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CRIANÇAS ESCRAVAS CRIANÇAS DOS ESCRAVOS José Roberto de Góes Manolo Florentino ULLUNGA Se o destino fosse outro Ullunga teria crescido entre os seus numa aldeia angolana e lá mesmo deixado de ser criança Por ocasião da primeira menstruação os mais velhos da linhagem lembrariam os ancestrais bichos seriam sacrificados e ela quiçá permanecesse reclusa durante toda a regra Talvez lhe fosse vedado ingerir alguns alimentos e pronunciar certas palavras Se originária de terras mais meridionais evitaria contato com homens e gado houvesse nascido mais ao sul ainda traria marcada no corpo a nova condição pela extração do clitóris ou a retirada do hímen Ullunga talvez fosse até obrigada a mudar de nome Eram ritos que marcavam a entrada na puberdade e o fim da infância1 No entanto Ullunga caiu na rede do tráfico de escravos que se dirigia para o Atlântico Em certo dia do ano de 1736 documentos portugueses a mostram extenuada em meio a setenta outras pessoas também capturadas Sabemos que passou por Benguela e que pode ter sido embarcada para o Brasil Se sobreviveu à travessia oceânica foi das poucas crianças a aportar deste lado do Atlântico pois o tráfico privilegiava adultos do sexo masculino Apenas 4 dos africanos desembarcados no Valongo naquela época possuíam menos de dez anos de idade2 Se Ullunga foi um deles logo aprendeu que no Brasil o ingresso no mundo dos adultos se dava por outras passagens em vez de rituais que exaltavam a fertilidade e a procriação o paulatino adestramento no mundo do trabalho e da obediência ao senhor Uma vez na América Ullunga seria uma criança escrava Deixemos Ullunga cumprir a sua sina e vejamos as crianças escravas do universo agrário do Rio de Janeiro SOBEJOS DA MORTE Entre 1789 e 1830 a população escrava do Rio de Janeiro mantinhase e crescia por meio do tráfico transatlântico Os navios negreiros que incessantemente cortavam o oceano despejaram anualmente no porto carioca nove mil africanos até 1808 A partir de então e até 1830 24 mil aproximadamente Em 1789 havia 65 mil escravos metade da população global nas áreas rurais do Rio de janeiro Até 1808 metade deles estava concentrada em grandes fazendas Em 1823 a população cativa chegava a 110 mil pessoas continuando a representar a metade dos habitantes das zonas agrárias Por volta de 1830 três quartos dos escravos estavam concentrados em grandes fazendas ligadas à agroexportação do café e do açúcar A maior parte da população escrava com mais de 15 anos era em sua maioria formada por africanos falantes de línguas bantos Este texto se refere privilegiadamente às crianças que viveram e morreram nas áreas rurais do Rio de Janeiro nesta época Entre os cativos do Brasil predominavam os adultos poucos dos quais chegavam aos cinquenta anos de idade O desequilíbrio entre os sexos variava segundo as flutuações do tráfico e em tempos de grandes desembarques chegava a haver sete homens para cada três mulheres Na média as crianças representavam apenas dois entre cada dez cativos Obviamente quanto mais tempo afastado do mercado de escravos estivesse um plantel menos acentuados eram tais desequilíbrios em fazendas que por vinte anos não compravam cativos o equilíbrio entre os sexos era a norma e as crianças podiam corresponder a um terço da escravaria em estabelecimentos apartados do mercado há cinquenta anos as crianças correspondiam a quase metade de todos os cativos A análise dos inventários postmortem dos proprietários falecidos nas áreas rurais do Rio de Janeiro entre 1789 e 1830 mostra que não existia propriamente um mercado de crianças cativas Por certo algumas eram compradas e vendidas transações que se faziam mais frequentes nas etapas finais da infância especialmente durante as fases de grandes desembarques de africanos Também é verdade que outras eram doadas ao nascer Operações deste tipo contudo não assumiam qualquer função estrutural para