida familiar uma história datandoa Essa curiosa preocupação em datar não aparecia apenas nos retratos mas também nos objetos e na mobília No século XVII generalizouse o hábito de gravar ou pintar uma data nas camas nos cofres baús armários nas colheres ou nos copos de cerimônia A data correspondia a um momento solene da história familiar geralmente um casamento Em certas regiões na Alsácia na Suíça na Áustria e na Europa central os móveis do século XVII ao XIX especialmente os móveis pintados eram datados trazendo também o nome de seus dois proprietários Observei no museu de Thun entre outras a seguinte inscrição sobre um baú Hans Bischof 1709 Elizabeth Misler Às vezes as pessoas se contentavam com suas iniciais de cada lado da data a data do casamento Esse costume seria muito difundido na França e só desapareceria no fim do século XIX um pesquisador do Museu de Artes e Tradições Populares6 descobriu por exemplo a seguinte inscrição num móvel da região da HauteLoire 1873 LT JV A inscrição das idades ou de uma data num retrato ou num objeto correspondia ao mesmo sentimento que tendia a dar à família maior consistência histórica Esse gosto pela inscrição cronológica embora tenha subsistido até meados do 34 século XIX pelo menos entre as camadas médias desapareceu rapidamente na cidade e na corte onde foi logo considerado ingênuo e provinciano A partir de meados do século XVII as inscrições tenderam a desaparecer dos quadros podiam ser encontradas ainda mas em pintores de província ou provincializantes A bela mobília da época era assinada ou quando datada eraa discretamente Apesar dessa importância que a idade adquiriu na epigrafia familiar no século XVI subsistiram nos costumes curiosos resquícios do tempo em que era raro e difícil uma pessoa lembrarse de sua idade Observei acima que nosso Paulinho sabe sua idade desde o momento em que começa a falar Sancho Pança não sabia exatamente a idade de sua filha a quem entretanto amava muito Ela pode ter 15 anos ou dois anos a mais ou a menos Mas é alta como uma lança e fresca como uma manhã de abril7 Tratavase de um homem do povo No século XVI e mesmo nas categorias escolarizadas em que se observaram mais cedo hábitos de precisão moderna as crianças sem dúvida sabiam sua idade mas um hábito muito curioso de boas maneiras obrigavaas a não confessála claramente e a responder com certas reservas Quando o humanista e pedagogo Thomas Platter natural do Valais conta a história de sua vida8 diz com bastante precisão quando e onde nasceu mas se considera obrigado a envolver o fato numa prudente paráfrase E para começar não há nada que eu possa garantir menos do que a época exata de meu nascimento Quando tive a ideia de me informar sobre a data de meu nascimento responderamme que eu tinha vindo ao mundo em 1499 no domingo da Quinquagésima no exato momento em que os sinos chamavam para a missa Curiosa mistura de incerteza e rigor Na verdade não se deve tomar essa reserva ao pé da letra tratase de uma reserva de praxe lembrança de um tempo em que não se sabia jamais uma data exata O surpreendente é que essa reserva se tivesse tornado um hábito de boas maneiras pois era assim que convinha dizer a própria idade a um interlocutor Nos diálogos de Cordier9 dois meninos se interrogam na escola durante o recreio Quantos anos você tem Treze anos como ouvi minha mãe dizer Mesmo quando os hábitos de cronologia pessoal eram aceitos pelos costumes eles não chegavam a se impor como um conhecimento positivo e não dissipavam de imediato a antiga obscuridade da idade que subsistiu ainda algum tempo nos hábitos de civilidade As idades da vida ocupam um lugar importante nos tratados pseudocientíficos da Idade Média Seus autores empregam uma terminologia que nos parece puramente verbal infância e puerilidade juventude e adolescência velhice e senilidade cada uma dessas palavras designando um período diferente da vida Desde então adotamos algumas dessas palavras para designar noções abstratas 35 como puerilidade ou senilidade mas estes sentidos não estavam contidos nas primeiras acepções De fato tratavase originalmente de uma terminologia erudita que com o tempo se tornou familiar As idades idades da vida ou idades do homem correspondiam no espírito de nossos ancestrais a noções positivas tão conhecidas tão repetidas e tão usuais que passaram do domínio da ciência ao da experiência comum Hoje em dia não temos mais ideia da importância da noção de idade nas antigas representações do mundo A idade do homem era uma categoria científica da mesma ordem que o peso ou a velocidade o são para nossos contemporâneos Pertencia a um sistema de descrição e de explicação física que remontava aos filósofos jônicos do século VI aC que fora revivido pelos compiladores medievais nos escritos do Império Bizantino e que ainda inspirava os primeiros livros impressos de vulgarização científica no século XVI Não tencionamos determinar aqui sua formulação exata e seu lugar na história das ciências Importanos apenas perceber em que medida essa ciência se havia tornado familiar seus conceitos haviam passado para os hábitos mentais e o que ela representava na vida quotidiana Compreenderemos melhor o problema examinando a edição de 155610 Le Grand Propriétaire de toutes choses Tratava se de uma compilação latina do século XIII que retomava todos os dados dos escritores do Império Bizantino Considerouse oportuno traduzila para o francês e darlhe através da impressão uma maior difusão essa ciência antigomedieval era portanto em meados do século XVI objeto de vulgarização Le Grand Propriétaire de toutes choses é uma enciclopédia de todos os conhecimentos profanos e sacros uma espécie de GrandLarousse mas que teria uma concepção não analítica e traduziria a unidade essencial da natureza e de Deus Uma física uma metafísica uma história natural uma fisiologia e uma anatomia humanas um tratado de medicina e de higiene uma astronomia e ao mesmo tempo uma teologia Vinte livros tratam de Deus dos anjos dos elementos do homem e de seu corpo das doenças do céu do tempo da matéria do ar do fogo dos pássaros etc O último livro é consagrado aos números e às medidas Havia também nesses livros algumas receitas práticas Uma ideia geral emanava da obra ideia erudita que logo se tornou extremamente popular a ideia da unidade fundamental da natureza da solidariedade existente entre todos os fenômenos da natureza que não se separam das manifestações sobrenaturais A ideia de que não havia oposição entre o natural e o sobrenatural pertencia ao mesmo tempo às crenças populares herdadas do paganismo e a uma ciência tanto física quanto teológica Eu diria que essa concepção rigorosa da unidade da natureza deve ser considerada responsável pelo atraso do desenvolvimento científico muito mais do que a autoridade da Tradição dos Antigos ou da Escritura Nós só agimos sobre um elemento da natureza quando 36 admitimos que ele é suficientemente isolável A partir de um certo grau de solidariedade entre os fenômenos tal como postula o Le Grand Propriétaire não é mais possível intervir sem provocar reações em cadeia sem destruir a ordem do mundo nenhuma das categorias do cosmo dispõe de uma autonomia suficiente e nada pode ser feito contra o determinismo universal O conhecimento da natureza limitase então ao estudo das relações que comandam os fenômenos através de uma mesma causalidade um conhecimento que prevê mas que não modifica Não há meio de fugir a essa causalidade exceto através da magia ou do milagre Uma mesma lei rigorosa rege ao mesmo tempo o movimento dos planetas o ciclo vegetativo das estações as relações entre os elementos o corpo humano e seus humores e o destino do homem assim a astrologia permite conhecer as incidências pessoais desse determinismo universal Ainda em meados do século XVII a prática da astrologia era bastante difundida para que Molière esse espírito cético a tomasse por alvo de suas caçoadas em Les Amants Magnifiques A correspondência dos números aparecia então como uma das chaves dessa solidariedade profunda o simbolismo dos números era familiar encontravase ao mesmo tempo nas especulações religiosas nas descrições de física de história natural e nas práticas mágicas Por exemplo havia uma correspondência entre o número dos elementos o dos temperamentos do homem e o das estações o número 4 Para nós é difícil imaginar essa concepção formidável de um mundo maciço do qual se perceberiam apenas algumas correspondências A ciência havia permitido formular as correspondências e definir as categorias que elas ligavam Mas essas correspondências com o passar dos séculos tinham deslizado do domínio da ciência para o do mito popular Essas concepções nascidas na Jônia do século VI com o tempo haviam sido adotadas pela mentalidade comum e as pessoas representavam o mundo dessa forma As categorias da ciência antigo medieval se haviam tornado familiares os elementos os temperamentos os planetas e seu sentido astrológico e o simbolismo dos números As idades da vida eram também uma das formas comuns de conceber a biologia humana em relação com as correspondências secretas internaturais Essa noção destinada a se tornar tão popular certamente não remontava às belas épocas da ciência antiga Pertencia às especulações dramáticas do Império Bizantino ao século VI11 Fulgêncio a percebia oculta na Eneida detectava no naufrágio de Enéias o símbolo do nascimento do homem em meio às tempestades da existência Interpretava os cantos II e III como a imagem da infância ávida de narrativas fabulosas e assim por diante Um afresco da Arábia do século VIII já representava as idades da vida12 Os textos da Idade Média sobre esse tema são abundantes Le Grand 37 Propriétaire de toutes choses trata das idades em seu livro VI Aí as idades correspondem aos planetas em número de 7 A primeira idade é a infância que planta os dentes e essa idade começa quando a criança nasce e dura até os sete anos e nessa idade aquilo que nasce é chamado de enfant criança que quer dizer não falante pois nessa idade a pessoa não pode falar bem nem formar perfeitamente suas palavras pois ainda não tem seus dentes bem ordenados nem firmes como dizem Isidoro e Constantino Após a infância vem a segunda idade chamase pueritia e é assim chamada porque nessa idade a pessoa é ainda como a menina do olho como diz Isidoro e essa idade dura até os 14 anos Depois seguese a terceira idade que é chamada de adolescência que termina segundo Constantino em seu viático no vigésimo primeiro ano mas segundo Isidoro dura até 28 anos e pode estenderse até 30 ou 35 anos Essa idade é chamada de adolescência porque a pessoa é bastante grande para procriar disse Isidoro Nessa idade os membros são moles e aptos a crescer e a receber força e vigor do calor natural E por isso a pessoa cresce nessa idade toda a grandeza que lhe é devida pela natureza O crescimento no entanto termina antes dos 30 ou 35 anos e até mesmo antes dos 28 Certamente devia ser ainda menos tardio numa época em que o trabalho precoce mobilizava mais cedo as reservas do organismo Depois seguese a juventude que está no meio das idades embora a pessoa aí esteja na plenitude de suas forças e essa idade dura até 45 anos segundo Isidoro ou até 50 segundo os outros Essa idade é chamada de juventude devido à força que está na pessoa para ajudar a si mesma e aos outros disse Aristóteles Depois seguese a senectude segundo Isidoro que está a meio caminho entre a juventude e a velhice e Isidoro a chama de gravidade porque a pessoa nessa idade é grave nos costumes e nas maneiras e nessa idade a pessoa não é velha mas passou a juventude como diz Isidoro Após essa idade seguese a velhice que dura segundo alguns até 70 anos e segundo outros não tem fim até a morte A velhice segundo Isidoro é assim chamada porque as pessoas velhas já não têm os sentidos tão bons como já tiveram e caducam em sua velhice A última parte da velhice é chamada senies em latim mas em francês não possui outro nome além de vieillesse O velho está sempre tossindo escarrando e sujando ainda estamos do nobre ancião de Greuze e do Romantismo até voltar a ser a cinza da qual foi tirado Embora hoje em dia possamos achar esse jargão vazio e verbal ele tinha um sentido para seus leitores um sentido próximo do da astrologia ele evocava o laço que unia o destino do homem aos planetas O mesmo gênero de correspondência sideral havia inspirado uma outra periodização ligada aos 12 signos do zodíaco relacionando assim as idades da vida com um dos temas mais populares e mais 38 comoventes da Idade Média sobretudo gótica as cenas do calendário Um poema do século XIV várias vezes reimpresso nos séculos XV e XVI desenvolve esse calendário das idades13 Les six premiers ans que vit lhomme au monde Nous comparons à janvier droitement Car en ce moys vertu ne force habonde Ne plus que quant six ans ha ung enfant Ou segundo a versão do século XV Les autres VI ans la font croistre Aussi fait février tous les ans Quenfin se trait sur le printemps Et quand les ans a XVIII Il se change en tel deduit Quil cuide valoir mille mors Et aussi se change li mars En beauté et reprend chalour Du mois qui vient après septembre Quon appelle mois dottembre Quil a LX ans et non plus Lors devient vieillard et chenu Eta donc lui doit souvenir Que le temps le mène mourir Ou ainda este poema do século XIII14 Veez yci le mois de janvier A deux visages le premier15 Pour ce quil regarde à deux tems Cest le passé et le venant Ainsy lenfant quand à vescu Six ans ne peut guère valoir Car il na guère de scavoir Mais lon doit mettre bonne cure Quil prenne bonne nourriture Car qui na bon commencement 39 A tard a bon deffinement En octobre aprés venant Doit hom semer le bon froment Duquel doit vivre tout li mons Ainsi doit faire le preudoms Qui est arrivé à LX ans Il doit semer aux jeunes gens Bonnes paroles par exemple Et faire aumône si me semble Da mesma natureza ainda era a correspondência entre as idades da vida e os outros quatro consensus quatuor elementorum quatuor humorum os temperamentos quatuor anni temporum et quatuor vitae aetatum16 Em torno de 1265 Philippe de Novare já falava nos III temz daage dome17 ou seja quatro períodos de 20 anos E essas especulações continuaram a se repetir nos textos até o século XVI18 É preciso ter em mente que toda essa terminologia que hoje nos parece tão oca traduzia noções que na época eram científicas e correspondia também a um sentimento popular e comum da vida Aqui também esbarramos em grandes dificuldades de interpretação pois hoje em dia não possuímos mais esse sentimento da vida consideramos a vida como um fenômeno biológico como uma situação na sociedade sim mas não mais que isso Entretanto dizemos é a vida para exprimir ao mesmo tempo nossa resignação e nossa convicção de que existe fora do biológico e do sociológico alguma coisa que não tem nome mas que nos comove que procuramos nas notícias corriqueiras dos jornais ou sobre a qual podemos dizer isto tem vida A vida se torna então um drama que nos tira do tédio do quotidiano Para o homem de outrora ao contrário a vida era a continuidade inevitável cíclica às vezes humorística ou melancólica das idades uma continuidade inscrita na ordem geral e abstrata das coisas mais do que na experiência real pois poucos homens tinham o privilégio de percorrer todas essas idades naquelas épocas de grande mortalidade A popularidade das idades da vida tornou este tema um dos mais frequentes da iconografia profana Encontramolas por exemplo em alguns capitéis historiados do século XII no batistério de Parma19 O escultor quis representar ao mesmo tempo a parábola do mestre da vinha e dos trabalhadores da décima primeira hora e o símbolo das idades da vida Na primeira cena vemos o mestre da vinha com a mão pousada sobre a cabeça de uma criança embaixo uma legenda precisa a alegoria da criança prima aetas saeculi primum humane 40 infância Mais adiante hora tertia puericia seconda aetas o mestre da vinha tem a mão pousada sobre o ombro de um rapaz que segura um animal e uma foice O último trabalhador descansa ao lado de seu enxadão senectus sexta aetas Mas foi sobretudo no século XIV que essa iconografia fixou seus traços essenciais que permaneceram quase inalterados até o século XVIII reconhecemo los tanto nos capitéis do palácio dos Doges20 como num afresco dos Eremitani de Pádua21 Primeiro a idade dos brinquedos as crianças brincam com um cavalo de pau uma boneca um pequeno moinho ou pássaros amarrados Depois a idade da escola os meninos aprendem a ler ou seguram um livro e um estojo as meninas aprendem a fiar Em seguida as idades do amor ou dos esportes da corte e da cavalaria festas passeios de rapazes e moças corte de amor as bodas ou a caçada do mês de maio dos calendários Em seguida as idades da guerra e da cavalaria um homem armado Finalmente as idades sedentárias dos homens da lei da ciência ou do estudo o velho sábio barbudo vestido segundo a moda antiga diante de sua escrivaninha perto da lareira As idades da vida não correspondiam apenas a etapas biológicas mas a funções sociais sabemos que havia homens da lei muito jovens mas consoante a imagem popular o estudo era uma ocupação dos velhos Esses atributos da arte do século XIV seriam encontrados quase idênticos em gravuras de natureza mais popular mais familiar que subsistiram do século XVI até o início do XIX com pouquíssimas mudanças Essas gravuras eram chamadas Degraus das idades pois retratavam pessoas que representavam as idades justapostas do nascimento até a morte muitas vezes de pé sobre degraus que subiam à esquerda e desciam à direita No centro dessa escadaria dupla como que sob o arco de uma ponte erguiase o esqueleto da morte armado com sua foice Aí o tema das idades se imbricava com o tema da morte e sem dúvida não era por acaso que esses temas figuravam entre os mais populares as estampas representando os degraus das idades e as danças macabras repetiram até o início do século XIX uma iconografia fixada nos séculos XIV e XV Mas ao contrário das danças macabras em que os trajes não mudaram e permaneceram os mesmos dos séculos XV e XVI mesmo quando a gravura datava do século XIX os degraus das idades vestiam suas personagens segundo a moda da época nas últimas gravuras do século XIX vemos surgir o traje de primeira comunhão A persistência dos atributos por isso mesmo é ainda mais notável lá estão a criança montada em seu cavalo de pau o estudante com seu livro e seu estojo o belo par às vezes o rapaz segura um arbusto de maio evocação das festas da adolescência e da primavera e o homem de armas agora um oficial cingido com a echarpe do comando ou carregando um estandarte na escada descendente as roupas não estão mais na moda ou pertencem a uma moda antiga vemos os homens da lei com suas pastas 41 de processos os cientistas com seus livros ou seus astrolábios e os devotos os mais curiosos com seus rosários22 A repetição dessas imagens pregadas nas paredes ao lado dos calendários entre os objetos familiares alimentava a ideia de uma vida dividida em etapas bem delimitadas correspondendo a modos de atividade a tipos físicos a funções e a modas no vestir A periodização da vida tinha a mesma fixidez que o ciclo da natureza ou a organização da sociedade Apesar da evocação reiterada do envelhecimento e da morte as idades da vida permaneceram croquis pitorescos e bemcomportados silhuetas de caráter um tanto humorístico Da especulação antigomedieval restara uma abundante terminologia das idades No século XVI quando se decidiu traduzir essa terminologia para o francês ficou patente que esta língua e portanto os costumes franceses não dispunham de tantas palavras como o latim ou ao menos como o latim clássico O tradutor de 1556 do Le Grand Propriétaire de toutes choses reconhece sem rodeios essa dificuldade Há maior dificuldade em francês do que em latim pois em latim existem sete idades nomeadas por sete nomes diversos tantas quanto os planetas dos quais existem apenas três em francês a saber enfance jeunesse e vieillesse Observamos que como juventude significava força da idade idade média não havia lugar para a adolescência Até o século XVIII a adolescência foi confundida com a infância No latim dos colégios empregavase indiferentemente a palavra puer e a palavra adolescens Existem conservados na Bibliothèque Nationale23 alguns catálogos do colégio dos jesuítas de Caen uma lista dos nomes dos alunos seguidos de apreciações Um rapaz de 15 anos é descrito aí como bonus puer enquanto seu jovem colega de 13 anos é chamado de optimus adolescens Baillet24 num livro consagrado às criançasprodígio reconheceu também que não existiam termos em francês para distinguir pueri e adolescentes Conheciase apenas a palavra enfant criança No final da Idade Média o sentido desta palavra era particularmente lato Ela designava tanto o putto no século XIV diziase la chambre aux enfants para indicar o quarto dos putti o quarto ornado com afrescos representando criancinhas nuas como o adolescente o menino grande que às vezes era também um menino maleducado A palavra enfant nos Miracles NotreDame25 era empregada nos séculos XIV e XV como sinônimo de outras palavras tais como valets valeton garçon fils beau fils ele era valeton corresponderia ao francês atual ele era um beau gars um belo rapaz mas na época o termo se aplicava tanto a um rapaz um belo valeton como a uma criança ele era um valeton e gostavam muito dele o valez cresceu Uma única palavra conservou até hoje na língua francesa essa antiga ambiguidade a palavra gars menino rapaz ou homem 42 que passou diretamente do francês antigo para a língua popular moderna onde foi conservada Era uma criança estranha esse mau menino tão desleal e tão perverso que não queria aprender um ofício nem se comportar como convinha à infância que de bom grado se acompanhava de glutões e de gentes ociosas que frequentemente provocavam rixas nas tabernas e nos bordéis e jamais encontravam uma mulher sozinha sem a violar Eis outra criança de 15 anos Embora fosse um menino bom e gracioso recusavase a montar a cavalo e a se dar com meninas Seu pai pensava que era por timidez É o costume das crianças Na realidade o menino estava prometido à Virgem Seu pai quis obrigá lo a se casar Então a criança ficou muito zangada e bateulhe com força Tentou fugir mas feriuse mortalmente ao cair da escada Nesse momento a Virgem veio buscálo e disselhe Belo irmão vede aqui vossa amiga Então a criança exalou um suspiro Segundo um calendário das idades do século XVI26 aos 24 anos é a criança forte e virtuosa e Assim acontece com as crianças quando elas têm 18 anos O mesmo emprego pode ser constatado no século XVII uma pesquisa episcopal de 1667 relata que numa paróquia27 há un jeune enfant uma jovem criança de cerca de 14 anos de idade que ensina a ler e a escrever às crianças dos dois sexos há cerca de um ano desde que habita no dito lugar por acordo com os habitantes do dito lugar Durante o século XVII houve uma evolução o antigo costume se conservou nas classes sociais mais dependentes enquanto um novo hábito surgiu entre a burguesia onde a palavra infância se restringiu a seu sentido moderno A longa duração da infância tal como aparecia na língua comum provinha da indiferença que se sentia então pelos fenômenos propriamente biológicos ninguém teria a ideia de limitar a infância pela puberdade A ideia de infância estava ligada à ideia de dependência as palavras fils valets e garçons eram também palavras do vocabulário das relações feudais ou senhoriais de dependência Só se saía da infância ao se sair da dependência ou ao menos dos graus mais baixos da dependência Essa é a razão pela qual as palavras ligadas à infância iriam subsistir para designar familiarmente na língua falada os homens de baixa condição cuja submissão aos outros continuava a ser total por exemplo os lacaios os auxiliares e os soldados Um petit garçon menino pequino não era necessariamente uma criança e sim um jovem servidor da mesma forma hoje um patrão ou um contramestre dirão de um operário de 20 a 25 anos É um bom menino ou esse menino não vale nada Assim em 1549 o diretor de um colégio de um estabelecimento de educação chamado Baduel escrevia ao pai de um de seus jovens alunos a propósito de seu 43 enxoval e de seu séquito No que concerne ao seu serviço pessoal basta um petit garçon28 No início do século XVIII o dicionário de Furetière precisou o uso do termo Enfant é também um termo de amizade utilizado para saudar ou agradar alguém ou leválo a fazer alguma coisa Quando se diz a uma pessoa de idade adeus bonne mère boa mãe até logo grandmère avozinha na língua da Paris moderna ela responde adeus mon enfant ou adeus mon gars ou adeus petit Ou então ela dirá a um lacaio mon enfant vá me buscar aquilo Um mestre dirá aos trabalhadores mandandoos trabalhar vamos enfants trabalhem Um capitão dirá a seus soldados coragem enfants aguentem firme Os soldados da primeira fila que estavam mais expostos ao perigo eram chamados de enfants perdus crianças perdidas Na mesma época mas nas famílias nobres em que a dependência não era senão uma consequência da invalidez física o vocabulário da infância tendia quase sempre a designar a primeira idade No século XVII seu emprego tornouse mais frequente a expressão petit enfant criança pequena ou criancinha começou a adquirir o sentido que lhe atribuímos O uso antigo preferia jeune enfant jovem criança e esta expressão não foi completamente abandonada La Fontaine a empregava e em 1714 numa tradução de Erasmo havia uma referência a uma jeune fille jovem menina hoje em dia jeune fille designa uma moça que ainda não tinha cinco anos Tenho uma jeune fille que mal começou a falar29 A palavra petit pequeno havia adquirido também um sentido especial no fim do século XVI designava todos os alunos das pequenas escolas mesmo aqueles que não eram mais crianças Na Inglaterra a palavra petty tinha o mesmo sentido que em francês e um texto de 1627 mencionava a escola dos lyttle petties ou seja dos menores alunos30 Foi sobretudo com PortRoyal e com toda a literatura moral e pedagógica que aí se inspirou ou que de modo mais geral exprimiu uma necessidade de ordem moral difundida por toda a parte e da qual PortRoyal era também um testemunho que os termos utilizados para designar a infância se tornaram numerosos e sobretudo modernos os alunos de Jacqueline Pascal31 eram divididos em petits moyens e grands pequenos médios e grandes Quanto às crianças pequenas escreve Jacqueline Pascal é preciso ainda mais que às outras ensiná las e alimentálas se possível como pequenos pombos O regulamento das pequenas escolas de PortRoyal32 prescrevia Eles não vão à Missa todos os dias somente os pequenos Falavase de uma forma nova em pequenas almas em pequenos anjos33 Essas expressões anunciavam o sentimento do século XVIII e do romantismo Em seus contos Mlle Lhéritier34 pretendia se dirigir aos jovens 44 espíritos às jovens pessoas Essas imagens seguramente levam os jovens a reflexões que aperfeiçoam sua razão Percebese então que esse século XVII que parecia ter desdenhado a infância ao contrário introduziu o uso de expressões e de locuções que permanecem até hoje na língua francesa Junto à palavra enfant e seu dicionário Furetière citava provérbios que ainda nos são familiares É um enfant gâté criança mimada aquela a quem se deixou viver de um modo libertino sem corrigila Il ny a plus denfant equivale a dizer que alguém começa a ter juízo e malícia cedo Inocente como a criança que acabou de nascer Vocês não achavam que essas expressões não remontavam além do século XIX Contudo em seus esforços para falar das crianças pequenas a língua do século XVII foi prejudicada pela ausência de palavras que as distinguissem das maiores O mesmo aliás acontecia com o inglês em que a palavra baby se aplicava também às crianças grandes A gramática latina em inglês de Lily35 que foi utilizada do início do século XVI até 1866 dirigiase a al lyttell babes all lyttell chyldren Por outro lado havia em francês expressões que pareciam designar as crianças bem pequeninas Uma delas era a palavra poupart Um dos Miracles NotreDame tinha como personagem um petit fils que queria dar de comer a uma imagem do Menino Jesus O bom Jesus vendo a insistência e a boa vontade da criancinha falou com ela e disselhe Poupart não chores mais pois comerás comigo dentro de três dias Mas esse poupart na realidade não era um bebê como diríamos hoje também era chamado de clergeon36 pequeno clérigo usava sobrepeliz e ajudava à missa Aqui havia crianças de pouca idade que sabiam um pouco as letras e que prefeririam mamar no seio de sua mãe a ter de ajudar à missa Na língua dos séculos XVII e XVIII a palavra poupart não designava mais uma criança e sim sob a forma poupon o que hoje os franceses ainda chamam pelo mesmo nome porém no feminino uma poupée ou seja uma boneca O francês seria portanto levado a tomar emprestadas de outras línguas línguas estrangeiras ou gírias usadas na escola ou nas diferentes profissões palavras que designassem essa criança pequena pela qual começava a surgir um novo interesse foi o caso do italiano bambino que daria origem ao francês bambin Mme de Sévigné empregava também no mesmo sentido o provençal pitchoun que ela certamente aprendera em uma de suas estadas na casa dos Grignans37 Seu primo De Coulanges que não gostava de crianças mas que falava muito delas38 desconfiava dos marmousets de três anos uma palavra antiga que evoluiria para marmots na língua popular moleques de queixo engordurado que enfiam o dedo em todos os pratos Empregavamse também termos de gíria dos colégios latinos ou das academias esportivas e militares um pequeno frater um cadet e quando eram numerosos populo39 ou petit peuple Enfim o uso 45 dos diminutivos tornouse frequente encontramos fan fan nas cartas de Mme de Sévigné e de Fénelon Com o tempo essas palavras se deslocariam e passariam a designar a criança pequena mas já esperta Restaria sempre uma lacuna para designar a criança durante seus primeiros meses essa insuficiência não seria sanada antes do século XIX quando o francês tomou emprestada do inglês a palavra baby que nos séculos XVI e XVII designava as crianças em idade escolar Foi esta a última etapa dessa história daí em diante com o francês bébé a criança bem pequenina recebeu um nome Embora um vocabulário da primeira infância tivesse surgido e se ampliado subsistia a ambiguidade entre a infância e a adolescência de um lado e aquela categoria a que se dava o nome de juventude do outro Não se possuía a ideia do que hoje chamamos de adolescência e essa ideia demoraria a se formar Já a pressentimos no século XVIII com duas personagens uma literária Querubim e a outra social o conscrito Em Querubim prevalecia a ambiguidade da puberdade e a ênfase recaía sobre o lado efeminado de um menino que deixava a infância Isso não era propriamente uma novidade como se entrava muito cedo na vida social os traços cheios e redondos da primeira adolescência em torno da puberdade davam aos meninos uma aparência feminina É isso o que explica a facilidade dos disfarces dos homens em mulheres ou viceversa comuns nos romances barrocos do início do século XVII dois rapazes ou duas moças se tornam amigos mas um deles é uma moça travestida etc Por mais crédulos que sejam os leitores de romances de aventuras de todas as épocas o mínimo de verossimilhança exige que tenha existido alguma semelhança entre o menino ainda imberbe e a menina Contudo essa semelhança não era apresentada então como uma característica da adolescência uma característica da idade Esses homens sem barba de traços suaves não eram adolescentes pois já agiam como homens feitos comandando e combatendo Em Querubim ao contrário o aspecto feminino estava ligado à transição da criança para o adulto traduzia um estado durante um certo tempo o tempo do amor nascente Querubim não teria sucessores Ao contrário seria a força viril que no caso dos meninos exprimiria a adolescência e o adolescente seria prefigurado no século XVIII pelo conscrito Examinemos o texto de um cartaz de recrutamento que data do final do século XVIII40 O cartaz se dirigia à brilhante juventude Os jovens que quiserem partilhar da reputação que este belo corpo adquiriu poderão dirigirse a M DAmbrun Eles os recrutadores recompensarão aqueles que lhes trouxerem belos homens 46 O primeiro adolescente moderno típico foi o Siegfried de Wagner a música de Siegfried pela primeira vez exprimiu a mistura de pureza provisória de força física de naturismo de espontaneidade e de alegria de viver que faria do adolescente o herói do nosso século XX o século da adolescência Esse fenômeno surgido na Alemanha wagneriana penetraria mais tarde na França em torno dos anos 1900 A juventude que então era a adolescência iria tornarse um tema literário e uma preocupação dos moralistas e dos políticos Começouse a desejar saber seriamente o que pensava a juventude e surgiram pesquisas sobre ela como as de Massis ou de Henriot A juventude apareceu como depositária de valores novos capazes de reavivar uma sociedade velha e esclerosada Haviase experimentado um sentimento semelhante no período romântico mas sem uma referência tão precisa a uma classe de idade Sobretudo esse sentimento romântico se limitava à literatura e àqueles que a liam Ao contrário a consciência da juventude tornouse um fenômeno geral e banal após a guerra de 1914 em que os combatentes da frente de batalha se opuseram em massa às velhas gerações da retaguarda A consciência da juventude começou como um sentimento comum dos excombatentes e esse sentimento podia ser encontrado em todos os países beligerantes até mesmo na América de Dos Passos Daí em diante a adolescência se expandiria empurrando a infância para trás e a maturidade para a frente Daí em diante o casamento que não era mais um estabelecimento não mais a interromperia o adolescentecasado é um dos tipos mais específicos de nossa época ele lhe propõe seus valores seus apetites e seus costumes Assim passamos de uma época sem adolescência a uma época em que a adolescência é a idade favorita Desejase chegar a ela cedo e nela permanecer por muito tempo Essa evolução foi acompanhada por uma evolução paralela porém inversa da velhice Sabemos que a velhice começava cedo na sociedade antiga Os exemplos são conhecidos a começar pelos velhos de Molière que aos nossos olhos parecem jovens ainda Nem sempre aliás a iconografia da velhice a representa sob os traços de um indivíduo decrépito a velhice começa com a queda dos cabelos e o uso da barba e um belo ancião aparece às vezes como um homem calvo É o caso do ancião no concerto de Ticiano que é também uma representação das idades da vida Em geral porém antes do século XVIII o ancião era considerado ridículo Uma personagem de Rotrou pretendia impor à sua filha um marido quinquagenário Ele tem apenas 50 anos e além disso não tem nem um dente Il nest dans la nature homme qui ne le juge Du siècle de Saturne ou du temps du Déluge Des trois pieds dont il marche il en a deux goutteux 47 Qui jusque à chaque pas trébuchent de vieillesse Et quil faut retenir ou relever sans cesse41 Dez anos mais tarde esse ancião se parecia com este sexagenário de Quinault Courbé sur son bâton le bon petit vieillard Tousse crache se mouche et fait le goguenard Des contes du vieux temps étourdit Isabelle42 A França antiga não respeitava a velhice era a idade do recolhimento dos livros da devoção e da caduquice A imagem do homem integral nos séculos XVI XVII era a de um homem jovem o oficial com a echarpe no topo dos degraus das idades Ele não era um rapaz embora hoje tivesse idade para ser considerado como tal Correspondia a essa segunda categoria das idades entre a infância e a velhice que no século XVIII era chamada de juventude Furetière que ainda levava muito a sério os problemas arcaicos da periodização da vida elaborou uma noção intermediária de maturidade mas reconheceu que essa noção não era usual e confessou Os jurisconsultos consideram a juventude e a maturidade uma única idade O século XVII se reconhecia nessa juventude militar assim como o século XX se reconhece em seus adolescentes Hoje ao contrário a velhice desapareceu ao menos do francês falado onde a expressão un vieux um velho subsiste com um sentido de gíria pejorativo ou protetor A evolução ocorreu em duas etapas primeiro houve o ancião respeitável o ancestral de cabelos de prata o Nestor de sábios e prudentes conselhos o patriarca de experiência preciosa o ancião de Greuze Restif de la Bretonne e todo o século XIX Ele não era ainda muito ágil mas também não era mais tão decrépito como o ancião dos séculos XVI e XVII Ainda hoje resta alguma coisa desse respeito pelo ancião em nossos costumes Mas esse respeito na realidade não tem mais objeto pois em nossa época e esta foi a segunda etapa o ancião desapareceu Foi substituído pelo homem de uma certa idade e por senhores ou senhoras muito bem conservados Noção ainda burguesa mas que tende a se tornar popular A ideia tecnológica de conservação substitui a ideia ao mesmo tempo biológica e moral da velhice Temse a impressão portanto de que a cada época corresponderiam uma idade privilegiada e uma periodização particular da vida humana a juventude é a idade privilegiada do século XVII a infância do século XIX e a adolescência do século XX 48 Essas variações de um século para o outro dependem das relações demográficas São testemunhos da interpretação ingênua que a opinião faz em cada época da estrutura demográfica mesmo quando nem sempre pode conhecêla objetivamente Assim a ausência da adolescência ou o desprezo pela velhice de um lado ou de outro o desaparecimento da velhice ao menos como degradação e a introdução da adolescência exprimem a reação da sociedade diante da duração da vida O prolongamento da média de vida retirou do não ser anterior espaços da vida que os sábios do Império Bizantino e da Idade Média haviam nomeado embora não existissem nos costumes E a linguagem moderna tomou emprestados esses velhos vocábulos originalmente apenas teóricos para designar realidades novas último avatar do tema que durante tanto tempo foi familiar e hoje está esquecido o das idades da vida Nas páginas seguintes examinaremos os signos da infância Não deveremos esquecer o quanto essa representação da infância é relativa diante da predileção reconhecida pela juventude no período que estudamos Esse período não foi nem de crianças nem de adolescentes nem de velhos foi um tempo de homens jovens 49 1 Ver parte II cap 4 2 Exposição da Orangerie O Retrato na Arte Flamenga Paris 1952 no 67 no 18 3 Op cit nos 67 e 68 4 Op cit no 71 5 Op cit no 93 6 Museu de Artes e Tradições Populares Exposição de 1953 no 778 7 Dom Quixote parte II cap 13 8 Vie de Thomas Platter o velho Lausanne ed E Fick 1895 9 Mathurin Cordier Les Colloques Paris 1586 10 Le Grand Propriétaire de toutes choses très utile et profitable pour tenir le corps en santé por B de Glanville traduzido para o francês por Jean Corbichon 1556 11 Comparetti Virgile nel m e tomo I 14155 12 Kuseir Amra Cf Van Marle Iconographie de lart profane 1932 t II p 144 13 Grant Kalendrier et compost des bergiers edição de 1500 apud J Morawski Les douze mois figurez Archivum romanicum 1926 pp 351 a 363 Os seis primeiros anos que o homem vive no mundo a janeiro com razão os comparamos pois nesse mês nem força nem virtude abundam não mais do que quando uma criança tem seis anos N T Os outros seis anos fazemna crescer Assim também faz fevereiro todos os anos O qual enfim conduz à primavera E quando a pessoa faz 18 anos Ela se modifica de tal forma Que pensa valer mil pedaços Assim também o mês de março Se transforma em beleza e readquire calor No mês que vem depois de setembro E que chamamos de outubro a pessoa tem 60 anos e não mais Então ela se torna velha e encarquilhada E se lembra de que o tempo a leva a morrer N T 14 J Morawski op cit 15 Representado nos calendários sob a forma de Janus bifrons Vedes aqui o mês de janeiro O primeiro de todos que tem duas faces Porque está voltado para dois tempos o passado e o porvir Assim também a criança que viveu apenas Seis anos não vale quase nada Pois quase não possui saber Mas devese cuidar Para que ela se alimente bem Pois quem tem um bom começo No final terá um bom fim No mês de outubro que vem depois O homem deve semear o bom trigo Do qual viverão todos os outros Assim deve fazer o homem valoroso Que chegou aos 60 anos deve semear para os jovens Boas palavras como exemplo E dar esmolas ao menos assim me parece N T 16 Regimen sanitatis schola salermitania ed por Arnaud de Villeneuve 17 C V Langlois La Vie en France au Moyen Age 1908 p 184 18 1568 19 Didron La Vie humaine Annales archéologiques XV p 413 20 Didron Annales archéologiques XVII pp 69 e 193 21 A Venturi La Fonte di una compozicione del guariento Arte 1914 XVII p 49 22 Este tema não era apenas popular É encontrado sob outras formas na pintura e na escultura como em Ticiano e Van Dyck ou no frontão de Versalhes de Luís XIV 50 23 Bibliothèque Nationale Manuscritos Fonds latin nos 10990 e 10991 24 Baillet Les Enfants devenus célèbres par leurs études 1688 25 Miracles NotreDame Westminster ed G F Warner 1885 Jubinal Nouveau Recueil de contes tomo I pp 3133 42 a 72 tomo II p 244 e pp 356357 26 Citado na nota 13 deste capítulo 27 A de Charmasse Etat de linstruction publique dans lancien diocèse dAutun 1878 28 J Gaufrès Claude Baduel et la Réforme des études au XVIe siècle Bull Soc H du protestantisme français 1880 XXV pp 499505 29 Erasmo Le Mariage chrétien trad de 1714 30 J Brinsley Ludus Litterarius ed de 1917 31 Jacqueline Pascal Règlement pour les enfants Apêndice das Constituições de PortRoyal 1721 32 Regulamento do Colégio de Chesnay in W de Beaupuis Suite des amis de PortRoyal 1751 vol I p 175 33 Jacqueline Pascal ver nota 31 acima 34 M E Storer La mode des contes de fées 1928 35 I pray you all lyttell babes all lytell chyldren lern 36 Miracles NotreDame op cit 37 Sois injustos comigo ao crer que gosto mais da petite do que do pitchoun Mme de Sévigné Lettres 12 de junho de 1675 ver também 5 de outubro de 1673 38 Coulanges Chansons choisies 1694 39 Claudine BouzonnetStella Jeux de lenfance 1657 40 Cartaz de recrutamento para o regimento do Royal Piemont em Nevers 1789 Exposição LAffiche Bibliothèque Nationale 1953 no 25 41 Rotrou La Soeur Não há na natureza quem não o considere Pertencente ao século de Saturno ou ao tempo do Dilúvio Dos três pés com que ele anda dois sofrem de gota A cada passo cambaleiam de velhice E é preciso retêlos e erguêlos todo o tempo N T 42 Quinault La Mère coquette Curvado sobre seu bastão o bom velhinho Tosse escarra se assoa e diz galhofas E amola Isabelle com contos dos velhos tempos N T 51 A 2 A Descoberta da Infância té por volta do século XII a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representála É difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência ou à falta de habilidade É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo Uma miniatura otoniana do século XI1 nos dá uma ideia impressionante da deformação que o artista impunha então aos corpos das crianças em um sentido que nos parece muito distante de nosso sentimento e de nossa visão O tema é a cena do Evangelho em que Jesus pede que se deixe vir a ele as criancinhas sendo o texto latino claro parvuli Ora o miniaturista agrupou em torno de Jesus oito verdadeiros homens sem nenhuma das características da infância eles foram simplesmente reproduzidos numa escala menor Apenas seu tamanho os distingue dos adultos Numa miniatura francesa do fim do século XI2 as três crianças que São Nicolau ressuscita estão representadas numa escala mais reduzida que os adultos sem nenhuma diferença de expressão ou de traços O pintor não hesitava em dar à nudez das crianças nos raríssimos casos em que era exposta a musculatura do adulto assim no livro de salmos de São Luís de Leyde3 datado do fim do século XII ou do início do XIII Ismael pouco depois de seu nascimento tem os músculos abdominais e peitorais de um homem Embora exibisse mais sentimento ao retratar a infância4 o século XIII continuou fiel a esse procedimento Na Bíblia moralizada de São Luís as crianças são representadas com maior frequência mas nem sempre são caracterizadas por algo além de seu tamanho Num episódio da vida de Jacó Isaque está sentado entre suas duas mulheres cercado por uns 15 homenzinhos que batem na cintura dos adultos são seus filhos5 Quando Jó é recompensado por sua fé e fica novamente rico o iluminista evoca sua fortuna colocando Jó entre um rebanho à esquerda e um grupo de crianças à direita igualmente numerosas imagem tradicional da fecundidade inseparável da riqueza Numa outra ilustração do livro de Jó as crianças aparecem escalonadas por ordem de tamanho No Evangeliário da SainteChapelle do século XIII6 no momento da multiplicação dos pães Cristo e um apóstolo ladeiam um homenzinho que bate em 52 sua cintura sem dúvida a criança que trazia os peixes No mundo das fórmulas românicas e até o fim do século XIII não existem crianças caracterizadas por uma expressão particular e sim homens de tamanho reduzido Essa recusa em aceitar na arte a morfologia infantil é encontrada aliás na maioria das civilizações arcaicas Um belo bronze sardo do século IX aC7 representa uma espécie de Pietá uma mãe segurando em seus braços o corpo bastante grande do filho mas talvez se tratasse de uma criança como observa a nota do catálogo A pequena figura masculina poderia muito bem ser uma criança que segundo a fórmula adotada na época arcaica por outros povos estaria representada como um adulto Tudo indica de fato que a representação realista da criança ou a idealização da infância de sua graça de sua redondeza de formas tenham sido próprias da arte grega Os pequenos Eros proliferavam com exuberância na época helenística A infância desapareceu da iconografia junto com os outros temas helenísticos e o românico retomou essa recusa dos traços específicos da infância que caracterizava as épocas arcaicas anteriores ao helenismo Há aí algo mais do que uma simples coincidência Partimos de um mundo de representação onde a infância é desconhecida os historiadores da literatura Mgr Calvé fizeram a mesma observação a propósito da epopeia em que criançasprodígio se conduziam com a bravura e a força física dos guerreiros adultos Isso sem dúvida significa que os homens dos séculos XXI não se detinham diante da imagem da infância que esta não tinha para eles interesse nem mesmo realidade Isso faz pensar também que no domínio da vida real e não mais apenas no de uma transposição estética a infância era um período de transição logo ultrapassado e cuja lembrança também era logo perdida Tal é o nosso ponto de partida Como daí chegamos às criancinhas de Versalhes às fotos de crianças de todas as idades de nossos álbuns de família Por volta do século XIII surgiram alguns tipos de crianças um pouco mais próximos do sentimento moderno Surgiu o anjo representado sob a aparência de um rapaz muito jovem de um jovem adolescente um clergeon como diz P du Colombier8 Mas qual era a idade do pequeno clérigo Era a idade das crianças mais ou menos grandes que eram educadas para ajudar à missa e que eram destinadas às ordens espécies de seminaristas numa época em que não havia seminários e em que apenas a escola latina se destinava à formação dos clérigos Aqui diz um Miracle de Notre Dame9 havia crianças de pouca idade que sabiam um pouco as letras e que prefeririam mamar no seio de sua mãe mas as crianças desmamavam muito tarde nessa época a Julieta de Shakespeare ainda era alimentada ao seio aos três anos de idade a ter de ajudar à missa O anjo de Reims por exemplo seria um menino já 53 grande mais do que uma criança mas os artistas sublinhariam com afetação os traços redondos e graciosos e um tanto efeminados dos meninos mal saídos da infância Já estamos longe dos adultos em escala reduzida da miniatura otoniana Esse tipo de anjos adolescentes se tornaria muito frequente no século XIV e persistiria ainda até o fim do quattrocento italiano são exemplos os anjos de Fra Angelico de Botticelli e de Ghirlandajo O segundo tipo de criança seria o modelo e o ancestral de todas as crianças pequenas da história da arte o Menino Jesus ou Nossa Senhora menina pois a infância aqui se ligava ao mistério da maternidade da Virgem e ao culto de Maria No início Jesus era como as outras crianças uma redução do adulto um pequeno Deuspadre majestoso apresentado pela Theotókos A evolução em direção a uma representação mais realista e mais sentimental da criança começaria muito cedo na pintura em uma miniatura da segunda metade do século XII10 Jesus em pé veste uma camisa leve quase transparente tem os dois braços em torno do pescoço de sua mãe e se aninha em seu colo com o rosto colado ao dela Com a maternidade da Virgem a tenra infância ingressou no mundo das representações No século XIII ela inspirou outras cenas familiares Na Bíblia Moralizada de São Luís11 encontramos cenas de família em que os pais estão cercados por seus filhos com o mesmo acento de ternura do jubé de Chartres por exemplo num retrato da família de Moisés o marido e a mulher dão as mãos enquanto as crianças homenzinhos que os cercam estendem a mão para a mãe Esses casos porém era raros o sentimento encantador da tenra infância permaneceu limitado ao Menino Jesus até o século XIV quando como sabemos a arte italiana contribuiu para desenvolvêlo e expandilo Um terceiro tipo de criança apareceu na fase gótica a criança nua O Menino Jesus quase nunca era representado despido Na maioria dos casos aparecia como as outras crianças de sua idade castamente enrolado em cueiros ou vestido com uma camisa ou uma camisola Ele só se desnudaria no final da Idade Média As poucas miniaturas das Bíblias moralizadas que representavam crianças vestiamnas exceto quando se tratava dos Inocentes ou das crianças mortas cujas mães seriam julgadas por Salomão Seria a alegoria da morte e da alma que introduziria no mundo das formas a imagem de nudez infantil Já na iconografia prébizantina do século V em que aparecem traços da futura arte românica reduziamse as dimensões dos corpos dos mortos Os cadáveres eram menores que os corpos dos vivos Na Ilíada da Biblioteca Ambrosiana12 os mortos das cenas de batalha têm a metade do tamanho dos vivos Na arte medieval francesa a alma era representada por uma criancinha nua e em geral assexuada Os juízos finais conduzem sob essa forma as almas dos justos ao seio de Abraão13 O moribundo exala uma criança 54 pela boca numa representação simbólica da partida da alma Era assim também que se imaginava a entrada da alma no mundo quer se tratasse de uma concepção miraculosa e sagrada o anjo da Anunciação entrega à Virgem uma criança nua a alma de Jesus14 quer se tratasse de uma concepção perfeitamente natural um casal repousa no leito aparentemente de forma inocente mas algo deve terse passado pois uma criança nua chega pelos ares e penetra na boca da mulher15 a criação da alma humana pela natureza Durante o século XIV e sobretudo durante o século XV esses tipos medievais evoluiriam mas no sentido já indicado no século XIII Dissemos que o anjo adolescente animaria ainda a pintura religiosa do século XV sem grande alteração Por outro lado o tema da infância sagrada a partir do século XIV não deixaria mais de se ampliar e de se diversificar sua fortuna e sua fecundidade são um testemunho do progresso na consciência coletiva desse sentimento da infância que apenas um observador atento poderia isolar no século XIII e que não existia de todo no século XI No grupo formado por Jesus e sua mãe o artista sublinharia os aspectos graciosos ternos e ingênuos da primeira infância a criança procurando o seio da mãe ou preparandose para beijála ou acariciála a criança brincando com os brinquedos tradicionais da infância com um pássaro amarrado ou uma fruta a criança comendo seu mingau a criança sendo enrolada em seus cueiros Todos os gestos observáveis ao menos para aquele que desejasse prestar atenção neles já eram reproduzidos Esses traços de realismo sentimental tardaram a se estender além das fronteiras da iconografia religiosa mas não nos devemos surpreender com isso sabemos que o mesmo aconteceu com a paisagem e com a cena de gênero A verdade é que o grupo da Virgem com o menino se transformou e se tornou cada vez mais profano a imagem de uma cena da vida quotidiana Timidamente no início e a seguir com maior frequência a infância religiosa deixou de se limitar à infância de Jesus Surgiu em primeiro lugar a infância da Virgem que inspirou ao menos dois temas novos e frequentes o tema do nascimento da Virgem pessoas no quarto de SantAna atarefadas em torno da recémnascida que é banhada agasalhada e apresentada à mãe e o tema da educação da Virgem da lição de leitura a Virgem acompanhando sua lição num livro que SantAna segura Depois surgiram as outras infâncias santas a de São João o companheiro de jogos do Menino Jesus a de São Tiago e a dos filhos das mulheres santas MariaZebedeu e Maria Salomé Uma iconografia inteiramente nova se formou assim multiplicando cenas de crianças e procurando reunir nos mesmos conjuntos o grupo dessas crianças santas com ou sem suas mães Essa iconografia que de modo geral remontava ao século XIV coincidiu com um florescimento de histórias de crianças nas lendas e contos pios como os dos 55 Miracles NotreDame Ela se manteve até o século XVII e podemos acompanhá la na pintura na tapeçaria e na escultura Voltaremos a ela aliás a propósito das devoções da infância Dessa iconografia religiosa da infância iria finalmente destacarse uma iconografia leiga nos séculos XV e XVI Não era ainda a representação da criança sozinha A cena de gênero se desenvolveu nessa época através da transformação de uma iconografia alegórica convencional inspirada na concepção antigomedieval da natureza idades da vida estações sentidos elementos As cenas de gênero e as pinturas anedóticas começaram a substituir as representações estáticas de personagens simbólicas Voltaremos com mais vagar a essa evolução16 Salientemos aqui apenas o fato de que a criança se tornou uma das personagens mais frequentes dessas pinturas anedóticas a criança com sua família a criança com seus companheiros de jogos muitas vezes adultos a criança na multidão mas ressaltada no colo de sua mãe ou segura pela mão ou brincando ou ainda urinando a criança no meio do povo assistindo aos milagres ou aos martírios ouvindo prédicas acompanhando os ritos litúrgicos as apresentações ou as circuncisões a criança aprendiz de um ourives de um pintor etc ou a criança na escola um tema frequente e antigo que remontava ao século XIV e que não mais deixaria de inspirar as cenas de gênero até o século XIX Mais uma vez não nos iludamos essas cenas de gênero em geral não se consagravam à descrição exclusiva da infância mas muitas vezes tinham nas crianças suas protagonistas principais ou secundárias Isso nos sugere duas ideias primeiro a de que na vida quotidiana as crianças estavam misturadas com os adultos e toda reunião para o trabalho o passeio ou o jogo reunia crianças e adultos segundo a ideia de que os pintores gostavam especialmente de representar a criança por sua graça ou por seu pitoresco o gosto do pitoresco anedótico desenvolveuse nos séculos XV e XVI e coincidiu com o sentimento da infância engraçadinha e se compraziam em sublinhar a presença da criança dentro do grupo ou da multidão Dessas duas ideias uma nos parece arcaica temos hoje assim como no fim do século XIX uma tendência a separar o mundo das crianças do mundo dos adultos A outra ideia ao contrário anuncia o sentimento moderno da infância Enquanto a origem dos temas do anjo das infâncias santas e de suas posteriores evoluções iconográficas remontava ao século XIII no século XV surgiram dois tipos novos de representação da infância o retrato e o putto A criança como vimos não estava ausente da Idade Média ao menos a partir do século XIII mas nunca era o modelo de um retrato de um retrato de uma criança 56 real tal como ela aparecia num determinado momento de sua vida Nas efígies funerárias cuja descrição foi conservada por Gaignières17 a criança só apareceu muito tarde no século XVI Fato curioso ela apareceu de início não em seu próprio túmulo ou no de seus pais mas no de seus professores Nas sepulturas dos mestres de Bolonha representouse uma cena de aula com o professor no meio de seus alunos18 Já em 1378 o Cardeal de La Grange Bispo de Amiens mandara representar os dois Príncipes de que havia sido tutor de dez e sete anos numa bela pilastra de sua catedral19 Ninguém pensava em conservar o retrato de uma criança que tivesse sobrevivido e se tornado adulta ou que tivesse morrido pequena No primeiro caso a infância era apenas uma fase sem importância que não fazia sentido fixar na lembrança no segundo o da criança morta não se considerava que essa coisinha desaparecida tão cedo fosse digna de lembrança havia tantas crianças cuja sobrevivência era tão problemática O sentimento de que se faziam várias crianças para conservar apenas algumas era e durante muito tempo permaneceu muito forte Ainda no século XVII em Le Caquet de laccouchée vemos uma vizinha mulher de um relator tranquilizar assim uma mulher inquieta mãe de cinco pestes e que acabara de dar à luz Antes que eles te possam causar muitos problemas tu terás perdido a metade e quem sabe todos Estranho consolo20 As pessoas não se podiam apegar muito a algo que era considerado uma perda eventual Isso explica algumas palavras que chocam nossa sensibilidade moderna como estas de Montaigne Perdi dois ou três filhos pequenos não sem tristeza mas sem desespero21 ou estas de Molière a respeito da Louison de Le Malade Imaginaire A pequena não conta A opinião comum devia como Montaigne não reconhecer nas crianças nem movimento na alma nem forma reconhecível no corpo Mme de Sévigné relata sem surpresa22 palavras semelhantes de Mme de Coetquen quando esta desmaiou com a notícia da morte de sua filhinha Ela ficou muito aflita e disse que jamais terá uma outra tão bonita Não se pensava como normalmente acreditamos hoje que a criança já contivesse a personalidade de um homem Elas morriam em grande número As minhas morrem todas pequenas dizia ainda Montaigne Essa indiferença era uma consequência direta e inevitável da demografia da época Persistiu até o século XIX no campo na medida em que era compatível com o cristianismo que respeitava na criança batizada a alma imortal Consta que durante muito tempo se conservou no País Basco o hábito de enterrar em casa no jardim a criança morta sem batismo Talvez houvesse aí uma sobrevivência de ritos muitos antigos de oferendas sacrificais Ou será que simplesmente as crianças mortas muito cedo era enterradas em qualquer lugar como hoje se enterra um animal doméstico um gato 57 ou um cachorro A criança era tão insignificante tão mal entrada na vida que não se temia que após a morte ela voltasse para importunar os vivos É interessante notar que na gravura liminar da Tabula Cebetis23 Merian colocou as criancinhas numa espécie de zona marginal entre a terra de onde elas saíram e a vida em que ainda não penetraram e da qual estão separadas por um pórtico com a inscrição Introitus ad vitam Até hoje nós não falamos em começar a vida no sentido de sair da infância Esse sentimento de indiferença com relação a uma infância demasiado frágil em que a possibilidade de perda é muito grande no fundo não está muito longe da insensibilidade das sociedades romanas ou chinesas que praticavam o abandono das crianças recémnascidas Compreendemos então o abismo que separa a nossa concepção da infância anterior à revolução demográfica ou a seus preâmbulos Não nos devemos surpreender diante dessa insensibilidade pois ela era absolutamente natural nas condições demográficas da época Por outro lado devemos nos surpreender sim com a precocidade do sentimento da infância enquanto as condições demográficas continuavam a lhe ser ainda tão pouco favoráveis Estatisticamente de maneira objetiva esse sentimento deveria ter surgido muito mais tarde Ainda se compreende o gosto pelo pitoresco e pela graça desse pequeno ser ou o sentimento da infância engraçadinha com que nós adultos nos divertimos para nosso passatempo assim como nos divertimos com os macacos24 Esse sentimento podia muito bem se acomodar à indiferença com relação à personalidade essencial e definitiva da criança a alma imortal O gosto novo pelo retrato indicava que as crianças começavam a sair do anonimato em que sua pouca possibilidade de sobreviver as mantinha É notável de fato que nessa época de desperdício demográfico se tenha sentido o desejo de fixar os traços de uma criança que continuaria a viver ou de uma criança morta a fim de conservar sua lembrança O retrato da criança morta particularmente prova que essa criança não era mais tão geralmente considerada como uma perda inevitável Essa atitude mental não eliminava o sentimento contrário o de Montaigne o da vizinha da mulher que dá à luz e o de Molière até o século XVIII eles coexistiriam Foi somente no século XVIII com o surgimento do malthusianismo e a extensão das práticas contraceptivas que a ideia de desperdício necessário desapareceu O aparecimento do retrato da criança morta no século XVI marcou portanto um momento muito importante na história dos sentimentos Esse retrato seria inicialmente uma efígie funerária A criança no início não seria representada sozinha e sim sobre o túmulo de seus pais Os registros de Gaignières25 mostram a criança bem pequena e ao lado de sua mãe ou então aos pés de seus pais Esses túmulos são todos do século XVI 1503 1530 e 1560 Entre os túmulos curiosos da abadia de Westminster figura o da Marquesa de Winchester morta em 158626 A 58 Marquesa foi representada deitada em tamanho natural Na parte frontal do túmulo aparecem em pequena escala a estátua ajoelhada do Marquês seu marido e o minúsculo túmulo de uma criança morta Ainda em Westminster o Conde e a Condessa de Shrewsbury estão representados sobre um túmulo de 16151620 Estão deitados e sua filhinha aparece ajoelhada a seus pés com as mãos postas Observamos que as crianças que cercam os defuntos nem sempre estavam mortas era toda a família que se reunia em torno de seus chefes como no momento de recolher seu último suspiro Mas ao lado das crianças ainda vivas eram representadas crianças que já haviam morrido um sinal as distingue elas são menores e seguram nas mãos uma cruz como no túmulo de John Coke em Halkham 1639 ou uma caveira no túmulo de Cope DAyley em Hambledone 1633 quatro meninos e três meninas cercam os defuntos e um menino e uma menina seguram uma caveira No museu dos Augustins em Toulouse existe um tríptico muito curioso proveniente da coleção Du Mège27 Os painéis são datados de 1610 De cada lado de uma descida da cruz estão pintados os doadores ajoelhados um marido e uma mulher e sua idade Ambos têm 63 anos Ao lado do homem vemos uma criança vestida com o traje então usado pelas crianças de menos de cinco anos o vestido e o avental das meninas28 e uma grande touca enfeitada com plumas A criança está vestida com cores vivas e ricas verde brocado de ouro que acentuam a severidade das roupas pretas dos doadores Essa mulher de 63 anos não podia ter um filho de cinco Tratavase de uma criança morta sem dúvida um filho único cuja lembrança era guardada pelo velho casal eles quiseram mostrálo a seu lado em suas roupas mais bonitas Era um hábito piedoso oferecer às igrejas um quadro ou um vitral e no século XVI o doador costumava fazerse representar com toda a sua família Nas igrejas alemãs podemos ver ainda pendurados nas pilastras ou nas paredes numerosos quadros desse gênero que são de fato retratos de família Em um deles da segunda metade do século XVI na igreja de São Sebastião de Nurembergue vêse na frente o pai atrás dele dois filhos já grandes e a massa mal diferenciada de seis meninos amontoados escondendose uns atrás dos outros de tal forma que alguns são quase imperceptíveis Não seriam crianças mortas Um quadro semelhante datado de 1560 e conservado no museu de Bregenz traz nas bandeirolas as idades das crianças três meninos de um dois e três anos e cinco meninas de um dois três quatro e cinco anos Ora a mais velha de cinco anos tem o mesmo tamanho e a mesma roupa da menor de um ano Foilhe deixado um lugar na cena familiar como se ela fosse viva mas seu retrato a representava na idade em que morreu 59 Essas famílias alinhadas são obras ingênuas sem técnica monótonas e sem estilo seus autores assim como os modelos são desconhecidos e obscuros Nos casos porém em que o doador recorreu a um pintor famoso a questão muda de figura os historiadores da arte sempre realizam as pesquisas necessárias à identificação das personagens de uma tela célebre É o caso da família Meyer que Holbein representou em 1526 ao pé da Virgem Sabemos que das seis personagens da composição três estavam mortas em 1526 a primeira mulher de Jacob Meyer e seus dois filhos um morto aos 10 anos e o outro ainda menor estando este último nu Esse costume de fato tornouse comum do século XVI até meados do XVII O museu de Versalhes conserva um quadro de Norcret que representa as famílias de Luís XIV e de seu irmão a tela é célebre porque o Rei e os Príncipes ao menos os homens aparecem seminus como os deuses do Olimpo Gostaríamos de salientar aqui um detalhe ao pé de Luís XIV no primeiro plano Norcret pintou o retrato emoldurado de duas criancinhas mortas muito novas Inicialmente portanto a criança aparecia ao lado de seus pais nos retratos de família Já no fim do século XVI os registros de Gaignières apontam túmulos com efígies de crianças isoladas um deles data de 1584 e o outro de 1608 A criança é representada com o traje peculiar à sua idade de vestido e touca como a criança da descida da cruz do quadro de Toulouse Quando em um período de dois anos entre 1606 e 1607 Jaime I perdeu duas filhas uma com três dias e a outra com dois anos mandouas representar sobre seus túmulos de Westminster com todos os seus adereços e quis que a menor repousasse em um berço de alabastro em que todos os acessórios como as rendas da roupa e da touca fossem fielmente reproduzidos para dar a ilusão de realidade Uma inscrição indica bem o sentimento piedoso que dotava essa criança de três dias de uma personalidade definitiva Rosula Regia praepropera Fato decerpta parentibus erepta ut in Christi Rosario reflorescat Afora as efígies funerárias os retratos de crianças isoladas de seus pais continuaram raros até o fim do século XVI lembremos o retrato do Delfim Carlos Orlando pelo Maître des Moulins outro testemunho da piedade sentida pelas crianças desaparecidas cedo Por outro lado no início do século XVII esses retratos se tornaram muito numerosos e sentimos que se havia criado o hábito de conservar através da arte do pintor o aspecto fugaz da infância Nesses retratos a criança se separava da família como um século antes no início do século XVI a família se separara da parte religiosa do quadro do doador A criança agora era representada sozinha e por ela mesma esta foi a grande novidade do século XVII A criança seria um de seus modelos favoritos Os exemplos são abundantes entre 60 os pintores famosos Rubens Van Dyck Franz Hals Le Nain Philippe de Champaigne Alguns desses pintores retrataram pequenos príncipes como os filhos de Carlos I de Van Dyck ou os de Jaime II de Largillière Outros pintaram os filhos de grandes senhores como as três crianças de Van Dyck a mais velha das quais traz uma espada Outros ainda como Le Nain ou Philippe de Champaigne pintaram os filhos de burgueses ricos Algumas vezes uma inscrição fornece o nome e a idade da criança como era o costume antigo para os adultos Ora a criança está sozinha ver a obra de Philippe de Champaigne em Grenoble ora o pintor reúne várias crianças da mesma família Este último é um estilo de retrato banal repetido por muitos pintores anônimos e encontrado com frequência nos museus de província ou nos antiquários Cada família agora queria possuir retratos de seus filhos mesmo na idade em que eles ainda eram crianças Esse costume nasceu no século XVII e nunca mais desapareceu No século XIX a fotografia substituiu a pintura o sentimento não mudou Antes de encerrarmos o assunto retrato é importante mencionar as representações de crianças em exvotos que começam a ser descobertos aqui e acolá existem alguns no museu da catedral de Puy e a Exposição do século XVII de 1958 em Paris revelou uma surpreendente criança doente que também deve ser um exvoto Assim embora as condições demográficas não tenham mudado muito do século XIII ao XVII embora a mortalidade infantil se tenha mantido num nível muito elevado uma nova sensibilidade atribuiu a esses seres frágeis e ameaçados uma particularidade que antes ninguém se importava em reconhecer foi como se a consciência comum só então descobrisse que a alma da criança também era imortal É certo que essa importância dada à personalidade da criança se ligava a uma cristianização mais profunda dos costumes Esse interesse pela criança precedeu em mais de um século a mudança das condições demográficas que podemos datar aproximadamente da descoberta de Jenner Correspondências como a do General de Martange29 mostram que algumas famílias então fizeram questão de vacinar suas crianças Essa precaução contra a varíola traduzia um estado de espírito que deve ter favorecido também outras práticas de higiene provocando uma redução da mortalidade que em parte foi compensada por um controle da natalidade cada vez mais difundido Outra representação da criança desconhecida da Idade Média é o putto a criancinha nua O putto surgiu no fim do século XVI e sem a menor dúvida representou uma revivescência do Eros helenístico O tema da criança nua foi logo extremamente bem recebido até mesmo na França onde o italianismo encontrava certas resistências nativas O Duque de Berry30 de acordo com seus inventários 61 possuía uma chambre aux enfants ou um quarto das crianças ou seja um aposento ornado com tapeçarias decoradas com putti Van Marle se pergunta se algumas vezes os escribas dos inventários não chamavam de enfants aqueles anjinhos semipagãos aqueles putti que tantas vezes adornam a folhagem das tapeçarias da segunda metade do século XV No século XVI como sabemos muito bem os putti invadiram a pintura e se tornaram um motivo decorativo repetido ad nauseam Ticiano em particular usou e abusou dos putti lembremos o Triunfo de Vênus do Prado O século XVII não pareceu cansado do tema quer em Roma em Nápoles ou em Versalhes onde os putti ainda conservavam o antigo nome de marmousets A pintura religiosa tampouco escaparia deles graças à transformação do anjo adolescente medieval em putto Com exceção do anjo da guarda de agora em diante o anjo não seria mais o adolescente que ainda se vê nas telas de Botticelli ele também se transformara num pequeno Eros nu mesmo quando para satisfazer o pudor póstridentino sua nudez era encoberta por nuvens vapores ou véus A nudez do putto conquistou até mesmo o Menino Jesus e as outras crianças sagradas Quando a nudez completa repugnava ao artista ela era apenas tornada mais discreta Evitase vestir o Menino Jesus com muitas roupas ou cueiros era mostrado no momento em que sua mãe desenrolava seus cueiros31 ou então aparecia com os ombros e as pernas despidas Père du Colombier já observou a propósito das pinturas de Lucca della Robbia do Hôpital des Innocents que não era possível representar a infância sem evocarlhe a nudez32 O gosto pela nudez da criança evidentemente estava ligado ao gosto geral pela nudez clássica que começava a conquistar até mesmo o retrato Mas o primeiro durou mais tempo e conquistou toda a arte decorativa lembremonos de Versalhes ou do teto da Villa Borghese em Roma O gosto pelo putto correspondia a algo mais profundo do que o gosto pela nudez clássica a algo que deve ser relacionado com um amplo movimento de interesse em favor da infância Assim como a criança medieval criança sagrada ou alegoria da alma ou ser angélico o putto nunca foi uma criança real histórica nem no século XV nem no XVI Este fato é notável pois o tema do putto nasceu e se desenvolveu ao mesmo tempo que o retrato da criança Mas as crianças dos retratos dos séculos XV e XVI não são nunca ou quase nunca crianças nuas Ou estão enroladas em cueiros mesmo quando representadas de joelhos33 ou então vestem o traje próprio de sua idade e condição Não se imaginava a criança histórica mesmo muito pequena com a nudez da criança mitológica e ornamental e essa distinção persistiu durante muito tempo O último episódio da iconografia infantil seria a aplicação da nudez decorativa 62 do putto ao retrato da criança Isso aconteceu também no século XVII No século XVI já podemos apontar alguns retratos de crianças nuas Mas eles são raros um dos mais antigos talvez seja o da criança morta muito pequena da família Meyer pintada por Holbein 1521 não podemos nos impedir de pensar na alma medieval Em