o sistema escravista Os principais traços demográficos do universo infantil estavam muito mais relacionados à fecundidade das cativas e à mortalidade infantil As crianças que as fazendas compravam não eram o principal objeto de investimento senhorial mas sim as suas mães que com eles se agregavam aos cafezais plantações de canadeaçúcar e demais Observandose a distribuição sexual existente entre elas verificase que não havia sinal da preferência senhorial pelo sexo masculino Em costas negras em tempos de grande desembarque de escravosna média as crianças representavam apenas dois entre dez cativos Poucas crianças chegavam a ser adultos sobretudo quando do incremento dos desembarques de africanos no porto carioca Com efeito os inventários das áreas rurais fluminenses mostram que no intervalo entre o falecimento dos proprietários e a conclusão da partilha entre os herdeiros os escravos com menos de dez anos de idade correspondiam a um terço dos cativos falecidos dentre estes dois terços morriam antes de completar um ano de idade 80 até os cinco anos Aqueles que escapavam da morte prematura iam aparentemente perdendo os pais Antes mesmo de completarem um ano de idade uma entre cada dez crianças já não possuía nem pai nem mãe anotados nos inventários Aos cinco anos metade parecia ser completamente órfã aos 11 anos oito a cada dez Uma infância incomum desvelada apenas em comunidades conflagradas por guerras devastadoras ou epidemias prolongadas Seria isso realmente típico da escravidão fluminense É preciso cautela na análise destes inventários pois havia outros fatores determinando o pronunciado crescimento do número de crianças sem pais entre o nascimento e os 11 anos de idade Por exemplo sabese que por ocasião do batizado de Eugênio em 1841 ele foi doado por João Inácio Rodrigues a um de seus filhos Dois anos antes este mesmo proprietário doara Pedro de apenas um mês de idade a outro filho Doações aconteciam quando do batismo e geralmente favoreciam os familiares do proprietário3 Não significavam por isso forçosamente o definitivo rompimento da convivência entre pais e filhos Também a alforria entre os cativos fazia desaparecer dos registros os pais Nestes casos igualmente não havia quebra irremediável dos vínculos familiares É o que revela o processocrime que registrou o filicídio perpetrado pelo liberto Marcelino em junho de 1847 Marcelino fora alforriado quando da morte do dono junto com a mulher e a mãe mas seus filhos continuaram escravos Uma simples declaração por escrito promoveu a separação entre pai mãe avó filhos e netos Entretanto esta fratura da família apenas aconteceu nos documentos do senhor pois de fato Marcelino passou a viver numa pequena senzala com a mulher e a mãe a meia légua da fazenda na qual permaneceram escravos seus filhos Ele os visitava e abençoava regularmente até o dia em que resolveu matálos4 Os pais também sumiam dos inventários porque eram vendidos e legados uma entre cada quatro famílias eram partidas quando chegava a hora de dividir os bens do falecido5 E também fugiam por certo6 Além disso os avaliadores de escravos só registravam o pai se este fosse casado como recomendavam as prescrições da Igreja Católica Frequentemente seguiam ao pé da letra o preceito latino partus sequitur ventrem Mas a mortalidade por certo também se mostra presente no paulatino desaparecimento dos vínculos familiares entre filhos e pais Do inventário de Paschoal Cosme dos Reis por exemplo aberto em 1850 consta o minucioso registro de todos os óbitos de escravos ocorridos em seu engenho entre 1842 e 1852 Morreram 128 cativos mais de dez escravos por ano 54 eram crianças recémnascidos em sua grande maioria E significativamente dos 74 restantes nada menos do que 45 eram escravos casados ou viúvos7 Por essas e por outras é que havia propriedades em geral pequenos sítios cujas escravarias eram formadas unicamente por crianças Lenir de 11 anos era a única