uma sala do palácio de Innsbruck existe também uma tela em que Maria Teresa quis reunir todos os seus filhos ao lado dos vivos uma princesa morta foi representada numa nudez pudicamente encoberta por drapeados Numa tela de Ticiano de 1571 ou 157534 Filipe II num gesto de oferenda estende à Vitória seu filho o infante Ferdinando completamente nu o menino lembra o putto usual de Ticiano e parece achar a situação muito engraçada os putti quase sempre são representados brincando Em 1560 Veronese pintou segundo o costume a família CucinaFiacco reunida diante da Virgem e o Menino três homens sendo um o pai uma mulher a mãe e seis filhos Na extrema direita uma mulher está quase cortada ao meio pelo limite do quadro ela segura no colo uma criança nua da mesma forma como a Virgem segura o Menino Jesus e essa semelhança é acentuada pelo fato de a mulher não estar vestindo o traje real de sua época Ela não é a mãe pois está afastada do centro da cena Seria a ama do filho mais novo35 Uma pintura do holandês P Aertsen do meado do século XVI representa uma família o pai um menino de aproximadamente cinco anos uma menina de quatro e a mãe sentada com uma criancinha no colo36 Certamente existem outros casos que uma pesquisa mais profunda revelaria não eram porém suficientemente numerosos para criar um gosto comum e geral No século XVII os exemplos tornaramse mais numerosos e característicos lembremos o retrato de Hélène Fourment de Munique segurando no colo o filho nu que se distingue do putto banal não só pela semelhança com a mãe mas também por uma touca com plumas do gênero então usado pelas crianças O último filho de Carlos I pintado por Van Dyck em 1637 aparece ao lado de seus irmãos e irmãs nu e semienvolto no lenços sobre o qual está deitado Ao representar em 1647 o banqueiro e colecionador Jabach em sua casa da Rua SaintMerri escreve Hautecoeur37 Le Brun mostranos esse homem poderoso vestido simplesmente com as meias mal esticadas comentando com a mulher e o filho sua última aquisição seus outros filhos estão presentes o mais novo nu como o Menino Jesus repousa sobre uma almofada e sua irmã brinca com ele O pequeno Jabach muito mais do que as crianças nuas de Holbein Veronese Ticiano Van Dyck e mesmo Rubens tem exatamente a mesma pose do bebê moderno diante da câmera de um fotógrafo de estúdio A nudez da criança 63 pequena daí em diante se tornaria uma convenção do gênero e todas as criancinhas que sempre haviam sido cerimoniosamente vestidas no tempo de Le Nain e Philippe de Champaigne seriam representadas nuas Essa convenção pode ser observada tanto na obra de Largillière pintor da altaburguesia como na de Mignard o pintor da corte o filho mais novo do grandedelfim do quadro de Mignard conservado no Louvre aparece nu sobre uma almofada ao lado de sua mãe tal como o pequeno Jabach A criança aparece ou completamente nua como no retrato do Conde de Toulouse de Mignard38 em que a nudez do menino é velada pela alça de uma fita desenrolada com esse fim ou no retrato de uma criança segurando uma foice de Largillière39 ou bem a criança aparece vestida não com uma roupa verdadeira semelhante ao traje usado na época mas com um négligé que não lhe cobre toda a nudez e a deixa intencionalmente transparecer vejamse os retratos de crianças de Belle em que as pernas e os pés aparecem nus ou o Duque de Borgonha de Mignard vestido apenas com uma camisa leve Não é necessário acompanharmos por mais tempo a história desse tema que se tornou convencional Reencontrálo emos finalmente nos álbuns de família e nas vitrinas dos fotógrafos de arte de ontem bebês mostrando suas pequenas nádegas apenas para a pose pois normalmente eram cuidadosamente cobertas com fraldas e cueiros e menininhos e menininhas vestidos para a fotografia apenas com uma camisa transparente Não havia uma criança cuja imagem não fosse conservada em sua nudez diretamente herdada dos putti do Renascimento singular persistência no gosto coletivo tanto burguês como popular de um tema que originalmente foi decorativo O Eros antigo redescoberto no século XV continuou a servir de modelo para os retratos artísticos dos séculos XIX e XX O leitor destas páginas sem dúvida terá notado a importância do século XVII na evolução dos temas da primeira infância Foi no século XVII que os retratos de crianças sozinhas se tornaram numerosos e comuns Foi também nesse século que os retratos de família muito mais antigos tenderam a se organizar em torno da criança que se tornou o centro da composição Essa concentração em torno da criança é particularmente notável no grupo familiar de Rubens40 em que a mãe segura a criança pelo ombro e o pai dálhe a mão e nos quadros de Franz Hals Van Dyck e Lebrun em que as crianças se beijam se abraçam e animam o grupo dos adultos sérios com suas brincadeiras e carinhos O pintor barroco apoiouse nas crianças para dar ao retrato de grupo o dinamismo que lhe faltava Também no século XVII a cena de gênero deu à criança um lugar privilegiado com inúmeras cenas de infância de caráter convencional a lição de leitura em que sobrevive sob 64 uma forma leiga o tema da lição da Virgem da iconografia religiosa dos séculos XIV e XV a lição de música ou grupos de meninos e meninas lendo desenhando e brincando Poderíamos continuar enumerando indefinidamente todos esses temas tão comuns na pintura sobretudo da primeira metade do século e a seguir na gravura Enfim como vimos foi na segunda metade do século XVII que a nudez se tornou uma convenção rigorosa nos retratos de crianças A descoberta da infância começou sem dúvida no século XIII e sua evolução pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos séculos XV e XVI Mas os sinais de seu desenvolvimento tornaramse particularmente numerosos e significativos a partir do fim do século XVI e durante o século XVII Esse fato é confirmado pelo gosto manifestado na mesma época pelos hábitos e pelo jargão das crianças pequenas Já assinalamos no capítulo anterior que as crianças receberam então novos nomes bambins pitchouns e fanfans Os adultos interessaramse também em registrar as expressões das crianças e em empregar seu vocabulário ou seja o vocabulário utilizado pelas amas quando estas lhes falavam É muito raro que a literatura mesmo popular conserve vestígios do jargão das crianças No entanto alguns desses vestígios são encontrados na Divina Comédia41 Que glória terás tu a mais se deixares uma carne envelhecida do que se tivesses morrido antes de parar de dizer pappo e dindi antes que mil anos se passassem Pappo significa pão A palavra existia no francês da época de Dante papin Encontramola num dos Miracles NotreDame o da criancinha que dá de comer à imagem de Jesus no colo de Nossa Senhora Assim colocoulhe o papin sobre a boca dizendo papez come bela e doce criança por favor Então ele comeu um pedaço de papin come criança disse o menino e que Deus te ajude Vejo que morres de fome Come um pouco do meu bolo ou de minha fogaça Mas a palavra papin seria realmente reservada à infância ou pertenceria à língua familiar do dia a dia Qualquer que seja a resposta os Miracles NotreDame assim como outros textos do século XIV revelam um gosto indiscutível pela infância real Isto não impede porém que as alusões ao jargão da infância tenham permanecido excepcionais antes do século XVII No século XVII elas tornamse abundantes Vejamos alguns exemplos entre as legendas de uma coletânea de gravuras de Bouzonnet e Stella datada de 165742 Essa coletânea contém uma série de pranchas gravadas que representam putti brincando Os desenhos não têm nenhuma originalidade mas as legendas escritas em versos de péssima qualidade falam o jargão da primeira infância e a gíria da juventude escolar pois na época os limites da primeira infância continuavam bastante imprecisos Alguns putti brincam com cavalos de pau título da prancha Le Dada o cavalinho 65 Des putti jouent aux dés lun est hors du jeu Et lautre sen voyant exclu du jeu Avec son toutou se console O papin dos séculos XIVXV deve ter caído em desuso ao menos no francês das crianças burguesas talvez pelo fato de não ser um termo específico da primeira infância Mas outros termos infantis surgiram e continuam vivos até hoje toutou auau e dada cavalinho Além do jargão das amas os putti falam também a gíria das escolas ou das academias militares O trenó Ce populo comme un César Se fait traîner dedans son char Populo latim de escola No mesmo sentido infantil Mme de Sévigné diria ao falar dos filhos de Mme de Grignan Ce petit peuple Um pequeno jogador fazse notar por sua astúcia Este cadet parece ter sorte Cadet termo usado nas academias onde no início do século XVII os jovens fidalgos aprendiam as armas a equitação e as artes da guerra No jogo da pela Aynsi nuds legers et dispos Les enfants dès quils ont campos Vont sescrimer de la raquete Avoir campos expressão das academias termo militar que significa obter licença Era uma expressão comum na língua familiar encontrada também em Mme de Sévigné No banho enquanto alguns nadam La plupart boivent sans manger A la santé des camarades Camarades o termo novo também ou no máximo datando do fim do século XVI devia ser de origem militar viria dos alemães dos mercenários de língua alemã e passou pelas academias Com o tempo porém ficaria reservado à língua familiar burguesa Até hoje não é usado na língua popular que prefere o termo mais antigo copain o compaing medieval 66 Mas voltemos ao jargão da primeira infância Em Le Pédant joué de Cyrano de Bergerac Granger chama seu filho de seu toutou Vem me dar um beijo vem meu toutou A palavra bonbon que suponho deve terse originado no jargão das amas entrou em uso assim como a expressão beau comme un ange belo como um anjo ou pas plus grand que cela deste tamanhinho empregadas por Mme de Sévigné Tentouse registrar até mesmo as onomatopeias da criança que ainda não sabe falar Mme de Sévigné por exemplo procurou anotar os ruídos emitidos por sua netinha para mostrálos a Mme de Grignan que estava então na Provença Ela fala de um modo engraçado e titola tetita y totata43 Já no início do século Heroard o médico de Luís XIII havia cuidadosamente anotado em seu diário as ingenuidades de seu pupilo seus balbucios e sua maneira de dizer vela em vez de voilà aqui está ou équivez em lugar de écrivez escreva Ao descrever sua netinha sua amiguinha Mme de Sévigné pinta cenas de gênero próximas das de Le Nain ou Bosse acrescentando porém a delicadeza dos gravadores do fim do século XVII e dos artistas do século XVIII Nossa menina é uma belezinha É morena e muito bonita Lá vem ela Dáme um beijo lambuzado mas nunca grita Ela me abraça me reconhece ri para mim e me chama só de Maman em vez de Bonne Maman Eu a amo muito Mandei cortar seus cabelos e ela agora usa um penteado solto Esse penteado é feito para ela Sua tez seu pescoço e seu corpinho são admiráveis Ela faz cem pequenas coisinhas faz carinhos bate faz o sinal da cruz pede desculpas faz reverência beija a mão sacode os ombros dança agrada segura o queixo enfim ela é bonita em tudo o que faz Distraiome com ela horas a fio44 Muitas mães e amas já se haviam sentido assim Mas nenhuma admitira que esses sentimentos fossem dignos de ser expressos de uma forma tão ambiciosa Essas cenas de infância literárias correspondem às cenas da pintura e da gravura de gênero da mesma época são descobertas da primeira infância do corpo dos hábitos e da fala da criança pequena 67 1 Evangeliário de Oto III Munique 2 Vie et miracle de Saint Nicolas Bibliothèque Nationale 3 Livro de salmos de São Luís de Leyde 4 Comparar a cena Deixai vir a mim as criancinhas do Evangeliário de Oto e da Bible moralisée de Saint Louis fo 505 5 Bible moralisée de Saint Louis fo 5 A de Laborde Bibles moralisées illustrées 1911 1921 4 vols de pranchas 6 Evangeliário da SainteChapelle cena reproduzida em H Martin La Miniature française pr VII 7 Exposição de bronzes sardos Bibliothèque Nationale 1954 no 25 pr XI 8 P du Colombier LEnfant au Moyen Age 1951 9 Miracles NotreDame Westminster ed A F Warner 1885 10 Manuscritos pintados dos séculos VII ao XII exposição da Bibliothèque Nationale 1954 no 330 pr XXX 11 Ver nota 5 deste capítulo 12 Ilíada da Biblioteca Ambrosiana de Milão 13 Rampilly 14 Ver nota 5 deste capítulo 15 Miroir dhumilité Valenciennes fo 18 início do século XV 16 Infra parte III cap 2 17 Gaignières Les Tombeaux 18 G Zaccagnini La Vita dei Maestri e degli scolari nella studio di Bologna Genebra 1926 pr IX X 19 Antes as representações de crianças nos túmulos eram excepcionais 20 Le Caquet de laccouchée 1622 21 Montaigne Essais II 8 22 Mme de Sévigné Lettres 19 de agosto de 1671 23 Merian Tabula Cebetis 1655 Cf R Lebègne Le Peintre Varin e Le Tableau de Cehes in Arts 1952 pp 167171 24 Montaigne Essais II 8 25 Gaignières Tombeaux 26 Fr Bond Westminster Abbey Londres 1909 27 Musée des Augustins no 465 do catálogo Os painéis são datados de 1610 28 Van Dyck K der K pr CCXIV 29 Correspondance inédite du général de Martange ed Breard 1893 30 Van Marle op cit I p 71 31 Baldovinetti A Virgem e o Menino Louvre 32 P du Colombier op cit 33 Virgem no Trono retrato presumido de Béatrice DEste 1496 34 Glorificação da Vitória de Lepanto Prado 35 Pinacoteca de Dresden 68 36 Reproduzido em H Gerson De nederlandse Shilderkunst 2 vols 1952 tomo I p 145 37 L Hautecoeur Les Peintres de la vie familiale 1945 p 40 38 Museu de Versalhes 39 Rouches Largillière peintre denfants Revue de lArt ancien et moderne 1923 p 253 40 Cerca de 1609 Karlsruhe Rubens ed Verlags p 34 41 Purgatório XI pp 103106 42 Cl Bouzonnet Jeux de lenfance 1657 segundo Stella Alguns putti jogam dados um está fora do jogo E o outro vendose excluído do jogo Com seu auau se consola N T Este populo como um César Fazse puxar em seu carro N T Despidas leves e dispostas As crianças assim que ont campos Vão esgrimir com a raquete N T A maioria bebe sem comer À saúde dos camarades N T 43 Mme de Sévigné Lettres 8 de janeiro de 1672 44 Dezoito de setembro de 1671 22 de dezembro de 1671 20 de maio de 1672 69 A 3 O Traje das Crianças indiferença marcada que existiu até o século XIII a não ser quando se tratava de Nossa Senhora menina pelas características próprias da infância não aparece apenas no mundo das imagens o traje da época comprova o quanto a infância era então pouco particularizada na vida real Assim que a criança deixava os cueiros ou seja a faixa de tecido que era enrolada em torno de seu corpo ela era vestida como os outros homens e mulheres de sua condição Para nós é difícil imaginar essa confusão nós que durante tanto tempo usamos calças curtas hoje sinal vergonhoso de uma infância retardada Na minha geração os meninos deixavam as calças curtas no fim do 2o ano colegial após uma certa pressão sobre pais recalcitrantes meus pais por exemplo pediamme paciência citando o caso de um tio general que entrara para a academia militar de calças curtas Hoje em dia a adolescência se expandiu para trás e para a frente e o traje esporte adotado tanto pelos adolescentes como pelas crianças tende a substituir as roupas típicas da infância do século XIX e início do século XX Em todo o caso se o período 1900 1920 prolongava ainda até muito tarde no jovem adolescente as particularidades de um traje reservado à infância a Idade Média vestia indiferentemente todas as classes de idade preocupandose apenas em manter visíveis através da roupa os degraus da hierarquia social Nada no traje medieval separava a criança do adulto Não seria possível imaginar atitudes mais diferentes com relação à infância No século XVII entretanto a criança ou ao menos a criança de boa família quer fosse nobre ou burguesa não era mais vestida como os adultos Ela agora tinha um traje reservado à sua idade que a distinguia dos adultos Esse fato essencial aparece logo ao primeiro olhar lançado às numerosas representações de crianças do início do século XVII Consideremos a bela tela de Philippe de Champaigne do museu de Reims que representa os sete filhos da família Harbert O filho mais velho tem dez anos e o mais moço oito meses Essa pintura é preciosa para nosso estudo pois o artista inscreveu a idade precisa incluindo os meses de cada um de seus modelos O mais velho de dez anos já se veste como um homenzinho envolto em sua capa na 70 aparência pertence ao mundo dos adultos Apenas na aparência sem dúvida pois ele deve frequentar os cursos de um colégio e a vida escolar prolonga a idade da infância Mas o menino certamente não continuará no colégio por muito tempo e o deixará para se misturar aos homens cujo traje já veste e de cuja vida logo partilhará nos campos militares nos tribunais ou no comércio Mas os dois gêmeos que estão afetuosamente de mãos dadas e ombros colados têm apenas quatro anos e nove meses eles não estão mais vestidos como adultos Usam um vestido comprido diferente daqueles das mulheres pois é aberto na frente e fechado ora com botões ora com agulhetas mais parece uma sotaina eclesiástica Esse mesmo vestido é encontrado no quadro da Vida Humana de Cebes1 Aí a primeira idade ainda mal saída do não ser está nua as duas idades seguintes estão enroladas em cueiros A terceira que deve ter por volta de dois anos e ainda não fica de pé sozinha já usa um vestido e sabemos que se trata de um menino A quarta idade montada em seu cavalo de pau usa o mesmo vestido comprido aberto e abotoado na frente como uma sotaina dos gêmeos Harbert de Philippe de Champaigne Esse vestido foi usado pelos meninos pequenos durante todo o século XVII Encontramolo em Luís XIII menino em inúmeros retratos de crianças franceses ingleses e holandeses e até no início do século XVIII como por exemplo no jovem de Bethisy2 pintado por Belle por volta de 1710 Neste último quadro o vestido do menino não é mais abotoado na frente mas continua diferente do das meninas e não comporta acessórios de fazenda branca Esse vestido pode ser muito simples como o da criança montada a cavalo do quadro da Vida Humana Mas pode também ser suntuoso e terminar por uma cauda como o do jovem Duque de Anjou da gravura de Arnoult3 Esse vestido em forma de sotaina não era a primeira roupa da criança depois que ela deixava os cueiros Voltemos ao retrato das crianças Habert de Philippe de Champaigne François que tem um ano e 11 meses e o caçula de oito meses vestemse ambos exatamente como sua irmã ou seja como duas mulherzinhas saia vestido e avental Este era o traje dos meninos menores Tornarase hábito no século XVI vestilos como meninas e estas por sua vez continuavam a se vestir como as mulheres adultas A separação entre crianças e adultos ainda não existia no caso das mulheres Erasmo em Le Mariage chrétien4 nos dá uma descrição desse traje que o seu editor francês de 1714 traduziu sem dificuldade como coisa que persistia em sua época Colocase nas crianças uma camisola curta meias bem quentes uma anágua grossa e o vestido de cima que tolhe os ombros e os quadris com uma grande quantidade de tecido e pregas e dizse a elas que toda essa tralha lhes dá um ar maravilhoso Erasmo denunciava essa moda nova em sua época e preconizava maior liberdade para os jovens corpos sua opinião porém não 71 prevaleceu contra os costumes e foi preciso esperar o fim do século XVIII para que o traje da criança se tornasse mais leve mais folgado e a deixasse mais à vontade Um desenho de Rubens5 mostranos um traje de um menino pequeno ainda parecido com o de Erasmo o vestido aberto sob o qual aparece a saia A criança está começando a andar e é segura por tiras que pendem em suas costas No diário de Heroard que nos permite acompanhar dia a dia a infância de Luís XIII lemos sob a data de 28 de junho de 1602 Luís XIII tinha então nove meses6 Foram colocadas tiras à guisa de guias em seu vestido para lhe ensinar a andar O mesmo Luís XIII não gostava que sua irmã usasse um vestido parecido com o seu Madame chegou com um vestido igual ao dele e ele a mandou embora com ciúmes Enquanto os meninos usavam esse traje feminino diziase que eles estavam à la bavette ou seja eram crianças de babador Isto durava até por volta de quatrocinco anos Jean Rou que nasceu em 16387 conta em suas memórias que teve uma infância precoce e que foi enviado ao colégio de Harcourt acompanhado de uma criada Quando eu ainda estava à la bavette ou seja quando ainda não usava o vestido comprido com gola que precedia as calças justas pelos joelhos eu era o único ridiculamente vestido da maneira como acabo de descrever ou seja vestido de menina de sorte que era como uma espécie de novo fenômeno naquele lugar que nunca havia ocorrido antes A gola do vestido era uma gola de homem Os costumes dessa época em diante ditaram regras de vestir para as crianças de acordo com sua idade primeiro o vestido das meninas e depois o vestido comprido com gola que também era chamado de jaquette O regulamento de uma pequena escola ou escola paroquial de 16548 determinava que aos domingos as crianças fossem levadas à igreja para assistir à missa após a instrução religiosa e que não se misturassem os pequenos e os grandes ou seja os vestidos curtos e os vestidos compridos Os pequenos de jaquette deverão ser colocados todos juntos O diário da infância de Luís XIII que Heroard mantinha mostra a seriedade com que então se começou a tratar o traje da criança a roupa tornava visíveis as etapas do crescimento que transformava a criança em homem Essas etapas outrora despercebidas haviamse tornado espécies de ritos que era preciso respeitar e que Heroard registrava cuidadosamente como questões importantes Em 17 de julho de 1602 foram colocadas tiras à guisa de guias no vestido do Delfim Ele as usaria durante mais de dois anos aos três anos e dois meses ele recebeu o primeiro vestido sem guias O menino ficou encantado e disse ao capitão da guarda Capitão não tenho mais guias vou andar sozinho Alguns meses antes ele abandonara o berço e passara a dormir numa cama era uma etapa No seu aniversário de quatro anos usou calças justas pelos joelhos por baixo do vestido e 72 um ano mais tarde em 7 de agosto de 1606 foilhe retirada a touca de criança e ele recebeu o chapéu dos homens Esta também foi uma data importante Agora que deixais vossa touca não sereis mais uma criança começais a vos tornar homem 7 de agosto de 1606 Mas seis dias depois a Rainha mandou que lhe pusessem novamente a touca Oito de janeiro de 1607 Ele pergunta quando começará a usar as calças justas pelos joelhos em lugar do vestido Mme de Montglas lhe diz que será quando tiver oito anos A 6 de junho de 1608 quando Luís tinha sete anos e oito meses Heroard registrou com certa solenidade Hoje ele foi vestido com um gibão e calças pelos joelhos deixou o traje da infância ou seja o vestido e recebeu a capa e a espada como o mais velho dos pequenos Habert de Philippe de Champaigne Algumas vezes entretanto colocavamlhe novamente o vestido como já haviam feito com a touca mas ele detestava isso quando vestia o gibão e as calças pelos joelhos ficava extremamente contente e alegre e não queria pôr o vestido Os hábitos de vestir portanto não são apenas uma frivolidade A relação entre o traje e a compreensão daquilo que ele representa está aqui bem marcada Nos colégios os semiinternos usavam o vestido por cima das calças justas até os joelhos Os diálogos de Cordier9 do fim do século XVI descrevemnos o despertar de um aluno interno Depois de acordar levanteime da cama vesti meu gibão e minha capa curta senteime em um banco peguei minhas calças até os joelhos e minha meia vestias peguei meus sapatos prendi minhas calças em meu gibão com agulhetas prendi minha meia com ligas abaixo dos joelhos peguei o cinto penteei os cabelos peguei o gorro e o coloquei com cuidado vesti meu vestido e depois saí do quarto Em Paris no início do século XVII10 Imaginem portanto Francion entrando na classe com as ceroulas saindo por baixo de suas calças até os joelhos e descendo até os sapatos o vestido colocado torto e a pasta embaixo do braço tentanto dar uma fruta podre a um e um piparote no nariz de outro No século XVIII o regulamento do internato de La Flèche dizia que o enxoval dos alunos devia incluir um vestido de interno que devia durar dois anos11 Essa diferenciação de trajes não era observada nas meninas Estas como os meninos de outrora do momento em que deixavam os cueiros eram logo vestidas como mulherzinhas Contudo se olharmos de perto as representações de crianças do século XVII notaremos que o traje feminino tanto dos meninos pequenos como das meninas pequenas comportava um ornamento singular que não era encontrado no traje das mulheres duas fitas largas presas ao vestido atrás dos dois 73 ombros pendentes nas costas Vemos essas fitas de perfil na terceira criança Habert a partir da esquerda na quarta idade da Tabula Cebetis a criança de vestido brincando com o cavalo de pau e na menina de dez anos da escala das idades do início do século XVIII miséria humana ou as paixões da alma em todas as suas idades para limitar nossos exemplos às imagens já comentadas aqui Observamolas com frequência em numerosos retratos de crianças até Lancret e Boucher Elas desaparecem no fim do século XVIII época em que o traje da criança se transforma Um dos últimos retratos de criança com as fitas nas costas talvez seja o que Mme Gabrielle Guiard pintou para Mesdames Adelaide e Victoire em 178812 O retrato representa a irmã destas a Infanta que havia morrido cerca de 30 anos atrás A Infanta tinha vivido 32 anos Mme Gabrielle Guiard a representou contudo como uma criança ao lado de sua ama e essa preocupação em conservar a lembrança de uma mulher de trinta anos levandoa de volta ao tempo de sua infância revela um sentimento inteiramente novo A Infanta criança tem bem visíveis as fitas das costas que ainda se usavam por volta de 1730 mas que haviam passado de moda no momento em que o quadro foi pintado Portanto no século XVII e início do XVIII essas fitas nas costas haviamse tornado signos da infância tanto para os meninos como para as meninas Os estudiosos modernos sem dúvida ficaram intrigados com esse apêndice do vestuário reservado à infância Eles foram confundidos com as guias as tiras das costas das roupas das crianças pequenas que ainda não andavam com firmeza13 No pequeno museu da abadia de Westminster foram expostas algumas efígies mortuárias de cera que representavam o morto e que eram colocadas sobre o ataúde durante as cerimônias fúnebres uma prática medieval que se manteve na Inglaterra até cerca de 1740 Uma dessas efígies representa o pequeno marquês de Normamby morto aos três anos de idade ele está vestido com uma saia de seda amarela recoberta por um vestido de veludo o traje das crianças pequenas e usa essas fitas chatas da infância que o catálogo descreve como guias Na realidade as guias eram cordinhas que não se pareciam com essas fitas Uma gravura de Guérard ilustrando a idade viril mostranos uma criança menina ou menino usando um vestido penteada à la Fontange e vista de costas entre as duas fitas que pendem dos ombros vêse claramente a cordinha que servia para ajudar a criança a andar14 Essa análise nos permitiu descobrir alguns hábitos de vestuário próprios da infância que eram adotados comumente no final do século XVI e que foram conservados até o fim do século XVIII Esses hábitos que distinguiam o traje das crianças do traje dos adultos revelam uma nova preocupação desconhecida da Idade Média de isolar as crianças de separálas através de uma espécie de 74 uniforme Mas qual é a origem desse uniforme da infância O vestido das crianças nada mais é do que o traje longo da Idade Média dos séculos XII e XIII antes da revolução que o substituiu no caso dos homens pelo traje curto com calças aparentes ancestrais do nosso traje masculino atual Até o século XIV todo o mundo usava um vestido ou túnica mas a túnica dos homens não era a mesma das mulheres Geralmente era mais curta ou então aberta na frente Nos camponeses dos calendários do século XIII ela parava nos joelhos enquanto nas grandes personagens veneráveis descia até os pés Houve em suma um longo período em que os homens usaram um traje justo e longo que se opunha ao traje drapeado tradicional dos gregos ou dos romanos o traje longo continuava os hábitos dos bárbaros gauleses ou orientais que se haviam introduzido na moda romana nos primeiros séculos de nossa era Ele foi uniformemente adotado tanto no Ocidente como no Oriente o traje turco também teve origem na túnica longa A partir do século XIV os homens abandonaram a túnica longa pelo traje curto e até mesmo colante para o desespero dos moralistas e dos pregadores que denunciavam a indecência dessas modas sinais da imoralidade dos tempos De fato as pessoas respeitáveis continuaram a usar a túnica longa respeitáveis por sua idade até o início do século XVII os anciãos são representados vestindo a túnica longa ou por sua condição magistrados estadistas eclesiásticos Alguns nunca deixaram de usar o traje longo e o usam até hoje ao menos em certas ocasiões os advogados os magistrados os professores os eclesiásticos Os eclesiásticos aliás quase o abandonaram pois quando o traje curto se impôs definitivamente e quando no século XVII já se havia completamente esquecido o escândalo de sua origem a sotaina do eclesiástico tornouse muito ligada à função eclesiástica para ser um traje de bomtom Os padres tiravam a batina para se apresentar em sociedade ou mesmo diante de seu Bispo da mesma forma como os oficiais tiravam o traje militar para aparecer na corte15 As crianças também conservaram o traje longo ao menos as de boa condição Uma miniatura dos Miracles NotreDame16 do século XV representa uma família reunida em torno do leito da mãe que acaba de dar à luz o pai veste um traje curto com calças justas e gibão mas as três crianças usam um vestido comprido Na mesma série a criança que dá de comer ao Menino Jesus usa um vestido aberto do lado Na Itália ao contrário a maioria das crianças dos artistas do quattrocento usa as calças colantes dos adultos Na França e na Alemanha parece que essa moda não foi bemaceita e que se manteve o traje longo para as crianças No início do século XVI esse hábito foi consagrado e tornouse regra geral as crianças sempre usavam o vestido comprido Algumas tapeçarias alemãs dessa época mostram 75 crianças de quatro anos de vestido longo aberto na frente17 Algumas gravuras francesas de Jean Leclerc18 que têm como tema os jogos infantis mostram crianças usando por cima das calças justas o vestido abotoado na frente que se tornou assim o uniforme de sua idade As fitas chatas nas costas que no século XVII também distinguiam as crianças fossem meninos ou meninas têm a mesma origem do vestido comprido As capas e túnicas do século XVI muitas vezes tinham mangas que se podiam vestir ou deixar pendentes Na gravura de Leclerc que representa crianças jogando víspora podemos ver algumas dessas mangas presas apenas por alguns pontos As pessoas elegantes e sobretudo as mulheres elegantes gostaram do efeito dessas mangas pendentes Como não eram mais vestidas essas mangas tornaramse ornamentos sem utilidade e se atrofiaram como órgãos que deixam de funcionar perderam a cavidade interna por onde passava o braço e achatadas lembraram duas fitas largas presas atrás dos ombros As fitas das crianças dos séculos XVII e XVIII são os últimos restos das falsas mangas do século XVI Essas mangas atrofiadas também são encontradas aliás em outros trajes tanto populares como cerimoniais na túnica camponesa que os irmãos Ignorantinhos adotaram como traje religioso no início do século XVIII nos primeiros trajes propriamente militares como os dos mosqueteiros na libré dos lacaios e finalmente no traje de pajem ou seja no traje de cerimônia das crianças e dos meninos de boa família que eram confiados a outras famílias para as quais prestavam certos serviços domésticos Esses pajens do tempo de Luís XIII usavam calças bufantes no estilo do século XVI e falsas mangas pendentes Esse traje de pajem tendia a se tornar o traje de cerimônia usado em sinal de honra e de respeito numa gravura de Lepautre19 veemse meninos vestidos com o traje arcaizante de pajem ajudando a missa Mas esses trajes de cerimônia eram mais raros enquanto a fita chata era encontrada nos ombros de todas as crianças meninos e meninas nas boas famílias quer fossem nobres ou burgueses Assim para distinguir a criança que antes se vestia como os adultos foram conservados para seu uso exclusivo traços dos trajes antigos que os adultos haviam abandonado algumas vezes há longo tempo Esse foi o caso do vestido ou túnica longa e das mangas falsas Foi o caso também da touca usada pelas criancinhas de cueiros no século XIII a touca ainda era o gorro masculino normal que prendia os cabelos dos homens durante o trabalho como podemos ver nos calendários de NotreDame dAmiens e outros O primeiro traje das crianças foi o traje usado por todos cerca de um século antes e que em um determinado momento elas passaram a ser as únicas a envergar Evidentemente não se podia inventar do nada uma roupa para as 76 crianças Mas sentiase a necessidade de separálas de uma forma visível através do traje Escolheuse então para elas um traje cuja tradição fora conservada em certas classes mas que ninguém mais usava A adoção de um traje peculiar à infância que se tornou geral nas classes altas a partir do fim do século XVI marca uma data muito importante na formação do sentimento da infância esse sentimento que constitui as crianças numa sociedade separada da dos adultos de um modo muito diferente dos costumes iniciatórios Não devemos esquecer a importância que o traje tinha na França antiga Muitas vezes ele representava um capital elevado Gastavase muito com roupas e quando alguém morria tinhase o trabalho de fazer o inventário dos guardaroupas como hoje o faríamos apenas com relação a casacos de peles As roupas custavam muito caro e havia tentativas de frear através de leis suntuárias o luxo do vestuário que arruinava alguns e permitia a outros dissimular seu estado social e seu nascimento Mais que em nossas sociedades contemporâneas onde isso ainda se aplica às mulheres cuja roupa é o sinal aparente e necessário da prosperidade da família da importância de uma posição social o traje representava com rigor o lugar daquele que o vestia numa hierarquia complexa e indiscutida Cada um usava o traje de sua condição social os manuais de civilidade insistiam muito na indecência que haveria se as pessoas se vestissem de maneira diferente de como deveriam de acordo com sua idade ou seu nascimento Cada nuança social era traduzida por um signo especial no vestuário No fim do século XVI o costume decidiu que a criança agora reconhecida como uma entidade separada tivesse também seu traje particular Observamos que na origem do traje infantil havia um arcaísmo a sobrevivência da túnica longa Essa tendência ao arcaísmo subsistiu no fim do século XVIII na época de Luís XVI os meninos pequenos eram vestidos com golas no estilo Luís XIII ou Renascimento As crianças pintadas por Lancret e Boucher frequentemente são representadas vestidas segundo a moda do século anterior Mas a partir do século XVII duas outras tendências iriam orientar a evolução do traje infantil A primeira acentuou o aspecto efeminado do menino pequeno Vimos acima que o menino à la bavette antes do vestido com gola usava o vestido e a saia das meninas Essa efeminação do menino pequeno observado já em meados do século XVI de início foi uma coisa nova apenas indicada por alguns poucos traços Por exemplo no começo a parte de cima da roupa do menino conservava as características do traje masculino Mas logo o menino pequeno recebeu a gola de rendas das meninas que era exatamente igual à das senhoras Tornouse impossível distinguir um menino de uma menina antes dos quatro ou cinco anos e esse hábito se fixou de maneira definitiva durante cerca de 77 dois séculos Por volta de 1770 os meninos deixaram de usar o vestido com gola aos quatrocinco anos Antes dessa idade porém eles eram vestidos como meninas e isso continuaria até o fim do século XIX o hábito de efeminar os meninos só desapareceria após a Primeira Guerra Mundial e seu abandono deve ser relacionado com o abandono do espartilho das mulheres uma revolução do traje que traduz a mudança dos costumes É curioso notar também que a preocupação em distinguir a criança se tenha limitado principalmente aos meninos as meninas só foram distinguidas pelas mangas falsas abandonadas no século XVIII como se a infância separasse menos as meninas dos adultos do que os meninos A indicação fornecida pelo traje confirma os outros testemunhos da história dos costumes os meninos foram as primeiras crianças especializadas Eles começaram a frequentar em massa os colégios já no fim do século XVI e início do XVII O ensino das meninas começou apenas na época de Fénelon e de Mme de Maintenon e só se desenvolveu tarde e lentamente Sem uma escolaridade própria as meninas eram muito cedo confundidas com as mulheres como outrora os meninos eram confundidos com os homens e ninguém pensava em tornar visível através do traje uma distinção que começava a existir concretamente para os meninos mas que ainda continuava inútil no caso das meninas Por que a fim de distinguir o menino dos homens se assimilava o primeiro às meninas que não eram distinguidas das mulheres Por que esse costume tão novo e tão surpreendente em uma sociedade em que se entrava cedo na vida durou quase até nossos dias ou ao menos até o início do século XX apesar das transformações dos costumes e do prolongamento do período da infância Tocamos aqui no campo ainda inexplorado da consciência que uma sociedade toma de seu comportamento com relação à idade e ao sexo até hoje só se estudou sua consciência de classe Outra tendência que assim como o arcaísmo e a efeminação certamente também nasceu do gosto pelo disfarce levou as crianças de família burguesa a adotar traços do traje das classes populares ou do uniforme de trabalho Aqui a criança precederia a moda masculina e usaria calças compridas já durante o reinado de Luís XVI antes da época dos sansculottes O traje da criança bem vestida da época de Luís XVI era ao mesmo tempo arcaizante gola Renascimento popular calças compridas e militar túnica e botões do uniforme militar No século XVII não existia um traje propriamente popular e tampouco havia a fortiori trajes regionais Os pobres usavam as roupas que lhes davam20 ou que compravam em belchiores A roupa do povo era uma roupa de segundamão a comparação entre a roupa de ontem e o automóvel de hoje não é tão retórica como 78 parece o carro herdou parte do sentido social que a roupa tinha e praticamente perdeu Logo o homem do povo se vestia segundo a moda do homem de sociedade de algumas décadas atrás nas ruas da Paris de Luís XIII ele usava o gorro de plumas do século XVI enquanto as mulheres usavam a touca que estivera na moda na mesma época Esse atraso variava de uma região para a outra segundo a presteza com que a boa sociedade local seguia a moda do dia No início do século XVIII as mulheres de certas regiões como as margens do Reno por exemplo ainda usavam toucas do século XV Durante o século XVIII essa evolução se interrompeu e fixouse em consequência de um afastamento moral mais acentuado entre os ricos e os pobres e de uma separação física que sucedeu a uma promiscuidade milenar O traje regional originouse ao mesmo tempo de um gosto novo pelo regionalismo era a época das grandes histórias regionais da Bretanha da Provença etc e de um ressurgimento do interesse pelas línguas regionais que se haviam transformado em dialetos em virtude do progresso do francês e das diferenças reais dos trajes provocadas pela variação de prazos com que as modas da cidade e da corte alcançavam cada população e cada região Nos grandes subúrbios populares no fim do século XVIII os homens começaram a usar um traje mais específico as calças compridas que equivaliam então ao avental do operário do século XIX e ao macacão de hoje signos de uma condição social e de uma função É interessante notar que no século XVIII o traje do povo das grandes cidades deixou de ser a roupa indigente do século XVII o andrajo informe e anacrônico ou a roupa usada do belchior Devemos ver aí a expressão espontânea de uma particularidade coletiva algo próximo de uma tomada de consciência de classe Surge portanto um modo de vestir próprio do artesão as calças compridas As calças compridas há muito tempo era o traje dos homens do mar Quando apareciam na comédia italiana geralmente eram usadas pelos marinheiros e pelos habitantes do litoral flamengos renanos dinamarqueses e escandinavos Estes últimos ainda as usavam no século XVII a julgar pelas coleções de trajes dessa época Os ingleses as haviam abandonado mas já as conheciam no século XII21 As calças compridas se tornaram o uniforme das marinhas de guerra quando os Estados mais organizados definiram a vestimenta de suas tropas e de suas tripulações Daí ao que parece elas passaram ao povo dos subúrbios populares a quem já repugnava usar os andrajos dos mendigos e aos meninos pequenos de boa condição social O uniforme recémcriado foi rapidamente adotado pelas crianças burguesas primeiro nos internatos particulares que se haviam tornado mais numerosos após a expulsão dos jesuítas e que muitas vezes preparavam meninos para as academias e as carreiras militares A silhueta agradou e os adultos passaram a vestir seus 79 meninos com um traje inspirado no uniforme militar ou naval assim se criou o tipo do pequeno marinheiro que persistiu do fim do século XVIII até nossos dias A adoção das calças compridas para as crianças foi em parte uma consequência desse novo gosto pelo uniforme que iria conquistar os adultos no século XIX época em que o uniforme se tornou um traje de gala e de cerimônia algo que jamais havia sido antes da Revolução Foi inspirada também sem dúvida pela necessidade de liberar a criança do incômodo que lhe impunha seu traje tradicional de lhe dar uma roupa mais desalinhada E esse desalinho daí em diante seria exibido pelo povo dos subúrbios com uma espécie de orgulho Graças às calças compridas do povo e dos marinheiros os meninos se libertaram tanto do vestido comprido fora de moda e demasiado infantil como das calças justas até os joelhos demasiado cerimoniosas Aliás sempre se havia achado divertido dar às crianças de boa família algumas características do traje popular como o barrete dos trabalhadores dos camponeses e mais tarde dos forçados que os revolucionários com seu gosto clássico batizaram de barrete frígio uma gravura de Bonnard mostranos uma criança com esse barrete22 Em nossos dias assistimos a uma transferência de traje que apresenta algumas semelhanças com a adoção das calças compridas para os meninos no tempo de Luís XVI o macacão do trabalhador e as calças de lona azul tornaramse os blue jeans que os jovens usam com orgulho como o signo visível de sua adolescência Assim partindo do século XIV em que a criança se vestia como os adultos chegamos ao traje especializado da infância que hoje nos é familiar Já observamos que essa mudança afetou sobretudo os meninos O sentimento da infância beneficiou primeiro meninos enquanto as meninas persistiram mais tempo no modo de vida tradicional que as confundia com os adultos seremos levados a observar mais de uma vez esse atraso das mulheres em adotar as formas visíveis da civilização moderna essencialmente masculina Se nos limitarmos ao testemunho fornecido pelo traje concluiremos para a particularização da infância durante muito tempo se restringiu aos meninos O que é certo é que isso aconteceu apenas nas famílias burguesas ou nobres As crianças do povo os filhos dos camponeses e dos artesãos as crianças que brincavam nas praças das aldeias nas ruas das cidades ou nas cozinhas das casas continuaram a usar o mesmo traje dos adultos jamais são representadas usando vestido comprido ou mangas falsas Elas conservaram o antigo modo de vida que não separava as crianças dos adultos nem através do traje nem através do trabalho nem através dos jogos e brincadeiras 80 1 Tabula Cebetis gravura de Merian Cf Lebègue op cit 2 Museu de Versalhes Catherine de Bethisy e Seu Irmão 3 Arnoult Le duc dAnjou enfant gravura Cabinet des Estampes infolio Ed 101 vol I fo 51 4 Erasmo Le Mariage chrétien tradução francesa de 1714 5 Desenho do Louvre reproduzido em A Michel Histoire de lArt VI p 301 fig 194 6 Journal dHeroard publicado por E Soulié e E de Barthelemy 2 vols 1868 7 Mémoires de Jean Rou 16381711 publicadas por F Waddington 1857 8 Escole paroissiale ou la manière de bien instruire les enfants dans les petites écoles par um prestre dune paroisse de Paris 1654 9 Mathurin Cordier Colloques 1586 10 No colégio de Lisieux G Sorel Histoire comique de Francion publicada por E Roy 1926 11 C de Rochémonteix Le Collège Henri IV de La Fléche 1889 12 Gabrielle Guiard Portrait de Madame Infante pour Mesdames 1788 museu de Versalhes 13 Louis XV en 1715 tenu en lisière par Mme de Ventadour gravura Cabinet des Estampes pet fol E e 3a 14 Lâge viril gravura de Guérard cerca de 1700 15 Mme de Sévigné 1o de abril de 1672 16 Miracles NotreDame Westminster ed G F Warner 1885 vol I p 58 17 H Gobel Wandteppiche 1923 vol I prancha CLXXXII 18 Jean Leclerc Les TrenteSix Figures contenant tous les jeux 1587 19 Lepautre gravura Cabinet des Estampes Ed 43 fol p 11 Nome dado aos revolucionários republicanos da Revolução Francesa N T 20 Jeam de Bray 1663 Une distribuition de vêtements H Gerson I no 50 21 Evangeliário de Santo Edmundo Millar La Miniature Anglaise 1926 prancha XXXV 22 Cabinet des Estampes 0 a 50 pet fol fo 137 81 G 4 Pequena Contribuição à História dos Jogos e das Brincadeiras raças ao diário do médico Heroard podemos imaginar como era a vida de uma criança no início do século XVII como eram suas brincadeiras e a que etapas de seu desenvolvimento físico e mental cada uma delas correspondia Embora essa criança fosse um Delfim de França o futuro Luís XIII seu caso permanece típico pois na corte de Henrique IV as crianças reais legítimas ou bastardas recebiam o mesmo tratamento que todas as outras crianças nobres não existindo ainda uma diferença absoluta entre os palácios reais e os castelos fidalgos A não ser pelo fato de nunca ter ido ao colégio frequentado já por uma parte da nobreza o jovem Luís XIII foi educado como seus companheiros Recebeu aulas de manejo de armas e de equitação do mesmo M de Pluvinel que em sua academia formava a juventude nobre nas artes da guerra As ilustrações do manual de equitação de M de Pluvinel as belas gravuras de C de Pos mostram o jovem Luís XIII exercitandose a cavalo Na segunda metade do século XVII isso já não acontecia mais o culto monárquico separava mais cedo na realidade desde a primeira infância o pequeno príncipe dos outros mortais mesmo os de berço nobre Luís XIII nasceu a 27 de setembro de 1601 Seu médico Heroard deixounos um registro minucioso de todos os seus feitos e gestos1 Com um ano e cinco meses Heroard registra que o menino toca violino e canta ao mesmo tempo Antes ele se contentava com os brinquedos habituais dos pequeninos como o cavalo de pau o catavento ou o pião Com um ano e meio porém já lhe colocam um violino nas mãos o violino ainda não era um instrumento nobre era a rebeca que acompanhava as danças nas bodas e nas festas das aldeias De toda forma percebese a importância do canto e da música nessa época Ainda com a mesma idade o menino joga malha Num jogo de malha o Delfim errou o lance e feriu M de Longueville Isso equivaleria a vermos hoje um inglesinho começando a jogar críquete ou golfe com um ano e meio de idade Com 82 um ano e dez meses somos informados de que o Delfim continua a tocar seu pequeno tambor com todos os tipos de toques cada companhia tinha seu tambor e sua marcha própria Começam a lhe ensinar a falar Fazemno pronunciar as sílabas separadamente antes de dizer as palavras Nesse mesmo mês de agosto de 1603 ao ir jantar a Rainha manda buscálo e colocálo na ponta de sua mesa As gravuras e as pinturas dos séculos XVI e XVII muitas vezes representam uma criança na mesa encarapitada e bem presa numa cadeirinha alta deve ter sido de uma dessas cadeiras altas que o Delfim assistiu à refeição de sua mãe como tantas outras crianças em tantas outras famílias O menino tem apenas dois anos e eis que levado ao gabinete do Rei dança ao som do violino todos os tipos de danças Mais uma vez observamos a precocidade da música e da dança na educação dos meninos dessa época isso explica a frequência entre as famílias de profissionais daquilo que hoje chamaríamos de criançasprodígio como o pequeno Mozart esses casos se tornariam mais raros e ao mesmo tempo pareceriam mais prodigiosos à medida que a familiaridade com a música mesmo em suas formas elementares ou bastardas se atenuou ou desapareceu O Delfim comesça a falar Contar papai em lugar de Vou contar a papai Equivez em vez de écrivez Muitas vezes também ele é surrado Como se comportasse mal recusavase a comer levou uma surra depois de acalmado pediu sua comida e comeu Foi para seu quarto gritando e levou uma surra Embora se misture aos adultos se divirta dance e cante com eles o Delfim ainda brinca com brinquedos de criança Tem dois anos e sete meses quando Sully lhe dá de presente uma pequena carruagem cheia de bonecas Uma linda boneca de theutheu diz ele em seu jargão Ele gosta da companhia dos soldados Os soldados sempre se alegram em vê lo Ele conduz pequenas ações militares com seus soldados M de Marsan colocoulhe a gola alta a primeira que jamais usara e ele ficou encantado Ele brinca de ações militares com seus pequenos senhores Sabemos também que ele frequenta o jogo da pela assim como o de malha no entanto ele ainda dorme num berço Em 19 de julho de 1604 aos dois anos e nove meses ele viu sua cama sendo feita com uma enorme alegria e foi colocado no leito pela primeira vez Ele já conhcece os rudimentos de sua religião na missa no momento da elevação mostramlhe a hóstia e ele diz que é le bon Dieu o bom Deus Examinemos de passagem esta expressão le bon Dieu que hoje está sempre presente na língua dos padres e dos devotos mas que nunca é encontrada na literatura religiosa anterior ao século XIX Como podemos ver aqui no início do século XVII essa expressão certamente recente pertencia à língua das crianças ou à língua que os pais e as amas utilizavam ao falar com as crianças A expressão 83 contaminou a língua dos adultos no século XIX e com a efeminação da religião o Deus de Jacó tornouse o bon Dieu das criancinhas O Delfim agora já sabe falar direito e vez por outra tem saídas insolentes que divertem os adultos O Rei mostrandolhe uma vara de marmelo perguntoulhe Meu filho para quem é isso Ele respondeu zangado Para vós O Rei não pôde deixar de rir Na noite de Natal de 1604 aos três anos o Delfim participa da festa e das comemorações tradicionais Antes da ceia ele viu a acha de Natal ser acesa e dançou e cantou pela chegada do Natal Ganha alguns presentes uma bola e algumas quinquilharias italianas entre as quais uma pomba mecânica brinquedos destinados tanto à Rainha quanto a ele Durante as noites de inverno quando todos ficavam dentro de casa numa época de vida ao ar livre ele brincava de cortar papel com uma tesoura A música e a dança continuam a ocupar um lugar importante em sua vida Heroard registra com uma ponta de admiração O Delfim dança todas as danças ele guarda na lembrança todos os balés que viu e nos quais não demoraria a tomar parte se é que já não havia começado a fazêlo Lembrandose de um balé dançado um ano atrás quando tinha dois anos o Delfim perguntou Por que é que o Carneirinho estava nu Ele representara o Cupido nu Ele dança a galharda a sarabanda e a velha bourrée dança popular de Auvergne Ele gosta de cantar e de tocar a mandora de Boileau canta a canção de Robin Robin vai a Tours Comprar veludo Para fazer um gorrinho Mamãe eu quero Robin Ele gosta de cantar a canção com a qual o ninavam Quem quer ouvir a canção A filha do Rei Luís Bourbon a amou tanto que no fim a engravidou Canção curiosa para ninar criancinhas pequenas Ele ia fazer quatro anos dentro de poucos dias e já sabia ao menos o nome das cordas do alaúde que era um instrumento nobre Ele toca com a ponta dos dedos nos lábios dizendo esta é a baixa Mas sua familiaridade precoce com o alaúde não o impedia de ouvir os violinos mais populares como os que animaram a dança nas bodas de um dos cozinheiros do Rei ou um tocador de gaita de foles um dos pedreiros que consertavam sua lareira Ele passava um bom tempo a ouvilo Nessa época o Delfim começa a aprender a ler Aos três anos e cinco meses ele gosta de um livro com as figuras da Bíblia sua ama lhe nomeia as letras e ele as conhece todas Ensinamlhe a seguir as quadras de Pibrac regras de etiqueta e de moralidade que as crianças tinha de aprender de cor A partir dos quatro anos começa a aprender a escrever seu mestre é um clérigo da capela do castelo chamado Dumont Ele mandou trazer sua escrivaninha para a sala de jantar para escrever sob a orientação de Dumont e disse Estou escrevendo meu exemplo e 84 estou indo para a escola o exemplo era o modelo manuscrito que ele devia copiar Ele escreveu seu exemplo seguindo a impressão feita sobre o papel e a seguiu muito bem com grande prazer Começa a aprender palavras latinas Aos seis anos um escrevente profissional substitui o clérigo da capela Ele escreveu seu exemplo Beaugrand o escrevente do Rei mostroulhe como escrever Ele ainda brinca com bonecas Brinca com alguns brinquedinhos e com um pequeno gabinete alemão miniaturas de madeira fabricadas pelos artesãos de Nurembergue M de Loménie deulhe um pequeno fidalgo muito bem vestido com uma gola perfumada Ele o penteou e disse Vou casálo com a boneca de Madame sua irmã Ele ainda gosta de recortar papel Contamlhe histórias também Ele mandou que sua ama lhe contasse as histórias da comadre Raposa e do Mau Rico e Lázaro Deitado na cama contavamlhe as histórias de Melusina Eu lhe disse que eram fábulas e não histórias reais A observação revela uma nova preocupação com a educação já moderna As crianças não eram as únicas a ouvir essas histórias elas também eram contadas nas reuniões noturnas dos adultos Ao mesmo tempo em que brincava com bonecas esse menino de quatro a cinco anos praticava o arco jogava cartas xadrez aos seis anos e participava de jogos de adultos como o jogo de raquetes e inúmeros jogos de salão Aos três anos o menino já participava de um jogo de rimas que era comum às crianças e aos jovens Com os pajens dos aposentos do Rei mais velhos do que ele brincava de a companhia vos agrada Algumas vezes era o mestre o líder da brincadeira e quando não sabia o que devia dizer perguntava participava dessas brincadeiras como a de acender uma vela com os olhos vendados como se tivesse 15 anos Quando ele não está brincando com os pajens está brincando com os soldados Ele brincava com os soldados de diversas brincadeiras como de bater palmas e de esconder Aos seis anos joga o jogo dos ofícios e brinca de mímica jogos de salão que consistiam em adivinhar as profissões e as histórias que eram representadas por mímica Essas brincadeiras também eram brincadeiras de adolescentes e de adultos Cada vez mais o Delfim se mistura com os adultos e assiste a seus espetáculos Ele tem cinco anos Foi levado ao pátio atrás do canil em Fontainebleau para assistir a uma luta entre os bretões que trabalhavam nas obras do Rei Foi levado até o Rei no salão do baile para ver os cães lutando com os ursos e o touro Foi ao pátio coberto do jogo da pela para assistir a uma corrida de texugos E acima de tudo ele participa dos balés Aos quatro anos e meio ele vestiu uma máscara foi aos aposentos do Rei para dançar um balé e recusouse a tirar a máscara não querendo ser reconhecido Muitas vezes ele se fantasia de camareira da 85 Picardia de pastora ou de menina ainda usava a túnica dos meninos Após a ceia assistiu à dança ao som das canções de um certo Laforest um soldado coreógrafo também autor de farsas Aos cinco anos assistiu sem entusiasmo à encenação de uma farsa em que Laforest fazia o papel do marido cômico o Barão de Montglat o da mulher infiel e Indret o do namorado que a seduzia aos seis anos dançou um balé muito bem vestido de homem com um gibão e calças até os joelhos por cima de sua túnica Assistiu ao balé dos feiticeiros e diabos dançado pelos soldados de M de Marsan e criado pelo piemontês JeanBaptiste um outro soldadocoreógrafo Ele não dança apenas os balés ou as danças da corte que aprende com um professor assim como aprende a leitura e a escrita Participa também do que hoje chamaríamos de danças populares Aos cinco anos participa de uma que me lembra uma dança tirolesa que vi certa vez uns meninos com calças de couro dançarem num café de Innsbruck os pajens do Rei dançaram uma branle dando pontapés nos traseiros uns dos outros ele também dançou e fez como os outros Noutra ocasião ele estava fantasiado de menina para uma representação Terminada a farsa tirou o vestido e dançou chutando o traseiro de seus vizinhos Ele apreciava essa dança Finalmente unese aos adultos nas festas tradicionais do Natal de Reis de São João é ele quem acende a fogueira de São João no pátio do castelo de Saint Germain Na noite de Reis ele foi rei pela primeira vez Todos gritavam o rei bebe A parte de Deus era posta de lado aquele que a comesse teria de pagar uma prenda Foi levado aos aposentos da Rainha de onde viu o mastro de maio ser erguido As coisas mudam quando ele se aproxima de seu sétimo aniversário abandona o traje da infância e sua educação é entregue então aos cuidados dos homens ele deixa Mamangas Mme de Montglas e passa à responsabilidade de M de Soubise Tentase então fazêlo abandonar os brinquedos da primeira infância essencialmente as brincadeiras de bonecas Não deveis mais brincar com esses brinquedinhos os brinquedos alemães nem brincar de carreteiro agora sois um menino grande não sois mais criança Ele começa a aprender a montar a cavalo a atirar e a caçar Joga jogos de azar Ele participou de uma rifa e ganhou uma turqueza Tudo indica que a idade de sete anos marcava uma etapa de certa importância era a idade geralmente fixada pela literatura moralista e pedagógica do século XVII para a criança entrar na escola ou começar a trabalhar2 Mas não devemos exagerar sua importância Pois embora não brinque mais ou não deva mais brincar com bonecas o Delfim continua a levar a mesma vida de antes Ainda é surrado e seus divertimentos quase não se alteram Ele vai cada vez mais ao teatro chegando em pouco tempo a ir quase todos os dias uma prova da 86 importância da comédia da farsa e do balé nos frequentes espetáculos de interior ou ao ar livre de nossos ancestrais Ele foi à grande galeria para ver o Rei num torneio de argolinhas Gosta de ouvir os maus contos de La Clavette e de outros Jogou cara ou coroa em seu gabinete com pequenos fidalgos como o Rei com três dados Brincou de esconder com um tenente da cavalaria ligeira Foi assistir a um jogo de pela e de lá foi à grande galeria assistir a um torneio de argolinhas Fantasiouse e dançou o Pantalon Ele agora tem mais de nove anos Após a ceia foi aos aposentos da Rainha brincou de cabracega e fez com que a Rainha as princesas e as damas brincassem também Com um pouco mais de 13 anos ainda brinca de esconder Um pouco mais de bonecas e de brinquedos alemães antes dos sete anos um pouco mais de caça cavalos armas e talvez teatro após essa idade a mudança se faz insensivelmente nessa longa sequência de divertimentos que a criança toma emprestada dos adultos ou divide com eles Aos dois anos Luís XIII começa a jogar malha e pela aos quatro atira com o arco eram jogos de exercício que todos praticavam Mme de Sévigné por exemplo felicitaria seu genro por sua habilidade na malha O romancista e historiador Sorel escreveria um tratado sobre os jogos de salão destinado aos adultos Mas aos três anos Luís XIII participava de um jogo de rimas e aos seis jogava o jogo dos ofícios e brincava de mímica brincadeiras estas que ocupavam um lugar importante na Maison des Jeux de Sorel Aos cinco anos ele joga cartas Aos oito ganha um prêmio numa rifa jogo de azar em que as fortunas costumavam trocar de mãos O mesmo se dá com os espetáculos musicais ou dramáticos aos três anos Luís XIII dança a galharda a sarabanda a velha bourrée e desempenha papéis nos balés da corte Aos cinco anos assiste às farsas e aos sete às comédias Canta toca violino e alaúde Está na primeira fila dos espectadores que assistem a uma luta a um torneio de argolinhas a uma briga de ursos ou de touros ou a um acrobata na corda bamba Enfim participa das grandes festividades coletivas que eram as festas religiosas e sazonais o Natal a festa de maio São João Parece portanto que no início do século XVII não existia uma separação tão rigorosa como hoje entre as brincadeiras e os jogos reservados às crianças e as brincadeiras e os jogos dos adultos Os mesmos jogos eram comuns a ambos No início do século XVII essa polivalência não se estendia mais às crianças muito pequeninas Conhecemos bem suas brincadeiras pois a partir do século XV quando os putti surgiram na iconografia os artistas multiplicaram as representações de criancinhas brincando Reconhecemos nessas pinturas o cavalo de pau o cata vento o pássaro preso por um cordão e às vezes embora mais raramente 87 bonecas É um tanto ou quanto evidente que esses brinquedos eram reservados aos pequenininhos No entanto podemos nos perguntar se tinha sempre sido assim e se esses brinquedos não haviam pertencido antes ao mundo dos adultos Alguns deles nasceram do espírito de emulação das crianças que as leva a imitar as atitudes dos adultos reduzindoas à sua escala foi o caso do cavalo de pau em uma época em que o cavalo era o principal meio de transporte e de tração Da mesma forma as pás que giravam na ponta de uma vareta só podiam ser a imitação feita pelas crianças de uma técnica que contrariamente à do cavalo não era antiga a técnica dos moinhos de vento introduzida na Idade Média O mesmo reflexo anima nossas crianças de hoje quando elas imitam um caminhão ou um carro Mas enquanto os moinhos de vento há muito desapareceram de nossos campos os cataventos continuam a ser vendidos nas lojas de brinquedos nos quiosques dos jardins públicos ou nas feiras As crianças constituem as sociedades humanas mais conservadoras Outras brincadeiras parecem ter tido outra origem que não o desejo de imitar os adultos Assim muitas vezes a criança é representada brincando com um pássaro Luís XIII possuía uma pega da qual gostava muito O próprio leitor talvez se lembre de suas tentativas de domesticar um pássaro ferido na infância Nessas cenas de jogos o pássaro em geral está amarrado a uma correntinha que a criança segura Às vezes ele é uma imitação de madeira Em todo o caso a julgar pela iconografia o pássaro amarrado parece ter sido um dos brinquedos mais comuns O historiador da religião grega Nilsson3 informanos que na Grécia antiga como aliás na Grécia moderna era costume nos primeiros dias de março os meninos fazerem uma andorinha de madeira enfeitada com flores que girava em torno de um eixo Eles a levavam de casa em casa e recebiam presentes o pássaro ou sua reprodução não eram um brinquedo individual e sim um elemento de uma festa coletiva e sazonal da qual a juventude participava desempenhando o papel que sua classe de idade lhe atribuía Reencontraremos mais adiante esse tipo de festa Aquilo que mais tarde se tornaria um brinquedo individual sem relação com a comunidade ou com o calendário destituído de qualquer conteúdo social parece ter sido ligado no princípio a cerimônias tradicionais que misturavam as crianças e os jovens aliás mal distinguidos com os adultos O mesmo Nilsson mostra como o balanço tão frequente na iconografia dos jogos e brincadeiras ainda no século XVIII figurava entre os ritos de uma das festas previstas pelo calendário as Aiora a festa da juventude Os meninos pulavam sobre odres cheios de vinho e as meninas eram empurradas em balanços Esta última cena pode ser vista em vasos pintados e Nilsson a interpreta como um rito da fecundidade Existia uma relação estreita entre a cerimônia religiosa comunitária e a brincadeira que compunha seu 88 rito essencial Com o tempo a brincadeira se libertou de seu simbolismo religioso e perdeu seu caráter comunitário tornandose ao mesmo tempo profana e individual Nesse processo ela foi cada vez mais reservada às crianças cujo repertório de brincadeiras surge então como o repositório de manifestações coletivas abandonadas pela sociedade dos adultos e dessacralizadas O problema da boneca e dos brinquedosminiaturas levanos a hipóteses semelhantes Os historiadores dos brinquedos e os colecionadores de bonecas e de brinquedosminiaturas sempre tiveram muita dificuldade em distinguir a boneca brinquedo de criança de todas as outras imagens e estatuetas que as escavações nos restituem em quantidades semiindustriais e que quase sempre tinham uma significação religiosa objetos de culto doméstico ou funerário exvotos dos devotos de uma peregrinação etc Quantas vezes nos apresentam como brinquedos as reduções de objetos familiares depositados nos túmulos Não pretendo concluir que as crianças pequenas de outrora não brincavam com bonecas ou com réplicas dos objetos dos adultos Mas elas não eram as únicas a se servir dessas réplicas Aquilo que na idade moderna se tornaria seu monopólio ainda era partilhado na Antiguidade ao menos com os mortos Essa ambiguidade da boneca e da réplica persistiria durante a Idade Média por mais tempo ainda no campo a boneca era também o perigoso instrumento do feiticeiro e do bruxo Esse gosto em representar de forma reduzida as coisas e as pessoas da vida quotidiana hoje reservado às criancinhas resultou numa arte e num artesanato populares destinados tanto à satisfação dos adultos como à distração das crianças Os famosos presépios napolitanos são uma das manifestações dessa arte da ilusão Os museus sobretudo alemães e suíços possuem conjuntos complicados de casas interiores e mobiliários que reproduzem em escala reduzida todos os detalhes dos objetos familiares Seriam realmente casas de bonecas essas pequenas obrasprimas de engenho e complicação É verdade que essa arte popular dos adultos também era apreciada pelas crianças eram muito procurados na França os brinquedos alemães ou as quinquilharias italianas Enquanto os objetos em miniatura se tornavam o monopólio das crianças uma mesma palavra designava na França essa indústria quer seus produtos se destinassem às crianças ou aos adultos bimbeloterie O bibelô antigo era também um brinquedo A evolução da linguagem afastouo de seu sentido infantil e popular enquanto a evolução do sentimento ao contrário restringia às crianças o uso dos pequenos objetos das réplicas No século XIX o bibelô tornouse um objeto de salão de vitrina mas continuou a ser a redução de um objeto familiar uma cadeirinha um movelzinho ou uma louça minúscula que jamais se destinaram às brincadeiras de crianças Nesse gosto pelo bibelô devemos reconhecer uma sobrevivência burguesa da arte popular dos presépios italianos ou 89 das casas alemãs A sociedade do Ancien Régime durante muito tempo permaneceu fiel a esses brinquedinhos que hoje qualificaríamos de bobagens de crianças sem dúvida porque caíram definitivamente no domínio da infância Ainda em 1747 Barbier escreve Inventaramse em Paris uns brinquedos chamados fantoches Esses bonequinhos representam Arlequim Scaramouche a comédia italiana ou então padeiros os ofícios pastores e pastoras o gosto pelos disfarces rústicos Essas bobagens divertiram e dominaram Paris inteira de tal forma que não se pode ir a nenhuma casa sem encontrar alguns pendurados nas lareiras São dados de presente a todas as mulheres e meninas e a loucura chegou a tal ponto que no início deste ano todas as lojas se encheram deles para vendê los como presentes A duquesa de Chartres pagou 1500 libras por um boneco pintado por Boucher O excelente bibliófilo Jacob que cita o trecho acima reconhece que em sua época ninguém teria sonhado com tais infantilidades As pessoas de sociedade muito ocupadas o que diria ele hoje não se divertem mais como naquele bom tempo de ócio que viu florescer a moda dos bilboquês e dos fantoches hoje deixamos os brinquedos para as crianças O teatro de marionetes parece ter sido outra manifestação da mesma arte popular da ilusão em miniatura que produziu as quinquilharias alemãs e os presépios napolitanos Ele teve aliás a mesma evolução o Guignol lionês do início do século XIX era uma personagem do teatro popular porém adulto Hoje Guignol tornouse o nome do teatro de marionetes reservado às crianças Sem dúvida essa ambiguidade persistente das brincadeiras infantis explica também por que do século XVI até o início do XIX a boneca serviu às mulheres elegantes como manequim de moda Em 1571 a duquesa de Lorraine querendo dar um presente a uma amiga que havia dado à luz encomenda bonecas não muito grandes e em número de até quatro ou seis e das mais bem vestidas que possais encontrar para enviálas à filha da Duquesa de Bavière que acabou de nascer O presente se destinava à mãe mas em nome da criança A maioria das bonecas de coleções não são brinquedos de crianças objetos geralmente grosseiros e maltratados e sim bonecas de moda As bonecas de moda desapareceriam e seriam substituídas pela gravura de moda graças especialmente à litografia4 Existe portanto em torno dos brinquedos da primeira infância e de suas origens uma certa margem de ambiguidade Essa ambiguidade começava a se dissipar na época em que me coloquei no início deste capítulo ou seja em torno dos anos 1600 a especialização infantil dos brinquedos já estava então consumada com algumas diferenças de detalhe com relação ao nosso uso atual assim como observamos a propósito de Luís XIII a boneca não se destinava apenas às meninas Os meninos também brincavam com elas Dentro dos limites da primeira 90 infância a discriminação moderna entre meninas e meninos era menos nítida ambos os sexos usavam o mesmo traje o mesmo vestido É possível que exista uma relação entre a especialização infantil dos brinquedos e a importância da primeira infância no sentimento revelado pela iconografia e pelo traje a partir do fim da Idade Média A infância tornavase o repositório dos costumes abandonados pelos adultos Por volta de 1600 a especialização das brincadeiras atingia apenas a primeira infância depois dos três ou quatro anos ela se atenuava e desaparecia A partir dessa idade a criança jogava os mesmos jogos e participava das mesmas brincadeiras dos adultos quer entre crianças quer misturada aos adultos Sabemos disso graças principalmente ao testemunho de uma abundante iconografia pois da Idade Média até o século XVIII tornouse comum representar cenas de jogos um índice do lugar ocupado pelo divertimento na vida social do Ancien Régime Já vimos que Luís XIII desde seus primeiros anos ao mesmo tempo que brincava com bonecas jogava pela e malha jogos que hoje nos parecem ser muito mais jogos de adolescentes e de adultos Numa gravura de Arnoult5 do século XVII vemos crianças jogando boliche São crianças bemnascidas a julgar pelas mangas falsas da menina Não se sentia nenhuma repugnância em deixar as crianças jogar assim que se tornavam capazes jogos de cartas e de azar e a dinheiro Uma das gravuras de Stella dedicada aos jogos dos putti6 descreve com simpatia a infelicidade de um deles que havia perdido tudo Os pintores caravagescos do século XVII muitas vezes retrataram grupos de soldados jogando excitadamente em tavernas malafamadas ao lado de velhos soldados veemse meninos muito jovens de 12 anos talvez e que não parecem ser os menos animados Uma tela de S Bourdon7 representa um grupo de mendigos em torno de duas crianças observandoas jogar dados O tema das crianças jogando a dinheiro jogos de azar ainda não chocava a opinião pública pois é encontrado também em cenas que mostram não mais velhos soldados ou mendigos mas personagens sérias como as de Le Nain8 Inversamente os adultos participavam de jogos e brincadeiras que hoje reservamos às crianças Um marfim do século XIV9 representa uma brincadeira de adultos um rapaz sentado no chão tenta pegar os homens e as mulheres que o empurram O livro de horas de Adelaide de Savoie do fim do século XV10 contém um calendário que é ilustrado principalmente com cenas de jogos e de jogos que não eram de cavalaria No início os calendários representavam cenas de ofícios exceto no mês de maio reservado a uma corte de amor Os jogos foram introduzidos e passaram a ocupar um lugar cada vez maior Em geral eram jogos de 91 cavalaria como a caça mas havia também jogos populares Uma dessas ilustrações mostra a seguinte brincadeira uma pessoa faz o papel da vela no meio de um círculo de casais em que cada dama fica atrás de seu cavalheiro e o segura pela cintura Em uma outra passagem do mesmo calendário a população da aldeia faz uma guerra de bolas de neve homens e mulheres grandes e pequenos Numa tapeçaria11 do início do