escrava de Maria Jacinta de Oliveira a parda Coleta de oito anos de idade também era a única escrava de Inácia Maria da Encarnação Tomás Gonçalves da Silva possuía um plantel de 24 escravos dois terços deles crianças8 VINGANDO ENTRE OS SEUS O menino criouloa sobrevivente não ficava só A consolálo existia uma rede de relações sociais escravas em especial as de tipo parental Muito possivelmente ele teria irmãos um ou outro tio primos além de por vezes avós que poderiam viver dentro e fora de seu plantel A extensão da rede familiar dependia em muito da flutuação do tráfico atlântico9 De qualquer modo em propriedades distantes do mercado de escravos a pelo menos vinte anos onde não raro mais de 90 da escravaria possuía parentes o menino com certeza seria irmão primo sobrinho ou neto de alguém Em qualquer circunstância porém teria a criança já uma tia ou um tio mesmo que não consanguíneos Um padrinho e muito frequentemente uma madrinha que com certeza os pais já lhe haviam providenciado logo no nascimento Com poucas semanas se batizava um inocente como escreviam os padres nos livros O livro de batismos dos escravos da freguesia de Inhaúma guardado no subterrâneo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro inaugura em 15 de dezembro de 1816 com o batizado de Anastácia filha dos escravos Francisco de Nação e Maria Crioula Anastácia nascida oito dias antes teve por padrinho o crioulo Modesto também cativo Em 1842 haviam sido registrados aproximadamente 16 mil batizados sobretudo de crianças Os escravos foram padrinhos e madrinhas em 67 das cerimônias os libertos em 24 e as pessoas livres em menos de 10 As madrinhas seguiam o mesmo padrão Nos maiores plantéis 75 dos padrinhos eram escravos10 demonstrando o empenho escravo em constituir laços familiares Os laços de compadrio uniam sobretudo escravos e este era o costume entre os cativos do Rio de Janeiro em áreas rurais e urbanas11 O livro de Inhaúma por mérito dos padres traz anotados os nomes dos donos de todos os escravos compadres o que permitiu saber quantos e quais plantéis se fizeram registrar O compadrio católico unia escravos e unia plantéis Francisco Maria e Anastácia pertenciam a Felizardo Dias de Carvalho porém o padrinho Modesto era de Inácio Francisco Braga Nos plantéis menores a maior parte dos padrinhos escravos pertencia a outro senhor nos maiores se dava o inverso isto é os escravos buscavam padrinhos entre eles mesmos Escravos de seis a cada dez plantéis da freguesia aproveitavam o sacramento católico para estabelecer vínculos de compadrio com parceiros de outros plantéis Inhaúma apresenta uma intrincada rede de vínculos parentais escravos constituída à sombra da Igreja Católica12 Numa época de intenso movimento de desembarque de africanos os escravos aproveitaram este sacramento católico para estabelecerem entre si e por sobre as fronteiras dos plantéis fortes laços parentais Razão tinha Gilberto Freyre quando chamava a atenção para a importância do catolicismo lusitano peculiar por seu apego aos costumes mundanos na sobrevivência das tradições culturais africanas Graças a ele era possível não apenas nascer já acompanhado por um padrinho mas também morrer protegido13 Quitéria de três anos foi sepultada na cova da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dentro da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Desterro de Itambi em 1725 Antônio e Manoel ambos também com três anos foram enterrados junto à pia batismal da mesma igreja em 1741 Já o menino Serafino filho do capitãomor Francisco de Oliveira Paes foi enterrado na cova de uma fábrica de açúcar mas será tão difícil imaginar de quantas cerimônias e reafirmações de vínculos não se fez o enterro14 Os escravos puseram o catolicismo a seu serviço para fazer parentes e famílias O batismo e a irmandade mais do que incorporálos ao rebanho de um DeusPai de filho branco possibilitava refazer a vida pela criação de uma comunidade