século XVI alguns camponeses e fidalgos estes últimos mais ou menos vestidos de pastores brincam de uma espécie de cabra cega não aparecem crianças Vários quadros holandeses da segunda metade do século XVII representam também pessoas brincando dessa espécie de cabracega Em um deles12 aparecem algumas crianças mas elas estão misturadas com os adultos de todas as idades uma mulher com a cabeça escondida no avental estende a mão aberta nas costas Luís XIII e sua mãe brincavam de esconde esconde Brincavase de cabracega na casa de Grande Mademoiselle no Hôtel de Rambouillet13 Uma gravura de Lepeautre14 mostra que os camponeses adultos também gostavam dessa brincadeira Logo podemos compreender o comentário que o estudo da iconografia dos jogos inspirou ao historiador contemporâneo Van Marle15 Quanto aos divertimentos dos adultos não se pode dizer realmente que fossem menos infantis do que as diversões das crianças É claro que não pois se eram os mesmos As crianças também participavam no lugar que lhes cabia entre os outros grupos de idade das festas sazonais que reuniam regularmente toda a coletividade Para nós é difícil imaginar a importância dos jogos e das festas na sociedade antiga hoje tanto para o homem da cidade como para o do campo existe apenas uma margem muito estreita entre uma atividade profissional laboriosa e hipertrofiada e uma vocação familiar imperiosa e exclusiva Toda a literatura política e social reflexo da opinião contemporânea trata das condições de vida e de trabalho Um sindicalismo que protege os salários reais e seguros que reduzem o risco da doença e do desemprego eis as principais conquistas populares ao menos as mais aparentes na opinião pública na literatura e no debate político Mesmo as aposentadorias tornamse cada vez menos possibilidades de repouso são antes privilégios que permitem uma renda mais gorda O divertimento tornado quase vergonhoso não é mais admitido a não ser em raros intervalos quase clandestinos só se impõe como dado dos costumes uma vez por ano durante o imenso êxodo do mês de agosto16 que leva às praias e às montanhas à beira dágua ao ar livre e ao sol uma massa cada vez mais numerosa mais popular e ao mesmo tempo mais motorizada Na sociedade antiga o trabalho não ocupava tanto tempo do dia nem tinha tanta importância na opinião comum não tinha o valor existencial que lhe 92 atribuímos há pouco mais de um século Mal podemos dizer que tivesse o mesmo sentido Por outro lado os jogos e os divertimentos estendiamse muito além dos momentos furtivos que lhes dedicamos formavam um dos principais meios de que dispunha uma sociedade para estreitar seus laços coletivos para se sentir unida Isso se aplicava a quase todos os jogos mas esse papel social aparecia melhor nas grandes festas sazonais e tradicionais Elas se realizavam em datas fixas do calendário e seus programas seguiam em geral regras tradicionais Essas festas só foram estudadas por especialistas em folclore ou em tradições populares que as situam em um meio quase exclusivamente rural Mas ao contrário elas envolviam toda a sociedade de cuja vitalidade eram a manifestação periódica Ora as crianças as crianças e os jovens participavam delas em pé de igualdade com todos os outros membros da sociedade e quase sempre desempenhavam um papel que lhes era reservado pela tradição Não pretendo escrever aqui é claro uma história dessas festas um assunto vasto e certamente de grande interesse para a história social mas alguns exemplos bastarão para mostrar o lugar que nelas ocupavam as crianças A documentação aliás é rica mesmo se recorrermos pouco às descrições predominantemente rurais da literatura folclórica uma abundante iconografia inúmeras pinturas burguesas e urbanas são suficientes para comprovar a importância dessas festas na memória e na sensibilidade coletivas Os artistas tiveram o cuidado de pintálas e de conservar sua lembrança por mais tempo do que o breve momento de sua duração Uma das cenas favoritas dos artistas e de sua clientela era a festa de Reis provavelmente a maior festa do ano Na Espanha ela conservou esse primado que perdeu na França para o Natal Quando Mme de Sévigné que estava então em seu castelo de Les Rochers soube do nascimento de um neto quis partilhar sua alegria com a criadagem e para mostrar a Mme de Grignan que havia feito tudo como devia escreveulhe Dei de beber e de comer à criadagem como em uma noite de Reis17 Uma miniatura do livro de horas de Adelaide de Savoie18 representa o primeiro episódio da festa A cena data do fim do século XV mas esses ritos permaneceram inalterados por longo tempo Homens e mulheres parentes e amigos estão reunidos em volta de uma mesa Um dos convivas segura o bolo de Reis verticalmente Uma criança de cinco a sete anos está escondida debaixo da mesa O artista colocoulhe na mão uma faixa de pergaminho com uma inscrição que começa por um Ph Desse modo foi fixado o momento em que segundo a tradição era uma criança quem distribuía o bolo de Reis Isso se passava segundo um cerimonial determinado a criança escondiase sob a mesa um dos convivas cortava um pedaço do bolo e chamava a criança Phaebe Domine donde as letras Ph da miniatura e a criança respondia dizendo o nome do conviva que devia 93 ser servido e assim por diante Um dos pedaços era reservado para os pobres ou seja para Deus e aquele que o comesse deveria dar uma esmola Quando a festa de Reis se laicizou essa esmola se tornou na obrigação do Rei de pagar uma prenda ou de dar um outro bolo não mais aos pobres mas aos outros convivas Mas isso não importa aqui Observemos apenas o papel que a tradição confiava a uma criança pequena no ritual da festa de Reis O procedimento adotado no sorteio das loterias oficiais do século XVII sem dúvida se inspirou nesse costume o frontispício de um livro19 intitulado Critique sur la loterie mostra uma criança tirando a sorte tradição que se conservou até nossos dias Sorteiase a loteria como se sorteava o bolo de Reis Esse papel desempenhado pela criança implicava sua presença no meio dos adultos durante as longas horas da noite de Reis O segundo episódio da festa aliás seu ponto culminante era o brinde erguido por todos os convivas àquele que havia encontrado uma fava em seu pedaço de bolo e que assim se tornava rei sendo devidamente coroado O rei bebe As pinturas flamengas e holandesas retrataram particularmente esse tema Conhecemos a famosa tela do Louvre de Jordaens mas o mesmo assunto é encontrado em numerosos outros pintores setentrionais Por exemplo no quadro de Metsu20 de um realismo menos burlesco e mais verdadeiro Ele nos dá bem a ideia dessa reunião em torno do Rei de pessoas de todas as idades e certamente de todas as condições os criados misturandose aos senhores As pessoas estão em torno de uma mesa O Rei um velho bebe Uma criança o saúda tirando o chapéu sem dúvida fora ela quem há poucos momentos sorteara os pedaços de bolo segundo a tradição Outra criança ainda muito pequena para desempenhar esse papel está sentada em uma dessas cadeiras altas fechadas que continuavam a ser muito usadas Ela ainda não sabe ficar de pé sozinha mas é preciso que também participe da festa Um dos convivas está fantasiado de bufão No século XVII adoravamse as fantasias e as mais grotescas eram comuns nessa ocasião mas o traje de bufão aparece em outras representações dessa cena tão familiar e parece óbvio que fazia parte do cerimonial o bufão era o bobo do Rei Podia acontecer também que uma das crianças encontrasse a fava Assim Heroard registrava a 5 de janeiro de 1607 a festa era celebrada na noite da Epifania que o futuro Luís XIII então com seis anos foi rei pela primeira vez Uma tela de Steen de 166821 celebra a coroação do filho mais moço do pintor O menino usando uma coroa de papel está sentado em um banco como se fosse um trono e uma velha lhe dá ternamente de beber um copo de vinho A festa não parava aí Começava então o terceiro episódio que devia durar até de manhã Alguns convivas usavam fantasias alguns traziam também sobre o chapéu um cartaz que especificava seu papel na comédia O bobo encabeçava 94 uma pequena expedição composta de alguns mascarados um músico em geral violinista e mais uma vez uma criança O costume impunha a essa criança uma função bem definida ela devia levar a vela dos reis Na Holanda parece que a vela era preta Na França tinha várias cores Mme de Sévigné dizia a respeito de uma mulher que ela estava vestida com tantas cores como a vela dos reis Sob a chefia do bufão o grupo dos cantores da estrela assim eram chamados na França se espalhava pela vizinhança pedindo combustível e comida ou desafiando as pessoas para um jogo de dados Uma gravura de Mazot de 164122 mostra o cortejo dos cantores da estrela dois homens uma mulher tocando guitarra e uma criança levando a vela dos reis Graças a um leque pintado a guache do início do século XVIII23 podemos acompanhar esse cortejo bufão até o momento de sua acolhida em uma casa vizinha A sala da casa é cortada verticalmente à maneira dos cenários de mistérios ou das pinturas do século XV a fim de deixar ver ao mesmo tempo o interior da sala e a rua atrás da porta Na sala as pessoas bebem à saúde do Rei e coroam a Rainha Na rua um grupo mascarado bate à porta que lhes será aberta Constatamos pois ao longo de toda a festa a participação ativa das crianças nas cerimônias tradicionais Essa participação também é comprovada na noite de Natal Heroard nos diz que Luís XIII aos três anos viu a acha de Natal ser acesa e dançou e cantou pela chegada do Natal Talvez tenha sido ele o encarregado de lançar o sal e o vinho sobre a acha segundo o ritual que nos é descrito no final do século XVI pelo suíçoalemão Thomas Platter quando fazia seus estudos de medicina em Montpellier A cena se passa em Uzès24 Uma grande acha é colocada sobre os cães da lareira Quando o fogo pega as pessoas se aproximam A criança mais moça segura com a mão direita um copo de vinho migalhas de pão e uma pitada de sal e com a esquerda uma vela acesa As pessoas tiram os chapéus e a criança começa a invocar o sinal da cruz Em nome do Pai e joga uma pitada de sal numa extremidade da lareira Em nome do Filho na outra extremidade e assim por diante Os carvões que segundo se acreditava possuíam propriedades benéficas eram conservados A criança desempenhava aqui mais uma vez um dos papéis essenciais previstos pela tradição no meio da coletividade reunida Esse papel aliás também existia em ocasiões menos excepcionais mas que tinham então o mesmo caráter social as refeições de família O costume rezava que as graças fossem ditas por uma das crianças mais novas e que o serviço da mesa fosse feito pela totalidade das crianças presentes elas serviam a bebida trocavam os pratos cortavam a carne Teremos oportunidade de examinar mais de perto o sentido desses costumes quando estudarmos a estrutura familiar25 Observemos 95 aqui apenas como era comum do século XIV ao XVII o hábito de confiar às crianças uma função especial no cerimonial que acompanhava as reuniões familiares e sociais tanto ordinárias como extraordinárias Outras festas embora despertassem o interesse de toda a coletividade reservavam à juventude o monopólio dos papéis ativos enquanto os outros grupos de idade assistiam como espectadores Essas festas já tinham a aparência de festas da infância ou da juventude já vimos que a fronteira entre esses dois estados hoje tão distintos era incerta e mal percebida Na Idade Média26 no dia dos SantosInocentes as crianças ocupavam a igreja uma delas era eleita bispo pelos companheiros e presidia à cerimônia que terminava por uma procissão uma coleta e um banquete A tradição ainda viva no século XVI rezava que na manhã desse dia os jovens surpreendessem seus amigos na cama para surrálos ou como se dizia para lhes dar os inocentes A terçafeira gorda aparentemente era a festa dos meninos de escola e da juventude Fitz Stephen descreve uma terçafeira gorda do século XII em Londres a propósito da juventude de seu herói Thomas Becket27 então aluno da escola da catedral de São Paulo Todas as crianças da escola traziam seus galos de briga para seu mestre As brigas de galo ainda hoje populares nos locais em que subsistem como em Flandres ou na América Latina mas destinadas aos adultos durante a Idade Média estavam ligadas à juventude e até mesmo à escola Um texto do século XV de Dieppe que enumera os pagamentos devidos a um balseiro o confirma O mestre que mantém a escola de Dieppe deverá pagar um galo quando as lutas tiverem lugar na escola ou na cidade e todos os outros meninos da escola de Dieppe serão transportados por esse preço28 Em Londres segundo Fitz Stephen a terçafeira gorda começava com brigas de galo que duravam toda a manhã À tarde todos os jovens da cidade saíam para os arredores para jogar o famoso jogo de bola Os adultos os parentes e as autoridades vinham a cavalo assistir aos jogos dos jovens e voltavam a ser jovens como eles O jogo de bola reunia várias comunidades numa ação coletiva opondo ora duas paróquias ora dois grupos de idade O jogo de bola é um jogo que se costuma realizar no dia de Natal entre os companheiros da localidade de Cairac em Auvergne e em outros lugares também é claro Este jogo se diversifica e se divide de tal maneira que os homens casados ficam de um lado e os não casados de outro eles levam a dita bola de um lugar para outro e disputamna uns aos outros a fim de ganhar o prêmio e quem joga melhor recebe o prêmio do dito dia29 Ainda no século XVI em Avignon o carnaval era organizado e animado pelo abade da jurisdição presidente da confraria dos notários e dos procuradores30 esses líderes da juventude eram em geral ao menos no Sul da França chefes de prazer segundo 96 a expressão de um erudito moderno e usavam os títulos de príncipe de amor rei da jurisdição abade ou capitão da juventude abade dos companheiros ou das crianças da cidade Em Avignon31 no dia de carnaval os estudantes tinham o direito de surrar os judeus e as prostitutas a menos que estes pagassem um resgate A história da universidade de Avignon nos diz que a 20 de janeiro de 1660 o vicelegado fixou esse resgate em um escudo por prostituta As grandes festas da juventude eram as de maio e novembro Sabemos por Heroard que em criança Luís XIII ia ao balcão da Rainha para ver erguer o mastro de maio A festa de maio vem logo após a festa de Reis no fervor dos artistas que gostavam de evocála como uma das mais populares Ela inspirou inúmeras pinturas gravuras e tapeçarias A Varagnac32 reconheceu o tema na Primavera de Botticelli da Galeria dos Ofícios Em outras obras as cerimônias tradicionais são representadas com uma precisão mais realista Uma tapeçaria de 164233 nos permite imaginar o aspecto de uma aldeia ou de um burgo num 1o de maio do século XVII A cena se passa em uma rua Um casal já maduro e um velho saíram de uma das casas e esperam na soleira da porta Preparamse para receber um grupo de moças que vem em sua direção A moça da frente traz uma cesta cheia de frutas e de doces Esse grupo de jovens vai assim de porta em porta e todos lhes dão alguma comida em troca de seus bons votos a coleta em domicílio é um dos elementos essenciais dessas festas da juventude No primeiro plano alguns meninos pequenos ainda vestidos com túnicas como as meninas usam coroas de flores e folhas que suas mães lhes prepararam Em outras pinturas a procissão dos jovens coletores se organiza em torno de um menino que carrega a árvore de maio é o caso de uma pintura holandesa de 170034 O bando de crianças percorre a aldeia atrás da árvore de maio e as crianças menores usam coroas de flores Os adultos estão nas soleiras das portas prontos para receber o cortejo das crianças A árvore de maio algumas vezes é representada simbolicamente por uma vara coroada de folhas e de flores35 Mas a árvore de maio não nos interessa aqui Ressaltemos apenas a coleta feita pelo grupo de jovens junto aos adultos e o costume de coroar as crianças com flores que deve ser associado à ideia de renascimento da vegetação simbolizado também pela árvore que era levada pelas ruas e depois plantada36 Essas coroas de flores talvez se tenham tornado uma brincadeira comum das crianças de toda forma é certo que se tornaram o atributo de sua idade nas representações dos artistas Nos retratos da época individuais ou familiares as crianças usam ou trançam coroas de flores ou de folhas como as duas meninas de Nicolas Maes do museu de Toulouse37 a primeira coloca uma coroa de folhas com uma das mãos e com a outra pega flores numa cesta que sua irmã lhe estende Não podemos deixar de relacionar as cerimônias de maio com 97 essa convenção que associava a infância à vegetação Outro grupo de festas da infância e da juventude se situava no início de novembro Nos dias 4 e 8 de novembro escreve o estudante Platter no fim do século XVI38 realizouse a mascarada dos querubins Eu também me mascarei e fui à casa do Dr Sapota onde havia um baile Tratavase de uma mascarada de jovens e não apenas de crianças Essa festa desapareceu completamente de nossos costumes banida pela proximidade do dia de Finados A opinião comum não admitiu mais a proximidade de uma festa alegre da infância fantasiada com um dia tão solene No entanto essa festa sobreviveu na América anglosaxônia com o nome de Halloween Um pouco mais tarde a festa de São Martim era a ocasião de demonstrações restritas aos jovens e mais precisamente talvez aos escolares Amanhã é o dia de São Martim lemos em um diálogo escolar do início do século XVI que descrevia a vida das escolas em Leipzig39 Nós os escolares fazemos uma coleta farta nesse dia é costume os alunos pobres irem de porta em porta pedir dinheiro Reencontramos aqui as coletas em domicílio que observamos por ocasião da festa de maio prática específica das festas da juventude ora gesto de acolhida e boasvindas ora mendicância real Estes parecem ser os últimos vestígios de uma estrutura muito antiga em que a sociedade era dividida em classes de idade dessa estrutura restou apenas o costume de reservar à juventude um papel essencial em algumas grandes celebrações coletivas É de notar além disso que o cerimonial dessas celebrações distinguia mal as crianças dos jovens essa sobrevivência de um tempo em que eles eram confundidos não correspondia mais inteiramente à realidade dos costumes como o faz crer o hábito criado no século XVII de enfeitar apenas as criancinhas pequenas os meninos que ainda usavam túnicas com as flores e as folhas que nos calendários da Idade Média adornavam os adolescentes que haviam chegado à idade do amor Qualquer que fosse o papel atribuído à infância e à juventude primordial na festa de maio ocasional na festa de Reis ele obedecia sempre a um protocolo tradicional e correspondia às regras de um jogo coletivo que mobilizava todo o grupo social e todas as classes de idade Outras circunstâncias provocavam também a mesma participação dos diferentes grupos de idades numa celebração comum Assim do século XV ao XVIII e na Alemanha até o início do século XIX cenas de gênero pintadas gravadas ou tecidas representavam a reunião familiar em que as crianças e os pais formavam uma pequena orquestra de câmara acompanhando um cantor Quase sempre a cena se passava por ocasião de uma refeição Em alguns casos a mesa havia sido tirada Em outros o interlúdio musical realizavase durante a refeição como na tela 98 holandesa de Lamen pintada por volta de 164940 as pessoas estão sentadas à mesa mas o serviço foi interrompido o menino encarregado do serviço que traz um prato e uma jarra de vinho está parado um dos convivas de pé e encostado na lareira com um copo na mão canta sem dúvida uma canção sobre a bebida enquanto um outro pega seu alaúde para acompanhálo Hoje em dia não temos mais ideia do lugar que a música e a dança ocupavam na vida quotidiana O autor de uma Introduction to Practical Music editada em 159741 conta como as circunstâncias fizeram dele um músico Ele jantava com um grupo de pessoas Quando a ceia terminou e segundo o costume foram trazidas as partituras para a mesa a dona da casa me designou uma parte e pediume muito seriamente para cantar Eu tive de me desculpar muito e confessar que não sabia todos pareceram então surpresos e alguns chegaram a cochichar no ouvido dos outros perguntandose onde eu havia sido educado Embora a prática familiar e popular de um instrumento ou do canto talvez fosse mais comum na Inglaterra elisabetana do que no resto da Europa ela também era difundida na França na Itália na Espanha e na Alemanha de acordo com um velho hábito medieval que apesar das transformações do gosto e dos aperfeiçoamentos técnicos subsistiu até os séculos XVIII e XIX um pouco mais ou um pouco menos conforme a região Hoje esse hábito só existe na Alemanha na Europa central e na Rússia Naquela época porém ele era comum nos meios nobres e burgueses em que os grupos gostavam de se fazer retratar realizando um concerto de câmara Era comum também nos meios mais populares entre os camponeses ou até mesmo mendigos cujos instrumentos eram a gaita de foles o realejo e a rebeca que ainda não havia sido elevada à dignidade do violino atual As crianças praticavam a música muito cedo Desde pequenino Luís XIII cantava canções populares ou satíricas que não se pareciam em nada com as cantigas de roda infantis de nossos últimos dois séculos ele também sabia o nome das cordas do alaúde um instrumento nobre As crianças tomavam parte em todos esses concertos de câmara que a antiga iconografia multiplicou Tocavam também entre elas e uma forma habitual de pintálas era representálas com um instrumento na mão são exemplos os dois meninos de Franz Hals42 um dos quais acompanha no alaúde o irmão ou o amigo que canta e são exemplos as numerosas crianças tocando flauta de Franz Hals e de Le Nain43 Em um quadro de Brouwer veemse na rua moleques do povo mais ou menos esfarrapados ouvindo com avidez o realejo de um cego saído de um pátio dos milagres tema de mendicância muito comum no século XVII44 Uma tela holandesa de Vinckelbaons45 merece ser especialmente examinada em razão de um detalhe significativo que ilustra o novo sentimento da infância como em outras pinturas semelhantes um tocador de realejo toca para uma plateia de crianças e a 99 cena é representada como um instantâneo no momento em que os meninos acorrem ao som do instrumento Um dos meninos é muito pequeno e não consegue acompanhar os outros Seu pai então o segura no colo e corre atrás do bando para que seu filho não perca nada da festa a criança alegre estende os braços para o realejo A mesma precocidade é observada na prática da dança Vimos que Luís XIII aos três anos dançava a galharda a sarabanda e a velha bourrée Comparemos uma tela de Le Nain46 e uma gravura de Guérard47 elas têm cerca de meio século de distância mas os costumes não mudaram muito nesse intervalo e além disso a arte da gravura tende a ser conservadora Em Le Nain vemos uma roda de meninas e meninos um deles ainda usa a túnica com gola Duas meninas fazem uma ponte com as mãos dadas no alto e a roda passa por baixo A gravura de Guérard também representa uma roda mas são os adultos que a conduzem uma das moças está saltando como uma menina que pula corda Quase não há diferença entre a dança das crianças e a dos adultos Mais tarde porém a dança dos adultos se transformaria e com a valsa se limitaria definitivamente ao par individual Abandonadas pela cidade e pela corte pela burguesia e pela nobreza as antigas danças coletivas ainda subsistiriam no campo onde os folcloristas modernos as descobririam e nas rodas infantis do século XIX ambas as formas aliás estão atualmente em via de desaparecimento É impossível separar a dança dos jogos dramáticos A dança era então mais coletiva e se distinguia menos do balé do que nossas danças modernas de pares Observamos no diário de Heroard o gosto dos contemporâneos de Luís XIII pela dança o balé e a comédia gêneros ainda bastante próximos faziase um papel num balé como se dançava num baile a ligação entre as duas palavras em francês bal e ballet é significativa a mesma palavra a seguir se desdobrou ficando o baile reservado aos amadores e o balé aos profissionais Havia balés nas comédias até mesmo no teatro escolar dos colégios jesuítas Na corte de Luís XIII os autores e os atores eram recrutados internamente entre os fidalgos mas também entre os criados e os soldados as crianças tanto atuavam como assistiam às representações Seria uma prática da corte Não era uma prática comum Um texto de Sorel48 provanos que nas aldeias nunca se havia deixado de encenar peças mais ou menos comparáveis aos antigos mistérios ou às Paixões atuais da Europa central Penso que ele Ariste a quem os comediantes profissionais aborreciam teria ficado muito satisfeito se tivesse visto como eu todos os meninos de uma aldeia as meninas não representar a tragédia do Mau Rico em um palco mais alto do que o teto das casas no qual todas as personagens davam sete ou oito voltas duas a duas para se 100 mostrar antes de começar a representação como as figuras de um relógio Fiquei muito feliz de ver mais uma vez a encenação da História do Filho Pródigo e a de Nabucodonosor e depois os amores de Médor e Angélique e a descida de Radamonte aos infernos por comediantes de tal envergadura O porta voz de Sorel ironiza pois ele não aprecia esses espetáculos populares Em quase toda a parte os textos e a encenação eram regulados pela tradição oral No País Basco essa tradição foi fixada antes do desaparecimento dos jogos dramáticos No fim do século XVIII e início do XIX foram escritos e publicados dramas pastorais bascos cujos temas provinham ao mesmo tempo dos romances de cavalaria e dos pastorais do Renascimento49 Assim como a música e a dança as representações dramáticas reuniam toda a coletividade e misturavam as idades tanto dos atores como dos espectadores Tentaremos ver agora qual era a atitude moral tradicional com relação a esses jogos brincadeiras e divertimentos que ocupavam um lugar tão importante nas sociedades antigas Essa atitude nos aparece sob dois aspectos contraditórios De um lado os jogos eram todos admitidos sem reservas nem discriminação pela maioria Por outro lado e ao mesmo tempo uma minoria poderosa e culta de moralistas rigorosos os condenava quase todos de forma igualmente absoluta e denunciava sua imoralidade sem admitir praticamente nenhuma exceção A indiferença moral da maioria e a intolerância de uma elite educadora coexistiram durante muito tempo Ao longo dos séculos XVII e XVIII porém estabeleceuse um compromisso que anunciava a atitude moderna com relação aos jogos fundamentalmente diferente da atitude antiga Esse compromisso nos interessa aqui porque é também um testemunho de um novo sentimento da infância uma preocupação antes desconhecida de preservar sua moralidade e também de educá la proibindolhe os jogos então classificados como maus e recomendandolhes os jogos então reconhecidos como bons A estima em que eram tidos ainda no século XVII os jogos de azar nos permite avaliar a extensão da antiga atitude de indiferença moral Hoje consideramos os jogos de azar como suspeitos e perigosos e o dinheiro ganho no jogo como a menos moral e a menos confessável das rendas Continuamos a jogar esses jogos de azar mas com a consciência pesada Ainda não era assim no século XVII a consciência pesada moderna resultou do processo de moralização em profundidade que fez da sociedade do século XIX uma sociedade de conservadores La Fortune des gens de qualité et des gentilshommes particuliers50 é um livro de conselhos aos jovens fidalgos que desejam fazer carreira Seu autor o Marechal de Caillière não tinha nada de aventureiro Era autor também de uma bibliografia 101 edificante das obras do Padre Ange de Joyeuse o santo monge da Liga Era um homem religioso até mesmo devoto e sem nenhuma originalidade ou talento Suas opiniões refletem portanto a opinião comum das pessoas de bem em 1661 data da edição de seu livro Uma de suas preocupações constantes é prevenir os jovens contra a devassidão se a devassidão é a inimiga da virtude também o é da fortuna pois não se pode possuir uma sem a outra O jovem devasso vê as ocasiões de agradar a seu senhor escaparem pelas janelas do bordel e da taverna O leitor do século XX que percorre com um olhar um tanto cansado esses lugarescomuns por isso mesmo ficará surpreso quando esse moralista minucioso desenvolver suas ideias sobre a utilidade social dos jogos de azar Um dos capítulos se intitula Se um particulier abreviação de gentilhomme particulier por oposição a gens de qualité ou seja um pequeno fidalgo mais ou menos empobrecido deve jogar jogos de azar e como Não se trata de uma questão decidida o Marechal reconhece que os moralistas profissionais e o clero condenam formalmente o jogo Isso poderia embaraçar nosso autor e de fato o obriga a se explicar longamente Ele permanece fiel à antiga opinião dos leigos e tenta justificála moralmente Não será impossível provar que o jogo pode ser mais útil do que prejudicial se for acompanhado das circunstâncias que lhe são necessárias Digo que o jogo é tão perigoso para um homme de qualité ou seja um fidalgo rico quanto útil a um particulier ou seja um fidalgo empobrecido O primeiro arrisca muito porque é muito rico e o outro não arrisca nada porque não o é e no entanto um particulier pode esperar tanto da fortuna do jogo quanto um grande senhor Um tem tudo a perder e o outro tudo a ganhar estranha distinção moral Mas o jogo segundo Caillière apresenta outras vantagens além do lucro financeiro Sempre considerei que o amor ao jogo era um benefício da Natureza cuja utilidade reconheci Parto do princípio de que o amamos naturalmente Os jogos esportivos que hoje seríamos mais tentados a recomendar são belos de se ver mas mal apropriados para se ganhar dinheiro E especifica Estou falando das cartas e dos dados Ouvi um experiente jogador que havia ganho no jogo uma fortuna considerável dizer que para transformar o jogo em arte não tinha utilizado outro segredo além de dominar sua paixão e de se propor esse exercício como uma profissão com o fito de ganhar dinheiro Que o jogador não se inquiete pois a má sorte não o pegará desprevenido um jogador sempre conseguirá empréstimos mais facilmente do que o faria um bom comerciante Além disso esse exercício dá aos particuliers acesso aos melhores círculos e um homem hábil pode extrair deles notáveis vantagens quando sabe manejálos Conheço alguns que têm como renda apenas um baralho e três dados e que subsistem no mundo com maior luxo e magnificência do que senhores de província com suas grandes propriedades mas 102 sem dinheiro líquido E o excelente Marechal conclui com esta opinião que surpreende nossa moral de hoje Aconselho a um homem que saiba e que ame o jogo a arriscar nele seu dinheiro como ele tem pouco a perder arrisca pouco e pode ganhar muito Para o biógrafo do Padre Ange o jogo é não apenas um divertimento mas uma profissão um meio e fazer fortuna e de manter relações um meio perfeitamente honesto Caillière não é o único a defender esta opinião O Chevalier de Méré que era considerado em sua época como o típico homem de sociedade bemeducado exprime a mesma ideia em sua Suite du commerce du monde51 Diria também que o jogo produz bons efeitos quando o jogador se comporta como um homem hábil e de boa vontade é através dele que um homem pode ter acesso a toda parte onde se joga e os príncipes muitas vezes se entediariam se não pudessem jogar Cita exemplos augustos Luís XIII que ainda criança ganhou uma turquesa numa rifa Richelieu que se relaxava jogando Mazarino Luís XIV e a Rainhamãe que não fazia mais nada além de jogar e rezar Qualquer que seja o mérito que se possa ter seria difícil conquistar uma boa reputação sem ingressar na alta sociedade e o jogo é uma forma fácil de abrir suas portas É mesmo um meio garantido de se estar frequentemente em boa companhia sem dizer nada sobretudo quando se joga como um homem galante ou seja evitando a esquisitice o capricho e a superstição É preciso jogar como um homem bemeducado e saber perder como ganhar sem que nem uma nem outra dessas situações se dê a conhecer no rosto nem no modo de agir Mas cuidado para não arruinar os próprios amigos por mais que ponderemos sempre resta algo em nosso coração contra aqueles que nos arruinaram Se os jogos de azar não provocavam nenhuma reprovação moral não havia razão para proibilos às crianças daí as inúmeras cenas de crianças jogando cartas dados gamão etc que a arte conservou até nossos dias Os diálogos escolares que serviam aos estudantes ao mesmo tempo como manuais de civilidade e vocabulários latinos em certos casos admitem os jogos de azar se não com entusiasmo ao menos como uma prática muito difundida O espanhol Vivès52 contentase em fornecer certas regras para evitar os excessos diz quando se deve jogar com quem evitar os brigões que jogos a que cacife o cacife não deve ser nulo pois isso seria tolice e não valeria o jogo mas também não deve ser tão alto a ponto de perturbar o espírito diante do jogo de que maneira ou seja como um bom jogador e durante quanto tempo Mesmo nos colégios centros da moralização mais eficaz os jogos a dinheiro persistiram por muito tempo apesar da repugnância que por eles sentiam os educadores No início do século XVIII o regulamento do colégio dos Oratorianos 103 de Troyes precisa Não se poderá jogar a dinheiro a menos que seja muito pouco e com permissão especial O professor universitário moderno que citou esse texto em 1880 acrescenta um tanto chocado diante de hábitos tão distantes dos princípios educacionais de sua época Era praticamente autorizar o jogo a dinheiro Ao menos era se conformar com ele53 Em torno de 1830 ainda se jogava abertamente e se apostava alto nas public schools inglesas O autor de Tom Browns School Days descreve a febre de apostas e de jogos que o Derby provocava então entre os alunos de Rugby A reforma do Dr Arnold eliminaria mais tarde da escola inglesa essas práticas com vários séculos de existência que outrora eram admitidas com indiferença e que foram então consideradas imorais e viciosas54 Do século XVII até nossos dias a atitude moral com relação aos jogos de azar evoluiu de maneira bastante complexa à medida que se difundia o sentimento de que o jogo de azar era uma paixão perigosa um vício grave a prática tendeu a modificar alguns desses jogos reduzindo o papel do azar que no entanto ainda subsiste em benefício do cálculo e do esforço intelectual do jogador dessa forma certos jogos de cartas ou de xadrez tornaramse cada vez menos sujeitos à condenação que atingia o princípio do jogo de azar Outro divertimento sofreu uma evolução diferente a dança Vimos que a dança comum às crianças e aos adultos ocupava um lugar importante na vida quotidiana Nosso senso moral de hoje deveria ficar menos chocado com isso do que com a prática generalizada dos jogos de azar Sabemos que os próprios religiosos dançavam ocasionalmente sem que a opinião pública se escandalizasse ao menos antes do movimento de reforma das comunidades no século XVII Sabemos como era a vida na abadia de Maubuisson quando Madre Angélique Arnaud aí chegou no início do século XVII para reformá la Não era uma vida especialmente edificante mas também não era necessariamente escandalosa era sobretudo muito mundana Nos dias de verão diznos M Cognet citando Madre Angélique de SaintJean biógrafa de sua irmã55 quando o tempo era bonito depois das vésperas a priora conduzia a comunidade para um passeio longe da abadia nas margens das lagoas que ficavam no caminho de Paris muitas vezes os monges de SaintMartin de Pontoise que habitavam perto vinham dançar com as religiosas e isso era feito com a mesma liberdade que ocorreria no mundo leigo onde nada de mau se poderia dizer sobre tal fato Essas danças de rodas de monges e monjas indignaram Madre Angélique e temos de convir que não correspondiam ao espírito da vida monástica mas na época elas não produziam na opinião pública o efeito chocante que hoje produziriam pares de religiosos e religiosas dançando enlaçados como o exigem as danças modernas É certo que os religiosos de outrora não tinham a consciência tão pesada Havia 104 costumes tradicionais que previam danças de clérigos em certas ocasiões Em Auxère56 por exemplo todo novo cônego para festejar o feliz acontecimento doava aos paroquianos uma bola que era então utilizada em um grande jogo coletivo Esse jogo era sempre jogado em dois campos que opunham solteiros contra casados ou paróquia contra paróquia A festa de Auxère começava com o canto Victimae laudes Paschali e terminava com uma roda em que dançavam todos os cônegos Os historiadores informamnos que esse costume que remontaria ao século XIV ainda era atestado no século XVIII É provável que os partidários da reforma tridentina vissem essa dança de roda tão desaprovadoramente como Madre Angélique de SaintJean vira a dança das freiras de Maubuisson e dos padres de Pontoise cada novo tempo possui uma nova concepção do profano As danças familiares não tinham no século XVII o caráter sexual que acusariam muito mais tarde nos séculos XIX e XX Existiam até mesmo danças profissionais em Biscaye havia danças de amas em que estas carregavam seus bebês no colo57 O exercício amplo da dança não tem o mesmo valor que a prática dos jogos de azar para ilustrar a indiferença da sociedade antiga com relação à moralidade dos divertimentos Por outro lado porém ele permite avaliar melhor o rigor da intolerância das elites reformadoras Na sociedade do Ancien Régime o jogo sob todas as suas formas o esporte o jogo de salão o jogo de azar ocupava um lugar importantíssimo que se perdeu em nossas sociedades técnicas mas que ainda hoje encontramos nas sociedades primitivas ou arcaicas58 Ora a essa paixão que agitava todas as idades e todas as condições a Igreja opôs uma reprovação absoluta Ao lado da Igreja colocaramse também alguns leigos apaixonados pelo rigor e pela ordem que se esforçavam para domar uma massa ainda selvagem e para civilizar costumes ainda primitivos A Igreja medieval também condenava o jogo sob todas as suas formas sem exceção nem reservas e particularmente nas comunidades de clérigos bolsistas que deram origem aos colégios e às universidades do Ancien Régime Os estatutos dessas comunidades nos dão uma ideia dessa intransigência Ao lêlos o historiador inglês das universidades medievais J Rashdall59 ficou impressionado com a proscrição geral de todas as atividades de lazer com a recusa em admitir que pudessem existir divertimentos inocentes em escolas cujos alunos entretanto tinham basicamente entre 10 e 15 anos Reprovase a imoralidade dos jogos de azar a indecência dos jogos de salão da comédia ou da dança e a brutalidade dos jogos esportivos que de fato muitas vezes degeneravam em rixas Os estatutos dos colégios foram redigidos para limitar tanto os pretextos de divertimento quanto 105 os riscos de delito A fortiori a proibição era categórica e rigorosa para os religiosos a quem um edito do Concílio de Sens de 1485 proibia o jogo da pela sobretudo em manga de camisa e em público é verdade que no século XV um homem sem gibão ou sem túnica e com as calças desabotoadas ficava com quase tudo de fora Temse a impressão de que a Igreja ainda incapaz de controlar os leigos adeptos de jogos tumultuados decidiu preservar seus clérigos proibindolhes todo e qualquer tipo de jogo formidável contraste de estilos de vida se a proibição tivesse sido realmente respeitada Eis por exemplo como o regulamento interno do colégio de Narbonne60 encarava os jogos de seus bolsistas em sua redação de 1379 Ninguém nesta casa deverá jogar pela ou hóquei ou outros jogos perigosos insultuosus sob pena de uma multa de seis dinares ninguém deverá jogar dados ou quaisquer outros jogos a dinheiro nem deverá entregarse a divertimentos na mesa comessationes comezainas sob pena de uma multa de 10 vinténs O jogo e a comilança são colocados no mesmo plano Não havia então jamais um momento de diversão Os alunos poderão apenas participar algumas vezes e a raros intervalos quantas precauções Certamente logo esquecidas porém pois essas mesmas palavras eram a porta entreaberta a todos os excessos de jogos honestos ou recreativos mas é difícil saber quais já que até a pela era proibida talvez jogos de salão apostando uma pequena jarra de vinho ou então uma fruta e contanto que o jogo se faça sem barulho e de maneira não habitual sine mora No colégio de Seez em 147761 encontramos Ordenamos que ninguém pratique o jogo de dados nem outros jogos desonestos ou proibidos e nem mesmo os jogos admitidos como a pela sobretudo nos lugarescomuns ou seja o claustro a sala comum que servia de refeitório e se alguém os praticar em outros lugares que seja com pouca frequência non nimis continue Na bula do Cardeal de Amboise que fundava o colégio de Montaigu em 1501 havia um capítulo intitulado De exercitio corporali62 O que quer dizer isso O texto começa com uma apreciação geral um tanto ambígua O exercício físico parece ser de pouca utilidade quando se mistura aos estudos espirituais e aos exercícios religiosos ao contrário provoca um grande desenvolvimento da saúde quando é conduzido alternadamente com os estudos teóricos e científicos Na realidade o que o redator entende por exercícios físicos não são tanto os jogos e sim todos os trabalhos manuais por oposição aos trabalhos intelectuais E ele dá primazia às tarefas domésticas nas quais reconhece também uma função de relaxação as tarefas de cozinha de limpeza o serviço da mesa Em todos os exercícios acima ou seja nas tarefas domésticas nunca se deverá esquecer que se deve ser tão rápido e vigoroso quanto possível Os jogos só vêm depois das tarefas e mesmo 106 assim sob reservas Quando o padre o chefe da comunidade estimar que os espíritos fatigados pelo trabalho e pelo estudo devam ser relaxados por meio de recreações ele as tolerará indulgebit Alguns jogos são permitidos nos lugares comuns os jogos honestos nem fatigantes nem perigosos Em Montaigu havia dois grupos de estudantes os bolsistas que como em outras fundações eram chamados de pauperes e os internos que pagavam uma pensão Esses dois grupos viviam separados O regulamento estipulava que os bolsistas deveriam jogar por menos tempo e com menos frequência do que seus colegas internos sem dúvida porque tinham a obrigação de ser melhores alunos e portanto deviam ser menos distraídos A reforma da Universidade de Paris em 145263 ditada por um espírito de disciplina já moderno mantém o rigor tradicional Os mestres dos colégios não permitirão que seus alunos nas festas das profissões ou em outras participem de danças imorais e desonestas ou usem trajes indecentes e leigos trajes curtos Deverão permitir porém que joguem de maneira honesta e agradável para o alívio do trabalho e o justo repouso Não permitirão nessas festas que os alunos bebam na cidade nem batam de porta em porta O reformador visa aí às saudações de porta em porta acompanhadas de coletas que a tradição permitia à juventude por ocasião das festas sazonais Em um de seus diálogos escolares Vivès resume a situação em Paris no século XVI64 nos seguintes termos Entre os estudantes nenhum outro jogo além da pela pode ser jogado com a permissão dos mestres mas algumas vezes os alunos jogam em segredo cartas e xadrez as crianças pequenas jogam garignons e os mais indisciplinados jogam dados De fato os estudantes assim como os outros meninos não tinham o menor problema em frequentar as tavernas e os bordéis em jogar dados e dançar O rigor das proibições nunca foi abalado por sua ineficácia tenacidade espantosa a nossos olhos de homens modernos mais preocupados com a eficácia do que com princípios Os oficiais de justiça e de polícia juristas adeptos da ordem e da boa administração da disciplina e da autoridade apoiavam a ação dos mestresescola e dos eclesiásticos Durante séculos os decretos que fechavam aos estudantes o acesso às salas de jogo se sucederam ininterruptamente Esses decretos ainda são citados no século XVIII um exemplo é o decreto do tenentegeneral da polícia de Moulins de 27 de março de 1752 cuja cópia destinada à afixação pública foi conservada no Museu de Artes e Tradições Populares É proibido aos donos das quadras de pela e das salas de bilhar abrir o jogo aos estudantes e aos criados durante as horas de aula e aos donos das pistas de boliche ou outros jogos abrir o jogo aos mesmos em qualquer tempo O leitor já terá observado essa assimilação dos empregados domésticos aos estudantes eles muitas vezes tinham a mesma 107 idade e eram igualmente temidos por sua turbulência e sua falta de autocontrole O boliche hoje um divertimento pacífico provocava tais brigas que nos séculos XVI e XVII os magistrados de polícia em certas ocasiões o proibiram inteiramente tentando estender a toda a sociedade as restrições que os eclesiásticos queriam impor aos clérigos e aos estudantes Assim esses defensores da ordem moral praticamente classificavam os jogos entre as atividades semicriminosas como a embriaguez e a prostituição que quando muito podiam ser toleradas mas que convinha proibir ao menor sinal de excesso Essa atitude de reprovação absoluta modificouse contudo ao longo do século XVII e principalmente sob a influência dos jesuítas Os humanistas do Renascimento em sua reação antiescolástica já haviam percebido as possibilidades educativas dos jogos Mas foram os colégios jesuítas que impuseram pouco a pouco às pessoas de bem e amantes da ordem uma opinião menos radical com relação aos jogos Os padres compreenderam desde o início que não era nem possível nem desejável suprimilos ou mesmo fazêlos depender de permissões precárias e vergonhosas Ao contrário propuseramse a assimilálos e a introduzi los oficialmente em seus programas e regulamentos com a condição de que pudessem escolhêlos regulamentálos e controlálos Assim disciplinados os divertimentos reconhecidos como bons foram admitidos e recomendados e considerados a partir de então como meios de educação tão estimáveis quanto os estudos Não apenas se parou de denunciar a imoralidade da dança como se passou a ensinar a dançar nos colégios pois a dança ao harmonizar os movimentos do corpo evitava a falta de graça e dava ao rapaz elegância e postura Da mesma forma a comédia que os moralistas do século XVII condenavam foi introduzida nos colégios Os jesuítas começaram com diálogos em latim sobre temas sacros e mais tarde passaram a peças francesas sobre temas profanos Até mesmo os balés foram tolerados apesar da oposição das autoridades da companhia O gosto pela dança escreveu o Padre de Dainville65 tão vivo nos contemporâneos do Rei Sol que em 1669 fundou a Academia de Dança prevaleceu sobre os editos dos padres gerais Após 1650 quase não houve tragédias que não fossem entrecortadas pelas entradas de um balé Um álbum de gravuras de Crispin de Pos datado de 1602 representa cenas da vida escolar em um colégio batavo Reconhecemos as salas de aula a biblioteca mas também a aula de dança e o jogo da pela e de bola66 Um sentimento novo portanto apareceu a educação adotou os jogos que até então havia proscrito ou tolerado como um mal menor Os jesuítas editaram em latim tratados de ginástica que forneciam as regras dos jogos recomendados Admitiuse cada vez mais a necessidade dos exercícios físicos Fénelon escreve Os jogos de que elas as 108 crianças gostam mais são aqueles em que o corpo está em movimento elas ficam contentes quando podem movimentarse Os médicos do século XVIII67 inspirados nos velhos jogos de exercícios na ginástica latina dos jesuítas conceberam uma nova técnica de higiene corporal a cultura física No Traité de léducation des enfants de 1722 escrito por Crousez um professor de filosofia e matemática de Lausanne podemos ler É necessário que o corpo humano se agite muito enquanto cresce Considero que os jogos que incluem exercícios devem ser preferidos a todos os outros La Gymmastique médicale et chirurgicale de Tissot recomenda os jogos físicos como os melhores exercícios Exercitamse ao mesmo tempo todas as partes do corpo sem contar que a ação dos pulmões é constantemente estimulada pelos chamados e os gritos dos jogadores No fim do século XVIII os jogos de exercícios receberam outra justificativa desta vez patriótica eles preparavam os rapazes para a guerra Compreenderamse então os benefícios que a educação física podia trazer à instrução militar Nessa época que assistiu ao nascimento dos nacionalismos modernos o treinamento do soldado tornouse uma técnica quase científica Estabeleceuse um parentesco entre os jogos educativos dos jesuítas a ginástica dos médicos o treinamento do soldado e as necessidades do patriotismo Durante o Consulado foi publicada a Gymmastique de la jeunesse ou Traité élémentaire des jeux dexercices considérés sous le rapport de leur utilité physique et morale Seus autores Duvivier e Jauffret afirmavam claramente que o exercício militar havia constituído desde sempre a base da ginástica e era particularmente adequado à época o ano XI e ao país em que viviam Votadas por princípios à defesa comum pela natureza e o espírito de nossa constituição nossas crianças já são soldados antes de nascerem Tudo o que é militar transpira algo de grande e de nobre que eleva o homem acima dele mesmo Assim sob as influências sucessivas dos pedagogos humanistas dos médicos do Iluminismo e dos primeiros nacionalistas passamos dos jogos violentos e suspeitos da tradição antiga à ginástica e ao treinamento militar das pancadarias populares aos clubes de ginástica Essa evolução foi comandada pela preocupação com a moral a saúde e o bem comum Uma evolução paralela especializou segundo a idade ou a condição os jogos que originariamente eram comuns a toda a sociedade Daniel Mornet em sua História da Literatura Clássica68 escreve a respeito dos jogos de salão Quando os jovens da burguesia de minha geração Mornet nasceu em 1878 jogavam jogos de salão nas matinées dansantes de suas famílias eles em geral não sabiam que esses jogos mais numerosos e mais complexos do que em sua época haviam sido há 250 anos o regalo da alta sociedade Na 109 realidade há muito mais de 250 anos No livro de horas da Duquesa de Bourgogne69 assistimos já no século XV a um jogo de papeizinhos uma dama aparece sentada com uma cesta no colo onde os jovens depositam papeizinhos No fim da Idade Média os jogos de desafio estavam em grande moda Uma dama dizia a um fidalgo ou um fidalgo dizia a uma dama o nome de uma flor ou de um objeto qualquer e a pessoa interpelada devia responder prontamente e sem hesitação por um cumprimento ou um epigrama rimado Essa descrição das regras do jogo nos é dada pelo editor moderno dos poemas de Christine de Pisan que compôs 70 epigramas para esse tipo de jogo70 Por exemplo Je vous vens la passerose Belle dire ne vous ose Comment Amour vers vous me tire Si lapercevez tant sans dire Esse tipo de brincadeira sem dúvida se originou nos costumes da corte Em seguida passou para a canção popular e para as brincadeiras infantis como o jogo de rimas que como vimos divertia Luís XIII aos três anos de idade Mas os adultos e os jovens que já haviam deixado a infância não abandonavam inteiramente esses jogos Uma estampa de Epinal do século XIX representa ainda esses mesmos jogos mas se intitula Jogos de Outrora o que indica que a moda começava a abandonálos e que eles se tornavam provincianos quando não infantis ou populares a cabracega o jogo do assobio a faca na bacia com água o escondeesconde o passarinho voa o cavaleiro gentil o homem que não ri o pote do amor o rabugento a berlinda o beijo embaixo do castiçal o berço do amor Alguns desses jogos se tornariam brincadeiras de criança enquanto outros conservariam o caráter ambíguo e pouco inocente que outrora fizera com que fossem condenados pelos moralistas mesmo os mais tolerantes como Erasmo71 A Maison des jeux de Sorel nos permite estudar essa evolução em um momento interessante ou seja a primeira metade do século XVII72 Sorel distingue as brincadeiras de salão dos jogos de exercícios e dos jogos de azar Os dois últimos são comuns a todo tipo de pessoa não sendo menos praticados pelos criados do que pelos senhores são tão fáceis para as pessoas ignorantes e grosseiras como para as pessoas cultas e sutis Os jogos de salão ao contrário são jogos de espírito e de conversação Em princípio eles só podem agradar a pessoas de boa condição educadas na civilidade e na galanteria capazes de compor discursos e réplicas cheias de julgamento e saber e não podem ser jogados por outros Esta ao menos é a opinião de Sorel o que ele gostaria que os jogos de 110 salão fossem Na realidade porém nessa época os jogos de salão também eram comuns às crianças e ao povo às pessoas ignorantes e grosseiras Sorel é obrigado a admitilo Para começar examinaremos os jogos infantis Há os jogos de exercício o hóquei o pião as escadas a bola o jogo de peteca com raquetes e as brincadeiras de pegar seja com os olhos abertos ou vendados Mas há outros que dependem um pouco mais do espírito e ele dá como exemplo os desafios de Christine de Pisan que continuavam a divertir pequenos e grandes Sorel adivinha a origem antiga desses jogos Esses jogos infantis em que há algumas palavras rimadas em geral se baseiam em uma linguagem muito antiga e muito simples emprestada de alguma história ou romance dos tempos antigos o que mostra como outrora as pessoas se divertiam com uma representação ingênua do que havia ocorrido a cavalheiros ou damas de alta dignidade Sorel observa finalmente que esses jogos infantis são os mesmos dos adultos das classes populares e essa observação é para nós muito importante Como estes jogos são infantis eles também servem para as pessoas rústicas cujo espírito não é mais elevado do que o das crianças nesses assuntos Contudo no início do século XVII Sorel tem de convir que algumas vezes pessoas de condição elevada podiam praticar esses jogos como recreação sem que a opinião pública visse aí algo de errado esses jogos mistos ou seja comuns a todas as idades e condições tornamse recomendáveis devido ao bom emprego que sempre tiveram Há certos tipos de jogos em que o espírito não trabalha muito de forma que mesmo os muito jovens podem jogálos embora as pessoas mais velhas e sérias também os pratiquem ocasionalmente Esse antigo estado de coisas porém não era mais admitido por todos Na Maison des jeux por exemplo Ariste considera esses divertimentos de crianças e de plebeus indignos de um homem de bem O portavoz de Sorel não deseja contudo proscrevêlos completamente Mesmo os que parecem ser baixos podem ser soerguidos recebendo uma outra aplicação diferente da primeira a qual só relatei para servir de modelo E ele tenta então elevar o nível intelectual dos jogos de salão praticados dentro de casa Mas na verdade após a descrição de Sorel do jogo da mourre em que o líder levanta um dois ou três dedos e os participantes devem repetir o mesmo gesto imediatamente é difícil para o leitor moderno compreender sob que aspecto a mourre é mais elevada e mais espiritual do que o jogo de rimas que Sorel abandonava sem apelação às crianças o leitor atual tem a mesma opinião de Ariste cujo ponto de vista já é moderno Mas ele fica ainda mais surpreendido com o fato de um romancista e historiador como Sorel ter consagrado uma obra monumental à descrição e à revisão desses divertimentos Este é mais um testemunho do lugar que os jogos ocupavam nas preocupações da antiga sociedade 111 Portanto no século XVII havia uma distinção entre os jogos dos adultos e dos fidalgos e os jogos das crianças e dos vilões A distinção era antiga e remontava à Idade Média Mas na Idade Média a partir do século XII ela se aplicava apenas a certos jogos pouco numerosos e muito particulares os jogos de cavalaria Antes disso antes da constituição definitiva da ideia de nobreza os jogos eram comuns a todos independentemente da condição social Alguns jogos conservaram esse caráter durante muito tempo Francisco I e Henrique II não menosprezavam a luta e Henrique II jogava bola isso não seria mais admitido no século seguinte Richelieu praticava o salto em sua galeria como Tristão na corte do Rei Marcos e Luís XIV jogava pela Mas esses jogos tradicionais seriam por sua vez abandonados no século XVIII pelas pessoas de alta condição A partir do século XII certos jogos já eram reservados aos cavaleiros73 e mais precisamente aos adultos Assim enquanto a luta era uma brincadeira comum o torneio e a argolinha eram jogos de cavalaria O acesso aos torneios era proibido aos plebeus e as crianças mesmo nobres não tinham o direito de participar pela primeira vez talvez um costume proibia às crianças e ao mesmo tempo aos plebeus participar de jogos coletivos As crianças logo começaram a imitar os torneios proibidos o calendário do breviário de Grimani mostranos torneios grotescos de crianças entre as quais alguns pensaram reconhecer o futuro Carlos V as crianças cavalgam barris em vez de cavalos Surgiu então a ideia de que os nobres deviam evitar misturarse com os plebeus e distrairse entre eles uma opinião que não conseguiu imporse totalmente ao menos até que a nobreza desaparecesse enquanto função social e fosse substituída pela burguesia no século XVIII No século XVI e no início do século XVII numerosos documentos iconográficos comprovam a mistura das classes sociais durante as festas sazonais Em um dos diálogos de Le Courtisan de Balthazar Castiglione um clássico do século XVI que foi traduzido para todas as línguas esse assunto é discutido e não se chega a um acordo74 Em nosso país da Lombardia diz o senhor Pallacivino não temos essa opinião de que o cortesão só deve jogar com outros fidalgos e há muitos fidalgos que nas festas dançam o dia inteiro sob o sol com os camponeses e participam com eles de jogos como o arremesso da barra de lutas corridas e competições de saltos e penso que não há mal nisso Alguns ouvintes protestam admitem que a rigor o fidalgo possa jogar com camponeses mas contanto que vença sem esforço aparente ele deve estar praticamente certo de vencer É algo muito feio e indigno ver um fidalgo vencido por um camponês e principalmente na luta O espírito esportivo inexistia nessa época a não ser nos jogos de cavalaria e sob outra forma inspirada na honra feudal No fim do século XVI a prática dos torneios foi abandonada Outros jogos os 112 substituíram nas assembleias de jovens nobres na corte e nas aulas de preparação militar das Academias onde durante a primeira metade do século XVII os fidalgos aprendiam o manejo das armas e a equitação Surgiu a quintana por exemplo montado a cavalo o indivíduo visava um alvo de madeira que substituía o alvo vivo dos antigos torneios a cabeça de um turco Surgiu também a argolinha o indivíduo disparava a cavalo e devia arrebatar uma argolinha com a lança em plena carreira No livro de Pluvinel diretor de uma dessas Academias uma gravura de Crispin de Pos75 representa Luís XIII criança participando de uma quintana O autor diz que a quintana era um meiotermo entre a fúria das lanças cruzadas na liça com o adversário o torneio e a delicadeza da argolinha Nos anos 1550 em Montpellier o estudante de medicina Félix Platter76 conta que no dia 7 de junho a nobreza realizou um torneio de argolinha os cavalos estavam ricamente ajaezados cobertos com tapetes e ornados com penachos de todas as cores Em seu diário da infância de Luís XIII Heroard frequentemente menciona torneios de argolinha no Louvre e em SaintGermain A argolinha é praticada todos os dias observa o especialista Pluvinel A quintana e a argolinha como jogos reservados à nobreza sucederam aos torneios e aos jogos de cavalaria da Idade Média Mas o que aconteceu com elas depois disso Elas não desapareceram inteiramente como se poderia pensar Mas hoje em dia não as encontramos mais perto das quadras de tênis ou dos campos de golfe dos bairros ricos e sim nas feiras onde se continua a arrancar cabeças de turcos e onde as crianças montadas nos cavalos de pau dos carrosséis ainda tentam pegar argolinhas Isso é tudo que nos resta dos torneios de cavalaria da Idade Média brincadeiras de crianças e divertimentos do povo Não faltam exemplos dessa evolução que gradualmente transferiu os jogos antigos para o repositório dos jogos infantis e populares Tomemos o arco por exemplo no fim da Idade Média o arco não era monopólio das crianças ou apenas das crianças pequenas Em uma tapeçaria do século XVI77 podemos ver adolescentes brincando com arcos um deles está pronto para começar a rolar o seu com uma varinha Numa talha de Jean Leclerc do fim do século XVI aparecem crianças já grandes que não contentes em rolar seus arcos mantendo o movimento com uma varinha saltam através deles como se pulassem corda78 O arco permite acrobacias figuras às vezes difíceis Era bastante familiar entre os jovens e bastante antigo também para ser utilizado em danças tradicionais como a que nos descreve em 1596 em Avignon o estudante suíço Félix Platter numa terçafeira gorda reuniramse bandos de jovens mascarados fantasiados de peregrinos camponeses marinheiros italianos espanhóis alsacianos ou de mulheres e escoltados por músicos À noite eles executaram na rua a dança dos arcos na qual tomaram parte muitos rapazes e moças da nobreza vestidos de branco e 113 cobertos de joias Cada um dançava segurando no alto um arco branco e dourado Eles entraram no albergue onde fui olhálos de perto Era admirável vêlos passar e repassar sob esses círculos dando uma volta desfazendo a volta e entrecruzando se em cadência ao som dos instrumentos Danças desse gênero pertencem ainda hoje ao repertório das aldeias do País Basco A partir do fim do século XVII nas cidades o arco parece ter sido deixado às crianças uma gravura de Merian79 nos mostra uma criancinha rolando seu arco como o fariam as crianças durante todo o século XIX e parte do século XX Brinquedo de todos acessório da acrobacia e da dança o arco seria confinado a crianças cada vez menores até seu abandono definitivo talvez a verdade seja que para manter a atenção das crianças o brinquedo deva despertar alguma aproximação com o universo dos adultos No início deste capítulo vimos que se contavam histórias a Luís XIII os contos de Melusina que eram contos de fadas Mas nessa época essas histórias se destinavam também aos adultos Como observa M E Storer historiador da moda dos contos de fadas no fim do século XVII80 Mme de Sérvigné tinha a cabeça cheia de histórias de fadas Embora achasse graça nas brincadeiras de M de Coulanges a respeito de uma certa Cuverdon ela não lhe respondeu por medo que um sapo pulasse em seu rosto para punila por sua ingratidão Ela aludia aí a uma fábula do trovador Gauthier de Coincy que conhecia através da tradição Mme de Sérvigné escreve em 6 de agosto de 1677 Mme de Coulanges quis gentilmente nos pôr a par dos contos com os quais se distraem as damas de Versalhes ou como se diz com o quais elas são mimadas Portanto ela nos mimou também e falounos de uma ilha verde onde vivia uma princesa mais bela que o dia Eram as fadas que sopravam sobre ela o tempo todo etc Esse conto durou bem uma hora Sabemos também81 que Colbert em suas horas vagas tinha pessoas com a função o grifo é nosso de entretêlo com histórias muito semelhantes aos contos de fadas Contudo na segunda metade do século começouse a achar esses contos muito simples Ao mesmo tempo surgiu por eles um novo tipo de interesse que tendia a transformar em um gênero literário da moda as recitações orais tradicionais e ingênuas Esse interesse manifestouse de duas maneiras nas publicações reservadas às crianças ao menos em princípio com os contos de Perrault que ainda revelavam uma certa vergonha em admitir o gosto pelos velhos contos e nas publicações mais sérias destinadas aos adultos e das quais se excluíam as crianças e o povo A evolução do conto de fadas lembra a dos jogos de salão descrita acima 114 Eis como Mme de Murat se dirigia às fadas modernas As fadas antigas vossas precursoras parecem criaturas frívolas comparadas a vós Suas ocupações eram baixas e pueris e só divertiam as criadas e as amas Todo o seu serviço consistia em varrer a casa cuidar do fogão lavar a roupa embalar e adormecer as crianças ordenhar as vacas bater a manteiga e mil outras ninharias dessa ordem Eis por que tudo o que nos resta hoje de seus feitos e gestos são apenas contos de fadas Elas não passavam de mendigas Mas vós senhoras as fadas modernas vós seguistes por outro caminho Só vos ocupais com coisas importantes Dentre elas as menos importantes são dar espírito àqueles que não o têm beleza aos feios eloquência aos ignorantes e riqueza aos pobres Outros autores porém continuavam sensíveis ao sabor dos velhos contos ouvidos outrora e procuravam perserválo Mlle Lhéritier apresenta seus contos da seguinte maneira Cent fois ma nourrice ou ma mie Mont fait ce beau récit le soir près des tisons Je ny fais quajouter un peu de broderie Talvez vos espanteis com o fato de que esses contos embora inverossímeis nos tenham sido transmitidos através dos séculos sem que ninguém tenha tido o trabalho de escrevêlos Ils ne sont pas aisés à croire Mais tant que dans le monde on verra des enfants Des mères et des mères grands On en gardera la mémoire Começouse a fixar essa tradição que durante tanto tempo fora mantida oralmente certos contos que me contaram quando eu era criança nos últimos anos foram postos no papel por penas engenhosas Mlle Lhéritier pensava que sua origem devia remontar à Idade Média Ela a tradição assegurame que os trovadores ou contadores de histórias da Provença inventaram Finette muito antes que Abelardo ou o célebre Conde Thibaud de Champagne produzissem seus romances Assim o conto tornouse um gênero literário próximo do conto filosófico ou arcaizante como o de Mlle Lhéritier Deveis admitir que os melhores contos que temos são os que mais imitam o estilo e a simplicidade de nossas amas Enquanto o conto se tornava no fim do século XVII um gênero novo da 115 literatura escrita e séria filosófica ou arcaizante tanto faz a recitação oral dos contos foi abandonada por aqueles a quem se dirigia a moda dos contos escritos Colbert e Mme de Sérvigné ouviam os contos que lhes contavam e ninguém na época pensava em sublinhar esse fato como uma singularidade era uma distração banal como hoje seria a leitura de um romance policial Em 1771 porém já não era mais assim e na boa sociedade entre os adultos os velhos contos da tradição oral mais ou menos esquecidos eventualmente se tornavam objeto de uma curiosidade de caráter arqueológico ou etnológico que já anunciava o gosto moderno pelo folclore ou a gíria A Duquesa de Choiseul escreve a Mme du Deffand que Choiseul manda que lhe leiam contos de fadas o dia inteiro Todos nós os estamos lendo agora Consideramolos tão verossímeis quanto a história moderna Isso equivaleria a vermos hoje um de nossos estadistas após uma derrota política lendo o Pato Donald ou Tintin em seu recolhimento como se essas historinhas não fossem mais bobas do que a realidade A Duquesa de Choiseul não resistiu à tentação e escreveu dois contos em que reencontramos o tom do conto filosófico a julgar pelo início do Le Prince enchanté Minha amiga Margot tu que em meu quarto chamavas o sono ou reabrias minhas pálpebras com lindos contos de fadas contame alguma história sublime com a qual eu possa alegrar os presentes Não diz Margot não é preciso nada de sublime Tudo o que os homens precisam é de contos de fadas Segundo outro episódio da época uma dama em um dia de tédio sentiu a mesma curiosidade dos Choiseuls Chamou sua criada e pediulhe a história de Pierre de Provence e da bela Maguelonne que hoje teríamos esquecido inteiramente se não fosse o admirável Lieder de Brahms A criada espantada pediu que a senhora repetisse três vezes e recebeu com desprezo a ordem estranha no entanto teve de obedecer desceu até a cozinha e voltou vermelha com a brochura De fato no século XVIII havia alguns editores especializados principalmente em Troyes que publicavam edições impressas de contos para o público rural que sabia ler e que era alcançado através de mascates Mas essas edições conhecidas como Bibliothèque Bleue ou contos azuis por serem impressas em papel azul nada tinham a ver com a moda literária do fim do século XVII Elas transcreviam tão fielmente quanto o permitia a inevitável evolução do gosto as velhas histórias da tradição oral Uma edição de 1784 da Bibliothèque Bleue contém ao lado da história de Pierre de Provence e da bela Naguelonne as histórias de Robert le Diable e os quatro irmãos Aymon os contos de Perrault e os de Mlle de la Force e Mme dAulnay 116 Ao lado dos livros da Bibliothèque Bleue havia ainda os contadores de histórias ocasionais das longas noites de inverno e também os contadores profissionais herdeiros dos velhos declamadores cantores e jograis Na pintura e na gravura dos séculos XVII e XVIII e na litografia pitoresca do início do século XIX o tema do contador de histórias e do charlatão é muito popular82 O charlatão aparece trepado em um estrado contando sua história e mostrando com uma vareta o texto escrito em um quadro grande que um ajudante segura com os braços esticados para que os ouvintes possam ler enquanto ouvem Em algumas cidades da província a pequena burguesia algumas vezes ainda conservava esse passatempo Um memorialista contanos que em Troyes no fim do século XVIII os homens se reuniam durante o inverno nos cabarés e durante o verão nos jardins onde após tirar a peruca colocavam seus gorros83 Esses grupos eram chamados de cotteries Cada cotterie tinha pelo menos um contador de histórias no qual todos os outros modelavam seu talento O memorialista lembrase de um desses contadores de histórias um velho açougueiro Dois dias que passei com ele quando eu era criança correram entre histórias e contos cujo encanto cujo efeito e cuja ingenuidade mal poderiam ser não digo expressos mas sentidos pela raça atual a geração atual Assim os velhos contos que todos ouviam na época de Colbert e de Mme de Sérvigné foram pouco a pouco abandonados primeiro pelos nobres e a seguir pela burguesia às crianças e ao povo do campo Este último abandonouos também por sua vez quando o jornal substituiu a Bibliothèque Bleue as crianças tornaramse então seu público por pouco tempo aliás pois a literatura infantil está passando hoje pela mesma renovação que os jogos as brincadeiras e os costumes A pela era um dos jogos mais difundidos entre os jogos desportivos Era o que os moralistas do fim da Idade Média toleravam com menos repugnância durante vários séculos foi o jogo mais popular comum a todas as condições sociais aos reis e aos plebeus Mas essa unanimidade cessou no fim do século XVII Constata se então um declínio da popularidade da pela entre a nobreza Em Paris em 1657 contavamse 114 quadras de pela em 1700 apesar do aumento da população seu número havia caído para 10 no século XIX havia apenas 2 uma na Rue Mazarine e outra no terraço das Tulherias onde se manteve até 190084 Segundo Jusserand o historiador dos jogos Luís XIV já jogava pela sem entusiasmo Embora os adultos bemcriados abandonassem esse jogo os camponeses e as crianças mesmo bemcriadas permaneceramlhe fiéis sob diversas formas de jogos de raquetes No País Basco a pela subsistiu até seu renascimento sob a forma aperfeiçoada da pelota basca jogada com cestas grandes ou pequenas 117 Uma gravura de Merian85 do fim do século XVII mostranos um jogo de bola que reúne pequenos e grandes no quadro a bola está sendo enchida Mas nessa época o jogo de bola já era suspeito para os especialistas em etiqueta e boas maneiras Thomas Elyot e Shakespeare o desaconselhavam aos nobres Jaime I da Inglaterra o proibiu a seu filho Segundo du Cange ele só era praticado pelos camponeses A chole uma espécie de bola que cada jogador chuta com o pé com violência e que ainda é usada em um jogo dos camponeses de nossas províncias Esse jogo sobreviveu até o século XIX na Bretanha por exemplo O senhor da aldeia lemos em um texto do ano VIII lançava no meio da multidão uma bola cheia de farelo que os homens dos diferentes cantões tentavam arrebatar Vi em minha infância o autor nascera em 1749 um homem quebrar a perna ao saltar sobre um respiradouro para pegar a bola Esses jogos estimulavam a força física e a coragem mas repitoo eram perigosos Sabemos que o uso da bola se conservou entre as crianças e os camponeses Muitos outros jogos de exercício passariam assim para o domínio das crianças e do povo Foi o que aconteceu com a malha por exemplo sobre a qual Mme de Sévigné escreveu em uma carta de 1685 a seu genro86 Assisti a dois jogos de malha em Les Rochers Ah meu caro conde penso sempre em vós e na graça que tínheis ao atingir a bola Gostaria que tivésseis em Grignan uma aleia igualmente bonita Todos esses jogos de boliche e críquete abandonados pela nobreza e pela burguesia no século XIX passaram aos adultos dos campos e às crianças Essa sobrevivência popular e infantil de jogos outrora comuns a toda a coletividade preservou também