africana como não havia na própria África15 O botânico SaintHilaire no mesmo dia em que nascia Anastácia passou pela freguesia e descreveu a igreja local pequeno edifício construído isoladamente sobre uma plataforma de onde se descortina um panorama muito agradável Dias depois dormiu em companhia do russo Langsdorff num rancho de beira de estrada Enquanto adormecia escutava uma ladainha católica Era um escravo ladino a recitar passagens dos evangelhos a africanos recémchegados16 As crianças ajudavam no trabalho de suas mães conhecidascomo negras de ganho ou de tabuleiro Porque os escravos inventavam meios de com o material disponível fincar as vigas de uma vida comunitária e cooperativa Mas em que medida esse empenho cativo protegia as crianças especialmente considerando que a aceleração do tráfico de africanos tornava mais efêmeras as normas escravas e mais instável a vida da comunidade E quanto podiam suportar afinal Hoje nos movimentados cruzamentos das grandes metrópoles brasileiras talvez encontremos algumas respostas eles estão apinhados de crianças quase sempre negras OS ADESTRAMENTOS As crianças cativas contudo não ficavam entregues apenas à comiseração de Deus Forças mui humanas ou desumanas a bem da verdade conduziam seus destinos Antonil escrevendo sobre o tormento da canadeaçúcar batida torcida cortada em pedaços arrastada moída espremida e fervida descreveu o calvário de escravos pais e de escravos filhos Estes também haviam de ser batidos torcidos arrastados espremidos e fervidos Era assim que se criava uma criança escrava17 Por volta dos 12 anos o adestramento que as tornava adultos estava se concluindo Nesta idade os meninos e as meninas começavam a trazer a profissão por sobrenome Chico Roça João Pastor Ana Mucama18Alguns haviam começado muito cedo O pequeno Gastão por exemplo aos quatro anos já desempenhava tarefas domésticas leves na fazenda de José de Araújo Rangel Gastão nem bem se pusera de pé e já tinha um senhor Manoel aos oito anos já pastoreava o gado da fazenda de Guaxindiba pertencente à baronesa de Macaé Rosa escrava de Josefa Maria Viana aos 11 anos de idade diziase ser costureira Aos 14 anos trabalhavase como um adulto19 O aprendizado da criança escrava se refletia no preço que alcançava Por volta dos quatro anos o mercado ainda pagava uma aposta contra a altíssima mortalidade infantil Mas ao iniciarse no servir lavar passar engomar remendar roupas reparar sapatos trabalhar em madeira pastorear e mesmo em tarefas próprias do eito o preço crescia O mercado valorava as habilidades que aos poucos se afirmavam Entre os quatro e os 11 anos a criança ia tendo o tempo paulatinamente ocupado pelo trabalho que levava o melhor e o mais do tempo diria Machado de Assis Aprendia um ofício e a ser escravo o trabalho era o campo privilegiado da pedagogia senhorial Assim é que comparativamente ao que valia aos quatro anos de idade por volta dos sete um escravo era cerca de 60 mais caro e por volta dos 11 chegava a valer até duas vezes mais Aos 14 anos a frequência de garotos desempenhando atividades cumprindo tarefas e especializandose em ocupações era a mesma dos escravos adultos Os preços obedeciam a igual movimento20 Órfão o menino crioulo não ficava só Amparavao uma rede de relações sociais que incluía irmãos primos avós ou padrinhos que viviam fora do seu plantel O adestramento da criança também se fazia pelo suplício Não o espetaculoso das punições exemplares reservadas aos pais mas o suplício do dia a dia feito de pequenas humilhações e grandes agravos Houve crianças escravas que sob as ordens de meninos livres puseramse de quatro e se fizeram de bestas Debret não pintou esse quadro mas não é difícil imaginar a criança negra arqueada pelo peso de um pequeno escravocrata Machado de Assis levoua para a literatura Lá está ela montada a receber lanhadas do dono21 Se Gilberto Freyre tiver razão uma outra vez como tudo indica e for verdade que os