uma das formas de divertimento mais gerais da antiga sociedade o disfarce a fantasia Os romances do século XVI ao XVIII estão cheios de histórias de disfarces rapazes vestidos de mulher princesas vestidas de pastoras etc Essa literatura traduz um gosto que sempre se expressava nas festas sazonais ou ocasionais festas de Reis terçafeira gorda festas de novembro Durante muito tempo usaramse normalmente máscaras para sair sobretudo as mulheres As pessoas bemnascidas gostavam de ser retratadas usando sua fantasia favorita A partir do século XVIII as festas à fantasia se tornaram mais raras e mais discretas na boa sociedade O carnaval tornouse então popular e atravessou o oceano impondose aos escravos negros da América enquanto os disfarces e fantasias foram reservados às crianças Atualmente só as crianças se mascaram no carnaval e se fantasiam para brincar Em cada caso a mesma evolução se repete monotonamente E nos conduz a uma conclusão importante 118 Partimos de um estado social em que os mesmos jogos e brincadeiras eram comuns a todas as idades e a todas as classes O fenômeno que se deve sublinhar é o abandono desses jogos pelos adultos das classes sociais superiores e simultaneamente sua sobrevivência entre o povo e as crianças dessas classes dominantes É verdade que na Inglaterra os fidalgos não abandonaram como na França os velhos jogos mas transformaramnos e foi sob formas modernas e irreconhecíveis que esses jogos foram adotados pela burguesia e pelo esporte do século XIX É notável que a antiga comunidade dos jogos se tenha rompido ao mesmo tempo entre as crianças e os adultos e entre o povo e a burguesia Essa coincidência nos permite entrever desde já uma relação entre o sentimento da infância e o sentimento de classe 119 1 Heroard Journal sur lenfance et la jeunesse de Louis XIII editado por E Soulié e E Barthélémy 2 vols 1868 2 Cf infra III parte cap 2 3 Nilsson La Religion populaire dans La Grèce antique 4 E Fournier Histoire des jouets et jeux denfants 1889 5 Arnoult gravura Cabinet des Estampes Oa 52 pet fol Fo 164 6 Claudine Bouzonnet Jeaux de lenfance 1657 7 Museu de Genebra 8 P Fierens Le Nain 1933 prancha XX 9 Louvre 10 Chantilly 11 Victoria and Albert Museum Londres 12 Berndt no 509 Cornelis de Man no 544 Molinar 13 Fournier op cit 14 Lepeautre gravura Cabinet des Estampes Ed 73 info p 104 15 Van Marle op cit vol I p 71 16 O mês de férias coletivas na Europa N T 17 Mme de Sévigné Lettres 1671 18 Cf nota no 10 deste capítulo 19 Reproduzido por H DAllemagne Récréations et passetemps 1906 p 107 20 Metsu A Festa de Reis reproduzida em Berndt no 515 21 Steen Kassel reproduzido em F SchmidtDegener e Van Gelder Jan Steen 1928 p 82 22 Gravura de F Mazot La Nuit 23 Exposição de leques pintados Galerie Charpentier Paris 1954 no 70 proveniente da Coleção Duchesne 24 Thomas Platter à Montpellier 15951599 p 346 25 Cf infra III parte cap 2 26 T L Jarman Landmarks in the History of Education 1951 27 Ibid 28 Charles de Robillard de Beaurepaire Recherches sur linstruction publique dans le diocèse de Rouen avant 1789 1872 3 vols vol II p 284 29 J J Jusserand Les Sports et Jeux dexercice dans lancienne France 1901 30 Paul Achard Les Chefs des Plaisirs in Annuaire administratif du département du Vaucluse 1869 31 Laval Droit de barbe et batacule Université dAvignon pp 445 32 A Varagnac Civilisations traditionnelles 1948 33 As Estações Florença H Göbbel Wandteppiche 1923 vol II p 409 34 Brokenburgh 16501702 reproduzido em Berndt no 131 35 Tapeçaria de Tournai H Göbbel op cit vol II p 24 36 Ver também I Mariette Cabinet des Estampes Ed 82 info e Mérian Cabinet des Estampes Ec 11 info p 58 120 37 Musée des Augustins Toulouse 38 Félix et Thomas Platter O Jovem à Montpellier 1892 p 142 39 L Massebieau Les Colloques scolaires 1878 40 Lamen 16061652 O Interlúdio Musical reproduzido em Berndt no 472 41 Thomas Morley citado em F Watson The English Grammar Schools to 1660 1907 p 216 42 Franz Hals Meninos músicos Kassel Gerson vol I p 167 43 Franz Hals Berlim Le Nain Detroit La charette do Louvre 44 Brouwer Tocador de realejo cercado de crianças Harlem reproduzido em W von Bode p 29 Ateliè de Georges de la Tour Exposição da Orangerie de Paris 1958 no 75 45 Vinckelbaons 15761629 reproduzido em Berndt no 942 46 Le Nain reproduzido em P Fierens Le Nain 1933 prancha XCIII 47 N Guérard gravura Cabinet des Estampes Ee 3 info 48 Charles Sorel Maison des Jeux 2 vols 1642 vol I pp 46971 49 Larché de Languis autor de Pastorales basques circa 1769 50 Marechal de Caillière La Fortune des gens de qualité et des gentilshommes particuliers 1661 51 Méré Oeuvres ed Charles Boudhors 3 vols 1930 52 Vivès Dialogues trad francesa 1571 53 G Carré Les élèves de lancien collège de Troyes in Mémoires de la Société académique de lAube 1881 54 Thomas Hughes Tom Browns School Days 1857 55 L Cognet La Mère Angélique et saint François de Sales 1951 p 28 56 JJ Jusserand op cit 57 Essa dança chamavase Karrildanza Informação fornecida por Mme Gil Reicher 58 R Caillois Quatre essais de sociologie contemporaine 1951 59 H Rashdall The Universities of Europe in the Middle Ages 1895 3 vols reed 1936 60 Félibien vol V p 662 61 Ibid p 689 62 Ibid p 721 63 Publicado em Théry Histoire de léducation en France 1858 2 vols vol II 64 Vivès Dialogues cf nota 52 deste capítulo 65 P de Dainville Entre Nous 1958 2 66 Academia sive speculum vitae scolasticae 1602 67 JJ Jusserand op cit 68 D Mornet Histoire de la littérature classique 1940 p 120 69 Cf nota 10 deste capítulo 70 Christine de Pisan Oeuvres poétiques editadas por M Roy 1886 pp 34 188 196 205 Eu te vendo a malvarosa Bela chamarte não ouso Como pode o Amor me empurrar em tua direção Se tanto o percebes e nada dizes N T 71 Erasmo Le Mariage chrétien 72 C Sorel Maison des jeux 1642 2 vols 73 S de Vriès e Marpugo Le Bréviaire Grimani 19041910 12 vols 74 B Castiglione Le Courtisan 75 Pluvinel com gravuras de Crispin de Pos Cabinet des Estampes Ec 35o info fig 47 121 76 Félix et Thomas Plater a Montpellier p 132 Círculo de madeira leve que as crianças fazem rolar com o auxílio de um bastão N T 77 Göbel op cit II 196 78 Leclerc op cit 79 Merian gravura Cabinet des Estampes Ec 11 info p 58 80 M E Storer La Mode des contes de fées 16851700 1928 81 Ibid Cem vezes minha ama ou minha amiga Contaramme esta história à noite ao pé do fogo Não faço mais aqui do que acrescentar alguns ornamentos N T Eles não são fáceis de acreditar mas enquanto neste mundo houver crianças Mães e avós Serão lembrados N T 82 Guardi em Fiocco Venetian Painting prancha LXXIV Magnasco em Geiger Magnasco prancha XXV G Dou Munique K d K prancha LXXXI 83 Vie de M Groslev 1787 84 JJ Jusserand op cit 85 Merian gravura Cabinet des Estampes Ec 10 info 86 Mme de Sévigné Lettres 13 de junho de 1685 122 U 5 Do Despudor à Inocência ma das leis não escritas de nossa moral contemporânea a mais imperiosa e a mais respeitada de todas exige que diante das crianças os adultos se abstenham de qualquer alusão sobretudo jocosa a assuntos sexuais Esse sentimento era totalmente estranho à antiga sociedade O leitor moderno do diário em que Heroard o médico de Henrique IV anotava os fatos corriqueiros da vida do jovem Luís XIII1 fica confuso diante da liberdade com que se tratavam as crianças da grosseria das brincadeiras e da indecência dos gestos cuja publicidade não chocava ninguém e que ao contrário pareciam perfeitamente naturais Nenhum outro documento poderia darnos uma ideia mais nítida da total ausência do sentimento moderno da infância nos últimos anos do século XVI e início do XVII Luís XIII ainda não tem um ano Ele dá gargalhadas quando sua ama lhe sacode o pênis com a ponta dos dedos Brincadeira encantadora que a criança não demora a dominar Ele chama um pajem com um Ei e levanta a túnica mostrandolhe o pênis Luís XIII tem um ano Muito alegre anota Heroard ele manda que todos lhe beijem o pênis Ele tem certeza de que todos se divertem com isso Todos se divertem também com sua brincadeira diante de duas visitas o Senhor de Bonnières e sua filha Ele riu muito para o visitante levantou a roupa e mostrou lhe o pênis mas sobretudo à sua filha então segurando o pênis e rindo com seu risinho sacudiu o corpo todo As pessoas achavam tanta graça que a criança não se cansava de repetir um gesto que lhe valia tanto sucesso Diante de uma pequena senhorita Levantou a túnica e mostroulhe o pênis com um tal ardor que ficou fora de si Ele se deitou de costas para mostrálo melhor Luís XIII tem um pouco mais de um ano quando seu casamento com a Infanta de Espanha é decidido As pessoas explicamlhe o que isso significa e ele compreende muito bem Perguntamlhe Onde está o benzinho da Infanta Ele põe a mão no pênis Durante seus três primeiros anos ninguém desaprova ou vê algum mal em 123 tocar por brincadeira em suas partes sexuais A Marquesa de Verneuil muitas vezes punha a mão embaixo de sua túnica ele pedia para ser colocado na cama de sua ama onde ela brincava com ele e punha a mão embaixo de sua túnica Mme de Verneuil quis brincar com ele e segurou seus mamilos ele a empurrou e disse sai sai deixa isso vai embora Ele nunca permitia que a Marquesa tocasse em seus mamilos pois sua ama o havia instruído dizendolhe Monsieur não deixeis ninguém jamais tocar em vossos mamilos nem em vosso pênis pois podem cortá lo Ele se lembrava disso Ao se levantar de manhã não quis nem por nada vestir a camisa e disse camisa não Heroard gosta de reproduzir o jargão e até mesmo a pronúncia da infância balbuciante primeiro quero dar a todo o mundo um pouco de leite do meu pênis as pessoas estenderam a mão e ele fingiu que tirava leite fazendo pss pss deu leite a todos e só então deixou que lhe pusessem a camisa Era uma brincadeira comum e muitas vezes repetida as pessoas lhe diziam Monsieur não tem pênis Ele respondia É olha aqui e alegremente levantavao com o dedo Essas brincadeiras não eram restritas à criadagem ou a jovens desmiolados ou a mulheres de costumes levianos como a amante do Rei A Rainha sua mãe também gostava dessa brincadeira A Rainha pondo a mão em seu pênis disse Meu filho peguei a sua torneira O trecho seguinte é ainda mais extraordinário Ele e Madame sua irmã foram despidos e colocados na cama junto com o Rei onde se beijaram gorjearam e deram muito prazer ao Rei O Rei perguntoulhe Meu filho onde está a trouxinha da Infanta Ele mostrou o pênis dizendo Não tem osso dentro papai Depois como seu pênis se enrijecesse um pouco acrescentou Agora tem de vez em quando tem De fato as pessoas se divertiam em observar suas primeiras ereções Tendo acordado às 8h ele chamou Mlle Bethouzay e lhe disse Zezai meu pênis parece uma ponte levadiça levanta e abaixa E ele o levantava e o abaixava Aos quatro anos sua educação sexual já estava adiantada Foi levado aos aposentos da Rainha aí Mme de Guise mostroulhe a cama da Rainha e disselhe Monsieur foi aqui que fostes feito Ele respondeu Com mamãe Ele perguntou ao marido de sua ama O que é isto É a minha meia de seda disse este E isto à maneira dos jogos de salão São as minhas calças Elas são de quê De veludo E isto É uma braguilha O que é que tem dentro Não sei Monsieur Eh é um pênis Para quem é esse pênis Não sei Monsieur Eh é para Mme Doundoun sua ama Ele se pôs entre as pernas de Mme de Monglat sua governanta uma mulher muito digna muito responsável e que no entanto não parecia incomodarse não 124 mais do que Heroard com todas essas brincadeiras que hoje consideramos intoleráveis O Rei lhe disse Vede o filho de Mme de Monglat ela está dando à luz Ele saiu de lá rapidamente e foi instalarse entre as pernas da Rainha Entre cinco e seis anos as pessoas pararam de se divertir com as partes sexuais do Delfim Enquanto isso porém ele começou a se divertir com as dos outros Mlle Mercier uma de suas criadas que havia dormido tarde na noite anterior certa manhã ainda estava deitada em uma cama ao lado da sua seus criados às vezes casados dormiam em seu quarto e a presença do menino não devia incomodálos muito Ele brincou com ela mandou que ela mexesse os dedos dos pés com as pernas para cima e mandou sua ama buscar uma vara para bater em seu traseiro no que foi obedecido Sua ama perguntoulhe Monsieur o que vistes de Mlle Mercier Ele respondeu friamente Vi sua bunda Que mais Ele respondeu friamente e sem rir que havia visto sua vagina Em outra ocasião ele brincou com Mlle Mercier e me chamou Heroard dizendome que a Mercier tinha uma vagina deste tamanho mostrou seus dois punhos e que havia água dentro A partir de 1608 esse gênero de brincadeira desaparece o Delfim se tornara um homenzinho atingindo a idade fatídica de sete anos e era preciso ensinar lhe modos e linguagem decentes Quando lhe perguntam por onde nascem as crianças ele responde como a Agnès de Molière que é pela orelha Mme de Monglat o repreende quando ele mostra seu pênis à pequena Ventelet E se seus criados continuam a colocálo de manhã ao acordar na cama de Mme de Monglat entre esta e seu marido Heroard fica indignado e anota na margem do diário insignis impudentia O menino de 10 anos era forçado a se comportar com uma compenetração que ninguém pensava em exigir de um menino de cinco A educação praticamente só começava depois dos sete anos E esses escrúpulos tardios de decência devem também ser atribuídos a um início de reforma dos costumes sinal da renovação religiosa e moral do século XVII Era como se o valor da educação começasse apenas com a aproximação da idade adulta Por volta dos 14 anos entretanto Luís XIII nada mais tinha a aprender pois foi aos 14 anos e dois meses que o colocaram quase à força na cama de sua mulher Após a cerimônia ele se deitou e ceou na cama às 6h45min M de Gramont e alguns jovens senhores contaramlhe histórias grosseiras para encorajálo Ele pediu suas pantufas colocou o robe e foi para o quarto da Rainha às 8h Foi instalado na cama ao lado da Rainha sua mulher na presença da Rainha sua mãe às 10h15min ele voltou após ter dormido cerca de uma hora e ter feito duas vezes segundo nos disse de fato parecia verdade pois seu pênis estava todo vermelho O casamento de um menino de 14 anos talvez começasse a se tornar mais raro 125 O casamento de uma menina de 13 ainda era comum Não há por que pensar que o clima moral devesse ser diferente em outras famílias de fidalgos ou plebeus Essa prática familiar de associar as crianças às brincadeiras sexuais dos adultos fazia parte do costume da época e não chocava o senso comum Na família de Pascal Jacqueline Pascal aos 12 anos escrevia versos sobre a gravidez da Rainha Thomas Platter relata em suas memórias de estudante de medicina em Montpellier no fim do século XVI Conheci um menino que fez essa afronta amarrar a agulheta de uma moça na hora do casamento para tornar o marido impotente à criada de seus pais Esta suplicoulhe que desfizesse o encantamento desamarrando a agulheta Ele consentiu e logo o noivo recuperando sua potência ficou completamente curado O Pe de Dainville historiador dos jesuítas e da pedagogia humanista também constata O respeito devido às crianças era então no século XVI algo totalmente ignorado Os adultos se permitiam tudo diante delas linguagem grosseira ações e situações escabrosas elas ouviam e viam tudo2 Essa ausência de reserva diante das crianças esse hábito de associálas a brincadeiras que giravam em torno de temas sexuais para nós é surpreendente é fácil imaginar o que diria um psicanalista moderno sobre essa liberdade de linguagem e mais ainda essa audácia de gestos e esses contatos físicos Esse psicanalista porém estaria errado A atitude diante da sexualidade e sem dúvida a própria sexualidade variam de acordo com o meio e por conseguinte segundo as épocas e as mentalidades Hoje os contatos físicos descritos por Heroard nos pareceriam beirar a anomalia sexual e ninguém ousaria praticálos publicamente Ainda não era assim no início do século XVII Uma gravura de Baldung Grien de 1511 representa uma sagrada família O gesto de SantAna nos parece singular ela está abrindo as pernas da criança como se quisesse descobrir seu sexo e fazerlhe cócegas Seria errado ver aí uma intenção picante3 Esse hábito de brincar com o sexo das crianças pertencia a uma tradição muito difundida que hoje em dia ainda encontramos nas sociedades muçulmanas Essas sociedades se mantiveram alheias não apenas ao progresso científico mas também à grande reforma moral inicialmente cristã e a seguir leiga que disciplinou a sociedade aburguesada do século XVIII e sobretudo do século XIX na Inglaterra e na França Encontramos assim nessas sociedades muçulmanas traços cuja estranheza nos surpreende mas que não teriam surpreendido tanto o excelente Heroard Podemos julgálo por uma página extraída do romance La Statute de Sel 1953 Seu autor é um judeu tunisino Albert Memmi e o livro é um testemunho curioso sobre a sociedade tunisina tradicional e a mentalidade dos jovens semi 126 ocidentalizados O herói do romance conta uma cena passada no bonde que o conduzia à escola em Túnis À minha frente estavam um muçulmano e seu filho um menininho mínimo com um fez miniatura e henê nas mãos à minha esquerda um quitandeiro djerbiano a caminho do mercado com uma cesta entre as pernas e um lápis atrás da orelha O djerbiano tomado pelo calor e a quietude do vagão se agitou Sorriu para o menino que em resposta sorriu com os olhos e olhou para o pai O pai reconhecido e lisonjeado tranquilizou o filho e sorriu para o djerbiano Quantos anos você tem perguntou o quitandeiro ao menino Dois anos e meio respondeu o pai a idade do pequeno Luís XIII Será que o gato comeu a sua língua perguntou o quitandeiro ao menino Não respondeu o pai ele ainda não foi circuncidado mas vai ser em breve Ah Ah disse o outro Ele havia encontrado um assunto para conversar com a criança Você quer me vender o seu pintinho Não disse o menino com raiva Ele visivelmente conhecia essa cena e já lhe haviam feito a mesma proposta antes Eu também a criança judia a conhecia Já havia participado dela em outros tempos provocado por outras pessoas com os mesmos sentimentos de vergonha e de concupiscência de revolta e de curiosidade cúmplice Os olhos do menino brilhavam de prazer por sua virilidade nascente sentimento moderno atribuído à criança pelo evoluído Memmi que conhece as descobertas recentes sobre a precocidade do despertar sexual das crianças os homens de outrora ao contrário acreditavam que a criança impúbere era estranha à sexualidade e também de revolta contra essa inqualificável agressão O menino olhou para o pai O pai sorria era uma brincadeira permitida o grifo é meu Nossos vizinhos se interessavam pela cena tradicional com uma aprovação complacente Eu lhe dou 10 francos propôs o djerbiano Não disse o menino Vamos lá me venda o seu p replicou o djerbiano Não não Eu lhe dou 50 francos Não Vou lhe dar tudo o que posso 1000 francos Não Os olhos do velho djerbiano assumiram uma expressão de gula E mais um saco de balas Não não Então é não É a sua última palavra gritou o djerbiano fingindo raiva Repita pela última vez é não mesmo Não Então bruscamente o adulto pulou em cima da criança com uma expressão terrível no rosto e a mão brutal remexendo dentro de sua braguilha O menino se defendeu com socos O pai ria às gargalhadas o djerbiano se contorcia nervosamente e nossos vizinhos sorriam divertidos Essa cena do século XX não nos permite compreender melhor o século XVII antes da reforma moral Devemos evitar os anacronismos como a explicação dos excessos barrocos do amor materno de Mme de Sévigné através do incesto segundo seu último editor Tratavase de um jogo cujo caráter escabroso não devemos exagerar ele não era maior do que hoje nas anedotas picantes das conversas entre 127 homens Essa semiinocência que nos parece viciosa ou ingênua explica a popularidade do tema da criança fazendo pipi que data do século XV Esse tema aparece nas imagens dos livros de horas e nos quadros de igreja Nos calendários do livro de horas de Henessy4 e do breviário de Grimani5 do início do século XVI um mês de inverno é representado por uma aldeia coberta de neve a porta de uma casa está aberta e vêse uma mulher fiando e um homem se aquecendo junto do fogo uma criança faz pipi na frente da porta em cima da neve bem à vista Um Ecce homo flamengo de P Pietersz6 destinado sem dúvida a uma igreja mostra entre uma multidão de espectadores um grande número de crianças uma mãe segura o filho no alto por cima da cabeça para que ele possa ver melhor enquanto meninos levados escalam pórticos Uma criança faz pipi segura pela mãe Enquanto assistiam à missa na capela de seu Palácio da Justiça os magistrados de Toulouse podiam distrairse com uma cena do mesmo gênero Um grande tríptico representava a história de São João Batista7 No painel central aparece São João Batista pregando As crianças se misturam à multidão uma mulher dá de mamar um menino está trepado em uma árvore um pouco afastado um menino levanta a túnica e faz pipi na frente dos parlamentares Essa abundância de crianças nas cenas de multidão e essa repetição de certos temas a criança ao seio a criança fazendo pipi no século XV e sobretudo no século XVI são o indício de um interesse novo e especial É notável também a frequência com que aparece nessa época outra cena da iconografia religiosa a circuncisão A circuncisão é representada com uma precisão quase cirúrgica mas não devemos ver aí nenhuma malícia Tudo indica que a circuncisão e a apresentação da Virgem no Templo eram tratadas nos séculos XVI e XVII como festas da infância as únicas festas religiosas da infância antes da celebração solene da primeira comunhão Podemos ver na igreja parisiense de SaintNicolas uma tela do início do século XVII proveniente da abadia de Saint MartindesChamps A cena da circuncisão é assistida por um grande número de crianças algumas estão junto dos pais outras sobem nas pilastras para ver melhor Não há algo de estranho quase chocante para nós nessa escolha da circuncisão como festa da infância representada no meio das crianças Talvez isso seja chocante para nós mas não o é para um muçulmano de hoje nem o era para o homem do século XVI ou do início do século XVII Esse homem não apenas misturava sem repugnância as crianças a uma operação de natureza religiosa é verdade do órgão sexual masculino mas também se permitia com a consciência limpa e publicamente gestos e contatos físicos que 128 só passavam a ser proibidos quando a criança atingia a puberdade ou seja praticamente o mundo dos adultos Isso acontecia por duas razões Primeiro porque se acreditava que a criança impúbere fosse alheia e indiferente à sexualidade Portanto os gestos e as alusões não tinham consequência sobre a criança tornavamse gratuitos e perdiam sua especificidade sexual neutralizavamse Segundo porque ainda não existia o sentimento de que as referências aos assuntos sexuais mesmo que despojadas na prática de segundas intenções equívocas pudessem macular a inocência infantil de fato ou segundo a opinião que se tinha dessa inocência Na realidade não se acreditava que essa inocência realmente existisse Essa era ao menos a opinião geral não era mais porém a dos moralistas e dos educadores ao menos dos melhores dentre eles inovadores aliás pouco seguidos A importância retrospectiva desses inovadores provém do fato de que no final eles acabaram por fazer triunfar suas ideias que hoje são as nossas Essa corrente de ideias remontava no século XV época em que fora bastante poderosa para provocar uma mudança na disciplina tradicional das escolas Gerson fora então seu principal representante Ele exprimiu suas ideias com muita clareza revelandose para a sua época um excelente observador da infância e de suas práticas sexuais Essa observação dos costumes particulares da infância e a importância que Gerson lhes atribuiu dedicandolhes o tratado De confessione mollicei8 revelam uma preocupação totalmente nova que deve ser relacionada com todos os outros sinais que já examinamos na iconografia e no traje e que indicam um interesse inédito pela infância Gerson portanto estudou o comportamento sexual das crianças com o objetivo de ajudar os confessores para que estes despertassem em seus pequenos penitentes de 10 a 12 anos de idade um sentimento de culpa Ele sabia que a masturbação e a ereção sem ejaculação eram práticas generalizadas se alguém for interrogado a esse respeito e negar com toda a certeza estará mentindo Para Gerson a questão era muito grave O peccatum mollicei mesmo que em virtude da idade não tenha sido acompanhado de polução tira a virgindade da criança mais do que se o menino com a mesma idade tivesse frequentado mulheres Além disso ele beirava a sodomia Nesse ponto o julgamento de Gerson está mais próximo da doutrina moderna que considera a masturbação um estágio inevitável da sexualidade prematura do que os sarcasmos do romancista Sorel que via aí a consequência do enclausuramento escolar do internato De fato segundo Gerson a criança não era originariamente consciente de sua 129 culpa Sentiunt ibi quemdam pruritum incognitum tum stat erectio e pensam que é permitido que se fricent ibi et se palpent et se tractent sicut in aliis locis dum pruritus inest Isso seria a consequência da corrupção original ex corruptione naturae Estamos ainda muito longe da ideia de uma inocência infantil mas já estamos muito perto de um conhecimento objetivo do comportamento da criança cuja originalidade se torna evidente sob a luz do que foi dito acima Como preservar a infância desse perigo Através do conselho do confessor mas também através da modificação dos hábitos da educação e do estabelecimento de um novo comportamento com relação às crianças Deverseá falarlhes sobriamente utilizando apenas palavras castas Deverseá evitar que as crianças se beijem se toquem com as mãos nuas ou se olhem durante as brincadeiras figerent oculi in eorum decore Deverseá evitar a promiscuidade entre pequenos e grandes ao menos na cama os pueri capaces doli puellae juvenes não devem dormir na mesma cama com pessoas mais velhas mesmo que sejam do mesmo sexo A coabitação na mesma cama era então uma prática muito difundida em todas as camadas sociais Vimos que ela ainda subsistia no fim do século XVI até mesmo na corte de França as brincadeiras de Henrique IV com seu filho o futuro Luís XIII que era colocado em sua cama com a irmã justificariam quase dois séculos mais tarde a prudência de Gerson Gerson proibia que as crianças se tocassem in nudo durante as brincadeiras ou em outras situações e convidava seus leitores a desconfiar a societaliatibus persuis ubi colloquia prava et gestus impudici fiunt in lecto absque dormitione Gerson volta a essa questão em um sermão contra a luxúria proferido em um quarto domingo do Advento a criança não deve deixar que os outros a toquem ou beijem e se o fizer deve sempre se confessar in omnibus casibus é preciso frisar pois em geral não se via mal nisso Mais adiante ele diz que seria bom separar as crianças durante a noite a propósito lembra o caso contado por São Jerônimo de um menino de nove anos que fizera um filho mas ele diz apenas que seria bom não ousando ir mais longe de tal forma era generalizada a prática de se colocar todas as crianças da família para dormir na mesma cama quando não com um criado uma criada ou os pais9 No regulamento que elaborou para a escola de NotreDame de Paris Gerson tentou isolar as crianças e submetêlas à vigilância constante do mestre O espírito dessa nova disciplina será estudado em um capítulo especial mais adiante O professor de canto não devia ensinar cantilenas dissolutas impudicasque e os alunos tinham o dever de denunciar seus camaradas se estes cometessem alguma falta contra a decência e o pudor entre os outros delitos figuravam falar gallicum e não latim jurar mentir dizer injúrias demorarse na cama faltar às horas 130 e conversar na igreja À noite uma lamparina devia ficar acesa no dormitório Tanto por devoção à imagem da virgem como por causa das necessidades naturais e para que eles pratiquem sob a luz apenas os atos que podem e devem ser vistos Nenhuma criança deveria trocar de cama durante a noite ela devia ficar com o colega que lhe fora escalado Os conventicula vel societates ad partem extra alias não seriam permitidos nem de dia nem de noite Todo o cuidado era tomado para evitar as amizades particulares e as más companhias especialmente da criadagem Será proibida à criadagem toda familiaridade com as crianças sem exceção dos clérigos dos capellani e do pessoal da igreja havia uma certa falta de confiança eles não deverão dirigir a palavra às crianças fora da presença dos mestres As crianças estranhas à fundação não teriam permissão para ficar junto dos alunos nem mesmo para estudar com eles salvo licença especial do superior a fim de que nossas crianças pueri nostri não adquiram maus hábitos a exemplo dos outros Tudo isso era inteiramente novo e não devemos imaginar que as coisas se passassem realmente dessa maneira na escola Na segunda parte deste livro veremos como era realmente a vida escolar e quanto tempo e esforço foram precisos para fazer reinar mais tarde no século XVIII uma disciplina rigorosa nos colégios Gerson estava muito adiante das instituições de seu tempo Seu regulamento é interessante pelo ideal moral que revela que jamais fora formulado com essa precisão e que se tornaria o ideal dos jesuítas de PortRoyal dos irmãos da doutrina cristã e de todos os moralistas e educadores rigorosos do século XVII No século XVI os educadores eram mais tolerantes embora tivessem o cuidado de não ultrapassar certos limites Sabemos disso por meio dos livros escritos para os escolares onde estes aprendiam a leitura a escrita o vocabulário latino e finalmente as boas maneiras os tratados de civilidade e os colóquios que para se tornarem mais vivos colocavam em cena vários alunos ou um aluno e seu mestre Esses diálogos são excelentes documentos sobre os costumes escolares Nos diálogos de Vivès lemos afirmações que não teriam sido endossadas por Gerson mas que eram tradicionais Que parte é mais vergonhosa a parte da frente observemos a preocupação com a discrição ou o cu Todas as duas são muito indecentes a de trás devido à vilania e a outra devido à luxúria e à desonra10 Não faltam nesses diálogos brincadeiras um tanto grosseiras e assuntos sem nenhum caráter educativo Nos diálogos ingleses de Charles Hoole11 assistimos a algumas disputas Uma delas passase em uma taverna e as tavernas eram então lugares bem piores do que os nossos bares Há uma longa discussão sobre o 131 albergue onde se bebe a melhor cerveja Contudo mesmo em Vivès observamos um certo sentimento de pudor O terceiro dedo é chamado de infame Por quê O mestre disse que sabia a razão mas não queria contála porque era suja e infame logo não a procures pois não convém a uma criança de boa natureza se interrogar sobre coisas tão vis Isso é notável para a época A liberdade de linguagem era tão natural que mais tarde até mesmo os reformadores mais rigorosos deixariam passar em seus sermões para as crianças e os escolares comparações que hoje em dia pareceriam chocantes Assim em 1653 o padre jesuíta Lebrun exorta os nobilíssimos pensionistas do colégio de Clermont a evitarem a gula Eles se fazem de difíceis tamquam praegnantes mulierculae12 Mas no fim do século XVI uma mudança muito mais nítida teve lugar Certos educadores que iriam adquirir autoridade e impor definitivamente suas concepções e seus escrúpulos passaram a não tolerar mais que se desse às crianças livros duvidosos Nasceu então a ideia de se fornecer às crianças edições expurgadas de clássicos Essa foi uma etapa muito importante É dessa época realmente que podemos datar o respeito pela infância Essa preocupação surgiu na mesma época tanto entre católicos como entre protestantes na França como na Inglaterra Até então nunca se havia hesitado em deixar as crianças lerem Terêncio como um clássico Os jesuítas retiraramno de seus currículos13 Na Inglaterra as escolas utilizavam uma edição expurgada de Cornelius Schonaeus publicada em 1592 e reeditada em 1674 Brinsley a recomendava em seu manual do mestreescola14 Nas academias protestantes francesas utilizavamse os colóquios de Cordier 1564 que substituíram os colóquios de Erasmo de Vivès de Mosellanus etc Os colóquios de Cordier revelam uma nova preocupação com o pudor e um novo cuidado em evitar afrontas à castidade e à civilidade da linguagem O máximo que é tolerado é uma brincadeira sobre os usos do papel15 papel de aluno de escola papel de envelope papel de rascunho em um jogo de salão Finalmente um menino desiste mas o outro descobre a resposta que falta Papel que serve para limpar as nádegas no reservado Uma concessão inocente às brincadeiras tradicionais Cordier podia realmente ser posto entre as mãos de todos De qualquer forma seus colóquios eram lidos junto com os diálogos religiosos de S Castellion PortRoyal por sua vez publicou uma edição muito expurgada de Terêncio Comédias de Terêncio tornadas muito decentes e muito pouco modificadas16 Quanto ao pudor os colégios jesuítas introduziram precauções inabituais especificadas em regulamentos com respeito à administração dos castigos corporais Especificavase que não era preciso tirar as calças das vítimas 132 adolescentum qualquer que fosse a condição ou a idade do menino gosto muito dessa referência à condição deviase descobrir apenas a pele necessária para a aplicação da pena e não mais non amplius17 Uma grande mudança nos costumes se produziria durante o século XVII A menor das liberdades permitidas na corte de Henrique IV não teria sido tolerada por Mme de Maintenon com os filhos do Rei mesmo os bastardos como tampouco teria sido permitida nas casas dos libertinos Não se tratava mais de alguns moralistas isolados como Gerson e sim de um grande movimento cujos sinais se percebiam em toda a parte tanto em uma farta literatura moral e pedagógica como em práticas de devoção e em uma nova iconografia religiosa Uma noção essencial se impôs a da inocência infantil Já a encontramos em Montaigne que entretanto tinha poucas ilusões sobre a castidade dos jovens estudantes Cem estudantes pegaram varíola antes de chegar à lição de Aristóteles sobre a temperança18 Mas ele narra também um episódio que anuncia um novo sentimento Albuquerque correndo um grande perigo de naufragar colocou um menininho sobre os ombros para que em sua associação a inocência da criança lhe servisse de garantia e de recomendação para obter o favor divino e assim chegar são e salvo à terra19 Cerca de um século mais tarde essa ideia da inocência infantil haviase tornado um lugarcomum Vejamos por exemplo a legenda de uma gravura de F Guérard representando brincadeiras de crianças boneca e tambor20 Voilà lâge de linnocence Où nous devons tous revenir Pour jouir des biens avenirs Qui sont icy nostre espérance Lâge où lon sait tout pardonner Lâge où lon ignore la haine Où rien ne peut nous chagriner Lâge dor de la vie humaine Lâge qui brave les Enfers Lâge où la vie est peu pénible Lâge où la mort est peu terrible Et pour qui les cieux sont ouverts A ces jeunes plans de lEglise Quon porte un respect tendre et doux Le ciel est tout plein de courroux Pour quiconque les scandalise 133 Que longo caminho foi percorrido até chegarmos a esse ponto Podemos acompanhálo através de uma farta literatura da qual examinaremos a seguir algumas amostras LHonneste Garçon ou a arte de educar a nobreza na virtude na ciência e em todos os exercícios convenientes à sua condição publicado em 164321 por M de Grenaille escudeiro e Senhor de Chatauniers é um bom exemplo O autor já havia escrito LHonneste Fille Esse interesse pela educação pela instituição da juventude é digno de nota O autor sabe que não é o único a tratar desse assunto e desculpase em seu prefácio Não creio estar entrando no campo de M Faret22 ao tratar de um assunto que ele apenas aflorou ao falar da educação daqueles cuja perfeição final ele retratou Conduzo aqui o menino bemeducado desde o começo da infância até a juventude Trato primeiramente de seu nascimento e depois de sua educação refino suas maneiras e seu espírito ao mesmo tempo instruoo na religião e no decoro para que não seja nem ímpio nem supersticioso Antes existiam tratados de civilidade que eram apenas manuais de savoirvivre de boas maneiras Esses manuais só deixariam de ser apreciados no início do século XIX Mas ao lado desses livros de etiqueta que se dirigiam principalmente às crianças no início do século XVII surgiu uma literatura pedagógica destinada aos pais e aos educadores Por mais que essas obras se referissem a Quintiliano a Plutarco e a Erasmo eram uma novidade Eram tão novas que M de Grenaille se considerou obrigado a defenderse contra aqueles que viam na educação da juventude um assunto apenas prático e não um tema para um livro Havia Quintiliano e outros mas havia algo mais e o assunto era particularmente grave para os cristãos Já que o Senhor chama a si os pequenos inocentes não creio que seus súditos tenham o direito de rejeitálos nem que os homens devam ter repugnância em educálos pois ao fazêlo estão apenas imitando os anjos A comparação de anjos com crianças tornarseia um tema edificante comum Diz se que um anjo em forma de criança iluminou Santo Agostinho mas em compensação o santo gostava de comunicar sua sabedoria às crianças e em sua obra encontramos tratados destinados às crianças ao lado de tratados destinados aos grandes teólogos M de Grenaille cita São Luís que redigiu uma instrução para seu filho O Cardeal Bellarmin escreveu um catecismo para crianças Richelieu esse grande príncipe da Igreja deu Instruções aos pequeninos bem como conselhos aos maiores Montaigne também que não esperávamos encontrar em tão boa companhia preocupavase com os maus educadores especialmente os pedantes M de Grenaille continua Não devemos imaginar que toda vez que se fala da 134 infância estáse falando de algo frágil ao contrário pretendo mostrar aqui que um estado que muitos julgam desprezível é perfeitamente ilustre De fato foi nessa época que se começou realmente a falar na fragilidade e na debilidade da infância Antes a infância era mais ignorada considerada um período de transição rapidamente superado e sem importância Essa ênfase dada ao lado desprezível da infância talvez tenha sido uma consequência do espírito clássico e de sua insistência na razão mas acima de tudo foi uma reação contra a importância que a criança havia adquirido dentro da família e dentro do sentimento da família Voltaremos a esse ponto na conclusão da primeira parte deste livro Lembremos apenas que os adultos de todas as condições sociais gostavam de brincar com as crianças pequenas Esse hábito era sem dúvida antigo mas em um determinado momento passou a ser notado a ponto de provocar irritação Assim nasceu esse sentimento de irritação diante da infantilidade que é o reverso moderno do sentimento da infância A ele se somava o desprezo que essa sociedade de homens do ar livre e de homens mundanos sentia pelo professor o mestre do colégio o pedante em uma época em que os colégios se tornavam mais numerosos e mais frequentados e em que a infância já começava a lembrar aos adultos seu tempo de escola Na realidade a antipatia pelas crianças demonstrada pelos espíritos sérios ou preocupados é um testemunho do papel a seu ver demasiado importante reservado às crianças Para o autor de LHonneste Garçon a infância era ilustre graças à infância de Cristo Esta era aliás interpretada como o sinal da humilhação a que se submetera Cristo adotando não apenas a natureza humana mas a condição de criança colocandose portanto em um nível inferior ao do primeiro Adão segundo São Bernardo Por outro lado havia também as crianças santas os santos Inocentes as crianças santas que se haviam recusado a cultuar ídolos e o pequeno judeu de São Gregório de Tours que quase morrera queimado pelo pai em um forno porque se havia convertido à fé cristã Eu poderia mostrar ainda que até hoje a Fé encontra mártires nas crianças tanto quanto nos séculos passados A história do Japão nos mostra um pequeno Luís que aos 12 anos de idade mostrou muito mais coragem do que homens feitos Na mesma fogueira de D Carlos Spínola morrera uma mulher com seu filhinho o que mostra que Deus tira seus louvores da boca das crianças E o autor acumula os exemplos de crianças santas dos dois Testamentos citando mais este tirado da história medieval francesa e surpreendente na literatura clássica Não devo esquecer a virtude desses bravos meninos franceses cujo elogio foi feito por Nauclerus e que em número de 20000 participaram de uma cruzada no tempo do Papa Inocêncio III para tirar Jerusalém das mãos dos infiéis A cruzada das crianças 135 Sabemos que as crianças das gestas e dos romances de cavalaria se comportavam como cavaleiros o que para M de Grenaille era uma prova da virtude e do juízo das crianças Ele cita o caso de uma criança que se tornara campeão da Imperatriz mulher do Imperador Conrado em um duelo contra um famoso gladiador Que se leia nos Amadis nos romances de cavalaria sobre o que fizeram os Renauds os Tancrèdes e tantos outros cavaleiros a lenda não lhes atribui mais vantagens em nenhum combate do que a História real assegura a esse pequeno Aquiles Depois disso pode alguém dizer que a primeira idade não é comparável e muitas vezes até mesmo preferível a todas as outras Quem ousará dizer que Deus favorece igualmente as crianças e as pessoas mais velhas Ele favorece as crianças devido à sua inocência que se aproxima muito de sua impecabilidade As crianças não têm paixão nem vício Sua vida parece ser ditada pela razão em uma época em que elas parecem ser menos capazes de utilizar a força da razão Evidentemente não se mencionava mais o peccatum mollicei e nesse ponto aos nossos olhos informados pela psicanálise nosso fidalgo de 1642 parece estar mais atrasado do que Gerson É que a própria ideia de despudor e de pecado carnal por parte da criança o incomodava na medida em que era um argumento utilizado por aqueles que consideravam a infância parva e viciosa Esse novo espírito também é encontrado em PortRoyal exemplificado antes de tudo por SaintCyran Seus biógrafos jansenistas nos informam sobre a alta consideração em que ele tinha a infância e os deveres para com as crianças Ele admirava o filho de Deus que nas mais altas funções de seu ministério não permitiu que se impedissem as crianças de se aproximar dele que as beijava e as abençoava que tanto nos recomendou que não as desprezássemos ou negligenciássemos e que finalmente falou delas em termos tão elogiosos e surpreendentes a ponto de atordoar aqueles que escandalizam os pequeninos M de SaintCyran dava sempre provas às crianças de uma bondade que chegava a uma espécie de respeito com o fito de reverenciar nelas a inocência e o Espírito Santo que as habita23 M de SaintCyran era muito esclarecido e distante dessas máximas mundanas o desprezo dos educadores e como sabia quão importante eram o cuidado e a educação da juventude consideravaos também de maneira diferente Por mais penosa e humilhante que fosse essa tarefa aos olhos dos homens ele ainda assim não deixava de empregar nela pessoas eminentes sem que estas pensassem ter o direito de se lamentar Formouse assim essa concepção moral da infância que insistia em sua fraqueza mais do que naquilo que M de Grenaille chamava de sua natureza ilustre que 136 associava sua fraqueza à sua inocência verdadeiro reflexo da pureza divina e que colocava a educação na primeira fileira das obrigações humanas Essa concepção reagia ao mesmo tempo contra a indiferença pela infância contra um sentimento demasiado terno e egoísta que tornava a criança um brinquedo do adulto e cultivava seus caprichos e contra o inverso deste último sentimento o desprezo do homem racional Essa concepção dominou a literatura pedagógica do final do século XVII Eis o que escreve Coustel em 1687 em suas Règles de léducation des enfants24 sobre a necessidade de se amar as crianças e vencer a repugnância que elas inspiravam ao homem racional Se considerarmos o exterior das crianças feito apenas de imperfeição e fraqueza tanto no corpo como no espírito é certo que não teremos motivos para lhes ter grande estima Mas se olharmos o futuro e agirmos sob a inspiração da Fé mudaremos de opinião Além da criança veremos então o bom magistrado o bom cura o grande senhor Mas acima de tudo devemos lembrar que as almas das crianças ainda impregnadas da inocência batismal são a morada de Jesus Cristo Deus dá o exemplo ordenando aos Anjos que acompanhem as crianças em todos os seus passos sem jamais abandonálas Este era o motivo pelo qual segundo Varet em De léducation chrétienne des enfants de 166625 a educação das crianças é uma das coisas mais importantes do mundo E como escreve Jacqueline Pascal no regulamento dos pequenos internos de PortRoyal É tão importante cuidar das crianças26 que devemos preferir esta obrigação a todas as outras quando a obediência nola impõe e mais ainda até mesmo às nossas satisfações particulares mesmo quando elas se referem a coisas espirituais Não se tratava de afirmações isoladas mas de uma verdadeira doutrina geralmente aceita tanto pelos jesuítas como pelos oratorianos ou os jansenistas que em parte explica a multiplicação das instituições educacionais como os colégios as pequenas escolas e as casas particulares e a evolução dos hábitos escolares em direção a uma disciplina mais rigorosa Alguns princípios gerais decorrentes dessa doutrina figuravam como lugares comuns na literatura da época Por exemplo não se deve nunca deixar as crianças sozinhas este princípio remontava ao século XV e se originava na experiência monástica mas só começou realmente a ser aplicada no século XVIII porque sua necessidade se revelou então ao grande público e não mais apenas a um punhado de religiosos ou de pedantes Tanto quanto possível devemse fechar todas as aberturas da gaiola mas algumas barras devem ser deixadas abertas para que as crianças vivam e gozem de boa saúde é assim que se faz com os rouxinóis para que eles cantem e com os papagaios para que aprendam a falar27 Essa atitude não era desprovida de fineza pois tanto os jesuítas como as escolas de PortRoyal 137 haviam aprendido a conhecer melhor a psicologia infantil No Regulamento para as crianças de PortRoyal de Jacqueline Pascal lêse É preciso vigiar as crianças com cuidado e jamais deixálas sozinhas em nenhum lugar estejam elas sãs ou doentes Mas é preciso que essa vigilância contínua seja feita com doçura e uma certa confiança que faça a criança pensar que é amada e que os adultos só estão a seu lado pelo prazer de sua companhia Isso faz com que elas amem essa vigilância em lugar de temêla28 Esse princípio seria absolutamente geral mas só seria aplicado ao pé da letra nos internatos jesuítas nas escolas de PortRoyal e em algumas pensões particulares ou seja em estabelecimentos que abrigavam apenas um pequeno número de crianças ricas Com isso pretendiase evitar a promiscuidade dos colégios que durante muito tempo tiveram má reputação na França graças aos jesuítas durante menos tempo do que na Inglaterra Assim que as crianças escreve Coustel29 põem o pé nesse tipo de lugar a enorme multidão de alunos e de colégios elas não tardam a inocência a simplicidade e a modéstia que as tornavam antes tão amáveis aos olhos de Deus e dos homens Havia uma relutância geral em confiar as crianças a um único preceptor a extrema sociabilidade dos costumes opunhase a essa solução Consideravase conveniente que a criança aprendesse desde muito cedo a conhecer os homens e a se dar com eles isso era muito importante mais necessário do que o latim Valia mais a pena colocar cinco ou seis crianças com um ou dois homens de bem em uma casa particular ideia esta já encontrada em Erasmo O segundo princípio rezava que se deveria evitar mimar as crianças habituandoas desde cedo à seriedade Não me digas que são apenas crianças e que é preciso ter paciência Pois os efeitos da concupiscência já aparecem bastante nessa idade Tratavase de uma reação contra a paparicação das crianças de menos de oito anos e contra a opinião de que elas ainda eram muito pequenas para serem repreendidas La Civilité Nouvelle de Courtin de 167130 explica longamente essa visão Deixase que esses pequenos espíritos passem o tempo sem prestar atenção ao que é bom ou mau Tudo lhes é permitido indiferentemente Nada lhes é proibido eles riem quando deviam chorar choram quando deviam rir falam quando deviam calar e ficam mudos quando a boa educação os obriga a responder era já o merci monsieur das crianças francesas que surpreende e escandaliza os pais de família norteamericanos Deixálos viver dessa forma é ser cruel para com eles Os pais e as mães dizem que quando eles ficarem grandes serão corrigidos Seria mais apropriado agir de modo que não houvesse nada a corrigir Terceiro princípio o recato a grande modéstia do comportamento Em Port 138 Royal31 logo que se deitam as crianças são fielmente visitadas em cada cama em particular para se verificar se estão deitadas com a modéstia requerida e também para ver se estão bem cobertas no inverno Uma verdadeira campanha de propaganda tentava extirpar o hábito enraizado de deitar várias crianças na mesma cama Esse conselho se repetiu ao longo de todo o século XVII É encontrado ainda por exemplo em La Civilité Chrétienne de JB de La Salle cuja primeira edição data de 1713 A não ser que se esteja comprometido pelo casamento hoje em dia não se pensaria em introduzir essa ressalva em um livro destinado às crianças mas na época os livros destinados às crianças não se limitavam a elas e os imensos progressos da decência e do pudor não impediam liberdades que hoje não se ousaria mais tomar não se deve ir para a cama na frente de nenhuma pessoa do sexo oposto pois isso é absolutamente contrário à prudência e à honestidade É muito menos permitido ainda a pessoas de sexos diferentes dormirem na mesma cama mesmo que se trate de crianças bem pequenas pois não é decente que até mesmo pessoas do mesmo sexo durmam juntas Estas são duas coisas que São Francisco de Sales recomendou particularmente a Mme de Chantal com relação às crianças E Os pais e as mães devem ensinar seus filhos a esconder o próprio corpo ao se deitar Essa preocupação com a decência aparecia também na escolha das leituras e das conversas Ensinaios a ler em livros onde a pureza de linguagem coincida com a seleção de bons temas Quando eles começarem a escrever não permitis que seus exemplos traduzam uma maneira feia de falar32 Estamos longe aqui da liberdade de linguagem de Luís XIII criança que divertia até mesmo o digno Heroard Deveriam ser evitados também os romances o baile e a comédia que também eram desaconselhados aos adultos Deverseia prestar atenção às canções uma precaução muito importante e necessária numa sociedade em que a música era tão popular Tende um cuidado todo especial em impedir que vossos filhos aprendam canções modernas33 Mas as velhas canções também não valiam mais do que estas Entre as canções que são comuns a toda a sociedade e que se ensinam às crianças assim que elas começam a falar quase não existe nenhuma que não esteja cheia das difamações e das calúnias mais atrozes e que não seja uma sátira mordaz em que não se poupam nem a pessoa sagrada do soberano nem os magistrados ou as pessoas mais inocentes e devotas Essas canções exprimem paixões desregradas e estão cheias de equívocos indecentes34 São João Batista de La Salle no início do século XVIII35 mantinha essa desconfiança com relação aos espetáculos Não é mais decente para um cristão assistir a representações de marionetes do que assistir à comédia Uma pessoa sábia deve olhar esse tipo de espetáculo apenas com desprezo e os pais e as mães 139 jamais devem permitir que seus filhos a eles assistam As comédias os bailes as danças e os espetáculos mais ordinários dos saltimbancos e dos funâmbulos eram proibidos Eram permitidos apenas os jogos educativos ou seja os jogos que haviam sido integrados na educação todos os outros eram suspeitos Outra recomendação reaparece muitas vezes nessa literatura pedagógica extremamente preocupada com a modéstia não deixar as crianças na companhia de criados Essa recomendação ia contra um costume absolutamente geral Não os deixeis sozinhos ao menos deixaios o menos possível com os criados e sobretudo com os lacaios os servidores domésticos tinham um sentido mais amplo do que o atual compreendiam também os colaboradores como diríamos hoje e que podiam ser parentes Essas pessoas para se insinuar e garantir um lugar no espírito das crianças em geral só lhes contam bobagens e só lhes inspiram amor ao jogo ao divertimento e à vaidade36 Ainda no início do século XVIII o futuro Cardeal de Bernis lembrandose de sua infância nascera em 171537 dizia Nada é mais perigoso para os costumes e talvez para a saúde do que deixar as crianças muito tempo sob a tutela dos criados de quarto Ousase fazer com uma criança coisas que se teria vergonha de arriscar com um rapaz Esta última frase referiase claramente à mentalidade que analisamos acima na corte de Henrique IV e no bonde de Cartago no século XX Essa mentalidade persistia entre o povo mas não era mais tolerada nos meios evoluídos A insistência dos moralistas em separar as crianças desse mundo diverso dos criados mostra o quanto eles estavam conscientes dos perigos que apresentava essa promiscuidade das crianças com os criados eles próprios com frequência muito jovens Os moralistas queriam isolar a criança para preservála das brincadeiras e dos gestos que então passaram a ser considerados indecentes O quarto princípio era apenas outra aplicação da preocupação com a decência e com a modéstia extinguir a antiga familiaridade e substituíla por uma grande reserva nas maneiras e na linguagem mesmo na vida quotidiana Essa política se traduziu pela luta contra o emprego do pronome tu No pequeno colégio jansenista de Chesnay38 Haviase de tal forma habituado as crianças a se tratarem com respeito umas às outras que elas nunca se tratavam por tu e nunca diziam qualquer palavra que pudessem considerar desagradável a alguns de seus companheiros Um manual de civilidade de 167139 reconhece que a boa educação exige o tratamento vous mas tem de admitir não sem um certo embaraço algumas concessões ao antigo costume francês Normalmente se usa o pronome vous e não se deve tratar ninguém por tu a não ser uma criança pequena quando aquele que fala é muito mais velho e quando o costume entre os mais corteses e os mais 140 instruídos é falar dessa maneira Contudo os pais que se dirigem aos filhos até uma certa idade na França até eles se emanciparem os mestres que se dirigem a seus pequenos alunos e outras pessoas em posição superior semelhante segundo o costume mais comum parecem ter o direito de empregar apenas tu e toi e no caso de parentes amigos que conversam juntos em certos lugares o costume permite que eles se tratem mais livremente por tu e toi nos outros casos devese ser mais reservado e civilizado Mesmo nas pequenas escolas onde as crianças são menores São João Batista de La Salle proíbe aos mestres o uso do tratamento tu Eles só devem falar às crianças com reserva sem jamais tratálas por tu ou toi o que revelaria uma familiaridade exagerada É certo que sob uma tal pressão o emprego do vous tornouse mais comum Ficamos surpresos ao ler nas memórias do Coronel Guérard do fim do século XVIII que dois soldados amigos um de 25 e outro de 23 anos tratavamse por vous Ao menos o Coronel Guérard usava o vous sem parecer ridículo No SaintCyr de Mme de Maintenon as moças deviam evitar tratarse por tu ou toi e adotar maneiras contrárias ao decoro40 O adulto nunca deve acomodar se às crianças através de uma linguagem infantil ou de maneiras pueris deve ao contrário eleválas ao seu nível falandolhes sempre de modo razoável Os escolares dos diálogos de Cordier da segunda metade do século XVI já se tratavam por vous no texto francês embora no texto latino se tratassem naturalmente por tu De fato essa preocupação com a gravidade que analisamos aqui só triunfaria realmente no século XIX apesar da evolução contrária da puericultura e de uma pedagogia mais liberal e mais naturalista Um professor de francês norteamericano chamado L Wylie que passou seu ano sabático de 19501951 em uma aldeia do Sul da França participando da vida quotidiana ficou espantado com a seriedade com que os mestres da escola primária tratavam os alunos e com que os pais camponeses tratavam seus filhos O contraste com o espírito norteamericano pareceulhe grande Cada passo no desenvolvimento da criança parece depender do desenvolvimento daquilo que as pessoas chamam de sua raison A criança é então considerada raisonnable e esperase que permaneça raisonnable Essa raison esse autocontrole e essa seriedade que se exigem da criança francesa desde muito cedo enquanto ela prepara seu certificado de estudos e que não existem mais nos Estados Unidos são o resultado final da campanha iniciada no fim do século XVI pelos religiosos e pelos moralistas reformadores Esse estado de espírito aliás começa a desaparecer das cidades francesas ele só subsiste no campo onde o observador norteamericano o constatou 141 O sentido da inocência infantil resultou portanto em uma dupla atitude moral com relação à infância preservála da sujeira da vida e especialmente da sexualidade tolerada quando não aprovada entre os adultos e fortalecêla desenvolvendo o caráter e a razão Pode parecer que existe aí uma contradição pois de um lado a infância é conservada e de outro é tornada mais velha do que realmente é Mas essa contradição só existe para nós homens do século XX Nosso sentimento contemporâneo da infância caracterizase por uma associação da infância ao primitivismo e ao irracionalismo ou prélogismo Essa ideia surgiu com Rousseau mas pertence à história do século XX Há apenas muito pouco tempo ela passou das teorias dos psicólogos pedagogos psiquiatras e psicanalistas para o senso comum É essa ideia que serve ao professor norteamericano Wylie como ponto de referência para avaliar a atitude diferente que ele encontra numa aldeia da região de Vaucluse E nessa ideia reconhecemos também a sobrevivência de outro sentimento da infância diferente e mais antigo que surgiu nos séculos XV e XVI e se tornou geral e popular a partir do século XVII Nessa concepção que nos parece antiga se comparada à nossa mentalidade contemporânea mas que era nova em comparação com a Idade Média as noções de inocência e de razão não se opunham Si puer prout decet vixit era traduzido num manual de civilidade francês em 1671 por se a criança viveu como um homem41 Sob a influência desse novo clima moral surgiu uma literatura pedagógica infantil distinta dos livros para adultos Entre a massa de tratados de civilidade redigidos a partir do século XVI é muito difícil reconhecer os que se dirigiam aos adultos e os que se dirigiam às crianças Essa confusão se explica por questões ligadas à estrutura da família e às relações entre a família e a sociedade que serão examinadas na última parte deste estudo Ao longo do século XVII essa confusão se atenuou Os padres jesuítas publicaram manuais de civilidade ou adotaram os existentes como livros habituais ao mesmo tempo em que realizaram expurgos nos autores antigos ou patrocinaram tratados de ginástica um exemplo é o livro Bienséance de la conversation entre les hommes42 publicado em 1617 em PortàMousson para os internatos da Companhia de Jesus em PontàMousson e La Flèche As Règles de la bienséance et de la civilité chrétienne destinadas às escolas cristãs de meninos de São João Batista de La Salle publicadas em 1713 seriam reeditadas ao longo de todo o século XVIII e mesmo no início do século XIX foi um livro durante muito tempo considerado clássico e cuja influência sobre os costumes foi sem dúvida considerável Contudo mesmo esse livro ainda não se dirigia de forma direta e 142 aberta às crianças Certos conselhos destinavamse mais aos pais e no entanto tratavase de um livro onde as crianças aprendiam a ler um livro que fornecia exemplos de escrita servia de modelo de conduta e que elas deviam aprender de cor ou mesmo a adultos ainda mal instruídos em questões de boas maneiras Essa ambiguidade se dissiparia nos manuais de civilidade da segunda metade do século XVIII Eis um deles um manual de civilidade pueril e decente de 176143 para a instrução das crianças apresentando no início uma forma de aprender a ler pronunciar e escrever corretamente novamente corrigido pois todos se apresentavam como reedições dos velhos manuais de civilidade de Cordier Erasmo ou do Galatée o gênero era tradicional e toda a novidade era montada sobre uma trama antiga donde a persistência de certos sentimentos que sem dúvida haviam saído de moda e aumentado no final com um belo tratado de ortografia Escrito por um missionário com preceitos e instruções a serem ensinados à juventude O tom é novo o autor dirigese nominalmente às crianças de um modo sentimental A leitura deste livro não vos será inútil caras crianças ela vos ensinará Observai contudo caras crianças Cara criança que considero como filho de Deus e irmão de Jesus Cristo começai cedo a praticar o bem Pretendo ensinarvos as regras de um cristão decente Assim que vos levantardes fazei o sinal da cruz Se estiverdes no quarto de vosso pai e vossa mãe dailhes bomdia a seguir Na escola Não incomodeis vossos companheiros Não converseis na escola Não utilizeis com tanta facilidade as palavras tu e toi Mas essa doçura e essa ternura tão ao estilo do século XVIII em nada diminuem o ideal de caráter razão e dignidade que o autor deseja despertar na criança Minhas caras crianças não sejais daquelas que falam sem cessar e não dão tempo aos outros de dizer o que pensam Cumpri vossas promessas pois assim age o homem de bem O Espírito ainda é o do século XVII mas o estilo já pertence ao século XIX Minhas caras crianças O domínio das crianças estava bem separado do dos adultos Mas ainda restavam estranhos resquícios da antiga indiferença das idades Durante muito tempo ensinouse o latim e até mesmo o grego às crianças em dísticos falsamente atribuídos a Catão O pseudoCatão está citado no Roman de la Rose Esse hábito persistiu ao menos durante todo o século XVII e em 1802 ainda existia uma edição desses dísticos O espírito dessas recomendações morais extremamente cruas era o espírito do Império Bizantino e da Idade Média que simplesmente ignoravam a delicadeza de Gerson de Cordier dos jesuítas e de PortRoyal em suma de toda a opinião do século XVII Portanto ainda se mandava as crianças traduzirem máximas do gênero Não acredites em tua esposa quando ela se queixar de teus criados com efeito muitas vezes a mulher detesta aquele que gosta do marido Ou ainda Não procures através de sortilégios 143 conhecer os desígnios de Deus Foge da esposa que te dominaria em nome de seu dote não a retenhas se ela se tornar insuportável etc É verdade que no fim do século XVI se haviam considerado insuficientes essas lições de moralidade e por essa razão foram propostas às crianças as quadras de Pibrac escritas na época dentro de um espírito mais cristão mais edificante e mais moderno Contudo as quadras de Pibrac não tomaram o lugar do pseudoCatão apenas somaramse a ele até o início do século XIX as últimas edições escolares ainda continham os dois textos O pseudoCatão e Pibrac cairiam juntos então no esquecimento A essa evolução do sentimento da infância no século XVII correspondeu uma nova tendência da devoção e da iconografia religiosa Aí também a criança iria ocupar um lugar quase central A partir do início do século XVII a pintura a gravura e a escultura religiosas passaram a dar uma grande importância à representação do Menino Jesus isolado e não mais junto da Virgem ou no meio da Sacra Família Como podemos ver no Van Dyck de Dresden o Menino Jesus em geral aparece em uma atitude simbólica calca uma serpente com o pé apoiase em um globo segura uma cruz com a mão esquerda e com a direita faz o gesto da bênção Essa criança dominadora erguese sobre os portais das igrejas como na igreja de Dalbade de Toulouse Uma devoção particular passou então a ser dirigida à infância sagrada Ela já havia sido preparada ao menos iconograficamente por todas as sagradas famílias as apresentações e as circuncisões dos séculos XV e XVI Mas no século XVII ela adquiriu um acento muito diferente Esse tema já foi bem estudado Gostaríamos apenas de destacar aqui a relação que imediatamente se estabeleceu entre essa devoção da santa infância e o grande movimento de interesse pela infância de criação de pequenas escolas e colégios e de preocupação pedagógica O colégio de Juilly foi dedicado pelo Cardeal de Bérulle ao mistério do Menino Jesus44 Em seus regulamentos para as meninas internas de PortRoyal Jacqueline Pascal inseriu duas orações uma das quais45 é também uma prece em honra do mistério da infância de Jesus Cristo Ela merece ser citada Sede como as crianças recém nascidas Fazei Senhor com que sempre sejamos crianças pela simplicidade e a inocência assim como as pessoas do mundo sempre o são por sua ignorância e fraqueza Reencontramos aqui os dois aspectos do sentimento da infância do século XVIII a inocência que é preciso conservar e a ignorância ou a fraqueza que é preciso suprimir ou tornar razoáveis Dainos uma infância santa que o curso dos anos não nos possa tirar e da qual jamais possamos passar à velhice do antigo Adão nem à morte em pecado mas que nos torne cada vez mais novas criaturas de Jesus Cristo e nos conduza à sua imortalidade gloriosa 144 Uma carmelita do convento de Beaune Marguerite du SaintSacrement era famosa por sua devoção à santa infância Nicolas Rolland46 fundador de várias pequenas escolas no fim do século XVII fez uma peregrinação a seu túmulo Nessa ocasião a superiora do convento das carmelitas deulhe uma imagem do Menino Jesus que a venerável irmã Marguerite costumava reverenciar com suas longas preces As fundações dos institutos de ensino como os colégios oratorianos do Cardeal de Bérulle foram dedicadas à santa infância em 1685 o padre Barré registrou os Status et Règlements das escolas cristãs e caridosas do Santo Menino Jesus As Damas de SaintMaur modelo das congregações dedicadas ao ensino intitularamse oficialmente Instituto do Santo Menino Jesus O primeiro selo da Instituição dos Irmãos das Escolas Cristãs dos Irmãos Ignorantinhos representava o Menino Jesus conduzido por São José A literatura moral e pedagógica do século XVII muitas vezes cita também trechos do Evangelho em que Jesus faz alusão às crianças Em LHonneste Garçon47 citado acima lêse Já que o Senhor chama a si os pequenos inocentes considero que nenhum de seus súditos tem o direito de rejeitálos A oração que Jacqueline Pascal insere no regulamento das crianças de PortRoyal parafraseia sentenças de Cristo Sede como crianças recémnascidas Se não vos tornardes como as Crianças não entrareis no Reino dos céus E o final dessa prece lembra um episódio do Evangelho que no século XVII conheceu uma nova sorte Senhor concedeinos a graça de estarmos entre as Crianças que chamais a vós que mandais se aproximar de vós e de cuja boca tirais vossos louvores A cena em questão em que Jesus pede que se deixe vir a ele as criancinhas não era absolutamente desconhecida da iconografia antiga já tivemos a ocasião48 de mencionar uma miniatura otoniana em que as crianças eram representadas como adultos de tamanho reduzido em torno de Cristo Reconhecemos também representações dessa cena nas bíblias moralizadas do século XIII mas elas além de pouco frequentes são tratadas como ilustrações banais sem que delas se desprenda um sentido ou um fervor A partir do fim do século XVI ao contrário tal cena reaparece com frequência sobretudo na gravura e é evidente que ela corresponde a uma forma especial e nova de devoção Isso fica claro quando examinamos uma bela estampa de Stradan cujas gravuras como sabemos inspiraram os artistas da época49 O tema definido pela legenda Jesus parvulis oblatis imposuit manus et benedixit eis Mateus 39 Marcos 60 Lucas 18 Jesus está sentado Uma mulher lhe apresenta seus filhos alguns putti nus Outras mulheres e crianças esperam sua vez Observemos que aqui a criança está acompanhada da mãe nas representações medievais mais conformes à literalidade do texto um texto que 145 não estimulava a imaginação dos artistas a ponto de incitálos a inventar por conta própria as crianças apareciam sozinhas em torno de Cristo Aqui porém a criança não se separa de sua família o que indica a nova importância adquirida pela família na sensibilidade comum Uma pintura holandesa de 1620 reproduz a mesma cena50 Cristo está acocorado no meio de uma multidão de crianças que se comprimem à sua volta Algumas ainda estão no colo da mãe Outras nuas brincam e lutam o tema da luta dos putti era frequente na época ou choram e gritam As maiores mais reservadas estão de mãos postas A expressão de Cristo aparece sorridente e atenta a mesma mistura de diversão e ternura que os adultos adotam para falar com as crianças nas épocas modernas e sobretudo no século XIX Ele está com uma das mãos sobre uma cabecinha e ergue a outra para abençoar uma criança que corre em sua direção Essa cena se tornou popular é provável que os adultos dessem às crianças gravuras representandoa assim como mais tarde lhes dariam santinhos de primeira comunhão Uma exposição consagrada à imagem da criança51 realizada em Tours em 1947 mostra em seu catálogo uma gravura do século XVIII que representa o mesmo tema Estabeleceuse nessa mesma época uma religião para as crianças e uma nova devoção lhes foi praticamente reservada a devoção do anjo da guarda Diria ainda lemos em LHonneste Garçon52 que embora todos os homens sejam acompanhados por esses espíritos bemaventurados que se tornam seus ministros a fim de ajudálos a serem capazes de receber a herança da salvação parece que Jesus Cristo concedeu apenas às crianças o privilégio de ter anjos da guarda Não é que nós não participemos desse favor mas os adultos devem esse benefício à sua infância Por seu lado os anjos preferem a suavidade das crianças à revolta dos homens E Fleury em seu Traité des études de 168653 afirma que o Evangelho nos proíbe desprezar as crianças pela alta consideração que elas recebem dos anjos bemaventurados que as guardam A figura da alma conduzida por um anjo representada sob a forma de uma criança ou de um adolescente tornouse familiar na iconografia dos séculos XVI e XVII Conhecemse vários exemplos como o do dominicano54 da pinacoteca de Nápoles uma criancinha vestindo uma camisa cortada em panos é protegida por um anjo um menino um pouco efeminado de 1314 anos dos ataques do demônio um homem maduro que a persegue O anjo estende seu escudo entre a criança e o homem maduro fornecendo uma ilustração inesperada da frase de LHonneste Garçon Deus possui a primeira idade mas o Diabo possui em muitas pessoas as melhores partes da velhice e da idade que o Apóstolo chama de realizada O antigo tema de Tobias conduzido pelo anjo a partir de então passou a simbolizar o pai da almacriança e seu guia o anjo da guarda Como exemplos 146 temos a bela tela de Tournier recentemente exposta em Londres e Paris 1958 e a gravura de Abraham Bosse55 Em uma gravura de Mariette56 o anjo mostra à criança por ele conduzida uma cruz no céu levada por outros anjos Esse tema do anjo da guarda e da almacriança era utilizado na ornamentação das pias batismais como pude observar em uma igreja barroca da Alemanha meridional a igreja da Cruz em Donaüworth A tampa da pia é encimada por um globo em torno do qual se enrola a serpente Em cima do globo está o anjo um rapazinho um pouco efeminado que guia a almacriança Não se trata apenas de uma representação simbólica da alma sob a aparência tradicional da criança esse recurso à criança para representar a alma é aliás uma curiosa ideia medieval tratase da ilustração de uma devoção particular da infância derivada do sacramento do batismo o anjo da guarda Esse período dos séculos XVI e XVII foi também a época das criançasmodelo O historiador do colégio dos jesuítas da La Flèche57 conta segundo os anais da Congregação de La Flèche de 1722 por conseguinte cerca de 50 anos após o acontecimento a vida edificante de Guillaume Ruffin nascido em 19 de janeiro de 1657 Em 1671 aos 14 anos o menino estava no primeiro ano colegial Pertencia é claro à Congregação associação devota reservada aos bons alunos e colocada sob a proteção da Virgem ela ainda existe acredito nos colégios jesuítas Visitava os doentes e distribuía esmolas aos pobres Em 1674 estava terminando seu primeiro ano de filosofia eram dois na época quando caiu doente A Virgem lhe apareceu duas vezes Ele foi prevenido da data de sua morte no dia da festa de minha boa Mãe no dia da Assunção Ao ler esse texto confesso que não pude deixar de me lembrar de um episódio de minha própria infância em um colégio jesuíta onde alguns meninos faziam campanha pela canonização de um aluno pequeno que havia morrido há alguns