meninos livres eram educados aquém de toda contrariedade era muito difícil a vida das crianças escravas mais próximas à família do senhor22 O nhônhô afinal matriculado na mesma escola da escravidão estava a aprender sobre a utilidade de bofetadas e humilhações As crianças que viviam mais afastadas do contato senhorial por sua vez por certo não encontravam destino muito diferente Sobre elas as informações disponíveis são mais lacônicas mas não é difícil imaginar o quanto aprendiam pelo tratamento dispensado a seus pais se ainda os tivessem ou a seus parentes Para algumas a iniciação compulsória no trabalho não era uma empresa solitária Tomé e Teresa Angola aravam a terra na companhia do filho Felipe de nove anos Do mesmo modo Agostinho de seis anos plantava e colhia junto a Miguel Benguela e Joana Rebolo os pais Alexandrina aos 11 anos exercitavase no ofício de costureira provavelmente sob o olhar atento da mãe a amaseca Aurora Camundongo23 Para outras crianças no entanto a mudança podia ser brusca Maria Grahamb esteve no Brasil entre 1821 e 1823 Ela não tinha boa opinião sobre o escravo crioulo e justificavase assim referindose aos meninos que viviam próximos à família do senhor O crioulo é uma criança estragada até que fica bastante forte para trabalhar então sem nenhum hábito prévio de atividade esperase que ele seja industrioso tendo passado a existência a comer beber e correr por aqui e ali nos termos da igualdade familiar esperase que seja obediente24 Pelo visto ao menos aos olhos das pessoas livres servirse de besta para o pequeno futuro dono não era ainda atividade apenas brincadeira Era mesmo muito limitado o que a criança escrava podia experimentar como igualdade familiar De todo modo mui bruscamente o pequeno escravo haveria de compreender que não se tratava mais de um faz de conta que frequentemente era isso mesmo o que os homens livres exigiam dele25 Debret também disse que as crianças cativas até o seis anos viviam em igualdade familiar26 E como Graham achava que a maneira como na casa senhorial se tratavam as crianças cativas à semelhança de membros da família de iguais findava por estragálas para a escravidão Eram deixadas livres nos primeiros anos a comer beber e correr É fácil perceber como os dois europeus tinham dificuldade em compreender realmente o que se passava na vida das crianças escravas Afinal pode se comer e beber de muitos modos assim como se pode correr de muitas coisas De todo modo eles chamaram a atenção para o papel desempenhado pela infância no escravo adulto que conheceram Todo crioulo havia sido uma criança escrava e uma infância escravizada produzia um adulto peculiar Eles estavam certos também pelo adulto se pode conhecer a criança que não se é mais Aos 14 anos a criança escrava fazia o mesmo trabalho de um adulto Os crioulos eram escravos muito peculiares Eram os mais qualificados Por isso havia senhores que os achavam mais inteligentes ou menos burros do que os africanos Henry Koster é a fonte Acreditase geralmente que os negros crioulos e os mulatos aprendem mais depressa um ofício que um africano Essa aptidão superior de aproveitar o que aprendem é sem dúvida devido ao conhecimento desce a infância com a linguagem e maneiras dos amos27 O preço de um escravo crioulo era sempre superior ao preço do escravo africano mesmo quando crescia em muito o desembarque de africanos esta diferença entre o preço de ambos apenas se atenuava No topo da hierarquia que determinava a vida da comunidade escrava estavam os crioulos Avistados do alpendre de uma casagrande crioulos e africanos eram iguais na mesma miséria Vistos das senzalas contudo se percebe melhor o peso da cruz de cada um frequentemente desigual28 Há outro aspecto interessante no adulto em que se transformava a criança escrava a impaciência Koster preferia ter escravos africanos a partir da seguinte análise Penso que um africano quando se adapta e parece ter esquecido sua