anos em um clima de santidade ao menos segundo a opinião de sua família Podiase muito bem chegar à santidade durante uma curta vida de menino de escola e isso sem prodígios excepcionais ou precocidade particular ao contrário através da simples prática das virtudes da infância da simples preservação da inocência original Este foi o caso de São Luís Gonzaga tantas vezes citado na literatura do século XVII referente aos problemas da educação Além da vida dos pequenos santos ofereciamse às crianças como tema edificante as histórias da juventude dos santos adultos ou de seus remorsos por sua juventude desregrada Lemos nos anais do colégio dos jesuítas de Aix de 1634 Nossa juventude não deixou de ouvir seus sermões duas vezes por semana durante a quaresma Foi o padre de Barry o reitor quem lhes fez as ditas exortações tendo escolhido como tema os feitos heroicos dos santos em sua 147 juventude Na quaresma anterior de 1633 o reitor havia escolhido como tema os remorsos de Santo Agostinho por sua juventude58 Na Idade Média não existiam festas religiosas da infância além das grandes festas sazonais geralmente mais pagãs do que cristãs A partir do século XV como já observamos os artistas começaram a representar certos episódios como a apresentação da Virgem e sobretudo a circuncisão no meio de uma plateia de crianças mais numerosa do que as geralmente representadas entre as multidões da Idade Média ou do Renascimento Mas essas festas do Antigo Testamento embora se tivessem tornado festas da infância na iconografia religiosa não podiam mais desempenhar o mesmo papel na vida religiosa real sobretudo na vida religiosa refinada do século XVII francês A primeira comunhão iria tornarse progressivamente a grande festa religiosa da infância e continuaria a sêlo até hoje mesmo nos lugares em que a prática cristã não é mais observada com regularidade Hoje em dia a primeira comunhão substituiu as antigas festas folclóricas abandonadas Talvez ela deva essa persistência a despeito da descristianização ao fato de ser uma festa individual da criança celebrada na igreja é certo mas sobretudo na intimidade dentro da família as festas mais coletivas foram as que desapareceram mais depressa A celebração mais solene da primeira comunhão foi uma consequência da maior atenção que se dispensou sobretudo em PortRoyal às condições exigidas para a criança receber bem a Eucaristia Não houve um movimento no sentido de tornar a comunhão menos frequente e sim no sentido de tornála mais bem preparada mais consciente e mais eficaz É provável que outrora as crianças recebessem a comunhão sem uma preparação especial assim que começavam a ir à missa e certamente muito cedo a julgar pelos hábitos de precocidade e pela mistura das crianças com os adultos na vida quotidiana No regulamento das crianças de Port Royal Jacqueline Pascal enfatiza a necessidade de se avaliar a capacidade moral e espiritual das crianças antes de lhes permitir a comunhão a de preparálas com bastante antecedência59 Não se permitirá a comunhão às crianças muito pequenas e especialmente àquelas que forem travessas levianas ou ligadas a algum defeito considerável É preciso esperar que Deus provoque alguma mudança nelas e convém esperar mesmo algum tempo um ano ou ao menos seis meses para ver se suas ações têm continuidade Jamais me arrependi de ter feito as crianças esperarem pois isso sempre serviu para tornar mais virtuosas aquelas que tinham boa disposição e para revelar a pouca disposição das que ainda não estavam prontas Toda precaução é pouca no que concerne à primeira comunhão pois muitas vezes todas as outras dependem dessa primeira A primeira comunhão era retardada em PortRoyal até depois da crisma 148 Quando nos dão crianças que ainda não foram crismadas e que ainda não fizeram também sua primeira comunhão nós em geral retardamos esta última até depois da crisma para que impregnadas com o espírito de Jesus elas fiquem mais bem preparadas para receber seu Santo Corpo No século XVIII a primeira comunhão haviase tornado uma cerimônia organizada nos conventos e nos colégios O Coronel Gérard60 contanos em suas memórias suas lembranças de uma primeira comunhão difícil Ele nascera em 1766 de uma família pobre de seis filhos Tornandose órfão começou a trabalhar aos 10 anos como empregado doméstico até que o vigário de sua paróquia que se interessava por ele o enviou à abadia de SaintAvit onde ele se tornou capelão auxiliar O primeiro capelão era um jesuíta que implicou com o menino Ele devia ter cerca de 15 anos quando foi admitido à primeira comunhão esta era a expressão utilizada Havia sido decidido que eu faria minha primeira comunhão junto com vários internos Na véspera do dia marcado eu estava brincando com o cachorro no quintal quando M de N o jesuíta passou Esquecestes disse ele que amanhã devereis receber o corpo e o sangue de Nosso Senhor A abadessa me mandou chamar e me disse que eu não participaria da cerimônia do dia seguinte Três meses após ter feito minhas penitências fiz minha primeira comunhão Após a segunda mandaramme comungar todos os domingos e dias santos A primeira comunhão haviase tornado a cerimônia que é até hoje A partir de meados do século XVIII criouse o hábito de perpetuar sua lembrança através de uma mensagem inscrita em uma imagem devota Em 1931 foi exposta em Versalhes61 uma gravura representando São Francisco de Assis Nas costas estava escrito Como lembrança da primeira comunhão de François Bertrand em 26 de abril de 1761 dia de Quasímodo na paróquia de SaintSébastien de Marly Barail cura de SaintSébastien Tratavase não apenas de um costume devoto mas de um certificado inspirado nos atos oficiais da Igreja Católica Faltava apenas acentuar a solenidade da ocasião através de um traje especial e isso foi feito no século XIX A cerimônia da primeira comunhão tornouse a manifestação mais visível do sentimento da infância entre o século XVII e o fim do século XIX ela celebrava ao mesmo tempo seus dois aspectos contraditórios a inocência da infância e sua apreciação racional dos mistérios sagrados 149 1 Heroard Journal sur lenfance et la jeunesse de Louis XIII editado por E Saulié e E de Barthélémy 1868 2 vols 2 Pe de Dainville La Naissance de lhumanisme moderne 1940 p 261 Mechin Annales du collège royal de Bourbon Aix 2 vols 1892 3 Curjel H Baldung Grien prancha XLVIII 4 J Destrée Les Heures de NotreDame dites de Henessy 1895 e 1923 5 S de Vriès e Marpugo Le Bréviaire Grimani 19041910 12 vols 6 H Gerson Von Geertgen tot Fr Halz 1950 vol I p 95 7 Musée des Augustins Toulouse 8 Gerson De confessione mollicei Opera 1706 vol II p 309 9 Gerson Doctrina pro pueris ecclesiae parisiensis Opera 1706 vol IV p 717 10 Vivès Dialogues trad francesa 1571 11 Citado em F Watson The English Grammar Schools to 1660 1907 p 112 12 A Schimberg Education morale dans les collèges de jésuites 1913 p 227 13 P de Dainville op cit 14 F Watson op cit 15 Mathurin Cordier Colloques 1586 16 Comédies de Térence rendues trés honnêtes en y changeant fort peu de choses por Pomponius e Trobatus 17 Citado por Pe de Dainville op cit 18 Montaigne Essais I 26 19 Montaigne Essais I 39 20 F Guérard Cabinet des Estampes Ee 3a pet info Esta é a idade da inocência À qual devemos todos voltar Para gozar a felicidade futura Que é a nossa esperança na terra A idade em que tudo se perdoa Em que o ódio é desconhecido Em que nada nos preocupa A idade de ouro da vida humana A idade que desafia os Infernos A idade em que a vida é fácil E em que a morte não é terrível A idade para a qual os céus estão abertos Que um respeito terno e doce Seja mostrado a essas jovens plantas da Igreja O Céu está cheio de raiva Daqueles que as escandalizam N T 21 M de Grenaille LHonneste Garçon 1642 22 M Faret LHonnête Homme 1630 23 F Cadet LEducation à PortRoyal 1887 24 Coustel Règles de léducation des enfants 1687 25 Varet De léducation chrétienne des enfants 1666 26 Jacqueline Pascal Règlement pour les enfants Appendice aux Constitutions de PortRoyal 1721 27 F Cadet op cit 28 Jacqueline Pascal op cit 29 Coustel op cit 30 La Civilité nouvelle Basileia 1671 31 Jacqueline Pascal op cit 150 32 Varet op cit 33 Ibid 34 Ibid 35 JeanBaptiste de La Salle Les Régles de la bienséance et de la civilité chrétienne A primeira edição é de 1713 36 Varet op cit 37 Mémoires du cardinal de Bernis 2 vols 1878 38 Regulamento do colégio de Chesnay in Wallon de Beaupuis Suite des vies des amis de Port Royal 1751 vol I p 175 39 Cf nota 30 deste capítulo 40 Th Lavallée Histoire de la maison royale de SaintCyr 1862 41 L Wylie Village in the Vaucluse Cambridge EUA 1957 42 Bienséance de la conversation entre les hommes PontàMousson 1617 43 Civilité puerile et honnête pour linstruction des enfants escrita por um missionário 1753 44 H Bremond Histoire littéraire du sentiment religieux 1921 vol III p 512 45 Jacqueline Pascal op cit 46 Rigault Histoire générale des frères des écoles chrétiennes 1937 vol I 47 De Grenaille op cit 48 Cf Parte I cap 2 49 Stradan 15231605 gravura Cabinet des Estampes Cc9 info p 239 50 Volcskert 15851627 reproduzido em Berndt no 871 51 Catálogo no 106 52 M de Grenaille op cit 53 Fleury Traité du choix et de la méthode des études 1686 54 Nápoles pinacoteca 55 Tournier LAnge gardien Narbonne 16561657 Exposição do Petit Palais 1958 no 139 Abraham Bosse gravura Cabinet des Estampes Ed 30a info GD 127 56 Mariette gravura Cabinet de Estampes Ed 82 info 57 C de Rochemonteinx Un collège de jésuites aux XVIIIe XVIIIe siècles Le collège Henri IV de La Flèche Le Mans 1889 4 vols 58 Mechin Annales du collége royal Bourbon Aix 1892 2 vols vol I p 89 59 Jacqueline Pascal op cit 60 Les Cachiers du colonel Gérard 17661846 1951 61 Exposição Enfants dautrefois Versalhes 1931 151 N CONCLUSÃO Os Dois Sentimentos da Infância a sociedade medieval que tomamos como ponto de partida o sentimento da infância não existia o que não quer dizer que as crianças fossem negligenciadas abandonadas ou desprezadas O sentimento da infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças corresponde à consciência da particularidade infantil essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto mesmo jovem Essa consciência não existia Por essa razão assim que a criança tinha condições de viver sem a solicitude constante de sua mãe ou de sua ama ela ingressava na sociedade dos adultos e não se distinguia mais destes Essa sociedade de adultos hoje em dia muitas vezes nos parece pueril sem dúvida por uma questão de idade mental mas também por sua questão de idade física pois ela era em parte composta de crianças e de jovens de pouca idade A língua não atribuía à palavra enfant o sentido do restrito que lhe atribuímos hoje em francês diziase enfant como hoje se diz gars na linguagem corrente Essa indeterminação da idade se estendia a toda a atividade social aos jogos e brincadeiras às profissões às armas Não existem representações coletivas onde as crianças pequenas e grandes não tenham seu lugar amontoadas em um cacho pendente do pescoço das mulheres1 urinando em um canto desempenhando seu papel em uma festa tradicional trabalhando como aprendizes em um ateliê ou servindo como pajens de um cavaleiro A criança muito pequenina demasiado frágil ainda para se misturar à vida dos adultos não contava essa expressão de Molière comprova a persistência no século XVII de uma mentalidade muito antiga O Argan de Le Malade imaginaire tinha duas filhas uma em idade de casar e a outra a pequena Louison mal começando a falar e a andar Argan ameaçava pôr a filha mais velha em um convento para desencorajar seus amores Seu irmão lhe diz De onde tirastes a ideia meu irmão vós que possuís tantos bens e tendes apenas uma filha pois não conto a pequena de mandar a menina para um convento2 A pequena não contava porque podia desaparecer Perdi dois ou três filhos pequenos não sem tristeza mas sem desespero reconhece Montaigne3 Assim que a criança superava esse período de alto nível de mortalidade em que sua sobrevivência era 152 improvável ela se confundia com os adultos As palavras de Montaigne e Molière comprovam a permanência dessa atitude arcaica com relação à infância Era uma sobreviência tenaz porém ameaçada Já desde o século XIV uma tendência do gosto procurava exprimir na arte na iconografia e na religião no culto dos mortos a personalidade que se admitia existir nas crianças e o sentido poético e familiar que se atribuía à sua particularidade Acompanhamos a evolução do putto do retrato da criança até mesmo da criança morta em pequena Essa evolução terminou por dar à criança à criancinha pequena ao menos onde esse sentimento aflorava ou seja nas camadas superiores da sociedade dos séculos XVI e XVII um traje especial que a distinguia dos adultos Essa especialização do traje das crianças e sobretudo dos meninos pequenos em uma sociedade em que as formas exteriores e o traje tinham uma importância muito grande é uma prova da mudança ocorrida na atitude com relação às crianças elas contavam muito mais do que o imaginava o irmão do Malade imaginaire De fato nessa peça que parece ser tão severa para com as criancinhas quanto certas expressões de La Fontaine há uma conversa entre Argan e a pequena Louison Olha para mim sim Que é papai Aqui O quê Não tens nada a me dizer Se quiserdes eu vos contarei para distrairvos a história da Pele de Asno ou então a fábula do Corvo e da Raposa que aprendi há pouco tempo Um novo sentimento da infância havia surgido em que a criança por sua ingenuidade gentileza e graça se tornava uma fonte de distração e de relaxamento para o adulto um sentimento que poderíamos chamar de paparicação Originariamente esse sentimento pertencera às mulheres encarregadas de cuidar das crianças mães ou amas Na edição do século XVI do Grand Propriétaire de toutes choses lemos a propósito da figura da ama4 A ama se alegra quando a criança fica alegre e sente pena da criança quando esta fica doente levantaa quando cai enfaixaa quando se agita e a limpa quando se suja Ela educa a criança e a ensina a falar pronunciando as palavras como se fosse tatibitate para ensinála melhor e mais depressa ela carrega a criança nos braços nos ombros ou no colo para acalmála quando chora mastiga a carne para a criança quando esta ainda não tem dentes para fazêla engolir sem perigo e com proveito nina a criança para fazêla dormir e enfaixa seus membros para que não fique com nenhuma rigidez no corpo e a banha e a unta para nutrir sua pele Thomas More detémse longamente nas imagens da primeira infância do menino que é enviado à escola por sua mãe Quando o menino não se levantava a tempo demorandose na cama e quando já de pé ele chorava porque estava atrasado sabendo que lhe bateriam na escola sua mãe lhe dizia que isso só acontecia nos 153 primeiros dias e que ele teria tempo de chegar na hora Vai bom filho jurote que eu mesma já preveni teu mestre toma teu pão com manteiga pois não serás surrado E assim ela o enviava à escola consolado o suficiente para não cair em prantos ante a ideia de deixála em casa Mas ela não tocava no fundo da questão e a criança atrasada seria realmente surrada quando chegasse à escola5 A maneira de ser das crianças deve ter sempre parecido encantadora às mães e às amas mas esse sentimento pertencia ao vasto domínio dos sentimentos não expressos De agora em diante porém as pessoas não hesitariam mais em admitir o prazer provocado pelas maneiras das crianças pequenas o prazer que sentiam em paparicálas Mme de Sévigné confessa não sem uma certa afetação que passava longo tempo se distraindo com sua netinha Estou lendo a história da descoberta das Índias por Cristóvão Colombo que me diverte imensamente mas vossa filha me distrai ainda mais Eu a amo muito Ela acaricia vosso retrato e o paparica de um jeito tão engraçado que tenho de correr a beijála6 Há uma hora que me distraio com vossa filha ela é encantadora Mandei cortar seus cabelos Ela agora usa um penteado solto Esse penteado foi feito para ela Sua tez seu colo e seu corpinho são admiráveis Ela faz cem gracinhas fala faz carinho faz o sinal da cruz pede desculpas faz reverência beija a mão sacode os ombros dança agrada segura o queixo enfim ela é linda em tudo que faz Divirtome com ela horas a fio E como se temesse alguma infecção acrescenta com uma leviandade que nos surpreende pois para nós a morte de uma criança é um assunto grave com o qual não se brinca Não quero que essa coisinha morra Isso se explica no entanto pelo fato de que esse primeiro sentimento da infância se combinava como vimos em Molière com uma certa indiferença ou melhor ainda com a indiferença tradicional A mesma Mme de Sévigné descreve o luto de uma mãe da seguinte maneira Mme de Coetquen acabara de receber a notícia da morte de ua filhinha ela desmaiou Ficou muito aflita e disse que jamais teria outra tão bonita Mas talvez Mme de Sévigné achasse que essa mãe não tinha muito coração pois acrescenta Mas seu marido ficou inconsolável7 Esse sentimento da infância pode ser ainda melhor percebido por meio das reações críticas que provocou no fim do século XVI e sobretudo no século XVII Algumas pessoas rabugentas consideraram insuportável a atenção que se dispensava então às crianças sentimento novo também como que o negativo do sentimento da infância a que chamamos paparicação Essa irritação é a base da hostilidade de Montaigne Não posso conceber essa paixão que faz com que as pessoas beijem as crianças recémnascidas que não têm ainda nem movimento na alma nem forma reconhecível no corpo pela qual se possam tornar amáveis e nunca permiti de boa vontade que elas fossem alimentadas na minha frente Ele 154 não admite a ideia de se amar as crianças como passatempo como se fossem macacos nem de se achar graça em seus sapateados brincadeiras e bobagens pueris É que em torno dele as pessoas se ocupavam demais com as crianças8 Outro testemunho desse estado de espírito seria dado um século mais tarde por Coulanges o primo de Mme de Sévigné9 A maneira como seus amigos e parentes paparicavam as crianças evidentemente o exasperava Ele dedicou aos pais de família uma canção que dizia Pour bien élever vos enfants Népargnez précepteur ni mie Mais jusques à ce quils soient grands Faitesles taire en compagnie Car rien ne donne tant dennui Que découter lenfant dautrui Le Père aveugle croit toujours Que son fils dit choses exquises Les autres voudraient être sourds Qui nentendent que des sottises Mais il faut de nécessité Applaudir lenfant gâté Quand on vous a dit dun bon ton Quil est joly quil est bien sage Quon luy a donné du bon bon Nen exigez paz davantage Faitesluy faire serviteur Aussi bien quà son Précepteur Qui croirait quavec du bon sens Quelquun put saviser décrire A des marmousets de trois ans Qui de quatre ans ne scauront lire Dun père encor dernièrement Je vis ce fade amusement Sachez encor mes bonnes gens Que rien nest plus insupportable Que de voir vos petits enfans 155 En rang doignon à la grande table Des morveux qui le menton gras Mettent les doigts dans tous les plats Quils mangent dun autre costé Sous les yeux dune gouvernante Qui leur presche la propreté Et qui ne soit point indulgente Car on ne peut peut trop promptement Apprendre à manger proprement Vejamos ainda este bilhete a um pai de família um convite para jantar de M de Coulanges Emportez votre fils Et ne vous montrez pas nourrice Quon fasse manger les petits Et leur Précepteur à loffice Car aujourdhui dîne céans Le fléau des petits enfants É preciso deixar claro que esse sentimento de exasperação era tão novo quanto a paparicação e ainda mais estranho à promiscuidade indiferente das idades da sociedade medieval Montaigne e Coulanges assim como Mme de Sévigné mostravamse sensíveis justamente à presença das crianças E devemos até mesmo notar que Montaigne e Coulanges são mais modernos do que Mme de Sévigné na medida em que consideram necessária a separação das crianças Não se considerava mais desejável que as crianças se misturassem com os adultos especialmente na mesa sem dúvida porque essa mistura permitia que fossem mimadas e se tornassem maleducadas Os moralistas e os educadores do século XVII partilhavam a repugnância de Montaigne e Coulanges pela paparicação O austero Fleury em seu Traité des études10 fala quase como Montaigne Quando os adultos fazemnas as crianças cair em uma armadilha quando elas dizem uma bobagem ao tirar uma conclusão acertada de um princípio impertinente que lhes foi ensinado os adultos dão gargalhadas de triunfo por havêlas enganado beijamnas e acariciamnas como se elas tivessem dito algo correto era a paparicação É como se as pobres crianças fossem feitas apenas para divertir os adultos como cãezinhos ou 156 macaquinhos os macacos de Montaigne O autor do Galatée um manual de civilidade muito difundido nos melhores colégios os colégios jesuítas fala como Coulanges Estão muito errados aqueles que não têm nada na língua além de sua mulher seus filhinhos e sua ama Meu filhinho me fez rir tanto Ora tende paciência11 M DArgonne em um tratado sobre a educação de M de Moncade 169012 queixase também de as pessoas só se interessarem pelas crianças pequenas por seus carinhos e estripulias muitos pais só consideram seus filhos pequenos na medida em que estes lhes proporcionam diversão e alegria É importante observar que no fim do século XVII essa paparicação não se limitava apenas às pessoas bemnascidas as quais ao contrário sob a influência dos moralistas começavam a abandonála A paparicação também era denunciada entre o povo JB de La Salle em sua Conduite des écoles chrétiennes13 constata que as crianças dos pobres eram especialmente maleducadas pois só fazem o que querem sem que os pais se importem mas não por negligência chegando mesmo a ser idolatradas o que as crianças querem os pais também querem É entre os moralistas e os educadores do século XVII que vemos formarse esse outro sentimento da infância que estudamos no capítulo anterior e que inspirou toda a educação até o século XX tanto na cidade como no campo na burguesia como no povo O apego à infância e à sua particularidade não se exprimia mais por meio da distração e da brincadeira mas por meio do interesse psicológico e da preocupação moral A criança não era nem divertida nem agradável Todo homem sente dentro de si essa insipidez da infância que repugna à razão sadia essa aspereza da juventude que só se sacia com objetos sensíveis e não é mais do que o esboço grosseiro do homem racional Assim falava El Discreto de Balthazar Gratien um tratado sobre a educação de 1646 traduzido para o francês em 1723 por um padre jesuíta14 Só o tempo pode curar o homem da infância e da juventude idades da imperfeição sob todos os aspectos Como vemos essas opiniões devem ser recolocadas em seu contexto da época e comparadas aos outros textos para serem compreendidas Elas já foram interpretadas por alguns historiadores como uma ignorância da infância No entanto devemos ver nelas o início de um sentimento sério e autêntico da infância Pois não convinha ao adulto se acomodar à leviandade da infância este fora o erro antigo Era preciso antes conhecêla melhor para corrigila e os textos do fim do século XVI e do século XVII estão cheios de observações sobre a psicologia infantil15 Tentavase penetrar na mentalidade das crianças para melhor adaptar a seu nível os métodos de 157 educação Pois as pessoas se preocupavam muito com as crianças consideradas testemunhos da inocência batismal semelhantes aos anjos e próximas de Cristo que as havia amado Mas esse interesse impunha que se desenvolvesse nas crianças uma razão ainda frágil e que se fizesse delas homens racionais e cristãos O tom às vezes era austero e a ênfase recaía sobre a severidade por oposição ao relaxamento e às facilidades dos costumes mas nem sempre era assim Havia também humor até mesmo em Jacqueline Pascal e havia uma ternura declarada No final do século procurouse conciliar a doçura e a razão Para o abade Goussault conselheiro do Parlamento em Le Portrait dune honnête femme16 familiarizarse com os próprios filhos fazêlos falar sobre todas as coisas tratálos como pessoas racionais e conquistálos pela doçura é um segredo infalível para se fazer deles o que se quiser As crianças são plantas jovens que é preciso cultivar e regar com frequência alguns conselhos dados na hora certa algumas demonstrações de ternura e amizade feitas de tempos em tempos as comovem e as conquistam Algumas carícias alguns presentinhos algumas palavras de confiança e cordialidade impressionam seu espírito e poucas são as que resistem a esses meios doces e fáceis de transformálas em pessoas honradas e probas A preocupação era sempre a de fazer dessas crianças pessoas honradas e probas e homens racionais O primeiro sentimento da infância caracterizado pela paparicação surgiu no meio familiar na companhia das criancinhas pequenas O segundo ao contrário proveio de uma fonte exterior à família dos eclesiásticos ou dos homens da lei raros até o século XVI e de um maior número de moralistas no século XVII preocupados com a disciplina e a racionalidade dos costumes Esses moralistas haviamse tornado sensíveis ao fenômeno outrora negligenciado da infância mas recusavamse a considerar as crianças como brinquedos encantadores pois viam nelas frágeis criaturas de Deus que era preciso ao mesmo tempo preservar e disciplinar Esse sentimento por sua vez passou para a vida familiar No século XVIII encontramos na família esses dois elementos antigos associados a um elemento novo a preocupação com a higiene e a saúde física O cuidado com o corpo não era desconhecido dos moralistas e dos educadores do século XVII Tratavase dos doentes com dedicação e também com grandes precauções para desmascarar os simuladores mas não havia interesse pelo corpo dos que gozavam de boa saúde a não ser com um objetivo moral um corpo mal enrijecido inclinava à moleza à preguiça à concupiscência a todos os vícios A correspondência do General de Martange com sua mulher17 nos dá uma ideia das preocupações íntimas de uma família cerca de um século depois de Mme de 158 Sévigné Martange nasceu em 1722 e casouse em 1754 Mais adiante teremos a oportunidade de voltar a esses textos Martange se preocupava com tudo o que dissesse respeito à vida de seus filhos desde a paparicação até a educação Havia também uma grande preocupação com sua saúde e até mesmo sua higiene Tudo o que se referia às crianças e à família tornarase um assunto sério e digno de atenção Não apenas o futuro da criança mas também sua simples presença e existência eram dignas de preocupação a criança havia assumido um lugar central dentro da família 159 1 P Michault Doctrinal du temps présent ed Th Walton 1931 p 119 Puis vecy une femme grausse Portant deux enfants en sa trousse Pintura de Van Laer 15921642 reproduzida em Berndt no 468 2 Le Malade imaginaire ato III cena III 3 Montaigne Essais II 8 4 Le Grand Propriétaire de toutes choses traduzido para o francês por J Carbichon 1556 5 Citado por Jarman Landmarks in the History of Education Londres 1951 6 Mme de Sévigné Lettres 1o de abril de 1672 7 Mme de Sévigné Lettres 19 de agosto de 1671 8 Montaigne Essais II 8 9 Coulanges Chansons choisies 1694 Para bem educar vossas crianças Não poupeis o preceptor Mas até que elas cresçam Fazeias calar quando estiverem entre adultos Pois nada aborrece tanto Como escutar as crianças dos outros O Pai cego acredita sempre Que seu filho diz coisas inteligentes Mas os outros que só ouvem bobagens Gostariam de ser surdos E no entanto é preciso Aplaudir a criança mimada Quando alguém vos disser por polidez Que vosso filho é bonito e bemcomportado Ou lhe der balas Não exijais mais nada Fazei vosso filho assim como seu preceptor Agir como um servidor Ninguém acreditaria que uma pessoa de bom senso Pudesse escrever Para criancinhas de três anos Se as de quatro não sabem ler No entanto há pouco tempo Vi um pai entregue a essa tola diversão Sabei ainda caros amigos Que nada é mais insuportável do que ver vossos filhinhos Pendurados na mesa como uma réstia de cebolas Moleques que com o queixo engordurado Enfiam o dedo em todos os pratos Que eles comam em outro lugar Sob as vistas de uma governanta Que lhes ensine a limpeza E não seja indulgente Pois não se pode com rapidez Aprender a comer com limpeza N T Trazei vosso filho Mas não banqueis a amaseca Mandemos os pequenos E seu preceptor comer na cozinha Pois hoje janta aqui A turba das criancinhas N T 10 Fleury op cit 11 G della Casa Galatée tradução francesa de 1609 pp 162168 12 M DArgonne LEducation de Monsieur de Moncade 1690 13 JB de La Salle Conduite des écoles chrétiennes 1720 14 B Gratien El Discreto Huesca 1646 Tradução francesa de 1723 pelo pe de Courbeville S J 15 Como se pode ver na Ratio dos Jesuítas 1586 e no Regulamento de Jacqueline Pascal para as meninas educadas em PortRoyal 16 Goussault Le Portrait dune honnête femme 1693 17 Correspondance inédite du général de Martange 15761782 ed Bréard 1898 160 2 A Vida Escolar 161 A 1 Jovens e Velhos Escolares da Idade Média1 segunda parte deste livro intitulada A vida escolástica é consagrada aos aspectos da história da educação que revelam o progresso do sentimento da infância na mentalidade comum como a escola e o colégio que na Idade Média eram reservados a um pequeno número de clérigos e misturavam as diferentes idades dentro de um espírito de liberdade de costumes se tornaram no início dos tempos modernos um meio de isolar cada vez mais as crianças durante um período de formação tanto moral como intelectual de adestrálas graças a uma disciplina mais autoritária e desse modo separálas da sociedade dos adultos Essa evolução do século XV ao XVIII não se deu sem resistências Os traços comuns da Idade Média persistiram por longo tempo até mesmo no interior do colégio e a fortiori na camada não escolarizada da população É muito raro encontrarmos nos textos medievais referências precisas à idade dos alunos Quando a despeito da oposição dos capítulos as escolas particulares se multiplicaram e ameaçaram o monopólio da escola da catedral os cônegos para se defender tentaram impor limites à atividade de seus concorrentes Ora esses limites nunca foram limites de idade Os cônegos se contentaram em proibir às escolas particulares todo ensino mais avançado do que o Donat sinônimo de gramática rudimentar Essa ausência de referências à idade persistiu por muito tempo e muitas vezes ainda a constatamos nos moralistas do século XVII Os contratos de pensão espécies de contratos de aprendizagem pelos quais as famílias fixavam as condições de pensão de seu filho escolar raramente mencionavam a idade do menino como se isso não tivesse importância O elemento psicológico essencial dessa estrutura demográfica era a indiferença pela idade daqueles que a compunham ao contrário a preocupação com a idade se tornaria fundamental no século XIX e em nossos dias Podemos constatar entretanto que os alunos iniciantes geralmente tinham cerca de 10 anos Mas seus contemporâneos não prestavam atenção nisso e achavam natural que um adulto desejoso de aprender se 162 misturasse a um auditório infantil pois o que importava era a matéria ensinada qualquer que fosse a idade dos alunos Um adulto podia ouvir a leitura do livro de Donat no mesmo momento em que um menino precoce repetia o Organon não havia nisso nada de estranho Se considerarmos essa indiferença com relação à idade se nos lembrarmos do que foi dito atrás sobre os métodos pedagógicos utilizados sobre a simultaneidade e a repetição do ensino não nos surpreenderemos em ver na escola medieval todas as idades confundidas no mesmo auditório E essa observação é capital para nosso estudo A escola não dispunha então de acomodações amplas O mestre instalava se no claustro após livrálo dos comércios parasitas ou então dentro ou na porta da igreja Mais tarde porém com a multiplicação das escolas autorizadas quando não tinha recursos suficientes ele às vezes se contentava com uma esquina de rua São Tomás aliás demonstrou seu desdém por esses homens empobrecidos que falavam coram pueris in angulis2 Em geral o mestre alugava uma sala uma schola por um preço que era regulamentado nas cidades universitárias Em Paris essas escolas se concentravam em uma rua a Rue du Fouarre vicus straminis Essas escolas é claro eram independentes umas das outras Forravase o chão com palha e os alunos aí se sentavam Mais tarde a partir do século XIV passou se a usar bancos embora esse novo hábito de início parecesse suspeito Então o mestre esperava pelos alunos como o comerciante espera pelos fregueses Algumas vezes um mestre roubava os alunos do vizinho Nessa sala reuniamse então meninos e homens de todas as idades de seis a 20 anos ou mais Vi os estudantes na escola diz Robert de Salisbury no século XII3 Seu número era grande podia ser superior a 200 Vi homens de idades diversas pueros adolescentes juvenes senes ou seja todas as idades da vida pois não havia uma palavra para designar o adulto e as pessoas passavam sem transição de juvenes a senes Ainda no século XV os mestres do Doctrinal de Pierre Michault se dirigiam ao mesmo tempo aos pequenos e aos grandes que compunham seu auditório4 Bons escoliers entendements ouverts Tant soiez vieux ou josnes meurs ou vers E essa escola com uma grande multidão de alunos jovens e velhos estava lendo o capítulo sobre as construções do Doctrinal de Alexandre la Villedieu sucessor de Priscien e predecessor de Despeutères Como poderia ser de outra forma se não havia gradação nos currículos e os alunos mais velhos simplesmente haviam repetido mais vezes o que os jovens haviam escutado apenas uma vez sem que houvesse outras diferenças entre eles 163 E essa mistura de idades continuava fora da escola A escola não cerceava o aluno O mestre único às vezes assistido por um auxiliar e com uma única sala à sua disposição não estava organizado para controlar a vida quotidiana de seus alunos Estes terminada a lição escapavam à sua autoridade Ora originariamente essa autoridade o for do mestre era a única que eles reconheciam Velhos ou jovens os alunos eram abandonados a si mesmos Alguns muito raros viviam com os pais Outros viviam em regime de pensão quer na casa do próprio mestre quer na casa de um padre ou cônego segundo as condições fixadas por um contrato semelhante ao contrato de aprendizagem Estes últimos eram os mais vigiados ou ao menos os mais seguidos Pertenciam a uma casa à família do clérigo ao qual haviam sido confiados e nesse caso havia uma espécie de compromisso entre a educação pela aprendizagem que estudaremos adiante5 e a educação escolar de tipo moderno Essa era a única forma de internato conhecida Mas a maior parte dos alunos morava onde podia como o habitante local vários em cada quarto E é preciso admitir que aí também os velhos se misturavam com os jovens Longe de serem separados pela idade suas relações deviam ser reguladas por tradições de iniciação que uniam com laços estreitos os alunos pequenos aos maiores Voltaremos a este ponto a propósito da história da disciplina escolar Essa promiscuidade das idades hoje nos surpreende quando não nos escandaliza no entanto os medievais eram tão pouco sensíveis a ela que nem a notavam como acontece com as coisas muito familiares Mas como poderia alguém sentir a mistura das idades quando se era tão indiferente à própria ideia de idade Assim que ingressava na escola a criança entrava imediatamente no mundo dos adultos Essa confusão tão inocente que passava despercebida era um dos traços mais característicos da antiga sociedade e também um de seus traços mais persistentes na medida em que correspondia a algo enraizado na vida Ela sobreviveria a várias mudanças de estrutura A partir do fim da Idade Média percebemse os germes de uma evolução inversa que resultaria em nosso sentimento atual das diferenças de idade Mas até o fim do Ancien Régime ao menos restaria algo desse estado de espírito medieval Sua resistência aos outros fatores de transformação mental mostranos bem que estamos na presença de uma atitude fundamental diante da vida que foi familiar a uma longa sucessão de gerações 164 1 Na presente edição foram conservadas apenas as conclusões de cada capítulo O capítulo intitulado Do externato ao internato foi inteiramente suprimido 2 De unitate intellectus contra Averrioistos LXIX p 252 3 R de Salisbury De vanitate mundi P L 176 col 709 4 P Michault Doctrinal du temps présent ed Th Walton 1931 Bons alunos de compreensão aberta Quer sejais velhos ou jovens maduros ou verdes N T 5 Cf parte III cap 2 165 N 2 Uma Instituição Nova O Colégio o século XIII os colégios eram asilos para estudantes pobres fundados por doadores Os bolsistas aí viviam em comunidades segundo estatutos que se inspiravam em regras monásticas Não se ensinava nos colégios A partir do século XV essas pequenas comunidades democráticas tornaramse institutos de ensino em que uma população numerosa e não mais apenas os bolsistas da fundação entre os quais figuravam alguns administradores e professores foi submetida a uma hierarquia autoritária e passou a ser ensinada no local Finalmente todo o ensino das artes passou a ser ministrado nos colégios que forneceriam o modelo das grandes instituições escolares do século XV ao XVII os colégios dos jesuítas os colégios dos doutrinários e os colégios dos oratorianos o colégio do Ancien Régime mais distante dos primeiros colégios de bolsistas do século XIV do que de nossos colégios de hoje diretamente anunciados por ele apesar de diferenças importantes e sobretudo da ausência de internato O estabelecimento definitivo de uma regra de disciplina completou a evolução que conduziu da escola medieval simples sala de aula ao colégio moderno instituição complexa não apenas de ensino mas de vigilância e enquadramento da juventude Essa evolução da instituição escolar está ligada a uma evolução paralela do sentimento das idades e da infância No início o senso comum aceitava sem dificuldade a mistura das idades Chegou um momento em que surgiu uma repugnância nesse sentido de início em favor das crianças menores Os pequenos alunos de gramática foram os primeiros a ser distinguidos Mas essa repugnância não parou neles Estendeuse também aos maiores alunos de lógica e de física e a todos os alunos de artes embora a idade de alguns deles lhes permitisse exercer fora da escola funções reservadas aos adultos É que embora tivesse começado pelos mais jovens essa separação não os atingia como crianças e sim como estudantes e no princípio como estudantesclérigos pois quase todos eram tonsurados Por essa razão não se aplicou aos estudantes com o fito de distingui los dos adultos um regime realmente infantil ou juvenil aliás não se conhecia nem a natureza nem o modelo de um tal regime Desejavase apenas proteger os 166 estudantes das tentações da vida leiga uma vida que muitos clérigos também levavam desejavase proteger sua moralidade Os educadores inspiraramse então no espírito das fundações monásticas do século XIII dos dominicanos e franciscanos que conservavam os princípios da tradição monástica mas haviam abandonado a clausura a reclusão e tudo o que restava do cenobitismo original É certo que os estudantes não estavam comprometidos por nenhum voto Mas durante o período de seus estudos eles foram submetidos ao modo de vida particular dessas novas comunidades Graças a esse modo de vida a juventude escolar foi separada do resto da sociedade que continuava fiel à mistura das idades dos sexos e das condições sociais Esta era a situação ao longo do século XIV Mais tarde o objetivo fixado para esse tipo de existência a meio caminho entre a vida leiga e a vida monástica se alterou No início ele fora considerado um meio de garantir a um jovem clérigo uma vida honesta A seguir adquiriu um valor intrínseco tornouse a condição imprescindível de uma boa educação mesmo leiga A ideia de educação era estranha às concepções do início do século XIV Em 1452 porém o Cardeal dEstouteville falava do regimen puerorum e da responsabilidade moral dos mestres encarregados das almas dos alunos Tratavase tanto da formação como da instrução do estudante e por esse motivo convinha impor às crianças uma disciplina estrita a disciplina tradicional dos colégios modificada porém em um sentido mais autoritário e mais hierárquico O colégio tornouse então um instrumento para a educação da infância e da juventude em geral Nessa mesma época no século XV e sobretudo no XVI o colégio modificou e ampliou seu recrutamento Composto outrora de uma pequena minoria de clérigos letrados ele se abriu a um número crescente de leigos nobres e burgueses mas também a famílias mais populares como veremos adiante O colégio tornouse então uma instituição essencial da sociedade o colégio com um corpo docente separado com uma disciplina rigorosa com classes numerosas em que se formariam todas as gerações instruídas do Ancien Régime O colégio constituía se não na realidade mais incontrolável da existência ao menos na opinião mais racional dos educadores pais religiosos e magistrados um grupo de idade maciço que reunia alunos de oitonove anos até mais de 15 submetidos a uma lei diferente da que governava os adultos 167 C 3 Origens das Classes Escolares omo se passou da indeterminação medieval ao rigor do conceito moderno como e quando a classe escolar adquiriu seu aspecto atual de classe de idade Desde o início do século XV pelo menos começouse a dividir a população escolar em grupos de mesma capacidade que eram colocados sob a direção de um mesmo mestre em um único local a Itália por exemplo durante muito tempo permaneceu fiel a essa fórmula de transição Mais tarde ao longo do século XV passouse a designar um professor especial para cada um desses grupos que continuaram a ser mantidos porém em um local comum essa formação ainda subsistia na Inglaterra na segunda metade do século XIX Finalmente as classes e seus professores foram isolados em salas especiais e essa iniciativa de origem flamenga e parisiense gerou a estrutura moderna de classe escolar Assistimos então a um processo de diferenciação da massa escolar que no início do século XV era desorganizada Esse processo correspondeu a uma necessidade ainda nova de adaptar o ensino do mestre ao nível do aluno Foi este o ponto essencial Essa preocupação em se colocar ao alcance dos alunos opunhase tanto aos métodos medievais de simultaneidade ou de repetição como à pedagogia humanista que não distinguia a criança do homem e confundia a instrução escolar uma preocupação para a vida com a cultura uma aquisição da vida Essa distinção das classes indicava portanto uma conscientização da particularidade da infância ou da juventude e do sentimento de que no interior dessa infância ou dessa juventude existiam várias categorias A instituição do colégio hierarquizado no século XIV já havia retirado a infância escolar da barafunda em que no mundo exterior as idades se confundiam A criação das classes no século XVI estabeleceu subdivisões no interior dessa população escolar Essas categorias esboçadas às vezes a partir de uma circunstância que ainda não correspondia àquilo que mais tarde seria exigido delas em termos de ordem disciplina e eficácia pedagógica seriam na época categorias de idade Sem dúvida em 1538 Baduel via no sistema de classes um meio de repartir os alunos segundo sua idade e seu desenvolvimento No primeiro terço do século XVI Thomas 168 Platter ao termo de uma juventude errante foi ter numa boa escola de Schlestadt frequentada por 900 discipuli ora ele já não devia achar muito normal que sua ignorância o situasse aos 18 anos no meio das crianças pois que sentiu a necessidade de registrar o fato como uma anomalia Quando entrei para a escola não sabia nada nem mesmo ler o Donat e no entanto eu tinha 18 anos Tomei meu lugar entre as crianças pequenas parecia uma galinha no meio dos pintinhos Não nos deixemos enganar contudo por esses poucos indícios que corremos o risco de aumentar ao isolar Algumas vezes havia uma coincidência entre a idade e o grau mas nem sempre e quando havia contradição a surpresa era pequena e muitas vezes nenhuma Na realidade prestavase sempre mais atenção ao grau do que à idade No início do século XVII a classe não possuía a homogeneidade demográfica que a caracteriza desde o fim do século XIX embora se aproximasse constantemente dela As classes escolares que se haviam formado por questões não demográficas serviriam gradualmente para enquadrar categorias de idades não previstas de início Existia portanto uma relação despercebida entre a estruturação das classes e as idades despercebida porque estranha os hábitos mais comuns A nova necessidade de análise e de divisão que caracterizou o nascimento da consciência moderna em sua zona mais intelectual ou seja na formação pedagógica provocou por sua vez necessidades e métodos idênticos quer na ordem do trabalho a divisão do trabalho quer na representação das idades a repugnância em misturar espíritos e portanto idades muito diferentes Mas essa preocupação de separação das idades só foi teoricamente reconhecida e afirmada mais tarde quando já se havia imposto na prática após tentativas longas e empíricas E isso nos leva a estudar mais de perto o problema das idades escolares e de sua correspondência às classes 169 O 4 As Idades dos Alunos estudo da correspondência entre as classes escolares e as idades dos alunos o estudo do ciclo escolar através do exame de alguns casos biográficos dos séculos XV XVII e XVIII e finalmente a análise de alguns catálogos em que os diretores e professores atualizavam a lista de alunos o que possibilita estabelecer a composição das classes por idade nos permitem deduzir algumas ideias essenciais A precocidade de certas infâncias do século XVI e início do século XVII nos pareceu ser uma sobrevivência dos hábitos escolares medievais mas também do costume geral da aprendizagem em que as idades eram misturadas e uma habilidade precoce não surpreendia mais do que o caráter excepcional de certos dons Observamos aliás que as carreiras brilhantes como as dos nossos memorialistas ainda se caracterizavam por uma relativa precocidade durante certo tempo a precocidade esteve ligada ao sucesso Contudo a admiração comum logo se desviou desses jovens prodígios no mais tardar durante o século XVIII A repugnância pela precocidade marca a primeira brecha aberta na indiferenciação das idades dos jovens A política escolar que eliminava as crianças muito pequenas fossem quais fossem seus dotes quer recusandolhes a entrada na escola quer como era mais comum concentrandoas nas classes mais baixas ou ainda fazendoas repetir o ano implicava um sentimento novo de distinção entre uma primeira infância mais longa e a infância propriamente escolástica Até o meio do século XVII tendiase a considerar como término da primeira infância a idade de 56 anos quando o menino deixava sua mãe sua ama ou suas criadas Aos sete anos ele podia entrar para o colégio e até mesmo para o 7o ano Mais tarde a idade escolar ao menos a idade da entrada para as três classes de gramática foi retardada para os 910 anos Portanto eram as crianças de até 10 anos que eram mantidas fora do colégio Dessa maneira conseguiase separar uma primeira infância que durava até 910 anos de uma infância escolar que começava nessa idade O sentimento mais comumente expresso para justificar a necessidade de retardar a entrada para o colégio era a fraqueza a imbecilidade ou a incapacidade dos pequeninos Raramente era o perigo que sua inocência corria ou 170 ao menos esse perigo quando admitido não era limitado apenas à primeira infância A repugnância pela precocidade marcou portanto a diferenciação através do colégio de uma primeira camada a da primeira infância prolongada até cerca de 10 anos Mas embora a primeira infância fosse assim isolada a mistura arcaica das idades persistiu nos séculos XVII e XVIII entre o resto da população escolar em que crianças de 10 a 14 anos adolescentes de 15 a 18 e rapazes de 19 a 25 frequentavam as mesmas classes Até o fim do século XVIII não se teve a ideia de separálos Ainda no início do século XIX separavamse de modo definitivo os homens feitos os barbudos de mais de 20 anos mas não se considerava estranha a presença no colégio de adolescentes atrasados e a promiscuidade de elementos de idades muito diferentes não chocava ninguém contanto que os menores não fossem expostos a ela De fato ainda não se sentia a necessidade de distinguir a segunda infância além dos 1213 anos da adolescência ou da juventude Essas duas categorias de idade ainda continuavam a ser confundidas elas só se separariam mais para o fim do século XIX graças à difusão entre a burguesia de um ensino superior universidade ou grandes escolas Durante o Primeiro Império na França nem mesmo a época do recrutamento facilmente evitado nas camadas burguesas dividia esse longo período de idade em que nossas distinções modernas ainda não era admitidas Observaremos que essa ausência de separação entre a segunda infância e a adolescência que desapareceu na burguesia durante o século XIX subsiste ainda hoje na França nas classes populares onde não há formação secundária A maioria das escolas primárias permanece fiel ao velho hábito da simultaneidade do ensino O jovem operário que obtém o certificado de conclusão do primeiro grau e não passa por uma escola técnica ou um centro de aprendizagem entra diretamente para o mundo do trabalho que continua a ignorar a distinção escolar das idades E aí ele pode escolher seus camaradas em uma faixa de idade mais extensa do que a faixa reduzida da classe do colégio O fim da infância a adolescência e o início da maturidade não se opõem como na sociedade burguesa condicionada pela prática dos ensinos secundário e superior O período da segunda infânciaadolescência foi distinguido graças ao estabelecimento progressivo e tardio de uma relação entre a idade e a classe escolar Durante muito tempo no século XVI e até mesmo no século XVII essa relação foi muito incerta A regularização do ciclo anual das promoções o hábito de impor a todos os alunos a série completa de classes em lugar de limitála a alguns apenas e as 171 necessidades de uma pedagogia nova adaptada a classes menos numerosas e mais homogêneas resultaram no início do século XIX na fixação de uma correspondência cada vez mais rigorosa entre a idade e a classe Os mestres se habituaram então a compor suas classes em função da idade dos alunos As idades outrora confundidas começaram a se separar na medida em que coincidiam com as classes pois desde o fim do século XVI a classe fora reconhecida como uma unidade estrutural Sem o colégio e suas células vivas a burguesia não dispensaria às diferenças mínimas de idade de suas crianças a atenção que lhes demonstra e partilharia nesse ponto da relativa indiferença das sociedades populares 172 P 5 Os Progressos da Disciplina1 ortanto antes do século XV o estudante não estava submetido a uma autoridade disciplinar extracorporativa a uma hierarquia escolar Mas tampouco estava entregue a si mesmo Ou bem residia perto de uma escola com sua própria família ou como era mais frequente morava com outra família à qual havia sido confiado com um contrato de aprendizagem que previa a frequência a uma escola sempre latina O menino entrava então para uma dessas associações corporações ou confrarias que por meio de exercícios devotos ou festivos do culto religioso de bebedeiras ou banquetes mantinham vivo o sentimento de sua comunidade de vida Outra possibilidade era o pequeno estudante seguir um menino mais velho compartilhando sua vida na alegria ou na desgraça e muitas vezes em troca sendo surrado e explorado Em todos esses casos o estudante pertencia a uma sociedade ou a um bando de companheiros em que uma camaradagem às vezes brutal porém real regulava sua vida quotidiana muito mais do que a escola e seu mestre e porque essa camaradagem era reconhecida pelo senso comum tinha um valor moral A partir do fim da Idade Média esse sistema de camaradagem encontraria na opinião influente uma oposição crescente e se deterioraria gradativamente até aparecer no final como uma forma de desordem e de anarquia Em sua ausência a juventude escolar seria organizada com base em novos princípios de comando e de hierarquia autoritária Essa evolução é certo não foi particular à infância e se estendeu a toda a sociedade o estabelecimento do absolutismo monárquico foi um de seus aspectos Contudo na escola ela provocou ou acompanhou uma modificação paralela do sentimento da infância particularmente interessante para nosso estudo Acompanharemos agora os progressos desses novos princípios de disciplina Desde o século XV ao mesmo tempo em que lutavam contra os hábitos 173 escolares de solidariedade corporativa esses homens adeptos da ordem esses organizadores esclarecidos procuravam difundir uma ideia nova da infância e de sua educação Gerson e o Cardeal dEstouteville são exemplos muito característicos desse estado de espírito Para o Cardeal dEstouteville2 as crianças não podiam ser abandonadas sem perigo a uma liberdade sem limites hierárquicos Elas pertenciam a uma etas infirma que exigia uma disciplina maior e princípios mais estritos Para ele os mestresescola os principales não deviam mais ser os primeiros camaradas da criança Eles se separavam dos infirmi que dirigiam Sua missão não consistia apenas em transmitir como mais velhos diante de companheiros mais jovens os elementos de um conhecimento eles deviam além disso e em primeiro lugar formar os espíritos inculcar virtudes educar tanto quanto instruir Essa preocupação não aparecia de forma tão explícita nos textos anteriores Esses educadores eram responsáveis pela alma dos alunos monemus omnes et singulos pedagogos presentes et futuros ut sic intendant regimini suorum domesticorum puerorum et scolarium Para eles era um dever de consciência escolher judiciosamente seus colaboradores os outros mestres e submonitores viros bonos graves et doctos Era um dever também usar sem indulgência culpada de seus poderes de correção e punição pois isso envolvia a salvação da alma das crianças pelas quais eles eram responsáveis perante Deus ne eorum dampnationem Duas ideias novas surgem ao mesmo tempo a noção da fraqueza da infância e o sentimento da responsabilidade moral dos mestres O sistema disciplinar que elas postulavam não se podia enraizar na antiga escola medieval onde o mestre não se interessava pelo comportamento de seus alunos fora da sala de aula A nova disciplina se introduziria através da organização já moderna dos colégios e pedagogias com a série completa de classes em que o diretor e os mestres deixavam de ser primi inter pares para se tornarem depositários de uma autoridade superior Seria o governo autoritário e hierarquizado dos colégios que permitiria a partir do século XV o estabelecimento e o desenvolvimento de um sistema disciplinar cada vez mais rigoroso Para definir esse sistema distinguiremos suas três características principais a vigilância constante a delação erigida em princípio de governo e em instituição e a aplicação ampla de castigos corporais 174 A história da disciplina do século XIV ao XVII permitenos fazer duas obervações importantes Em primeiro lugar uma disciplina humilhante o chicote ao critério do mestre e a espionagem mútua em benefício do mestre substituiu um modo de associação corporativa que era o mesmo tanto para os jovens escolares como para os outros adultos Essa evolução sem dúvida não foi particular à infância nos séculos XVXVI o castigo corporal se generalizou ao mesmo tempo em que uma concepção autoritária hierarquizada em suma absolutista da sociedade Contudo mesmo assim restou uma diferença essencial entre a disciplina das crianças e a dos adultos diferença que não existia nesse grau durante a Idade Média Entre os adultos nem todos eram submetidos ao castigo corporal os fidalgos lhe escapavam e o modo de aplicação da disciplina contribuía para distinguir as condições sociais Ao contrário todas as crianças e todos os jovens qualquer que fosse sua condição eram submetidos a um regime comum e eram igualmente surrados Isso não quer dizer que a separação das condições sociais não existisse no mundo escolástico Ela existia aí como nos outros lugares e era igualmente marcada Mas o caráter degradante para os adultos nobres do castigo corporal não impedia sua aplicação às crianças Ele se tornou até mesmo uma característica da nova atitude diante da infância O segundo fenômeno que nossa análise revela é a dilatação da idade escolar submetida ao chicote reservado de início às crianças pequenas a partir do século XVI ele se estendeu a toda a população escolar que muitas vezes beirava e outras ultrapassava os 20 anos Tendiase portanto a diminuir as distinções entre a infância e a adolescência a fazer recuar a adolescência na direção da infância submetendo a a uma disciplina idêntica Dentro do mundo escolar pois isso não se aplicava tanto às carreiras não escolares ou pouco escolarizadas o adolescente era afastado do adulto e confundido com a criança com a qual partilhava as humilhações do castigo corporal o castigo da plebe Portanto a infância prolongada até dentro já da adolescência da qual se distinguia mal caracterizavase por uma humilhação deliberada Toda a infância a infância de todas as condições sociais era submetida ao regime degradante dos plebeus O sentimento da particularidade da infância de sua diferença com relação ao mundo dos adultos começou pelo sentimento mais elementar de sua fraqueza que a rebaixava ao nível das camadas sociais mais inferiores A preocupação em humilhar a infância para distinguila e melhorála se atenuaria ao longo do século XVIII e a história da disciplina escolar nos permite acompanhar a mudança da consciência coletiva nessa questão 175 Na França a opinião pública manifestou uma repugnância pelo regime disciplinar escolástico que resultou em sua supressão por volta de 1763 quando as autoridades tomaram a condenção dos jesuítas como pretexto para reorganizar o sistema escolar O caráter servil e aviltador do castigo corporal não era mais reconhecido como adaptado à fraqueza da infância Ao contrário ele provocava uma reprovação de início discreta mas que se iria ampliar Surgiu a ideia de que a infância não era uma idade servil e não merecia ser metodicamente humilhada Essa repugnância despertada aqui pelo castigo dos alunos pequenos tornouse ainda mais viva com relação aos alunos maiores Pouco a pouco tornouse habitual não mais chicotear os alunos de retórica Ao mesmo tempo as velhas práticas de delação foram abandonadas Já as pequenas escolas de PortRoyal e a tradição jansenista que fazia o papel de precursora as evitavam Por volta de 1700 o novo colégio de SainteBarbe adotou os métodos de PortRoyal3 Seu regulamento suprimia tanto os castigos corporais como os princípios medievais de emulação adotados pelos odiados jesuítas e a instituição dos observadores Mais que isso na reunião semanal dos mestres que decidiam as advertências e os castigos um tribuno dos alunos estava presente e defendia seus colegas Um espírito inteiramente diferente surge aqui Ele se impôs ao colégio de LouisleGrand após 1763 e a toda a organização escolar francesa O relaxamento da antiga disciplina escolar correspondeu a uma nova orientação do sentimento da infância que não mais se ligava ao sentimento de sua fraqueza e não mais reconhecia a necessidade de sua humilhação Tratavase agora de despertar na criança a responsabilidade do adulto o sentido de sua dignidade A criança era menos oposta ao adulto embora se distinguisse bastante dele na prática do que preparada para a vida adulta Essa preparação não se fazia de uma só vez brutalmente Exigia cuidados e etapas uma formação Esta foi a nova concepção da educação que triunfaria no século XIX 176 I I 177 1 As reticências indicam passagens suprimidas 2 Théry Histoire de léducation 1858 2 vols t II apêndice 3 Quicherat Histoire de SainteBarbe 1860 178 E 6 As Pequenas Escolas ste capítulo é dedicado ao estudo de dois fenômenos primeiro no século XVII a especialização demográfica das idades de 57 a 1011 anos tanto nas pequenas escolas como nas classes inferiores dos colégios em seguida no século XVIII a especialização social de dois tipos de ensino um para o povo e o outro para as camadas burguesas e aristocráticas De um lado as crianças foram separadas das mais velhas e de outro os ricos foram separados dos pobres Em minha opinião existe uma relação entre esses dois fenômenos Eles foram as manifestações de uma tendência geral ao enclausuramento que levava a distinguir o que estava confundido e a separar o que estava apenas distinguido uma tendência que não era estranha à revolução cartesiana das ideias claras e que resultou nas sociedades igualitárias modernas em que uma compartimentação geográfica rigorosa substituiu as promiscuidades das antigas hierarquias 179 O 7 A Rudeza da Infância Escolar homem moderno ficará surpreso com a inconveniência desses costumes eles nos parecem incompatíveis com nossas ideias sobre a infância e a primeira adolescência e já é muito os tolerarmos nos adultos das classes populares como indício de uma idade mental ainda aquém da maturidade Nos séculos XVI e XVII os contemporâneos situavam os escolares no mesmo mundo picaresco dos soldados criados e de modo geral dos mendigos As pessoas honestas que possuíam algum bem desconfiavam tanto de uns como de outros Um cônego de Dijon1 falando sobre a juventude dourada da cidade à qual pertencia o filho do presidente da Corte Suprema e de sua partida em 1592 para ir para as universidades das Leis em Toulouse chamavaa literalmente de escória É um grande bem nos vermos livres dessa escória como de um bando de malfeitores Uma das personagens da comédia de Larivey assimilava certos escolares aos insubmissos que viviam à margem da sociedade civilizada Não penso que sejam escolares e sim homens livres que vivem sem lei e sem apetite e homens livres significava algo como vagabundos ou truands A própria palavra truand que na gíria francesa moderna designa um adulto vem do latim escolástico trutanus vagabundo palavra que se aplicava principalmente aos estudantes errantes essa chaga da antiga sociedade escolar O termo ainda conserva esse sentido em inglês onde truant designa antes de tudo a criança que faz gazeta Foi necessária a pressão dos educadores para separar o escolar do adulto boêmio ambos herdeiros de um tempo em que a elegância de atitude e de linguagem era reservada não ao clérigo mas ao adulto cortês Uma nova noção moral deveria distinguir a criança ao menos a criança escolar e separála a noção da criança bemeducada Essa noção praticamente não existia no século XVI e formouse no século XVII Sabemos que se originou das visões reformadoras de uma elite de pensadores e moralistas que ocupavam funções eclesiásticas ou governamentais A criança bemeducada seria preservada das rudezas e da imoralidade que se tornariam traços específicos das camadas populares e dos moleques Na França essa criança bemeducada seria o pequenoburguês Na 180 Inglaterra ela se tornaria o gentleman tipo social desconhecido antes do século XIX e que seria criado por uma aristocracia ameaçada graças às public schools como uma defesa contra o avanço democrático Os hábitos das classes dirigentes do século XIX foram impostos às crianças de início recalcitrantes por precursores que os pensavam como conceitos mas ainda não os viviam concretamente Esses hábitos no princípio foram hábitos infantis os hábitos das crianças bemeducadas antes de se tornarem os hábitos da elite do século XIX e pouco a pouco do homem moderno qualquer que seja sua condição social A antiga turbulência medieval foi abandonada primeiro pelas crianças e finalmente pelas classes populares hoje ela é a marca dos moleques dos desordeiros últimos herdeiros dos antigos vagabundos dos mendigos dos fora da lei dos escolares do século XVI e início do século XVII 181 1 C Mutteau Les Ecoles de Dijon 182 N CONCLUSÃO A Escola e a Duração da Infância a primeira parte deste livro estudamos o nascimento e o desenvolvimento dos dois sentimentos da infância que distinguimos o primeiro difundido e popular a paparicação limitavase às primeiras idades e correspondia à ideia de uma infância curta o segundo que exprimia a tomada de consciência da inocência e da fraqueza da infância e por conseguinte do dever dos adultos de preservar a primeira e fortalecer a segunda durante muito tempo se limitou a uma pequena minoria de legistas padres ou moralistas Sem eles a criança teria permanecido apenas o poupard o bambino o pequeno ser cômico e gentil com o qual as pessoas se distraíam com afeição mas também com liberdade quando não com licença sem preocupação moral ou educativa Passados os cinco ou sete primeiros anos a criança se fundia sem transição com os adultos esse sentimento de uma infância curta persistiu ainda por muito tempo nas classes populares Os moralistas e educadores do século XVII herdeiros de uma tradição que remontava a Gerson aos reformadores da universidade de Paris do século XV aos fundadores de colégios do fim da Idade Média conseguiram impor seu sentimento grave de uma infância longa graças ao sucesso das instituições escolares e às práticas de educação que eles orientaram e disciplinaram Esses mesmos homens obcecados pela educação encontramse também na origem do sentimento moderno da infância e da escolaridade A infância foi prolongada além dos anos em que o garotinho ainda andava com o auxílio de guias ou falava seu jargão quando uma etapa intermediária antes rara e daí em diante cada vez mais comum foi introduzida entre a época da túnica com gola e a época do adulto reconhecido a etapa da escola do colégio As classes de idade em nossa sociedade se organizam em torno de instituições Assim a adolescência mal percebida durante o Ancien Régime se distinguiu no século XIX e já no fim do século XVIII através da conscrição e mais tarde do serviço militar O écolier o escolar e esta palavra até o século XIX foi sinônimo de estudante sendo ambas empregadas indiferentemente a palavra colegial não existia o écolier do século XVI ao XVIII estava para uma infância longa assim como o conscrito dos séculos XIX e XX está para a adolescência 183 Entretanto essa função demográfica da escola não surgiu imediatamente como uma necessidade Ao contrário durante muito tempo a escola permaneceu indiferente à repartição e à distinção das idades pois seu objetivo essencial não era a educação da infância Nada predispunha a escola latina da Idade Média a esse papel de formação moral e social A escola medieval não era destinada às crianças era uma espécie de escola técnica destinada à instrução dos clérigos jovens ou velhos como dizia o Doctrinal de Michault Ela acolhia da mesma forma e indiferentemente as crianças os jovens e os adultos precoces ou atrasados ao pé das cátedras magisteriais Até o século XVIII ao menos muito dessa mentalidade sobreviveu na vida e nos hábitos escolares Vimos como a divisão em classes separadas e regulares foi tardia como as idades continuavam misturadas dentro de cada classe frequentada ao mesmo tempo por crianças de 10 a 13 anos e adolescentes de 15 a 20 Na linguagem comum dizer que um menino estava em idade de ir para a escola não significava necessariamente que se tratava de uma criança pois essa idade podia também ser considerada como um limite além do qual o indivíduo tinha poucas possibilidades de sucesso É dessa forma que devemos interpretar os sábios conselhos que Tereza Pança dá a seu marido Sancho quando este parte em expedição com D Quixote segundo a tradução francesa do século XVII1 Não vos esqueçais nem de mim nem de vossos filhos Lembraivos que nosso Sanchico já tem 15 anos feitos que é razoável e que deve entrar para a escola se é certo que seu tio abade deseja tornálo um homem da Igreja Iase para a escola quando se podia ou muito cedo ou muito tarde Esse modo de ver persistiria ao longo de todo o século XVII a despeito das influências contrárias Deixaria vestígios suficientes no século XVIII para que após a Revolução os educadores mais velhos se lembrassem dele e se referissem para condenála à prática do Ancién Régime de manter no colégio alunos muito velhos Ele só desapareceria realmente no século XIX Essa indiferença da escola pela formação infantil não era própria apenas dos conservadores retrógrados É importante notar que os humanistas do Renascimento a compartilharam também com seus inimigos os escolásticos tradicionais Assim como os pedagogos da Idade Média eles confundiram educação com cultura e estenderam a educação a toda a duração da vida humana sem dar um valor privilegiado à infância ou à juventude sem especializar a participação das idades Mas eles exerceram apenas uma influência fraca sobre a estrutura da escola e seu papel foi exageradamente aumentado pelos historiadores da literatura Os verdadeiros inovadores foram esses reformadores escolásticos do século XV o Cardeal dEstouteville Gerson os organizadores dos colégios e pedagogias e 184 finalmente e acima de tudo os jesuítas os oratorianos e os jansenistas do século XVII Com eles vemos surgir o sentido da particularidade infantil o conhecimento da psicologia infantil e a preocupação com um método adaptado a essa psicologia O colégio do Ancien Régime conservou portanto durante muito tempo a lembrança de sua ancestral a escola latina da catedral Muito tempo se passou até que ele aparecesse como uma instituição especialmente reservada às crianças Nem todo o mundo porém passava pelo colégio nem mesmo pelas pequenas escolas Nesses casos de meninos que jamais haviam ido ao colégio ou que nele haviam permanecido muito pouco tempo um ou dois anos os antigos hábitos de precocidade persistiam como na Idade Média Continuavase no domínio de uma infância muito curta Quando o colégio não prolongava a infância nada mudava Ainda no século XVII a distribuição da escolaridade não se fazia necessariamente segundo o nascimento Muitos jovens nobres ignoravam o colégio evitavam a academia e se uniam sem delonga às tropas em campanha Em seu famoso relato da morte de Turenne em 1675 Mme de Sévigné assinala a presença ao lado do Marechal de seu sobrinho que tinha 14 anos No fim do reinado de Luís XIV havia tenentes de 14 anos em seu exército Chevert entrou para o exército aos 112 Essa precocidade também era encontrada entre a soldadesca Mme de Sévigné que decididamente se interessava muito pelos assuntos militares como observa E G Leonard conta a seguinte anedota Despréaux foi com Gourville ver M le Prince M le Prince mandouo ver seu exército Então que me dizeis perguntou M le Prince Monsenhor disse Despréaux creio que vosso exército será bom quando for maior É que o soldado mais velho ainda não tem 18 anos3 Comum aos oficiais e aos homens do século XVII essa precocidade persistiu ainda muito tempo entre os soldados embora no século XVIII tenha desaparecido entre os oficiais que só entravam em serviço após um ciclo escolar mais ou menos completo e às vezes prolongado por escolas militares especiais Se a escolarização no século XVII ainda não era o monopólio de uma classe era sem dúvida o monopólio de um sexo As mulheres eram excluídas Por conseguinte entre elas os hábitos de precocidade e de infância curta mantiveram se inalterados da Idade Média até o século XVII Desde que completei meus 12 anos graças a Deus cuja vida é eterna casei me cinco vezes no pórtico da igreja Assim falava uma das mulheres de Chaucer no século XIV Mas no fim do século XVI Catherine Marion casouse com Antoine Arnauld aos 13 anos E ela era bastante dona de sua casa para dar uma 185 bofetada em sua primeira camareira uma moça de 20 anos assentada porque esta não havia resistido a uma carícia que alguém lhe fizera4 A autora destas linhas Catherine Lemaître tinhase casado aos 14 anos de idade As pessoas falavam em casar sua irmã Anne aos 12 anos e só a vocação religiosa da menina fez com que esses planos fracassassem O pretendente não tinha pressa e gostava da família pois como nos diz Catherine Lemaître não só esperou para se casar até que Anne tivesse professado como não quis fazêlo antes de ver também transformada em religiosa nossa irmã caçula que na época em que se falava de seu casamento com Anne era uma criança de seis anos No máximo quatro ou seis anos de noivado Aliás a partir dos 10 anos as meninas já eram mulherzinhas como essa mesma Anne Arnauld uma precocidade explicada por uma educação que treinava as meninas para que se comportassem desde muito cedo como adultas Desde os 10 anos de idade essa pequena tinha o espírito tão avançado que governava toda a casa de Mme Arnauld a qual a fazia agir assim deliberadamente para formála nos exercícios de uma mãe de família já que este deveria ser seu futuro Além da aprendizagem doméstica as meninas não recebiam por assim dizer nenhuma educação Nas famílias em que os meninos iam ao colégio elas não aprendiam nada Fénelon queixase dessa ignorância como de um fato generalizado Reconhece que as pessoas se preocupavam muito com os meninos Os mais hábeis especialistas se aplicaram em fornecer regras sobre o assunto Quantos mestres e quantos colégios vemos Quantas despesas são feitas com as impressões de livros as pesquisas científicas os métodos de ensino das línguas a escolha dos professores Essas despesas demonstram a alta consideração em que se tem a educação dos meninos Mas as meninas As pessoas se acreditam no direito de abandonar cegamente as meninas à orientação de mães ignorantes e indiscretas5 As mulheres mal sabiam ler e escrever Ensinais as meninas a ler e a escrever corretamente É vergonhoso porém comum verse mulheres de espírito e bem educadas portanto da boa sociedade não saberem pronunciar bem o que leem ou elas hesitam ou leem numa voz cantada Cometem erros ainda mais grosseiros de ortografia ou na maneira de formar ou ligar as letras ao escrever As mulheres eram semianalfabetas Criouse o hábito de enviar as meninas a conventos que não eram destinados à educação onde elas acompanhavam os exercícios devotos e recebiam uma instrução exclusivamente religiosa No fim do século XVII o SaintCyr de Mme de Maintenon forneceria o modelo de uma instituição de caráter moderno para as meninas que aí ingressavam entre os 7 e os 12 anos e saíam em torno dos 206 As queixas contra as pequenas escolas mistas e o ensino das ursulinas indicam uma tendência geral em favor da escolarização feminina mas essa escolarização se iniciaria com um atraso de cerca 186 de dois séculos A partir do século XV e sobretudo nos séculos XVI e XVII apesar da persistência da atitude medieval de indiferença à idade o colégio iria dedicarse essencialmente à educação e à formação da juventude inspirandose em elementos de psicologia que eram encontrados e que hoje reconhecemos em Cordier na Ratio dos jesuítas e na abundante literatura pedagógica de PortRoyal Descobriuse então a necessidade da disciplina uma disciplina constante e orgânica muito diferente da violência de uma autoridade mal respeitada Os legisladores sabiam que a sociedade turbulenta que eles comandavam exigia um pulso firme mas a disciplina escolar nasceu de um espírito e de uma tradição muito diferentes A disciplina escolar teve origem na disciplina eclesiástica ou religiosa ela era menos um instrumento de coerção do que de aperfeiçoamento moral e espiritual e foi adotada por sua eficácia porque era a condição necessária do trabalho em comum mas também por seu valor intrínseco de edificação e ascese Os educadores a adaptariam a um sistema de vigilância permanente das crianças de dia e de noite ao menos em teoria A diferença essencial entre a escola da Idade Média e o colégio dos tempos modernos reside na introdução da disciplina Esta se estenderia gradualmente dos colégios às pensões particulares onde moravam os alunos e em certos casos ao conjunto da cidade embora na prática sem muito sucesso Os mestres tenderam a submeter o aluno a um controle cada vez mais estrito no qual as famílias a partir do fim do século XVII cada vez mais passaram a ver as melhores condições de uma educação séria Chegouse a aumentar os efetivos outrora excepcionais dos internos e a instituição ideal do século XIX seria o internato quer fosse um liceu um pequeno seminário um colégio religioso ou uma escola normal Apesar da persistência dos traços arcaicos a disciplina daria ao colégio do Ancien Régime um caráter moderno que já anunciava nossos estabelecimentos secundários contemporâneos Essa disciplina não se traduziria apenas por uma melhor vigilância interna mas tenderia a impor às famílias o respeito pelo ciclo escolar integral A escolaridade se tornaria sem dúvida uma questão de crianças e de jovens ou seja não se estenderia mais como na Idade Média ou no Renascimento às idades da maturidade mas seria uma escolaridade relativamente longa menos longa entretanto do que a da Idade Média As pessoas não se contentariam mais em passar um ano ou dois no colégio como ainda era frequente no início do século XVII tanto entre os nobres empobrecidos ou apressados como entre as pessoas humildes os artesãos felizes em dar às suas crianças uma tintura de latim No fim do século XVIII o ciclo escolar era bastante semelhante ao do século XIX quatro 187 ou cinco anos no mínimo A criança enquanto durava sua escolaridade era submetida a uma disciplina cada vez mais rigorosa e efetiva e essa disciplina separava a criança que a suportava da liberdade do adulto Assim a infância era prolongada até quase toda a duração do ciclo escolar De um lado havia a população escolarizada e de outro aqueles que segundo hábitos imemoriais entravam diretamente na vida adulta assim que seus passos e suas línguas ficavam suficientemente firmes Essa divisão não correspondia às condições sociais Sem dúvida o núcleo principal da população escolar era constituído de famílias burguesas de juristas e de eclesiásticos Mas como vimos havia nobres entre os que não frequentavam a escola e artesãos e camponeses entre os que o faziam As meninas de boa família não eram mais instruídas do que as das classes inferiores e podiam sêlo até menos pois em certos casos as meninas do povo aprendiam a escrever com perfeição como um ofício A população escolar em uma época em que o colégio ministrava quase a totalidade dos ensinos que hoje dividimos em primário secundário e superior coincidia muito menos do que hoje com o contorno das condições sociais O movimento de apostolado educacional do fim do século XVII que resultou no aparecimento dos Irmãos das Escolas Cristãs não se limitava apenas aos pobres As escolas populares eram invadidas por pequenoburgueses assim como as classes inferiores dos colégios estavam cheias de pequenos artesãos ou camponeses Os acontecimentos poderiam terse desenrolado a seguir de tal forma que o sistema educacional francês se tivesse baseado na escola única afinal o Ancien Régime até o século XVIII praticamente só conheceu a escola única A frequência escolar se teria estendido social e geograficamente a duração dos ciclos por outro lado teria variado segundo as vocações apenas os juristas e os eclesiásticos teriam seguido até o fim dos dois ou três anos de filosofia correspondentes a nossos anos de faculdade os outros os artesãos ou soldados teriam parado em um estágio anterior Esta era de fato a situação em meados do século XVII os colégios ou as escolas latinas estendiam uma rede circular em torno de um grande colégio com a série completa de classes e a densidade dessa rede diminuía na direção da periferia Ela era constituída de várias escolas que abrigavam apenas as classes inferiores do ciclo escolar Isso pode nos parecer surpreendente quando pensamos no rigor e na diversidade da hierarquia social do Ancien Régime os hábitos de escolaridade diferiam menos segundo as condições sociais do que segundo as funções Consequentemente as atitudes existenciais assim como vários traços da vida quotidiana não diferiam muito mais Mas esse estado de coisas não durou muito e a partir do século XVIII a escola única foi substituída por um sistema de ensino duplo em que cada ramo 188 correspondia não a uma idade mas a uma condição social o liceu ou o colégio para os burgueses o secundário e a escola para o povo o primário O secundário é um ensino longo O primário durante muito tempo foi um ensino curto e tanto na Inglaterra como na França foram necessárias as revoluções sociais originárias das últimas grandes guerras para prolongálo Talvez uma das causas dessa especialização social resida justamente nos requisitos técnicos do ensino longo do momento em que ele se impôs definitivamente aos costumes não era mais possível tolerar a coexistência de alunos que não estavam desde o início decididos a ir até o fim a aceitar todas as regras do jogo pois as regras de uma coletividade fechada escola ou comunidade religiosa exigem o mesmo abandono total que o jogo Do momento que o ciclo longo foi estabelecido não houve mais lugar para aqueles que por sua condição pela profissão dos pais ou pela fortuna não podiam seguilo nem se propor a seguilo até o fim Mas há outra causa para essa evolução a ação desses homens detentores da autoridade da razão e do saber que já encontramos na origem das grandes transformações dos costumes entre a Idade Média e os tempos modernos Foram eles como dissemos que compreenderam a particularidade da infância e a importância tanto moral como social da educação da formação metódica das crianças em instituições especiais adaptadas a essa finalidade Muito cedo alguns deles se perturbaram com a extensão de seu próprio sucesso um sucesso sociológico do qual nem sempre estavam conscientes Richelieu que previa uma Academia modelo na cidade utópica que pretendia construir em Richelieu e depois Colbert exprimiram seus temores de uma inflação de intelectuais e de uma crise de mão de obra braçal um velho tema que as diversas gerações da burguesia conservadora transmitiram até nossos dias No século XVII apesar de sua autoridade esses precursores pregavam no deserto não puderam fazer nada para frear o sucesso dos colégios e sua penetração no campo Mas no século XVIII seu preconceito foi adotado por essa categoria de pessoas esclarecidas que em uma certa medida aparecem em vários domínios como seus sucessores esses homens do Iluminismo das sociedades de pensamento graças a seu número e suas relações exerceram sobre a opinião pública uma influência com que nenhum grupo de legisladores clérigos ou intelectuais poderia ter sonhado no passado Alguns deles como Condorcet permaneceram fiéis à ideia de um ensino universal aberto a todos Mas a maioria propôs ao contrário a partir da expulsão dos jesuítas limitar a uma única classe social o privilégio do ensino longo e clássico e condenar o povo a um ensino inferior exclusivamente prático Sabemos também que o sentimento da infância encontrou sua expressão mais moderna nesses mesmos meios de burgueses esclarecidos admiradores de Greuze 189 e leitores do Emile ou de Paméla Mas os antigos gêneros de vida sobreviveram quase até nossos dias nas classes populares submetidas por menos tempo à ação da escola Teríamos até mesmo razão em perguntar se nesse ponto não houve uma regressão durante a primeira metade do século XIX sob a influência da demanda de mão de obra infantil na indústria têxtil O trabalho das crianças conservou uma característica da sociedade medieval a precocidade da passagem para a idade adulta Toda a complexidade da vida foi modificada pelas diferenças do tratamento escolar da criança burguesa e da criança do povo Existe portanto um notável sincronismo entre a classe de idade moderna e a classe social ambas nasceram ao mesmo tempo no fim do século XVIII e no mesmo meio a burguesia 190 1 Cervantes Dom Quixote ed La Pléiade parte II cap 5 p 554 2 E G Leonard Les Problèmes de larmée 1958 p 164 3 L Cognet La Réforme de PortRoyal 1950 pp 13 e 100 4 L Cognet op cit 5 Fénelon De léducation des filles 1687 6 Th Lavallée Histoire de la maison royale de SaintCyr 1862 191 3 A Família 192 P 1 As Imagens da Família areceria contestável falarmos de uma iconografia profana na Idade Média antes do século XIV de tal forma o profano se distingue mal do sagrado Contudo entre as contribuições de origem profana a essa representação total do mundo há um tema cuja frequência e popularidade são significativas o tema dos ofícios Os arqueólogos nos informaram que os gauleses da época romana gostavam de representar em seus baixosrelevos funerários cenas de suas vidas de trabalhadores1 Essa preferência pelos temas de ofícios não é encontrada em nenhuma outra parte Os arqueólogos também ficaram impressionados com sua raridade quando não com sua ausência na iconografia funerária da África romana2 O tema remonta por conseguinte a um passado remoto Ele se manteve e até mesmo se desenvolveu durante a Idade Média Ressalvando o anacronismo da expressão poderíamos dizer grosso modo mas sem deformar a verdade que a iconografia profana medieval consiste acima de tudo no tema dos ofícios É importante que durante tanto tempo o ofício tenha parecido às pessoas ser a principal atividade da vida quotidiana uma atividade cuja lembrança se associava ao culto funerário da época galoromana e à concepção erudita do mundo da Idade Média nos calendários das catedrais Sem dúvida isso parece perfeitamente natural aos historiadores modernos Mas terão eles se indagado quantos hoje em dia prefeririam esquecer seu ofício e gostariam de deixar outra imagem de si mesmos Em vão tentamos introduzir algum lirismo nos aspectos funcionais da vida contemporânea o resultado é uma espécie de academicismo sem raízes populares O homem de hoje não escolheria seu ofício mesmo que gostasse dele para propôlo como tema a seus artistas mesmo que estes últimos pudessem aceitálo A importância dada ao ofício na iconografia medieval é um sinal do valor sentimental que as pessoas lhe atribuíam Era como se a vida privada de um homem fosse antes de mais nada seu ofício Uma das representações mais populares do ofício o liga ao tema das estações cuja importância já tivemos a ocasião de reconhecer a propósito das idades da vida3 Sabemos que a Idade Média ocidental se caracterizou pelo hábito de reunir 193 através do simbolismo noções cujas correspondências secretas ocultas por detrás das aparências se desejava sublinhar A Idade Média ligava as profissões às estações assim como o fazia com as idades da vida ou os elementos Era esse o sentido dos calendários de pedra e de vidro dos calendários das catedrais e dos livros de horas A iconografia tradicional dos 12 meses do ano foi fixada no século XII tal como a encontramos com muito poucas variantes em SaintDenis em Paris em Senlis em Chartres em Amiens em Reims etc os trabalhos e os dias De um lado os grandes trabalhos da terra o feno o trigo a vinha e o vinho o porco De outro a pausa do inverno e da primavera São camponeses que trabalham mas a representação dos momentos de interrupção do trabalho oscila entre o camponês e o nobre Janeiro a festa de Reis pertence ao nobre diante de uma mesa na qual não falta nada Fevereiro pertence ao plebeu que volta à casa carregando lenha e se aquece perto do fogo Maio ora é um camponês que descansa no meio das flores ora um jovem nobre que parte para a caça e prepara seu falcão Em todo o caso é a evocação da juventude participando das festas de maio Nessas cenas o homem está sempre sozinho excepcionalmente um jovem criado como em São Denis aparece de pé atrás do amo que come sentado em sua mesa Por outro lado trata se sempre de um rapaz e nunca de uma mulher Podemos ver essa iconografia evoluir ao longo dos livros de horas até o século XVI de acordo com tendências significativas Primeiro vemos surgir a mulher a dama do amor cortês ou a dona de casa No livro de horas do Duque de Berry no mês de fevereiro o camponês não é mais o único a se aquecer como nas paredes de Senlis de Paris ou de Amiens Três mulheres da casa já estão sentadas em torno do fogo enquanto o homem ainda está do lado de fora transido de frio no pátio coberto de neve Em outras representações a cena se torna a imagem de um interior de uma noite de inverno em que as pessoas ficam dentro de casa o homem diante da lareira ainda aquece as mãos e o pé descalço mas ao lado sua mulher trabalha tranquilamente em sua roca Charles dAngoulême Em abril aparece o tema da corte de amor a dama e seu amigo em um jardim fechado com muros Charles dAngoulême Ela também acompanha os cavaleiros à caça Mas mesmo a dama nobre não é mais a heroína ociosa e um tanto imaginária dos jardins de abril ou a cavaleira das festas de maio ela também dirige os trabalhos desse jardim de abril Turim A camponesa aparece mais vezes Ela participa dos trabalhos dos campos com os homens Berry Angoulême Dá de beber aos trabalhadores que fazem a colheita enquanto eles descansam nos dias quentes de verão Hennessy Grimani Seu marido a leva de volta numa carreta com o cantil de vinho que ela lhe havia trazido Os cavaleiros e 194 as damas não estão mais isolados nos prazeres nobres de abril ou de maio Assim como a dama do livro de horas de Turim cuidava de seu jardim os cavaleiros e as damas se misturam aos camponeses aos colhedores de uva como na cena da colheita de cerejas do livro de horas de Turim Quanto mais avançamos no tempo e sobretudo no século XVI mais frequentemente a família do senhor da terra é representada entre os camponeses supervisionando seu trabalho e participando de seus jogos Numerosas tapeçarias do século XVI descrevem essas cenas campestres em que os senhores e suas crianças colhem uvas e supervisionam a colheita do trigo O homem não está mais sozinho O casal não é mais apenas o casal imaginário do amor cortês A mulher e a família participam do trabalho e vivem perto do homem na sala ou nos campos Não se trata propriamente de cenas de família as crianças ainda estão ausentes no século XV Mas o artista sente a necessidade de exprimir discretamente a colaboração da família dos homens e das mulheres da casa no trabalho quotidiano com uma preocupação de intimidade outrora desconhecida Ao mesmo tempo a rua surge nos calendários A rua já era um tema familiar da iconografia medieval ela se anima com uma vida particularmente expressiva nas admiráveis vistas das pontes de Paris da Vida de São Denis um manuscrito do século XIII Assim como nas cidades árabes de hoje a rua era o lugar onde se praticavam os ofícios a vida profissional as conversas os espetáculos e os jogos Fora da vida privada por muito tempo ignorada pelos artistas tudo se passava na rua No entanto as cenas dos calendários de inspiração rural durante muito tempo a ignoraram No século XV a rua tomou seu lugar nos calendários É verdade que os meses de novembro e de dezembro do livro de horas de Turim são ilustrados com o tradicional sacrifício do porco Mas aqui ele se passa na rua e os vizinhos estão diante de suas portas para observálo No calendário do livro de horas de Adelaïde de Savoie aparece o mercado moleques cortam as bolsas de donas de casa ocupadas e distraídas reconhecemos aí o tema dos pequenos batedores de carteiras que se iria manter na pintura picaresca ao longo de todo o século XVII4 Outra cena do mesmo calendário representa a volta do mercado uma comadre para para falar com sua vizinha que está na janela alguns homens descansam sentados em um banco protegidos por um telheiro e distraemse vendo meninos jogar pela e lutar Essa rua medieval assim como a rua árabe de hoje não se opunha à intimidade da vida privada era um prolongamento dessa vida privada o cenário familiar do trabalho e das relações sociais Os artistas em suas tentativas relativamente tardias de representação da vida privada começariam por mostrála na rua antes de seguila até dentro de casa Talvez essa vida privada se passasse tanto ou mais na rua do que em casa 195 Com a rua os jogos invadiram as cenas dos calendários os jogos de cavalaria como os torneios Turim Hennessy os jogos comuns a todos e as festas folclóricas como a árvore de maio O calendário do livro de horas de Adelaïde de Savoie compõese essencialmente de uma descrição dos mais diversos jogos jogos de salão jogos de força e de habilidade jogos tradicionais a festa de Reis a dança de maio a luta o hóquei as disputas entre dois homens armados de varas em duas barcas as guerras de neve Em outros manuscritos assistimos a certames de tiro com bestas Hennessy a passeios de barco com música Hennessy e os banhos coletivos Grimani Ora sabemos que os jogos não eram então apenas diversões mas uma forma de participação na comunidade ou no grupo jogavase em família entre vizinhos entre classes de idade entre paróquias5 Finalmente a partir do século XVI uma nova personagem entra em cena nos calendários a criança Sem dúvida ela já aparecia com frequência na iconografia do século XVI particularmente nos Miracles de Notre Dame Mas ela havia permanecido ausente dos calendários como se essa tradição iconográfica antiga tivesse hesitado em aceitar esse elemento tardio Nos trabalhos dos campos não aparecem crianças ao lado das mulheres Apenas algumas servem à mesa nos banquetes de janeiro Percebemolas também no mercado do livro de horas de Adelaïde de Savoie nesse mesmo manuscrito elas brincam de jogar bolas de neve atrapalham com sua bagunça o pregador na igreja e são expulsas Nos últimos manuscritos flamengos do século XVI elas se divertem alegremente percebese a predileção que lhes dedica o artista Os calendários dos livros de horas de Hennessy e de Grimani imitaram com precisão a aldeia coberta de neve das Très Riches Heures do Duque de Berry na cena do mês de janeiro que descrevemos acima em que o camponês corre para casa a fim de se unir às mulheres que se aquecem Contudo eles acrescentaram uma outra personagem a criança E a criança aparece na pose do MannekenPis que se tornara frequente na iconografia da época a criança urina pela abertura da porta Esse tema do MannekenPis é encontrado em toda a parte lembremos o sermão de São João Batista do museu dos Augustins de Toulouse que outrora ornava a capela do Parlamento dessa cidade ou um certo putto de Ticiano6 Nesses livros de horas de Hennessy e Grimani as crianças patinam no gelo brincam de imitar os torneios dos adultos alguns reconheceriam entre elas o jovem Carlos V No livro de horas de Munique elas se atiram bolas de neve No Hortulus animae elas brincam de corte de amor e de torneio montadas em uma barrica ou patinam no gelo7 As representações sucessivas dos meses do ano introduziram portanto essas novas personagens a mulher o grupo de vizinhos e companheiros e finalmente a 196 criança E a criança se ligava a essa necessidade outrora desconhecida de intimidade de vida familiar quando não ainda precisamente de vida em família Ao longo do século XVI essa iconografia dos meses sofreria uma última transformação muito significativa para nosso estudo ela se tornaria uma iconografia da família Ela se tornaria familiar ao se combinar com o simbolismo de outra alegoria tradicional as idades da vida Havia várias maneiras de representar as idades da vida mas duas delas eram mais comuns a primeira mais popular sobreviveu na gravura e representava as idades nos degraus de uma pirâmide que subia do nascimento à maturidade e daí descia até a velhice e a morte Os grandes pintores recusavamse a adotar essa composição demasiado ingênua De modo geral adotavam a representação das três idades da vida sob a forma de uma criança alguns adolescentes em geral um casal e um velho No quadro de Ticiano8 por exemplo aparecem dois putti dormindo um casal formado por uma camponesa vestida tocando flauta e um homem nu no primeiro plano e ao fundo um velho sentado e recurvado segurando uma caveira O mesmo tema é encontrado em Van Dyck9 no século XVII Nessas composições as três ou quatro idades da vida são representadas separadamente segundo a tradição iconográfica Ninguém teve a ideia de reunilas dentro de uma mesma família cujas gerações diferentes simbolizariam as três ou quatro idades da vida Os artistas e a opinião que eles traduziam permaneciam fiéis a uma concepção mais individualista das idades o mesmo indivíduo era representado nos diversos momentos de seu destino Entretanto ao longo do século XVI surgira uma nova ideia que simbolizava a duração da vida através da hierarquia da família Já tivemos a ocasião de citar Le Grande Propriétaire de toutes choses esse velho texto medieval traduzido para o francês e editado em 155610 Como observamos esse livro era um espelho do mundo O sexto livro trata das Idades É ilustrado com uma xilogravura que não representa nem os degraus das idades nem as três ou quatro idades separadas mas simplesmente uma reunião de família O pai está sentado com uma criancinha sobre os joelhos Sua mulher está de pé à sua direita Um dos filhos está à sua esquerda e o outro dobra o joelho para receber algo que o pai lhe dá Tratase ao mesmo tempo de um retrato de família como os que abundavam nessa época nos Países Baixos na Itália na Inglaterra na França e na Alemanha e de uma cena de gênero familiar como as que os pintores e gravadores multiplicariam no século XVII Esse tema conheceria a mais extraordinária popularidade Não era um tema totalmente desconhecido da Idade Média ao menos do final Foi desenvolvido de forma notável em um capitel das loggias do palácio Ducal de Veneza dito capitel do casamento Venturi data essa representação de cerca de 142411 enquanto Toesca a coloca no fim do século XIV o que parece mais provável devido ao estilo 197 e ao traje mas mais surpreendente em virtude da precocidade do tema12 As oito faces desse capitel contamnos uma história dramática que ilustra a fragilidade da vida um tema familiar nos séculos XIV e XV porém aqui esse drama se passa no seio de uma família e isso é novo A representação começa pelo noivado A seguir a jovem mulher aparece vestida com um traje de cerimônia sobre o qual foram costurados pequenos discos de metal seriam simples enfeites ou seriam moedas já que as moedas desempenhavam um papel no folclore do casamento e do batismo A terceira face representa a cerimônia do casamento no momento em que um dos cônjuges segura uma coroa sobre a cabeça do outro rito que subsistiu na liturgia oriental Então os noivos têm o direito de se beijar Na quinta face eles estão deitados nus no leito nupcial Nasce uma criança que aparece enrolada em cueiros e segura pelo pai e a mãe juntos Suas roupas parecem mais simples do que na época do noivado e do casamento eles se tornaram pessoas sérias que se vestem com uma certa austeridade ou segundo a moda antiga A sétima face reúne toda a família que posa para um retrato O pai e a mãe seguram a criança pelo ombro e pela mão Já é o retrato familiar tal como o encontramos no Le Grand Propriétaire Mas com a oitava face o drama explode a família sofre uma prova pois a criança está morta estendida sobre a cama com as mãos postas A mãe enxuga as lágrimas com uma das mãos e põe a outra no braço da criança o pai reza Outros capitéis vizinhos deste são ornados com putti nus que brincam com frutas aves ou bolas temas mais banais mas que permitem recolocar o capitel do casamento em seu contexto iconográfico A história do casamento começa como a história de uma família mas acaba com o tema diferente da morte prematura No museu SaintRaimond em Toulouse podemos ver os fragmentos de um calendário que pôde ser datado do início da segunda metade do século XVI graças aos trajes Na cena do mês de julho a família está reunida em um retrato como na gravura contemporânea do Le Grand Propriétaire mas com um detalhe adicional que tem sua importância a presença dos criados ao lado dos pais O pai e a mãe estão no meio O pai dá a mão ao filho e a mãe à filha O criado está do lado dos homens e a criada do lado das mulheres pois os dois sexos são separados como nos retratos de doadores os homens pais e filhos de um lado e as mulheres mães e filhas do outro Os criados fazem parte da família Agosto é o mês da colheita mas o pintor se empenha em representar mais do que a própria colheita a entrega da colheita ao senhor que tem na mão moedas para dar aos camponeses Essa cena prendese a uma iconografia muito frequente no século XVI particularmente nas tapeçarias em que os fidalgos do campo supervisionam seus camponeses ou se divertem com eles 198 Outubro a refeição em família Os pais e as crianças estão sentados à mesa A criança menor está encarapitada em uma cadeira alta que lhe permite alcançar o nível da mesa uma cadeira feita especialmente para as crianças de sua idade do tipo que vemos ainda hoje Um menino com um guardanapo serve à mesa talvez um criado talvez um parente encarregado naquele dia de servir à mesa função que nada tinha de humilhante muito ao contrário Novembro o pai está velho e doente tão doente que foi preciso recorrer ao médico Este com um gesto banal pertencente a uma iconografia tradicional inspeciona o urinol Dezembro toda a família está reunida no quarto em torno do leito onde o pai agoniza Ele recebe a comunhão Sua mulher está de joelhos ao pé da cama Atrás dela uma moça ajoelhada chora Um rapaz segura uma vela Ao fundo percebese uma criança pequena sem dúvida o neto a próxima geração que continuaria a família Portanto esse calendário assimila a sucessão dos meses do ano à das idades da vida mas representa as idades da vida sob a forma da história de uma família a juventude de seus fundadores sua maturidade em torno dos filhos a velhice a doença e a morte que é ao mesmo tempo a boa morte a morte do homem justo tema igualmente tradicional e também a morte do patriarca no seio da família reunida A história desse calendário começa como a da família do capitel do casamento do palácio dos Doges Mas não é o filho a criança querida que a morte rouba cedo demais As coisas seguem um curso mais natural É o pai que parte ao final de uma vida plena cercado por uma família unida e deixandolhe sem dúvida um patrimônio bem administrado A diferença está toda aí Não se trata mais de uma morte súbita e sim da ilustração de um sentimento novo o sentimento da família O aparecimento do tema da família na iconografia dos meses não foi um simples episódio Uma evolução maciça arrastaria nessa mesma direção toda a iconografia dos séculos XVI e XVII No princípio as cenas representadas pelos artistas se passavam ou em um espaço indeterminado ou em lugares públicos como as igrejas ou ao ar livre Na arte gótica livre do simbolismo romanobizantino as cenas de ar livre tornaramse mais numerosas e mais significativas graças à invenção da perspectiva e ao gosto pela paisagem a dama recebe seu cavaleiro em um jardim fechado a caçada conduz grupos através dos campos e florestas o banho reúne as damas em torno da fonte de um jardim os exércitos manobram os cavaleiros se enfrentam em torneios o exército acampa em torno da tenda onde o Rei descansa os exércitos 199 sitiam cidades os príncipes entram e saem das cidades fortificadas sob a aclamação do povo e dos burgueses Penetramos nas cidades por pontes passando diante das tendas onde trabalham os ourives Vemos passar os vendedores de biscoitos e as barcas carregadas descendo o rio Ao ar livre ainda vemos todos os jogos serem praticados Acompanhamos os jograis e os peregrinos em seu caminho A iconografia profana medieval é uma iconografia do ar livre Quando nos séculos XIII ou XIV os artistas se propõem a ilustrar anedotas ou episódios particulares eles hesitam e sua ingenuidade surpresa produz um resultado canhestro nenhum deles se compara ao virtuosismo dos artistas que representam episódios nos séculos XV e XVI Antes do século XV portanto as cenas de interior são muito raras A partir de então elas se tornam cada vez mais frequentes O evangelista antes situado em um meio atemporal tornase um escriba em sua escrivaninha com a pena e a raspadeira na mão Primeiro ele é colocado na frente de um simples drapeado decorativo mas finalmente aparece em um quarto cheio de livros em prateleiras do evangelista passouse ao autor em seu quarto a Froissart escrevendo uma dedicatória em seu livro13 Nas ilustrações do texto de Terêncio do palácio dos Doges as mulheres trabalham e fiam em seus aposentos com suas criadas ou aparecem deitadas na cama nem sempre sozinhas Veemse cozinhas e salas de albergues As cenas galantes e as conversações se passam agora no espaço fechado de uma sala Surge o tema do parto cujo pretexto é o nascimento da Virgem Criadas comadres e parteiras se atarefam no quarto em torno da cama da mãe Surge também o tema da morte da morte no quarto em que o agonizante luta em seu leito por sua salvação A representação mais frequente do quarto e da sala corresponde a uma tendência nova do sentimento que se volta então para a intimidade da vida privada As cenas de exterior não desaparecem é certo são a origem das paisagens mas as cenas de interior tornamse mais numerosas e mais originais Iriam caracterizar a pintura de gênero durante todo o tempo de sua existência A vida privada rechaçada na Idade Média invade a iconografia particularmente a pintura e a gravura ocidentais no século XVI e sobretudo no XVII a pintura holandesa e flamenga e a gravura francesa comprovam a extraordinária força desse sentimento antes inconsistente ou menosprezado Sentimento já tão moderno que para nós é difícil compreender o quanto era novo Essa farta ilustração da vida privada poderia ser classificada em dois grupos o do namoro e da farra à margem da vida social no mundo suspeito dos mendigos nas tabernas nos bivaques entre os boêmios e os vagabundos grupo que 200 desprezaremos por estar fora de nosso assunto e sua outra face o grupo da vida em família Se percorrermos as coleções de estampas ou as galerias de pintura dos séculos XVIXVII ficaremos impressionados com essa verdadeira avalancha de imagens de famílias Esse movimento culmina na pintura da primeira metade do século XVII na França e na pintura de todo o século e até mais na Holanda Ele persiste na França durante a segunda metade do século XVII na gravura e nos leques pintados reaparece no século XVIII na pintura e dura até o século XIX até a grande revolução estética que baniria da arte a cena de gênero Nos séculos XVI e XVII os retratos de grupos são numerosíssimos Alguns são retratos de confrarias ou corporações Mas a maioria representa uma família reunida Estes últimos surgem no século XV com os doadores que se fazem representar modestamente no nível inferior de alguma cena religiosa como sinal de sua devoção De início esses doadores são discretos e estão sozinhos Mas logo começam a trazer a seu lado toda a família incluindo os vivos e os mortos as mulheres e os filhos mortos também têm seu lugar na pintura De um lado aparece o homem e os meninos do outro a ou as mulheres cada uma com as filhas de seu leito O nível ocupado pelos doadores ampliase ao mesmo tempo em que se povoa em detrimento da cena religiosa que se torna então uma ilustração quase um hors doeuvre Na maioria dos casos ela se reduz aos santos padroeiros do pai e da mãe o santo do lado dos homens e a santa do lado das mulheres Convém observar a importância assumida pela devoção dos santos padroeiros que figuram como protetores da família ela é o sinal de um culto particular de caráter familiar como o do anjo da guarda embora este último tenha um caráter mais pessoal e mais peculiar à infância Essa etapa do retrato dos doadores com sua família pode ser ilustrada com numerosos exemplos do século XVI os vitrais da família Montmorency em MonfortLAmaury Montmorency e Ecouen ou os numerosos quadros pendurados como exvotos nos pilares e nas paredes das igrejas alemãs muitos dos quais ainda permanecem em seu lugar nas igrejas de Nurembergue Muitas outras pinturas às vezes ingênuas e malfeitas chegaram aos museus regionais da Alemanha e da Suíça alemã Os retratos de família de Holbein são fiéis a esse estilo14 Tudo indica que os alemães se tenham apegado por mais tempo a essa forma de retrato religiosa da família destinado às igrejas ele seria uma forma mais barata do vitral dos doadores mais antigo e anunciaria os exvotos mais anedóticos e pitorescos do século XVIII e início do XIX que representam não mais a reunião familiar dos vivos e dos mortos mas o acontecimento miraculoso que salvou um indivíduo ou um membro da família de um naufrágio um acidente ou uma doença 201 O retrato de família é também uma espécie de exvoto A escultura funerária inglesa da época elisabetana fornece outro exemplo do retrato de família a serviço de uma forma de devoção Esse exemplo aliás é específico e não é encontrado com a mesma frequência e a mesma facilidade na França na Alemanha ou na Itália Muitos túmulos ingleses dos séculos XVI e XVII mostram toda a família reunida em torno do defunto em baixo ou em altorelevo a insistência na enumeração das crianças vivas ou mortas é impressionante e vários desses túmulos ainda são encontrados na abadia de Westminster Sir Richard Pecksall por exemplo morto em 1571 aparece entre suas duas mulheres e na base do monumento há pequenas figuras esculpidas suas quatro filhas De cada lado da estátua deitada de Margaret Stuart morta em 1578 veemse seus filhos e filhas Sobre túmulo de Winifred Marquesa de Winchester morta em 1586 também esculpida em posição deitada aparece seu marido ajoelhado representado numa escala reduzida e ao lado um minúsculo túmulo de criança Sir John e Lady Puckering morta em 1596 estão esculpidos deitados lado a lado no meio de suas oito filhas O casal Norris 1601 aparece ajoelhado no meio de seus seis filhos Em Holdham contamse 21 figurinhas sobre o túmulo de John Coke 1639 alinhadas como nos retratos de doadores e as que estão mortas seguram uma cruz Sobre o túmtulo de Cope dAyley em Hambledone 1633 os quatro meninos e as três meninas estão diante de seus pais ajoelhados entre eles um menino e uma menina seguram uma caveira Em Westminster a Duquesa de Buckingham mandou erigir em 1634 o túmulo de seu marido assassinado em 1628 os cônjuges estão esculpidos em posição deitada no meio de suas crianças15 Essas representações alemães e inglesas prolongam aspectos ainda medievais do retrato de família A partir do século XVI o retrato de família se liberou de sua função religiosa Foi como se o rés do chão dos quadros de doadores tivesse invadido toda a tela expulsando dela a imagem religiosa que ou desapareceu completamente ou persistiu sob a forma de uma pequena imagem devota pendurada na parede de fundo do quadro A tradição do exvoto ainda está presente num quadro de Ticiano pintado em torno de 156016 os membros de sexo masculino da família Cornaro um velho um homem maduro de barba grisalha um homem jovem de barba negra a barba sua forma e sua cor são indícios da idade e seis meninos o menor dos quais brinca com um cão estão agrupados em torno de um altar Em certos casos também o retrato de família adota a forma material a apresentação do quadro de igreja existe no Victoria and Albert Museum 202 um tríptico de 1628 que representa no painel central um menininho e uma menininha e nos painéis laterais os dois pais17 Esses quadros não se destinavam mais às igrejas decoravam agora os interiores particulares E essa laicização do retrato de família é certamente um fenômeno importante a família se contempla ela própria na casa de um de seus parentes Sentese a necessidade de fixar o estado dessa família lembrandose também às vezes os desaparecidos através de uma imagem ou uma inscrição na parede Esses retratos de família são muito numerosos e seria inútil apontálos todos A lista seria longa e monótona Eles são encontrados tanto em Flandres como na Itália com Ticiano Pordenone e Veronese na França com Le Nain Lebrun e Tournier na Inglaterra ou na Holanda com Van Dyck nos séculos XVI XVII e até mesmo início do século XVIII Nessa época eles deviam ser tão numerosos como os retratos individuais Muitas vezes foi dito que o retrato revela o progresso do individualismo Talvez Mas é notável que ele traduza acima de tudo o imenso progresso do sentimento da família No início os membros da família são agrupados de forma seca como nos quadros dos doadores ou na gravura das idades da vida de Le Grand Propriétaire ou na miniatura do museu SaintRaimond Mesmo quando têm mais vida posam em uma atitude solene e destinada a salientar o laço que os une Em uma tela de Pourbus18 o marido apoia a mão esquerda no ombro da mulher a seus pés uma das crianças repete o mesmo gesto apoiando a mão no ombro da irmãzinha Sébastien Leers foi pintado por Van Dyck segurando a mão de sua mulher19 Em uma tela de Ticiano20 três homens barbudos cercam uma criança única nota clara no meio dos trajes negros e um deles apontaa com o dedo a criança está no centro da composição Contudo muitos desses retratos não procuram animar suas personagens os membros da família são justapostos às vezes ligados por gestos que exprimem seu sentimento recíproco mas não participam de uma ação comum É o que ocorre com a família Pordenone da galeria Borghese o pai a mãe e sete crianças ou ainda da família Pembroke de Van Dyck21 o Conde e a Condessa estão sentados e as outras personagens de pé à direita um casal certamente um filho ou filha casados e à esquerda dois adolescentes muito elegantes a elegância é um símbolo da adolescência masculina e se atenua com a seriedade da maturidade um escolar com seu livro embaixo do braço e dois outros meninos mais moços Por volta de meados do século XVI os artistas começaram a representar a família em torno de uma mesa coberta de frutas a família Van Berchaun de Floris de 1561 ou a família Anselme de Martin de Vos de 157722 Ou então vemos a família que parou de comer para fazer música não se trata como sabemos de um 203 artifício do pintor pois as refeições muitas vezes terminavam por um concerto ou eram interrompidas por uma canção A família que posa para o artista com um grau maior ou menor de afetação permaneceria na arte francesa até pelo menos o início do século XVIII com Tournier e Largillière Mas sob a influência particular dos holandeses o retrato de família muitas vezes seria tratado como uma cena de gênero o concerto após a refeição é um dos temas que os holandeses multiplicariam Daí em diante a família seria retratada num instantâneo em uma cena viva em um certo momento de sua vida quotidiana23 os homens reunidos em torno da lareira uma mulher tirando um caldeirão do fogo uma menina dando de comer ao irmãozinho Daí em diante tornase difícil distinguir um retrato de família de uma cena de gênero que evoca a vida em família Durante a primeira metade do século XVII as velhas alegorias medievais também são atingidas por essa contaminação geral e são tratadas como ilustrações da vida familiar sem respeito pela tradição iconográfica Já vimos o que aconteceu no caso dos calendários As outras alegorias clássicas se alteraram no mesmo sentido No século XVII as idades da vida tornaramse pretextos para as imagens da vida familiar Em uma gravura de Abraham Bosse representando as quatro idades do homem a infância é sugerida pelo que hoje chamaríamos de nursery um bebê no berço vigiado por uma irmã atenta uma criança de túnica mantida de pé em uma espécie de cercado com rodas objeto muito comum entre os séculos XV e XVIII uma menina com sua boneca um menino com um catavento e dois meninos maiores preparandose para brigar tendo um deles jogado no chão seu chapéu e sua capa A virilidade é ilustrada pela refeição que reúne toda a família em torno da mesa em uma cena análoga à de vários retratos e que seria muitas vezes repetida tanto na gravura francesa como na pintura holandesa É o mesmo espírito da gravura das idades de Le Grand Propriétaire do meio do século XVI e da miniatura do museu SaintRaimond Toulouse A idade viril é sempre a família Humbelot24 não reuniu a família em torno da mesa mas no gabinete do pai um rico negociante em cuja casa se amontoam fardos de mercadorias e se alinham pastas de processos O pai faz suas contas com a pena na mão ajudado pelo filho que se mantém atrás a seu lado a mulher cuida da filha pequena um jovem criado entra com uma cesta cheia de provisões sem dúvida voltando da casa de campo No fim do século XVII uma gravura de F Guérard25 retoma o mesmo tema O pai mais moço do que na gravura de HumbelotHuart mostra pela janela o porto o cais e os navios fonte de sua fortuna Dentro do aposento perto da mesa onde ele faz suas contas e onde estão pousadas sua bolsa algumas fichas e um ábaco sua mulher nina um bebê de cueiros e cuida de outra criança vestida com uma túnica A legenda dá o tom e sublinha o espírito dessa iconografia 204 Heureux qui du Ciel suit la loy Et met le plus beau de sa vie A bien servir son Dieu sa famille et son Roy Aqui a família é colocada no mesmo plano que Deus e o Rei Esse sentimento nada tem de surpreendente para nós homens do século XX mas era novo na época e sua expressão deveria nos espantar Humbelot ilustraria o mesmo tema desenhando uma mulher jovem que mostra o seio a uma criança trepada em suas costas Não devemos esquecer de que no século XVII as crianças desmamavam muito tarde Há ainda uma outra gravura de Guérard que representa a dona de casa com suas chaves e suas crianças dando ordens a uma criada26 As outras alegorias também evoluem para as mesmas cenas de família Em um holandês do início do século XVII o olfato um dos cinco sentidos é representado pela cena que se tornaria banal da toalete da criança nua no momento em que sua mãe lhe limpa o traseiro27 Abraham Bosse simboliza também um dos quatro elementos a terra através de uma imagem da vida familiar em um jardim uma ama segura uma criança vestida com uma túnica seus pais que da entrada da casa a contemplam com ternura divertemse em lançarlhe frutas os frutos da terra Até mesmo as Beatitudes dão pretexto a evocações da vida em família em BonnardSandrart28 a V Beatitude tornase o perdão da mãe às suas crianças perdão que ela confirma distribuindolhes guloseimas é já o espírito familiar sentimental do século XIX De modo geral a cena de gênero moderna nasceu da ilustração das alegorias tradicionais da Idade Média Mas a distância entre o tema antigo e sua nova expressão é enorme Esquecemonos da alegoria das estações e do inverno quando contemplamos um quadro de Stella representando uma noite ao pé do fogo de um lado da grande sala os homens ceiam enquanto do outro em volta da lareira as mulheres fiam ou trançam o junco e as crianças brincam ou são lavadas Não é mais o inverno é o serão Não é mais a virilidade ou a terceira idade é a reunião de família Nasce uma iconografia original estranha aos velhos temas desgastados que no princípio ela havia ilustrado O sentimento da família constitui sua inspiração essencial uma inspiração muito diferente da das antigas alegorias Seria fácil elaborarmos um catálogo de temas repetidos ad nauseam a mãe vigiando a criança no berço29 a mãe amamentando a criança30 a mulher fazendo a toalete da criança a mãe catando piolho na cabeça da criança operação corriqueira e que aliás não se limitava às crianças pois Samuels Pepys se submetia a ela31 o irmão ou a irmã tentando ver o bebê no berço na ponta dos pés a criança na cozinha ou no celeiro com um criado ou uma criada32 a criança fazendo compras em um 205 armazém Este último tema frequente na pintura holandesa33 também foi tratado pelos gravadores franceses em meados do século por Abraham Bosse o padeiro e no final do século por Le Camus o taberneiro que vendia vinhos mas é o espírito dessas imagens que é preciso compreender Uma tela de Le Nain representa um camponês cansado que ferrou no sono Sua mulher faz psiu para as crianças mostrandolhes o pai que descansa e que não deve ser acordado é já um Greuze não pela pintura ou o estilo é claro mas pela inspiração sentimental A ação é centrada na criança Em uma tela de Peter de Hooch34 as pessoas estão reunidas para almoçar O pai bebe sentado uma criança de cerca de dois anos está de pé em cima de uma cadeira ela usa o chapéu redondo e acolchoado comum na sua idade em que o andar ainda não é firme para protegêla em seus tombos Uma mulher a criada a segura com uma das mãos e com a outra estende um copo de vinho a uma outra mulher a mãe que mergulha nele um biscoito Ela vai dar o biscoito molhado ao papagaio para distrair a criança e a distração da criança no seio da família cuja unidade ela assegura é o verdadeiro tema do pintor o sentido de sua anedota O sentimento da família que emerge assim nos séculos XVIXVII é inseparável do sentimento da infância O interesse pela infância que analisamos no início deste livro não é senão uma forma uma expressão particular desse sentimento mais geral o sentimento da família A análise iconográfica levanos a concluir que o sentimento da família era desconhecido da Idade Média e nasceu nos séculos XV e XVI para se exprimir com um vigor definitivo no século XVII Somos tentados a comparar essa hipótese com as observações dos historiadores da sociedade medieval A ideia essencial dos historiadores do direito e da sociedade é que os laços de sangue não constituíam um único grupo e sim dois distintos embora concêntricos a família ou mesnie que pode ser comparada à nossa família conjugal moderna e a linhagem que estendia sua solidariedade a todos os descendentes de um mesmo ancestral Em sua opinião haveria mais do que uma distinção uma oposição entre a família e a linhagem os progressos de uma provocariam um enfraquecimento da outra ao menos entre a nobreza A família ou mesnie embora não se estendesse a toda a linhagem compreendia entre os membros que residiam juntos vários elementos e às vezes vários casais que viviam em uma propriedade que eles se haviam recusado a dividir segundo um tipo de posse chamado frereche ou fraternitas A frereche agrupava em torno dos pais os filhos que não tinham bens próprios os sobrinhos ou os primos solteiros Essa tendência à indivisão da família que aliás não durava além de duas gerações deu origem às teorias tradicionalistas do século XIX sobre a grande família patriarcal A família conjugal moderna seria portanto a consequência de uma evolução 206 que no final da Idade Média teria enfraquecido a linhagem e as tendências à indivisão Na realidade a história das relações entre a linhagem e a família é mais complicada Ela foi acompanhada por G Duby na região do Mâconnais do século IX ao XIII inclusive35 No Estado franco escreve G Duby a família do século X ao que tudo indica era uma comunidade reduzida à sua expressão mais simples a célula conjugal cuja coesão em certos casos se prolongava por algum tempo após a morte dos pais nas frereches Mas os laços eram muito frouxos É que eles eram inúteis os órgãos de paz do velho Estado franco ainda eram bastante vigorosos para permitir ao homem livre viver uma vida independente e preferir se assim o desejasse a companhia de seus vizinhos e amigos à de seus parentes A solidariedade da linhagem e a indivisão do patrimônio se desenvolveram ao contrário em consequência da dissolução do Estado Depois do ano mil a nova distribuição dos poderes de comando obrigou os homens a se agruparem mais estreitamente O estreitamento dos laços de sangue que então se produziu correspondia a uma necessidade de proteção do mesmo modo como outras formas de relações humanas e de dependências a homenagem de vassalo a suzerania e a comunidade aldeã Demasiado independentes e mal defendidos contra certos perigos os cavaleiros procuraram refúgio na solidariedade de linhagem Ao mesmo tempo nesses séculos XI e XII do Mâconnais podemos constatar o progresso da indivisão É dessa época que data a indivisão dos bens dos dois cônjuges que no século X ainda não estavam fundidos em uma massa comum administrada pelo marido nesse século o marido e a mulher geriam cada um seus bens hereditários compravam e vendiam separadamente sem que o cônjuge pudesse interferir A indivisão quase sempre também foi estendida aos filhos que eram impedidos de obter qualquer adiantamento sobre sua herança Agregação prolongada na casa paterna e sob a autoridade do ancestral dos descendentes desprovidos de pecúlio pessoal e independência econômica A indivisão muitas vezes subsistia após a morte dos pais É preciso imaginar o que era então a casa de um cavaleiro reunindo em um mesmo domínio em uma mesma corte 10 20 senhoras dois ou três casais com filhos os irmãos e as irmãs solteiras e o tio cônego que aparecia de tempos em tempos e preparava a carreira de um ou outro sobrinho A frereche raramente durava além da segunda geração mas mesmo após a divisio do patrimônio a linhagem conservava um direito coletivo sobre o conjunto do patrimônio dividido a laudatio parentum a recuperação da herança da linhagem 207 Essa descrição aplicase sobretudo à família dos cavaleiros que já poderíamos chamar de família nobre G Duby acredita que a família camponesa tenha vivido menos intensamente esse estreitamento dos laços de sangue porque os camponeses haviam preenchido de maneira diferente dos nobres o vazio deixado pela dissolução do Estado franco a tutela do senhor havia substituído imediatamente a proteção dos poderes públicos e a comunidade aldeã havia fornecido aos camponeses um quadro de organização e de defesa superior à família A comunidade aldeã teria sido para os camponeses o que a linhagem foi para os nobres Durante o século XIII a situação mais uma vez se inverteu As novas formas de economia monetária a extensão da fortuna mobiliária a frequência das transações e ao mesmo tempo os progressos da autoridade do Príncipe quer fosse um Rei capetíngio ou o chefe de um grande principado e da segurança pública provocaram um estreitamento das solidariedades de linhagem e o abandono das indivisões patrimoniais A família conjugal tornouse novamente independente Contudo a classe nobre não voltou à família de laços frouxos do século X O pai manteve e até mesmo aumentou a autoridade que nos séculos XI e XII lhe havia sido conferida pela necessidade de manter a integridade do patrimônio indiviso Sabemos por outro lado que a partir do fim da Idade Média a capacidade da mulher entrou em declínio Foi também no século XIII na região do Mâconnais que o direito da primogenitura se difundiu nas famílias nobres Ele substituiu a indivisão que se tornou mais rara como meio de salvaguardar o patrimônio e sua integridade A substituição da indivisão e da comunhão de bens do casal pelo direito de primogenitura parace ser ao mesmo tempo um sinal da importância atribuída à autoridade paterna e do lugar assumido na vida quotidiana pelo grupo do pai e seus filhos Georges Duby conclui Na realidade a família é o primeiro refúgio em que o indivíduo ameaçado se protege durante os períodos de enfraquecimento do Estado Mas assim que as instituições políticas lhe oferecem garantias suficientes ele se esquiva da opressão da família e os laços de sangue se afrouxam A história da linhagem é uma sucessão de contrações e distensões cujo ritmo sofre as modificações da ordem política A oposição entre a família e a linhagem é menos marcada em G Duby do que em outros historiadores do direito Tratase menos de uma substituição progressiva da linhagem pela família o que de fato pareceria ser uma visão puramente teórica do que da dilatação ou da contração dos laços de sangue ora estendidos a toda a linhagem ou aos membros da frereche ora restringidos ao casal e sua prole Temse a impressão de que apenas a linhagem era capaz de exaltar as forças do sentimento e da imaginação Por esse motivo ela deixou tantas marcas nos 208 romances de cavalaria A comunidade familiar reduzida ao contrário levava uma vida obscura que escapou à atenção dos historiadores Mas essa obscuridade tem um sentido No mundo dos sentimentos e dos valores a família não contava tanto como a linhagem Poderseia dizer que o sentimento da linhagem era o único sentimento de caráter familiar conhecido na Idade Média Mas ele é muito diferente do sentimento da família tal como o vimos na iconografia dos séculos XVI e XVII Estendese aos laços de sangue sem levar em conta os valores nascidos da coabitação e da intimidade A linhagem nunca se reúne em um espaço comum em torno de um mesmo pátio Não tem nada de comparável à Zadrouga serva Os historiadores do direito reconhecem que não há vestígios de grandes comunidades silenciosas na França antes do século XV Ao contrário o sentimento da família está ligado à casa ao governo da casa e à vida na casa Seu encanto não foi conhecido durante a Idade Média porque esse período possuía uma concepção particular da família a linhagem A partir do século XIV porém assistimos ao desenvolvimento da família moderna Esse processo bastante conhecido foi claramente resumido por M Pelot36 A partir do século XIV assistimos a uma degradação progressiva e lenta da situação da mulher no lar Ela perde o direito de substituir o marido ausente ou louco Finalmente no século XVI a mulher casada tornase uma incapaz e todos os atos que faz sem ser autorizada pelo marido ou pela justiça tornamse radicalmente nulos Essa evolução reforça os poderes do marido que acaba por estabelecer uma espécie de monarquia doméstica A partir do século XVI a legislação real se empenhou em reforçar o poder paterno no que concerne ao casamento dos filhos Enquanto se enfraqueciam os laços da linhagem a autoridade do marido dentro de casa tornavase maior e a mulher e os filhos se submetiam a ela mais estritamente Esse movimento duplo na medida em que foi o produto inconsciente e espontâneo do costume manifesta sem dúvida uma mudança nos hábitos e nas condições sociais Passarase portanto a atribuir à família o valor que outrora se atribuía à linhagem Ela tornase a célula social a base dos Estados o fundamento do poder monárquico Veremos agora a importância que lhe era atribuída pela religião A exaltação medieval da linhagem de sua honra da solidariedade entre seus membros era um sentimento especificamente leigo que a Igreja ignorava quando não via com desconfiança O naturalismo pagão dos laços de sangue pode muito bem terlhe parecido repugnante Na França onde a Igreja aceitou a hereditariedade dos reis é significativo que ela não a tenha mencionado na liturgia da coroação 209 Além disso a Idade Média não conhecia o princípio moderno de santificação da vida leiga ou melhor só o admitia em casos excepcionais o santo rei mas o rei fora consagrado ou o bom cavaleiro mas o cavaleiro havia sido iniciado após uma cerimônia que se tornara religiosa O sacramento do casamento poderia ter tido a função de enobrecer a união conjugal de lhe dar um valor espiritual bem como à família Mas na realidade ele apenas legitimava a união Durante muito tempo o casamento foi apenas um contrato A cerimônia a julgar por suas representações esculpidas não se realizava no interior da igreja e sim na entrada diante do pórtico Qualquer que fosse o ponto de vista teológico a maioria dos padres considerando suas ovelhas devia partilhar a opinião do cura de Chaucer para quem o casamento era uma questão de último caso uma concessão à fraqueza da carne37 Ele não livrava a sexualidade de sua impureza essencial Sem dúvida essa reprovação não chegava à condenação da família e do casamento à maneira dos cátaros do Sul da França manifestava porém uma desconfiança com relação a todo fruto da carne Não era na vida leiga que o homem podia se santificar a união sexual quando abençoada pelo casamento deixava de ser um pecado mas isso era tudo Por outro lado o outro grande pecado dos leigos o pecado da usura perseguia o homem em suas atividades temporais O leigo não dispunha de outro meio para assegurar sua salvação além de abandonar completamente o mundo e entrar para a vida religiosa Na sombra do claustro ele podia reparar os erros de seu passado profano Foi preciso esperar o fim do século XVI o tempo da Philotée de São Francisco de Sales ou no século XVII o exemplo dos senhores de PortRoyal e de modo mais geral de todos esses leigos empenhados em importantes atividades religiosas teológicas espirituais e místicas para que se admitisse a possibilidade de uma santificação fora da vocação religiosa na prática dos deveres civis Para que uma instituição natural tão ligada à carne como a família se tornasse objeto de uma devoção essa reabilitação da condição leiga era necessária Os progressos do sentimento da família e os da promoção religiosa do leigo seguiram caminhos paralelos Pois o sentimento moderno da família ao contrário do sentimento medieval da linhagem penetrou na devoção comum O sinal mais antigo dessa devoção ainda muito discreto aparece no hábito iniciado pelos doadores de quadros ou vitrais de igreja de agrupar em seu redor toda a família e mais ainda no costume posterior de associar a família ao culto do santo padroeiro No século XVI era frequente oferecer como exvotos retratos dos santos padroeiros do marido e da mulher cercados pelos próprios cônjuges e suas crianças O culto dos santos padroeiros tornouse um culto de família 210 A influência do sentimento da família também pode ser reconhecida especialmente no século XVII na nova maneira de pintar um casamento ou um batismo No final da Idade Média os miniaturistas costumavam representar a própria cerimônia religiosa tal como ela se desenrolava na entrada da igreja lembremos por exemplo o casamento do Rei Cosius e da Rainha Sabinède na vida de Santa Catarina em que o padre enrola a estola em torno das mãos dos dois noivos ou o casamento de Filipe de Macedônia38 pintado pelo mesmo Guillaume Vrelant na história do bom Rei Alexandre em que atrás do padre no tímpano da porta da igreja se percebe uma cena esculpida que mostra um marido batendo na mulher Nos séculos XVI e XVII não se representava mais a cerimônia do casamento a não ser no caso de reis e príncipes Ao contrário preferiase evocar os aspectos familiares da festa quando os parentes os amigos e os vizinhos se reuniam em torno dos noivos Em Gérard David já vemos o banquete de núpcias As Bodas de Caná do Louvre Em outros pintores vemos o cortejo que acompanha os noivos em Stella39 a noiva de braço dado com o pai seguida por um grupo de crianças chega à igreja diante da qual a espera o noivo Em Molinier40 a cerimônia já acabou e o cortejo deixa a igreja à esquerda o noivo entre seus pajens e à direita a noiva coroada mas ainda não vestida de branco a cor do amor era ainda o vermelho como nos ornamentos sacerdotais entre suas damas de honra ao som de gaitas de foles enquanto uma menina atira moedas na frente da noiva Certas coleções de gravuras de trajes habituais ou trajes diversos do fim do século XVI ou início do século XVII muitas vezes mostram o noivo ou a noiva com seus pajens e damas de honra nessa época o traje de casamento tornase mais específico sem ser ainda o uniforme branco usado do século XIX até nossos dias ao menos por certos detalhes E há uma tendência em apresentar esses detalhes como características dos costumes de uma determinada região Finalmente todas as pequenas cenas maliciosas do folclore entraram na iconografia por exemplo o deitar dos noivos ou o levantar da mãe que deu à luz Da mesma forma à cerimônia do batismo os artistas passaram a preferir as reuniões tradicionais em casa os convidados bebendo ao voltar da igreja enquanto um menino toca flauta ou a visita das vizinhas à mãe que acaba de dar à luz Ou então vemos costumes folclóricos mais difíceis de identificar como uma cena de Molenaer41 em que uma mulher carrega uma criança no meio de brincadeiras grosseiras enquanto as damas da assistência cobrem a cabeça com o vestido Não devemos interpretar esse gosto pelas festas mundanas ou folclóricas das quais a malícia não estava ausente assim como tampouco estava ausente da linguagem das pessoas de bem como um sinal de indiferença religiosa 211 simplesmente enfatizavase o caráter familiar e social da ocasião mais do que seu caráter sacramental Nos países do Norte onde os temas da família eram extremamente difundidos uma pintura muito significativa de J Steen42 mostranos a nova interpretação familiar do folclore ou da devoção tradicional Já tivemos a ocasião de frisar a importância nos costumes do Ancien Régime das grandes festas coletivas e insistimos na participação das crianças que se misturavam aos adultos toda uma sociedade inteiramente diversa se reunia nessas ocasiões feliz por estar junta Mas a festa descrita por Steen não é mais exatamente uma dessas festas da juventude em que as crianças se comportavam um tanto como os escravos no dia das saturnais em que desempenhavam um papel fixado pela tradição ao lado dos adultos Aqui ao contrário os adultos organizaram a festa para distrair as crianças é a festa de São Nicolau o ancestral de nosso Papai Noel Steen reproduz a cena no momento em que os pais ajudam as crianças a achar os brinquedos que eles haviam escondido para elas nos cantos da casa Algumas crianças já encontraram os seus Algumas meninas seguram bonecas Outras seguram baldes cheios de brinquedos e há sapatos espalhados pelo chão os brinquedos já seriam escondidos nos sapatos esses sapatos que as crianças dos séculos XIX e XX colocariam diante da lareira na véspera de Natal Não se trata mais de uma grande festa coletiva e sim de uma festa de família em sua intimidade e consequentemente essa concentração da família é prolongada por uma contração da família em torno das crianças As festas da família tornamse as festas da infância Hoje o Natal tornou se a maior e poderíamos dizer a única festa do ano comum tanto aos ateus como aos religiosos O Natal não tinha essa importância nas sociedades do Ancien Régime pois enfrentava a concorrência da festa de Reis que era muito próxima Mas o extraordinário sucesso do Natal nas sociedades industriais contemporâneas às quais repugnam cada vez mais as grandes festas coletivas devese a seu caráter familiar obtido graças à sua associação com a festa de São Nicolau a pintura de Steen mostranos que na Holanda do século XVII já se festejava São Nicolau como o Papai Noel ou o Menino Jesus na França de hoje com o mesmo sentimento moderno da infância e da família da infância dentro da família Um novo tema ilustra de maneira ainda mais significativa o componente religioso do sentimento da família o tema do benedicite Há muito tempo já a cortesia exigia que na falta de um padre um menino pequeno abençoasse a mesa no início das refeições Certos textos manuscritos do século XV publicados por F J Furnival em uma coletânea intitulada The Babees Book enumeram as regras estritas da conduta à mesa As conveniências da mesa ou a maneira de se portar à mesa43 Criança diz o benedicite quando estiveres num lugar onde haja um prelado da igreja deixao dizer se ele assim o desejar o benedicite e as 212 graças Criança se o prelado ou o senhor te mandarem com sua autoridade dizer o benedicite fálo com ardor pois assim deve ser feito Sabemos que então a palavra enfant criança designava tanto as crianças pequenas como os meninos maiores Os manuais de civilidade do século XVI ao contrário reservam a tarefa de dizer o benedicite não a qualquer uma das crianças mas à mais nova o manual pueril e honesto de Mathurin Cordier estabelece essa regra que é conservada nas edições modificadas posteriores assim uma edição de 176144 ainda precisa que o dever de abençoar a mesa pertence aos eclesiásticos quando os há ou na sua falta ao mais jovem membro do grupo Segundo a Civilité nouvelle45 de 1671 após servir à mesa é uma mostra de civilidade perfeita e verdadeira fazer uma reverência ao grupo e a seguir dizer as graças Ou segundo as Règles de la bienséance et de la civilité chrétienne de JeanBaptiste de La Salle46 Quando há uma criança é comum se lhe atribuir essa função de abençoar a mesa Em seus Dialogues47 Vivès descreve uma grande refeição O dono da casa de acordo com seu direito indicou os lugares A prece foi dita por uma criança pequena de forma breve curiosa e rimada Ce qui est mis et sera cidessus Tant soit bénit par le nom de Jésus Portanto não é mais a um menino do grupo e sim à menor criança da casa que cabe a honra de dizer o benedicite Reconhecemos aí um sinal da promoção da infância no sentimento no século XVI mas o mais importante é o fato de a criança ter sido associada à principal prece da família durante muito tempo a única prece dita em comum pela família reunida Nesse ponto os textos dos tratados de civilidade são menos reveladores do que a iconografia A partir do fim do século XVI a cena do benedicite tornase um dos temas mais frequentes da nova iconografia que tentamos distinguir Examinemos por exemplo uma gravura de Merian48 Tratase de um retrato de família à mesa fiel a uma convenção já antiga o pai e a mãe estão sentados em cadeiras com seus cinco filhos em volta Uma criada traz um prato e a porta da cozinha está aberta Mas o gravador fixou o momento em que um menininho de túnica apoiado nos joelhos da mãe com as mãos postas recita o benedicite o resto da família ouve a prece com a cabeça descoberta e as mãos postas Outra gravura de Abraham Bosse49 representa a mesma cena em uma família protestante Antoine Le Nain50 reúne uma mulher e seus três filhos na hora da refeição um dos meninos está de pé e diz as graças Lebrun tratou esse tema segundo a maneira antiga como uma Sagrada Família A mesa está posta o pai 213 barbudo com o bastão do viajante na mão está de pé A mãe sentada olha com ternura para a criança que de mãos postas recita a prece Essa composição foi amplamente difundida pela gravura como uma imagem devota51 É normal encontrarmos esse tema na pintura holandesa do século XVII Em uma pintura de Steen52 o pai é o único sentado velho hábito rural abandonado há muito pela burguesia francesa A mãe serve o pai e as duas crianças que estão de pé o menor de dois ou três anos está de mãos postas e diz a prece Em um quadro semelhante de Heemskerck53 dois velhos sentados e um homem mais jovem de pé estão em torno de uma mesa ao lado de uma mulher sentada com as mãos postas perto dela uma menina repete a prece lendoa nos lábios da mãe O mesmo tema é encontrado ainda no século XVIII no célebre Bénédicité de Chardin A insistência da iconografia dá a esse tema um valor singular A recitação do benedicite pela criança não é mais uma marca de civilidade Os artistas se dedicaram a representála porque em geral se atribuía a essa prece outrora banal uma significação nova O tema iconográfico evocava e associava numa síntese três forças afetivas a religiosidade o sentimento da infância a criança menor e o sentimento da família a reunião em torno da mesa O benedicite tornouse o modelo da prece dita em família Antes não havia cultos religiosos privados Os livros de civilidade mencionam a prece da manhã nos colégios os internos a diziam em comum após a toalete54 Eles já falam menos sobre a prece da noite Insistem e isso é significativo nos deveres das crianças para com seus pais as regras de cortesia mais antigas do século XV não falavam nos deveres dos filhos para com seus pais e sim para com seus mestres As crianças diz JB de La Salle não devem ir dormir antes de cumprimentar seu pai e sua mãe O manual de Courtin de 167155 termina o dia da criança da seguinte maneira Ela deverá recitar suas lições dizer boanoite a seus pais e mestres fazer suas necessidades e deitar se na cama para dormir No entanto foi nessa época que surgiu ao lado das orações particulares uma oração pública da família O benedicite é um dos atos desse culto e sua frequência iconográfica prova que ele correspondia a uma forma viva de devoção Esse culto familiar se desenvolveu muito nos meios protestantes na França sobretudo após a revogação do edito de Nantes ele substituiu o culto público a tal ponto que após a volta à liberdade os pastores do fim do século XVIII tiveram dificuldade em trazer de volta ao culto público os fiéis habituados a se contentar com suas orações em família A célebre caricatura de Hogarth mostra que no século XVIII a oração da noite em comum que reunia em torno do pai de família os parentes e criados tornarase corriqueira e convencional É provável que as famílias católicas tenham 214 sofrido uma evolução quase paralela e que também tenham sentido a necessidade de uma devoção nem pública nem individual de uma devoção familiar Descrevemos acima o Bénédicité de Lebrun popularizado pela gravura de Sarrabat percebemos imediatamente que esse benedicite era também uma Sagrada Família uma representação da oração e da refeição da Virgem de São José e do Menino Jesus A cena de Lebrun pertence ao mesmo tempo a duas séries de representações igualmente frequentes na época pois ambas exaltavam o mesmo sentimento Temos de reconhecer como M V L Tapie que sem dúvida era o próprio princípio da família que era associado a essa homenagem rendida à família de Cristo56 Todas as famílias eram convidadas a considerar a Sagrada Família como seu modelo A iconografia tradicional modificouse portanto sob a mesma influência que aumentou a autoridade paterna São José não desempenhava mais o papel apagado que ainda lhe era atribuído no século XV e início do século XVI Ele aparece no primeiro plano como o chefe da família em outro retrato da Sagrada Família à mesa pintado por Callot e igualmente popularizado pela gravura A Virgem São José e o menino comenta E Mâle tomam a refeição da noite um candeeiro colocado sobre a mesa cria um contraste entre a luz viva e a sombra profunda e dá à cena um aspecto misterioso São José dá de beber à criancinha enternecedora de tão bemcomportada com um guardanapo em torno do pescoço57 Ou há ainda o tema que E Mâle chama de A Sagrada Família em marcha em que o menino é colocado entre Maria e José Imagino que os teólogos da época possam ter visto aí a imagem da Trindade mas o sentimento comum se comovia com esse tema como se fosse uma exaltação da família A autoridade de São José pode ser notada em várias cenas em uma tela de um pintor napolitano do século XVII58 São José carrega o Menino Jesus no colo e passa assim para o centro da composição Esse tema é frequente em Murilo e Guido Reni Algumas vezes José aparece reinando em seu ateliê de marceneiro ajudado pelo Menino Jesus59 Chefe de família na mesa na hora da refeição e no ateliê