primitiva condição é um servo tão valioso como um crioulo negro ou um mulato Merece em geral mais confiança Longe de submeterse humildemente à situação em que nasceram eles roem o freio da escravidão com impaciência O aspecto diário de tantos indivíduos de sua raça que são livres levaos a desejar a igualdade e lamentar a cada momento seu infortunado cativeiro A consideração com que pessoas livres de castas mestiçadas são acolhidas tende a aumentar o descontentamento dos seus irmãos escravos Os africanos não sentem isso porque são considerados pelos seus irmãos de cor como seres inferiores e a opinião pública estabeleceu uma linha entre ambos de tal sorte que o escravo importado crê que o crioulo e ele não têm origem comum29 Mas será que africanos e crioulos possuíam de fato uma origem comum Esta pode ser uma forma imprecisa de dizer as coisas Afinal quando teve início a estirpe do pequeno Gastão senão com ele mesmo de certa forma Feito homem seria talvez daqueles trabalhadores especializados e mestiços referidos por Debret que trocavam cumprimentos entre si se desejando Deus te faça balanco30 Deus te faça branco isto é Deus te faça livre e próspero como o branco assim deve ser compreendida a saudação escrava A infância escravizada era a marca crucial do escravo crioulo Apesar de cativo ele jamais chegaria a ser um completo estrangeiro à sociedade escravista como aqueles trazidos da Africa Um lugar privilegiado na hierarquia que organizava a vida da escravaria e a impaciência eram os efeitos mais visíveis de uma infância escrava A força da tradição menino aprende a jogar capoeira A criança escrava era cria da escravidão mas era também filha dos escravos Esse é um aspecto infinitamente mais difícil de conhecer Do menino Serafino referido antes apenas sabemos que foi sepultado em cova numa fábrica de açúcar O eito não a igreja foi sua última morada Se os escravos foram bemsucedidos em bater torcer cortar em pedaços arrastar moer espremer e ferver o catolicismo de modo a reinventar o mundo da maneira possível imaginese o que não fizeram com as tradições culturais peculiares de que cada um era herdeiro Às crianças que traziam ao mundo confiavam este segredo Não é absurdo pois que elas se tornassem os adultos mais sabidos e mais impacientes Serafino contudo permanece a nos lembrar que ainda pouco sabemos sobre as crianças dos escravos Mas pelo escravo impaciente que se tornaria se aquela cova não tivesse sido o ponto final de sua infância não é difícil perceber que seus pais escravos algum sucesso obteriam em preparálo para a vida NOTAS a Diziase do negro nascido na América escravo nascido na casa do senhor b Educadora inglesa No Rio de Janeiro foi governanta da princesa D Maria da Glória Em Pernambuco foi intermediária de lorde Cochrane junto a Manuel de Carvalho Pais de Andrade chefe da Confederação do Equador 1 A referência a Ullunga encontrase em Joseph C Miller Way of death Madison Wisconsin University Press 1987 pp XIIXIII As informações acerca dos hábitos e noções relativas às crianças Bantu foram retiradas de J Blacking Black Background Nova York Abelard Schumann 1964 Virgínia van Der Vliet Growing up In Traditional society in WD HammondTook ed The Bantu speaking people in Souther Africa London Routledge K Paul 1974 Boris de Rachewiltz Black Eros London G Allen Unwiin 1964 Henrique A Junod Usos e costumes dos Bantos Lourenço Marques INM 1974 v 2 e B A Marwick The Swazi London Frank Cass 1966 2 Manolo Florentino Em costas negras São Paulo Cia das Letras 1997 p 221 3 Cf Livro de batismos de escravos do Convento de Nossa Senhora do Carmo Angra dos Reis levantado por Márcia Cristina Roma de Vasconcellos a quem somos gratos 4 Cf Manolo Florentino José Roberto Góes A paz das senzalas Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1997 prólogo e apêndice 1 5 Idem ibidem pp 115125 6 Cf Márcia Amantino O mundo dos fugitivos Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX Rio de Janeiro Departamento de Históriaufrj 1996 dissertação de mestrado inédita 7 Inventário postmortem de Paschoal Cosme dos Reis 18501852 Arquivo Nacional Em 1852 o Engenho Novo da Pavuna possuía 379 escravos 8 Inventário postmortem de Maria Jacinta de Oliveira 1822 Arquivo Nacional e Inventário postmortem de Tomás Gonçalves da Silva 1800 Arquivo Nacional 9 Florentino e Góes op cit passim 10 José Roberto Góes O cativeiro imperfeito Vitória Lineart 1993 p 56 11 Nas freguesias rurais de Jacarepaguá 17951805 e em Mambucaba 18301849 dois terços dos padrinhos eram também escravos Para a freguesia urbana de São José 18021810 metade dos padrinhos eram cativos e um terço forros Cf 393 registros de batismos para Jacarepaguá e 1206 para São José constantes dos Livros de batismos de escravos destas freguesias do acervo do Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro Para Mambucaba foram coletados 798 registros cf Livro de batismos de escravos de Mambucaba Arquivo do Convento de Nossa Senhora do Carmo Angra dos Reis Somos gratos a Cesar Lemos Luiza Saldanha Roberto Guedes e Márcia Cristina Roma de Vasconcellos pelo levantamento deste material 12 Cf Góes op cit p 122 13 Gilberto Freyre Casagrande senzala Rio de Janeiro José Olympio Editora 1987 passim 14 Cf Livro de registro de óbitos de escravos da Freguesia de Itambi 17171742 Mitra Diocesana de Niterói Os 189 registros deste livro foram levantados por Carlos Engemann e Marcelo de Assis a quem somos gratos 15 Robert W Slenes Malungu Ngoma Vem Revista da usp 12 19911992 passim 16 Auguste de SaintHilaire Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais Belo HorizonteSão Paulo ItatiaiaEdusp 1975 p36 17 André João Antonil Cultura e opulência do Brasil Belo HorizonteSão Paulo ItatiaiaEdusp 1982 passim 18 Cf Inventários PostMortem do meio rural do Rio de Janeiro Foram levantados 458 inventários dos quais 406 com 7972 cativos Tratase de todos os inventários existentes no acervo do Arquivo Nacional entre 1790 e 1835 Foram compiladas todas as peças terminadas em 0 1 2 5 6 e 7 para o período 17901830 Levantouse ainda os inventários de 1831 1832 1834 e 1835 Aos inventários de 1790 foram agregados os de 1789 para dar maior representatividade estatística à amostragem 19 Inventário postmortem de José de Araújo Rangel 1820 Arquivo Nacional Inventário postmortem de Leonarda Maria Velho da Silva 1825 Arquivo Nacional Inventário postmortem de Josefa Maria Viana 1822 Arquivo Nacional 20 Kátia Mattoso trabalhando com 897 escravos de 178 listas de cativos constantes de inventários postmortem baianos de 1860 a 1888 detecta duas idades de infância para os escravos a primeira de zero aos sete ou oito anos quando os pequenos cativos são crianças novas geralmente sem desempenho de atividades de tipo econômico a segunda daí até os doze anos de idade quando os jovens escravos deixam de ser crianças para entrar no mundo dos adultos mas na qualidade de aprendiz de moleque ou de moleca Seu critério é a entrada compulsória do cativo no mundo do trabalho cf O filho da escrava in Mary Del Priore História da criança no Brasil São Paulo Contexto 1991 pp 7697 21 Cf por exemplo Memórias póstumas de Brás Cubas em diversas edições 22 Freyre op cit passim 23 Inventário postmortem de Manoel da Rocha Vieira 1800 Arquivo Nacional Inventário postmortem de Lourenço de Souza 1791 Arquivo Nacional Inventário postmortem de João Guedes Pinto 1817 Arquivo Nacional 24 Maria Graham Diário de uma viagem ao Brasil Belo HorizonteSão Paulo ltatiaiaEdusp 1990 p 346 25 Idem p 335 26 Jean Baptiste Debret Viagem pitoresca e histórica ao Brasil Belo HorizonteSão Paulo ItatiaiaEdusp 1978 p 195 27 Henry Koster Viagens ao Nordeste do Brasil Recife Secretaria de Educação e Cultura Governo do Estado de Pernambuco 1978 p 400 28 Cf José Roberto Góes Escravos da paciência Niterói Departamento de Hisróriauff 1998 cap 4 29 Idem pp 400401 30 Debret op cit p 162