nas horas de trabalho São José é ainda chefe de família em outro momento dramático da vida familiar muitas vezes representado pelos artistas o momento em que a morte o vem buscar Tornandose o padroeiro da boa morte São José conserva seu sentido a imagem de sua morte lembra a imagem da morte do pai tantas vezes representada nas ilustrações da boa morte ela pertence à mesma iconografia da nova família As outras sagradas famílias inspiram o mesmo sentimento No século XVI em particular tornouse comum representar santos contemporâneos de Cristo em 215 criança reunidos e brincando juntos Uma tapeçaria alemã60 representa de uma forma encantadoramente pitoresca as três Marias cercadas de seus filhos que se agitam se banham e brincam Esse grupo é encontrado com frequência particularmente em uma bela talha do início do século XVII em NotreDame la Grande em Poitiers O tema parece evidentemente ligado ao sentimento da infância e da família Essa ligação é sublinhada com insistência na decoração barroca da capela da Virgem na igreja franciscana de Lucerne Essa decoração data de 1723 A abóbada é ornamentada com anjinhos decentemente vestidos cada um trazendo um dos símbolos da Virgem enumerados em suas litanias estreladomar etc Nas paredes laterais os pais e filhos santos se dão as mãos em tamanho natural São João Evangelista e Maria Salomé São Tiago Maior e Zebedeu Os temas do Antigo Testamento também são utilizados para ilustrar essa devoção O pintor veneziano Carlo Loth61 trata a bênção de José por Jacó como a cena frequente nas Idades da vida do velho cercado por seus filhos esperando a morte Mas foi sobretudo a família de Adão que foi tratada como uma Sagrada Família Em uma tela de Veronese62 Adão e Eva aparecem no pátio de sua casa no meio de seus animais e de seus filhos Caim e Abel Um deles mama na mãe enquanto o outro menor brinca no chão Adão escondido atrás de uma árvore a fim de não perturbar esses folguedos observa a cena Ele é visto de costas Sem dúvida poderíamos com razão encontrar uma intenção teológica nessa família do primeiro Adão que anunciava a vinda de Cristo o segundo Adão Mas essa intenção erudita escondese atrás de uma cena que evoca as alegrias então consagradas da família O mesmo tema é encontrado em um teto mais recente do convento de San Martino em Nápoles que provavelmente data do início do século XVIII Adão cava a terra como José trabalha com a madeira Eva fia como a Virgem costura e seus dois filhos estão a seu lado Portanto a iconografia nos permite acompanhar a ascensão de um sentimento novo o sentimento da família Espero ter sido bem compreendido O sentimento era novo mas não a família embora esta sem dúvida não desempenhasse em suas origens o papel primordial que lhe atribuíram Fustel de Coulanges e seus contemporâneos M Jeanmaire descobriu na Grécia sobrevivências ainda fortes de estruturas não familiares como as classes de idade Os etnólogos mostraram a importância das classes de idade entre os africanos e das comunidades clânicas entre os indígenas americanos Não teríamos sem o perceber nos deixado impressionar pela função que a família desempenha em nossas sociedades há 216 alguns séculos e não nos sentiríamos tentados a exagerála indevidamente e até mesmo a atribuirlhe uma espécie de autoridade histórica quase absoluta No entanto não há a menor dúvida de que a família foi constantemente mantida e reforçada por influências ao mesmo tempo semíticas e não apenas bíblicas creio eu e romanas Por outro lado é possível que ela tenha enfraquecido na época das invasões germânicas Pouco importa seria vão contestar a existência de uma vida familiar na Idade Média Mas a família subsistia no silêncio não despertava um sentimento suficientemente forte para inspirar poetas ou artistas Devemos atribuir a esse longo silêncio uma significação importante não se conferia um valor suficiente à família Da mesma forma devemos reconhecer a importância do florescimento iconográfico que a partir do século XV e sobretudo XVI sucedeu a esse longo período de obscuridade o nascimento e o desenvolvimento do sentimento da família Daí em diante a família não é apenas vivida discretamente mas é reconhecida como um valor e exaltada por todas as forças da emoção Ora esse sentimento tão forte se formou em torno da família conjugal a família formada pelos pais e seus filhos É raro uma tela reunir mais de duas gerações Quando netos ou filhos casados aparecem é sempre discretamente como uma coisa sem importância Nada aí lembra a antiga linhagem nada acentua a ampliação da família ou a grande família patriarcal essa invenção dos tradicionalistas do século XIX Essa família ou a própria família ou ao menos a ideia que se fazia da família ao representála e exaltála parece igual à nossa O sentimento é o mesmo Esse sentimento está muito ligado também ao sentimento da infância Ele afastase cada vez mais das preocupações com a honra da linhagem ou com a integridade do patrimônio ou com a antiguidade ou permanência do nome brota apenas da reunião incomparável dos pais e dos filhos Uma de suas expressões mais comuns seria o hábito criado de se insistir nas semelhanças físicas entre os pais e seus filhos No século XVII pensavase que São José se parecia com seu filho adotivo salientandose assim a força do laço familiar Erasmo já possuía a ideia extremamente moderna de que as crianças uniam a família e de que sua semelhança física produzia essa união profunda não nos espantaremos pois com o fato de seu tratado sobre o casamento ter sido reimpresso ainda no século XVIII Vejamos um trecho dessa obra numa tradução francesa de 1714 que adorna de maneira picante e um tanto anacrônica a prosa do Renascimento63 Só nos pode causar admiração o cuidado surpreendente da natureza nesse ponto ela pinta duas pessoas em um mesmo rosto e em um mesmo corpo o marido reconhece o retrato de sua mulher em seus filhos e a mulher o do marido Às vezes descobrese uma 217 semelhança com o avô e com a avó com um tioavô ou com uma tiaavó O que conta acima de tudo é a emoção despertada pela criança a imagem viva de seus pais 218 1 P M Duval La Vie quotidienne en Gaule 1952 2 G Ch Picard Les Religions de lAfrique antique 1954 3 Cf supra parte I cap 1 4 Livro de Horas de Adelaïde de Savoie duquesa de Borgonha Chantilly 5 Cf supra parte I cap 4 6 Um dos putti da Bachanalia do Prado Madri 7 Hortulus animae Frankfurt 1907 7 vols 8 Londres Bridgewater Gallery 9 As Quatro Idades da Vida 10 Cf supra parte I cap 1 11 Venturi Storia del Arte ital t VI p 32 12 Toesca Storia del Arte ital t II 13 A Lindner Der Braslauer Froissart 1912 14 Basileia Museu de BelasArtes 15 Cf F Bond Westminster Abbey 1909 16 Ticiano reproduzido em K d K no 168 17 Victoria and Albert Museum no 5 1951 18 Pourbus Le Portrait dans lart flamand Exposição Paris 1952 no 71 19 Van Dyck Sebastien Leers sua mulher e seu filho Reproduzido em K d K no 279 20 Ticiano reproduzido em K d K no 236 21 Van Dyck A Família Pembroke reproduzido em K d K no 393 22 Le Portrait dans lart flamand Paris 1952 op cit no s 19 e 93 23 P Aertsen meados do século XVI Reproduzido em Gerson I 98 24 HumbelotHuard Cabinet des Estampes Ed 15 info 25 Guérard gravura Cabinet de Estampes 0 a 22 vol VI c 1701 Feliz daquele que segue a lei do Céu E emprega a parte mais bela de sua vida Em bem servir a seu Deus sua família e seu Rei N T 26 Guérard La femme en mariage gravura Cabinet des Estampes Ee 3 info 27 David II Ryckaert 15861642 Museu de Genebra 28 Bonnart e Sandrart Cinquième Béatitude Cabinet des Estampes Ed 113 info vol I 29 G Dou K d K pp 90 91 e 92 30 Fragonard desenho Exposição Fragonard Berna 1954 G Dou K d K 94 Brouwer W de Bode p 73 Berey gravura Cabinet des Estampes Ed 108 info Stella LHiver gravura Cabinet des Estampes Da 44 info p 41 Crispinde Pos Cabinet des Estampes Ec 35 info p 113 31 Dassonville gravura Cabinet des Estampes Ed 35c pet info 5 6 26 Dou K d K 94 G Terboch Mulher catando piolho na cabeça de seu filho Berndt 109 P de Hooch K d K 60 Siberechts Berndt 754 32 G Dou K d K 122 123 124 Criança na cozinha P de Hooch Criada passando um cantil a uma menina K d K 57 A de Pope Criança olhando a cozinheira depenar a caça Berndt 634 Velasquez Criado pegando uma criança no colo para colocála sobre a 219 mesa com frutas K d K 166 Strozzi Cozinheira depenando um ganso G Fiacco pr IV Le Nain O jardineiro Fierens 87 33 G Dou Menina pagando à vendedora K d K 133 Van Mieris Criança comprando um biscoito e comendoo Berndt 533 Le Camus gravura 34 P de Hooch reproduzido em Berndt 399 35 G Duby La Societé aux XIe e XIIe siecles dans la région mâconnaise 1953 36 P Pelot La famille en France sous lAncien Régime in Sociologie comparée de la famille contemporaine Colóquios do CNRS 1955 37 Chaucer The Parsons Tale Cf Philippe Ariès em Populations 1954 p 692 38 Guillaume Vrelaut Histoire du bon roi Alexandre Petit Palais ms 546 fo 8 Vie de sainte Catherine Bibliothèque nationale ms frs 6449 fo 17 39 Stella Cabinet des Estampes Da 44 info p 40 40 D Molinier museu de Genebra 41 Abraham Bosse O deitar dos recémcasados Molenaer Les relevailles museu de Lille Brakenburgh O despertar da noiva museu de Lille 42 J Steen La SaintNicolas reproduzido em Gerson no 87 43 The Babees Book publicado por F J Furnival 1868 44 Civilité puérile e honnête 1753 45 La civilité nouvelle contenant bon usage et parfaite instruction Basileia 1671 46 J B de la Salle a primeira edição é de 1713 47 Vivès Dialogues trad francesa de 1571 Que o que está e o que estará em cima da mesa Seja abençoado por Jesus N T 48 Merian gravura Cabinet des Estampes Ec 10 info 49 A Bosse gravura Cabinet des Estampes 0 a 44 pet info p 65 50 A Le Nain Bénédicité 51 Lebrun Bénédicité Louvre pintura popularizada pela gravura de I Sarrabat 52 J Steen SchmidtDegener p 63 53 Heemskerck 16341704 Berndt p 358 54 Mathurin Cordier Colloques 1536 55 Cf n 47 p 149 56 V L Tapie Le Baroque 1957 p 256 57 E Mâle LArt religieux après le concile de Trente p 312 58 Paccaco di Rosa 59 Carrache Pesne Cf Mâle op cit p 311 Rembrandt O marceneiro 60 Göbel I pr CLXV datada de 1573 61 C Loth 16321698 reproduzido em Fiacco Venetian Painture p 49 62 Veronese A família de Adão Veneza Palácio dos Doges 63 Erasmo ed de 1714 do Casamento Cristão 220 O 2 Da Família Medieval à Família Moderna estudo iconográfico do capítulo anterior mostrounos o novo lugar assumido pela família na vida sentimental dos séculos XVI e XVII É significativo que nessa mesma época tenham ocorrido mudanças importantes na atitude da família para com a criança A família transformouse profundamente na medida em que modificou suas relações internas com a criança Um texto italiano do fim do século XV nos dá uma ideia muito sugestiva da família medieval ao menos na Inglaterra Ele foi extraído pelo historiador inglês Furnivall1 de uma Relação da Ilha da Inglaterra de um italiano A falta de afeição dos ingleses manifestase particularmente em sua atitude com relação às suas crianças Após conserválas em casa até a idade de sete ou nove anos em nossos autores antigos sete anos era a idade em que os meninos deixavam as mulheres para ingressar na escola ou no mundo dos adultos eles as colocam tanto os meninos como as meninas nas casas de outras pessoas para aí fazerem o serviço pesado e as crianças aí permanecem por um período de sete a nove anos portanto até entre cerca de 14 e 18 anos Elas são chamadas então de aprendizes Durante esse tempo desencumbemse de todas as tarefas domésticas Há poucos que evitam esse tratamento pois todos qualquer que seja sua fortuna enviam assim suas crianças para casas alheias enquanto recebem em seu próprio lar crianças estranhas O italiano achava esse costume cruel o que faz supor que fosse desconhecido ou tivesse sido esquecido em seu país Ele insinua que os ingleses recorriam às crianças dos outros porque pensavam ser melhor servidos dessa maneira do que por seus próprios filhos De fato a explicação que os próprios ingleses davam ao observador italiano devia ser a verdadeira Para que suas crianças aprendam as boas maneiras Esse gênero de vida foi provavelmente comum ao Ocidente medieval Já no século XII G Duby descreve a família de um cavaleiro natural do Mâconnais chamado Guigonet com base em uma análise de seu testamento2 Guigonet havia confiado seus dois filhos menores ao mais velho de seus três irmãos Mais tarde numerosos contratos de aprendizagem que confiavam crianças a mestres provam 221 como o hábito de entregar as crianças a famílias estranhas era difundido Às vezes é especificado que o mestre deveria ensinar a criança e mostrarlhe os detalhes de sua mercadoria ou que deveria fazêla frequentar a escola3 São casos particulares De modo mais geral a principal obrigação da criança assim confiada a um mestre era servilo bem e devidamente Quando examinamos esses contratos sem nos despojarmos de nossos hábitos de pensamento contemporâneos hesitamos em decidir se a criança era colocada em casa alheia como aprendiz no sentido moderno da palavra como pensionista ou como criado Faríamos mal em insistir nossas distinções são anacrônicas e o homem da Idade Média via aí apenas variações de uma noção essencial a noção de serviço O único serviço que durante muito tempo se pôde conceber o serviço doméstico não implicava nenhuma degradação e não despertava nenhuma repugnância No século XV existia toda uma literatura em língua vulgar francesa ou inglesa que enumerava sob uma forma mnemotécnica os mandamentos de um bom servidor Um desses poemas4 intitula se em francês Régime pour tous serviteurs O equivalente inglês era o wayting servant que permaneceu no inglês moderno com a palavra waiter garçom Esse servidor é claro devia saber servir à mesa fazer as camas acompanhar seu mestre etc Mas esse serviço doméstico compreendia também uma função a que hoje chamaríamos função de secretário Além disso não era considerado um estado definitivo e sim um estágio um período de aprendizagem Si tu veuls bon serviteur estre Craindre dois et aimer ton maistre Manger dois sans seoir à table Seguemse regras de boa apresentação Suys toujours bonne compagnie Soit séculier ou clerc ou prestre Um clérigo podia servir na casa de outro clérigo Il te faut pour le bien servir Se son amour veulz desservir Laissier toute ta volonté Pour ton maistre servir à grey Se tu sers maistre qui ayt femme 222 Bourgeoise demoiselle ou dame Son honneur doit partout garder Et se tu sers un clerc ou prestre Gardes ne soyes vallet maistre Sil est que soyes secrétaire Tu dois toujours les secrets taire Se tu sers juge ou avocat Ne rapportes nul nouveau cas Et sìl tadvient par adventure A servir duc ou prince ou comte Marquis ou baron ou vicomte Ou autre seigneur terrien Ne soyes de taille inventeur Dimpots de subsides et les biens Du peuple ne leur oest en rien Se tu sers gentilhomme en guerre Ne vas dérobant nulle gent Et toujours en quelque maison Ou quelque maistre que tu serves Fay se tu peulz que tu desserves La grace et lamour de ton maistre Afin que tu puisses maistre estre Quand il sera temps et métier Mais peine à sçavoir bon mestier Car pour ta vie pratiquer Tout ton coeur y dois appliquer En se faisant tu pourras estre Et devenir de vallet maistre Et te pourras faire servir Et pris et honneur desservir Et acquérir finalement De ton âme le sauvement Assim o serviço doméstico se confundia com a aprendizagem como uma forma muito comum de educação A criança aprendia pela prática e essa prática não parava nos limites de uma profissão ainda mais porque na época não havia e por muito tempo ainda não haveria limites entre a profissão e a vida particular a participação na vida profissional expressão bastante anacrônica aliás 223 acarretava a participação na vida privada com a qual se confundia aquela Era através do serviço doméstico que o mestre transmitia a uma criança não ao seu filho mas ao filho de outro homem a bagagem de conhecimentos a experiência prática e o valor humano que pudesse possuir Assim toda a educação se fazia através da aprendizagem e davase a essa noção um sentido muito mais amplo do que o que ela adquiriu mais tarde As pessoas não conservavam as próprias crianças em casa enviavamnas a outras famílias com ou sem contrato para que com elas morassem e começassem suas vidas ou nesse novo ambiente aprendessem as maneiras de um cavaleiro ou um ofício ou mesmo para que frequentassem uma escola e aprendessem as letras latinas Essa aprendizagem era um hábito difundido em todas as condições sociais Apontamos acima uma ambiguidade entre o criado subalterno e o empregado de nível mais elevado dentro da mesma noção de serviço doméstico Uma ambiguidade semelhante existia entre a criança ou o rapazinho e o servidor As coletâneas inglesas de poemas didáticos que ensinavam a cortesia aos servidores se intitulavam Babees Books A palavra valet significava um menino pequeno e Luís XIII criança em uma explosão de afeição diria que gostaria muito de ser o pequeno valet do papai Na língua francesa dos séculos XVI e XVII a palavra garçon designava ao mesmo tempo um rapazinho novo e um jovem servidor doméstico foi conservada para interpelar os empregados que servem num restaurante Mas mesmo quando a partir dos séculos XV e XVI começouse a distinguir melhor dentro do serviço doméstico os serviços subalternos dos ofícios mais nobres o serviço da mesa continuou a ser tarefa dos filhos de família e não dos empregados pagos Para parecer bemeducado não bastava como hoje saber comportarse à mesa era preciso também saber servir à mesa O serviço da mesa até o século XVIII ocupou um lugar considerável nos manuais de civilidade e nos tratados de boas maneiras é o assunto de um capítulo inteiro do manual de civilidade cristã de JB de La Salle um dos livros mais populares do século XVIII Tratavase de uma sobrevivência do tempo em que todos os serviços domésticos eram realizados indiferentemente pelas crianças a quem chamaremos aprendizes e por empregados pagos provavelmente muito jovens também A distinção entre essas duas categorias fezse muito progressivamente O servidor era uma criança uma criança grande quer estivesse colocada em casa alheia por um período limitado a fim de partilhar da vida familiar e assim se iniciar na vida adulta quer não tivesse esperança de algum dia passar de criado a mestre pela obscuridade de sua origem Não havia lugar para a escola nessa transmissão através da aprendizagem direta de uma geração a outra De fato a escola a escola latina que se destinava apenas 224 aos clérigos aos latinófones aparece como um caso isolado reservado a uma categoria muito particular E a escola era na realidade uma exceção e o fato de mais tarde ela terse estendido a toda a sociedade não justifica descrever através dela a educação medieval seria considerar a exceção como a regra A regra comum a todos era a aprendizagem Mesmo os clérigos que eram enviados à escola muitas vezes eram confiados como os outros aprendizes a um clérigo um padre às vezes a um prelado a quem passavam a servir O serviço fazia tão parte da educação de um clérigo quanto a escola No caso dos estudantes muito pobres ele foi substituído pelas bolsas dos colégios vimos que essas fundações foram a origem dos colégios do Ancien Régime Houve casos em que a aprendizagem perdeu seu caráter empírico e assumiu uma forma mais pedagógica Um exemplo curioso de ensino técnico oriundo da aprendizagem tradicional é fornecido pelo Manuel du Veneur São descritas aí verdadeiras escolas de caça na corte de Gaston Phoebus onde se ensinava maneiras e condições que devia ter aquele que desejava aprender a ser bom caçador5 Esse manuscrito do século XV é ilustrado com belíssimas miniaturas Uma delas representa uma verdadeira aula o mestre um nobre a julgar pelo traje está com a mão direita erguida e o dedo indicador levantado um gesto que serve para pontuar o discurso Com a mão esquerda ele agita um bastão o sinal indubitável da autoridade magistral o instrumento de correção Três alunos meninos ainda pequenos estão lendo os grandes rolos que seguram com as mãos e devem aprender de cor uma escola como outra qualquer Ao fundo alguns velhos caçadores observam Uma cena semelhante representa uma lição de trompa Como se deve soprar a trompa Eram coisas que se aprendiam com a prática como a equitação as armas e as maneiras dos cavaleiros É possível que alguns tipos de ensino técnico como o da escrita se tenham originado de uma aprendizagem já organizada e escolarizada Contudo esses casos foram excepcionais De modo geral a transmissão do conhecimento de uma geração a outra era garantida pela participação familiar das crianças na vida dos adultos Assim se explica essa mistura de crianças e adultos que tantas vezes observamos ao longo deste estudo até mesmo nas classes dos colégios onde seria de esperar ao contrário uma distribuição mais homogênea das idades Mas não se tinha a ideia dessa segregação das crianças a que estamos tão habituados As cenas da vida quotidiana constantemente reuniam crianças e adultos ocupados com seus ofícios como por exemplo o pequeno aprendiz que prepara as cores do pintor6 ou a série de gravuras dos ofícios de Stradan que nos mostra crianças em ateliês com companheiros mais velhos O mesmo acontecia nos exércitos Conhecemos casos de soldados de 14 anos Mas o pequeno pajem que 225 leva a manopla do Duque de Lesdiguières7 e os que levam o capacete de Adolf de Wignacourt na tela de Caravaggio que se encontra no Louvre ou o do General del Vastone no grande Ticiano do museu do Prado também não são muito mais velhos sua cabeça bate abaixo do ombro de seus senhores Em suma em toda a parte onde se trabalhava e também em toda a parte onde se jogava ou brincava mesmo nas tavernas malafamadas as crianças se misturavam aos adultos Dessa maneira elas aprendiam a viver através do contato de cada dia Os agrupamentos sociais correspondiam a divisões verticais que reuniam classes de idade diferentes como esses músicos das pinturas de concertos de câmara que funcionam tanto como retratos de família quanto como alegorias das idades da vida pois reúnem crianças adultos e velhos Nessas condições a criança desde muito cedo escapava à sua própria família mesmo que voltasse a ela mais tarde depois de adulta o que nem sempre acontecia A família não podia portanto nessa época alimentar um sentimento existencial profundo entre pais e filhos Isso não significava que os pais não amassem seus filhos eles se ocupavam de suas crianças menos por elas mesmas pelo apego que lhes tinham do que pela contribuição que essas crianças podiam trazer à obra comum ao estabelecimento da família A família era uma realidade moral e social mais do que sentimental No caso de famílias muito pobres ela não correspondia a nada além da instalação material do casal no seio de um meio mais amplo a aldeia a fazenda o pátio ou a casa dos amos e dos senhores onde esses pobres passavam mais tempo do que em sua própria casa às vezes nem ao menos tinham uma casa eram vagabundos sem eira nem beira verdadeiros mendigos Nos meios mais ricos a família se confundia com a prosperidade do patrimônio a honra do nome A família quase não existia sentimentalmente entre os pobres e quando havia riqueza e ambição o sentimento se inspirava no mesmo sentimento provocado pelas antigas relações de linhagem A partir do século XV as realidades e os sentimentos da família se transformariam uma revolução profunda e lenta mal percebida tanto pelos contemporâneos como pelos historiadores e difícil de reconhecer E no entanto o fato essencial é bastante evidente a extensão da frequência escolar Vimos que na Idade Média a educação das crianças era garantida pela aprendizagem junto aos adultos e que a partir de sete anos as crianças viviam com uma outra família que não a sua Dessa época em diante ao contrário a educação passou a ser fornecida cada vez mais pela escola A escola deixou de ser reservada aos clérigos para se tornar o instrumento normal da iniciação social da passagem do estado da infância ao do adulto Já vimos como isso se deu Essa evolução correspondeu a uma 226 necessidade nova de rigor moral da parte dos educadores a uma preocupação de isolar a juventude do mundo sujo dos adultos para mantêla na inocência primitiva a um desejo de treinála para melhor resistir às tentações dos adultos Mas ela correspondeu também a uma preocupação dos pais de vigiar seus filhos mais de perto de ficar mais perto deles e de não abandonálos mais mesmo temporariamente aos cuidados de uma outra família A substituição da aprendizagem pela escola exprime também uma aproximação da família e das crianças do sentimento da família e do sentimento da infância outrora separados A família concentrouse em torno da criança Esta não ficou porém desde o início junto com seus pais deixavaos para ir a uma escola distante embora no século XVII se discutissem as vantagens de se mandar a criança para o colégio e muitos defendessem a maior eficácia de uma educação em casa com um preceptor Mas o afastamento do escolar não tinha o mesmo caráter e não durava tanto quando a separação do aprendiz A criança geralmente não era interna no colégio Morava num pensionato particular ou na casa do mestre Nos dias de feira traziamlhe dinheiro e provisões O laço entre o escolar e sua família se estreitara segundo os diálogos de Cordier era mesmo necessária a intervenção dos mestres para evitar visitas muito frequentes à família visitas projetadas graças à cumplicidade das mães Algumas crianças mais ricas não saíam de casa sozinhas eram acompanhadas de um preceptor um estudante mais velho ou de um criado quase sempre seu irmão de leite Os tratados de educação do século XVII insistem nos deveres dos pais relativos à escolha do colégio e do preceptor e à supervisão dos estudos à repetição das lições quando a criança vinha dormir em casa O clima sentimental era agora completamente diferente mais próximo do nosso como se a família moderna tivesse nascido ao mesmo tempo que a escola ou ao menos que o hábito geral de educar as crianças na escola De qualquer maneira o afastamento que o pequeno número de colégios tornava inevitável não seria tolerado por muito tempo pelos pais O esforço dos pais secundados pelos magistrados urbanos no sentido de multiplicar as escolas a fim de aproximálas das famílias é um sinal digno de nota No início do século XVII como mostrou o Pe de Dainville8 criouse uma rede muito densa de instituições escolares de importância diversa Em torno de um colégio com a série completa de classes estabeleciase um sistema concêntrico formado por alguns poucos colégios de Humanidades sem classe de filosofia e de um maior número de escolas latinas com apenas algumas classes de gramática As escolas latinas forneciam alunos para as classes superiores dos colégios de Humanidades e dos colégios com a série completa de classes Alguns contemporâneos inquietaramse com essa proliferação das escolas Ela correspondia ao mesmo tempo a essa necessidade de educação 227 teórica que substituía as antigas formas práticas de aprendizagem e ao desejo dos pais de não afastar muito as crianças de mantêlas perto o mais tempo possível Esse fenômeno comprova uma transformação considerável da família esta se concentrou na criança e sua vida confundiuse com as relações cada vez mais sentimentais dos pais e dos filhos Não será surpresa para nós descobrir que esse fenômeno situase no mesmo período em que vimos emergir e desenvolvese uma iconografia da família em torno do casal e das crianças É verdade que essa escolarização tão cheia de consequências para a formação do sentimento familiar não foi imediatamente generalizada ao contrário Ela não afetou uma vasta parcela da população infantil que continuou a ser educada segundo as antigas práticas de aprendizagem Antes de mais nada havia as meninas Com exceção de algumas que eram enviadas às pequenas escolas ou a conventos a maioria era educada em casa ou também na casa de outras pessoas uma parenta ou vizinha A extensão da escolaridade às meninas não se difundiria antes do século XVIII e início do XIX Esforços como os de Mme de Maintenon e de Fénelon teriam um valor exemplar Durante muito tempo as meninas seriam educadas pela prática e pelo costume mais do que pela escola e muitas vezes em casas alheias No caso dos meninos a escolarização estendeuse primeiro à camada média da hierarquia social A alta nobreza e os artesãos permaneceram ambos fiéis à antiga aprendizagem fornecendo pajens aos grandes senhores e aprendizes aos diferentes artesãos No mundo artesanal e operário a aprendizagem subsistiria até nossos dias As viagens à Itália e à Alemanha dos jovens nobres no fim de seus estudos ligavamse também à antiga tradição eles iam para cortes ou casas estranhas para aí aprender as línguas as boas maneiras e os esportes da cavalaria Esse costume caiu em desuso no século XVII substituído pelas Academias outro exemplo dessa substituição da educação prática por uma instrução mais especializada e mais teórica As sobrevivências da antiga aprendizagem nas duas extremidades da escala social não impediram seu declínio a escola venceu através da ampliação dos efetivos do aumento do número de unidades escolares e de sua autoridade moral Nossa civilização moderna de base escolar foi então definitivamente estabelecida O tempo a consolidaria prolongando e estendendo a escolaridade Os problemas morais da família apareceram então sob uma luz nova Isso fica evidente no caso do antigo costume que permitia beneficiar apenas um dos filhos em detrimento dos irmãos em geral o filho mais velho Tudo indica9 que esse costume se difundiu no século XIII para evitar o perigoso esfacelamento de um patrimônio cuja unidade não estava mais protegida pelas práticas de propriedade 228 conjunta e solidariedade de linhagem mas ao contrário era ameaçada por uma maior mobilidade da riqueza O privilégio do filho beneficiado por sua primogenitura ou pela escolha dos pais foi a base da sociedade familiar do fim da Idade Média até o século XVII mas não mais durante o século XVIII De fato a partir da segunda metade do século XVII os moralistas educadores contestaram a legitimidade dessa prática que em sua opinião prejudicava a equidade repugnava a um sentimento novo de igualdade de direito à afeição familiar e era acompanhada de uma utilização profana dos benefícios eclesiásticos esses moralistas eram também reformadores religiosos Um capítulo do tratado de Varet De léducation des enfants publicado em 1666 trata da igualdade que se deve manter entre as crianças10 Há uma outra desordem que se introduziu entre os fiéis e que não fere menos a igualdade que os pais e as mães devem a seus filhos Essa desordem se resume no fato de os pais pensarem apenas no estabelecimento daqueles que pela condição de seu nascimento ou pelas qualidades de sua pessoa lhes agradam mais Eles lhes agradavam porque serviam melhor ao futuro da família Trata se da concepção de uma família como uma sociedade indepenente do sentimento pessoal como uma casa As pessoas temem que se dividirem igualmente seus bens entre seus filhos não possam aumentar como queriam o brilho e a glória da família O filho mais velho não poderia nem possuir nem manter os encargos e os empregos que os pais lhe tentam obter se seus irmãos e irmãs tivessem as mesmas vantagens que ele É preciso portanto pôlos em condições de não poder disputar esse direito com o mais velho É preciso enviálos aos claustros contra sua vontade e sacrificálos logo aos interesses daquele que se destina ao mundo e à vaidade É curioso notar que a indignação provocada pelas falsas vocações e os privilégios do filho mais velho não está mais presente quando se trata do casamento ninguém pensava em contestar o poder dos pais nessa questão O texto citado acima exprime uma opinião categórica Em suas Règles de léducation des enfants11 Coustel traduz ao contrário um certo embaraço e prefere cercarse de todo o tipo de precauções para condenar uma prática antiga e difundida e que parecia ligada à permanência da sociedade familiar Ele admite que os pais tenham preferências Não é que os pais façam mal em amar mais aqueles de seus filhos que são mais virtuosos ou têm mais boas qualidades que os outros Mas digo que pode ser perigoso manifestar de forma muito gritante essa distinção e essa preferência O abade Goussault em seu Portrait dun honnête homme de 169212 é mais veemente Há não apenas vaidade em se doar a melhor parte dos bens ao filho mais velho da família para mantêlo sempre no luxo e eternizar seu nome sentimos aqui perfeitamente a oposição entre a famíliacasa e a família sentimental 229 moderna há mesmo injustiça Que fizeram os mais moços para serem tratados assim Há pessoas que a fim de estabelecer alguns de seus filhos em um nível superior a seus próprios meios sacrificam os outros e os encerram em mosteiros sem consultálos a respeito e sem examinar se têm uma vocação real Os pais não amam igualmente seus filhos e introduzem diferenças onde a natureza não quis fazêlo Apesar de sua convicção Goussault admite ainda como uma concessão ao senso comum que os pais possam ter de fato mais amor por alguns de seus filhos mas esse amor é um fogo que eles devem manter oculto sob as cinzas Assistimos aqui ao início de um sentimento que resultaria na igualdade do código civil e que como sabemos já havia penetrado nos costumes no fim do século XVIII Os esforços para restabelecer os privilégios do mais velho no início do século XIX chocaramse contra uma repugnância invencível da opinião pública muito poucos chefes de família mesmo nobres utilizaram o direito que lhes era reconhecido pela lei de beneficiar apenas um dos filhos Fourcassié cita uma carta de Villèle em que este se lamenta desse insucesso de sua política e profetiza o fim da família13 Na realidade esse respeito pela igualdade entre os filhos de uma família é uma prova de um movimento gradual da famíliacasa em direção à família sentimental moderna Tendiase agora a atribuir à afeição dos pais e dos filhos sem dúvida tão antiga quanto o próprio mundo um valor novo passouse a basear na afeição toda a realidade familiar Os teóricos do início do século XIX entre os quais Villèle consideravam essa base demasiado frágil eles preferiam a concepção de uma casa familiar uma verdadeira empresa independente dos sentimentos particulares haviam compreendido também que o sentimento da infância estava na origem desse novo espírito familiar do qual suspeitavam Por essa razão tentaram restaurar o direito da primogenitura derrubando assim toda a tradição dos moralistas religiosos do Ancien Régime Observaremos aqui que o sentimento de igualdade entre as crianças pôde desenvolverse em um novo clima afetivo e moral graças a uma intimidade maior entre pais e filhos Parecenos indicado comparar essas observações com um fenômeno cuja novidade e sentido moral foram sublinhados em um processo de 167714 Tolerava se então o casamento dos mestres mas continuavase a proibir aos mestres casados o exercício de cargos universitários Assim em 1677 um professor casado foi eleito decano da Tribo de Paris O candidato derrotado o escrivão Du Boulay apelou e o caso foi entregue ao Conselho Privado O advogado de Du Boulay apresentou em uma memória as razões que se teriam para manter o celibato dos professores Os mestres tinham o hábito de receber em casa pensionistas e a 230 virtude desses meninos poderia ser exposta a vários perigos Inconvenientes que acontecem com muita frequência devido à convivência que os mestres casados são obrigados a admitir entre os jovens que educam e suas mulheres filhas e criadas É impossível para eles impedir essa convivência menos ainda aos pensionistas que vivem em sua casa do que aos externos Os senhores comissários farão a gentileza de refletir sobre isto sobre a indecência que há para os escolares em ver de um lado as roupas das mulheres e das meninas e de outro seus livros e suas escrivaninhas e muitas vezes todas essas coisas juntas em ver mulheres e meninas penteandose vestindose ajustandose crianças de cueiros em seus berços e tudo o mais que é o apanágio do casamento A este último argumento particularmente interessante para nosso estudo o mestre casado responde O dito Du Boulay fala como se tivesse acabado de deixar a aldeia onde nasceu Pois todos sabem que onde moram mulheres há quartos para elas onde elas se vestem em sua privacidade privacidade sem dúvida bastante recente e limitada às grandes cidades e há outros para os escolares Quanto às crianças de berço não eram vistas nas habitações parisienses pois eram todas entregues a amas É sabido que as crianças são enviadas às casas das amas em alguma aldeia vizinha de modo que em casa dos professores casados se veem tão poucos berços e cueiros como no cartório do dito Du Boulay Esses textos parecem indicar que o costume de enviar as crianças para as casas das amas em uma aldeia vizinha era comum nos meios sociais urbanos como os dos mestres mas que não era antigo já que um dos querelantes podia fingir ignorá lo Esse costume terseia desenvolvido durante o século XVII enquanto era denunciado pelos educadores moralistas que muito antes de Rousseau recomendavam que as mães nutrissem elas mesmas suas crianças Mas sua opinião tantas vezes eficaz apoiavase apenas em tradições convencionais que remontavam a Quintiliano Ela não conseguiu prevalecer sobre um costume que certamente se apoiava na experiência e correspondia ao melhor tratamento da época De fato podemos imaginar as dificuldades provocadas pela alimentação e a criação dos bebês no caso de a mãe não ter leite Recorrer ao leite de vaca Esta era a sina dos pobres O humanista Thomas Platter para descrever toda a miséria de sua infância no início do século XVI não encontra nada mais expressivo do que confessar que fora criado com leite de vaca As condições de higiene da coleta do leite permitem compreender essa repugnância Além disso não era fácil administrá lo às crianças os recipientes estranhos que estão expostos nas vitrinas do museu da Faculdade de Farmácia de Paris e que serviam de mamadeiras deviam exigir muita habilidade e paciência Podese compreender muito bem o recurso às amas de leite Mas que amas de leite Podemos supor que no início elas geralmente fossem 231 criadas recrutadas na vizinhança e que a criança amamentada permanecia em casa onde era criada junto com as outras crianças Tudo indica que nas famílias ricas do século XVI e do início do século XVII os lactentes eram mantidos em casa Por que então sobretudo nas famílias da pequena burguesia como as dos mestres dos oficiais modestos se criou o hábito de enviar os bebês para o campo Não devemos interpretar esse costume relativamente recente como uma medida de proteção eu ousaria mesmo dizer de higiene que deveria ser comparada com os outros fenômenos em que reconhecemos uma atenção particular com relação à criança De fato apesar da propaganda dos filósofos os meios ricos nobres e burgueses continuaram a entregar suas crianças a amas de leite até o fim do século XIX ou seja até o momento em que os progressos da higiene e da assepsia permitiram utilizar sem riscos o leite animal Contudo uma mudança significativa ocorreu nesse meiotempo a ama passou a se deslocar em lugar da criança e passou a morar na casa da família e a família passou a se recusar a separarse dos bebês Esse fenômeno é comparável ao da substituição do internato pelo externato estudado em um capítulo anterior A história aqui esboçada sob um certo ponto de vista surge como a história da emersão da família moderna acima de outras formas de relações humanas que prejudicavam seu desenvolvimento Quanto mais o homem vive na rua ou no meio de comunidades de trabalho de festas de orações mais essas comunidades monopolizam não apenas seu tempo mas também seu espírito e menor é o lugar da família em sua sensibilidade Ao contrário se as relações de trabalho de vizinhança de parentesco pesam menos em sua consciência se elas deixam de alienálo o sentimento familiar substitui os outros sentimentos de fidelidade de serviço e tornase preponderante ou às vezes exclusivo Os progressos do sentimento da família seguem os progressos da vida privada da intimidade doméstica O sentimento da família não se desenvolve quando a casa está muito aberta para o exterior ele exige um mínimo de segredo Por muito tempo as condições da vida quotidiana não permitiram esse entrincheiramento necessário da família longe do mundo exterior Um dos obstáculos essenciais foi sem dúvida o afastamento das crianças enviadas para outras casas como aprendizes e sua substituição em sua própria casa por crianças estranhas Mas a volta das crianças graças à escola e as consequências sentimentais desse fechamento da família não bastaram estavase aí muito longe ainda da família moderna e de sua forte vida interior a antiga sociabilidade incompatível com esse tipo de família subsistia quase integralmente No século XVII constituiuse um equilíbrio entre as forças 232 centrífugas ou sociais e centrípetas ou familiares que não sobreviveria aos progressos da intimidade consequência talvez dos progressos técnicos Vimos nas páginas anteriores o despertar dessas forças centrípetas Observemos agora a resistência das forças centrífugas a sobrevivência de uma sociabilidade compacta Os historiadores já insistiram na manutenção até muito tarde no século XVII de relações de dependência que antes haviam sido negligenciadas A centralização monárquica de Richelieu e de Luís XIV foi mais política do que social Se ela conseguiu reduzir os poderes políticos rivais da coroa deixou intactas as influências sociais A sociedade do século XVII na França era uma sociedade de clientelas hierarquizadas em que os pequenos os particuliers se uniam aos maiores15 A formação desses grupos implicava toda uma rede de contatos quotidianos sensoriais Para nós isso se traduz em uma quantidade inimaginável de visitas conversas encontros e trocas O êxito material as convenções sociais e os divertimentos sempre coletivos não se distinguiam como hoje em atividades separadas assim como não existia separação entre a vida profissional a vida privada e a vida mundana ou social O essencial era manter as relações sociais com o conjunto do grupo onde se havia nascido e elevar a própria posição através de um uso hábil dessa rede de relações Ter êxito na vida não significava fazer fortuna ou obter uma situação ou ao menos isso era secundário significava antes de tudo obter uma posição mais honrosa em uma sociedade em que todos os membros se viam se ouviam e se encontravam quase todos os dias Quando o tradutor francês de Laurens Gracian16 1645 propõe que o futuro Herói escolha um emprego plausível ele não quer dizer com isso o que hoje chamaríamos de uma situação e sim um emprego que se execute às vistas de todo o mundo e para a satisfação de todos sempre com a preocupação da reputação A arte de fazer sucesso era a arte de ser agradável amável em sociedade Assim a concebia no século XVI o cortesão de Balthazar Castiglione17 Essa é na minha opinião a maneira de cortejar mais conveniente ao fidalgo que vive na corte dos príncipes através da qual ele pode servir perfeitamente em todas as questões razoáveis a fim de obter o favor daqueles e o elogio dos outros O futuro de um homem dependia unicamente da sua reputação Pareceme que há outra coisa que dá e tira a reputação é a eleição dos amigos com os quais se deve ter uma relação íntima Em toda a literatura do século XVII um lugar importante era reservado à amizade à amizade que era uma relação social mais intensa que as outras Daí a importância da conversação ainda segundo o Le Courtisan Gostaria ainda de ouvir falar particularmente sobre a maneira de viver e conviver com os homens e as mulheres coisa que me parece de grande importância visto que nas cortes a maior parte do 233 tempo é gasta nisso e não apenas nas cortes Toda a literatura dita de civilidade do século XVII insistiria na importância da conversação na necessidade de conhecer a arte da conversação na conduta durante a conversação etc Os conselhos desses manuais descem a detalhes incríveis18 Peçase também ao falar de muitas e diferentes maneiras e sobretudo no assunto de que se trata A conversação deve respeitar a conveniência Os assuntos domésticos familiares ou muito pessoais devem ser evitados Erram também aqueles que nunca têm nada na ponta da língua além de sua mulher seus filhinhos e sua ama Meu filhinho ontem me fez rir tanto Jamais vistes uma criança mais engraçadinha do que o meu menino Minha mulher tem isto e aquilo Devese evitar a mentira autoelogiosa era a época do Menteur de Corneille Ou ainda segundo a Civilité Nouvelle de 167119 Observareis como primeiro ensinamento jamais discutir ou falar sobre coisas frívolas entre pessoas importantes e doutas nem sobre questão ou assunto muito difícil entre pessoas que não possam entendêlos Não falei ao vosso grupo sobre coisas melancólicas como feridas enfermidades prisões processos guerra e morte o que é que sobrava Não conteis vossos sonhos Não digais vossa opinião a não ser que vola peçam mesmo que sejais o mais razoável Não vos intrometais em corrigir as imperfeições dos outros tanto mais que isso cabe aos pais mães e senhores Não faleis antes de ter pensado no que quereis dizer É preciso lembrar que essa arte da conversação não era uma arte menor como a dança ou o canto O Galatée esse livro de cabeceira do século XVII sobre o qual Sorel20 dizia que em algumas nações quando se vê um homem cometer alguma incivilidade dizse que ele não leu o Galatée21 deixa bem claro que a conversação é uma virtude Começarei por aquilo que julgo necessário aprender para que uma pessoa seja considerada bemeducada e agradavelmente fina ao conversar com as outras algo que no entanto é uma virtude ou muito se aproxima da virtude O Galatée era lido nos colégios jesuítas Em PortRoyal mais tarde Nicole se exprimiria da mesma forma em seu tratado De la civilité chrétienne22 Sendo portanto o amor dos homens tão necessário para nos manter somos naturalmente levados a procurálo e obtêlo Nós amamos ou fingimos amar os outros a fim de chamar sua atenção Este é o fundamento da civilidade humana que é apenas uma espécie de comércio do amorpróprio no qual tentamos atrair o amor dos outros demonstrandolhes afeição As boas maneiras são para a caridade o que os gestos devotos são para a devoção A solidez de sua união das gentes de bem não depende apenas desses laços espirituais mas também dessas outras coisas humanas que os preservam as boas maneiras e a arte de viver em sociedade Se uma pessoa vive em sociedade ela deve forjar as oportunidades e 234 fazerse amar pelos homens Esse estado de espírito não era novo remontava a uma concepção muito antiga da sociedade na qual as comunicações eram asseguradas menos pela escola do que pela prática pela aprendizagem na qual a escrita ainda não ocupava um lugar muito importante na vida quotidiana É notável que esse estado de espírito tenha subsistido em uma sociedade em que o desenvolvimento da escola indicava os progressos de uma mentalidade muito diferente Essa ambiguidade entre a sociabilidade tradicional e a escolarização moderna foi muito bem sentida pelos contemporâneos e sobretudo pelos educadores moralistas muitos dos quais se situavam nas vizinhanças de PortRoyal Quase todos esses moralistas se colocaram o problema de saber se a educação particular em casa valia mais do que a educação pública na escola Na verdade o problema era menos atual do que parece pois já havia sido discutido por Quintiliano o que lhe conferia a nobreza de um precedente Mas os educadores moralistas discutiram o problema em função de suas circunstâncias e de sua época Em LHonneste Garçon M de Grenaille23 expõe a questão da seguinte maneira Quanto a mim não desejo em absoluto ofender a antiguidade com opiniões modernas nem desaprovar a organização dos Colégios que tantos sábios aprovaram Ouso dizer ainda assim que os Colégios são mais Academias vantajosas para o público do que instituições necessárias aos particuliers os nobres particuliers ou seja a pequena nobreza por oposição aos grandes senhores Eles são um meio tanto para os pobres como para os ricos de adquirir esses tesouros do espírito que outrora só podia alcançar quem possuísse muitos bens Há várias crianças que não podendo manter mestres em casa se consideram muito afortunadas por se verem mantidas à custa do público e por receberem gratuitamente a ciência que outrora tinha de ser comprada Mas para aqueles a quem a fortuna e a natureza concederam todos os favores considero que a instituição particular é mais vantajosa do que a pública Essa opinião não é absolutamente nova embora pareça ousada A educação pública era desprezada porque se acreditava que as escolas estavam nas mãos dos pedantes essa opinião era difundida na literatura ao menos a partir de Montaigne e certamente também na opinião pública A grande evolução da escola não diminuiu o desprezo pelo mestre Havia outras razões para essa aversão à escola a disciplina escolar era demasiado severa O que diria M de Grenaille dos colégios religiosos e dos liceus do século XIX Assim como em casa não se dá uma liberdade excessiva às crianças porque elas nunca abandonam a companhia dos adultos não é preciso tolhêlas a ponto de lhes prejudicar a autoconfiança E M de Grenaille acrescenta este comentário que deixa entrever a nostalgia de um tempo em que as crianças 235 não eram separadas dos adultos Elas não são tratadas da mesma maneira que as outras A escola ou bem corria o risco de corromper a criança através das más companhias ou bem retardava sua maturidade afastandoa dos adultos e M de Grenaille considerava esse prolongamento da infância como um mal Mesmo que uma criança não fosse escandalizada por seus companheiros de escola ela sempre aprenderia na escola mil puerilidades que seria difícil desaprender e não seria menos difícil purificála das sujeiras do colégio do que preservála de seus vícios Enfim o principal defeito do colégio era o isolamento das crianças que as separava de seu meio social natural Ela precisa aprender cedo como se deve agir tanto em sociedade como no estudo e isso ela não pode aprender num lugar em que as pessoas pensam mais em viver com os mortos do que com os vivos ou seja mais com os livros do que com os homens Este era o verdadeiro motivo de toda essa crítica a repugnância que sentiam pela escola aqueles que permaneciam mais ou menos fiéis à antiga educação pela aprendizagem um tipo de educação que mergulhava imediatamente a criança na sociedade e encarregava a sociedade de treinála a desempenhar seu papel sem passar pela etapa intermediária da iniciação das sociedades formadas por classes de idades ou da escola nas sociedades técnicas modernas Essa seria ainda cerca de 20 anos mais tarde a opinião do Marechal de Caillière em La Fortune des gens de qualité et des gentilshommes particuliers 166124 Não basta conhecer a ciência ensinada no colégio há outra ciência que nos ensina como devemos nos servir daquela uma ciência que não fala nem grego nem latim mas que nos mostra como utilizar essas línguas Encontramola nos palácios entre os príncipes e os grandes senhores Ela escondese também nas ruelas de mulheres deleitase entre as gentes da guerra e não despreza os comerciantes os lavradores ou os artesões Ela tem por guia a prudência e como doutrinas as conversações e a experiência das coisas As conversações e o hábito da sociedade muitas vezes já formaram pessoas bemeducadas sem o recurso às Letras O mundo é um grande livro que está sempre nos instruindo e as conversações são estudos vivos que nada devem aos dos livros A convivência habitual de dois ou três espíritos inteligentes pode nos ser mais útil do que todos os pedantes das universidades juntos Eles produzem mais matéria em uma hora do que poderíamos ler em uma biblioteca em três dias A ação e a expressão da face têm algo de encantador que imprime intensamente aquilo que o discurso pretende infundir No fim do século XVII o abade Bordelon25 1692 ainda era da mesma opinião Instruí as crianças mais para o mundo do que pela escola O fruto de uma Bela Educação assim se chamava o seu livro não deveria nunca parecer 236 com este pedante Cet homme est un original Et sa doctrine est sans seconde Il a de Perse et Juvénal De Catulle et de Martial Une intelligence profonde Il entend tout hormi le monde Vemos portanto que ao longo de todo o século XVII existiu uma corrente de opinião hostil à escola Poderemos compreendêla melhor se nos lembrarmos o quanto a escola era um fenômeno recente Esses moralistas que haviam compreendido a importância da educação durante tanto tempo ignorada e ainda mal percebida por seus contemporâneos não perceberam bem o papel que a escola podia desempenhar e já havia desempenhado no treinamento das crianças Alguns especialmente os que eram ligados a PortRoyal tentaram conciliar os benefícios da escola que reconheciam com os da educação doméstica Em suas Règles de léducation des enfants26 de 1687 Coustel analisa o problema mais de perto e pesa os prós e os contras Se as crianças são criadas em casa os pais velam melhor por sua saúde essa também é uma preocupação nova e elas aprendem mais facilmente a civilidade através do convívio social Insensivelmente as crianças se formam nos deveres da vida civil e na maneira de agir das pessoas bemeducadas Mas há inconvenientes É difícil determinar a hora dos estudos pois a hora das refeições da qual dependem os estudos não pode ser fixada por causa dos negócios e das visitas que aparecem e que muitas vezes não se podem prever nem evitar É importante notar a frequência dessas visitas ao mesmo tempo cordiais e profissionais As crianças correm também o risco de ser demasiado mimadas pelos pais Enfim elas ficam expostas às complacências e bajulações dos criados aos discursos licenciosos e às tolices dos lacaios estranhos que nem sempre podem ser afastados delas Ah a temível promiscuidade dos criados mesmo os piores adversários da escola reconheciam que esse era um argumento poderoso em seu favor Assim De Grenaille admite que os pais são obrigados a enviar seus filhos aos colégios preferindo que eles fiquem em uma classe a permanecerem em uma cozinha27 Coustel reconhece aliás que a discussão é de caráter teórico pois em sua época todos os meninos eram enviados ao colégio O costume mais geralmente aceito na educação das crianças é colocálas em colégios Essas instituições têm suas vantagens as crianças fazem aí conhecimento e amizades vantajosas que 237 muitas vezes duram até o fim da vida Elas aproveitam também os benefícios da emulação As crianças adquirem aí a coragem louvável de falar em público sem empalidecer à vista dos homens o que é absolutamente necessário àqueles que devem assumir cargos importantes A educação particular acentua a timidez Observaremos que as vantagens reconhecidas dos colégios quase não se referiam ao nível de instrução elas permaneciam sociais civis como se diria na época Mas os colégios também tinham inconvenientes Sabemos que as classes eram muito numerosas muitas vezes contendo mais de 100 alunos Para Coustel a enorme multidão de alunos não é um obstáculo menor para seu avanço nos estudos do que para os bons costumes O que já sabemos sobre as classes superpovoadas e sobre a turbulência dos alunos nos permite compreender melhor as inquietações de Coustel Assim que põem os pés nesse tipo de lugar as criancinhas não tardam a perder a inocência a simplicidade e a modéstia que as tornavam tão amáveis a Deus como aos homens Havia uma solução que já fora entrevista por Erasmo Colocar cinco ou seis crianças com um ou dois homens de bem em uma casa particular Observamos que essa fórmula foi adotada em PortRoyal nas célebres pequenas escolas célebres ainda que efêmeras Encontramola também nas numerosas pensões particulares que seriam criadas no fim do século XVII e ao longo do século XVIII Com raras exceções os educadores moralistas são um tanto reticentes com relação ao colégio Um historiador que se contentasse com seu testemunho poderia deduzir legitimamente que a opinião pública era hostil às formas escolares de educação quando na realidade como vimos havia uma imensa procura de colégios todos superpovoados Os teóricos nem sempre fornecem o melhor reflexo de sua época Contudo essa oposição não era aberrante ela pode ser explicada pela importância que a aprendizagem e o convívio social ainda conservavam apesar dos progressos da escolarização Na vida de todos os dias as pessoas souberam melhor do que nos escritos dos educadores moralistas conciliar a escola e a civilidade A primeira não baniu a segunda Ao lado da educação através da escola subsistiu uma educação através do mundo que também se aperfeiçoou durante o século XVII Nós nos deteremos neste ponto por um momento A palavra civil era quase sinônimo de nosso social moderno um ser civil era um ser social A palavra civilidade corresponderia aproximadamente ao que hoje entenderíamos por conhecimento da sociedade mas a correspondência já é menos perfeita De fato nos séculos XVI e XVII a civilidade era a soma dos conhecimentos práticos necessários para se viver em sociedade e que não se 238 aprendia na escola Sob o nome mais antigo de courtoisie a civilidade já existia em uma época em que a escolaridade era reservada unicamente aos clérigos As origens da literatura sobre a civilidade tal como existiu do século XVI ao XVII sem grandes mudanças são bastante complexas Elas se ligam a três gêneros muito antigos Primeiro aos tratados de cortesia propriamente dita Muitos desses tratados foram redigidos nos séculos XIV e XV em francês inglês italiano e mesmo em latim Dirigiamse a todos a clérigos como a leigos aos que liam latim como aos que só falavam as línguas vulgares Em Zinquanta Cortesie da Tavola28 podemos ler La prima è questa le Benedicite La cortesia secunda deves lavar as mãos La terzia cortesia espera para te sentares até que te convidem A décima terceira aquele que serve à mesa deve estar limpo e não deve escarrar nem fazer outra sujeira diante dos convivas Em francês havia o livro Comment se tenir à table em latim Stans puer ad mensam Esses livros dirigiamse às crianças e aos jovens Em inglês esses tratados eram designados sob o nome de Babees Books29 ensinavam a falar corretamente a cumprimentar a dobrar o joelho diante do senhor a não se sentar sem ter sido convidado a responder às perguntas Corta as unhas com frequência e lava as mãos antes do jantar Quando tirares uma porção de comida da boca não a recoloques mais no prato Não limpes os dentes com a ponta da faca Não coces as mãos nem os braços Não escarres quando estiveres à mesa Não enroles a toalha Mantém diante de ti teu prato limpo Não cochiles à mesa Presta atenção para não arrotares Esses conselhos práticos em geral eram ritmados em versos de má qualidade Na Idade Média eles se dirigiam também às mulheres O Roman de la Rose é em parte um tratado de cortesia recomenda às mulheres o uso de uma espécie de corpete sem barbatanas de osso ou metal dálhes conselhos sobre a toalete os cuidados íntimos e a limpeza da casa de Vênus que devia ser mantida raspada Mais tarde os tratados de civilidade não mencionariam mais as mulheres como se seu papel se tivesse enfraquecido no final da Idade Média e início dos tempos modernos A segunda fonte dos tratados de civilidade foram as regras de moral comum contidas em uma coletânea de adágios latinos atribuída na Idade Média a Catão o Antigo os dísticos de Catão O Roman de la Rose citaos como uma referência Esta é também a opinião de Catão se te lembras de seu livro Os dísticos de Catão foram lidos durante vários séculos e ainda eram reeditados no século XVIII30 Eles ensinavam o leitor a conter a própria língua a desconfiar das mulheres inclusive a própria a não contar com heranças a não temer a morte a não se preocupar se alguém do grupo falasse em voz baixa e nesse caso não imaginar que se estava falando da própria pessoa a dar um ofício aos filhos a 239 moderar a cólera contra os servidores a esconder os próprios erros pois a dissimulação valia mais do que a má reputação a não praticar a advinhação e a feitiçaria não falar dos próprios sonhos nem se preocupar com eles escolher bem sua mulher evitar a gula sobretudo quando esta acompanhava o vergonhoso desejo de amor não zombar dos velhos evitar ser um marido complacente etc Esses conselhos se ligavam ao que hoje consideraríamos uma moral de extrema banalidade um conformismo social ou um bom senso grosseiro o que se deve e o que não se deve fazer em todas as áreas nas relações de um homem com sua mulher seus criados seus amigos bem como na conversação ou na conduta à mesa tudo misturado e no mesmo nível Nada disso parece muito importante segundo nossa ótica moderna Mas nesses conselhos em que vemos a pressão de convenções sociais triviais nossos ancestrais reconheciam os mandamentos da vida em comum guardiães dos verdadeiros valores A terceira fonte dos tratados de civilidade foram as artes de agradar ou as artes de amar a Ars amatoria de Ovídio o De Amore de André le Chapelain os Documenti damore de Francisco de Barberini e os manuais de amor do século XVI O Roman de la Rose é um modelo do gênero Ele ensina que se deve evitar o ciúme que o marido não é senhor de sua mulher isso mudaria mais tarde que o amante deve instruirse nas ciências e nas artes de agradar à sua amiga que não deve repreendêla procura ler suas cartas ou surpreender seus segredos De maneira geral ensina que também se deve fugir à vilania que não se deve maldizer que se deve fazer saudações e responder a elas não dizer grosserias evitar o orgulho ser bem apessoado e elegante alegre e contente generoso e que se deve colocar o coração em um único lugar São receitas para ganhar a simpatia das mulheres e de todos os companheiros de uma vida em que nunca se estava sozinho mas sempre no meio de uma sociedade numerosa e exigente Os tratados de cortesia as regras de moral e as artes de amar concorriam para um mesmo resultado iniciar o rapaz e às vezes a dama na vida em sociedade a única conveniente fora dos claustros uma vida em que tudo tanto as coisas sérias como os jogos se passava através dos contatos humanos e das conversações No século XVI essa literatura medieval complexa e farta iria transformarse e simplificarse Dela se originariam dois gêneros próximos no fundo mas diferentes na forma as civilidades e os cortesãos ou tratados sobre a arte de fazer sucesso na vida O primeiro manual de civilidade foi o de Erasmo que fundou o gênero Todos os manuais posteriores e houve muitos nele se inspiraram ou o imitaram servilmente Os nomes mais notáveis talvez sejam os de Cordier Antoine de 240 Courtin e finalmente JeanBaptiste de La Salle cujas Règles de la bienséance et de la civilité chrétienne seriam reeditadas um número infinito de vezes no século XVIII e até mesmo no início do século XIX O tratado de civilidade não era um livro escolar mas satisfazia uma necessidade de educação mais rigorosa do que a mixórdia dos antigos livros de cortesia ou dos ensinamentos do pseudoCatão As circunstâncias os progressos da escolarização fizeram com que embora estranho à escola e transmitindo regras de conduta não escolares e mal escolarizáveis o manual de civilidade fosse associado ao ensino das crianças pequenas a suas primeiras lições de leitura e escrita Aprendiase a ler e a escrever nesses manuais de civilidade Por isso mesmo eles eram impressos em vários caracteres todos os caracteres conhecidos de uma técnica tipográfica bastante complicada havia caracteres romanos itálicos e góticos mas havia também caracteres manuscritos que eram impressos apenas nesse tipo de livro e por isso eram chamados de caracteres de civilidade Essa destinação pedagógica dava aos manuais de civilidade uma apresentação tipográfica pitoresca Algumas vezes também o texto era impresso em várias línguas em colunas verticais cada uma em um tipo diferente francês e latim mas também italiano espanhol e alemão jamais o inglês língua de pequena audiência e pouco valor cultural na época Os manuais ensinavam as línguas vivas que não eram lecionadas no colégio No entanto esses livros não se destinavam apenas às crianças O manual de Antoine de Courtin dirigiase não apenas às pessoas que têm filhos mas também àquelas que embora de idade avançada não foram contudo instruídas na polidez e na decência o suficiente para poder observálas em sociedade31 A leitora do quadro de Grimoux do museu dos Augustins de Tolouse já é uma mocinha podemos distinguir muito bem os caracteres de civilidade do livro que ela segura Os assuntos tratados nem sempre pertenciam à literatura infantil muitas vezes eram assuntos adultos conselhos sobre como tratar a mulher e os criados ou sobre como envelhecer sabiamente Encontramos aí ao mesmo tempo elementos de conduta infantil e conselhos morais que hoje julgaríamos inacessíveis às crianças Isso se explica pelas origens dos manuais de civilidade que eram em suma registros dos costumes da aprendizagem ainda muito influenciados pelos hábitos de uma época em que não se dosava a matéria transmitida às crianças e em que estas eram logo completamente mergulhadas na sociedade tudo lhes era dado desde o início As crianças misturavamse imediatamente aos adultos Já nos referimos muitas vezes a esses manuais de civilidade Um deles o Galatée teve um público extraordinário durante a primeira metade do século XVII Os jesuítas o haviam adotado uma edição de 1617 foi especialmente dedicada aos internos da Companhia de Jesus em La Flèche e aos internos do colégio da mesma 241 Companhia em PontàMousson32 Aos internos como não era um livro escolar o Galatée não se dirigia aos alunos externos Le Galatée originalmente composto em italiano por J de La Case e traduzido para o francês o latim o alemão e o espanhol é descrito como um tratado muito necessário para bem treinar a juventude em todas as maneiras e modos de agir louváveis bem recebidos e aprovados por pessoas de boa educação e grande virtude e próprios para aqueles que gostam não apenas da língua latina mas também das línguas vulgares que hoje são as mais apreciadas Assim como os outros manuais o Galatée ensina as boas maneiras e como as pessoas se devem comportar em sociedade Como dissemos é um manual de conversação Ele ensina que pôr publicamente a mão em alguma parte do corpo não é louvável da mesma forma como os puer stans ad mensam do século XV condenavam o hábito de se coçar em sociedade Uma pessoa não deve se vestir ou despir em público para fazer suas necessidades naturais nem se lavar ostensivamente logo depois nem mostrar as porcarias do caminho nem mandar os outros cheirarem coisas fedorentas Deve evitar ofender os sentidos dos outros ranger os dentes assobiar soluçar ou esfregar pedras ou pedaços de ferro um no outro outro manual recomenda não estalar os ossos e não fazer muito barulho ao tossir ou espirrar Devese evitar bocejar ficar de boca aberta ou ficar olhando para o lenço Reencontramos aqui os antigos preceitos da conduta à mesa que conservaram toda a sua importância até o fim do século XVIII a refeição continuava a ser um rito social o que praticamente deixou de ser hoje em que o papel de cada pessoa era minuciosamente definido e no qual era preciso prestar uma atenção especial à própria conduta não comer muito depressa não pôr os cotovelos sobre a mesa não palitar os dentes não cuspir tanto quanto possível e se fosse absolutamente necessário fazêlo de alguma forma discreta O Galetée ensina também como se vestir Um homem deve aproximarse o mais possível da maneira de vestir dos outros cidadãos e deixarse guiar pelo costume Qualquer singularidade nesse campo como em qualquer outro é um pecado de lesasociedade Devese sempre ceder ao desejo do grupo sem jamais impor o seu próprio não pedir papel para escrever ou reclamar o urinol quando as carnes estiverem prontas para servir e as mãos lavadas Não se deve ser nem tímido nem familiar nem melancólico Devese sempre manter a dignidade com os criados alguns soberbos estão sempre repreendendo seus criados e mantendo toda a família em perpétuo rebuliço e na rua onde o passo não deve ser nem precipitado nem muito lento e onde nunca se deve olhar fixamente para os passantes Do século XVI ao XVIII as edições dos tratados de civilidade bastante 242 semelhantes se sucederam O de JB de La Salle chamado Règles de la bienséance et de la civilité chrétienne obteve tanto sucesso no século XVIII como os de Erasmo e de Cordier ou o Galatée nos séculos XVI e XVII O fato de um educador devoto fundador de um instituto educacional cheio de responsabilidades e preocupações ter tido o trabalho de redigir um manual que trata como os manuais anteriores das boas maneiras do traje do penteado da conduta à mesa etc é uma prova da importância que se atribuía a assuntos que hoje se tornaram triviais Sem dúvida esses livros destinavamse a uma população rústica e brutal e a disciplina das boas maneiras era então mais necessária do que em nossas sociedades atuais em que as pessoas estão mais submetidas a todos os tipos de autoridades públicas e controles policiais o Estado tomou o lugar das boas maneiras no treinamento do indivíduo desde a escola até o tráfego das ruas e o serviço militar Outrora as pessoas tinham também o sentimento de que não existiam coisas sem importância na vida em sociedade de tal forma o próprio fato da comunicação social era essencial em si Por essa razão nada havia de surpreendente no fato de JB de La Salle o cônego de Reims redigir cuidadosamente os conselhos tradicionais dos tratados de civilidade As pessoas devem sobretudo cuidar para que não haja piolhos pulgas e outras pragas nem mau cheiro essa precaução e esse cuidado são muito importantes com relação às crianças Há um longo discurso sobre a maneira de escarrar É vergonhoso parecer ter as mãos pretas e sujas isso só é tolerável no caso de trabalhadores ou camponeses Quando alguém sente necessidade de urinar deve sempre se retirar para um lugar bem afastado e a conveniência manda até mesmo às crianças que todas as outras necessidades naturais que se possa ter sejam feitas apenas em lugares onde não se possa ser visto Não é decente desferir golpes com as mãos ao brincar com alguém Não se deve sacudir os pés nem mexêlos por brincadeira nem mesmo as crianças nem cruzar um sobre o outro O leitor é também aconselhado sobre a maneira de se vestir Não é decoroso que um menino seja vestido como um homem nem que o traje de um rapaz seja mais enfeitado do que o de um velho E é claro há um longo capítulo sobre a maneira de cortar e servir as carnes de preparar a mesa de servir e tirar a mesa função especialmente reservada às crianças e aos jovens O grande número de manuais de civilidade suas reedições e adaptações de Erasmo a JB de La Salle e outros provamnos que a escola ainda não tinha monopolizado todas as funções de transmissão do conhecimento As pessoas ainda se importavam muito com essas boas maneiras que alguns séculos antes haviam constituído o essencial da aprendizagem A conduta doce a harmoniosa das crianças escreveria um pedagogo do século XVII33 dá mais crédito a uma escola 243 do que uma instrução sólida porque ela mostra a todos que a criança foi instruída embora talvez tenha aprendido pouca coisa já que as boas maneiras são a parte principal da educação Ainda no início do século XVII usavase a expressão saber o Courtisan da mesma forma como se dizia a propósito de um homem que ele havia lido o Galatée34 O Courtisan de Balthazar de Castiglione criou um gênero assim como Erasmo fixou o modelo típico dos tratados de civilidade o gênero das artes de agradar e ter sucesso na vida Esse gênero distinguiase do da civilidade porque não parava nos primeiros elementos das boas maneiras Os bons pedagogos ensinam não apenas as letras às criancinhas mas também os bons costumes e as maneiras decentes ensinamnas a comer a beber a falar e a caminhar com certos gestos convenientes Havia contudo uma parte comum às civilidades e aos cortesãos ou seja à literatura que deles se originou ambos os gêneros traduziam uma forma de agradar à sociedade de ser bemsucedido e de progredir graças à utilização oportuna das cortes e da sociedade mundana Mas este se tornou o tema essencial do Courtisan ou de livros como Le Héros do espanhol Laurens Gracien traduzido para o francês de LHonnête Homme de Faret e de toda uma literatura que foi estudada por D Mornet35 Podemos reduzir esse tema a duas noções essenciais a ambição e a reputação A ambição era considerada como um valor Ninguém devia contentarse com sua condição e ao contrário deviase sempre pensar em elevála Essa preocupação com a ascensão não era vista como uma fonte de prazer e bemestar mas como um ideal que exigia disciplina severa e vontade inquebrantável um ideal heróico no qual reconhecemos o espírito do Renascimento Esse ideal persistiria até meados do século XVII Ele se exprime ingenuamente em um trecho de LHonneste Garçon36 Seu autor M de Grenaille conhecia a importância da nobreza Eu preferiria que o honneste garçon o menino bemeducado nascesse em uma casa nobre Não é verdade que os fidalgos possuem naturalmente não sei que ar de majestade que faz com que sejam respeitados mesmo em sua ruína As crianças da nobreza parecem comandar até mesmo na sujeição enquanto os plebeus que às vezes comandam parecem receber ordens ao dálas E no entanto essa concepção de uma ordem originária do nascimento é acompanhada de uma outra concepção social igualmente importante no pensamento do autor segundo a qual a nobreza é uma qualidade divina que alimenta a coragem e a virtude e não uma honra vã e essa qualidade é adquirida através da virtude ou do renome e aumenta graças a uma ambição generosa O menino bemeducado elevará os títulos de sua casa Se tiver nascido um simples fidalgo desejará ser Barão se for Marquês tentará ser Conde Enfim fará com que os direitos que a natureza lhe deu avancem tanto 244 quanto a Fortuna o permitir Aqueles que oriundos de uma família honorável se virem donos de uma fortuna muito pequena ou medíocre deverão esforçarse para se elevar com arte e para conquistar a natureza com engenho Vemos mais pessoas de extração baixa tornaremse grandes do que grandes se manterem no mesmo estado É que os últimos algumas vezes negligenciam tudo enquanto os primeiros não negligenciam nada E Grenaille admira essas ascenções corajosas o menino bemeducado deverá saber que sua nobreza será mais honrosa se for adquirida por mérito do que se tiver sido obtida por herança Texto curioso significativo do valor moral atribuído à ambição Como realizar essa elevação Havia apenas um meio o renome a reputação A competência intelectual e técnica e o valor moral não eram considerados não porque fossem desprezados mas porque estavam incluídos na aprovação que consagrava um homem como célebre e amável Essa aprovação porém devia ser sempre alimentada por novos feitos e novas habilidades Renovar a grandeza fazer renascer a reputação e ressuscitar o aplauso37 O sucesso só podia ser obtido graças ao favor dos grandes e à amizade dos pares Para obtêlos um homem deveria ousar lançar mão mesmo de riquezas iníquias e não devia hesitar em dissimular defeitos e simular qualidades A dissimulação era permitida O homem cuja paixão trabalha apenas em prol do renome tu que aspiras à grandeza deixa todos os homens te conhecerem mas que nenhum te compreenda Graças a essa arte o medíocre parecerá grande o grande infinito e o infinito maior ainda A virtude38 escreve Faret em LHonnête Homme é tão essencialmente o objetivo de todos aqueles que desejam obter consideração na corte que embora aí se disfarcem e se degradem todos tentam dar a impressão de que a possuem em toda a sua pureza Isso era explicável Um homem que só fale com o cortesão uma vez na vida partirá satisfeito com este e dirá a seu respeito coisas que jamais diria se houvesse visto o fundo de sua alma39 Para obter o amor das pessoas era preciso ter tato a alma de toda qualidade bela a vida de toda perfeição Voltamos aqui à civilidade às boas maneiras à arte de viver em sociedade Sem ele a melhor execução morre e a maior perfeição tornase repugnante40 Na segunda metade do século XVII os gêneros originários da civilidade de Erasmo e do cortesão de Castiglione sofreriam algumas modificações significativas O ideal renascentista de ambição e de elevação desaparece ao mesmo tempo em que o cortesão é substituído pelo honnête homme e a corte pela sociedade Não era mais de bomtom aspirar muito abertamente à fortuna e ao prestígio 245 Havia surgido um novo ideal que foi cultivado pelo Chevalier Méré em toda a sua obra a busca da média medida da mediocridade ilustre Essa concepção não diminuía o peso das influências sociais mas também não lhes conferia mais o mesmo valor moral As boas maneiras continuaram a ser tão necessárias como antes mas pouco a pouco se esvaziaram de seu conteúdo moral e deixaram de ser uma virtude Isso era apenas o início ainda mal perceptível de uma evolução que se precipitaria nos séculos XVIII e XIX a sociabilidade coerente do Ancien Régime se reduziria a uma mundanidade mais frágil e menos rica Contudo durante a segunda metade do século XVII essa evolução mal começava a ser sugerida e a sociabilidade embora se tornasse menos heroica e menos exemplar permanecia bastante densa e forte Os tratados de civilidade como dissemos durante muito tempo foram descrições de boas maneiras que se dirigiam tanto às crianças como aos adultos na medida em que ambos os grupos não as houvessem ainda aprendido Assim como seus modelos antigos da Idade Média eles explicavam como um homem bem educado se devia conduzir e lembravam os costumes estabelecidos que outrora não eram redigidos mas nem por isso eram menos respeitados ou sinceros Na segunda metade do século XVII as civilidades mantinham seu aspecto tradicional mas reservavam um lugar cada vez maior aos conselhos educativos e às recomendações dirigidas apenas às crianças excluindo os adultos como por exemplo recomendações relativas ao comportamento dos escolares Em um manual pueril e honesto para a instrução das crianças de 176141 havia um capítulo inteiro sobre a maneira pela qual a criança se deve comportar na escola Esse manual inspiravase no de Cordier que era mestreescola e em seus diálogos escolares Ele ensinava que a criança devia tirar o chapéu ao entrar na escola tanto por reverência ao mestre como para saudar os companheiros A criança não deveria mudar de lugar e sim permanecer naquele indicado pelo mestre Não incomodeis vossos companheiros empurrando um e batendo em outro Não sejais tão descortês e pouco prestativo a ponto de recusar a vossos companheiros em caso de necessidade tinta penas ou qualquer outra coisa que eles possam terse esquecido de trazer Não converseis na escola É uma prova de espírito maldoso demonstrar alegria quando alguém é repreendido ou castigado Não se tratava apenas de iniciar a criança nos hábitos dos adultos que outrora elas aprendiam unicamente através da experiência da aprendizagem o tratado de civilidade agora prestava mais atenção à vida escolar adaptavase a ela e a prolongava Isso era uma consequência do desenvolvimento da escola e da particularização da infância que adquiriu uma importância cada vez maior nos manuais de civilidade em detrimento dos adultos 246 A Civilité nouvelle de 167142 já era algo como um tratado de educação para os pais o que não acontecia com os manuais de civilidade tradicionais concebidos como simples registros de costumes estabelecidos Ela aconselhava como fazer para corrigir as crianças em que idade se devia começar a ensinarlhes as letras e assim por diante A criança deverá repetir em casa o que tiver aprendido na escola ou no colégio ou então deverá aprender em casa o que tiver de recitar diretamente diante do mestre À noite os pais deveriam proceder a um exame de consciência Se a criança se tiver portado como um homem será lavada e acariciada Se tiver cometido algumas faltas leves os adultos a corrigirão ralhando caçoando dela ou inflingindolhe alguma pena leve e fácil de suportar Se tiver praticado alguma ação do tipo das que se aproximam do crime como a blasfêmia o roubo ou a mentira ou tiver proferido algum insulto ou injúria grosseira contra uma criada ou criado ou tiver sido desobediente demonstrando teimosia e arrogância será surrada com uma vara A seguir a criança dirá boanoite a seus pais e mestres e irá fazer suas necessidades Finalmente depois de se despir deitarseá na cama para dormir sem se distrair com conversas e sem contar histórias ou bobagens ninguém dormia sozinho Ela deverá deitarse de forma a ficar bem e decentemente acomodada e toda coberta não dormirá nem de bruços nem de costas mas de lado conselho de higiene medieval não dormirá sem camisa tanto por questões de decoro como para poder encontrar facilmente suas roupas em todas as circunstâncias que possam ocorrer Mas mesmo o quadro ampliado dos tratados de civilidade tradicionais pareceu demasiado estreito para atender às novas preocupações educativas Surgiram então especialmente no círculo ligado a PortRoyal verdadeiros tratados práticos de educação apresentados sob a forma de conselhos aos pais o De léducation chrétienne des enfants de Varet43 em 1666 e as Règles de léducation des enfants de Coustel44 em 1687 Embora essas obras contivessem capítulos sobre as boas maneiras na conversação ou à mesa que pareciam extraídos dos tratados de civilidade tradicionais elas foram escritas com um espírito diferente de aconselhamento dos pais Tratavam também da escolha do ofício e dos problemas delicados da escolha da escola tratavam dos mestres das leituras proscreviam os romances esses venenos da alma dos jogos e dos métodos pedagógicos Adaptaivos sempre tanto quanto puderdes à sua fraqueza e à sua pequenez falando tatibitate com elas para ajudálas a aprender suas pequenas lições Ao lado portanto dos conselhos aos pais havia também conselhos aos mestres Esses conselhos incitavam os pais a se portar bem diante das crianças a lhes dar bom exemplo a vigiar suas amizades e a lhes dar algum emprego conforme seus planos com relação a elas a fim de não as deixar viver vergonhosamente à toa evitando 247 assim aborrecimentos relativos ao estabelecimento dos filhos45 Estamos longe como vemos dos manuais de civilidade tradicionais pois não se trata mais de registrar os hábitos dos adultos para as crianças ou outros adultos ignorantes e sim de instruir a própria família sobre seus deveres e suas responsabilidades e de aconselhála em sua conduta com relação às crianças A diferença entre a civilidade de Erasmo e os tratados de educação de Coustel e de Varet dá a medida da distância entre a família do fim do século XV ainda ligada aos hábitos medievais de aprendizagem em casas estranhas e a família da segunda metade do século XVII já organizada em torno das crianças Contudo esses traços quase modernos da educação familiar não diminuíram o sucesso dos tratados de civilidade tradicionais pois a concentração da família em torno das crianças ainda não se opunha aos antigos hábitos de sociabilidade os próprios educadores reconheciam que o comércio do mundo continuava a ser essencial Já que tudo dependia das relações sociais podemos nos perguntar onde as pessoas se encontravam Muitos traços antigos se mantinham frequentemente elas ainda se encontravam fora na rua Não apenas ao acaso pois as cidades eram pequenas e pouco espalhadas mas também porque algumas ruas ou praças eram passeios onde em certas horas uma pessoa podia encontrar os amigos como acontece hoje nas cidades mediterrânicas O burburinho do Corso ou da Piazza Major agitava praças hoje desertas ou atravessadas por transeuntes que se desconhecem mesmo quando passeiam Para o turista de hoje é difícil reconhecer a praça Bellecour em Lyon nesta descrição fornecida por um viajante italiano em 1664 o abade Locatelli46 Homens e mulheres passeavam de braços dados segurandose uns aos outros como se segura uma criança Uma mulher deu o braço a dois homens um homem deu o braço a duas mulheres Pouco acostumado a essas maneiras o abade vinha de Bolonha onde as pessoas deviam ser mais reservadas do que em Lyon pensemos que havíamos entrado em um bordel Observei como todos estavam alegres e na entrada do passeio vios daremse os braços que mantinham dobrados como a alça de uma cesta e assim eles passeavam A surpresa desse bolonhês do século XVII diante dessa população risonha de braços dados é a mesma que sentimos hoje quando nos misturamos às multidões italianas As pessoas encontravamse na rua mas onde se reuniam Na França do século XIX e ainda hoje os homens ao menos reúnemse nos cafés A civilização francesa contemporânea tornase ininteligível se não reconhecemos a importância do café ele é o único ponto de encontro acessível a qualquer momento regular 248 como um hábito O equivalente inglês é a public house o pub A sociedade dos séculos XVI e XVII era uma sociedade sem cafés ou pubs a taberna era um lugar de má fama reservado aos jovens arruaceiros às prostitutas aos soldados aos escolares errantes aos mendigos e aos aventureiros de toda sorte as pessoas de bem não a frequentavam qualquer que fosse sua condição Não havia outros lugares públicos além das casas particulares ou ao menos algumas delas as grandes casas rurais ou urbanas47 O que entendemos nós por grandes casas De fato algo muito diferente do sentido que hoje daríamos à mesma expressão seu significado era exatamente o contrário Hoje dizse que uma casa é grande com relação ao seu povoamento Uma casa grande é sempre uma casa pouco habitada Assim que a densidade aumenta as pessoas começam a sentirse apertadas e a casa não é mais tão grande como antes No século XVII e também nos séculos XV e XVI uma casa grande era sempre muito povoada muito mais do que as casas pequenas Essa observação extremamente importante decorre de todos os trabalhos sobre a densidade populacional realizados pelos historiadores demográficos Existe um estudo sobre a população de AixenProvence no fim do século XVII48 realizado com base no registro de capitação de 1695 Sob a luz dessa análise percebese um contraste bastante nítido entre os bairros pobres e densos e os bairros ricos e menos povoados os primeiros possuíam casas pequenas e pouco habitadas e os segundos casas grandes cheias de gente Algumas casas abrigavam 3 ou menos de 3 habitantes enquanto outras continham 31 pessoas 2 patrões 6 crianças e 17 empregados ou 17 pessoas 2 patrões 8 crianças 7 empregados Essa oposição não é específica do século XVII ou da Provença Um artigo recente sobre Carpentras em meados do século XV produz a mesma impressão49 Vinte e três famílias de homens ricos e importantes reuniam 177 pessoas ou seja 77 pessoas por casa 174 da população viviam em casas que abrigavam mais de 8 pessoas Um nobre mantinha 25 pessoas em sua casa O arquiteto da catedral vivia entre 14 comensais É delicado tirar conclusões desses dados a respeito do índice de natalidade Por outro lado eles revelam com bastante clareza que as casas dos ricos abrigavam além da família propriamente dita toda uma multidão de criados empregados clérigos caixeiros aprendizes auxiliares etc Isso aconteceu do século XV ao XVII em quase toda a Europa ocidental Essas casas eram grandes casas mesmo quando não tinham o nome de hôtel e possuíam vários aposentos por andar e várias janelas dando para a rua o pátio ou o jardim Sozinhas elas formavam um verdadeiro grupo social Ao lado dessas grandes casas muito povoadas havia casas minúsculas que abrigavam apenas um casal e sem dúvida algumas de suas crianças as mais novas Na cidade essas casas eram 249 como as que existem ainda hoje nos bairros antigos como uma ou duas janelas por andar Segundo Paul Masson50 parece que a casa de duas janelas surgiu em Marselha como um aperfeiçoamento da casa de uma só janela Os apartamentos em cada andar são formados por dois cômodos um dando para a rua e o outro dando para um espaço estreito que separa o fundo da casa das casas da rua vizinha Muitas vezes aliás as duas janelas iluminavam apenas um cômodo Portanto essas habitações urbanas possuíam apenas uma ou duas peças No campo as casas pequenas não eram maiores e quando havia dois cômodos um era reservado aos animais Evidentemente tratavase de abrigos para o repouso e às vezes nem sempre para a refeição Essas casas pequenas e pobres não preenchiam nenhuma função social Elas não podiam nem mesmo servir de lar para a família A gravidade da crise habitacional dos anos 1950 forneceunos algumas informações sobre o efeito da habitação sobre a família Sem dúvida as pessoas eram menos sensíveis à promiscuidade durante o Ancien Régime Mas é preciso haver um espaço mínimo sem o qual a vida familiar se torna impossível e o sentimento da família descrito ao longo deste estudo não pode nem se formar nem se desenvolver Vemonos no direito de concluir que essas pessoas pobres e mal alojadas sentiam um amor banal por suas criancinhas essa forma elementar do sentimento da infância mas ignoravam as formas mais complicadas e mais modernas do sentimento da família Eram sempre como na Idade Média famílias silenciosas silenciosas porque elementares É certo que os jovens deviam deixar muito cedo esses cômodos únicos que hoje chamaríamos de cortiços quer para emigrar para outros cortiços dois irmãos juntos ou marido e mulher quer para viver na casa grande dos ricos como aprendizes criados ou empregados Nessas casas grandes nem palácios nem sempre hôtels ou mansões casas rurais ou casas urbanas ocupando apenas um andar de um imóvel encontramos o meio cultural do sentimento da infância e da família Foi nelas que recolhemos todas as observações que constituem a matéria deste livro A primeira família moderna foi a família desses homens ricos e importantes É ela que vemos representada na rica iconografia familiar de meados do século XVII nas gravuras de Abraham Bosse nos retratos de Philippe de Champaigne e nas cenas dos pintores holandeses Foi para ela que os moralistas educadores escreveram seus tratados e que os colégios se multiplicaram Para essa família ou seja para todos o grupo que ela formava e que compreendia além da família conjugal não outros parentes pois esse tipo de família patriarcal devia ser muito raro no máximo talvez um irmão solteiro mas uma clientela de servidores amigos e protegidos A casa grande desempenhava uma função pública Nessa sociedade sem cafés sem public houses ela era o único lugar onde os amigos clientes parentes e 250 protegidos se podiam encontrar e conversar Aos servidores clérigos e empregados que aí residiam permanentemente é preciso acrescentar a vaga incessante de visitantes Estes últimos não deviam preocuparse com a hora e nunca eram despachados pois os educadores do século XVII achavam que a frequência e a hora das visitas impedia um horário regular especialmente para as refeições e consideravam essa irregularidade bastante funesta para a formação das crianças para legitimar o hábito de enviálas ao colégio a despeito dos inconvenientes morais e da promiscuidade escolar As idas e vindas constantes dos visitantes distraíam as crianças de seu trabalho Em suma as visitas davam a impressão de ser uma verdadeira ocupação que comandava a vida da casa e ditava até mesmo as horas das refeições Essas visitas não eram apenas de amizade ou mundanas eram também profissionais Mas elas eram muito mal distinguidas umas das outras Os clientes do cartório durante muito tempo também foram os amigos do notário e também seus devedores Não havia locais profissionais nem para o juiz nem para o comerciante nem para o banqueiro nem para o negociante Tudo se passava nos mesmos cômodos em que eles viviam com sua família Esses cômodos porém não eram mais especializados do ponto de vista doméstico do que profissional Eles se comunicavam entre si e as casas mais ricas eram formadas no andar nobre de galerias e salas enfileiradas Nos outros andares os cômodos eram menores mas igualmente dependentes uns dos outros Nenhum deles tinha uma destinação precisa com exceção da cozinha e ainda assim muitas vezes se cozinhava na lareira da maior sala As instalações da cozinha na cidade e nas casas médias não permitiam muitos refinamentos e quando havia convidados compravamse pratos feitos no vendedor de assados das redondezas Quando Hortensius o preceptor de Francion quis receber um grupo de amigos disse a seu criado seu homem de confiança Vai dizer a meu compadre dono da taberna que me mande do seu melhor vinho moscatel e um assado Ora ele assim o fez porque sendo já bastante tarde e vendo que os últimos a chegar haviam trazido um tocador de viola imaginou que seria preciso dar de comer a todas as pessoas que havia em seu quarto Francion saiu com o criado Em casa do dono da taberna não encontramos nada que nos agradasse e pegamos apenas o vinho Decidimos ir até o vendedor de assados do Petit Pont O criado comprou um capão e como quisesse ainda um lombo de boi foi procurar em todos os vendedores de assados para ver se encontrava um bom Viviase em salas onde se fazia de tudo Nelas se comia por exemplo mas não em mesas especiais a famosa mesa de jantar não existia Na hora das refeições armavamse mesas sobre cavaletes dobráveis que eram cobertas com uma toalha 251 como se pode ver nas gravuras de Abraham Bosse Em meados do século XV o arquiteto humanista Alberti51 muito laudator temporis acti recordava os hábitos de sua juventude Quando éramos jovens a mulher mandava para o marido um pequeno cantil de vinho e alguma coisa de comer junto com o pão ela jantava em casa e os homens no ateliê Não devemos entendêlo ao pé da letra pois esse hábito ainda era frequente em várias casas de artesãos e camponeses na época em que ele escrevia essas linhas Mas ele opunha esse costume simples ao costume urbano de sua época A mesa posta duas vezes por dia como para um banquete solene Na realidade tratavase de uma mesa desmontável como o era grande parte do mobiliário no início do século XVII52 Nessas mesmas salas onde se comia também se dormia se dançava se trabalhava e se recebiam visitas As gravuras mostramnos a cama ao lado de um aparador equipado com uma baixela de metal trabalhado ou no canto da sala onde as pessoas estão comendo Um quadro de P Codde de 163653 representa um baile no fundo da sala onde dançam os mascarados vêse uma cama com as cortinas fechadas Durante muito tempo as camas também foram desmontáveis Cabia aos pajens ou aos aprendizes armálas quando necessário O autor do Chastel de joyeuse destinée felicita os jovens habituados à moda da França54 Ces gens français servaient tout promptement Et dreçaient litz tant bien proprement Que ce métait grant esbaissement Ainda no início do século XVII Héroard55 anotava em seu diário em 12 de março de 1606 Já vestido ele o futuro Luís XIII ajudou a desmontar sua cama Ou em 14 de março de 1606 Levado aos aposentos da Rainha foi colocado no quarto do Rei ausente em campanha e ajudou a trazer a armação de sua cama sob as vistas da Rainha Mme de Montglat mandou colocar aí também sua cama para nela dormir Em 8 de setembro de 1608 pouco antes da partida para SaintGermain ele se distraiu desmontando pessoalmente sua cama impaciente para partir No entanto nessa época as camas já se haviam tornado menos móveis Alberti em suas lamentações sobre os bons e velhos tempos já observava Lembrome de ter visto nossos cidadãos mais notáveis quando iam para o campo mandarem levar suas camas e utensílios de cozinha que traziam de volta em seu regresso Hoje a mobília de um único quarto é maior e mais cara do que antigamente o era a de toda a casa no dia de núpcias56 Sem dúvida essa transformação da cama desmontável em um móvel permanente marcou um progresso de intimidade Logo a seguir a cama ornamentada e envolta em cortinas 252 foi utilizada pelos artistas para ilustrar os temas da vida privada o quarto onde se reúnem os recémcasados onde a mãe dá à luz onde morrem os velhos e também onde meditam os solitários Contudo o cômodo onde ficava a cama nem por isso era um quarto de dormir Continuava a ser um lugar público Consequentemente era preciso colocar cortinas em torno da cama cortinas que se abriam ou fechavam à vontade para defender a intimidade de seus ocupantes Pois raramente as pessoas dormiam sozinhas dormiase com a própria mulher é claro mas também com outras pessoas do mesmo sexo Como a cama era independente do quarto em que ficava e constituía por si só um pequeno reduto podia haver muitas camas em um mesmo cômodo em geral nos seus quatro cantos BussyRabutin conta57 que um dia durante uma campanha uma moça aterrorizada pelos soldados pediulhe proteção e hospitalidade Finalmente eu disse à minha gente que lhes desse uma das quatro camas que havia em meu quarto É fácil imaginar a promiscuidade em que as pessoas viviam nessas salas onde era impossível se isolar que era preciso atravessar para chegar aos outros cômodos onde dormiam vários casais ou vários grupos de meninos ou meninas sem contar os servidores que ao menos alguns deviam dormir perto dos patrões e armar as camas ainda desmontáveis dentro do quarto ou atrás da porta onde todos se reuniam para fazer as refeições receber os amigos ou clientes e às vezes distribuir esmolas aos mendigos Compreendemos então por que nos censos os hôtels as casas abastadas eram sempre mais povoadas do que os pequenos apartamentos de um ou dois cômodos dos pobres Devemos considerar essas famílias nas quais entretanto já surgia o sentimento moderno da família não como refúgios contra a invasão do mundo mas como os núcleos de uma sociedade os centros de uma vida social muito densa Em torno delas estabeleciamse círculos concêntricos de relações progressivamente mais frouxos em direção à periferia círculos de parentes de amigos de clientes de protegidos de devedores etc No centro dessa rede complexa figurava o grupo residente das crianças e dos servidores Os progressos do sentimento da infância através dos séculos XVI e XVII e a desconfiança dos moralistas com relação aos criados ainda não haviam conseguido dissociálo Ele era como que a alma viva e barulhenta da casa grande Numerosas gravuras mostramnos as crianças misturadas com os criados eles também quase sempre muito jovens Há por exemplo uma ilustração de Lagniet de um livro de provérbios em que um pequeno criado brinca com uma criança da casa que mal começa a andar58 Essa mesma familiaridade deve ter existido nas casas dos artesãos e dos lavradores com seus aprendizes ou jovens criados Não 253 havia uma grande diferença de idade entre as crianças da casa e os criados que eram admitidos muito jovens e alguns dos quais eram irmãos de leite dos membros da família O Book of Common Prayer de 1549 afirmava que era obrigação dos chefes de família cuidar da instrução religiosa de todas as crianças da casa ou seja de todas as children servants and prentices Os servidores e os aprendizes eram assimilados às crianças da família Eles brincavam juntos de brincadeiras de criança Ainda há pouco o lacaio do abade brincando de cachorrinho com a amável Jacqueline a deixou cair no chão quebrando seu braço e deslocando seu pulso Os gritos que ela deu foram horríveis diz Mme de Sévigné que parece achar tudo isso bastante divertido59 Ainda no século XVII os filhos de família continuavam a desempenhar funções domésticas que os aproximavam do mundo dos servidores eram especialmente encarregados do serviço da mesa Cortavam as carnes traziam os inúmeros pratos do serviço à francesa hoje desaparecido e que consistia em apresentar vários pratos ao mesmo tempo como em um bufê e serviam a bebida levando ou enchendo os copos Até o fim do século XVIII os manuais de civilidade consagravam um capítulo importante à maneira de servir à mesa enquanto as cenas de gênero frequentemente mostravam crianças desempenhando essa função60 A noção de serviço ainda não se havia degradado O fato de estar na dependência de outrem ainda não tinha assumido o caráter humilhante que adquiriu depois Quase sempre uma pessoa pertencia a alguém As artes de agradar dos séculos XVI e XVII do tipo do Courtisan aconselhavam o fidalgo particulier ou seja subalterno a escolher bem seu senhor e a conseguir obter seu favor A sociedade ainda se apresentava como uma rede de dependências Daí uma certa dificuldade em separar os serviços honrosos dos serviços mercenários reservados à baixa criadagem essa dificuldade ainda persistia no século XVII embora a partir de então os servidores fossem assimilados às camadas desprezíveis dos trabalhadores manuais Restava ainda entre os senhores e os servidores alguma coisa que não se reduzia nem à observação de um contrato nem à exploração de um patrão um laço existencial que não excluía a brutalidade de uns e a astúcia de outros mas que resultava de uma comunidade de vida quase integral Observemos os termos empregados pelos moralistas para designar os deveres do pai de família Os deveres de um bom pai de família reduzemse a três pontos principais o primeiro consiste em aprender a controlar sua mulher O segundo em bem educar seus filhos e o terceiro em bem governar seus criados 61 Salomão dános a esse respeito um conselho muito judicioso que encerra todos os deveres de um senhor para com seus servidores Há três coisas diz ele que não lhes devem faltar São elas pão trabalho e reprimendas Pão porque é de seu direito trabalho 254 porque este é seu quinhão reprimendas e castigos porque este é nosso interesse Se todos os servidores fossem honestamente alimentados e pagos com exatidão encontrarseiam muito poucos de conduta irregular Mas não se pagava aos criados um salário como hoje Vejamos o que diz Coustel62 os pais pródigos colocamse na impossibilidade de recompensar seus criados de satisfazer seus credores ou de ajudar os pobres como é seu dever Ou ainda Bordelon63 Entre os criados e os senhores há deveres recíprocos Por seus serviços e por sua submissão dailhes compaixão e recompensas Não se pagava ao servidor dava selhe uma recompensa as relações eram menos de justiça do que de proteção e piedade o mesmo sentimento que se tinha pelas crianças Ninguém o exprimiu melhor do que Dom Quixote quando ao despertar considera Sancho ainda adormecido Dormes não tens preocupações O cuidado de tua pessoa submetesteo aos meus ombros é um fardo que a natureza e o costume impuseram àqueles que têm criados O criado dorme enquanto o senhor vela pensando em como alimentálo melhorálo e fazerlhe bem O medo de uma colheita ruim etc nunca aflige o criado e sim o senhor que durante a esterilidade e a fome deve sustentar aquele que o serviu durante a fertilidade e a abundância64 A familiaridade que essa relação pessoal de dependência acarretava aparece ainda nas comédias de Molière na linguagem das criadas e criados quando estes falam com seus senhores Nessas salas sem destinação especial onde se comia dormia e recebia os criados nunca se separavam de seus senhores em Les Caquets de laccouchée a criada se misturava na conversa com naturalidade Isso acontecia nas casas burguesas mas também na alta nobreza Como a Princesa de Condé conta Mme de Sévigné65 se tivesse afeiçoado há algum tempo a um de seus lacaios chamado Duval este foi louco o bastante para demonstrar impaciência diante da boa vontade que ela manifestava também para com o jovem Rabutin que havia sido seu pajem Eles tiveram uma briga na frente da princesa Rabutin empunhou a espada para castigálo Duval tirou também a sua e a Princesa pondose entre os dois para separálos foi levemente ferida no colo Essa familiaridade é certo começava a desaparecer entre os adultos e os moralistas mais preocupados com os bons tratos dos servidores aconselhavam também a maior reserva possível diante deles Falai pouco com vossos criados66 Mas a antiga familiaridade subsistia entre os criados e as crianças ou os jovens Desde seus primeiros anos as crianças haviam brincado com os pequenos lacaios alguns dos quais lhe eram mais pessoalmente ligados e algumas vezes os serviam nos colégios uma verdadeira camaradagem podia formarse entre eles Conhecemos os criados de Molière e o criado do Menteur de Corneille Mas um criado de comédia esquecido o de Les Ecoliers de Larivey exprime o sentimento 255 que tinha por seu senhor com uma emoção mais verdadeira Fui criado com ele e amoo mais do que qualquer outro vivente Há muito tempo já sabemos pelos historiadores que o Rei nunca ficava sozinho A densidade social proibia o isolamento e aqueles que se conseguiam fechar em um quarto por algum tempo eram vistos como figuras excepcionais relações entre pares relações entre pessoas da mesma condição mas dependentes umas das outras relações entre senhores e criados estas relações de todas as horas e de todos os dias jamais deixavam um homem sozinho Essa sociabilidade durante muito tempo se havia oposto à formação do sentimento familiar pois não havia intimidade O desenvolvimento nos séculos XVI e XVII de uma relação afetiva nova ou ao menos consciente entre os pais e os filhos não a destruiu Essa consciência da infância e da família no sentido em que falamos de consciência de classe postulava zonas de intimidade física e moral que não existiam antes Contudo nessa época ela se combinou com uma promiscuidade permanente A conjunção de uma sociabilidade tradicional e de uma consciência nova da família seria encontrada apenas em algumas famílias famílias abastadas rurais ou urbanas nobres ou plebéias camponesas ou artesãs As casas desses homens abastados tornaramse centros de vida social em torno das quais gravitava todo um pequeno mundo complexo e numeroso Esse equilíbrio entre a família e a sociedade não iria resistir à evolução dos costumes e aos novos progressos da intimidade No século XVIII a família começou a manter a sociedade a distância a confinála a um espaço limitado aquém de uma zona cada vez mais extensa de vida particular A organização da casa passou a corresponder a essa nova preocupação de defesa contra o mundo Era já a casa moderna que assegurava a independência dos cômodos fazendoos abrir para um corredor de acesso Mesmo quando os cômodos se comunicavam não se era mais forçado a atravessálos para passar de um ao outro Já se disse que o conforto data dessa época ele nasceu ao mesmo tempo que a intimidade a discrição e o isolamento e foi uma das manifestações desses fenômenos Não havia mais camas por toda a parte As camas eram reservadas ao quarto de dormir mobiliado de cada lado da alcova com armários e nichos onde se expunha um novo equipamento de toalete e de higiene Na França e na Itália a palavra chambre tendeu a se opor à palavra salle antes eram quase sinônimas a chambre designava o cômodo onde se dormia e a salle o cômodo onde se recebia ou se comia o salon e a salle à manger a caméra e a sala da pranza Na Inglaterra a palavra room continuou a ser utilizada em todos os casos mas foi especificado através de um prefixo diningroom bed room etc Essa especialização dos cômodos da habitação surgida inicialmente entre a 256 burguesia e a nobreza foi certamente uma das maiores mudanças da vida quotidiana Correspondeu a uma necessidade nova de isolamento Nesses interiores mais fechados os criados não saíam mais das áreas separadas que lhes eram determinadas a não ser nas casas dos príncipes de sangue onde persistiam os antigos hábitos Sébastien Mercier registrou como uma inovação recente o hábito de as damas chamarem as criadas com campainhas As campainhas eram então montadas de forma a que se pudesse acionálas a distância antes elas mal eram capazes de chamar a atenção no próprio cômodo onde soavam Nada poderia ser mais característico dessa nova necessidade de manter os criados a distância e também de se defender contra os intrusos No fim do século XVIII não se usava mais ir à casa de um amigo ou sócio a qualquer hora sem prevenir As pessoas ou se visitavam nos dias de recepção ou enviavamse reciprocamente cartões através dos criados O correio também se encarrega das visitas67 A caixa de correspondência entrega os cartões e nada é mais fácil ninguém é visível todos têm a decência de fechar sua porta As novas maneiras propunham abandonar aquilo que antes era a ocupação mais natural o meio de fazer avançar os negócios e de conservar a posição e os amigos Outrora viviase em público e em representação e tudo era feito oralmente através da conversação Agora separavase melhor a vida mundana a vida profissional e a vida privada a cada uma era determinado um local apropriado como o quarto o gabinete ou o salão O uso do cartão e do dia marcado não era um fenômeno isolado Ele pertencia a todo um código novo de maneiras que substituiu a antiga bienséance a antiga etiqueta Esta recebeu o nome moderno de polidez e orientouse no mesmo sentido de proteção da liberdade e da intimidade individual ou familiar contra a pressão social As antigas boas maneiras eram uma arte de viver em público e em representação A nova polidez obrigava à discrição e ao respeito pela intimidade alheia A ênfase moral deslocarase Sébastien Mercier notou muito bem essa mudança O tom do século abreviou muito as cerimônias e hoje praticamente só os provincianos são homens cerimoniosos As refeições também foram encurtadas A refeição é mais curta e não é à mesa que se pode discutir em liberdade ou contar histórias engraçadas é na sala onde as pessoas se recolhem no drawingroom Não se tem mais pressa em beber não se atormenta mais os convivas para lhes provar que se sabe receber os amigos Não se pede mais aos convidados que cantem os concertos em volta da mesa ainda coberta de frutas dos séculos XVI e XVII Hoje se renunciou a esses hábitos tolos e ridículos tão familiares a nossos ancestrais infelizes prosélitos de uma tradição embaraçosa e aborrecida a que eles chamavam correta Nem um minuto de descanso discutia se cerimoniosamente antes e durante a refeição com uma teimosia pedante e os 257 entendidos em cerimônia aplaudiam esses combates pueris De todos os costumes antigos e triviais o de saudar quando alguém espirra é o único que ainda subsiste em nossos dias Deixemos que o sapateiro e o alfaiate se deem o abraço cerimonioso verdadeiro ou falso que ainda era comum entre a boa sociedade há quarenta anos Hoje é apenas na casa do pequenoburguês é engraçado o emprego da expressão que se usam cerimônias fastidiosas e maneiras inúteis e eternas que ele ainda considera marcas de civilidade e que fatigam sobremaneira as pessoas habituadas à boa sociedade A reorganização da casa e a reforma dos costumes deixaram um espaço maior para a intimidade que foi preenchida por uma família reduzida aos pais e às crianças da qual se excluíam os criados os clientes e os amigos As cartas do General de Martange escritas à sua mulher entre 1760 e 1780 permitemnos avaliar os progressos de um sentimento da família que se havia despojado de todo arcaísmo e tornado idêntico ao do século XIX e início do século XX A família deixara de ser silenciosa tornarase tagarela e invadira a correspondência das pessoas bem como sem dúvida suas conversas e preocupações68 As antigas formas de tratamento como Madame desapareceram Martange tratava sua mulher por minha querida mamãe ou minha querida amiga minha querida criança minha querida menina O marido dava à mulher o mesmo nome pelo qual a chamavam as crianças mamãe Suas cartas estão cheias de detalhes sobre as crianças sua saúde e sua conduta As crianças são designadas por diminutivos familiares Minette e Coco O uso mais difundido do diminutivo e do apelido correspondia a uma familiaridade maior e sobretudo a uma necessidade de as pessoas se chamarem de uma forma diferente dos estranhos de sublinhar por uma espécie de linguagem iniciática a solidariedade dos pais e dos filhos e a distância que os separava de todos os demais Enquanto estava afastado o pai se mantinha a par dos pequenos detalhes da vida quotidiana que era levada muito a sério Ele esperava as cartas de casa com impaciência Peçote minha boa menina que me escrevas a toda hora duas palavras apenas Ralha um pouco peçote com Mlle Minette pela pouca atenção que ela teve até agora de me escrever Ele falava da alegria de seu encontro próximo com a família Anseio por me encontrar contigo em nosso pobre lar e gostaria de não ter nenhuma outra preocupação além de arrumar teu quarto e tornar nossa estada cômoda e agradável Vemos aqui já o gosto moderno pela intimidade que opõe a casa objeto de fervorosa manutenção ao mundo exterior Nessa correspondência as questões de saúde e de higiene ocupam um lugar importante Até então as pessoas preocupavamse com as doenças graves mas não demonstravam essa solicitude constante não se inquietavam com um resfriado 258 ou uma pequena afecção passageira A vida física não tinha tanta importância Ficaria extremamente infeliz se não tivesse notícias de tua saúde e da de minhas filhinhas Embora o que me dizes sobre a pouca saúde de que tu e minhas pobres filhas gozam não seja tão consolador como o desejaria o coração de um pai Não estou muito tranquilo com o que me informas sobre a falta de apetite e as dores de nosso menino Gostaria de te recomendar minha filha querida que tivesses à mão tanto para ele como para Xavière um pouco de mel de Narbonne e que não deixes de esfregálo em suas gengivas quando eles sentirem dores Eram as emoções dos pais no momento dos primeiros dentes elas poderiam ter interessado algumas mulheres do tempo de Mme de Sévigné mas não teriam recebido a honra de um lugar na correspondência de um oficial General O resfriado de minhas duas filhas me preocupa Mas pareceme que enfim o tempo melhorou esta manhã Discutiase sobre a vacina antivariólica como hoje se discute sobre o BCG Deixote inteiramente responsável pela inoculação de Xavière e quanto mais cedo melhor já que todo o mundo está satisfeito com a inoculação Ele aconselha a mulher a beber água de Sedlitz e os sais do mesmo nome limonada e ainda a misturar na água um pouco de vinagre ou aguardente para prevenir o contágio das epidemias Uma de suas filhas casouse na Alemanha Numa carta à sua querida e terna mamãe de 14 de janeiro de 1781 a moça explica seu longo silêncio Primeiro os dois menores passaram dois meses com coqueluche a tal ponto violenta que sempre que tossiam ficavam roxos e o sangue saía de suas narinas aos borbotões Depois dessa doença a pequena a caçula e Xavière tiveram as febres mais fortes possíveis Os médicos haviam condenado Xavière Esta pobre criança sofreu tudo o que é possível sofrer No entanto conseguiram salvála Graças ao Ser Supremo todos três me foram devolvidos Ninguém ousaria então consolarse da perda de uma criança com a esperança de ter uma outra como ainda se confessava um século antes Esse pequeno ser era insubstituível e sua perda irreparável E a mãe encontrava sua alegria no meio de seus filhos que não mais pertenciam a um meio intermediário entre o não ser e o ser A companhia de meus filhos é minha única delícia Observamos aqui ao vivo a relação entre os progressos do sentimento da infância e os progressos da higiene entre a preocupação com a criança e a preocupação com a saúde outra forma dos laços que uniam as atitudes diante da vida às atitudes diante da morte Cuidavase muito também da educação das crianças e reconheciase sua importância Acima de tudo recomendote não perder um minuto na educação das crianças dobra ou triplica as lições diárias sobretudo para ensinálas a ter boa postura a andar e a comer persistência da antiga civilidade As três crianças 259 tinham um preceptor Que as três crianças façam bom proveito e que as duas meninas sobretudo aprendam a manter boa postura e a andar Se M H souber fazer com que sejam graciosas poderá se gabar de ser um mestre hábil Martange tinha problemas de dinheiro e temia suas consequências A dor de não poder darlhes a educação que desejo fezme passar por momentos cruéis de reflexão Quaisquer que fossem as circunstâncias era preciso não economizar a paga dos mestres Estamos longe aqui das lamentações dos moralistas dos anos 1660 que se queixavam de as pessoas não pagarem aos mestres por não se darem conta da importância de sua missão Se não tivesse mais nada venderia minha última camisa para ver meus filhos no mesmo nível que as outras crianças de sua idade e de sua condição Eles não devem vir ao mundo para nos humilhar com sua ignorância ou seu comportamento Não penso em mais nada minha querida amiga além de refazer minha fortuna para assegurar a felicidade deles Mas se eles quiserem fazer a minha terão de se aplicar e aproveitar o tempo Martange preocupavase na época em que seus filhos foram vacinados pois o tempo gasto na inoculação seria perdido para os mestres Aproveita a estada na cidade para darlhes um pouco da educação que meus dissabores de fortuna até hoje nos impediram de lhes oferecer A saúde e a educação a partir dessa época seriam essas as duas principais preocupações dos pais Não podemos deixar de nos surpreender com o tom extremamente moderno dessa correspondência Apesar dos dois séculos que nos separam dela ela está mais próxima de nós do que de Mme de Sévigné que vivera apenas um século antes Em Mme de Sévigné ao lado da solicitude natural de uma boa avó o que aparece acima de tudo em todos os momentos de sua vida é uma curiosidade divertida pelas fantasias da infância aquilo a que chamei acima primeiro sentimento da infância a paparicação Esse sentimento está quase inteiramente ausente em Martange Ele leva tudo muito a sério É já a gravidade do século XIX aplicada tanto às pequenas coisas como às grandes a gravidade vitoriana No século XVII quando não era objeto de distração a criança era o instrumento de uma especulação matrimonial e profissional destinada a promover um avanço da família na sociedade Em Martange essa preocupação passa para o segundo plano sua preocupação com a educação parece muito mais desinteressada As crianças tal como são e a família tal como é com suas dores e alegrias quotidianas emergiram de uma rotina elementar para atingir as zonas mais luminosas da consciência Esse grupo de pais e filhos felizes com sua solidão estranhos ao resto da sociedade não é mais a família do século XVII aberta para o mundo invasor dos amigos clientes e servidores é a família moderna Uma das marcas mais características dessa família é a preocupação de 260 igualdade entre os filhos Vimos que os moralistas do século XVII defendiam muito timidamente essa igualdade sobretudo porque o favorecimento dos privilegiados fazia com que os mais moços corressem o risco de falsas vocações religiosas mas também porque eles estavam adiantados para sua época e pressentiam as condições futuras da vida familiar Ao lêlos vimos como eles tinham a consciência de estar contrariando a opinião comum Mas de agora em diante a partir do fim do século XVIII a desigualdade entre os filhos de uma mesma família seria considerada uma injustiça intolerável Foram os costumes e não o código civil ou a Revolução que suprimiram o direito de primogenitura As famílias francesas o recusaram quando os ultras da Revolução o restauraram inspirados numa nova concepção da família que eles erroneamente atribuíam ao Ancien Régime Em 20 famílias abastadas escreveu Villèle a Polignac em 31 de outubro de 182469 mal haverá uma onde se ponha em prática a faculdade de beneficiar o filho mais velho ou qualquer outro Os laços da subordinação estão de tal forma frouxos em toda a parte que dentro da família o pai se crê obrigado a agradar aos filhos Entre o fim da Idade Média e os séculos XVI e XVII a criança havia conquistado um lugar junto de seus pais lugar este a que não poderia ter aspirado no tempo em que o costume mandava que fosse confiada a estranhos Essa volta das crianças ao lar foi um grande acontecimento ela deu à família do século XVII sua principal característica que a distinguiu das famílias medievais A criança tornouse um elemento indispensável da vida quotidiana e os adultos passaram a se preocupar com sua educação carreira e futuro Ela não era ainda o pivô de todo o sistema mas tornarase uma personagem muito mais consistente Essa família do século XVII entretanto não era a família moderna distinguiase desta pela enorme massa de sociabilidade que conservava Onde ela existia ou seja nas grandes casas ela era um centro de relações sociais a capital de uma pequena sociedade complexa e hierarquizada comandada pelo chefe de família A família moderna ao contrário separase do mundo e opõe à sociedade o grupo solitário dos pais e filhos Toda a energia do grupo é consumida na promoção das crianças cada uma em particular e sem nenhuma ambição coletiva as crianças mais do que a família Essa evolução da família medieval para a família do século XVII e para a família moderna durante muito tempo se limitou aos nobres aos burgueses aos artesãos e aos lavradores ricos Ainda no início do século XIX uma grande parte da população a mais pobre e mais numerosa vivia como as famílias medievais com as crianças afastadas da casa dos pais O sentimento da casa do chez soi do home não existia para eles O sentimento da casa é uma outra face do sentimento 261 da família A partir do século XVIII e até nossos dias o sentimento da família modificouse muito pouco Ele permaneceu o mesmo que observamos nas burguesias rurais ou urbanas do século XVIII Por outro lado ele se estendeu cada vez mais a outras camadas sociais Na Inglaterra do fim do século XVIII Ashton constatou os progressos da vida familiar Os trabalhadores agrícolas tenderam a se instalar em uma casa própria em lugar de morar na casa de seus empregadores e o declínio da aprendizagem na indústria têxtil permitiu casamentos mais precoces e famílias mais numerosas70 O casamento tardio a precocidade do trabalho os problemas habitacionais a mobilidade do estágio do auxiliar junto ao mestre a persistência das tradições de aprendizagem todos esses fatores constituíram obstáculos ao modo ideal de vida familiar burguesa obstáculos que a evolução dos costumes pouco a pouco removeria A vida familiar estendeuse a quase toda a sociedade a tal ponto que as pessoas se esqueceram de sua origem aristrocrática e burguesa71 262 1 A Relation of the Island of England Camden Society 1897 p XIV citado em The Babees Books publicados por F J Furnivall Londres 1868 2 G Duby op cit p 425 3 C de Robillard de Beaurepaire Instruction publique en Normandie 1872 3 vols Ch Clerval Les Ecoles de Chartres au Moyen Age 1895 4 MS Bibl Imp 1181 anc 7938 fol 7 vº In Furnivall Frederick James The Basees Book London N Trübner Co 60 Paternoster Row 1868 Se quiseres ser um bom servidor Deves temer e amar teu mestre Deves comer sem te sentares à mesa N T Segue sempre a boa companhia Quer seja a de um secular clérigo ou padre N T Para bem servilo E se quiseres merecer seu amor Deves deixar toda a tua vontade Para servir a teu mestre de bom grado Se servires a um mestre que tenha mulher Burguesa senhorita ou senhora Deves sempre guardar sua honra E se servires a um clérigo ou padre Cuidado para não seres um criadoamo Se fores secretário Deves sempre guardar os segredos Se servires a um juiz ou a um advogado Não contes nenhum caso novo E se porventura te acontecer Servires a um Duque Príncipe ou Conde Marquês Barão ou Visconde Ou outro senhor de terras Não inventes impostos e subsídios E não tomes para ti os bens do povo Se servires a um fidalgo na guerra Não roubes ninguém E sempre em qualquer casa Ou a qualquer mestre a quem sirvas Faz se puderes por merecer A graça e o amor de teu mestre A fim de que possas ser mestre Quando chegar o tempo Mas esforçate para aprender um bom ofício Pois para praticar tua vida Deves aplicar nela todo o teu coração Assim fazendo poderás ser E te tornar de criado mestre E poderás te fazer servir E merecer prêmios e honras E finalmente obter A salvação de tua alma N T 5 Lécole des veneurs Ms Bibliothèque Nationale 6 Conrad Manuel museu de Berna 7 Museu de Grenoble 8 Pe de Dainville Effectif des collèges Populations 1955 pp 455483 9 G Duby op cit 10 Varet De léducation des enfants 1661 11 Coustel Règles de léducation des enfants 1687 12 Goussault Portrait dun honnête homme 1692 13 J Fourcassié Villèle 1954 14 H Ferté Les Grades universitaires dans lancienne faculté des arts 1868 15 A Adam Histoire de la litérature française au XVIIe siècle t I 1948 II 1951 R Mousnier Soulèvements populaires avant la Fronde Rev Hist mod et cont 1958 pp 81 113 16 LHéros de Laurens Grancien fidalgo aragonês 1645 17 Balthazar Castiglione Le Courtisan trad francesa de G Chappuys 1585 18 G Della Casa Galatée tradução francesa de Hamel 1666 19 La Civilité nouvelle 1671 263 20 Citado por M Magendie La Politesse mondaine au XVIIe siècle 1925 21 Cf nota 18 deste capítulo 22 Nicole De la civilité chrétienne in Essais de morale 1773 t II p 116 23 De Grenaille LHonneste Garçon 1642 24 Maréchal de Caillière La Fortune des gens de qualité 1661 25 Bordelon La Belle Éducation 1694 Este homem é um original E sua doutrina não tem igual De Pérsio e Juvenal De Catulo e Marcial Ele possui um conhecimento profundo Ele entende de tudo menos do mundo NT 26 C Coustel Règles de léducation des enfants 1687 27 De Grenaille op cit 28 Fra Bonvenisco Ripa Zinquanta Cortesie a Tavola circa 1922 29 Babees Books op cit 30 PseudoCatão Disticha de moribus 31 A de Courtin Nouveau Traité de la civilité qui se pratique en France 1671 32 Bienséance de la conversation entre les hommes PontàMousson 1617 33 F Watson The English Grammar Schools to 1606 1907 34 Charles Sorel 35 D Mornet Histoire de la littérature classique 1940 e M Magendie op cit 36 De Grenaille op cit 37 Laurens Gracien op cit 38 N Faret LHonnête Homme 39 Bardin Le Lycée 16321634 2 vols 40 Laurens Gracien op cit 41 La Civilité puérile et honneste pour linstruction des enfants 1761 42 Cf nota 19 deste capítulo 43 Varet De léducation chrétienne des enfants 1666 44 Coustel op cit 45 Ibid 46 Locatelli Relation de voyage en 1664 org por W Blunt The Adventures of an Italian Priest Londres 1956 47 No entanto Lagniet em seus Proverbes representa uma taberna em que a presença de uma criança não parece deslocada 48 J Carrière La Population dAixProvence à la fin du XVIIe siècle Annales de la Faculté des Lettres dAixenProvence 1958 49 R H Bautier Feux Population et structure sociale au milieu du XVe siècle Annales E S 1959 pp 255268 50 Paul Masson citado por J Carrière op cit 51 P H Michel La Pensée de L B Alberti 1930 52 P du Colombier Style Henri IV et Louis XIII 1941 p 49 53 P Codde reproduzido em Berndt 187 54 Jardin de Plaisance ed Droz e Piaget p 93 Esses jovens franceses serviam prontamente E armavam as camas tão bem Que me causavam grande espanto NT 264 55 Héroard Journal de lenfance de Louis XIII op cit 56 P H Michel op cit 57 BussyRabutin Mémoires 1704 3 vol 58 Lagniet em Proverbes 59 Mme de Sévigné Lettres 19 de agosto de 1671 60 Helmont 16231679 Criança servindo à mesa in Berndt no 365 61 De Gérard Entretiens I p 153 62 Coustel op cit 63 Bordelon op cit 64 Cervantes Dom Quixote parte II cap 20 65 Mme de Sévigné Lettres 23 de janeiro de 1671 66 Bordelon op cit 67 Sébastian Mercier Les Tableaux de Paris ed Desnoiteres p 194 68 Correspondance inédite du général de Martange 15761782 ed Breard 1898 69 Fourcassié Villèle 1954 70 J Ashton La Révolution industrielle p 173 71 H Bergues Ph Ariès E Hélin L Henry M Riquet A Sauvy J Sutter La Prévention des naissances dans la famille ses origines dans les temps moderns Institut National dEtudes Démographiques Cahier no 35 1960 Cf também R Prigent Renouveau des idées sur la famille INED no 18 1954 265 O CONCLUSÃO Família e Sociabilidade historiador que examina os documentos iconográficos com a preocupação de neles encontrar esse frêmito de vida que ele próprio experimenta em sua própria existência fica espantado com a raridade ao menos até o século XVI das cenas de interior e de família Tem de descobrilas com o auxílio de uma lupa e interpretálas com o reforço de hipóteses Por outro lado ele depara imediatamente com a principal personagem de todas essas imagens uma personagem tão essencial quanto o coro no teatro antigo a multidão não a multidão maciça e anônima de nossas cidades superpovoadas mas a assembleia na rua ou nos lugares públicos como as igrejas de vizinhos matronas e crianças numerosos mas não estranhos uns aos outros uma miscelânea bastante parecida com a que hoje anima os souks das cidades árabes ou as cours das cidades mediterrânicas na hora do passeio noturno É como se todos tivessem saído de casa em vez de ficar dentro dela há cenas de ruas e de mercados de jogos e de ofícios de armas ou de aulas de igrejas ou de suplícios Na rua nos campos no exterior em público no meio de uma coletividade numerosa era aí que se tendia a situar naturalmente os acontecimentos ou as pessoas que se desejava retratar Gradualmente surgiria a ideia de isolar os retratos individuais ou familiares Mas a importância que atribuímos nestas páginas a essas tentativas não nos deve enganar sobre o quanto elas foram raras e tímidas no princípio Por muito tempo até o século XVII época em que a iconografia da família se tornou extremamente rica o essencial continuaria a ser a representação da vida exterior e pública Essa impressão geral que surpreende o historiador no momento de seu contato com os documentos iconográficos corresponde a uma profunda realidade A vida no passado até o século XVII era vivida em público apresentamos vários exemplos desse domínio da sociedade As cerimônias tradicionais que acompanhavam o casamento e que eram consideradas mais importantes do que as cerimônias religiosas como a bênção do leito nupcial a visita dos convidados aos recém casados já deitados as brincadeiras durante a noite de núpcias etc são mais uma prova do direito da sociedade sobre a intimidade do casal Por que haveria alguma objeção se na realidade não existia quase nenhuma intimidade se as pessoas 266 viviam misturadas umas com as outras senhores e criados crianças e adultos em casas permanentemente abertas às indiscrições dos visitantes A densidade social não deixava lugar para a família Não que a família não existisse como realidade vivida seria paradoxal contestála Mas ela não existia como sentimento ou como valor Assistimos ao nascimento e ao desenvolvimento desse sentimento da família desde o século XV até o século XVIII Vimos como até o século XVIII ele não havia destruído a antiga sociabilidade é verdade que ele se limitava às classes abastadas a dos homens ricos e importantes do campo ou da cidade da aristocracia ou da burguesia artesão ou comerciantes A partir do século XVIII ele estendeuse a todas as camadas e impôsse tiranicamente às consciências Muitas vezes apresentouse a evolução dos últimos séculos como o triunfo do individualismo sobre as obrigações sociais entre as quais figurava a família Mas onde está o individualismo das vidas modernas em que toda a energia do casal é orientada para servir aos interesses de uma posteridade deliberadamente reduzida Não haveria mais individualismo na alegre indiferença dos prolíficos pais de família do Ancien Régime É claro que a família moderna não possui mais a mesma realidade material da época do Ancien Régime quando ela se confundia com um patrimônio e uma reputação Exceto em casos cuja importância vem diminuindo o problema da transmissão da riqueza vem depois do problema do bem dos filhos e esse bem não é mais necessariamente considerado como fidelidade a uma tradição profissional A família tornouse uma sociedade fechada onde seus membros gostam de permanecer e que é evocada com prazer como o fazia o General de Martange em suas cartas no final do século XVIII Toda a evolução de nossos costumes contemporâneos tornase incompreensível se desprezamos esse prodigioso crescimento do sentimento da família Não foi o individualismo que triunfou foi a família Mas essa família estendeuse à medida que a sociabilidade se retraiu É como se a família moderna tivesse substituído as antigas relações sociais desaparecidas para permitir ao homem escapar a uma insustentável solidão moral A partir do século XVIII as pessoas começaram a se defender contra uma sociedade cujo convívio constante até então havia sido a fonte da educação da reputação e da fortuna Daí em diante um movimento visceral destruiria as antigas relações entre senhores e criados grandes e pequenos amigos ou clientes Esse movimento foi retardado em certos casos pelas inércias do isolamento geográfico ou social Ele seria mais rápido em Paris do que em outras cidades mais rápido entre as burguesias do que nas classes populares Em toda a parte ele reforçaria a intimidade da vida privada em detrimento das relações de vizinhança de amizades ou de 267 tradições A história de nossos costumes reduzse em parte a esse longo esforço do homem para se separar dos outros para se afastar de uma sociedade cuja pressão não pôde mais ser suportada A casa perdeu o caráter de lugar público que possuía em certos casos no século XVII em favor do clube e do café que por sua vez se tornaram menos frequentados A vida profissional e a vida familiar abafaram essa outra atividade que outrora invadia toda a vida a atividade das relações sociais Somos tentados a crer que o sentimento da família e a sociabilidade não eram compatíveis e só se podiam desenvolver à custa um do outro 268 N Conclusão Ele estava livre infinitamente a ponto de não mais se sentir pesar sobre a terra Faltavalhe esse peso das relações humanas que entrava o passo essas lágrimas esses adeuses essas queixas essas alegrias tudo o que um homem acaricia ou dilacera toda vez que esboça um esto esses mil laços que o ligam aos outros e o tornam pesado SaintExupéry a Idade Média no início dos tempos modernos e por muito tempo ainda nas classes populares as crianças misturavamse com os adultos assim que eram consideradas capazes de dispensar a ajuda das mães ou das amas poucos anos depois de um desmame tardio ou seja aproximadamente aos sete anos de idade A partir desse momento ingressavam imediatamente na grande comunidade dos homens participando com seus amigos jovens ou velhos dos trabalhos e dos jogos de todos os dias O movimento da vida coletiva arrastava em uma mesma torrente as idades e as condições sociais sem deixar a ninguém o tempo da solidão e da intimidade Nessas existências densas e coletivas não havia lugar para um setor privado A família cumpria uma função assegurava a transmissão da vida dos bens e dos nomes mas não penetrava muito longe na sensibilidade Os mitos como o do amor cortês ou precioso desprezavam o casamento enquanto as realidades como a aprendizagem das crianças afrouxavam o laço afetivo entre pais e filhos Podemos imaginar a família moderna sem amor mas a preocupação com a criança e a necessidade de sua presença estão enraizadas nela A civilização medieval havia esquecido a paideia dos antigos e ainda ignorava a educação dos modernos Este é o fato essencial ela não tinha ideia da educação Hoje nossa sociedade depende e sabe que depende do sucesso de seu sistema educacional Ela possui um sistema de educação uma consciência de sua importância Novas ciências como a Psicanálise a Pediatria a Psicologia consagraramse aos problemas da infância e suas descobertas são transmitidas aos pais através de uma vasta literatura de vulgarização Nosso mundo é obcecado pelos problemas físicos morais e sexuais da infância 269 Essa preocupação não era conhecida da civilização medieval pois para essa sociedade não havia problemas assim que era desmamada ou pouco depois a criança tornavase a companheira natural do adulto As classes de idade do neolítico a paideia helenística pressupunham uma diferença e uma passagem entre o mundo das crianças e o dos adultos uma passagem que era realizada por meio da iniciação ou de uma educação A civilização medieval não percebeu essa diferença e portanto não possuiu essa noção de passagem O grande acontecimento foi portanto o reaparecimento no início dos tempos modernos da preocupação com a educação Esse interesse animou um certo número de eclesiásticos e juristas ainda raros no século XV mas cada vez mais numerosos e influentes nos séculos XVI e XVII quando se confundiram com os partidários da reforma religiosa Pois eles eram antes de tudo moralistas mais do que humanistas os humanistas continuavam ligados a uma cultura do homem espalhada por toda a vida e pouco se preocupavam com uma formação reservada às crianças Esses reformadores esses moralistas cuja influência sobre a vida da escola e da família observamos neste estudo lutaram com determinação contra a anarquia ou o que lhes parecia então ser a anarquia da sociedade medieval enquanto a Igreja apesar de sua repugnância há muito se havia resignado a ela e incitava os fiéis a procurar sua salvação longe deste mundo pagão no retiro dos claustros Iniciouse então uma verdadeira moralização da sociedade o aspecto moral da religião pouco a pouco começou a prevalecer na prática sobre o aspecto sacro ou escatológico Foi assim que esses campeões de uma ordem moral foram levados a reconhecer a importância da educação Constatamos sua influência sobre a história da escola a transformação da escola livre em colégio vigiado Seus escritos se sucederam de Gerson a PortRoyal tornandose cada vez mais frequentes nos séculos XVI e XVII As ordens religiosas fundadas então como os jesuítas ou os oratorianos tornaramse ordens dedicadas ao ensino e seu ensino não se dirigia mais aos adultos como o dos pregadores ou dos mendicantes da Idade Média era essencialmente reservado às crianças e aos jovens Essa literatura essa propaganda ensinaram aos pais que eles eram guardiães espirituais que eram responsáveis perante Deus pela alma e até mesmo no final pelo corpo de seus filhos Passouse a admitir que a criança não estava madura para a vida e que era preciso submetêla a um regime especial a uma espécie de quarentena antes de deixála unirse aos adultos Essa nova preocupação com a educação pouco a pouco iria instalarse no seio da sociedade e transformála de fio a pavio A família deixou de ser apenas uma instituição do direito privado para a transmissão dos bens e do nome e assumiu 270 uma função moral e espiritual passando a formar os corpos e as almas Entre a geração física e a instituição jurídica existia um hiato que a educação iria preencher O cuidado dispensado às crianças passou a inspirar sentimentos novos uma afetividade nova que a iconografia do século XVII exprimiu com insistência e gosto o sentimento moderno da família Os pais não se contentavam mais em pôr filhos no mundo em estabelecer apenas alguns deles desinteressandose dos outros A moral da época lhes impunha proporcionar a todos os filhos e não apenas ao mais velho e no fim do século XVII até mesmo às meninas uma preparação para a vida Ficou convencionado que essa preparação fosse assegurada pela escola A aprendizagem tradicional foi substituída pela escola uma escola transformada instrumento de disciplina severa protegida pela justiça e pela política O extraordinário desenvolvimento da escola no século XVII foi uma consequência dessa preocupação nova dos pais com a educação das crianças As lições dos moralistas lhes ensinavam que era seu dever enviar as crianças bem cedo à escola Os pais diz um texto de 1602 que se preocupam com a educação de suas crianças liberos erudiendos merecem mais respeito do que aqueles que se contentam em pôlas no mundo Eles lhe dão não apenas a vida mas uma vida boa e santa Por esse motivo esses pais têm razão em enviar seus filhos desde a mais tenra idade ao mercado da verdadeira sabedoria ou seja ao colégio onde eles se tornarão os artífices de sua própria fortuna os ornamentos da pátria da família e dos amigos1 A família e a escola retiraram juntas a criança da sociedade dos adultos A escola confinou uma infância outrora livre em um regime disciplinar cada vez mais rigoroso que nos séculos XVIII e XIX resultou no enclausuramento total do internato A solicitude da família da Igreja dos moralistas e dos administradores privou a criança da liberdade de que ela gozava entre os adultos Inflingiulhe o chicote a prisão em suma as correções reservadas aos condenados das condições mais baixas Mas esse rigor traduzia um sentimento muito diferente da antiga indiferença um amor obsessivo que deveria dominar a sociedade a partir do século XVIII É fácil compreender que essa invasão das sensibilidades pela infância tenha resultado nos fenômenos hoje mais bem conhecidos do malthusianismo ou do controle da natalidade Este último surgiu no século XVIII no momento em que a família acabava de se reorganizar em torno da criança e erguia entre ela mesma e a sociedade o muro da vida privada A família moderna retirou da vida comum não apenas as crianças mas uma grande parte do tempo e da preocupação dos adultos Ela correspondeu a uma necessidade de intimidade e também de identidade os membros da família se 271 unem pelo sentimento o costume e o gênero de vida As promiscuidades impostas pela antiga sociabilidade lhes repugnam Compreendese que essa ascendência moral da família tenha sido originariamente um fenômeno burguês a alta nobreza e o povo situados nas duas extremidades da escala social conservaram por mais tempo as boas maneiras tradicionais e permaneceram indiferentes à pressão exterior As classes populares mantiveram até quase nossos dias esse gosto pela multidão Existe portanto uma relação entre o sentimento da família e o sentimento de classe Em várias ocasiões ao longo deste estudo vimos que eles se cruzavam Durante séculos os mesmos jogos foram comuns às diferentes condições sociais a partir do início dos tempos modernos porém operouse uma seleção entre eles alguns foram reservados aos bemnascidos enquanto outros foram abandonados ao mesmo tempo às crianças e ao povo As escolas de caridade do século XVII fundadas para os pobres atraíam também as crianças ricas Mas a partir do século XVIII as famílias burguesas não aceitaram mais essa mistura e retiraram suas crianças daquilo que se tornaria um sistema de ensino primário popular para colocálas nas pensões ou nas classes elementares dos colégios cujo monopólio conquistaram Os jogos e as escolas inicialmente comuns ao conjunto da sociedade ingressaram então em um sistema de classes Foi como se um corpo social polimorfo e rígido se desfizesse e fosse substituído por uma infinidade de pequenas sociedades as famílias e por alguns grupos maciços as classes As famílias e as classes reuniam indivíduos que se aproximavam por sua semelhança moral e pela identidade de seu gênero de vida O antigo corpo social único ao contrário englobava a maior variedade possível de idades e condições Pois aí as condições eram tanto mais claramente distinguidas e hierarquizadas quanto mais se aproximavam no espaço As distâncias morais supriam as distâncias físicas O rigor dos sinais exteriores de respeito e das diferenças de vestuário corrigia a familiaridade da vida comum O criado nunca deixava seu senhor de quem se tornava amigo e cúmplice passadas as camaradagens da adolescência a altura do senhor correspondia à insolência do servidor e restabelecia para o bem ou para o mal uma hierarquia que uma excessiva e constante familiaridade estava sempre colocando em questão As pessoas viviam em um estado de contraste o nascimento nobre ou a fortuna andavam lado a lado com a miséria o vício com a virtude o escândalo com a devoção Apesar de seus contrastes estridentes essa miscelânea não surpreendia ninguém ela pertencia à diversidade do mundo que devia ser aceita como um dado natural Um homem ou uma mulher bemnascidos não viam nenhum problema em visitar vestidos com seus trajes suntuosos os miseráveis das prisões dos hospitais 272 ou das ruas quase nus debaixo de seus farrapos A justaposição desses extremos assim como não tolhia os ricos não humilhava os pobres Hoje ainda resta alguma coisa desse clima moral na Itália meridional Mas chegou um momento em que a burguesia não suportou mais a pressão da multidão nem o contato com o povo Ela cindiu retirouse da vasta sociedade polimorfa para se organizar à parte em um meio homogêneo entre suas famílias fechadas em habitações previstas para a intimidade em bairros novos protegidos contra toda contaminação popular A justaposição das desigualdades outrora natural tornouselhe intolerável a repugnância do rico precedeu a vergonha do pobre A procura da intimidade e as novas necessidades de conforto que ele suscitava pois existe uma relação estreita entre o conforto e a intimidade acentuavam ainda mais o contraste entre os tipos de vida material do povo e da burguesia A antiga sociedade concentrava um número máximo de gêneros de vida em um mínimo de espaço e aceitava quando não procurava a aproximação barroca das condições sociais mais distantes A nova sociedade ao contrário assegurava a cada gênero de vida um espaço reservado cujas características dominantes deviam ser respeitadas cada pessoa devia parecer com um modelo convencional com um tipo ideal nunca se afastando dele sob pena de excomunhão O sentimento da família o sentimento de classe e talvez em outra área o sentimento de raça surgem portanto como as manifestações da mesma intolerância diante da diversidade de uma mesma preocupação de uniformidade 273 1 Academia sive Vita scholastica Arnheim 1602 274 Índice Frontispício 2 GEN 3 Página de rosto 4 Página de créditos 5 Dedicatória 7 Nota 8 Sumário 9 Prefácio 11 1 O Sentimento da Infância 31 1 As Idades da Vida 32 2 A Descoberta da Infância 52 3 O Traje das Crianças 70 4 Pequena Contribuição à História dos Jogos e das Brincadeiras 82 5 Do Despudor à Inocência 123 Conclusão Os Dois Sentimentos da Infância 152 2 A Vida Escolástica 161 1 Jovens e Velhos Escolares da Idade Média 162 2 Uma Instituição Nova O Colégio 166 3 Origens das Classes Escolares 168 4 As Idades dos Alunos 170 5 Os Progressos da Disciplina 173 6 As Pequenas Escolas 179 7 A Rudeza da Infância Escolar 180 Conclusão A Escola e a Duração da Infância 183 3 A Família 192 1 As Imagens da Família 193 2 Da Família Medieval à Família Moderna 221 Conclusão Família e Sociabilidade 266 Conclusão 269 275